memmi retrato do colonizador 1 e 2 parte cap. 3 a pagina 95

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~ querendo rivalizar com os nacionalistas menos realistas, en- tregar-se-á a uma demagogia verbal. que, pelos próprios exageros. aumentará a desconfiança do colonizado. Proporá explicações tenebrosas e maquiavélicas dos atos do Coloni- zador. onde o simples jogo da mecânica colonizadora seria suficiente. Ou, para surpresa irritada do colonizador, des- culpará ruidosamente aquilo que este último condena em si mesmo. Em suma, recusando o mal. o colonizador de boa vontade jamais pode a1cançar o bem, pois a única escolha que lhe é permitida não é entre o bem eo mal, é entre o mal eo mal-estar. Não pode, enfim, deixar de interrogar-se sobre o efeito de seus esforços e de sua voz. Seus acessos de furor verbal não suscitam senão o ódio dos seus compatriotas e deixam o colonizado indiferente. Porque não detém o poder, suas afirmações e promessas não têm influência alguma na vida do colonizado. Não pode, além disso. dialogar com o coloni- zado, apresentar-lhe questões ou pedir garantias. Inc1ui-se entre os opressores e tão logo faz um gesto equívoco, per- mite-se o menor reparo, e crê poder entregar-se à franque";:> que autoriza a benevolência - e ei-lo suspeito im~~lata- mente. Admite, além disso, que não deve conf~l1dir com dúvidas, perguntas públicas, o colonizado em lut:i. Em suma, tudo lhe fornece a prova de sua expatriação, de sua solidão e de sua ineficácia. Descobrirá lentamente que nada mais lhe resta senão calar-se. Já estava obrigado a entremear suas dec1arações de silêncios necessários, para não indispor gra- vemente as autoridades da colônia e ser obrigado a deixar o país. Será preciso confessar que esse silêncio com o qual se dá muito bem, não o dilacera tanto assim? Que fazia, ao contrário, esforço para lutar em nome de uma justiça abs- trata por interesses que não são os seus. que freqüentemente exc1uíam mesmo os seus? Se não pode suportar esse silêncio e fazer de sua vida um permanente compromisso. se está entre os melhores. pode acabar também por deixar a colônia e seus privilégios. E se sua étic'a política lhe proíbe o que considera algumas vezes um abandono, fará tanta coisa, condenará as autoridades, até que seja "pus to à disposição da metrópole", segundo o pudico jargão administrativo. Deixando de ser um coloni- zador, porá fim à sua contradição e ao seu mal-estar. 50 3 o Colonizador Aceita que se . . . Ou o COLONIALISTA O colonizador que recusa o fato colonial não encontra na sua revolta o fim do seu mal-estar. Se não se suprime a si mesmo como colonizador, instala-se na' ambigüidade. Se repele essa medida extrema, concorre para confirmar, para instituir a relação colonial: a relação concreta de sua existência com a do colonizado. Podemos compreender .que lhe seja mais cômodo aceitar a colonização, percorrer até o fim do caminho que leva do colonial ao colonialista. O colonialista não é, em suma, senão o colonizador que se aceita como colonizador. Que, em conseqüência, explici- 51

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Page 1: Memmi Retrato Do Colonizador 1 e 2 Parte Cap. 3 a Pagina 95

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querendo rivalizar com os nacionalistas menos realistas, en-tregar-se-á a uma demagogia verbal. que, pelos própriosexageros. aumentará a desconfiança do colonizado. Proporáexplicações tenebrosas e maquiavélicas dos atos do Coloni-zador. onde o simples jogo da mecânica colonizadora seriasuficiente. Ou, para surpresa irritada do colonizador, des-culpará ruidosamente aquilo que este último condena em simesmo. Em suma, recusando o mal. o colonizador de boavontade jamais pode a1cançar o bem, pois a única escolhaque lhe é permitida não é entre o bem e o mal, é entre o male o mal-estar.

Não pode, enfim, deixar de interrogar-se sobre o efeitode seus esforços e de sua voz. Seus acessos de furor verbalnão suscitam senão o ódio dos seus compatriotas e deixamo colonizado indiferente. Porque não detém o poder, suasafirmações e promessas não têm influência alguma na vidado colonizado. Não pode, além disso. dialogar com o coloni-zado, apresentar-lhe questões ou pedir garantias. Inc1ui-seentre os opressores e tão logo faz um gesto equívoco, per-mite-se o menor reparo, e crê poder entregar-se à franque";:>que autoriza a benevolência - e ei-lo suspeito im~~lata-mente. Admite, além disso, que não deve conf~l1dir comdúvidas, perguntas públicas, o colonizado em lut:i. Em suma,tudo lhe fornece a prova de sua expatriação, de sua solidãoe de sua ineficácia. Descobrirá lentamente que nada maislhe resta senão calar-se. Já estava obrigado a entremear suasdec1arações de silêncios necessários, para não indispor gra-vemente as autoridades da colônia e ser obrigado a deixaro país. Será preciso confessar que esse silêncio com o qualse dá muito bem, não o dilacera tanto assim? Que fazia, aocontrário, esforço para lutar em nome de uma justiça abs-trata por interesses que não são os seus. que freqüentementeexc1uíam mesmo os seus?

Se não pode suportar esse silêncio e fazer de sua vidaum permanente compromisso. se está entre os melhores. podeacabar também por deixar a colônia e seus privilégios. E sesua étic'a política lhe proíbe o que considera algumas vezesum abandono, fará tanta coisa, condenará as autoridades,até que seja "pus to à disposição da metrópole", segundo opudico jargão administrativo. Deixando de ser um coloni-zador, porá fim à sua contradição e ao seu mal-estar.

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o Colonizador Aceitaque se

. . . Ou o COLONIALISTA

O colonizador que recusa o fato colonial não encontrana sua revolta o fim do seu mal-estar. Se não se suprimea si mesmo como colonizador, instala-se na' ambigüidade.Se repele essa medida extrema, concorre para confirmar,para instituir a relação colonial: a relação concreta de suaexistência com a do colonizado. Podemos compreender .quelhe seja mais cômodo aceitar a colonização, percorrer até ofim do caminho que leva do colonial ao colonialista.

O colonialista não é, em suma, senão o colonizador quese aceita como colonizador. Que, em conseqüência, explici-

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A MEDIOCRIDADEcem, e o resto da vida. Não esperavam tanto. Uma vez ins~talados, evitarão por todos os meios perder seu lugar; salvose lhe propuserem um melhor, o que só pode acontecer nacolônia. Eis porque, contrariamente ao que se diz, e salvoem alguns postos móveis por definição, o pessoal colonialé relativamente estável. A promoção dos medíocres não éum erro provisório, porém uma catástrofe definitiva, da quala colônia nunca se recompõe. As aves de arribação, mesmoanimadas por muita energia, jamais chegam a transformara fisionomia, ou simplesmente a rotina administrativa dasprefeituras coloniais.

Essa seleção gradual de medíocres, que se opera neces~siuiamente na colônia, é ainda agravada pela exigüidade docampo de recrutamento. Somente o colonizador é convoca~do, pelo nascimento, de pai para filho, de tio a sobrinho, deprimo a primo, por uma legislação exclusivista e racista, àdireção dos negócios da cidade. A classe dirigente, oriundaexclusivamente do grupo colonizador, de longe o mE:nosnumeroso, não se beneficia, pois, senão de uma ventilaçãoirrisória. Ocorre uma espécie de estiolamento por consan~güinidade administrativa, se assim podemos dizer.

É o medíocre, enfim, que impõe o tom geral da colô~nia. É ele o verdadeiro parceiro do colonizado, pois é quemtem mais necessidade de compensação e da vida colonial. Éentre ele e o colonizado que se criam as relações coloniaismais típicas. Apega~se tanto mais firmemente a essas rela~ções, ao fato coloniaL ao seu statu quo, quanto mais suaexistência colonial ele o pressente delas depende. Com~prometeu~se a fundo e definitivamente com a colônia,

De sorte que, se todo colonialista não é um medíocre,todo colonizador deve aceitar, até certo ponto, a mediocri~dade da vida coloniaL deve transigir com a mediocridade damaioria dos homens da colonização.

Essa constante filtração do grupo colonizador explicaum dos traços mais freqüentes no colonialista: suamedio~cridade.

A impressão se agrava por uma decepção talvez ingê~nua: o desequilíbrio é por demais flagrante entre o prestí-gio, a,S pretensões e as responsabilidades do colonialista esuas capacidades reais, os resultados de sua ação. Não po~demos evitar, quando nos aproximamos da sociedade colo~nialista, a expectativa de encontrar uma elite, ao menos umaseleção, os melhores técnicos por exemplo, os mais eficazesou os mais seguros . Essas pessoas ocupam, quase todas epor toda a parte, de direito ou de fato, os primeiros luga-res. Sabem disso e reivindicam as deferências e as honras.A sociedade colonizadora quer ser uma sociedade dirigentee se empenha' em ter essa aparência. As recepções aos dele~gados metropolitanos lembram muito mais as de um chefede governo que as de um prefeito. O menor percurso moto~rizado é precedido por uma série de motociclistas imponen~tes, estrepitosos e sibilantes. Nada se economiza a fim deimpressionar o colonizado, o estrangeiro e talvez o própriocolonizador,

Ora, olhando mais de perto, não descobrimos, em ge-ral, além do fausto ou do simples orgulho do pequeno colo~nizador, senão homens de pequena estatura. Políticos, en~carregados de modelar a história, quase sem conhecimentoshistóricos, sempre surpresos com os acontecimentos, re~cusando os fatos ou incapazes de prever. Especialistas, res~ponsáveis pelo destino de um país e que se revelam técnicosfora de combate, já que toda competição lhes é poupada.Quanto aos administradores, um capítulo deveria ser escritosobre desleixo e a indigência da gestão colonial. É precisodizer, ~m verdade, que a melhor gestão da colônia não fazparte, de modo algum, dos propósitos da colonização.

Como não há uma raça de colonizadores nem de colo~nizéirlos, é preciso realmente descobrir outra explicação paraa surpreendente carência dos senhores da colônia. Já assinala~mos a hemorragia dos melhores; hemorragia dupla, de nativose de pessoas em trânsito. Esse fenômeno é seguido por outro,complementar e desastroso: os medíocres, esses permane-

O COMPLEXO DE NERO

Como todo colonizador, deve transigir com sua situa~ção objetiva, e com as relações humanas que dela decorrem,

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Por ter decidido confirmar o fato colonial. o colonialistanem por isso suprimiu as dificuldades objetivas. A situaçãocolonial impõe a todo colonizador dados econômicos, políti-cos e afetivos, contra os quais pode insurgir-se, sem conse-guir jamais desvencilhar-se deles, pois constituem a própriaessência do fato colonial. E, bem cedo, o colonialista desco-bre sua própria ambigüidade.

Aceitando-se como colonizador, aceita, ao mesmo tem-po, embora tenha decidido ir além, o que esse papel implicaem condenação, aos olhos dos outros e aos seus próprios.Essa decisão não lhe traz, de forma alguma, uma bem-aven-turada e definitiva tranqüilidade de alma. Ao contrário, oesforçp que fará para superar essa ambigüidade será umadas chaves para a sua compreensão. E as relações humanasna colônia talvez tivessem sido melhores, menos ruinosaspara o colonizado, se o coloniaJista .se houvesse convencidoda sua legitimidade. Em suma, o problema apresentado aocolonizador que se recusa é o mesmo com que se defrontao colonizador que se aceita. Somente suas soluções diferem:a do colonizador que se aceita, t.ransforma-o infalwelmentee'm colonialista.

Dessa assunção de si mesmo e de sua situação, vão de-correr, com efeito, vários traços que podemos agrupar emum conjunto coerente. Essa constelação, propomos chamá-Ia: o papel do usurpador (ou ainda o complexo de N ero) .

Aceitar-se como colonizador, seria essencialmente, dis-semos, aceitar-se como privilegiado não legítimo, quer dizer,como usurpador. O usurpador, sem dúvida, reivindica seulugar e, se fôr necessário, o defenderá por todos os meios.Admite, porém, que reivindica um lugar usurpado. Isto é, nomomento mesmo que triunfa, admite que triunfa dele mesmouma imagem que condena. Sua vitória de fato, portanto, ja-mais o satisfará: resta-lhe inscrevê-Ia nas leis e na moral.Ser-lhe-ia necessário para isso convencer os outros, senãoele mesmo. Tem necessidade, em suma, para desfrutá-Iacompletamente, de lavar-se de sua vitória, e das condiçõesnas quais foi a1cançada. Daí seu encarniçamento, surpreen-dente por parte de um vencedor, em aparentes futilidades:esforça-se por falsificar a história, faz reescrever os textos,apagaria memórias. Não importa o quê, a fim de conseguirtransformar sua usurpação em legitimidade;

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TI

Como? Como pode a usurpação tentar passar por legi-timidade? Duas operações parecem possíveis: demonstrar osméritos eminentes do usurpador, tão eminentes que clamampor semelhante recompensa; ou insistir nos deméritos dousurpado, tão graves que não podem senão suscitar tal des-graça. E esses dois esforços são de fato inseparáveis. Sua in-quietude, sua sede de justificação exigem do usurpador, aomesmo tempo, que se eleve a si mesmo até as nuvens e queafunde o usurpado mais baixo que a terra.

Além disso, tal complementaridade não esgota a rela-ção complexa desses dois movimentos. É preciso acrescentarque, quanto mais o usurpado é esmagado, mais o usurpadortriuf1fa na usurpação; e, por conseguinte, confirma-se na suaculpabilidade e na própria condenação: então, o jogo domecanismo se acentua. cada vez mais, aumentando sem ces-sar, agravado pelo próprio ritmo. No fim, o usurpador ten-tará fazer desaparecer o usurpado, cuja simples existênciao coloca como usurpador, cuja opressão cada vez mais pe-sada o torna, a si mesmo, cada vez mais opressor. Nero, fi-gura exemplar do usurpador, é levado assim a atormentarraivosamente Britanicus, a persegui-Ia. Quanto mais mal lhefizer, no entanto, mais coincidirá com o papel atroz que es-colheu. E, quanto mais afundar-se na injustiça, mais detes-tará Britanicus e mais procurará atingir sua vítima, que otransforma em carrasco. Não satisfeito em lhe ter roubadoo trono, tentará arrebatar-lhe o único bem que lhe resta, oamor de Junia. Não se trata nem de puro ciúme nem deperversidade, mas dessa fatalidade interior da usurpação,que o arrasta irresistlvelmente a esta suprema tentação: asupressão moral e física do usurpado.

No caso do colonialista, porém, esse limite encontra emsi mesmo sua própria regulação. Se pode desejar obscura-mente ,..- acontece-lhe proclamá-Io ,..- riscar o colonizado domapa dos vivos, seria impossível fazê-Ia sem atingir-se a simesmo. Para alguma coisa serve a infelicidade: a existênciado colonialista está por demais ligada à do colonizado, ja-mais poderá superar essa dialética. Precisa negar, com todassuas forças, o colonizado e, ao mesmo tempo, a existên-cia de sua vítima lhe é indispensável para continuar a ser oque é. Desde que escolheu manter o sistema colonial. deveprocurar defendê-Io com mais vigor do que lhe seria neces-

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Por ter decidido confirmar o fato colonial. o colonialistanem por isso suprimiu as dificuldades objetivas. A situaçãocolonial impõe a todo colonizador dados econômicos, políti~cos e afetivos, contra os quais pode insurgir~se, sem conse~guir jamais desvencilhar~se deles, pois constituem a própriaessência do fato colonial. E. bem cedo, o colonialista desco-bre sua própria ambigüidade.

Aceitando-se como colonizador, aceita, ao mesmo tem-po, embora tenha decidido ir além, o que esse papel implicaem condenação, aos olhos dos outros e aos seus próprios.Essa decisão não lhe traz, de forma alguma, uma bem-aven~turada e definitiva tranqüilidade de alma. Ao contrário, oesforçJ) que fará para superar essa ambigüidade será Umadas chaves para a sua compreensão. E as relações humanasna colônia talvez tivessem sido melhores, menos ruinosaspara o colonizado, se o colonialista .se houvesse convencidoda sua legitimidade. Em Suma, o problema apresentado aocolonizador que se recusa é o mesmo Com que se defrontao colonizador que se aceita. Somente suas soluções diferem:a do colonizador que se aceita, transforma-o infalIVelmentee!m colonialista.

Dessa assunção de si mesmo e de sua situação, vão de-correr, COm efeito, vários traços que podemos agrupar emum conjunto coerente. Essa constelação, propomos chamá-la: o papel do usurpador (ou ainda o complexo de Nero).

Aceitar-se como colonizador, seria essencialmente, dis-semos, aceitar-se COmoprivilegiado não legítimo, quer dizer,COmo usurpador. O usurpador, sem dúvida, reivindica seulugar e, se fôr necessário, o defenderá por todos os meios.Admite, porém, que reivindica um lugar usurpado. Isto é, nomomento mesmo que triunfa. admite que triunfa dele mesmouma imagem que condena. Sua vitória de fato, portanto. ja-mais o satisfará: resta-lhe inscrevê-la nas leis e na moral.Ser-lhe-ia necessário para isso convencer os outros, senãoele mesmo. Tem necessidade, em suma, para desfrutá-lacompletamente, de lavar-se de sua vitória, e das condiçõesnas quais Eoi alcança da. Daí seu encarniçamento, surpreen-dente por parte de Um vencedor, em aparentes futilidades:esforça-se por falsificar a história, faz reescrever os textos,apagaria memórias. Não importa o quê, a fim de conseguirtransformar sua usurpação em legitimidade;

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Como? Como pode a usurpação tentar passar por legi-timidade? Duas operações parecem possíveis: demonstrar osméritos eminentes do usurpador, tão eminentes que clamampor semelhante recompensa; ou insistir nos deméritos dousurpado, tão graves ljue não podem senão suscitar tal des~graça. E esses dois esforços são de fato inseparáveis. Sua in~quietude. sua sede de justificação exigem do usurpador, aomesmo tempo, que se eleve a si mesmo até as nuvens e queafunde o usurpado mais baixo que a terra.

Além disso, tal complementaridade não esgota a rela-ção complexa desses dois movimentos. É preciso acrescentarque, quanto mais o usurpado é esmagado, mais o usurpadortriuf1fa na usurpação; e, por conseguinte, confirma-se na suaculpabilidade e na própria condenação: então, o jogo domecanismo se acentua. cada vez mais, aumentando sem ces-sar, agravado pelo próprio ritmo. No fim, o usurpador ten~tará fazer desaparecer o usurpado, cuja simples existênciao coloca como usurpador, cuja opressão cada vez mais pe~sada o torna, a si mesmo, cada vez mais opressor. Nero, fi~gura exemplar do usurpador, é levado assim a atormentarraivosamente Britanicus, a persegui-Io. Quanto mais mal lhefizer, no entanto, mais coincidirá com o papel atroz que es~colheu. E, quanto mais afundar-se na injustiça, mais detes~tará Britanicus e mais procurará atingir sua vítima, que otransforma em carrasco. Não satisfeito em lhe ter roubadoo trono, tentará arrebatar-lhe o único bem que lhe resta, oamor de Junia. Não se trata nem de puro ciúme nem deperversidade, mas dessa fatalidade interior da usurpação,que o arrasta irresistIvelmente a esta suprema tentação: asupressão moral e física do usurpado.

No caso do colonialista, porém, esse limite encontra emsi mesmo sua própria regulação, Se pode desejar obscura~mente --- acontece~lhe proclamá-Io --- riscar o colonizado domapa dos vivos, seria impossível fazê-Io sem atingir~se a simesmo. Para alguma coisa serve a infelicidade: a existênciado colonialista está por demais ligada à do colonizado, ja~mais poderá superar essa dialética. Precisa negar, com todassuas forças, o colonizado e, ao mesmo tempo, a existên~cia de sua vítima lhe é indispensável para continuar a ser oque é. Desde que escolheu manter o sistema colonial, deveprocurar defendê-Io com mais vigor do que lhe seria neces~

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sário para recusá~lo. Desde que tomou consciência da injus-ta relação que o une ao colonizado. é preciso que se empe-nhe sem tréguas em absolver-se. Nunca se esquecerá defazer alarde de suas próprias virtudes. defender~se~á comraivosa obstinação a fim de parecer heróico e grande. me-recendo plenamente sua fortuna. Ao mesmo tempo. devendoseus privilégios tanto à sua glória quanto ao aviltamento docolonizado. obstinar~se~á em aviltá-Io. Utilizará para des-crevê-Io as cores mais sombrias; agirá. se fôr preciso. paradesvalorizá-Io. para anulá-to. Mas não sairá jamais destecírculo: é preciso explicar a distância que a colonização es-tabelece entre ele e o colonizado; ora. a Fim de justificar-se.é levado a aumentar mais ainda essa distância. a opor irre-mediavelmente as duas figuras. a sua tão gloriosa. a do co-lonizado tão desprezível.

,,,,,por sua sHuação social. seu meio familiar. suas amizadesnaturais. poderia ter sido um democrata. transformar-se~ácertamente em conservador. em reacionário ou mesmo emfascista colonial. Não pode deixar de aprovar a discrimina-ção e a codiIicação da injustiça. alegrar-se-á com as tortu-ras policiais e, se preciso fôr, convencer-se-á da necessidadedo massacre. Tudo o levará a isso. seus novos interesses,suas relações profissionais. seus laços familiares e de ami-zade estabelecidos na colônia. O mecanismo é quase fatal:a situação colonial fabrica colonialistas, como fabrica colo-nizados.

O DESPREZO DE SI

Os DOIS RETRATOS

Pois não é em vão que se tem necessidade da políciae do exército para ganhar a vida. da força e da iniqüidadepara continuar a existir. Não é impunemente que se aceitaviver sempre com sua própria condenação. O panegírico desi mesmo e dos seus, a afirmação repetida, mesmo convicta,da excelência de seus costumes, de suas instituições, de suasuperioridade cultural e técnica, não apagam a condenaçãofundamental que todo colonialista carrega no fundo de simesmo. Como poderia não levá-Ia em conta? Tentasse en-surdecer sua própria voz interior, que tudo, todos os dias,a lembraria: a simples visão do colonizado, as insinuaçõespolidas ou as acusações brutais dos estrangeiros. as confis-sões dos seus na colônia, e até na metrópole, onde se vê,em cada viagem, cercado por uma desconfiança um tantoinvejosa. um pouco condescendente. É poupado sem dúvidacomo todos aqueles que dispõem ou participam de qualquerpoder econômico ou político. Mas sugere-se que é um hábil,que soube tirar partido de uma situação especial, cujos re-cursos seriam, em suma, de moral idade discutível. Porpouco, lhe piscariam o ôlho, como a dizer-lhe que ocompreendem.

Contra essa acusação, implícita ou confessada, massempre presente, sempre preparada, nele mesmo e nos ou-tros, defende-se como pode Ora insiste nas dificuldades de

Essa autojustiIicação desemboca assim em uma verda-deira reconstrução ideal dos dois protagonistas do dramacolonial. Nada é mais fácil que reunir os traços supostosdesses dois retratos. apresentados pelo colonialista. Basta-riam uma breve temporada na colônia. algumas conversas,ou simplesmente a rápida leitura dos jornais ou dos roman-ces chamados coloniais.

Essas duas imagens não são; como veremos adiante,inconseqüentes. A do çolonizado vista pelo colonialista. im-posta por suas exigências. difundida na colônia, e freqüen-temente no mundo. graças aos seus jornais. à sua literatura,acaba por repercutir. de certa maneira, na conduta e por-tanto na fisionomia real do colonizado. 1 Assim também, amaneira pela qual quer ver-se o colonizado. desempenha pa-pel decisivo na emergência de sua fisionomia definíÍ:iva.

É que não se trata de simples adesão intelectual. masda escolha de todo um estilo de vida. Esse homem, talvezamigo sensível e pai afetuoso, que. no seu país de origem,

1 Ver, mais adíante, o retrato do colonizado.

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sário para recusá-Io. Desde que tomou consciência da injus-ta relação que o une ao colonizado, é preciso que se empe-nhe sem tréguas em absolver-se. Nunca se esquecerá defazer alarde de suas próprias virtudes. defender-se-á comraivosa obstinação a fim de parecer heróico e grande, me-recendo plenamente sua fortuna. Ao mesmo tempo. devendoseus privilégios tanto à sua glória quanto ao aviltamento docolonizado. obstinar-se-á em aviltá-Io. Utilizará para des-crevê-Io as cores mais sombrias; agirá. se fór preciso, paradesvalorizá-Io. para anulá-Ia. Mas não sairá jamais destecírculo: é preciso explicar a distância que a colonização es-tabelece entre ele e o colonizado; ora, a fim de justificar-se.é levado a aumentar mais ainda essa distância. a opor irre-mediavelmente as duas figuras. a sua tão gloriosa, a do co-lonizado tão desprezível.

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I

por sua situação social. seu meio familiar, suas amizadesnaturais, poderia ter sido um democrata. transformar-se-ácertamente em conservador, em reacionário ou mesmo emfascista colonial. Não pode deixar de aprovar a discrimina-ção e a codjficação da injustiça, alegrar-se-á com as tortu-ras policiais e, se preciso fór, convencer-se-á da necessidadedo massacre. Tudo o levará a isso, seus novos interesses,suas relações profissionais. seus laços familiares e de ami-zade estabelecidos na colônia. O mecanismo é quase fatal:a situação colonial fabrica colonialistas, como fabrica colo-nizados.

O DESPREZO DE SI

Os DOIS RETRATOS

Pois não é em vão que se tem necessidade da políciae do exército para ganhar a vida, da força e da iniqüidadepara continuar a existir. Não é impunemente que se aceitaviver sempre com sua própria condenação. O panegírico desi mesmo e dos seus, a afirmação repetida, mesmo convicta,da excelência de seus costumes, de suas instituições, de suasuperioridade cultural e técnica, não apagam a condenaçãofundamental que todo colonialista carrega no fundo de simesmo. Como poderia não levá-Ia em conta? Tentasse en-surdecer sua própria voz interior, que tudo. todos os dias.a lembraria: a simples visão do colonizado. as insinuaçõespolidas ou as acusações brutais dos estrangeiros. as confis-sões dos seus na colônia, e até na metrópole. onde se vê.em cada viagem, cercado por uma desconfiança um tantoinvejosa, um pouco condescendente. É: poupado sem dúvidacomo todos aqueles que dispõem ou participam de qualquerpoder econômico ou político. Mas sugere-se que é um hábil.que soube tirar partido de uma situação especial. cujos re-cursos seriam. em suma, de moralidade discutível. Porpouco, lhe piscariam o ôlho. como a dizer-lhe que ocompreendem.

Contra essa acusação, implícita ou confessada, massempre presente, sempre preparada. nele mesmo e nos ou-tros, defende-se como pode Ora insiste nas dificuldades de

Essa autojustificação desemboca assim em uma verda-deira reconstrução ideal dos dois protagonistas do dramacolonial. Nada é mais fácil que reunir os traços supostosdesses dois retratos. apresentados pelo colonialista. Basta-riam uma breve temporada na colônia. algumas conversas,ou simplesmente a rápida leitura dos jornais ou dos roman-ces chamados coloniais.

Essas duas imagens não são; como veremos adiante.inconseqüentes. A do çolonizado vista pelo colonialista. im-posta por suas exigências. difundida na colônia. e freqüen-temente no mundo, graças aos seus jornais. à sua literatura,acaba por repercutir, de certa maneira. na conduta e por-tanto na fisionomia real do colonizado. 1 Assim também, amaneira pela qual quer ver-se o colonizado. desempenha pa-pel decisivo na emergência de sua fisionomia definiÍ:iva.

É: que não se trata de simples adesão intelectual. masda escolha de todo um estilo de vida. Esse homem, talvezamigo sensível e pai afetuoso. que. no seu país de origem,

1 Ver, mais adiante, o retrato do colonizado.

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sua existência exótica, nas traições de um clima insidioso.na freqüência das doenças, na luta contra um solo ingrato,na desconfiança das populações hostis: não mereceria portudo isso compensação alguma? Ora, furioso, agressivo, re~age como GrJbouille; opondo desprezo a desprezo. acusandoo metropolitano de covardia e degenerescência; confessa. aocontrário, proclama as riquezas do exílio e também, por quenão? os privilégios da vida que escolheu. a vida fácil, osempregados numerosos. a fruição, impossível na Europa. deuma autoridade anacrônica e até mesmo o baixo preço dagasolina. Nada, enfim" pode salvá-Io. dando~lhe essa altaidéia compensadora de si mesmo. que tão avidamente pro~cura. Nem o estrangeiro. quando muito indiferente, mas nãoenganado ou cúmplice; nem sua pátria de origem onde ésempre suspeito e constantemente atacado. nem sua própriaação quotidiana que gostaria de ignorar a revolta muda docolonizado. De fato. acusado pelos outros. não acredita noseu próprio dossiê; no fundo de si mesmo, o colonialistajulga~se culpado.

ral. Assim, de uma só vez. terá afirmado que pertence aesse universo afortunado. sua ligação negativa, natural coma metrópole, e a impossibilidade de o colonizado participardesses esplendores. sua radical heterogeneidade. ao mesmotempo infeliz e desprezível.

Essa eleição. essa graça, o colonialista quer. além domais. merecê~la todos os dias. Apresenta~se. lembra~o fre~qüentemente, como um dos membros mais conscientes da co~munidade nacional; finalmente um dos melhores. Pois é re~conhecido e fiel. Sabe, ao contrário do metropolitano. cujafelicidade jamais é ameaçada. o que deve à sua origem. Suafidelidade é, no entanto, desinteressada: seu afastamentomesmo o atesta ..- não se macula com todas as mesquinha~rias da vida quotidiana do metropolitano que deve tudo ar~rancar pela malícia e a combinação eleitoral. Seu puro fer~vor pela pátria faz d~le. enfim. o verdadeiro patriota, aqueleque melhor a representa. e naquilo que ela tem de maisnobre.

É verdade que em certo sentido pode levar a que nissose acredite. Ama os símbolos mais vistosos, as manifesta~ções mais eloqü'entes do poderio de seu país. Assiste a todosos desfiles militares, que deseja e obtém constantes e impo~nentes; contribui com sua parte, pavoneando~secom disci~plina e ostentação. Admira o exército e a força. respeita osuniformes e cobiça as condecorações. Encontramos aqui oque se costuma chamar a política de prestígio; que não de~corre apenas de um princípio econômico ("mostrar a forçaa fim de não precisar dela servir~se"). mas corresponde auma profunda necessidade da vida colonial; trata~se tantode impressionar o colonizado quanto de tranqüilizar~se a simesmo.

Em compensação, tendo~lhe confiado a delegaçã0 e opeso de sua grandeza desfalecente. confia em que a metró~pole corresponda à sua esperança. Exige que mereça suaconfiança. que lhe devolva essa imagem dela mesma que eledeseja: ideal inacessível ao colonizado e perfeità justifica~tiva de seus méritos de empréstimo. Freqüentemente. detanto esperar, acaba por acreditar um pouco nessas imagens.Os recém~chegados. de memória ainda fresca. falam da me~trópole com muito mais justeza do que os velhos colonialis~tas. Nas suas comparações. inevitáveis, entre os dois países.

...

O PATRIOTA

lÉ lógico, nessas condições, que não espere seriamente

encontrar em si mesmo, a fonte dessa indispensavel grande~za. garantia de sua reabilitação. O exagero de sua vaidade.do retrato por demais magnífico do colonialista por êle mes~mo, o trai mais do que lhe serve. E. na verdade. sempreapelou também para além de si mesmo; esse último recurso,procura~o na metrópole.

Essa caução deve, com efeito, reunir duas condições p~e~liminares. A primeira .é pertencer a um universo do qual demesmo participa, se quiser que os. méritos do mediador nEdese reflitam. A segunda, é qu~"esse universo seja totalmenteestranho ao colonizado a fim de que jamais possa prevale~cer~se dele. Ora, essas duas condições, a metrópole as reúnemilagrosamente. Apelará. então, para as qualidades de suapátria de origem, celebrando~as, ampliando-as. insistindonas suas tradições particulares, na sua originalidade cultu-

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as colunas crédito e débito podem ainda rivalizar. O co]o-nialista parece ter esquecido a realidade viva do seu país deorigem. Com o correr dos anos. edificou, em oposição à co-]ônia. tamanho monumento da metrópole, que aquela lheparece necessariamente irrisória e vulgar. É notável que.mesmo para os colonizadores nascidos na colônia. quer di-zer. fIsicamente harmonizados com ela, adaptados ao sol. aocalor. à terra seca. a paisagem de referência permanece bru-mosa, úmida e verde. Como se a metrópole fosse uma com-ponente essencial do "super-ego" coletivo dos colonizadores.suas características objetivas tornam-se qualidades quaseéticas. Não se discute. a bruma é superior em si mesma aopleno sol e o verde ao ocre. A metrópole. pois, só reúnepositividades. a amenidade do clima e a harmonia das pai-sagens. a disciplina social e uma deliciosa liberdade, a bele-za. a moral. e a lógica.

Seria ingenuo. no entanto, responder ao co]onialistaque deveria retomar o mais depressa possível a esse uni-verso maravilhoso. reparar o erro de tê-l o deixado. Desdequando nos instaJamos quotidianamente na virtude e nabeleza? O próprio de um "super-ego" é precisamente nãoser vivido. reger de longe, sem ser jamais atingido, a con-duta prosaica e atormentada dos homens de carne e osso.A metrópole só é tão grande porque está além do horizontee porque permite valorizar a existência e a conduta do co-lonialista. Se voltasse para lá, ela perderia sua sublimida-de; e ele, deixaria de ser um homem superior; se é tudo nacolônia. o coloilialista sabe que na metrópole nada seria; lávoltaria a ser um homem qualquer. De fato. a noção da me-trópole é comparativa: reduzida a si mesma, se desvanece-ria e arruinaria ao mesmo tempo a super-humanidade docolonialista. É na. colônia; somente. porque possui uma me-trópo]e e seus coabitantes não a possuem. que o co]onialistaé temido e admirado. Como deixaria o único lugar do mundono qual. sem ser um fundador de cidade ou um grande mi-litar. ainda pode batizar cidades e legar seu nome à geogra-fia? Sem nem mesmo temer o simples ridículo ou a cólerados habitantes. cuja opinião não conta; onde todos os diasfaz a prova eufórica de seu poder e de sua importância?

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O CONSERVADOR

É preciso. pois. não apenas que a metrópole constituaesse ideal distante e jamais vivido. mas que esse ideal aindaseja imutável e se encontre ao abrigo do tempo: o co]onia-lista exige que a metrópole seja conservadora.

E]e. bem entendido. o é resolutamente. É mesmo a esserespeito que é mais severo. que menos transige. A rigor. to-lera a crítica das instituições ou dos costumes dos mef<ro-politanos; não é responsável pelo pior. e invoca o melhor.Mas é tomado de inquietação. de perplexidade, sempre quese lembram de tocar no estatuto político. Só então a purezado seu patriotismo se turva. seu apego indefectível à mãe-pátria se abala. Pode ir até à ameaça -- oh estupor! -- deseparação! O que parece contraditório. aberrante do seu tãoproclamado patriotismo e, em certo sentido, real.

Mas. o nacionalismo do colonialista é. na verdade. denatureza especial. Dirige-se principalmente a esse aspectO'de sua pátria. que tolera e protege sua existência enquantocolonia]ista. Se a metrópole se tornasse democrática. porexemplo. a ponto de promover a igua1dade de direitos atémesmo nas colônias, arriscar-se-ia t1ambém a abandonar asempresas coloniais. S'emelhante transformação seria. para ocolonialista, uma questão de vida ou morte. que tornaria apôr em questão o sentido de sua vida.

Compreende-se que seu nacionalismo vacile e que re-cuse reconhecer essa perigosa imagem de sua pátria.

A TENTAÇÃO FASCISTA

Para que possa subsistir como colonialista. é necessárioque a metrópole permaneça eternamente metrópole. E. namedida em que tal coisa depende dele, compreende-se quenisso se empenhe com todas as suas forças.

Mas. podemos dar ainda um passo: toda nação colo-nial traz assim. em seu seio. os germes da tentação fascista.

Que é o fascismo senão um regime de opressão em pro-veito de alguns? Ora. toda a máquina administrativa e polí-

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tica da colônia não tem outros fins. As relações humanasresultam de uma exploração tão intensa quanto possível.fundam~se na desigualdade e no desprêzo, garantidas peloautoritarismo policial. Não há dúvida alguma. para quemo viveu. que o colonialismo é uma variedade do fascismo.Não nos devemos surpreender muito que instituições quedependem. afinal de contas. de um poder central liberal.possam ser tão diferentes das da metrópole. Essa fisionomiatotalitária, que assumem nas suas colônias regimes freqüen~temente democráticos, não é aberrante senão na aparência:representados junto ao colonizado pelo colonialista, não po~dem ter outra.

Não é também de espantar que o fascismo colonial difi~cilmente se limite apenas à colônia. Um câncer não desejasenão expandir~se. O colonialista não pode deixar de man~ter as tendências e os governos opressivos e reacionários. ouao menos conservadores. Aquelas que manterão o estatutoatual da metrópole, condição do seu, ou melhor, as que as~segurarão mais firmemente as bases da opressão. E. sendomelhor prevenir que remediar, como não seria tentado aprovocar o nascimento de tais governos e de tais regimes?Se acrescentamos que seus recursos financeiros. e. portanto.políticos são desmedidos, compreendemos que representepara as instituições centrais um perigo permanente. uma bõl~sa de veneno ameaçando sempre envenenar todo o organis~mo metropolitano.

Mesmo, enfim. que nunca se mexesse. sua simples exis~tência. a do sistema colonial, proporiam seu constante exem~pIo às hesitações da metrópole; sedutora extrapolação deum estilo político. onde as dificuldades são resolvidas pelacompleta servidão dos governados. Não é exagerado dizer~se que, assim como a situação colonial apodrece o europeudas colônias. o colonialista é um germe de apodrecimento dametrõpok

O RESSENTIMENTO CONTRA A METRÓPOLE

O perigo e a ambigüidade do scu excessivo ardor pa-triótico se encontram, aliás. e se verificam, na ambigüidade

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mais geral de suas relações com a metrópole. Certamente.canta sua glória e se agarra a ela. até paralisá~la. afundá~lase for ~reciso. Mas, ao mesmo tempo. nutre contra a me~trópole e os metropolitanos um profundo ressentimento.

Até aqui, notamos apenas o privilégio do colonizadorem relação ao colonizado. De fato. o europeu das colôniassabe~se duplamente privilegiado: em relação ao colonizadoe ao metropolitano. As regalias coloniais significam. tambémque. em níveis equivalentes, o funcionário recebe mais, ocomerciante paga menos impostos, o industrial paHc1 maisbarato matéria-prima e mão~de~obra. que seus homólogosm -tropolitanos. Assim como é consubstancial à existênciado colonizado, o privilégio colonial é função da metrópolee dos metropolitanos. O colonialista não ignora que obriÇTaa metrópole a manter um exército, que se a colônia para elesó representa vantagens, custa ao metropolitano mais do quelhe rende.

E. assim como a natureza das relações entre coloniza~dor e colonizado deriva de suas relações economicas e so~ciais, as relações entre colonizador e metropolitano. são tri~butárias de suas situações recíprocas. O 'colonizador não seorgulha das dificuldades quotidianas de seu compatriota, dosimpostos que pesam sobre ele e dos seus medíocres proven-tos. Volta de sua viagem anual perturbado, descontenteconsigo mesmo e furioso com o metropolitano. Foi necessá-rio, como das outras vezes, responder a insinuações ou mes-mo a francos ataques, util~zar o arsenal,. tão pouco convin-cente, dos perigos do sol africano e das doenças do apare~lho digestivo, invocar em seu socorro a mitologia dos heróisde capacete colonial. Não falam mais. tampouco, a mesmalinguagem política: da mesma classe, o colonialismo estánaturalmente mais à direita que o metropolitano. Um cama~rada chegado há pouco falava~me de seu ingênuo espanto:não compreendia porque os jogadores de bola. S.F. I. O. ouradicais na metrópole, são reacionários ou fascistizantes nacolônia.

Existe, enfim, um antagonismo real. com fundamentopolítico e econômico, entre o colonialista e o metropolitano.E, á esse respeito, o colonialista tem tuda razão em falarde sua expatriação na metrópole: não tem mais os mesmos

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interesses de seus compatriotas. Em certa medida, não fazmais parte dela.

Essa dialética exaltação-ressentimento, que une o colo-nialista à sua pátria, matiza singularmente a qualidade deseu amor por ela. Tem, sem dúvida, a preocupação de apre-sentar dela a imagem mais gloriosa, mas esse movimento éviciado por tudo aquilo que espera da metrópole. E, se nun-ca relaxa seu esforço patriótico, se multiplica as lisonjas,esconde mal sua cólera e seu despeito. Deve velar sem tré-gua, intervir se necessário, a fim de que a metrópole con-tinue a manter as tropas que o protegem, guarde os hábitospolíticos que o toleram, conserve, enfim, a imagem que lheconvém e que possa opor ao colonizado. E os orçamentoscoloniais serão o preço pago pelas metrópoles, persuadidasda discutível grandeza de serem metrópoles.

fúteis, em monstros vociferantes. As acusações mais absur-das são levantadas contra o colonizado. Confiou-me um ve-lho médico, com uma mistura de mau humor e gravidade,que o "colonizado não sabe respirar"; um professor expli-cou-me sabiamente que: "Aqui, não se sabe andar, dão pe-quenos passos. não permitem avançar", daí essa impressãode marcar passo, característica, parece, das ruas da colônia.A desvalorização do colonizado estE'nde-se, assim, a tudoaquilo que o toca. Ao seu país, que é feio, quente demais,absurdamente frio, mal cheiroso, de clima vicioso, de geo-grafia tão desesperada que o condena ao desprezo e à po-breza, à dependência até a eternidade.

Esse aviltamento do colonizado, que deve explicar seudesamparo, serve também de alavanca à positividade docolonialista. Essas acusações, esses julgamentos irremedia-velmente negativos, são sempre proferidos com referência àmetrópole, quer dizer, vimos por qual paráfrase, com refe-rência ao próprio colonialista. Comparações morais ou so-ciológicas, estéticas ou geográficas, explícitas, insultantesou alusivas e discretas, mas sempre a favor da metrópoledo colonialista. Aqui, o povo daqui, os costumes deste país,são sempre inferiores, e muito, em virtude de uma ordemfatal e preestabelecida.

Essa recusa da colônia e do colonizado terá graves con-seqüências na vida e no comportamento do colonizado. Masprovoca também um efeito desastroso na conduta do colo-nialista. Tendo assim definido a colônia, não atribuindo mé-rito algum à cidade colonial, não reconhecendo nem suastradições, nem suas leis, nem seus costumes, não pode admi-tir fazer parte dela. Recusa considerar-se cidadão com di-reitos e deveres, como não admite que seu filho o possatornar-se. . Além disso, se pretende estar indissoluvelmenteligado à sua pátria de origem, lá não vive, não participa daconsciência coletiva de seus compatriotas, e não é quotidia-namente por eles influenciado. O resultado dessa dupla,porém negativa, referência sociológica é que o colonialisté.é cIVicamente aéreo. Navega entre uma sociedade distante,que quer sua, mas que se torna até certo ponto mítica; euma sociedade presente, que recusa e mantém assim naabstração.

A RECUSA DO COLONIZADO

Tal é a enormidade da opressão colonial. no entanto,que essa superestimação da metrópole jamais é suficientepara justificar o fato colonial. Na verdade, a distância entreo senhor e o servo nunca é bastante grande. Quase sempre,o colonialista se entrega também à desvalorização sistemá-tica do colonizado.

Ah! quanto a isso não é necessário provocá-lo: estáfarto desse assunto, que dilacera sua consciência e sua vida.Procura tirá-lo do pensamento, imaginar a colônia sem ocolonizado. Um refrão mais sério do que parecia afirma que"Tudo seria perfeito... se não houvesse os iridígenas". Maso colonialista se dá conta de que, sem o coJonizado, a co-lônia não teria sentido algum. Essa insuportàvel contradiçãoo enche de furor, de ódio, sempre prestes a desencadear-sesobre o colonizado, causa inocente porém fatal de seu dra-ma. E não apenas porque é um policial ou um especialistada autoridade, cujos hábitos profissionais encontram na co-lônia inesperadas possibilidades de expa.nsão. Vi, com estu-pefação, pacíficos funcionários, professores, corteses e bemfalantes, aliás, transformarem-se subitamente, por pretextos

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Pois não é, bem entendido, a aridez do país ou a faltade graça das cidades coloniais,. que explica a recusa do co~lonialista. É, ao contrário, porque não o adotou, ou nãopodia adotá~lo, que o país permanece árido, construção deum desesperador utilitarismo. Por que nada faz, por exem~pIo, pelo urbanismo? Quando se queixa da presença de umlago pestilento às portas da cidade, de esgotos que trans~bordam, ou de serviços que funcionam mal. finge esquecer~se de que detém o poder administrativo, que deveria culpar~se a si mesmo. Por que não concebe, ou não pode conceber,seu esforço desinteressadamente? Toda municipalidade, nor~malmente oriunda de seus administrados. preocupa~se nãoapenas com seu bem~estar, mas também com seu futuro, suaposteridade; seu esforço inscreve~se em uma duração, a dacidade. O colonialista não faz coincidir seu futuro com o dacolônia, só está aqui de passagem, não investe senão o que.rende a curto prazo. A verdadeira razão, a principal razãoda maior parte de suas carências é esta: o colonialista ja~mais decidiu~se a transformar a colônia à imagem da me~trópole, e o colonizado à sua imagem. Não pode admitir talad.equação, que destruiria o princípio de seus privilégios.

O RACISMO

Isso não passa, aliás, de um vago sonho do humanistametropolitano. O colonialista sempre afirmoU, e com nitidez,que essa adequação era inconcebível. Mas, a explicação, quese crê obrigado a apresentar, muito significativa ela própria,será inteiramente diferente. Essa impossibilidade não proce~de dele, porém de outro: prende~se à natureza do coloni~zado. Em outras palavras, e eis aqui o traço que completaesse retrato. o colonialista recorre ao racismo. É significa~tivo que o racismo faça parte de todos os colonialismos.em todas as latitudes. Não é uma coincidência: o racismoresume e simboliza a relação fundamental que une colonia-lista e colonizado.

Não se trata, de modo algum, de um racismo doutrina!.Seria, aliás, difícil; o colonialista não ama a teoria e os teó-

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ricos. Aquele que se sabe em má postura ideológica ou éti~ca, gaba.;.se, em geral. de ser um homem de ação, que retirasuas lições da experiência. O colonialista tem muita dificul~dade em construir seu sistema de compensação para não des~confiar da discussão. Seu racismo é vivido, quotidiano; masnem por isso sai perdendo. Ao lado do racismo colonial odos doutrinários europeus parece transparente, congeladoem idéias, à primeira vista quase sem paixão. Conjunto decondutas, de reflexos adquiridos, exercidos desde a primeirainfância, valorizado pela educação, o racismo colonial está tãoespontaneamente incorporado aos gestos, às palavras, mes~mo as mais banais, que parece constituir uma das mais sóli~das estruturas da personalidade colonialista. A freqüênciade sua intervenção, sua intensidade nas relações coloniaisseria, no entanto, estarrecedora, se não soubéssemos até queponto ajuda o colonialista a viver e permite sua integraçãosocial. Um esforço constante do colonialista consiste emexplicar, justificar e manter, tanto pela palavra quanto pelaconduta, o lugar e o destino do colonizado, seu parceiro nodrama colonial. Quer dizer, em definitivo, em explicar, jus~ti ficar e manter o sistema colonial e, portanto, seu própnolugar. Ora, a análise da atitude racista revela três elementosimportantes:

19 Descobrir e pôr em evidência as diferenças entrecolonizador e colonizado.

29 Valorizar essps diferenças, em proveito do coloni~zador e em detrimento do colonizado.

39 Levar essas diferenças ao absoluto, afirmando quesão definitivas, e agindo a fim de que se tornem tais.

A primeira operação não é a mais reveladora da atitudemental do colonialista: estar à espreita do traço diferencialentre duas populações, não é. em si mesma, uma caracterís~tica racista. Mas ocupa seu lugar e assume sentido especialem um contexto racista. Longe de procurar o que poderiaatenuar seu exílio, aproximá~lo do colonizado, e contribuirpara a fundação de uma cidade comum, o colonialista sali~enta, ao contrário, tudo aquilo que os separa. E nessas di~ferenças, sempre infamantes para o colonizado, gloriosaspara ele, encontra justificação para sua recusa. Mas, eisaqui, talvez, o mais importante: uma vez isolado o traço dos

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costumes, fato histórico ou geográfico, que caracteriza o co~lonizado e o opõe ao colonizador, é preciso impedir que ofosso possa ser tapado. O colonialista retirará o fato dahistória, do tempo. e portanto de uma possível evolução. Ofato sociológico é batizado biológico, ou melhor, meta físico.Afirma-se que pertence à essência do colonizado. De umgolpe, a relação colonial entre o colonizado e o colonizador,fundada na maneira de ser, essencial, dos dois protagonis-tas, torna-se uma categoria definitiva. É o que é porque elessão o que são e nem um nem outro jamais mudará.

Tornamos a encontrar a intencionalidade de toda polí-otica colonial. Eis aqui duas ilustrações. Contrariamente ao

que se pensa, o colonialista jamais favoreceu seriamente aconversão religiosa do colonizado. As relações entre a Igre-ja (católica ou protestante) e o colonialismo são mais com~plexas do que se afirma entre as pessoas de esquerda. AIgreja ajudou muito o colonialista, é verdade; cauciollé1ndoseus empreendimentos, dando-lhe boa consciência, contri-buindo para que se aceitasse a colonização, inclusive pelocolonizado. Mas, para a Igreja, essa foi apenas uma aliançaacidental e rendosa. Hoje, que o colonialismo se revela pe~recível, e se torna comprometedor, ela se desliga em todaparte; não o defende mais, quando já não começa a atacá-Io.Em suma, serviu-se dele como ele se serviu dela, mas sem-pre preservou seu Objetivo proprio. Inversamente, se o colo~nialista recompensou a Igreja por sua ,ajuda. outorgando-lheimportantes privilégios, terrenos, subvenções, um lugar ina~dequado a seu papel na colônia, jamais desejou que fussebem sucedida: isto é, que conseguisse a conversão de todosos colonizados. Se o tivesse realmente querido, teria permi-tido à Igreja realizar seu sonho. Dispunha, principalmenteno começo da colonização. de total Uberdade de ação, deum poder de pressão ilimitado, e de uma ampla cumplicidadeinternacional.

O colonialista, porém, não podia favorecer um empre~endimento que contribuísse para o enfraquecimento da rela-ção colonial. A conversão do colonizado à religião do colo-nizador teria sido uma etapa no caminho da assimilação.Esta é uma das razões pelas quais as missões coloniais ma-lograram.

Outro exemplo: não há redenção social e tampouco sal~vação mística para o colonizado, Assim não pode livrar-sede sua condição pela conversão religiosa, não lhe será per~mitido deixar seu grupo social para unir~se ao grupo colo~nizador.

Toda opressão, na verdade, visa globalmente um agru~pamento humano, e, a priori, todos os indivíduos enquantomembros desse grupo são por ela atingidos anonimamente.Ouve~se freqüentemente afirmar que os operários, quer di-zer todos os operários, são portadores de tais defeitos e detais taras. A acusação racista, levantada contra os coloni~zados, só pode ser coletiva, e todo colonizado sem exceçãodeve por ela responder. Admite~se, no entanto, que a opres~são operária comporte uma saída: teoricamente ao menos,um operário pode deixar sua classe e mudar de condiçãosocial. Ao passo que, no quadro da colonização, nada pode~rá salvar o colonizado. Jamais poderá passar para o clã dosprivilegiados; mesmo que ganhasse mais dinheiro que eles,conseguisse todos os títulos, aumentasse infinitamente seupC'der .

Comparamos a opressão e a luta colonial à ltita declasses. A relação colonizador~colonizado, de povo parapovo, no seio das nações, pode lembrar com efeito a relaçãoburguesia~proletariado, no seio de uma nação. Mas é precisomencionar, além disso, a impenetrabilidade quase absolutados grupamentos coloniais, Nesse,sentido mobilizam~se todosos esforços do colonialista; e o racismo é, a esse respeito, aarma mais segura: a passagem torna~se, com efeito, impos~sível, e toda revolta absurda.

O racismo aparece, assim, não como pormenor mais oumenos ocidental, porém, como elemento consubstancial docolonialismo.É a melhor expressão do fato colonial, e umdos traços mais significativos do colonialista. Não apenasestabelece a discriminação fundamental entre colonizador ecolonizado, condição sine qua non da vida colonial, mas fun~da Sua imutabilidade. Somente o racismo permite colocar naeternidade, substantivando-a, uma relação histórica que co~meçou em certa data. Donde o extraordinário desenvolvi~mento do racismo na colônia; a coloração racista da menor

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atitude, intelectual ou prática, do colonialista e mesmo detodo colonizador. E não apenas dos homens da rua: um psi~quiatra de Rabat ousou afirmar~me, após vinte anos de exer~cicio, que as neuroses norte~africanas explicam~se pela almanorte~afíÍcana.

Esta alma ou esta etnia ou este psiquismo explica asinstituições de outro século, a ausência de desenvolvimentotécnico, a necessária sujeição política, a totalidade do dramaenfim. Demonstra luminosamente que a situação colonial erairremediaveI e será definitiva,.

A AUTO~ABSOLVIÇÃO

- que não é nem o menos hábil nem o menos rendoso. Poiso paternalismo mais generoso se irrita desde que o coloni~zado reclame. seus direitos sindicais. por exemplo. Se perdoasua dívida, <;e sua mulher cuida do colonizado, trata~se dedons. jamais de deveres. Se admitisse ter deveres, teria quereconhecer que o colonizado tem direitos, Ora, está enten~dido, por tudo aquilo que precede, que não tem deveres, queo colonizado não tem direitos.

Tendo instaurado esta nova ordem moral, na qual. pordefinição. é senhor e inocente, o colonialista ter~se~ia enfimdado a absolvição. É preciso ainda que essa ordem não sejaposta em questão pelos outros e principalmente pelo colo~nizado .

E eis aqui o toque final. A servidão do colonizado, ten~do~lhe parecido escandalosa, obrigava o colonizador a ex~Dlicá~la, a fim de não reconhecer o escândalo e a insegurançade sua própria existência. Graças a uma dupla reconstruçãodo colonizado e de si mesmo, procurará, ao mesmo tempo,justificar~se e tranqüilizar~se.

Portador dos valores da civilização e da história, cum~pre uma missão: tem o grande mérito de iluminar as trevasinfamantes do colonizado. Que esse papel lhe traga vanta~gens e respeito nada mais justo: a. colonização é legítima,em todos Os seus aspectos e conseqüências.

Aliás, achando~se inscrita a servidão na natureza docolonizado e a dominação na sua, não haverá problema. Àsdelícias da virtude recompensada, acrescenta a necessidadedas leis naturais. A colonização é eterna, pode encarar seufuturo sem nenhuma inquietação.

Após o que, tudo tornar~se~ia possível e assumiria novosentido. O colonialista poderia permitir~se viver quase des~cansado, benevolente e mesmo benfeitor. O colonizado sólhe poderia ser reconhecido pelo abatimento que recebe na~quilo que lhe é devido. Inscreve~se aqui a surpreendenteatitude mental chamada paternalista. O paternalista é aque~le que quer ampliar ainda mais, uma vez admitido, o racis~mo e a desigualdade. Ê, se quiserem, um racismo caridoso

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RETRATO

DO COLONIZADO

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Retrato Mítico do Colonizado

NASCIMENTO DO MITO

Assim como a burguesia propõe uma imagem do prole~tário. a existência do colonizador reclama e impõe uma ima~gem do colonizado. Alibis sem os quais a conduta do colo~nizador. e a do burguês, suas proprias existências, parece~riam escandalosas. Mas, falamos em mistificação precisa~mente porque as concilia muito bem.

Seja. nesse retrato~acusação o traço da preguiça. Pare~ce recolher a unanimidade dos colonizadores. da Libéria aoLaos. passando pelo Maghreb. í'!: fácil verificar o quanto essacaracterização é cômoda. Desempenha importante papel na

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dialética enobrecimento do colonizador~aviltamento do colo-nizado. Além disso, é economicamente proveitosa.

Nada poderia legitimar melhor o privilégio do coloni-zador que seu trabalho; nada poderia justificar melhor odesvalime~to do colonizado que sua ociosidade. O retratomítico do colonizado conterá então uma inacreditavel pregui~ça. O do colonizador o gosto virtuoso da ação. Ao mesmotempo, o colonizador sugere que o emprego do cQlonizadoé pouco rendoso, o que autoriza os salários inverossímeis.

Pode parecer que a colonização teria ganho se dispu~sesse de pessoal capacitado. Nada é menos certo. O operá~rio qualificado trazido pelos colonizadores, exigiria saláriotrês ou quatro vezes superior àquele com o qual se contentao colonizado; não produz, porém, três ou quatro vezes maisque este, nem em quantidade nem em qualidade; é mais eco~n0Jlico, pois, utilizar três colonizados do que um europeu.Toda empresa requer especialistas, certamente, porém ummínimo, que o colonizador importa ou recruta entre os seus.Sem contar o tratamento especial, a proteção legal, justa~mente exigidos pelo trabalhador europeu. Ao colonizado nãose pede senão seus braços, e ele não é senão isso: além dis~so, esses braços são tão mal cotados, que pode~se alugartrês ou quatro pares deles pelo preço de um só.

Ao ouvi-lo, aliás, descobre-se que o colonizador nãoestá tão aborrecido assim com essa preguiça, suposta oureal. Fala dela com uma complacência bem~humorada, diver~te-se com ela; retoma todas as expressões habituais e asaperfeiçoa, e com elas inventa outras. Nada é suficientepara caracterizar a extraordinária deficiência do colonizado.A esse respeito torna-se lírico, de um lirismo negativo: o co~lonizado não tem um pêlo na mão, porém uma bengala, umaárvore, e que árvore! um eucaliptus, uma tuia, um carvalhocentenário da América! uma árvore? não, uma floresta, etc.

Mas, insistirão, o colonizado é realmente preguiçoso?A questão, a bem dizer, está mal proposta. Além de ser ,ne-cessário definir um ideal de referência, uma norma, variávelde um povo a outro, será possível acusar de preguiça a umpovo todo? Pode-se suspeitar, a esse respeito, de indivíduos,mesmo numerosos, em um mesmo grupo; perguntar se seurendimento não é medíocre; se a subalimentação, os baixos

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salários, o futuro bloqueado, uma significação irrisória deseu papel social, não desinteressa o colonizado de sua tare-fa. O que é suspeito, é que a acusação não visa apenas otrabalhador agrícola ou o habitante dos "bidonvilles", mastambém o professor, o engenheiro ou o médico que dão asmesmas horas de trabalho que seus colegas colonizadores,enfim todos os indivíduos do agrupamento colonizado. Sus~peita é a unanimidade da acusação e a globalidade de seuobjeto; de sorte que colonizado algum dela se salva, e nempoderia jamais salvar-se. Quer dizer: a independência daacusação de quaisquer condições sociológicas e históricas.

De fato, não se trata absolutamente de uma anotaçãoobjetiva, diferenciada, pois, sujeita então a prováveis trans~formações, porém de uma instituição: pela sua acusação, ocolonizador institui o colonizado como ser preguiçoso. De~cide que a preguiça é constitutiva da essência do colonizado.Isto posto, torna-se evidente que o colonizado, seja qual fôra função que assuma, seja qual fôr o zelo que manifeste,nunca seria nada mais do que um preguiçoso. Voltamos sem~pre ao racismo, que é bem uma substantificação, em proveitodo acusador, de um traço real ou imaginário do acusado.

É possível retomar a mesma análise a propósito de cadaum dos traços atribuídos ao colonizado.

Quando o colonizador afirma, em sua linguagem, queo colonizado é um débil, sugere com isso que tal deficiênciareclama proteção. Daí, sem rir ,.- escutei-o freqüentem ente,.- a noção do protetorado. É do próprio interesse do colo~nizado ser excluído das funções de direção; e que essas pe~sadas responsabilidades sejam reservadas ao colonizador.Quando o colonizador acrescenta, para não cair na so1icitu~de, que o colonizado é um retardado perverso, de maus ins-tintos, ladrão, um pouco sádico, legitima sua polícia e suajusta severidade. É preciso defender~se das perigosas tolicesde um irresponsavel; e também, preocupação meritória, de~fendê-Io contra ele mesmo! Assim também quanto à ausên~cia de necessidades do colonizado, sua inaptidão para oconforto, para a técnica, para o progresso, sua espantosafamiliaridade com a miséria: por que se preocuparia o colo~nizador com aquilo que não inquieta de modo algum o inte~ressado? Isso seria, acrescenta ele, com uma sombria e auda~

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A DESUMANIZAÇÃO

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ciosa filosofia, prestar~lhe um mau serviço, obrigando-o àsservidões da civilização. Ora! Lembremo-nos de que a sabe~doria é oriental, aceitemos, como ele a aceita, a miséria docolonizado. O mesmo se verifica com a famosa ingratidãodo colonizado, na qual insistiram autores considerados sé~rios: lembra, ao mesmo tempo, tudo aquilo que o colonizadodeve ao colonizador, que todos esses benefícios são perdi~dos, e que é inútil pretender emendar o colonizado.

É de notar que esse quadro não precise de nada mais.É difícil, por exemplo, coordenar a maior parte desses tra-ços, de proceder à sua síntese objetiva. Não se compreendeporque o colonizado seria ao mesmo tempo menor e mau,preguiçoso e atrasado. Poderia ter sido menor e bom, comoo bom selvagem do século XVIII, ou pueril e duro no tra-balho, ou preguiçoso e astuto. Melhor ainda, os traços atri-buídos ao colonizado excluem~se uns aos outros, sem queisso atrapalhe seu procurador. Descrevem~no, ao mesmotempo, frugal e sóbrio, sem maiores necessidades e engolin-do quantidades incríveis de carne, de banha, de álcool, denão importa o quê; como um pusilânime que tem medo desofrer e como um bruto que não é contido por nenhuma dasinibições da civilização, etc. Prova suplementar que é inútilprocurar essa coerência a não ser no próprio colonizador.Na base de toda a construção, enfim, encontra-se a mesmadinâmica: a das exigências econômicas e afetivas do colo-nizador que nela faz as vezes da lógica, comanda e explicacada um dos traços que atribui ao colonizado. Em definitivo,são todos vantajosos para o colonizador mesmo aqueles queà primeira vista, ser~lhe-iam prejudiciais.

O que é verdadeiramente o colonizado importa poucoao colonizador. Longe de querer apreender o colonizado nasua realidade, preocupa-se em submetê~lo a essa indispensá-vel transformação. E o mecanismo dessa remodelagem docolonizado é, ele próprio, esclarece dor .

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Consiste, inicialmente, em uma série de negações. O co-lonizado não é isso, não é aquilo. Jamais é considerado po~sitivamente; ou se o é, a qualidade concedida procede deuma lacuna psicológica ou ética. Assim, no que se refere àhospitalidade árabe que difIcilmente pode passar por umtraço negativo. Se observarmos bem, verificaremos que olouvor é feito por turistas, europeus de passagem, e não pe-los colonizadores, quer dizer europeus instaladoi' na colônia.Tão logo instalado, o europeu não desfruta mais dessa hos-pitalidade. interrompe as trocas, contribui para erguer bar-reiras. Rapidamente muda de palheta para pintar o coloni-zado, que se torna ciumento, ensimesmado, exclusivista, fa-nático. Que é feito da famosa hospitalidade? Já que não podenegá-Ia, o colonizador ressalta, então, suas sombras, e suasdesastrosas conseqüências.

Decorre da irresponsabilidade, da prodigalidade do co~lonizado, que não tem o senso da previsão, da economia. Doimportante ao felá, as festas são belas e generosas, comefeito, mas vejamos o que se segue. O colonizado se arruína,pede dinheiro emprestado e finalmente paga com o dinheirodos outros! Fala~se, ao contrário, da modéstia da vida docolonizado? Da tão famosa ausência de necessidades? Issoé menos uma prova de prudência que de estupidez. Comose, enfim, todo traço reconhecido ou inventado devesse sero índice de uma negatividade.

Assim se destroem, uma após outra, todas as qualida-des que fazem do colonizado um homem. E a humanidadedo colonizado, recusada pelo colonizador, torna~se para ele,com efeito, opaca. É inútil, pretende ele, procurar prever asatitudes do colonizado ("Eles são imprevisíveis".. .) "Comeles nunca se sabe!"). Uma estranha e inquietante impulsi~vidade parece-lhe comandar o colonizado. É preciso que ocolonizado seja bem estranho, em verdade, para que perma~neça tão misterioso após tantos anos de convivência... ouentão, devemos pensar que o colonizador tem boas razõespara agarrar-se a essa impenetrabilidade.

Outro sinal dessa despersonalização do colonizado: oque se poderia chamar a marca do plural. O colonizado ja~mais é caracterizado de maneira diferencial: só tem direitoao afogamento no -coletivo anônimo. ("Eles são isso. .. Eles

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são todos os mesmos"). Se a doméstica colonizada não vemcerta manhã, o colonizador não dirá que ela está doente, ouque ela engana, ou que ela está tentada a não respeitar umcontrato abusivo. (Sete dias em sete: as domésticas colo-nizadas raramente se beneficiam do descanso hebdomadárioconcedido às outras.) Afirmará que "não se pode contarcom eles". Isso não é uma cláusula de estilo. Recusa-se a en-carar os acontecimentos pessoais, particulares, da vida desua doméstica; essa vida na sua especificidade não o inte-ressa, sua doméstica não existe como indivíduo.

Enfim o colonizador nega ao colonizado o direito maisprecioso reconhecido à .maioria dos homens: a liberdade. Ascondições de vida, dadas ao colonizado pela colonização,não a levam em conta. nem mesmo a su-põem. O colonizadonão dispõe de saída alguma para deixar seu estado de infe-licidade: nem jurídica (a naturalização) nem mística (a con-versão religiosa): o colonizado não é livre de escolher-secolonizado ou não colonizado.

Que pode restar-lhe, ao cabo desse esforço obstinadode desnaturação? Não é mais, certamente, um alter ego docolonizador. Ainda é apenas um ser humano. Tende rapi-damente para o objeto. A rigor, ambição suprema do colo-nizador. deveria existir somente em função das suas necessi-dades, isto é, ser transformado em puro colonizado.

Nota-se a extraordinária eficácia dessa operação. Queimportante dever temos em relação a um animal ou a umacoisa, com que se parece cada vez mais o colonizado? Com-preende-se então que o colonizador possa permitir-se atitu-des, julgamentos tão escandalosos. Um colonizado dirigindoum automóvel, é um espetáculo ao qual o colonizador senega a habituar-se; nega-lhe toda normalidade, como a umapantomima simiesca. Um acidente, mesmo grave, que atinjao colonizado, quase faz rir. Uma multidão de colonizadosmetralhada, o faz dar de ombros. Aliás, a mãe indígena cho-rando a morte de seu filho, a mulher indígena chorando seumarido, não lhe recordam senão vagamente a dor da mãeou da esposa. Esses gritos desordenados, esses gestos insó-litos, bastariam para esfriar sua compaixão, se chegasse anascer. Recentemente, um autor nos contava com bom humorcomo, a exemplo da caça, encurralava-se em grandes jaulas

indígenas revoltados. Que se tivesse imaginado e depois ou-sado construir eSSélSjaulas e talvez mais ?inda, que se te-nha deixado os repórteres fotografarem as prisões, provabem que, no espírito de seus organiza dores, o espetáculonada mais tinha de humano.

A MISTIFICAÇÃO

82 II.

Proveniente. esse delírio destruidor do colonizado, dasexigências do colonizador, não é de surpreender que o colo-nizado a ele corresponda tão bem, a tal ponto que pareçaconfirmar e justificar a conduta do colonizador. Mais grave,mais nocivo talvez, é o eco que suscita no próprio colonizado.

Em confronto constante com essa imagem de si mesmo,proposta, imposta nas instituições como em todo contato hu-mano, como não reagiria? Não lhe pode essa imagem perma-necer indiferente, e sobre ele apenas depositada, com uminsulto que voa com o vento. Acaba por reconhecê-Ia comoum apelido detestado porém convertido em sinal familiar. Aacusação o perturba, o inquieta, tanto mais porque admirae teme seu poderoso acusador. Não terá um pouco de razão?,.- murmura ele. Não somos, de certo modo, um pouco cul-pados? Preguiçosos, já que temos tantos ociosos? Medrosos,já que nos deixamos oprimir? Desejado, divulgado pelo co-lonizador, esse retrato mítico e degradante acaba, em certamedida, por ser aceito e vivido pelo colonizado. Ganha as-sim certa realidade e contribui para o retrato real do colo-nizado.

Esse mecanismo não é desconhecido: é uma mistifica-ção. A ideologia de uma classe dirigente, sabemos disso, faz-se adotar em grande parte pelas classes dirigidas. Ora, todaideologia de combate inclui como parte integrante qela mes-ma, uma concepção do adversário. Ao concordar com essaideologia, as classes dominadas confirmam, de certa manei-ra, o papel que lhes foi atribuído. O que explica, entre ou-tras coisas, a relativa estabilidade das sociedades; a opressãoé, por bem ou por mal, tolerada pelos próprios oprimidos.Na relação colonial, a dominação se exerce ,de povo para

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povo, mas o esquema permanece o mesmo. A caracterizaçãoe o papel do colonizado ocupam lugar especial na ideologiacolonizadora; caracterização infiel ao real. incoerente em simesma, porém necessária e coerente no interior dessa ideo~logia. E à qual o colonizado dá seu assentimento, perturba~do, parcial. porém inegável.

Eis a única parcela de verdade nessas noções da moda:o complexo de dependência, colonizabilidade, etc... Veri-fica~se, certamente -- em determinado ponto de sua evolu~ção -- certa adesão do colonizado à colonização. Mas essaadesão é resultado da colonização e não sua causa; nascedepois e não antes da ocupação colonial. Para que o colo~nizador seja inteiramente senhor, não basta que o seja obje~tivamente, é preciso ainda que acredite na sua legitimidade;e, para que essa legitimidade seja completa, não basta queo colonizado seja objetivamente escravo, é necessário que seaceite como tal. Em suma, o colonizador deve ser reconhe~cido pelo colonizado. O laço entre o colonizador e o colo~nizado é, assim, destruidor e criador. Destrói e recria os doisparceiros da colonização em colonizador e colonizado: um édesfigurado em opressor, em ser parcial, mau cidadão, tra~paceiro, preocupado unicamente com seus privilégios, comsua defesa a todo preço; o outro em oprimido, partido noseu desenvolvimento, conformando~se com o próprio esma~gamento.

Assim como o colonizador é tentado a aceitar~se comocolonizador, o colonizado é obrigado, para viver" a aceitar~se como colonizado.

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Situações do Colonizado

TERIA SIDOótimo se t:s'se retrato mítico houvesse per~manecid,o puro fantasma. olhar lançado sobre o colonizado,que apenas atenuaria a má consciência do colonizador. Le-vado pelas mesmas exigências que o suscitaram, não podedeixar de traduzir-se em condutas efetivas, em comporta-mentos ativos e constituintes.

Uma vez que o colonizado é presumido ladrão. é preci-so prevenir~se efetivamente contra ele; suspeito por defini-ção, por que não seria culpado? Roupa foi roubada (inci-dente freqüente nessas regiões ensaIara das onde a róupaseca em pleno vento e zomba daqueles que estão nus). Qualdeve ser o culpado senão o primeiro colonizado encontrado

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o COLONIZADO E A HISTÓRIA

zação lhe veda toda participação tanto na guerra quanto napaz, toJa decisão que contribui para o destino do mundo epara o seu próprio, toda responsabilidade histórica e social.

Acontece, sem dúvida, que os cidadãos dos países li~vres, tomados de desalento, dizem que não interferem nosnegócios da nação, que sua ação é irrisória, que sua voz nãotem eco, que as eleições são fraudadas. A imprensa e o rá~dio estão nas mãos de alguns; não podem impedir a guerranem exigir a paz; nem mesmo obter de seus eleitos que res~peitem, uma vez eleitos, os compromissos pelos quais foramenviados ao Parlamento... Mas reconhecem imediatamenteque possuem esse direito; o poder potencial senão eficaz:que são enganados e cansados, mas não escravos. São ho~mens livres, momentnneamente vencidos pela astúcia ouaturdidos pela demagogia. E algumas vezes se excedem, to~mam~se de súbitas cóleras, quebram suas cadeias de barban~te e transtornam os pequenos cálculos dos políticos. A me~mória popular guarda uma orgulhosa 1embrança dessas pe-riódicas e justas tempestades! A rigor, acusar~se-iam por nãose revoltarem mais freqüentem ente; são responsáveis, afinal,pela própria liberdade e se, por fadiga ou fraqueza, ou ceti~cismo, deixam de utilizá-Ia, merecem a punição.

O colonizado, este, não se sente nem responsável nemculpado, nem cético, está fora do jogo. Não é mais, de modoalgum, sujeito da história; sente, sem dúvida, seu peso, mui~tas vezes mais cruelmente que os outros, porém sempre, comoobjeto. Acabou por perder o hábito de qualquer participaçãoativa na história e nem sequer mais a reclama. Por poucoque dure a colonização, perde até a lembrança de sua liber~dade; esquece o que ela custa ou não ousa mais pagar seupreço. Senão, como explicar que uma guarnição de algunshomens possa manter-se em um posto de montanha? Queum punhado de colonizadores freqüentemente arrogantespossa viver no meio de uma multidão de colonizados? Ospróprios co~onizadores se surpreendem com isso, explicando-se assim que acusem o colonizado de baixeza. A acusação épor demais desenvolta, na verdade; sabem muito bem quese fossem ameaçados sua solidão seria rapidamente desfeita:todos os recursos da técnica, telefone, telegrama, avião, po-riam à sua disposição, em poucos minutos, terríveis meios de

nas proximidades? E, uma vez que pode SRr ele, vão à suacasa e o levam ao posto policial.

"A bela injustiça, retorque o colonizador! Uma vez emduas, não nos enganamos. E, de qualquer maneira, o ladrãoé um colonizado; se não o encontramos no primeiro gourbi,está no segundo".

O que é exato: o ladrão (falo do pequeno) recruta~secQm efeito entre os pobres e os pobres entre os colonizados.Mas disso resulta que todo colonizado seja um ladrão pos-sível e que deva ser tratado como tal?

Essas condutas, comuns ao conjunto dos colonizadores,dirigindo-se ao conjunto dos colonizados, vão, então, expri~mir-se em instituições. Dito de outra forma, definem e im~põem -situações objetivas, que acuam o colonizado, pesamsobre ele, até influir em sua conduta e enrugar sua fisiono~mia. De modo geral, essas situações serão situações de ca~rência. À agressão ideológica, que tende a desumanizá-lo,depois a mistificá-lo, correspondem em suma situações con-cretas que visam o mesmo resultado. Ser mistificado já é,pouco ou muito, avalizar o mito e a ele conformar sua con-duta, isto é, ser por ele determinado. Ora, esse mito está,além disso, solidamente apoiado em uma organização bemreal, uma administração e uma jurisdição; alimentado, reno~vado pelas exigências históricas, econômicas e culturais docolonizador. Fosse insensível à c.alúnia e ao desprêzo, dessede ombros diante do insulto ou dos empurrões, como esca~paria o colonizado aos baixos salários, à agonia -de sua cul-tu.a, à lei que o rege desde o nascimento até a morte?

Assim como não pode escapar à mistificação coloniza-dora, não poderia subtrair~se a essas situações concretas, ge~radoras de carências. Em certa medida, o retrato real docolonizado é função dessa conjunção. Invertendo uma fór~mula precedente, pode-se dizer que a colonização fabricacolonizados como vimos que fabrica colonizadores.

A mais grave carência sofrida pelo colonizado é a deestar colocado fora da história li?fora da cidade. A coloni~

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defesa e de destruição. Para um colonizador morto, cente~nas, milhares de colonizados são, ou serão exterminados. Aexperiência foi bastante repetida - talvez provocada -parater convencido o colonizado da inevitável e terrível sanção.Tudo foi empregado a fim de ne'le destruir a coragem demorrer e de enfrentar a visão do sangue.

É tanto mais claro que, se é realmente de uma carênciaque se trata, nascida de uma situação e da vontade do colo~nizador, trata~se apenas disso. E não de uma incapacidadecongênita de assumir a história. A própria dificuldade docondicionamento negativo, a obstinada severidade das leisjá o provam. Enquanto que a indulgência é plena para ospequenos arsenais do colonizador, a descoberta de uma armaenferrujada acarreta uma punição imediata. A famosa fan~tasia não passa de uma representação de animal doméstico,ao qual se pede para rugir como outrora a fim de arrepiaros convidados. Mas, o animal ruge muito bem; e a nostalgiadas armas está sempre presente, está em todas as cerimô~nias, do norte ao sul da África. A carência guerreira pareceproporcional à importante presença colonizadora; as tribosmais isoladas permanecem as mais dispostas a pegar em ar~mas. Isso não é uma prova de selvageria mas a de que o con~dicionamento não é bastante sustentado.

Eis porque, igualmente, a experiência da última guerrafoi tão decisiva. Não apenas, como foi dito, ensinou impru~dentemente aos colonizados a técnica da guerrilha. Também,lembrou~lhes, ou sugeriu~lhes, a possibilidade de uma con~duta agressiva e livre. Os governos europeus que, após essaguerra, proibiram a projeção, nos cinemas coloniais, de fil~mes como a Batalha do Trilho, não estavam errados, de seuponto de vista. Pois, os westerns americanos, os filmes degangsters, as faixas de propaganda de guerra, já mostravama maneira de utilizar um revólver ou uma metralhadora. Oargumento não é satisfatório. A significação dos filmes deresistência é muito diferente: oprimidos, quase desarmadosou mesmo sem armas, ousavam atacar seus opressores.

Um pouco mais tarde, logo que estouraram os primei~ros motins nas colônias, os que não compreendiam seu sen~tido tranqüilizavam-se contando os combatentes ativos e iro-nizando seu pequeno número. O colonizado hesita, com efei~

to, antes de retomar nas mãos seu próprio destino. Mas osentido do acontecimento ultrapassava de tal forma seu pesoaritméticol Alguns colonizados não tremiam mais diante douniforme do colonizador! Acharam graça na insistência dosrevoltados em se vestirem de cáqui e de maneira homogênea.Esperam. certamente, ser considerados como soldados e tra~ta dos segundo as leis da guerra. Essa obstinação, porém. vaimais longe: reivindicam, revestem o uniforme da história;pois - infelizmente - a história, hoje. está vestida demilitar.

. . . O COLONIZADOE A CIDADE

Assim também para os negócios da cidade: "Não sãocapazes de se governarem sozinhos". diz o colonizador. "Porisso, explica, não os deixo. .. e nunca os deixarei chegar aogoverno" .

O fato é que o colonizado não governa. Inteiramenteafastado do poder. acaba. com efeito, dele perdendo o há~bito e o gosto. Como poderia interessar~se por aquilo de queé tão decididamçnte excluído? Os colonizados não são ricosem homens de governo. Como pode~iam. tão longas fériasdo poder autonomo. suscitar competências? Pode o coloni~zador prevalecer~se deste presente fraudado para barrar ofuturo?

Por que as organizaçôes colonizadas têm reivindicaçõesnacionalistas. conclui-se freqüentem ente que o colonizado éxenófobo. Nada é menos certo. Trata~se. ao contrário. deuma ambição e de uma técnica de concentração que apelapara motivos passionais. Salvo nos militantes desse renasci~mento nacional, os sinais habituais da xenofobia -" amoragressivo à bandeira. utilização de cantos patrióticos. cons~ciência aguda de pertencer a um mesmo organismo nacional- são raros no colonizado. Repete-se que a colonização pre~cipitou a tomada de consciência nacional do colonizado. Po~der~se~ia também perfeitamente afirmar que moderou o seuritmo, ao manter o colonizado fora das condições objetivasda nacionalidade contemporânea. Será coincidência o fato de

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serem os povos colonizados os últimos a chegar a essa cons-ciência de si mesmos?

O colonizado não desfruta de atributo algum da nacio-nalidade; nem da sua, que é dependente, contestada, sufo~cada, nem, bem entendido, da nacionalidade do colonizador.Não pode apegar-se nem à primeira, nem à segunda. Nãotendo seu justo lugar na cidade, não gozando dos direitos docidadão moderno, :não estando sujeito a seus deveres comezi-nhos, não votando, não participando da responsabilidade dosnegócios quotidianos, não pode sentir-se um verdadeiro ci-dadão. Devido à colonização, o colonizado quase nunca faza experiência da nacionalidade e da cidadania, a não serprivativamente: Nacionalmente, cwicamente é apenas aquiloque o'colonizador não é.

A CRIANÇA COLONIZADA

Essa mutilação social e histórica é provàvelmente a maisgrave e a mais carregada de conseqüências. Contribui paraenfraquecer os outrqs aspectos da vida do colonizado e, porricochête, freqüente nos processos humanos, é ela mesmaalimentada pelas outras fraquezas do colonizado.

Considerando-se excluído da cidadania. o colonizadoperde igualmente a esperança de ver seu filho tornar-se umcidadão. Cede. renunciando ele mesmo a essa esperança, nãoalimenta mais esse projeto, elimina-o de suas ambições pa-ternas. e não lhe dá lugar algum na sua pedagogia. Nada,pois, sugerirá ao jovem colonizado a segurança, o orgulhode sua cidadania. Dela não esperará vantagens, não estarápreparado para assumir seus encargos. (Nada tampouco, éclaro, na sua educação escolar. onde as alusões à cidadania,à nação, serão sempre relativas à nação colonizadora); essevazio pedagógico, resultado da carência social. vem, pois.perpetu?r essa mesma carência, que atinge uma das dimen-sões essenCIais do indivíduo colonizado.

Mais tarde, adolescente, é com dificuldade que entrevêa única saída para uma situação familiar desastrosa: a revol-ta. O círculo está bem fechado. A revolta contra o pai e a

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família é um ato sadio e indispensavel para que se completea si mesmo; permite começar a vida de homem; nova bata-lha feliz e infeliz, mas entre os outros homens. O conflito degerações pode e deve resolver-se no conflito social; inversa-mente. é assim fator de movimento e progresso. As novasgerações encontram no movimento coletivo a solução de suasdificuldades e, escolhendo o movimento, o aceleram. É pre-ciso ainda que esse movimento seja possível. Ora. em quevida, em que dinâmica social aqui se desemboca? A vida dacolônia está coagulada; suas estruturas estão ao mesmo tem-po fixas e esclerosadas. Nenhum novo papel se oferece aomoço, nenhuma invenção é possível. O que o colonizadorreconhece ser um eufemismo que se tornou clássico: respei-ta. proclama ele, os usos e costumes do colonizado. E, cer-tamente. não pode senão respeitá-los, mesmo que seja pelaforça. Toda mudança não se podendo fazer senão contra acolonização, o colonizador é levado a favorecer os elemen-tos mais retrógrados. Não é o único responsável por estamumificação da sociedade colonizada; está de relativa boafé ao sustentar que não depende apenas de sua vontade.Decorre em grande parte, no entanto, da situação colonial.Não sendo senhora do seu destino, não sendo mais sua pró-pria legisladora não pode mais harmonizar suas instituiçõescom suas necessidades profundas. Ora, são essas necessida-des que modelam a fisionomia organizacional de toda socie-dade normal, ao menos relativamente. Foi sob sua tonstantepressão que a fisionomia política e administrativa da Fran-ça se transformou progressivamente ao longo dos séculos.Mas, se a discordância se tornou por demais fl~g'rante. e aharmonia impossível de realizar nas formas legfi~ ehstentes,é a revolução ou a esclerose.

A sociedade colonizada é uma sociedade malsã na quala dinâmica interna não consegue mais desembocar em novasestruturas. Sua fisionomia endurecida há séculos não é maisdo que uma máscara, sob a qual ela sufoca e agoniza lenta-mente. Tal sociedade não pode reabsorver os conflitos degerações, pois não se deixa transformar. A revolta do ado-lescente colonizado, longe de resolver-se em movimento, emprogresso social, só pode afundar-se nos pântanos da socie-dade colonizada. (A menos que seja uma rcvolta absohtta,mas a isso voltaremos depois).

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Os VALORES REFÚGIOS história, sujeitou~se a tal estado. Por que essa rigidez ôcadas religiões colonizadas?

Seria inútil construir uma psicologia religiosa particularao colonizado; ou apelar para a famosa natureza~que~tudo~explica. Se dispensam certa atenção ao fato religioso, nãonotei nos meus alunos colonizados uma religiosidade exces~siva. A explicação me parece ser paralela à da influênciafamiliar. Não é uma psicologia original que explica a impor~tância da família nem a intensidade da vida familiar o estadodas estruturas sociais. É, ao contrário, a impossibilidade deuma vida social completa, de um livre jogo da dinâmica so~daI, que entretém o vigor da família, que concentra o indi~víduo nesta célula mais restrita, que o salva e o sufoca. As~sim também, o estado global das instituições colonizadas ex~plica o peso excessivo do fato religioso.

Com sua rede institucional, suas festas coletivas e pe~riódicas, a religião constitui outro valor~refÚgio; para o indi~víduo como para o grupo. Para o indivíduo apresenta~secomo uma das raras linhas de recuo; para o grupo, é umadas raras manifestações capazes de proteger sua existênciaoriginal. Não possuindo estruturas nacionais, impedida deimaginar um futuro histórico, a sociedade colonizada devecontentar-se com o torppr passivo de seu presente. Esse pro~prio presente, deve subtraí~lo à invasão conquistadora dacolonização, que a cerca por todos os lados, penetra-a comsua técnica, com seu prestígio junto às novas gerações. Oformalismo, do qual o formalismo religioso é apenas um as-pecto, é o quisto no qual ela se fecha, se endurece; reduzin-do sua vida para salvá-Ia. Reação espontânea de autodefesa,meio de salvaguarda da consciência coletiva, sem o qual umpovo, rapidampnte, deixa de existir. Nas condições de depen~dência colonial. a emancipação religiosp, assim como a desa~gregação da família, teria comportado grave risco de morrerpara si mesmo.

A esclerose da sociedade colonizada é então a conse~qüência de dois processos de sinais contrários: um enquis~tamento nascido do interior, um colete imposto de fora. Osdois fenômenos têm um fator comum: o contato com a colo~nização. Convergem para um mesmo resultado: a catalepsiasocial e histórica do colonizado.

Cedo ou tarde, cai então em posições de recuo, quer di~zer nos valores tradicionais.

Explica-se, assim, a surpreendente sobrevivência da fa~mília colonizada; apresenta~se como verdadeiro valor~refúgio.Salva o colonizado do desespero de uma total derrota, masencontra~se em compensação confirmada pela constante con~tribuição de sangue novo. O rapaz se casará, tornar-se-á paide família devotado, irmão solidário, tio responsavel, e, atéque tome o 'lugar do pai, filho respeitoso. Tudo volta à or~dem: a revolta e o conflito desembocaram na vitória dospais e da tradição.

Triste vitória, no entanto. A sociedade colonizada nãoterá dado meio passo sequer; para o rapaz é uma catástrofeinterior. Permanecerá aglutinado, definitivamente, a essa fa~mília, que lhe oferece calor e ternura, mas que o choca, oabsorve, e o castra. Não exige dele, a cidadania, deverescompletos de cidadão? Ser-lhe-iam recusados se pensasseainda em reclamá~los? Concede-lhe poucos direitos, impede~lhe toda vida nacional? Em verdade, não tem mais necessi~dade imperiosa disso, Seu justo lugar, sempre reservado nadoce sensaboria das reuniões da clã, o satisfaz. Teria medode abandoná~lo. De bom grado, submete~se agora, como osoutros, à autoridade do pai e se prepara para substituí~lo. Omodelo é débil, seu universo é o de um vencido! mas, queoutra saída lhe resta? Por um paradoxo curioso o pai é aomesmo tempo fraco e invasor, porque completamente adota~do. O jovem está pronto para assumir seu papel de adultocolonizado: isto é, a aceitar~se como ser de opressão.

Assim também, no que se refere à indiscutíveÍ influên~cia de uma religião, ao mesmo tempo viva e formal. Com~placentemente, os missionários apresentam esse formalismocomo um traço essencial das religiões não~cristãs. Sugerindoassim que o Único meio de sair dele seria passar para a reli~gião mais próxima.

De fato, todas as religiões têm momentos de formalis~mo coercitivo e momentos de flexibilidade indulgente. Restaexplicar porque tal grupo humano, em tal período de 'sua

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A AMNÉSIA CULTURAL

Uma vez que suporta a colonização, a única alternativapossível para o colonizado é a assimilação ou a petrificação.Sendo-lhe recusada a assimilação, nós o veremos, nada maislhe resta senão viver fora do tempo. É levado a isso pelacolonização, e em certa medida, acomoda-se. A projeção ea construção de um futuro sendo-lhe proibidas, limita-se aum presente; e esse presente, ele mesmo, é amputado,abstrato.

Acrescentemos agora que dispõe cada vez menos de seupassado. O colonizador jamais o conheceu; e todo mundosabe que o plebeu, do qual ignoramos as origens, não o tem.Há algo mais grave. Interroguemos o próprio colonizado:quais são seus heróis populares? Seus grandes líderes popu~lares? Seus sábios? Mal pode dar-nos alguns nomes, emcompleta desordem, e cada vez menos à medida em que des-cemos de gerações. O colonizado parece condenado a perderprogrf:ssivamente a memÓria.

A lembrança não é um fenômeno de puro espírito. As-sim como a memória do indivíduo é o fruto de sua históriae de sua fisiologia, a de um povo apóia-se nas suas institui-ções. Ora, as instituições do colonizado estão mortas ou es-derosadas. Mesmo nas que guardam uma aparência de vida,ele não mais acredita, pois verifica todos os dias sua inefi-cácia; acontece-lhe envergonhar-se delas como de um monu-mento ridículo e antiquado.

Toda a eficácia, ao contrário, todo o dinamismo social,parecem açambarcados pelas instituições do colonizador. Ocolonizado tem necessidade de ajuda? É a elas que se dirige.Está em falta? É delas que recebe sanção. Invariavelmente,termina diante de magistrados colonizadores. Quando umrepresentante da autoridade, usa por acaso o turbante, teráo olhar esquivo e o gesto mais ríspido, como se quisesse evi-tar qualquer apdo, como se estivesse sob a constante vigi-lância do colonizador. A cidade está em festa? São as festasdo colonizador, mesmo religiosas, que são celebradas comestardalhaço: Natal e Joana D'Arc, o Carnaval e o Quator-ze de Julho..., são os exércitos do colonizador que desfi-

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Iam, os mesmos que esmagaram o colonizado, o mantém noseu lugar e o esmagarão outra vez se fór preciso.

Sem dúvida. em virtude do seu formalismo, o coloniza-do conserva todas suas festas religiosas, invariáveis háséculos. Precisamente, são as únicas festas religiosas que, emcerto sentido, estão fora do tempo. Mais exatamente, encon-tram-se na origem do tempo da história e não na história.Desde o momento em que foram instituídas, nada mais sepassou na vida desse povo. Nada de particular na sua pró-pria existência, que mereça ser guardado pela consciênciacoletiva, e festejado. Nada, a não ser um grande vazio.

Os poucos traços materiais, enfim, desse passado, apa-gam-se lentamente e os vestígios futuros não trarão mais amarca do grupo colonizado. As poucas estátuas que apare-cem na cidade simbolizam, com inacreditável desprezo pelocolonizado que por elas passa todos os dias, os feitos dacolonização. As construções trazem as formas amadas pelocolonizador; e até os nomes das ruas lembram as provínciaslongínquas de onde ele vem. Acontece, sem dúvida, lançaro colonizador um estilo neo-oriental, como o colonizado imi-ta o estilo europeu. Trata-se. porém, de exotismo (velhasarmas e cofres antigos) e não de renascimento; o coloniza-do, este, não faz senão evitar seu passado.

A ESCOLA DO COLONIZADO

Como se transmite ainda a herança de um povo?Pela educação que dá às suas crianças, e por meio da

língua, maravilhoso reservatório incessantemente enriquecidopor novas experiências. As tradições e as aquisições, os há-bitos e as conquistas. os fatos e os gestos das gerações pre-cedentes são assim legados e inscritos' na história.

Ora, a maior parte das crianças colonizadas está na rua.E aquela que tem a insigne oportunidade de ser acolhida emuma escola. não será por ela nacionalmente salva: a memó-ria que lhe formam não é a de seu povo. A história que lheensinam não é a sua. Sabe quem foi Colbert ou CroIIÍwellmas não quem foi Khaznadar; sabe quem foi Joana D'Arc

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