memória cultura popular nº10

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...e por Roberto Inglez and his Orchestra Acervo Instituto Memória Brasil – Direção e Autoria: Assis Ângelo Ano I – nº10 – 4/2/2013 O carnaval está chegando e, novamente, os sucessos de sempre estarão na boca do povo, cantados em blocos de rua ou em bailes de clubes. E entre esses sucessos com certeza estarão músicas de Zé Ketti, Braguinha e Nássara, três dos nossos maiores composi- tores do gênero. Embora o último deles tenha morrido há mais de seis anos, todos continuam vivos em composições incomparáveis, como Máscara negra, Pastorinhas e Alá-la-ô. E já que o carnaval está chegando, Assis Ângelo garimpou no riquíssimo acervo de seu Instituto Memória Brasil as entrevistas que fez em 1990 para o Jornal de Brasília com esses três ícones da nossa música popular. Por elas, pode-se entender um pouco melhor por que esses sucessos se renovam a cada ano. De quebra, ao contextualizar o tema, Assis nos revela uma faceta pouco conhecida de Luiz Gonzaga, o Rei do Baião: a de autor de sambas e marchas, que, entretanto, jamais gravaria. Ele também entra neste especial pelas homenagens que recebeu e continua a receber de blocos e escolas de samba. Boa leitura! Eduardo Ribeiro e Wilson Baroncelli Alá-la-ô! Meu coração não se cansa, no meio da multidão Três bambas do carnaval brasileiro Por Assis Ângelo - Fotos e reproduções: Darlan Ferreira Assis, no acervo do IMB As entrevistas aqui reproduzidas foram originalmente publicadas no Jornal de Brasília, em sequência: domingo, terça e quarta-feira, respectivamente, dias 18, 20 e 21 de fevereiro de 1990. Os entrevistados – Zé Kétti (1921-1999), Braguinha (1907-2006) e Nássara (1910- 1996) – foram alguns dos mais expressivos compositores brasileiros. A obra de cada um deles é muito ex- pressiva. O povo cantou e continua cantando mú- sicas de Zé, por exemplo. São numerosos os discos com composições dele no Brasil e no Exterior. Uma vez ele ficou com a voz embargada quando lhe mostrei um disco com Máscara Negra em inglês. É vasta a obra dele, mas ninguém ainda contou sua história em livro. Entre os clássicos que compôs, destaque para A voz do morro, da trilha sonora do filme Rio 40 graus; Diz que fui por aí (com H. Rocha), Opinião, Nega Dina, Malvadeza Durão e a última marcha-rancho de sucesso até hoje, Máscara Negra (com Pereira Matos). Zé Kétti foi gravado em vida por Elizete Cardoso, Dalva de Oliveira, Nara Leão, Jair Rodrigues, Agnaldo Rayol, Isaura Garcia, Doris Monteiro, Elis Regina, Germano Ma- thias, Neide Fraga, Paulo Marquez, Walter Wanderley, Cyro Monteiro, Jorge Goulart e outros intérpretes. Braguinha, o mais experiente dentre os três, compôs ao lado de meio mundo. Afora os nomes citados na entrevista que me concedeu, acrescentem-se parcerias excepcionais com Pixinguinha (Carinhoso), Luperce Miranda (Lábios de fogo, coração de gelo), Noel Rosa (Prato fundo, Samba da boa vontade, Linda pequena e Pastorinhas) e Hervê Cordovil (Sorrisos). Entre seus intérpretes mais famosos estão Carmen Miranda, Carmélia Alves, Emilinha Borba, Marlene, Dircinha Batista, Dalva de Oliveira, Carlos Poyares, Cyro Monteiro, Cauby Peixoto, Carlos Galhardo, Fafá Lemos, Mário Reis, Augusto Calheiros, Jamelão, Ro- berto Silva, Nélson Gonçalves, Orlando Silva e Francisco Alves; sem falar de estrangeiros como Roberto Inglez, Xavier Gugat, Desi Arnaz, Edmundo Ros, Pedro Vargas, Bing Crosby, Eddy Duchin e muitos outros. Além das músicas de autoria dele já citadas, quem não conhece o samba Co- pacabana e a marcha Touradas em Madrid (com Alberto Ribeiro), que ganhou versão inglesa (The matador) feita por Bob Russell e Ray Gilbert? Ou Cantores de rádio (com Lamartine Babo), Chiquita Bacana (com Alberto Ribeiro), Dama das Camélias (com Alcyr Pires Vermelho)? Ray Gilbert ainda seria lembrado por verter para o inglês Baião (Ca-room-pa-pa), para o filme hollyoodiano Nancy goes to Rio (Romance carioca), em cuja trilha também foi inserido o choro Carinhoso. Também conhecido por João de Barro, em homenagem a um pássaro, Braguinha gostava muito de compor para o cinema. E compunha em vários ritmos, como Nássara. Nássara começou a ganhar a vida nos fins dos anos 1920, ora como caricaturista do jornal O Globo ora como diagramador e paginador de outras publicações, como A Noite, A Crítica, Careta, O Cruzeiro e Última Hora. A música entrou na vida dele no começo dos anos 1930, compondo sozinho ou com J. Rui, ao lado de quem estudou na Escola Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro. Teve depois muitos parceiros, entre os quais Alberto Ribeiro, Noel Rosa, Orestes Barbosa, Cristóvão de Alencar, Ary Barroso, Wilson Batista, Castro Barbosa, Haroldo Lobo, Má- rio Lago, Sá Roris e Roberto Martins, um dos mais frequentes da sua discografia. Suas músicas foram gravadas por Al- mirante, também seu parceiro; Francisco Alves, Mário Reis, Jorge Goulart e muitos outros cantores e cantoras, incluindo Dir- cinha Batista. Até no Exterior Nássara teve músicas gravadas, como Periquitinho verde, que em inglês ganhou o título de Little Green Parrot. Em 1940, junto com o parceiro Frazão, Nássara compôs Nós queremos uma valsa para a amiga Dircinha gravar para ao car- naval do ano seguinte. A voz do Morro – Zé Kétti Copacabana, de Braguinha e Alberto Ribeiro, gravada em Londres por Edmundo Ros and his Rumba Band...

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O carnaval está chegando e, novamente, os sucessos de sempre estarão na boca do povo, cantados em blocos de rua ou em bailes de clubes. Em função disso, Assis Ângelo garimpou no riquíssimo acervo de seu Instituto Memória Brasil as entrevistas que fez em 1990 para o Jornal de Brasília com três ícones da nossa música popular: Zé Kétti, Braguinha e Nássara. Neste especial, ele também nos revela uma faceta pouco conhecida de Luiz Gonzaga, o Rei do Baião: a de autor de sambas e marchas, que, entretanto, jamais gravaria.

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Page 1: Memória Cultura Popular Nº10

...e por Roberto Inglez and his Orchestra

Acervo Instituto Memória Brasil – Direção e Autoria: Assis Ângelo Ano I – nº10 – 4/2/2013

O carnaval está chegando e, novamente, os sucessos de sempre estarão na boca do povo, cantados em blocos de rua ou em bailes de clubes. E entre esses sucessos com certeza estarão músicas de Zé Ketti, Braguinha e Nássara, três dos nossos maiores composi-tores do gênero. Embora o último deles tenha morrido há mais de seis anos, todos continuam vivos em composições incomparáveis, como Máscara negra, Pastorinhas e Alá-la-ô.

E já que o carnaval está chegando, Assis Ângelo garimpou no riquíssimo acervo de seu Instituto Memória Brasil as entrevistas que fez em 1990 para o Jornal de Brasília com esses três ícones da nossa música popular. Por elas, pode-se entender um pouco melhor por que esses sucessos se renovam a cada ano.

De quebra, ao contextualizar o tema, Assis nos revela uma faceta pouco conhecida de Luiz Gonzaga, o Rei do Baião: a de autor de sambas e marchas, que, entretanto, jamais gravaria. Ele também entra neste especial pelas homenagens que recebeu e continua a receber de blocos e escolas de samba.

Boa leitura!

Eduardo Ribeiro e Wilson Baroncelli

Alá-la-ô!Meu coração não se cansa, no meio da multidão

Três bambas do carnaval brasileiro Por Assis Ângelo - Fotos e reproduções: Darlan Ferreira

Assis, no acervo do IMB

As entrevistas aqui reproduzidas foram originalmente publicadas no Jornal de Brasília, em sequência: domingo, terça e quarta-feira, respectivamente, dias 18, 20 e 21 de fevereiro de 1990.

Os entrevistados – Zé Kétti (1921-1999), Braguinha (1907-2006) e Nássara (1910-1996) – foram alguns dos mais expressivos compositores brasileiros.

A obra de cada um deles é muito ex-pressiva.

O povo cantou e continua cantando mú-sicas de Zé, por exemplo. São numerosos os discos com composições dele no Brasil e no Exterior.

Uma vez ele ficou com a voz embargada quando lhe mostrei um disco com Máscara Negra em inglês.

É vasta a obra dele, mas ninguém ainda contou sua história em livro.

Entre os clássicos que compôs, destaque para A voz do morro, da trilha sonora do filme Rio 40 graus; Diz que fui por aí (com H. Rocha),

Opinião, Nega Dina, Malvadeza Durão e a última marcha-rancho de sucesso até hoje, Máscara Negra (com Pereira Matos).

Zé Kétti foi gravado em vida por Elizete Cardoso, Dalva de Oliveira, Nara Leão, Jair Rodrigues, Agnaldo Rayol, Isaura Garcia, Doris Monteiro, Elis Regina, Germano Ma-thias, Neide Fraga, Paulo Marquez, Walter Wanderley, Cyro Monteiro, Jorge Goulart e outros intérpretes.

Braguinha, o mais experiente dentre os três, compôs ao lado de meio mundo.

Afora os nomes citados na entrevista que me concedeu, acrescentem-se parcerias excepcionais com Pixinguinha (Carinhoso), Luperce Miranda (Lábios de fogo, coração de gelo), Noel Rosa (Prato fundo, Samba da boa vontade, Linda pequena e Pastorinhas) e Hervê Cordovil (Sorrisos).

Entre seus intérpretes mais famosos estão Carmen Miranda, Carmélia Alves, Emilinha Borba, Marlene, Dircinha Batista, Dalva de Oliveira, Carlos Poyares, Cyro Monteiro, Cauby Peixoto, Carlos Galhardo, Fafá Lemos, Mário Reis, Augusto Calheiros, Jamelão, Ro-berto Silva, Nélson Gonçalves, Orlando Silva e Francisco Alves; sem falar de estrangeiros como Roberto Inglez, Xavier Gugat, Desi Arnaz, Edmundo Ros, Pedro Vargas, Bing Crosby, Eddy Duchin e muitos outros.

Além das músicas de autoria dele já citadas, quem não conhece o samba Co-pacabana e a marcha Touradas em Madrid (com Alberto Ribeiro), que ganhou versão inglesa (The matador) feita por Bob Russell

e Ray Gilbert? Ou Cantores de rádio (com Lamartine Babo), Chiquita Bacana (com Alberto Ribeiro), Dama das Camélias (com Alcyr Pires Vermelho)?

Ray Gilbert ainda seria lembrado por verter para o inglês Baião (Ca-room-pa-pa), para o filme hollyoodiano Nancy goes to Rio (Romance carioca), em cuja trilha também foi inserido o choro Carinhoso.

Também conhecido por João de Barro, em homenagem a um pássaro, Braguinha gostava muito de compor para o cinema. E compunha em vários ritmos, como Nássara.

Nássara começou a ganhar a vida nos fins dos anos 1920, ora como caricaturista do jornal O Globo ora como diagramador e paginador de outras publicações, como A Noite, A Crítica, Careta, O Cruzeiro e Última Hora.

A música entrou na vida dele no começo dos anos 1930, compondo sozinho ou com J. Rui, ao lado de quem estudou na Escola Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro. Teve depois muitos parceiros, entre os quais Alberto Ribeiro, Noel Rosa, Orestes Barbosa, Cristóvão de Alencar, Ary Barroso, Wilson Batista, Castro Barbosa, Haroldo Lobo, Má-rio Lago, Sá Roris e Roberto Martins, um dos mais frequentes da sua discografia.

Suas músicas foram gravadas por Al-mirante, também seu parceiro; Francisco Alves, Mário Reis, Jorge Goulart e muitos outros cantores e cantoras, incluindo Dir-cinha Batista.

Até no Exterior Nássara teve músicas gravadas, como Periquitinho verde, que em inglês ganhou o título de Little Green Parrot.

Em 1940, junto com o parceiro Frazão, Nássara compôs Nós queremos uma valsa para a amiga Dircinha gravar para ao car-naval do ano seguinte.

A voz do Morro – Zé Kétti

Copacabana, de Braguinha e Alberto Ribeiro, gravada em Londres por Edmundo Ros and his Rumba Band...

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Little green parrot - Nássara e Sá Roriz

flautista amador, Gonzaga também com-punha marchinhas e sambas que, porém, jamais gravaria, como Meu brotinho, lança-da pelo cantor Francisco Carlos no carnaval carioca de 1950; e Meu pandeiro, um belo samba gravado por Cyro Monteiro três anos antes e que passaria despercebido do chamado grande público.

Mas nem por isso o Rei do Baião deixou de estar ligado ao carnaval, até como potencial homenageado em sambas de enredo, que viria a ser depois.

As primeiras homenagens que ele rece-beu nesse estilo musical datam dos fins dos anos 1970, através de grupos e pequenas escolas.

Em 1982, por exemplo, a carioca Unidos de Lucas foi à avenida com o enredo Lua viajante e o homenageado à frente, pu-xando aplausos.

Dez anos depois foi a vez de o Maranhão prestar louvor ao grande pernambucano de Exu, com o enredo Luiz Gonzaga, Rei do Baião, interpretado pelo puxador Ribão, hoje presidente da União das Escolas de Samba do Estado.

Pouco antes, em 1990, os pernambu-canos também o homenagearam com o enredo Lula Lua do Sertão.

Trinta anos depois de a Unidos de Lucas o homenagear, foi a vez de a escola do 1º grupo do Rio de Janeiro Unidos da Tijuca ir à Sapucaí com o enredo O dia em que toda a

realeza desembarcou na avenida para coroar o Rei Luiz do Sertão.

No ano do centenário do Rei, 2012, a Unidos da Tijuca ganhou o carnaval com o total de 299,9 pontos.

Façanha e tanto! Mas ele continua sendo reverenciado no

carnaval deste ano.No Rio de Janeiro, por exemplo, vão às

ruas os blocos Me Esquece, Empolga às 9 e Ansiedade com enredos lembrando a sua vida e obra. O Bloco da Ansiedade sai com um boneco de três metros representando--o como Rei do Baião.

A escola Unidos da Região Oceânica, de Niteroi, também lembra dele no enre-do Que rei sou eu? Do Paço Real à Corte do Carnaval.

A Explosão da Zona Norte, do Grupo 4 de São Paulo, sai cantando Luiz Gonzaga, o Rei do Sertão.

Fora grandes shows musicais programa-dos em sua memória.

Muitos livros, folhetos de cordel e discos continuam sendo lançados.

Meu brotinho - Luiz Gonzaga e

Humberto Teixeira

Meu pandeiro - Luiz Gonzaga e Ary Monteiro

Mas ela não gostou, e às pressas a obra foi entregue a Carlos Galhardo, que a gra-vou em 21 de dezembro de 1940 e a lançou

pela extinta Victor dentro do prazo previsto.Fez sucesso nos salões.Luiz Gonzaga, que entraria para a histó-

ria como Rei do Baião, também se encantou com a valsa e a gravou em 12 de maio de 1941 de modo instrumental, como também o faria em seguida o organista do Casino Atlantico, Lee Broyde.

O lançamento se deu dois meses depois.Essa seria, aliás, a música nº 7 da sua

extensa discografia. Pois é, de certo modo Luiz Gonzaga

também é sinônimo de carnaval.Escolas de samba do Rio de Janeiro, São

Paulo e de outras partes do País têm desde há muito homenageado com sambas-enre-do grandes nomes da música e da literatura nacionais, como Jorge Amado, Mário de Andrade, Cassiano Ricardo, Gonçalves Dias, Carlos Drummond, Machado de Assis, José de Alencar, Ariano Suassuna, Augusto dos Anjos, Paulo Freire, Abdias Nascimento, Roberto Carlos, Carmen Miranda, Noel Rosa, Geraldo Pereira, Lupicínio Rodrigues, Chico Buarque, Cartola, Carlos Gomes, João

Carlos Martins, Adoniran Barbosa, Paulo Vanzolini, Inezita Barroso, Maria Clara Ma-chado, Paulinho da Viola, Luiz Gonzaga e tantos e tantos.

Sambas e marchas de carnaval na voz de craques como Silvio Caldas, Orlando Silva e Cyro Monteiro, entre outros, eram os gêneros musicais mais comuns em 1941, ano em que Luiz Gonzaga lançou-se como artista da música popular.

Antes de tornar-se Rei do Baião, Gonzaga gravou muitos choros, mazurcas, polcas e até duas músicas de autores estrangeiros: as valsas Farolito, do mexicano Agustín Lara, e Manolita, do francês Leo Daniderff.

Depois de 49 músicas instrumentais lançadas até 1945, Luiz Gonzaga apostou suas fichas na música e temas extraídos do folclore nordestino, incluindo o forró e o baião, que é um ritmo inspirado na afinação das violas dos cantadores repentistas com raízes no mundo ibérico.

Enquanto lançava músicas que adaptava junto com o seu primeiro grande parceiro, o advogado cearense Humberto Teixeira,

Na capital cearense foi à praça O beabá do sertão na voz de Gonzagão, de Arlene Holanda e Arievaldo Viana, com ilustrações de Suzana Paz.

Em Recife acaba de ser reeditado o livro O sanfoneiro do Riacho da Brígida, de Sinval Sá, cujo original data de 1966.

Em João Pessoa o juiz de Direito Onaldo Queiroga lançou Baião em crônicas, com prefácio do poeta-repentista Oliveira de Panelas.

Enquanto isso, o filme Gonzaga – De pai pra filho, de Breno Silveira, beira os dois milhões de espectadores e R$ 30 milhões de arrecadação.

Sucesso e tanto, não?Uma amostra do que compunha Luiz

Gonzaga antes de se tornar um dos grandes nomes da música brasileira está no CD O samba do Rei do Baião, resultado de parce-ria entre o Instituto Memória Brasil (IMB) e a gravadora Arlequim. O disco será lançado após o carnaval. Como convidados espe-ciais, participam do CD – que tem o per-nambucano Jorge Ribbas como arranjador e Socorro Lira e Oswaldinho do Acordeon como principais intérpretes – o Cidadão Samba Osvaldinho da Cuíca, Ventura Rami-rez, Papete, Uxía e Susana Travassos. Uxía é espanhola e Susana, portuguesa.

Nós queremos uma valsa - Nássara e Frazão

Perfis biográficos dos jornalistas brasileiros e o noticiário com

o vaivém profissional

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Capa LP do show Opinião

(íntegras das entrevistas que Assis Ângelo publicou no Jornal de Brasília em fevereiro de 1990)

Domingo, 18/2

A mesma máscara negra

Uma conversa com José Flores de Jesus é uma lição de vida. O mesmo pode-se dizer da sua maior criação, Zé Kétti. Por trás de Zé Kétti, o cidadão José Flores de Jesus pôs para fora todo o seu sentimento, toda a sua experiência de menino nascido nas quebradas de Inhaúma, Rio de Janeiro, outrora Cidade Maravilhosa como dizia famosa música. José é gente no sentido mais bonito que se possa imaginar. Zé Kétti também. Autor e personagem se confundem, se fundem. Lucram, lucramos.

– Sou casado, desquitado, enrolado e funcionário público. Trabalho no INPS, nível 5. Sou filho de músico. O meu pai tocava cavaquinho e o meu avô tocava flauta e piano. Nasci em Inhaúma, Rio de Janeiro. As coisas que progrediram na minha cidade foram o pré-metrô, os apartamentos do BNH, as capelas para velório, as casas de flores e o cemitério. No cemitério da minha cidade são enterradas, entre outras pessoas de bem, uma média de 20 a 30 marginais por mês. Essas são

O cidadão samba José flores de Jesus volta e meia encarna o Zé Kétti, mas, com certeza, os dois ajudaram a voz do morro crescer na cidade e marcar os carnavais “que não voltam mais”.Assis Ângelo, correspondente

pessoas que não tiveram uma infância tão feliz quanto a minha.

Zé Kétti é uma pessoa engraçada, dessas que fazem humor até da própria desgraça e que quando começam a falar empolgam-se e empolgam rapidamente que estiver por perto, num raio de 400 metros.

Nesta entrevista ao Caderno 2, o au-tor de Opinião conta a sua história. Fala dos carnavais de ontem e de hoje (“Os carnavais de ontem morreram, acabaram com os carnavais, que eram uma festa do povo”).

Zé Kétti, não podemos esquecer, é história viva da música popular brasileira – ele mesmo um mito, cantado e respeitado pelos maiores intérpretes da chamada MPB: Eu sou o samba/A voz do morro/Sou eu mes-mo, sim, senhor/Quero mostrar ao mundo/Que tenho valor/Eu sou o rei dos terreiros....

Jornal de Brasília – E o carnaval, Zé Kétti?

Zé Kétti – Vai mal, obrigado. Aliás, pra ser sincero, acho mesmo que acabou, morreu. Pelo menos o carnaval do meu tempo, do tempo em que o povo realmente brincava espontaneamente e se fazia música por farra. As marchinhas... As marchinhas acabaram!

– João de Barro, Haroldo Lobo, Nás-sara...

– David Nasser, Benedito Lacerda – que ganhava tudo quanto era carnaval –, Geral-do Pereira... Um monte de gente boa. Todo esse pessoal se reunia pra prosear no Café Nice. Tempo bom! Uma vez o Francisco Alves, já um nomão na época, falou assim pra mim: “Garoto, você vai longe”.

– Foi?– Fui, graças a Deus, com muita luta e

muito sacrifício cheguei lá.– Realizado, então?– O meu sonho foi realizado. O meu

sonho era ver o meu nome num disco, vi; queria fazer sucesso, fiz. Modéstia à parte, hoje eu sou um nome nacional. E até inter-nacional. Fiz cinema com Nélson Pereira dos Santos. Quer dizer: eu sou um homem realizado, né?

– Mas então, pra você, os carnavais já não são os mesmos...

– Sim, sinto saudade dos carnavais de antigamente. Sabe de uma coisa? Eu não aceito essas transformações de hoje, não. Deturparam o carnaval, aniquilaram o car-naval. Não, não aceito essas transformações que querem nos impor! O carnaval verda-deiro, o carnaval do amor, o carnaval da alegria espontânea realmente acabou. Ah, esse acabou! Antigamente não tinha briga, não tinha violência, não tinha nada disso. Só alegria. Cadê as batalhas de confete? No meu tempo, no tempo do Lamartine,

de Orlando Silva, de Carlos Galhardo, de Gilberto Alves, o carnaval era uma festa sadia. As rádios tocavam nossas músicas, hoje não. Hoje a gente grava e o povo nem fica sabendo.

– Você não grava há quanto tempo?– Ih, rapaz! O meu último LP, Identifica-

ção, é de 1979. Depois disso gravei uma ou outra coisinha, sempre de forma indepen-dente. Ou seja, em discos que não chegam ao mercado convencional!

– Mas por que isso?– Não sei, acho que por falta de inte-

resse das gravadoras comerciais. Hoje eu tenho umas 500 músicas inéditas. Inéditas, entende? Em todos esses anos de carreira (teve a primeira música, Vivo bem, gravada em 1946, por Cyro Monteiro; história mais adiante) gravei ou gravaram 200 músicas de minha autoria.

– De todas, qual a que você mais gosta?– Praça Onze, berço do samba. É de 1946,

47, por aí.– Ainda lembra dela?– Claro, é assim: Favela do Camisa Preta/

Cadê o teu samba, favela?/ Era criança na

Praça Onze/Eu corria pra te ver desfilar/Favela queremos o teu samba/Teu samba era quente/Fazia o povo vibrar/Até a lua/a lua cheia/Milhões de estrelas brigavam/Queriam ver a Portela/Mangueira e Estácio de Sá/E a favela com suas/Baianas tradicio-nais/Brilhavam mais que a luz/Do antigo lampião a gás/E a favela com suas/Baianas tradicionais.... Essa é a música que mais

eu gosto. Não fez sucesso, mas eu gosto dela mesmo assim. Também gosto dessa aqui, ó: Eu sou o samba/A voz do morro/Sou eu mesmo, sim, senhor/Quero mostrar ao mundo/Que tenho valor/Eu sou o rei dos terreiros/Eu sou o samba.... Essa, como você sabe, chama-se A voz do morro e fez parte do show Opinião, também título de outra música: Podem me prender/Podem me bater/Podem até deixar-me sem comer/Que eu não mudo de opinião....

– Tem também, claro, Máscara negra, não é?

– (rindo orgulhoso) – É: Tanto riso/Oh, quanta alegria!/Mais de mil palhaços no salão/Arlequim está chorando/Pelo amor da Colombina/No meio da multidão....

– Como é que você fez essa música?– Bom, eu estava ali na rua Uruguaia-

na, rio de Janeiro, com um ator de teatro chamado Jorge Coutinho. Jorge era um iniciante na arte da encenação, mas queria ser ator. Ele era quem fazia pesquisa pra gente no Opinião.

– E o que foi saindo primeiro, a letra ou a melodia?

Assis entrevista Zé Kétti

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A cédula de identidade do cidadão José Flores de Jesus, Ze Kétti, foi a capa de LP que lançou em 1979

– A melodia e a letra. A música não começava, originalmente, com os versos Tanto riso/Oh, quanta alegria!... Começava assim, pela segunda parte hoje conhecida: Foi bom ter ver outra vez/Está fazendo um ano/Foi no carnaval que passou/Eu sou aque-le Pierrô/Que te abraçou.... Começava por aí, por aí que comecei a escrever Máscara negra. Enquanto eu ia criando, eu pedia ao Jorge que segurasse a melodia para depois eu não esquecer.

– Então Máscara negra nasceu na rua?– Sim. De noite. A gente andava pela rua

Uruguaiana e eu cantarolando: lá, rá, ri, ró/rá, rá, rá... A melodia foi saindo e eu fui gos-tando. Isso de noite, antes da meia-noite. Não me lembro direito do mês. O ano foi 1966, gravada para o carnaval de 1967.

– E onde entra Pereira Matos nessa história?

– Pereira Matos não era compositor, não era nada.

– Mas consta que Máscara negra é de autoria de Zé Kétti e Pereira Matos. Não é verdade?

– Dar parceria de música era uma coi-sa muito constante. Eu dei a parceria de Máscara negra a Pereira Matos por uma razão: ele era fiscal da Sbacem e por isso eu, ingênuo, achava que ele poderia ajudar a divulgar a música. Foi por isso. Muitos amigos chegaram até a me desestimular da ideia de dar parceria, dizendo que a música era muito bonita e que por si só alcançaria muito sucesso. Não dei ouvidos e deu no que deu. Pereira Matos morreu antes mesmo da música fazer o grande sucesso que fez.

– Você não acreditava que Máscara negra pudesse fazer sucesso?

– Para falar francamente, não. Eu achava que a música que faria sucesso, mesmo, na época, era aquela que diz: Marcha com Deus pela democracia/Agora chia, agora chia/Você perdeu a personalidade/Agora fala em liberdade/Ah, seu Oscar!/O que é que há?/O que é que há?/ Ai, ai, dona Aurora/Mas por que é que a senhora chora?/Marcha com Deus pela democracia/Agora chia, agora chia.... Eu acreditava que essa música seria

um grande sucesso. Não foi. Aliás, essa mú-sica foi logo proibida pela ditadura.

– Então é verdade que você deu a par-ceria de Máscara negra acreditando que Pereira Matos, por ser fiscal da Sbacem, contribuiria de alguma forma para o seu sucesso?

– Meu erro.– Uma pergunta puxa outra: você deu

outras parcerias?– (Zé Kétti vacila um pouco, antes de

decidir-se a fazer uma revelação histórica) Bom, a verdade tem que ser dita. Dei para o falecido Ari Monteiro, que não tinha nada a ver com o Cyro. O Cyro Monteiro gravou uma música minha.

– O Cyro ou o Ari?– O Cyro Monteiro gravou uma música

minha de carnaval e pegou uma grana do Ari e me deu, 500 mil réis, hoje uns 500 cruzados. A música dizia assim: Juro que vivo bem/Com o meu amor/Essa união/Eu agradeço a Nosso Senhor/Agora sou muito feliz.... Não, não me lembro bem. Acho que o título é Vivo bem. Pois é, essa música foi

gravada por Cyro Monteiro. Claro, mas eu também ganhei uma grana. Isso era comum.

– Essa música, de fato, não tem parcei-ro? É só sua?

– É. Essa música é só minha, mas dei a parceria ao Ari Monteiro.

– Pra encerrar. Seu nome é José Flores de Jesus, natural de Inhaúma, Rio de Ja-neiro; pai cavaquista e mãe doméstica. Vida dura, se sabe. Pergunto: como surgiu o pseudônimo de Zé Kétti?

– (rindo) A minha mãe era empregada doméstica. Ela ia trabalhar e me deixava em casa. Em casa de parentes. Quando a

minha mãe voltava, logo ia perguntando: Como é, o Zé ficou quietinho? Resposta frequente: Sim, ele ficou quieto. Quieto, quéto; Zé ficou quéto, quietinho. Zé é quéto. Era aquilo: Zé é qué-to. Daí um pulo para Zé Zé Kétti, com dois tt para ficar mais bonito, né?

– Artisticamente rea-lizado, o que você deseja agora?

– (rindo) Gravar. Quero gravar minhas músicas.

Terça-feira, 20/2

Yes, nós temos BraguinhaEle é o próprio Senhor Carnaval, a maior usina de sucessos nos salões e blocos de rua, vibra, combate e não se entrega na defesa do romantismo, da folia e do prazerAssis Ângelo, correspondente

Brasileiro, católico, apostólico, romano, nascido no ano da graça de 1907, exata-mente no dia 29 de março – uma Sexta-feira da Paixão – na tranquila rua da Gávea, Rio de Janeiro.

Na pia batismal o primogênito do feliz casal Jerônimo e Carmen recebeu o pomposo nome de Carlos Alberto Ferreira Braga, que logo passaria a ser chamado – e paparicado – pelo carinhoso diminutivo de Carlinhos. Com o correr dos anos, Car-linhos ganharia na intimidade dos amigos outro diminutivo, o de Braguinha, que carregaria vida afora.

Nesta entrevista exclusiva ao Caderno 2 do JBr, Braguinha anuncia que continua compondo “para não perder o vício”.

Como poucos jovens, esse Braguinha de oitenta e poucos anos coloca-se ao lado daqueles que acreditam firmemente na possibilidade nada remota de o Brasil já, já transformar-se numa verdadeira potência e igualar-se aos chamados países do Primeiro Mundo. Garante:

– Temos tudo pra sair do buraco e ga-

nhar o respeito do mundo, para tanto basta seriedade da parte do governo.

Bravo, acrescenta:– Não gosto sequer de ouvir alguém

dizendo que brasileiro é burro.Nós também não, mestre.Jornal de Brasília – O que mudou, Bra-

guinha: o carnaval ou nós?Braguinha – Tudo mudou com o tem-

po. Eu tenho uma música, Saudosismo (marcha-rancho gravada de forma meio mambembe pelo autor em 1983, com o acompanhamento do conjunto Coisas Nossas), que trata sobre a questão que você está levantando.

– Dá pra lembrar?– Claro, é assim (cantando): Onde an-

dará Colombina/Que o carnaval esqueceu/Com o seu olhar de menina/Travessa que Deus lhe deu?/Onde andará Colombina/Onde andará seu Pierrô/Sempre à procura de um sonho/Que nunca realizou?/Hoje o carnaval está mudado/O palhaço vai ao baile de blue jeans/O Arlequim não muda de bermuda/E Maria Antonieta é o fim/Não

há mais lança-perfume/Nem serpentina no ar/Tudo se resume a ver/A escola passar/Então repito a pergunta/Que o tempo não respondeu:/O que mudou/O carnaval ou eu?

– Bonito!– Responde a sua pergunta? (ri).– Sem dúvida.– Agora, fisicamente eu ando muito

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Braguinha, tema da Mangueira-1984

bem, psicologicamente também. Não guardo mágoas e não tenho queixas da vida, a graças a Deus.

– Ainda compondo?– Sim, para não perder o vício.– E os parceiros?– Ah, quase todos já se foram (suspira)!

Hoje já não tenho parceiro constante, como tinha no passado. Alberto Ribeiro foi o meu parceiro mais constante.

– E importante.– Não sei. Todos os meus parceiros foram

importantes.– Com Alberto Ribeiro você compôs

muita coisa bonita, além de Chiquita Bacana, que foi gravada em vários pa-íses, como Estados Unidos, Argentina, Holanda, Inglaterra e França, onde rece-beu o título de Chiquita Madame de La Martinique, com versos de Paul Misraki; Yes, nós temos bananas, Touradas em Madri, Copacabana, Balancê e outras e outras, hoje já totalmente integradas ao cancioneiro popular, ao subconsciente do povo brasileiro.

– Sim, com Alberto Ribeiro fiz muito sucesso.– Sua obra está imortalizada na voz

dos mais importantes intérpretes da MPB. Qual o melhor?

– Não sei. São tantos que pra mim é difícil destacar um ou outro entre eles. Além do mais, correria o risco de citar um e esquecer outro. Não, sinceramente, não sei.

– E sua melhor música?– Também não sei. Gosto das mais

alegres.– Dá pra viver de direitos autorais?– Bobagem. Prefiro não falar. É uma

vergonha.– Saudades de ontem?– Eu acompanho o tempo (ri). Senão

isso, pelo menos ninguém pode dizer que não tento.

– Quantas músicas você já compôs só ou em parceria até hoje?

– Ah, umas 500! Mas não sei o número exato, pois não tenho o controle disso. Guardo uns 20% de tudo que foi gravado.

– Você compôs com Caymmi, Noel, Lamartine, Radamés...

– Alcyr Pires Vermelho, Jota Júnior, Roberto Martins, Henrique Vogeler. Enfim, compus com um monte de gente boa.

– ... Zequinha de Abreu e até Charles Chaplin...

– E continuo compondo para não perder o vício.

– Você acha possível a marcha, como

gênero musical, ainda voltar a entusias-mar os corações carnavalescos?

– As marchinhas entusiasmam até hoje os carnavalescos. E isso é fácil constatar: basta ir a um baile de carnaval num clube qualquer.

– Sei, sei. Mas seu quis dizer o seguinte: você acha possível novas marchinhas fazerem sucesso nos carnavais de hoje?

– Possível é, só depende das rádios, dos meios de comunicação. Mas parece que não querem isso, não é?

– Você está satisfeito com o que ouve no rádio?

– Satisfeito, não. A verdade é uma só: não tem surgido nada novo. No carnaval, só dá música de escola de samba.

– Falar nisso, o que você acha das es-colas de samba?

– Ah, as escolas de samba são uma coisa muito bonita (suspira), muito inte-ressante! Aliás, devo lembrar que em 1984 fui agradavelmente surpreendido com uma homenagem da Estação Primeira de Mangueira. Até desfilei em carro alegórico!

– Lembro.– (ele canta): Vem de novo ouvir o meu

cantar/Vem ouvir as pastorinhas/A luz de um pássaro cantor/Yes, nós temos Bragui-nha.... Aquela homenagem mexeu com meus nervos, me emocionou muito. Cho-rei de alegria, de intensa felicidade. Sim, eu sou muito emotivo. Choro à toa.

– Nássara, o autor de Alá-lá-ô (marcha de 1941, feita em parceria com Haroldo Lobo) acha que as escolas de samba, de certa forma, têm ajudado a preservar o espírito do carnaval antigo.

– Concordo. As escolas são uma coisa nova.

– Agora falemos um pouco a respeito da sua carreira. Primeiro: como é que o ci-dadão Carlos Alberto Ferreira Braga virou João de Barro? Foi de um dia para outro? Diz a lenda que foi porque o primogênito de seu Jerônimo e dona Carmen queria ser um pássaro, é verdade?

– Não, não (ri). Claro que não. O apelido surgiu, sim, de um dia pra outro. Em 1928. E fui eu mesmo quem escolheu esse pseu-dônimo. Por trás, há uma história. Assim: no começo da carreira participei de um grupo musical chamado Flor do Tempo. Para um conjunto, o nome não era lá essas coisas. Então um dia sugeri: por que não mudar para Bando de Tangarás? Nessa época, 1928, eu já conhecia uma lenda muito interessante sobre os tangarás, pássaros que se reúnem em círculo para cantar e dançar na floresta. Igual a nós, que nos reuníamos na casa de um amigo chamado Eduardo Dale. Então a ideia era que os integrantes do conjunto trocassem

seus nomes verdadeiros por nomes de pássaros.

– Quem eram os integrantes do conjun-to Flor do Tempo?

– Eu, Brito, Alvinho. Vollmer, Edmundo e Alfredo. O conjunto durou cerca de um ano. Em julho de 1929 gravamos a embo-lada Galo Garnizé, o cateretê Anedotas e os sambas Consequência do amor e Mulher exigente, tendo Almirante como vocalista.

– Consta que as suas primeiras compo-sições nada tinham a ver com carnaval. Isto é correto?

– É. Na verdade, comecei a compor por influência de um colega de colégio. Na época eu estudava no Colégio Batista, na Tijuca. Corriam os anos 20. Nesse colégio fiz o curso ginasial. Foi lá, nesse colégio, que conheci um rapaz de extraordinária musicalidade. Era um violonista incrível! Seu nome: Henrique Brito, um nordestino do Rio Grande do Norte que ganhou uma bolsa de estudos do governo do seu Estado. E foi no Colégio Batista que nos conhece-mos. Tem disso a vida.

– Onde anda Brito?

– Deus levou, como levou muitos dos meus parceiros. Estou aqui fazendo hora... Bom, com Henrique Brito ensaiei os meus primeiros versos, versos que resultaram na canção Assombração.

– Gravada em disco?– Sim. Essa canção foi feita em fins de

1929 e gravada em disco Parlophon em 1929. Foi a nossa primeira composição.

– Quem lançou essa canção?– João de Barro, com o Bando de Tan-

garás.– Você ainda lembra dela?– Sim.– Então... – (canta): Faz muito tempo/Na fazenda

da lagoa/Tinha mais de cem pessoas/Na festa de São João/Tinha viola, tinha flauta e cavaquinho/Mano Zeca no seu pinho/Machucava o coração/Sinhá Rosinha nunca esteve tão bonita/Com seu vestido de chita/Estava dançando baião/Mas de repente/Foi-se embora soluçando/Porque viu o Mano beijando Carolina Riachão/Acabou-se a festa/Anda tudo triste agora/E depois disso/Nunca mais se viu Rosinha/Ninguém sabe

onde a coitadinha/Foi matar a dor/Mas a lagoa dizem estar mal assombrada/Quando venta alma penada/No flechal a gritar/E toda noite/Quando a gente vai passando/Lá nas águas vê brilhando/A vela acesa do luar. É isso!

– Numa composição, o que vem primei-ro: a música ou a letra?

– Sou mais de fazer verso. Aliás, eu nunca fiz música pra poesia de ninguém.

– Toca algum instrumento?– Violão. Influência do Henrique Brito.– Você não grava há quanto tempo?– Há uns três anos. Talvez mais.– Por que?– Ninguém me procura. Mas não recla-

Braguinha compôs centenas de sambas e marchas, entre os quais muitos clássicos

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O Bando de Tangarás, seu primeiro conjunto m u s i c a l : a t r á s , d a esquerda para a direita, João de Barro, Manoel Lino, Almirante, Luperce Miranda e Noel Rosa; sentados, Sérgio Brito, Daniel Simões e Abelardo (irmão de Braguinha)

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Livro sobre a vida e a obra de Braguinha

mo, pois estou em paz com a vida. Costumo dizer que estou sentado na pedra, vendo a banda passar.

– Ouve rádio, assiste TV? Enfim, acom-panha o noticiário?

– Sim, claro. Ouço rádio, vejo televisão e leio jornais e revistas. Cidadão comum. Aliás, gosto muito de assistir novela.

– Que mais?– Eu tenho um pensamento que é o

seguinte, quer anotar? “Se encontrares uma pedra em teu caminho e se essa pedra for pequenina, chute-a; se essa pedra for grande, senta nela e descansa” (ri). É o que estou fazendo agora.

– Você está em paz, você parece ser a própria paz.

– Ora, a vida é boa (ainda rindo). A gente é que complica.

– Há pouco falávamos de emoção. Como é o seu relacionamento com o públi-co hoje? As pessoas ainda te reconhecem na rua?

– Sim, sim. Recebo muitos cumprimen-tos na rua, na praia. Dos mais tímidos às vezes ouço: olha lá o Braguinha. Acho graça, acho gratificante. Outros, mais atirados, apontam chamando atenção: olha lá o grande Braguinha! Com o meu 1m 58cm chego a me sentir importante e nas alturas. Sem dúvida, isso me deixa até envaidecido. Mas eu sou tímido e chorão.

– E quando você ouve suas músicas na voz de outras pessoas, o que é que você sente?

– Emoção dupla e duplamente grati-ficado. Em vez de rir, começo a chorar. É verdade! Na homenagem que a Mangueira

me prestou em 1984, por exemplo, cerca de 200 mil pessoas cantavam na avenida e só uma chorava: eu.

– Há pouco você também lamentava o fato de não mais surgirem músicas novas no carnaval...

– É verdade. Hoje em dia só se ouve Alá-lá-ô, Mamãe eu quero, Chiquita Bacana, Máscara negra... Estas são as músicas novas.

– ... Pois é. Pergunta: dos novos compo-sitores/cantores quem você destacaria?

– Gosto do Chico, Tom, Caetano; do pessoal aí do morro, da velha guarda, Nél-son Sargento... Mas falta a boa marchinha nova. Esse espaço continua vazio. Naquele tempo tinha Noel Rosa, tinha o Almirante, o Lamartine. Existia até uma certa compe-tição entre nós.

– A época áurea...

– A época áurea do carnaval, das marchi-nhas, foram os anos 30. A década de trinta.

– Uma vez o grande cavaquista Waldir Azevedo me disse ter sido você o seu ver-dadeiro descobridor e maior incentivador. É verdade?

– O acaso nos fez amigos. Eu era diretor da gravadora Continental. Um dia o Jacob do Bandolim, um grande nome da época, deixou a fábrica (de discos) depois de um desentendimento, cujo motivo já não me lembro. E aí encontrei o Waldir, que aca-bara de fazer uma bonita apresentação na Rádio Clube do Brasil. Perguntei se ele queria gravar Brasileirinho. Achou que era brincadeira, mas acabou sendo contratado e fazendo um sucesso sem igual. Waldir era um grande profissional, sem dúvida.

– Quando foi isso?

– Acho que em 1949.– Você deu oportunidade a muita gente

boa.– Natural, todos eram bons.– Você também abriu caminho para

gravação em disco de histórias infantis, não foi?

– É, compus 20 canções infantis lá pelos anos 30. Na verdade, eu recriei histórias que ouvi quando criança, histórias clássicas com até 200 anos, como Chapeuzinho Vermelho, O macaco e a velha, A cigarra e a formiga, Branca de Neve e os sete anões, Cinderela, a História da baratinha, essas coisas. Deu certo.

– A sua vida dá um livro.– Já deu. Chama-se Yes, nós temos Bra-

guinha, de Jairo Severiano.

Quarta-feira, 21/2

O homem do alá-lá-ô-ô-ôCom Haroldo Lobo, Nássara imortalizou o carnaval com a marchinha do deserto do Saara e não satisfeito traçou, no papo e na pena, os melhores momentos da cidadania foliãAssis Ângelo, correspondente

Antônio Gabriel Nássara é um artista completo: cantor, compositor, ritmista (é um ás na caixa de fósforo), humorista, brasileiro, otimista e coisa e tal.

Nássara, para os íntimos e para o mundo, conta ao Caderno 2 do JBr um pouco dos carnavais que animou com suas memo-ráveis marchinhas, como Alá-lá-ô. “Tudo mudou”, conclui, “e para pior”. Parte da culpa ele debita aos trios elétricos.

– A voz humana não combina com ins-trumento elétrico.

Nássara, ao contrário do amigo Bragui-nha, não compõe há 20 anos. Desiludido, desestimulado?

– Talvez... Não sinto vontade de compor.Apesar de tudo, ele propõe a volta das

antigas marchinhas ”para reeducar os atu-ais compositores”.

Na contracapa de um disco Sinter de outubro de 1956, o compositor Orestes Barbosa escreveu:

Era no largo da CariocaAtrás do edifício do LiceuEm frente ao Tabuleiro da BaianaNum carnaval que já vai longe...Era num sábadoE era cedo

A cidade começava o folguedo de véspera.Eu ia caminhando, com este meu espírito

vagabundo, com o pensamento disperso na variedade das impressões.

Vinha um grupo meio mascarado, meio à paisana.

Na frente dos foliões (uma mescla de vadios e rapazes de família) vinha um ma-gricela simpático, de camisa de meia, calça cinza, cantando e mostrando um sorriso que ostentava os dentes salientes – parecia até que os dentes é que cantavam com o sorriso, esticando o pescoço fino – muito simpático e novo ao meu olhar.

O rapaz chamava atenção pelo ritmo e pela originalidade com que batia um chapéu de palha.

Era Luiz Barbosa.E o estribilho eletrizava a multidão:Foi Deus quem te fez formosaFormosa, oi, formosa!Porém este mundo te tornouPresunçosa, presunçosa.Eu conhecia o rapaz de vista.Não conhecia, entretanto, nem a marcha

que ele cantava, nem o autor.Mas, na multidão entusiasmada, eu des-

cobri um sambista do meu berço natal – Vila Isabel.

Para um preto que a ironia da rua classifi-cara de uma vez com este apelido: Alvaiade. Perguntei ao Alvaiade:

– De quem é essa marcha?Ele me informou:– É do Nássara!Pois é, aí está. Este é um país realmente

estranho: ninguém sabe nada e todo mun-do sabe tudo. Dois, no caso, são os pecados capitais: falta de informação e esquecimento.

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Antônio Gabriel Nássara é, sem dúvida, um dos maiores valores artísticos nascidos no Brasil. No entanto, pouca gente sabe que é dele uma dúzia de grandes sucessos carnavalescos, inclusive a antológica Alá--lá-ô, feita em parceria com Haroldo Lobo para o carnaval de 1941. É dele também, e de Roberto Martins – outro mestre no assunto – O que é que você quer mais? e Meu consolo é você. Nássara compôs tam-bém com Alberto Ribeiro (Tipo 7), Wilson Batista (Balzaqueana) e outros cobrões, como o velho e sempre afinado Frazão (Nós queremos uma valsa).

Apesar dos vários sucessos consegui-dos no campo da música, Nássara não é um músico propriamente. É verdade, canta bem. Mas o que prefere ser mesmo é jornalista, caricaturista, melhor dizendo. É nessa raia que ele corre há mais de meio

século. Como caricaturista fez escola: o seu traço é único, tão próprio e original que dispensa assinatura para identificação.

“Pra você ver”, é ele falando, “apesar disso tudo vou ficar como autor de Alá-lá--ô, uma marchinha feita para o povaréu”.

Curioso: não há mágoa e nem um pin-go de ressentimento na voz do autor de Maria Rosa e Na casa de seu Tomaz (com J. Cascata). O que se percebe é graça e um refinado humor:

– Veja você, há até quem queira mudar o carnaval para o inverno. Pode? Antiga-mente o carnaval começava nas praias, com muita cor e alegria. Era tudo muito espontâneo. Era mil vezes melhor que o carnaval de hoje. tudo mudou muito. Agora a onda é escola de samba. Sem dúvida, as escolas fazem um grande espe-táculo. Quer dizer, tudo é espetáculo, mero

espetáculo. Nego tem que ter dinheiro, tem até que comprar dólar no paralelo se quiser assistir à festa que antigamente era do povo.

Cutuco o mestre para fazê-lo falar mais e mais sobre a sua arte e os carnavais de ontem. Ele revela, sempre bem humorado:

– Olha, não componho nada há mais de 20 anos. Não tenho vontade.

Faz uma pausa e recomeça:– Antigamente, bem antigamente,

desde o tempo da República Velha, o povo ia pra rua brincar e assistir o desfile dos carros alegóricos. Era muito bonito. Havia orquestra tocando ao vivo. Era diferente de hoje. A verdade hoje é que as escolas de samba movimentam milhares, milhões de pessoas e muito dinheiro. Sei que até para quem desfila a coisa não está fácil, está muito caro. Uma nota preta. Eu, hein?

Antônio Nássara, um carioca nascido em São Cristóvão e criado em Vila Isabel, outrora bom de copo e de briga, amigo de Noel, Orlando Silva, Francisco Alves e outros craques, conta ainda:

– O carnaval que conheci foi totalmente absorvido pelos trios elétricos e, também em parte, pelas escolas de samba. A mu-dança foi radical e deu no que deu. Pena. Nos carnavais antigos tinha Lamartine, João de Barro, Ary Barroso... A orquestra é o que mais se aproxima da voz humana, a coisa elétrica é um horror. Eu falo muito, não é? Antigamente... Estou falando demais anti-gamente... Seria muito bom se as antigas marchinhas e sambas voltassem a tocar, que os jovens de hoje compusessem mais. A volta da música antiga seria uma forma de reeducar os compositores, não acha?

Ele bate na tecla:– Os trios elétricos são prejudiciais,

fazem muito barulho. O carnaval está mudado, salvo em parte, apesar de tudo, pelas escolas de samba.

O jornalista e escritor Francisco de Assis Barbosa depõe na orelha do livro Nássara, caricaturista (Funarte/Instituto Nacional de Artes Plásticas, 1985):

“Nássara é surdo. Canta, no entanto com voz afinadíssima. Na caixa de fósforos não tem quem o iguale em matéria de ritmo. Como bailarino, era disputadíssimo no Bola Preta. No bamboleio de um samba ou na cadência de um samba. Posso dizer, como o outro: Meninos, eu vi. No Bola Pre-ta ou no High Life, de saudosa memória, onde pontificava com outros parceiros de memoráveis carnavais dos anos 30 e 40. Marques Rebelo, Santa Rosa, quanta gente boa!”.

Nássara:– Eu sou o penúltimo de uma fileira de

sete irmãos. Nasci a 11 de novembro de 1910 num prédio misto – casa de moradia (fundos) e pequena e modestíssima loja na frente. Na rua Esperança (lindo nome), nº 2, esquina com a rua Abílio (hoje essas duas ruas estão militarizadas. Chamam-se Ge-neral Padilha e General Almério de Moura, respectivamente). Fiz umas 200 músicas.

Assis Ângelo e Luiz Gonzaga, no traço de Nássara

Elas continuam a brilhar nos carnavais

Alá-la-ô(Nássara-Haroldo Lobo)

Alá-lá-ô, ô ô ô ô ô ô

Mas que calor, ô ô ô ô ô ô

Atravessamos o deserto do Saara

O sol estava quente

Queimou a nossa cara

Viemos do Egito

E muitas vezes

Nós tivemos que rezar

Alá! Alá! Alá, meu bom Alá!

Mande água pra Ioiô

Mande água pra Iaiá

Alá! Meu bom Alá.

Pastorinhas (Braguinha-Noel Rosa)

A estrela d’alva no céu desponta

E a lua anda tonta com tamanho esplendor

E as pastorinhas pra consolo da lua

Vão cantando na rua lindos versos de amor

Linda pastora morena da cor de Madalena

Tu não tens pena de mim

Que vivo tonto com o teu olhar

Linda criança tu não me sais da lembrança

Meu coração não se cansa

De sempre, sempre, te amar

Máscara negra (Zé Kétti-Pereira Mattos)

Quanto risoOh! Quanta alegria

Mais de mil palhaços no salão

Arlequim está chorando

Pelo amor da colombina

No meio da multidão

Foi bom te ver outra vez

Está fazendo um ano

Foi no carnaval que passou

Eu sou aquele Pierrô

Que te abraçou e te beijou meu amor

Na mesma máscara negra

Que esconde o teu rosto

Eu quero matar a saudade

Vou beijar-te agora

Não me leve a mal

Hoje é carnaval

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