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MEMÓRIA E PATRIMÔNIO CULTURAL DE CATAGUASES Volume 2

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Volume 2 MEMÓRIA E PATRIMÔNIO CULTURAL DE CATAGUASES Incentivo: Patrocínio: Execução: MEMÓRIA E PATRIMÔNIO CULTURAL DE CATAGUASES Volume 2

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M E M Ó R I A E P AT R I M Ô N I O C U L T U R A L D E C ATA G U A S E S

Volume 2

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Apoio:

Patrocínio:

Execução:

Incentivo:

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M E M Ó R I A E P AT R I M Ô N I O C U L T U R A L

D E C ATA G U A S E S

Vo l u m e 2

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2 ª E D I Ç Ã O – 2 0 1 2

Organização e Coordenação: Paulo Henrique Alonso

Equipe Organizadora (1ª edição):José Luiz Batista (coordenação), Antônio Fernando Batista dos Santos,

Flavio Campos Grillo, Lídia Avelar Estanislau, Marco Antônio de Campos Guimarães, Maria das Dores Freire, Gláucia Siqueira, Mariana Garcia

Cardoso de Almeida, Vera Lúcia Barbosa Brito, Rosário François Petiijean Fusco de Souza Guerra, Maria Aparecida Schuchter, Guilherme L. Gonçalves

Estagiários (1ª edição):Hélvia Peres Cordeiro, Maria do Carmo de Castro, Mônica Machado da Silva,

Paulo Henrique Lage Brum

Coleta material iconográfico: Marcela Andrade da Silva

Design: Birte Paetrow, Gustavo Baldez, Holger Melzow

Infraestrutura e tecnologia: Américo Vicente Sobrinho

Plataforma de rede e internet: David Azevedo, Danilo Marinho

Comunicação: Beth Sanna

Produção: Bárbara Piva

Gestão administrativo-financeira:Djalma Dutra Jr, Geisiane Marinho de Lima

Memória e patrimônio cultural de Cataguases / Paulo Henrique Alonso (Coord.). – 2 ed. – Cataguases / MG: ICC, 2012.

200 p.: il. pb. – (Memória e patrimônio cultural de Cataguases; II)

ISBN: 978-85-65550-01-7

1. Memória Oral. 2. Patrimônio Cultural. 3. História. 4. Cataguases / MG. I. Alonso, Paulo Henrique. II. Instituto Cidade de Cataguases – ICC. III. Título.

M533

CDD: 981.5

Ficha Catalográfica elaborada pelas Bibliotecárias:Carla Viviane da Silva Angelo – CRB-6/2590.

Edna da Silva Angelo – CRB-6/2560.

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M E M Ó R I A E P AT R I M Ô N I O C U L T U R A L

D E C ATA G U A S E S

Vo l u m e 2

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Este é o segundo volume, em 2ª edição, da série que registra a memória oral de vários personagens da ci-dade de Cataguases, Minas Gerais. Ele é parte de um projeto iniciado em 1988 pela Prefeitura Municipal de Cataguases e pela antiga Secretaria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional/Fundação Nacional pró-Memória.

Aqui, damos continuidade e retomamos o tra-balho original, com a produção periódica de novos exemplares e a reedição dos volumes publicados an-teriormente. O propósito é que tenhamos, de forma sistematizada, registrada e divulgada a memória da-queles que fizeram e fazem a história da cidade e que

A P R E S E N TA Ç Ã O

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possamos, assim, contribuir para a preservação da memória local.

Neste volume estão 10 relatos, colhidos entre 1988 e 1989 e publicados em 1990. Como na edição anterior, o texto privilegia a fala própria dos entrevis-tados, regendo-se mais pelas regras da comunicação oral do que pelas normas da escrita. Na reprodução das fotos, as autorias e datas que não foram identi-ficadas estão citadas nas suas respectivas legendas como s/a e s/d.

Esta publicação está também disponível, em formato PDF, para download gratuito no sítio eletrô-nico www.fabricadofuturo.org.br.

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A L B E R I C O D U T R A D E S I Q U E I R ADelegado Fiscal, 75 anos

31

A S T O L F O D U T R A N I C Á C I O N E T OAdvogado, 68 anos

49

E VA R I S T O G A R C I ARepresentante Sindical do Ministério do Trabalho, 73 anos

Í N D I C E

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75

H O M E R O D E S O U Z AOperário, 66 anos

91

J O Ã O F A B R I N O B A I Ã OEscrivão Federal, 80 anos

113

J O S É L U I Z S A L E S VA L EJuiz de Paz, 76 anos

129

L A U R E N T I N A C A R U S OComerciante, 81 anos

141

M A N O E L D A S N E V E S P E I X O T OAdvogado e Professor, 74 anos

159

M Á R I O D A PA I X Ã OFuncionário Público Federal, 74 anos

183

R I TA L O P E S M A C H A D O ( D O N A F I L H I N H A )Esteticista, 79 anos

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A L B E R I C O D U T R A D E S I Q U E I R A

D E L E G A D O F I S C A L

7 5 a n o s

A gente guarda assim uma lembran-ça muito vaga, porque nunca liguei, nunca falei des-sas coisas, não é? Mas eu me lembro de muita coisa...

Eu nasci aqui, fui criado na Fazenda Ponte Alta. Hoje é cidade. Hoje (Cataguases) atravessa a Fazenda Ponte Alta... a avenida com o nome de nos-so pai: Avenida Sizenando Dutra de Siqueira. Ali era roça. Ali plantava muita cana, de um lado e do outro cana era o principal, né. Engenho, leite - pra fazer queijo - tudo só pra manutenção da Fazenda... A Fazenda Ponte Alta era tradicional, pertencia ao meu avô, Manoel Inácio Borges de Andrade, e ele

Foto: Antiga Farmácia Americana do Sr. Pergentino Dutra de Siqueira, s/a, s/d, Departamento Municipal do Patrimônio Histórico e Artístico

de Cataguases

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fez doação. Papai ficou com parte dessa fazenda e nós fomos criados ali: quatorze filhos. E vivi ali tra-balhando assim, plantando cana nas madrugadas... Levantávamos cedo... Fazia rapadura pra vender e tinha outras lavouras como café, arroz, plantação de frutas, né.

O meu avô teve. Dona Bárbara foi escrava do meu avô. Com a libertação dos escravos, Dona Bárbara foi morar com mamãe. Engraçado que havia amizade entre os escravos e os meus avós. Amizade mesmo! A minha vó botava eles pra colher café, ar-roz... Então eles saíam, enchiam os sacos... “pode le-var prá vocês!” Meu avô era Manoel Inácio Borges de Andrade e eles ficaram só com Borges. Até hoje tem aí Borges. Esses, os Borges... Maria Borges, Rita Borges, o Maroca é descendente deles, essa gente to-da. Todos eram escravos. Veio a libertação, eles não quiseram sair de lá. Saíram não. Não saíram da fa-zenda, porque eles tinham tudo lá! Ficaram lá, uai! Quando houve a libertação eles ficaram morando nos Borges. Ficaram lá morando e tinha tudo! Produzia muito, criava porco, né. E interessante é que eles ti-nha orgulho de dizer que era da família dos Borges. Preto mas era Borges né.

O papai era católico... Tocava sanfona, era mar-cador de quadrilha, né. Eu puxei mais ele, porque eu

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gostava muito de dançar! Violão, então, eu gostava! Mamãe também era católica... A família do meu avô Manoel Inácio era família nobre, né. Então eles não aceitaram o casamento de papai e de mamãe. A famí-lia de papai era mais simples. Era proprietária dessa Vila toda, mas era gente muito simples. E os Borges não. Os Borges eram mais fortes mesmo, né. Então eles combinaram, pra casar, um encontro na casa de um crente, o Rezende. Ali onde é aquela cooperativa, ali tinha uma chácara, ali morava os tais Rezende... Esse crente foi lá pegar mamãe, não é. Trouxe, fize-ram o casamento lá. Acho que foi por isso que hou-ve assim... da parte dele, interesse de ser metodis-ta, mais tarde. Eles foram relacionando, houve com certeza um bom entendimento o (papai) era muito alegre, muito brincalhão... Então, uma noite, eles es-tavam lá numa festa muito grande! Num baile lá na fazenda. E papai lá, marcando muito bem uma qua-drilha. Ele era elegante mesmo! Então, dias depois, a Igreja Metodista - ele já estava frequentando a Igreja Metodista - ele tinha relação com a Igreja Metodista, mas gostava também de um bailezinho. Então apa-recera lá... foram lá em casa o Bibiano, o Sucasas e um outro... E exigiram dele que ele se definisse. Ou o papai ficaria na Igreja Metodista ou então... Com a Igreja ou com os bailes. E então ele renunciou a tudo

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isso e ficou com a Igreja Metodista. Então foi assim que ele ficou com a Igreja e nós fomos criados lá na Igreja... Diz que a Igreja Metodista acabou com a ale-gria de papai.

O papai sabia comandar. Ele sabia mandar di-reitinho... Tinha muitos empregados, ele não era de muita conversa não. Era assim austero, espécie de um líder na região. Ele comandava tudo! Se morria uma pessoa, ele ia lá, mandava fazer o caixão - na-quele tempo não tinha, assim como tem hoje, casa funerária, né. (Eu) Era bem pequeno e me lembro. Ele mandava o carpinteiro da fazenda fazer o caixão, mandava botar o corpo dentro do caixão e mandava o pessoal sair. Mas ele não vinha não. Mandava! Ele não vinha nas casas... Então ele era muito bom pa-ra os empregados, e empregado lá era independen-te! O sujeito podia fazer uma casa, ele deixava. Uma ocasião, teve na fazenda dele umas dez casas assim de pessoas que pediam para construir e ficavam mo-rando independente. Plantavam, colhiam e não era empregado dele não. A senbora do Pedro Laroca fez uma casa boa, enorme, ali onde hoje é aquele Costinha. não é... Evaristinho, ali... tinha uma espécie de rego. Ela construiu uma casa boa ali. Ele sempre foi muito bom, então respeitavam ele muito. Papai foi um homem de respeito!

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Eu me lembro, certa vez, num baile na Fazenda do Bonfante... Fomos daqui uma rapaziada, tudo a pé. Chegamos lá, dançamos, e eu sei que, logo quan-do eu cheguei, o filho mais velho foi lá dentro e bus-cou a irmã dele - uma italiana bonita - e me apresen-tou para dançar. Quer dizer assim... eu achei aquilo uma homenagem ao papai, porque o papai era muito respeitado, muito conhecido né.

Eu, Joel seu pai, Dalila, Elvindo, por exemplo, era claro. E Maria e os outros, todos morenos. Neca, bem moreno! Nós temos pessoas claras e bem more-nas na família. O papai bem moreno e (mamãe) mui-to clara, os olhos azuis, né. Eles vieram aqui para Rio Novo... Rio Pomba... nas imediações, porque nós des-cendemos de uma família que veio da... Eu não sei se veio da Alemanha... O chefão que veio, que era nosso tataravô, bisavô... ele era um homem assim sistemá-tico, e ele não admitia que chamasse ele de... tinha que pronunciar o nome Duckter. É, Duckter. Então, daí veio a palavra Dutra. O papai descendeu desse alemão, quer dizer, é filho de índio é, mas com ale-mão. Duckter, naturalmente ele casou com uma ín-dia... papai era moreno, com cabelo liso, né. Mas nós herdamos o nome Duckter. Então conversando certa vez com o Pedro Dutra, que também é da mesma re-gião, já estudou mais, aprofundou mais, porque ele

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era advogado, gostava disso... Então ele me contou. O Pedro era nosso parente. Eu conversava muito com ele sobre isso...

Estudei em Belo Horizonte o científico. Eu terminei o meu curso na Escola de Comércio, ali na Rua da Babia. Quando foi em 1933, eu fui para Belo Horizonte. Depois trabalhei uns tempos na Secretaria da Fazenda, naquele tempo era Finanças, né. Depois voltei para Cataguases... trabalhar na Coletoria, e aí fiquei. Eu estudei em... Eu entrei pro Grupo “Coronel Vieira”... completei 7 anos no Grupo. Naquele tempo era (a única escola). Deve ser em 1920, eu sou de 1913. Eu me lembro que eu já entrei na Coletoria em 1936. Entrei no Grupo aqui e fui para o segundo ano. Eu aprendi tudo, porque lá na roça, naquele tempo, ensinava mesmo, uai! Mas ensinava tudo! Tudo, tudo! Eu tinha assim uns 6 anos e, lá na roça, onde é hoje o meu sítio, ali, na-quela casa do mesmo formato, era do tio Leopoldino. E ele era um homem assim muito aberto sabe. Ele levou pra lá a professora: Dona Cota. Então, minhas irmãs foram matriculadas lá. E eu ia com elas de companhia... Porque passava no sítio do Tio Gabriel, tinham medo... Então eu ia, como um homenzinho, atrás. E lá eu ficava ouvindo as aulas, ficava assis-tindo... Eu fui assimilando, eu fui aprendendo... Lá

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onde eu frequentava com minhas irmãs ensinava tudo. Fiquei lá uns dois anos assistindo aquilo... fui gravando...

A gente tinha que chegar aqui às sete horas: das sete às onze horas, aula. A gente saía daqui às onze horas, chegava meio-dia... meio-dia e pouco e ia almoçar. Era assim, vinha da roça... Tinha poucas casas ali... Não havia aquela ponte lá embaixo, então a gente dava volta por cima, pegava a estrada de fer-ro e vinha. Era uma hora, mais de uma hora pra vir aqui. Na Vila Domingos Lopes tinha ali uma igreji-nha. poucas casas, pra baixo era um matagal. Tinha aquela estrada de ferro, a antiga ali... que liga a se-de da segunda seção e a de cá. Lá era nosso cami-nho, que era mais perto. Ali não tinha casa... é, deser-to, não tinha nada. Lá na frente, tinha uma casa co-mercial. Mais adiante, onde tem a Manufatora, tinha uma chácara... gado, tinha muito, gado ali. E mais na frente tinha “Pampulha”, uma chácara. Era um cha-lé muito bonito. Na Vila, por exemplo, tinha pouca gente... Eu me lembro de uma padaria, eu comprava sempre pão, quando vinha pra casa:

“Picolli”, é italiano. Tinha nada ali não. Eu me lembro do Agostinho Resende, do Tatão, as meninas andando a cavalo... A gente gostava de vir na Vila... Tudo ali não tinha calçamento, não tinha nada, nem

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passeio. Ali perto, que tinha ali nossa farmácia, ali tinha chácara. Lá era a farmácia do Zé Esteves. Ali, onde é hoje a Caixa Econômica, não tinha nada. O Carvalho é que tinha uma casa comercialzinha, on-de é até hoje. Só até ali que vinha a casa dele. Pra cá. A Carcacena que era nova... Casa Felipe... não tinha mais nada não.

A Escola Comercial, o Langoni começou lá na Avenida MeIo Viana, na casa dele. Ele tinha uma Escola de Comércio, ele preparava para o concurso do Banco do Brasil e outras coisas mais. Aí ele fez uma espécie de contrato com o doutor Enrique, aque-le escritor, Resende né? E então montaram uma esco-la muito boa, porque o doutor Enrique era professor de português; o Langoni de matemática, contabilida-de e tinha outro que era de história, não me lembro o nome... era do Colégio Cataguases. Era no cinema, era aqui no teatro, aqui em cima, ali no antigo prédio. Então tinha um salão muito grande, em cima. Salão de baile, festa... lá que a gente se encontrava. O sujei-to ser aluno de um doutor Enrique era a coisa mais importante na vida do rapaz! Não dava (diploma) mas preparava o indivíduo.

Aos 17 anos eu aprendi tocar violão. Eu apren-di aqui com o Langoni, eu acompanhava serena-ta em Cataguases... Havia assim... um período até

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romântico. Tinha muita serenata naquele tempo. Muito romântico! Eu frequentava ali, ele e o irmão

- Antônio e Carlinhos Langoni - gostava muito de mim... O Antônio era casado, tocava violão, e a gen-te saía... serenata... Logo depois eu aprendi a tocar violão, por causa disso, influência deles. Aí eu já ti-nha a turma lá da Vila. O Murilo cantava muito bem. Eu era entrosado com essa turma. A gente ia ali pra Vila Reis. Lá a gente consertava, afinava os instru-mentos, cantava... Nós tínhamos vários rapazes que cantavam muito bem, mas o que eu achava melhor era o Murilo. Ele trabalhava comigo na farmácia do Pergentino... o dia todo lavando vidro e cantando... Ele tem uma voz! Daqui a pouco da gente vai escu-tar, que ele vai cantar... A gente ia andando pelas ruas, escolhia né. Eu me lembro que estava cantando uma vez, defronte do Hotel Pires, hoje é... Ali morava o Pires... tinha uma filha muito bonita! Então o Murilo cantou muito bem lá. Ela abriu a janela e pediu pra bisar, e nós acompanhando... Até que era bom! Tem um rapaz, que morreu há pouco tempo - aposentado da Estrada de Ferro - ele tocava saxofone muito bem mesmo! Esqueci o nome dele, não me lembro mais... O Carlinhos, nós perdemos muito assim o entusias-mo, porque o Carlinhos morreu. Aqui não havia re-curso, ele teve apendicite aguda, não havia recurso,

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morreu. Aí nós ficamos assim meio desarvorados né. O Carlinhos era irmão do Langoni, era muito prepa-rado, tocava violino muito bem, cantava muito bem! Era uma seresta só pra mexer com as moças. Era mui-to bonito! Assim madrugada, iluminada pelo luar... Muita casa a gente parava e era na sombra da casa que a gente escondia, pra ninguém conhecer a gente. Mas a lua era muito clara, bonita, era muito bonita! Era um período romântico. Acabou! Eu fui pra Belo Horizonte e quando eu voltei já estava acabando...

Eu fui muito dançador, eu gostava muito! Mas aqui havia uma rivalidade assim interessante... Os que podiam, frequentavam o Comercial Clube: gen-te da elite, só gente rica, gente bem... médicos, pro-fessoras, essas coisas né. E tinha a nossa turma: ti-nha aqui o Não Vens Assim, é o nome do Clube. De maneira que nos carnavais a turma lá do Comercial vinha nos visitar. Aquele cordão né, cantando, dan-çando, desfilando... rodava no clube e saía. Depois a, gente ia lá também. Mas lá, eles não recebiam a gente muito bem não. O Não Vens Assim era muito inte-ressante mesmo! Era aqui nessa esquina aqui (Praça Rui Barbosa). Era um salão enorme! E, nessa esquina, perto do outro. Era muito mais quente, porque aque-le pessoal das fábricas e do comércio... a rapaziada, não é... caixeiros-viajantes... Eu sei que ia lá dançar

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né. Eu sei que era muito animado. Muito, muito, mui-to animado mesmo! As meninas da fábrica, as filhas dos comerciantes, gente que não podia frequentar lá (Comercial), eles era só elite, né? Lá no Comercial Clube, eu fui dançar lá várias vezes. Mas não era am-biente que a gente gostava. Lá havia muita austerida-de, as mães tudo assentadas lá, de leque, olhando as danças... Tinha outros clubes aí, tinha o Emílio... Mas o Emílio já foi depois, começou a aparecer depois.

Havia muito baile na roça. Naquele tempo não era assim como hoje. Eram bonitas as festas juninas, não isso que a gente vê (hoje), não. A meia-noite é que parava tudo, a quadrilha... Depois que termi-nava a quadrilha que ia passar na fogueira. Aí já era de madrugada! As fogueiras, o foguetório, foguete... Soltava foguete a noite toda! E sanfona a noite toda! São João, Santo Antônio, São Pedro... Havia muito isso nessa região toda. Toda parte tinha foguete, fo-gueira... Era nas fazendas, salões enormes! Basta di-zer que, por exemplo, eu me lembro que a quadrilha que o pessoal aprendia era três partes... O bom san-foneiro é que sabia comandar uma bonita quadrilha! Era tudo marcado em francês: balancê, allons en qua-tre... Eu me lembro direitinho!

A cidade era assim pacata, mas era muito in-teressante porque havia, ainda me lembro da gente

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aqui na praça... A gente ficava rodando de um lado e as moças do outro... pra encontrar com as namoradas, né? Antes era mais...

Inclusive ali, eu ficava na porta da farmá-cia, que era lá embaixo. Naquele tempo, a Indústria Irmãos Peixoto fechava para o almoço e então, quan-do apitava dez horas, a gente vinha pra porta da far-mácia pra ver as moças da fábrica. Tinha umas more-nas bonitinhas né. Aí a rapaziada... alfaiate, naquele tempo tinha muita alfaiataria, descia e ficava passe-ando, namorando. A gente ficava ali. Era um costu-me muito diferente... Não havia dinheiro, mas havia muita alegria! E a gente notava isso. A moçada, que trabalhava na fábrica, era uma moçada alegre, ficava passeando ali de tamanco - pra lá, pra cá - com uma porção de namorado. Umas moças bonitas! Dava dez horas, a gente logo sabia que ia apitar, porque antes de apitar dez horas o Manoel Peixoto, o Zé Peixoto ia passando de linho branco, na porta da farmácia. Ele ia almoçar, ele ia a pé. Ele saía entre o povo, não ti-nha carro, não tinha nada. Andava muito bem, firme, o Manoel Peixoto, muito alto! O Zé Peixoto e o pai do Eli, que foi professor aí, ele era guarda-livros da fá-brica e contador. Ele vinha com eles. Passavam mui-to sério, não é, do cemitério até a porta da farmácia. E a porta da farmácia era interessante pelo seguinte:

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era ponto de reunião. Naquele tempo, 1928, come-çou aquele movimento que acabou-se logo... entrou a Revolução de 30 né.

A política começou muito quente mesmo. Muita coisa com o nosso governador - naquele tempo era presidente - Antônio Carlos. Ele queria ser candidato a presidente da República, mas co-mo o Washington Luiz, que era o presidente desta República, quis indicar um novo paulista... Café com leite: era um ano paulista e outro período mineiro né. E o Antônio Carlos, a pretensão dele, que era um ho-mem muito culto, descendente dos Andradas... ele queria ser presidente da República! Aí o Washington Luiz indicou Julio Prestes né. Com isso o povo ali na farmácia. Não havia, assim, televisão nem rádio, (a farmácia) era um ponto de encontro. Então ali toda tarde, chegava (trem) expresso do Rio trazendo cor-respondência. Chegava às cinco e cinco, então antes das cinco horas já estava descendo gente para ir espe-rar o trem, pra pegar os jornais. Todo mundo acom-panhava né, aquele entusiasmo político... 1928/29. Então, me lembro, doutor Abílio às vezes passava na farmácia. Tinha dois senhores - o Carlos Louro e o Agenor Ladeira - eles faziam esse trabalho de co-missário, ia no Rio e trazia. Todo mundo ficava em volta pra saber notícia do Rio de Janeiro. Eles iam lá

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e trazia ela quentinha né. Quando foi em 30, aí come-çou a revolução mesmo, foi feita a revolução... Houve a eleição em 29... foi quando Minas, Rio Grande do Sul e Paraíba, eles fizeram a revolução... Então tinha aqueles trens descendo cheio de soldados... A gente era menino, eu achava aquilo... eu era rapazinho... Eles estavam descendo pra combater, eles iam ata-car o Rio de Janeiro. Então esse trem que vinha por Ponte Nova, vinha transportando esses soldados to-dos, dessa região aqui, pra ir pro... Ali no setor da li-nha de Além Paraíba que é a divisa com o Estado do Rio... Eu me lembro direitinho!

Aí o Pedro Dutra, já em 32, que eu me lembro mais... Pedro Dutra organizou milícia pra comba-ter também, e já era a favor do Getúlio, porque São Paulo quis tirar o Getúlio né? Aí nessa parte... 1932, que Cataguases participou. Eles prepararam aqui, as milícias eram preparadas aqui... soldados recru-tados... Até seu pai tomou parte. Ele era integralis-ta... antes foi miliciano lá no Itamuri... ele organizou com Chico Campos a milícia, que era pra derrubar o Getúlio né. E com isso consta que o Getlílio contra-tou gente... eles mataram nosso governador Olegário Maciel na banheira. Ele morreu na banheira! Eu vi o corpo dele lá no Palácio da Liberdade. O Joel perten-cia a essa milícia, eles estavam preparando pra to-

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mar o governo. O Joel apareceu lá todo de cáqui - o uniforme deles era cáqui - e o boné era bonito! Aqui nós tínhamos... Aqui toda noite ficava marchando, batendo caixa na rua, preparando aquela gente pra milícia... Eles foram encontrar em Belo Horizonte, já com o plano de fazer revolução. Mas depois chegou lá, não sei o que houve, não deu em nada... Seu pai fazia parte, isso eu posso afirmar. Nesse tempo eu me lembro: Cataguases participou.

Porque o Getúlio, ele... o compromisso da re-volução era dentro de seis meses ou um ano marcar eleição. Ele combateu a eleição porque houve fraude, então era pra ter outra em seguida, né. Ele assumiu o governo e modificou, mudou a coisa toda lá no in-teresse dele Getúlio! Então São Paulo se levantou! A tal Revolução Constitucionalista porque eles queria a constituição. Porque com o golpe de 30 acabou, en-cerrou a constituição até hoje. E Minas aí participou, em 32.

Então em Minas, a Aliança Libertadora cres-ceu muito. Eu fazia parte da Aliança Libertadora e, do outro lado, começou a aparecer um tal de Plínio Salgado, que era integralista né. Então havia o cho-que entre nós e o integralismo, que era da direita né. Lá no ltamuri, Muriaé, o seu tio, o pessoal to-do era integralista. Era, o deles era pesado, era for-

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te. Aqui não... Quando foi em 35, houve a Intentona Comunista e o Prestes aproveitou disso, desse movimento... Na Aliança Libertadora, lá em Belo Horizonte - eu era estudante - eu tinha um amigo, não sei porque ele cismou comigo! Achava que eu devia fazer muita coisa pelo Partido né. O Rubens... eu acho que ele foi morto em 35. Mas lá numa reu-nião, um dia lá, eu fiquei meio chocado com aquilo, porque eu, filho de metodista... aquele entusiasmo de liberdade, de igualdade para todos... todos par-ticipassem... Estudante tem essa bobagem né: idea-lismo de criança mesmo, né. E a coisa não pode ser assim... Mas enfim, nós entramos numa reunião lá, eles levantaram a questão pra pagar a dívida do Brasil - naquele tempo já se falava em dívida né - eu fiquei sabendo que, no Sul de Minas tinha um sino de igreja que pesava três toneladas! Então eles levan-taram essa tese que que nós íamos pagar a dívida do país acabando com a Igreja Católica e vendendo os sinos, o bronze das igrejas. É pegar esse bronze todo! Eu fiquei assim... chocado! Falei: gente mas a Igreja Católica! Eu não sou católico mas a tradição do sino bater, achava aquilo bonito! O sino batendo... des-perta a gente pra uma coisa mais elevada... Sempre acompanhei aquilo. Vai derrubar igreja pra pagar dívida?!? Paga dívida com trabalho pra realizar as

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coisas. Aí eu fui afastando... Depois eu vim embora (para Cataguases). O Rubens me escrevia e escrevia pedindo que eu trabalhasse aqui... Mas aí houve a revolução, a Intentona Comunista e logo depois o Getúlio com o negócio da guerra, prestigiou o im-peralismo, né. Aquela coisa toda, né... E a Alemanha cresceu lá... Mussolini... Mas eu nunca tolerei nada disso não! Não, eu tinha outra formação. Eu pertenci a Aliança Libertadora. Eles (os integralistas) prega-vam a honestidade... o sujeito entrava lá honesto... Essa questão de direita, esquerda, é tudo confusão boba. Falamos tanto nessa Nova República e entra-ram esses bandidos lá, que já há vinte anos vinham falando... criticando os militares! Hoje que eles estão fazendo aí, né isso? Então, eu não entendo esse ne-gócio de direita, de esquerda... tudo conversa! O que nós precisamos é de um governo - que possa ser de direita, esquerda - honesto! Ou que tenha autoridade, que esse não tem nenhuma! Pra se impor pra coman-dar, porque país nenhum, com essa bangunça aí, não cresce não!

A primeira Igreja (Metodista) era aqui nessa ponte, perto da Delegacia de Polícia. Depois, eu não sei bem o ano eu me lembro que o Pergentino - era o superintendente, ele comandava a escola domini-cal - atravessou com o estandarte ali na frente, e inau-

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gurou aquele templo lá da Avenida Astolfo Dutra. Eu me lembro disso direitinho! Subiu ali a Rua do Pomba, desceu ali no... e pegou a Avenida. Eu me lembro direitinho porque o Pergentino ia na frente... a Jandira... de branquinho... Ele era caprichoso, era elegante, ele não tinha receio de nada. Naquele tem-po a Igreja Católica perseguia muito os protestantes. Naquele tempo havia restrição mesmo. Havia por-que os padres não batiam muito com os crentes né? No Grupo (Coronel Vieira) eu sentia isso. A gente sentia, sentia sim. Não havia perseguição, mas havia preconceito, restrição né.

(Em Cataguases) sempre houve dinheiro né. Tinha os chamados ricos e vinha descendo... (Mas) não pensava em dinheiro não. Pensava não. Ninguém pensava em dinheiro. Não tinha essa pre-ocupação não... E por isso nós éramos muito mais fe-lizes!

Entrevistado em 24/08/1988 por Gláucia Siqueira e Hedileuza Maria de Oliveira Valadares.

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Eu tenho tido uma vida muito mo-vimentada, morei em diversos lugares. Meu serviço militar foi feito em 1940. Exerci diversas atividades, mas, sobretudo fui advogado. Fui deputado estadual, fui deputado na Assembleia Constituinte Mineira de 47. Do Antônio Carlos até o Aureliano Chaves, eu co-nheci todos os governadores de Minas. E depois do Aureliano conheci muito bem o Ozanan e o Tancredo, que foram meus colegas na Assembleia Legislativa.

Eu tenho quase 68 anos, sou de 7 de agosto de 1921. Então, o que eu pude fazer, eu fiz! Agora, nun-

A S T O L F O D U T R A N I C Á C I O N E T O

A D V O G A D O

6 8 a n o s

Foto: Pedro Dutra e Flávia Dutra, s/a, 1920, Departamento Municipal do Patrimônio Histórico e Artístico de Cataguases

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ca tive, realmente, uma capacidade, uma habilidade política, como meu pai tinha para o trato com o elei-torado. Eu não tinha aquela simpatia, aquele poder de comunicação! Eu, realmente, nunca aprendi a ser um político militante. Eu sabia minhas limitações nesse campo. Como deputado, eu tinha um escritório, lá em Belo Horizonte, com a “gang” do Pedro Braga e José Ribeiro Pena. O Braga é hoje desembargador aposentado. O Pena chegou a vice-governador do Estado, Presidente da Assembleia Legislativa.

Depois eu vim para o Rio, fui ser advogado do Banco do Brasil, depois fui advogado do Crédito Real e fui advogado de grandes empresas do Brasil. E ainda sou consultor jurídico de um grande estaleiro. Eu me aposentei há três anos. Agora sou e continuo sendo - e acho que todo mundo deve ser - um cida-dão participante, que se interessa pelos problemas do meus país, a partir do meu município, do meu estado... do país inteiro. Eu sou, modestamente, um estudioso de ciência política, de história do Brasil e de história de Cataguases. Não sou um historiador, não tenho formação específica nisso, porque eu tive que ganhar a vida como advogado. E gosto da minha profissão, gosto muito!

A respeito da situação do nosso país tenho uma visão otimista. Apesar de toda a dificuldade que en-

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frentamos, esse país vai sair da crise! A afirmação das classes trabalhadoras é cada dia maior. Por outro la-do, as classes empresariais brasileiras estão tomando consciência do próprio papel. Há vários empresários brasileiros, hoje, de alto nível, de alto espírito patri-ótico e que estão realmente empenhados na solução dos problemas principais do Brasil. Estão vendo que não podem construir um edifício sem fundações. E que o edifício econômico tem que ter como alicerce o trabalho. E trabalho, portanto, tem que ser valoriza-do! É do Astolfo Dutra pra cá (esse pensamento). Os meus antepassados... não sei, porque o Major Vieira era latifundiário!

Os nossos laços afetivos com Cataguases de-correm de diversos fatores, a começar pelo enraiza-mento porque nossos ancestrais estão lá desde 1842. E pela vivência ali: estudei no Grupo Escolar de Cataguases. Joguei futebol ali, na avenida, na rua, e a rua ainda era de poeira, não era calçada. Eu tenho amigos em Cataguases que eu conheço há mais de sessenta anos. Eu conheço o José Inácio Peixoto Filho, o Zezito, presidente da Industrial, desde que ele nas-ceu. Wellington de Souza... o Alberto Bittencourt, que é um dos meus melhores amigos... Então vou dizer: os nossos laços afetivos em Cataguases decorrem do enraizamento e do entrosamento com o pessoal de

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Cataguases. Os meus laços afetivos, guardadas as proporções que em idade variam muito, são os mes-mos que você deve ter.

Eu devo declarar que vou concluir, dentro de alguns meses, umas reminiscências, que eu estou, escrevendo, e que abrange o período de 1929 a 1964, aproximadamente. E para escrevê-las, como nada vem do nada, eu vou remontar a tempos anteriores.

O meu avô Astolfo Dutra, que nasceu em de-zembro de 1864, era filho de um fazendeiro - o coro-nel Pedro Dutra Nicácio - e neto, pelo lado materno, de Joaquim Vieira da Silva Pinto - Major Vieira - que chegou a Cataguases por volta de 1842.

O Major Vieira tinha recebido, não sei se por doação ou porque ele havia adquirido uma sesma-ria de terras de mais ou menos quinze mil hectares. O Major Vieira chegou a Cataguases, que era um pequeno aldeamento. A sesmaria dele começava a poucos quilômetros, ali nos limites da cidade no sentido de Miraí. Ele “plantou” a Fazenda da GIória derrubando a mata para plantar cafezais. “Plantou” a Fazenda da Glória a qual, pela morte dele, foi desmembrada em dez ou doze: uma com nome de Glória; desmembrou-se o Rochedo onde o filho do Major Vieira - José Vieira de Resende Silva, que é o Coronel Vieira - era chefe político ali e conseguiu a

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elevação do Arraial do Meia Pataca a Vila. E que deu o nome de Cataguases, porque era o nome de um ria-cho em Lagoa Dourada, que banhava a fazenda do pai do major Viera, lugar onde ele tinha nascido. Mas esse aspecto da origem e da genealogia familiar me interessa muito pouco. Ele só me interessa quando, do estudo dessa genealogia, você possa vislumbrar a organização socioeconômica e política da região.

Sem perder o fio, o Major Vieira chegou a Cataguases, “plantou” a Fazenda da Glória. Pela morte dele ela foi desmembrada em diversas. Além do Rochedo, principalmente, saiu a Fazenda da Aldeia, que era do Pedro Dutra Nicácio, genro do Major Vieira, casado com uma irmã do Coronel Vieira. O Pedro Dutra Nicácio era filho de um ho-mem chamado José Dutra Nicácio, e o José Dutra Nicácio tinha uma filha que se casou com o Coronel Vieira, filho do Major Vieira; e um filho - José Dutra - que se casou com uma filha do Coronel Vieira. Então, esses Resende do Rochedo. O avô deles, os atuais, portanto o pai da Ofélia, era primo-irmão do Astolfo Dutra duas vezes, pelos dois lados. Daí o nome de Astolfo surgiu na família, porque tanto o Coronel Vieira quanto o Pedro Dutra cunhado dele, cunha-do duas vezes - vendiam café para um sujeito cha-mado Astolfo da Silva Pinto. Então, o Coronel Vieira,

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em homenagem a esse comprador de café, põe no-me no filho de Astolfo. O Astolfo Vieira de Resende, que deixou vários trabalhos com temas jurídicos e até um livro clássico sobre a posse. O Artur Vieira de Resende Silva escreveu essa genealogia dos funda-dores de Cataguases. E o Afonso Henrique Vieira de Resende, pai da dona Ofélia - que está tomando conta do Rochedo até hoje, com 94 anos - foi um advogado muito combativo na região! Então, o Astolfo Dutra descende da oligarquia cafeeira dali. Houve uma es-pécie de reforma agrária, que ele fez para os seus su-cessores: em três tempos todos ficaram proprietários rurais. O Major Vieira morreu e deixou onze ou do-ze filhos. Então uma fazenda razoavelmente grande para cada um. Mas cada um de seus doze teve uma descendência enorme também! O Pedro Dutra, meu bisavô, deixou onze filhos: o Astolfo Dutra, meu avô, era um deles. Então a fazenda do Pedro Dutra, que era uma fazenda (de) trezentos alqueires, uma fazen-da média pra época, foi dividida em onze. Aí deu um sítio para cada um. Mas a partir do Major Vieira, os fazendeiros se preocuparam muito, pelo menos os dali de Cataguases, em adquirir para a família um outro status cultural.

O Major Vieira mandou um filho dele estudar Direito em São Paulo, depois foi para o Recife onde

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se formou - o Luis Vieira da Silva Pinto... Esse Luis de Resende da Silva Pinto foi um dos primeiros ad-vogados de Cataguases, tio do Astolfo Dutra. Depois, numa outra geração, o Coronel Vieira - José Vieira de Resende Silva - que era o fundador do Rochedo, mandou vários filhos estudarem. Por sua vez meu bisavô, Pedro Dutra, também mandou dois filhos estudarem: o filho mais velho, que morreu de febre amarela no Rio, estudando Medicina. E o meu avô, Astolfo Dutra, que ele mandou estudar Direito no Colégio do Caraça. O que aconteceu com esses ho-mens? Já as fazendas diminuídas em suas extensões... Eles por sua vez com grau universitário... Eles não adquiriram o gosto pelo trato da terra, isso é que é a verdade, e foram se urbanizando...

Essa urbanização ia mais ou menos par-e-pas-so, também, com a diminuição da produtividade dos cafezais daqui. Dos cafezais começou a prosperar a burguesia urbana - burguesia só pode ser urbana - mas estou dando ênfase a isso! A burguesia urbana na qual existiam vários compradores de café, geral-mente portugueses, e esse pessoal começou a enri-quecer - num enriquecimento interligado com o em-pobrecimento dos fazendeiros, que começaram a de-ver a essa burguesia urbana. Foi, e eu afirmo que foi inconsciente, uma partilha de poder. Essa burguesia

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emergente ia assumindo o poderio econômico, mas concordou em manter - e talvez não tivesse outro jei-to - em manter nas mãos dos descendentes dos lati-fundiários em processo de empobrecimento, o poder político.

O poder político em Cataguases foi exercido no século passado, por volta de 1850, pelo Major Vieira (hoje nome da antiga) Rua do Sobe e Desce em Cataguases. Depois, em seguida, pelo filho dele, o Coronel Vieira. Do Coronel Vieira, com pequenos hiatos, o poder político passou para o Astolfo Dutra, que é meu avô.

O Astolfo Dutra chegou formado em Cata-guases em fins de 1888. Pouco depois foi juiz muni-cipal. E de 1892 a 1894 foi agente executivo, isto é, prefeito da cidade. Foi eleito deputado estadual em 1898, era governador de Minas o Silviano Brandão, que sucedeu ao Bias Fortes, ao primeiro Bias Fortes, que tinha feito a mudança da capital. E o Astolfo Dutra foi líder da maioria na antiga Câmara dos Deputados Estaduais mineiros. Em 1902, o Astolfo Dutra foi eleito deputado federal e reeleito sucessi-vamente até a morte, em 1920. Eleito e reeleito, ocu-pou diversas vezes a presidência da Câmara Federal. E nela morreu. Era um deputado de pouca frequên-cia à tribuna. E uma coisa curiosa, eu tenho cartas aí

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do Artur Bernardes pra ele... Várias... pedindo apoio nas eleições.

Ali onde é hoje a Avenida (Astolfo Dutra) era um charco. Ele conseguiu verbas estaduais e fede-rais pra drenagem do córrego Lava-pés, pra comba-ter as epidemias que assolavam o município. Então, pra combater inclusive o mosquito da febre amarela, para saneamento ali, canalizado o Lava-pés, surgiu a Avenida. Ele conseguiu verbas estaduais e federais para a construção da ponte metálica de Cataguases, inaugurada em 1915. Ele também conseguiu verba para a construção do Grupo da Avenida: instalou o primeiro grupo escolar de Cataguases. Além do mais conseguiu a ida do Banco do Brasil pra lá. É uma das mais antigas agências do Brasil. Depois conseguiu a do Crédito Real.

Com a morte prematura do Astolfo Dutra, aos 55 anos, em 1920... O Astolfo Dutra era um homem liberal, um homem culto, com uma cultura humanís-tica muito sólida, porque tinha estudado no Colégio do Caraça, e depois de dois anos, em Ouro Preto. E fez o curso superior em São Paulo. Então, com a morte do Astolfo Dutra em 1920, o poder político ficou nas mãos do Sandoval Soares de Azevedo, que era um jo-vem advogado que trabalhava no escritório do Astolfo Dutra, e um primo do Astolfo Dutra, que era o doutor

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Antônio Lobo de Resende Filho. Porque a oligarquia permaneceu, embora empobrecida. A galeria dos ex-prefeitos de Cataguases tem oito ou nove da minha fa-mília. Então o poder ficou nas mãos desses dois...

Meu pai, Pedro Dutra, saiu da aldeia em que ele nasceu - Cataguases - para o Ginásio São José, em Ubá, onde fez o princípio do curso ginasial. Depois para o Colégio Abílio, em Niterói, onde concluiu o curso ginasial. A estada dele na Faculdade de Direito do Rio - por falta de recursos financeiros ele tinha abandonado o curso de Direito - por instâncias de minha mãe ele retomou a esse curso de Direito. O meu pai só voltou a Cataguases em 1922, porque ele tinha se formado em Direito em 21. E aí, concluído, voltou a Cataguases para advogar. Aí teve um êxito enorme na advocacia. Ele era um advogado de “clíni-ca geral”, mas defendia gratuitamente qualquer pes-soa necessitada. Ele teve uma advocacia de grandes êxitos! Inclusive prosperou financeiramente através da advocacia! Ele teve tantos clientes, que os hono-rários que ele pode receber, na época deram pra ele começar e quase acabar a casa que ele fez.

O meu pai era um homem de ideias. Ele era um democrata por excelência! Era um homem que tinha o mais profundo respeito a dois elementos bá-sicos na formação de um político que mereça este no-

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me: a liberdade de expressão do pensamento e o di-reito à ascensão social e à ascensão econômica. Lutou sempre! Ascensão social, reconhecimento do trabalho como fundamento da dignidade humana! Porque a dignidade humana só pode ter um pressuposto e se desdobra, mas o pressuposto básico é o trabalho. Uma das formas de solapar e anular a liberdade in-dividual é o não reconhecimento do direito como resultante do trabalho. E o desprezo pela força de trabalho! Uma luta ingente em favor dos humildes, quando não havia nenhuma legislação trabalhista! Ele tentando defender o próprio pobre do trabalha-dor rural, do parceiro rural, da ganância de alguns patrões, com o Código Civil na mão! Com os parcos recursos que a Legislação Civil dava a ele! Ele con-seguiu muita coisa. E claro que ele não era mágico! Não podia mudar a estrutura social, mas conseguiu muita coisa! Não só em termos individuais, (mas) em termos de uma afirmação da dignidade, e do direito da vida digna pelos menos favorecidos!

Tudo o que meu pai conseguiu ganhar na vida foi quando não havia política... Antes de 30, quando ele não era chefe político. E no recesso imposto pe-la ditadura do Getúlio, 37 a 45, o meu pai fez várias coisas... Comprou a casa do escritório dele, aplicou a casa da avenida e comprou uma fazenda. Foi a pri-

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meira fazenda da região quase posso afirmar isso - em que a casa dos empregados não era choupana... Era assoalhada, coberta de telha, com venezianas e banheiro dentro de casa!

O início da vida política do Pedro Dutra se deu com a eleição dele para deputado estadual, em 1924. Ele foi deputado estadual de 24 a 30. Quando veio a revolução de 30, no ano seguinte ele foi nome-ado prefeito. Exerceu o cargo por dezoito meses, e nesses dezoito meses ele fez uma revolução na cida-de! Com a receita miserável da prefeitura sem uma máquina de terraplanagem, ele construiu a estrada de rodagem de Cataguases a Laranjal: toda na pica-reta e na carreta! Fez a estrada Cataguases-Laranjal toda ela com serviço braçal. Fundou a primeira Liga Operária de Cataguases, em 1931. Lançou as bases das construções das casas populares em Cataguases, fora várias outras coisas que nesse período ele fez. E despertando contra si uma oposição ferrenha!

A UDN não existia, a UDN é de 45. Em primei-ro lugar, os nossos adversários locais em Cataguases não foram originariamente da UDN. Eles entraram pelo PR - Partido Republicano - e, então eles passa-ram para a UDN. Eles não eram sócios fundadores da UDN. O candidato, em oposição ao meu pai, a depu-tado federal em Cataguases, da facção contrária, era

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candidato do PR - Serafim Lourenço - que foi indi-cado pelo grupo oposicionista. O fundador da UDN em Cataguases inclusive era o Galba. Era secretário do diretório da UDN. Não, sei quem era da UDN em Cataguases, quando fundou. O PR era os Peixoto, so-bretudo os Peixoto e o Serafim Lourenço, que era do PR inicialmente. Depois passaram para a UDN.

A revolução de 30 vinha com uma mensagem renovadora: voto secreto, maior atenção aos direitos trabalhistas, enfim significava uma mudança no sta-tus socioeconômico. Era evidente que os mais ricos, os detentores do poder econômico iriam ficar contra a revolução de 30. A milícia... sei que ele organizou a revolução de 32... O Artur Bernardes tinha sido um dos coautores da revolução de 30, tinha se posicio-nado a favor de São Paulo, que era o Estado de on-de partiu a revolução de 32, e estava o Bernardes... parece que estava organizando uma resistência, lá perto de Viçosa, num lugar chamado Arapongas. E o meu pai então, organizou uma companhia para ir a Arapongas, de acordo com o governo do Estado, com armamento, tudo fornecido pelo governo do Estado. E o pedido vinha da região para ir a Arapongas, pra deter uma eventual... E houve apenas uma escara-muça! Essa companhia foi organizada lá em casa, eu me lembro, na garagem tinha vários fuzis assim...

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expostos na parede. Ele deu o comando dessa com-panhia ao irmão mais novo dele, o Herberto, que deveria ter uns 21 ou 22 anos. Porque o Herberto ti-nha sido aluno do Colégio Militar. E havia um outro primo dele, Mauro Dutra Ladeira, e o Mauro tam-bém exercia uma função de comando... O Hernani Magalhães desapareceu num avião... Estava fazendo um voo num teco-teco e desapareceu... E ninguém nunca mais achou. O Hernani também tinha um posto lá... O Zinho Margarido, Augusto Magalhães Pires também tinha um posto. Eram, sobretudo, to-dos voluntários! Eram cento e poucos, mais ou me-nos uma companhia.

O meu pai fundou a Rádio Cataguases em 1947. Com o capital inicial de duzentos mil cruzeiros subscritos por ele e vários amigos. E ele era o pre-sidente da Sociedade Anônima da Rádio Cataguases. Muitos anos depois vendeu o controle acionário da Rádio Cataguases para o Múcio Ataíde, um incorpo-rador imobiliário aqui no Rio, homem de vários ne-gócios. O Múcio fez uma oferta de compra e o meu pai vendeu. O episódio da Rádio, ele é muito eluci-dativo da violência policial. E tem também toques de humor negro!

O delegado municipal, José Catapreta Machado - isso eu vi, meu pai não tinha chegado - descendo a

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Rua Coronel Vieira, vindo lá da Praça Rui Barbosa, à frente de doze soldados com fuzis e baionetas ca-ladas. E alguns investigadores de chapéu. O negócio foi muito ridículo quando ele gritou: abra a porta em nome da lei! Isso é de um ridículo atroz, não é? Claro que eu não abri, nem meu pai abriu! Ele puxou o re-vólver para atirar quando o Bajara Freitas Lima abai-xou a mão dele... o tiro saiu pro chão. Ele correndo, no meio da rua e gritou para a polícia: passa fogo! E aí foi uma saraivada de balas, não é. E a polícia se tinha aberto em leque... Até que um deles matou um soldado lá. O soldado morreu com um tiro pela es-querda, ele de frente da Rádio, do lado esquerdo dele. O tiro foi dado da esquina. Havia vários investigado-res ali atirando de revólver... O tiro deve ter vindo lá da esquina do prédio do Paço. Isso é que fez parar o tiroteio. Quando veio o golpe de estado de 37, como ele era contra a ditadura, ele ficou de fora. E com a redemocratização do Brasil, em 45, com a primeira tentativa de democratização do Brasil, porque você não pode falar em democracia com eleição de ata fal-sa, e sem voto secreto! Mas então, em 2 de dezembro de 45, ele foi eleito pra Câmara Federal. Tem emen-das dele ao Projeto de Constituição. Eu vou dizer só uma, que é a principal, e que nunca foi regulamenta-do: é a que permitia a participação do trabalhador no

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lucro da empresa. Claro que a emenda foi derrotada pelas forças poderosas!

A minha mãe era originária de uma família do Estado do Rio, e o pai dela - Paulino Fernandes - che-gou a Cataguases em 1904. Ele chegou a Cataguases, em 1904, já com vários filhos, inclusive minha mãe com 8 anos. Porque ele é de 10 de junho de 1896. Ele era um homem tão empreendedor, o pai dela, que em pouco tempo fundou uma sociedade mútua de segu-ros, depois fundou o Cinema Cataguases, o primei-ro cinema... ele não se chamava cineteatro... Fundou, pôs em funcionamento e manteve em funcionamento algum tempo, até pouco tempo antes de morrer. Ele morreu em 15 de novembro de 1917... Vendeu, pouco antes de morrer ele já havia vendido pra Companhia Telefônica Brasileira.

A minha mãe estudou lá no antigo Ginásio de Cataguases. Foi professora primária até casar. Era uma mulher muito culta. Lia com muita fluência in-glês e francês, o que para a época não era tão comum. Muito ativa e, além disso, uma colaboradora muito grande do marido! E sempre uma criatura voltada para os interesses dos mais pobres. Então, depois, ela foi eleita vereadora, isso foi muito tempo depois, o ano eu não me lembro de cabeça... Mas foi uma... em termos de mulher brasileira, e mulher brasileira do

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interior, ela foi pioneira em Cataguases! Porque foi a primeira a ter real participação! Uma participação efetiva na vida pública e não apenas afetiva.

Sou de Cataguases e é um dever colaborar pra fixação da história do município. E eu tenho certas condições personalíssimas pra isso, porque além da minha memória, que remonta há sessenta anos, eu tenho uma memória familiar de pelo menos duas ge-rações atrás de mim. Coisas que meu avô relatava ao meu pai. E fora uma documentação razoável que eu também tenho. Eu vou fazer uma exposição minu-ciosa, mas não será prolixa. Eu vou relatar por escri-to. Isso não deve ser uma coisa de improviso. Como nada! Isso aqui eu tô conversando, eu tô dando um depoimento numa conversa. Agora, escreverei com rigor a história dessas reminiscências. As minhas de-clarações para o Museu de Cataguases, eu vou entre-gá-las por escrito, através dessas reminiscências...

Entrevistado em 5/5/1989 por José Luiz Batista.

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Acho muito importante esse trabalho de vocês, porque conhecer sua história é importante pra cultura. Porque um povo sem cultura é fácil de ser vencido. Foi o avanço da história e da democra-cia que deteve as fogueiras ardentes da inquisição onde se queimaram homens. Homens da estirpe de Giordano Bruno e prenderam outros do tipo de Galileu! Mesmo assim a terra continua girando em torno do sol! Foi o avanço da história e da democracia que deteve a escravidão. Foi o avanço da história e da democracia que liquidou a jornada de dezesseis ho-ras. Hoje, temos mais produção com menos trabalho.

A história, de 1922 pra cá, que eu gostaria que a gente começasse a conversar a respeito. Eu gosta-

E VA R I S T O G A R C I AR E P R E S E N TA N T E S I N D I C A L D O

M I N I S T É R I O D O T R A B A L H O

7 3 a n o s

Foto: Indústria Irmãos Peixoto, s/a, 1932, CDH do Instituto Francisca de Souza Peixoto

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ria assim de saltar pra era de Berta Lutz - que foi de-putada, a primeira deputada - pra hoje. Há um con-gresso de vinte e sete mulheres, e falar da luta dessas mulheres, da mulher brasileira, da mulher mineira e cataguasense, que colaboraram na resistência, na luta pelo desenvolvimento do nosso Estado, do Brasil, de Cataguases, né.

A minha mãe... ela era filha de camponeses, né, trabalhavam na agricultura. Meu avô, meu bi-savô... eles vieram aqui de Andradas, acompanhan-do a nascente do Rio Pomba, e quando chegaram aqui encontraram o Meia Pataca e por aqui eles ficaram. Antigamente saía acompanhando as nas-centes. Minha família foi uma família assim muito rebelde. Não conformava com a dominação do rei. Fomos criando um núcleo ali pela Ponte Alta. Tem um irmão do meu avô que foi o primeiro Intendente aqui. Meu avô chamava Pedro Borges de Andrada. Meu pai, meus pais, meu pai e minhas tias e meu avô, por parte de pai, eles trabalhavam numa fábri-ca de tecido é... Cascatinha, era em Petrópolis isso. E sabiam trabalhar em tecido. O doutor Murgel, ele quis criar uma fábrica de tecido aqui, quis montar uns teares. Ali onde é a fábrica velha, eles monta-ram lá um galpão. Minhas tias vieram aí pra ensinar a trabalhar com... fazer pano. Ensinar operários de

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Cataguases a ser tecelões. Eles eram aqui de perto de Juiz de Fora. Aí já tinha o Coronel João Duarte e o doutor Norberto, e criaram aqui uma Companhia Cataguases-Leopoldina de Força e Luz. Eu tenho es-ses dados lá em Belo Horizonte. Até a quantidade de lâmpadas que eles colocaram primeiro! Porque o ca-fé e o arroz eram pilados no pilão... Aí eles acharam que devia, quer dizer, a instalação da energia elétri-ca. Aí que começou a história do desenvolvimento de Cataguases. Faziam muita propaganda contra a ins-talação da energia elétrica em Cataguases! Como em Juiz de Fora! Em Juiz de Fora, aqueles Mascarenhas foram até apedrejados, né. Aquilo ia dar eletricidade, matar as crianças na parede... as crianças não podiam encostar... uma série de bobagens pra impedir que montassem a eletrificação em Cataguases.

Meu pai não quis trabalhar mais em fábrica de tecidos porque tava dando muita doença de peito. É, tuberculose, né. O pessoal trabalhava dez, doze ho-ras ali no tear comendo algodão, com uma alimenta-ção muito difícil. Então meu pai resolveu aprender o oficio de remendão - sapateiro remendão - esses que botava meia-sola, consertava sapato. E adorava em frente a casa do meu avô materno, e de lá namora-va a minha mãe. Eu vou contar uma história: minha mãe tinha um namorado... eles traíram ele! Fugiram

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pra Miraí, pra ali afora... A polícia foi lá e pegou eles: meu pai foi pra cadeia e depois casaram. Tiveram que casar! Naquele tempo era uma coisa horrorosa! Mas eu acho que essa honra eu tenho: minha mãe foi a primeira que fugiu! Minha mãe não tinha esse ne-gócio não! Criou uma família com dez filhos! (Hoje) todos nós estamos mais ou menos situados na vida.

Meu avô, o Pedro Borges, ele tinha várias ter-ras. Ele chegou aqui e ocupou muitas terras né, por-que não tinha dono! Ele ocupava, ia lá em Barbacena e legitimava a tal sesmaria, sabe. Como o avô dela pegou (a terra) da (fazenda) Ponte Alta, por ali afora. Só que ele não era tão ambicioso igual ao meu (avô). O meu pegou muita terra! Pegou aqui no Thomé até lá em Sereno... E deu vinte e oito alqueires de terra para o meu pai, lá pertinho de Sereno. E lá eu nasci, né. Deu essa propriedade lá para meu pai - chamada Bela Vista - e deu uma casa ali perto da igreja para nós. Ele era muito rico, tinha várias propriedades. Ali onde mora Bitoca, aquilo era dele. Aquela chácara dos Menezes, ali tudo era dele. Foi demandas, você tá entendendo, demandas. A nossa fortuna foi... Nós fomos pedir esmola, minha filha. Nós fomos pedir es-mola! Todo mundo na miséria! Nós perdemos aquilo tudo. Uma questão de demanda. O atraso, não é? O atraso das pessoas deu nisso!

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Fui batizado na Areia Branca, lá tinha um cru-zeiro. Areia Branca é um povoadozinho bom. Cê já foi pra Cataguarino? Cê passou ali... tem um areião, eles tão tirando saibro, né. Areia Branca é aquele lugarejo ali. Ali tinha muita gente, muito povoado, colhia muito café na região. Tinha uma agricultura muito boa! Muita cana que tinha... Tinha uma usina de açúcar do coronel Antônio Augusto de Souza... Eu fui batizado na Areia Branca (mas) registrei em Sereno porque lá tinha cartório, né.

O Pedro Borges plantava muito milho, muito feijão ali onde é hoje a Fazenda do Ministro (Fazenda da Vitória). Plantava cana né. Fazia rapadura e ca-chaça. Cachaça vinha naqueles tonéis, aquele maior, e quintos... O quinto é aquele menor, né. Aquilo era do Pedro Borges... Lá não tinha escola... Eles resolve-ram então me dar estudo. Isso eu tinha 10 anos! Dar estudo é botar na escola, né. Ali perto, pra cá onde é hoje o Pouso Alegre, tinha uma professora particular. E meu avô, porque eu fui criado com ele, pagava o colégio pra mim, pagava essa senhora para me ensi-nar. Depois eu entrei aqui no Grupo Escolar, com 12 (anos)... No Grupo Coronel Astolfo Dutra1. Meu pai arrendou as terras lá pra um cidadão e veio morar

1) Grupo Escolar Coronel Vieira, na Avenida Astolfo Dutra.

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aqui na cidade. Botou um açougue na Vila. Aí eu co-mecei a frequentar o Grupo. Eu Já estava na quarta série (quando) inaugurou o (Grupo Escolar) “Guido Marlière”. Sou o primeiro aluno da quarta série, mas infelizmente o quadro não tem! Eles sumiram com o quadro! Cês podiam ver se recuperava aquilo... Antigamente usava um quadro né: fazia formatura, tirava retrato dos meninos e colocava ali.

Era uma situação muito difícil naquela época né. Eu nasci em 1917... A gente começou a trabalhar numa tipografia. Cataguases, naquele tempo, tinha três jornais... Foi uma Cidade... sempre foi demo-cracia. Houve sempre um debate político aqui! O Dionísio Cerqueira era o Presidente, era o diretor do jornal que chamava Reação, mais ligado ao Partido Republicano Mineiro. Tinha o Cataguases, que era ligado aos poderes públicos (municipais). E tinha A Tribuna, que era um jornal que esse Sebastião Ventura era diretor. Era mais da intelectualidade... Doutor Francisco... (A Tribuna) era mesmo perto da Phebo. Da Phebo Filmes, né. A Tribuna tinha muita influência daquele movimento... como é que chama-va... modernista de São Paulo. Havia muito debate e tinha o pessoal dos Mauro, né. Humberto Mauro, João Mauro, Francisco Mauro... eram assim mais ou menos gente avançada. O Comello velho, pai dessa

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Dona Eva... Pedro Comello, né. Aí era um pessoal, uma intelectualidade que tinha sonhos assim de fa-zer cinema mesmo em Cataguases. E nós consegui-mos realizar uns dois filmes, né. Brasa Dormida, se eu não me engano e o... Aí eu fiquei naquele meio ali. Fui ser engraxate. Meu tio Nenê Garcia era bar-beiro, eu fui ser engraxate dele e tal. E trabalhava! Na hora vaga eu ficava ajudando o pessoal na tipografia desmanchar os tipos. Porque antigamente tinha... pe-gava um por um, letra por letra para compor o jornal. Então a gente ajudava... lavava aquilo e dava uma mãozinha pra eles. Depois saía vendendo jornal aí pra rua, pra ver se...

O doutor Sandoval de Azevedo, que era che-fe de um grupo... Sandoval de Azevedo, Navantino Santos, era uma raiz, uma coisa... Depois é que sur-giu o Pedro Dutra e fechou o grupo. Mas antes dis-so teve o doutor Sandoval de Azevedo, teve esse Dionísio Cerqueira do PRM (Partido Republicano Mineiro). Mas aí começou a... veio a Revolução de 1930. O Centro Acadêmico 11 de Agosto, naquele tempo, tinha as decisões políticas. A Faculdade de Direito lá de São Paulo... aquele Centro Acadêmico 11 de agosto... Esse pessoal vinha fazer muita conversa. Chegavam aí, conversavam e coisa e tal. Mas inicial-mente tinha esse grupo - PRM e esse grupo do dou-

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tor Sandoval, doutor Lobo, não é. Dionísio Cerqueira era do PRM. A tendência deles era ligada ao conser-vadorismo. Júlio Prestes, cê viu falar? Minha memó-ria não tá muito boa, mas era o Júlio Prestes, (de) São Paulo... Havia no país rebeldia contra a dominação inglesa aqui. Cê comprava uma agulha, era importa-da! Cê comprava um tecido... O tio dela mesmo usa-va linho S 120 né, importado da Inglaterra. Mas tudo era importado, naquela época! Então, surgiu o mo-vimento do Forte de Copacabana, surgiu a Coluna Prestes, o Centro (Acadêmico 11 de agosto), o mo-mento dos intelectuais de São Paulo - os modernistas

- que o Chico Peixoto participava, e influía muito no Rosário Fusco... E tinha outros que eu não tô me lem-brando. Cês vão me ajudando... GuiIhermino César de Oliveira, Ascânio Lopes, Tuniquinho Mendes, Enrique de Resende, o doutor Afonso, irmão dele já era mais conservador, quer dizer, não misturava mui-to... Até tinha uma casa... morava aqui onde é o João Peixoto, a casa onde é a TELEMIG, o doutor Afonso Resende. Aí, então, o Getúlio conseguiu coordenar esse sentimento de libertação da dominação ingle-sa. O que acontece? Foi feita a revolução de 1930, né. Mas imediatamente ele - essa revolução foi patrocina-da pelo americano - tirou um dominador (e) passou por outro. Aí foi entregue de braços abertos pra do-

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minação americana! Aí, então, com a revolução de 30 o Pedro Dutra foi combater os perremistas em Viçosa, por aí afora... Estevão Pinto... porque lá era o cen-tro mesmo dele. O Artur Bernardes - presidente do PRM - foi governador do Estado (de Minas Gerais)... aí começou uma resistência a esse grupo (pelo) grupo do Pedro Dutra. A família Peixoto entrou de roldão. Então ficou Peixoto (contra) Pedro Dutra... Depois passou a ser UDN e PSD, quer dizer, o Pedro Dutra era PSD e a família Peixoto era da UDN.

Eu nasci em 2 de fevereiro de 1917, em 1930 eu tinha 13... 14 anos por aí. Nós fomos distribuir boletim aqui: fui eu, mais meu irmão e outro meni-no. Fomos presos aqui por um cidadão que chama-va Major Livramento, um que veio aqui pra sufocar nós, a mando lá do governo de Minas... Olegário Maciel... Veio aqui sufocar a rebeldia cataguasense, né. Aí nos fomos presos! Aí foi o batismo da prisão! O Zé Esteves, então, foi lá e tirou a gente. Zé Esteves era um farmacêutico que tinha aqui... Em 30 nós éra-mos favoráveis ao Getúlio, favorável a Getúlio até 1935! Mas quando ele fez a chamada polaca - uma carta que devia institucionalizar o governo dele - o que acontece é que veio esse movimento não, conten-te né, começou a articular contra o Getúlio Vargas... Antigamente era a política do café com leite, cê tá en-

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tendendo? Quer dizer, automaticamente o Antônio Carlos seria o vice-presidente do... não era assim? O Getúlio Vargas em vez de buscar apoio aqui (em Minas Gerais) foi buscar apoio lá na Paraíba, com João Pessoa. Não foi assim? Acho que foi. A história é essa. Me ajuda que minha memória... Mas o Getúlio tinha prometido fazer um... aproveitar aquele des-contentamento nacionalista, de libertação - eu não fa-lo nacionalismo, né - mas de libertação do nosso po-vo. Ele aproveita daquilo e entregou pro americano dominar as coisas aqui, né. Aí criaram no Rio, por aí afora, a chamada Aliança Nacional Libertadora, pra derrubar o Getúlio...

Nesse período de 1930 a 1935, aqui não tinha condições... A situação ficou muito difícil, muita per-seguição aqui. Tinha Zé do Grupo, Arnaud Sapateiro, de triste memória... Eles jogararam até bomba na nossa casa, o pessoal do Pedro Dutra. Porque meu pai não concordava com aquela... foi sempre radical contra o Pedro Dutra! E aí nós não tivemos condições fomos obrigados... Eu fui embora pro Rio, né. Fiquei lá até 1947. Em 47 eu voltei pra cá... Quando deu a revolução de 1935 eu já estava no Rio. Em novem-bro de 35 eu já estava no Rio... Intentona Comunista... Eu participei assim como massa. Não como partici-pação ativa, né. As revoluções antigamente era sem-

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pre feita de cúpula. O povo nunca participou disso, de revolução, né. Porque eles articulava por cima! O comandante fulano de tal ou o general fulano de tal deslocava a tropa, e por aí. O 64, o próprio 64, foi a mesma coisa! O Mourão Filho deslocou a tropa de Juiz de Fora...

Em 1950 nós já começamos a fazer política aqui em Cataguases. Então já mudou muito a situ-ação! Porque nós, com aquela política que a gente importava tudo, tá compreendendo, nós então come-çamos no Brasil inteiro... Isso teve muito reflexo em Cataguases, um desenvolvimento para impedir essa importação! Nós é o povo cataguasense, Cataguases inteiro! Eu não sou desvinculado de nada disso né. Aí começamos a fazer uma política - antes do gover-no Juscelino, (e) Juscelino foi obrigado a fazer uma proposta eleitoral da seguinte maneira: uma política de desenvolvimento que chamava binômio energia e transporte.

O Oscar Niemeyer teve ainda influência aqui em Minas, principalmente com Juscelino. E teve influência no Chico Peixoto. Oscar Niemeyer, Portinari, esse pessoal vinha pra aqui, fazia milhões aí, né, na época de 47. Traziam uma porção de gen-te, né. Operários, que eles estavam construindo o ginásio aí... Depois construíram o Hotel Cataguases,

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e tudo aí. E aí tô dentro do caso nadando nesse rio, nesse mar.

No Hotel Villas, na casa do doutor Abílio - o doutor Abílio tinha muita coisa comigo, gosta-va muito de mim - Domingos Tostes, Pergentino Siqueira eram homens esclarecidos, homens que fa-ziam a opinião pública aqui A pessoa ia e escutava o que eles diziam... A vinda do Portinari... é matar a gente do coração! Você sabe como é que é? Você tá entendendo? Ali, onde é a casa do doutor José Pacheco, por ali, aquilo era uma casa velha do Pedro Dutra. Até morava a família do Astolfo Dutra, mo-rava ali numa casa velha... O Hotel Cataguases... a Igreja, né. Começou a surgir as casas que o doutor Francisco mandou fazer ali do Largo do Rosário, para os operários morar. Não tinha... Aquele Bairro Jardim naquele tempo era um avanço, quer dizer, cuidar da moradia do trabalhador!

Tinha a Rádio Cataguases, que era do Pedro Dutra, e nós fazia parte desse grupo mais progressis-ta, que é Peixoto, né. Hoje se falar isso cê tava apoian-do o capitalismo. Não, nós tava apoiando um grupo progressista, tá entendendo? Então nós tínhamos um serviço de alto-falante aqui. O José Rossi, que tinha um serviço de alto-falante, irradiava aqui na pra-ça (Rui Barbosa). O Pedro Dutra conseguiu liminar

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- uma ordem do Ministro da Justiça - pra fechar o ser-viço de alto-falante. Aí nós falamos: não fecha o ser-viço de alto-falante! Tem que fechar também a Rádio, porque aí fica desigual! E fecha, não fecha... Então o Edgar Mata Machado - chefe da Casa Civil do go-vernador Milton Campos (e) genro do doutor Abílio - ele estava aí. Então nós reunimos uma comissão e fomos lá pra conversar com ele sobre essa interferên-cia do governo federal aqui dentro. Ele mandou cha-mar o Catapreta, que era o delegado de polícia aqui. Catapreta levou a polícia e nós juntamos um povo, né, trabalhadores e pessoal. E fomos lá pra fechar a Rádio. Houve um tiroteio, morreu um soldado. Tava lá o Galba, o Amaury turco, tava o Pedro Dutra, tava doutor Edson, tinha mais gente. Tinha o Arnaud, o Zé do Grupo, tinha uma porção de gente lá.

O Milton Campos, ele era da UDN, foi elei-to governador de Minas pela UDN. Agora o Pedro Dutra, do PSD não tinha espaço no Palácio da Liberdade (sede do governo de Minas), ele buscava lá no Catete (sede do governo federal). Peixoto (con-tra) Dutra! Mas depois chegou uma hora que só dava Peixoto! Uma hora que só dava Peixoto e por aí afora. O Zé Esteves foi o último que o Pedro Dutra elegeu... Depois ele (Zé Esteves) aderiu aos Peixoto. Ele fez até a adesão aqui na Praça Santa Rita. Não desliguei

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(dos Peixoto) não, eles é que (me) desligaram! Isso foi em 1948 e alguma coisa... Mas não foi desligação por-que eu fui preso. Eu era preso igual prende ladrão no meio da rua. Era preso em qualquer lugar! As ve-zes não podia vir na praça, porque eu vinha na praça, um soldado vinha me acompanhando! Fiquei redu-zido aqui a um par de tamanco, uma camisa e uma calça, e tive que ir embora por causa disso. Muita perseguição! Nós ia fazer uma manifestação em 1948, no dia 1º de maio. Achava que podia, e tal, essa coi-sa toda. Então o Luiz Peixoto e Austen - Austen, um delegado de polícia que eles trouxeram aqui, um ci-dadão até meio arbitrário - resolveram impedir a re-alização do 1º de Maio, a festa do 1º de Maio. Porque antigamente fazia muita festa no 1º de Maio! A Minalda, o Serafim Lourenço, o pessoal, todo mundo que ia levar os operários pro Horto, comemorava lá. Tudo bem. Mas nós resolvemos fazer um 1º de Maio mais assim no sentido de classe dos trabalhadores. Aí o Luiz Peixoto foi pra Rádio e fez uma denúncia de que os comunistas queriam tomar o poder em Cataguases! Só tinha quatro ou cinco comunistas. Aí o Austen prendeu o Mário Bagno, o Djalma Werneck, o Antônio Barroso, Peterson Resende. Prendeu uns cinco ou seis comunistas. Eu trabalhava pro Castro Lima, ali onde é a Imperial, tinha o serviço de comis-

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sário né. Aqui em Cataguases o comércio era muito fraco, não tinha as coisas. Então a pessoa precisava: traz isso pra mim do Rio, eu trazia. Ia toda quarta ou quinta-feira trabalhar, fazia as compras e voltava. Aí esses comunistas pedia assim: Cê traz um... esse livro tal, traz A Mãe, de Gorki, traz isso, e eu trazia. Aí o doutor Austen descobriu os livros, né. Mandou me chamar e falou assim: “olha, eu mandei chamar o senhor porque os comunistas estão comprando livros aqui por intermédio do senhor. E eu não quero que o senhor traga mais esses livros!” Eu falei assim: “Não senhor, isso o senhor não pode fazer, porque eu tra-balho, é uma profissão, eu trabalho lá no Castro Lima. Esse serviço de comissário tá entregue a mim, não é? E eu, se ele me encomendar, eu trago”. “O senhor não traz!” ‘’Trago sim, porque eu não vou trazer? Aí ele falou: “então o senhor está preso! Falei: “tá”. Aí ele me fichou como comunista. Quer dizer, eu entrei pro Partido Comunista na cadeia! Mas o interessan-te é que depois eles começaram a (me) prender qua-se todo dia. E eu abusava e coisa, até que o doutor Francisco, um dia, foi me visitar lá na cadeia. Chegou lá, bem mudou a situação lá. Mudou a situação! Houve notícias que eles ia me liquidar fisicamen-te, né. Eles é capaz de fazer com você igual fizeram com o Mário Tobias! Porque fiquei desempregado?

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Trazia alguma coisa do Rio, atendia algumas pesso-as? Consegui arranjar um emprego numa fábrica de cadernos no Rio, pra ser vendedor dessa fábrica de cadernos ali atrás da farmácia do José Esteves, hoje Santa Maria... Tinha um bequinho ali. Eu comecei a colocar os cadernos lá. Etelberto Valverde até me aju-dou muito! Ajudava assim no financeiro, não é isso? Eu comprava caderno e revendia... uns cadernos ba-ratos. Dicionário vendia barato. Eu fazia minha polí-tica pros estudantes...

O doutor Francisco... ele estudou em São Paulo2. Parece que ele tinha muita convivência lá com esse pessoal... Marques Rebelo... A Amelinha, mulher dele, acho que ela é irmã de Marques Rebelo, alguma coisa assim... Era um homem assim... um ho-mem igual ao Chico Peixoto num morre né! Um tipo assim para a nossa memória, né. José Rosa Filho, que era presidente do Sindicato, fazia propaganda do sin-dicato lá dentro da empresa: Ele garantia o Zé Rosa! Doutor Francisco garantia do Zé Rosa! Por exemplo, o Zé Peixoto - que eu considero também um dos homens mais evoluídos deles - montou a Industrial aqui. Ele (dizia): “tem tanto de lucro?” Tem. Então vamos dar um dividendo aqui. “Quinze dias”, né,

2) De fato, Francisco Inácio Peixoto estudou no Rio de Janeiro.

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um mês, porque antigamente o patrão dava um par de meia, um lenço, uma garrafa de vinho, quando o operário era bom! (Depois) não, todo ano o operá-rio tinha um dividendo que o Zé Peixoto mandava dar, né.

Então o Francisco foi isso: trouxe aí o visual, os quadros, fez o ginásio aqui. Foi um homem que mais se deu, à nossa opinião, para entregar o ginásio, sa-be. Aproveitando aquela lei do Jânio Quadros para que eles passasse o ginásio. Porque antigamente era só filho de rico que podia estudar, não é? Filho de pobre não podia. Aí quando passou o ginásio para o Estado, aí todo mundo começou a... filho de pobre, ri-co, começou a ir pra lá. Foi um movimento até muito bonito né. O Chico foi um cara tão liberal, vou dizer uma coisa, mas tão liberal que eles roubavam lá den-tro os retalhos. Pegava os retalhos e vendia pra fora. O Chico era um homem assim... filósofo. O Zé Rosa chegava até a agredir o doutor Francisco, chamava ele de uma porção de coisa, e ele aturava aquilo. Não mandava o Zé Rosa embora, não mandava ninguém...

Eu acho que o capitalismo pra sobreviver, ele tem que fazer alguma coisa... Agora, tinha mesmo os chamado “puxa-saco’” Comigo: perseguição, se cha-ma isso de perseguição! Comigo foi mais, que minha esposa trabalhava na fábrica. Ela casou comigo e eles

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mandaram ela embora. Tinha onze anos de casa! Não teve direito a nada! Entrei na justiça. Ganhei? Não sei, porque aí tive que ir embora. Foi nesse período que eu fui obrigado a ir embora para Belo Horizonte, por-que havia o anticomunismo. A polícia perseguia, não queria saber de comunismo, né. Porque nosso parti-do tinha uma orientação de promover o desenvolvi-mento do país, não é? Se a gente quer enfrentar uma dominação externa, se a gente... a gente tem que criar estrutura, não é mesmo? Mário Bagno era membro do nosso partido (e) era da fábrica, era chefe de seção.

Eu vim pra aqui, voltei, né. Eu fiquei aqui até 1963: novembro de 1963. Então, com a maior dificul-dade, arranjei umas representações aqui, não é. E co-mecei a trabalhar, vender, viajar pra fora... essas cida-des aí na periferia, vendendo. Mas não estava dando porque tinha uma família muito grande. E tinha que e pagar colégio. E tinha uma porção de coisa! Eu tra-balhava na SUPRA - Superintendência de Reforma Agrária - então o Elmo, esse que hoje é candidato a prefeito, ele arranjou pra mim trabalhar nesse serviço, lá em Belo Horizonte.

Nós queríamos fazer uma agricultura moder-na no país, no estado, você tá entendendo? Mas pra fazer uma agricultura moderna nós teríamos que ter pessoas, recursos humanos né. Localizar, selecionar

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as pessoas... porque antigamente era uma agricul-tura atrasada. Então o povo estava aceitando muito bem essa questão da chamada reforma agrária. Mas o que, acontece? Surgiu um cidadão, chamava Julião e Leonel Brizola. E começou a dizer: tem que fazer a reforma agrária na marra! Tomar a terra, não sei o que, e tal... O Brizola chegava: “Tem que enforcar um general na tripa de um banqueiro!” Então eles arti-cularam forças. Misturou reforma agrária com refor-ma bancária, com estas coisas todas. Aí, o Magalhães Pinto, que não queria reforma bancária, articulou com o Mourão e acabou com esse trabalho que nós estáva-mos fazendo, que eu mostrei pra vocês no início.

E que se a gente faz uma reforma agrária, cria mercado interno. Nós não ficaria dependendo mui-to de exportar, cê tá entendendo. O que acontece? O americano também não estava interessado nisso! Então nós fomos pegos lá em Belo Horizonte, nes-se movimento. Eu fui pego dois meses depois, né. Aí acabou com a coisa. Hoje, o que aconteceu? Nós, que em 1964 já estávamos exportando alguma coi-sa, em, 1970 eles resolveram fazer esse desenvolvi-mento que tá aí, mas baseado no endividamento ex-terno. Aqueles picaretas que, faziam projetos ia no BIRD, pegava aval do governo, ia no BIRD tirava o empréstimo pra fazer um tal... pra trabalhar no pro-

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jeto... e não fazia! Assim foi feito o endividamento! Veio agora o senhor Delfim Neto, o Mário Henrique Simonsen assumiu essa dívida e hoje nós estamos pa-gando! Com o Delfim Neto era uma dívida de vinte e um milhões de dólares. Quando o Mário Henrique Simonsen assumiu (já estava) na base de cento e qua-renta milhões, né. Virou urna bola de neve. Em 70 a nossa dívida externa era de 1,3 milhões de dólares...

Tô vendo todo dia. Porque eu sinto um proces-so revolucionário (em Cataguases). Revolucionário não é dar tiro, não é matar ninguém. E o desenvol-vimento do povo. Você sabe que no Brasil, a única cidade onde as operárias andavam de bicicleta e usa-vam calça comprida, você tá entendendo, foi aqui? A primeira! Lá pelos anos de 1960 por aí, né. Ainda não era comum mulher usar calça comprida, né.

Nós tivemos o melhor tecido do Brasil! Disputado em São Paulo! Os atacadistas de São Paulo ficavam em fila pra comprar tecido na Irmãos Peixoto, você tá entendendo? Faziam os modelos pra gente fabricar pra eles. Isso eu presenciei como quis!

O nosso partido resolveu fazer um esclareci-mento: o que é sindicato. Porque não tinha sindica-to em Cataguases. Já tinha sindicato da construção civil - que nós organizamos lá embaixo - onde é a casa do Bebeto, ali. Ele estava em construção. Nós

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fizemos uma reunião e organizamos o sindicato da construção civil. Mas precisava organizar o sindi-cato da fiação e tecelagem. Então, tinha algumas li-deranças, e esse Zé Rosa era um moço assim muito inteligente (mas) ficava no botequim, bebendo ca-chaça. O Zé Rosa era um rapaz, um operário cheio de sarna... Dava na pele aquela coisa. Aí nós come-çamos a conversar muito com ele; tirar ele daquele negócio de beber em botequim, cuidar mais da vida dele, do corpo, nê. Aí ele começou a estudar e tal. Ele era muito revoltado, ele era assim muito rebelde, mas era um rapaz excelente! Conseguimos fundar o Sindicato da Fiação e Tecelagem e ele conseguiu ser eleito. Não sei se ele foi o segundo ou se foi o primei-ro... acho que ele foi o segundo presidente. Ele fez a chapa: ele e o Geraldo Costa Lima. Em 1964 houve um movimento, um golpe, né. O Zé Rosa foi preso. Itamar Barbosa e muitos outros, muita gente: quator-ze pessoas. Então o Zé Rosa foi o homem que eles mais castigaram! Nós fomos presos, fomos a julga-mento. Todos os jurados lá, que são oficiais, na hora o Coronel Caldeira disse assim: “Cataguases... o Brasil não precisa de quatorze homens iguais aos senhores, precisa de milhões de homens iguais aos senhores!” E nos absolveu, né. Mas aí não parou, porque o Galba Rodrigues Ferraz, um moço que tem por aí... o Galba

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aproveitou do movimento de 64. Nós tínhamos uma série de projetos sociais pra Cataguases. Aquela sede que tem ali foi ideia do Nanto quem executou foi o Hidenburgo. Mas o GaIba aproveitou disso. Então, a título de perseguir o Nanto, me perseguir, perseguir o Elmo, perseguiu outros por aí afora começou a fa-zer... O GaIba fez até boletim anônimo contra o dou-tor Anibal Pacheco, Juiz de Direito... Não tive condi-ção porque o Galba enquanto tava mandando... eles queriam me liquidar! Tive preso sessenta e um dias lá em Belo Horizonte, lá em Juiz de Fora. O Nanto teve cinquenta e um dias. Eu fui preso dois meses depois, que eu era desconhecido da polícia em Belo Horizonte, dos “faixinhas”, né. Porque eles contrata-vam gente, colocavam uma faixa amarela e saía pe-gando o pessoal! Apanhei muito, apanhei muito. Mas isso eu não gosto de falar muito da... Por exemplo, apanhava onze dias seguidos! Demais da conta! E o efeito moral, por exemplo: batia, batia, eu não tinha nada que falar, porque não linha nada pra esconder, tá compreendendo? Tinha nada pra falar! O que eu sabia, eles já estavam sabendo. Mas eles ameaçavam pegar minha filha, pegar minha prima, que morava lá em Belo Horizonte, era assistente social. Uma coisa· horrível! Eu dessa coisa fui parar numa clínica... me levaram - já o movimento de anistia vinha vigoran-

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do - me levaram para uma clínica “Nossa Senhora de Lourdes”. Eu tive lá internado uns dois meses para fazer um processo de recuperação. Mas um re-volucionário não dá para recuperação... Eu fiquei em muitas prisões... Porque eu não era propriamente um revolucionário. Era um homem mais assim revolta-do, como um elemento da classe média ou da classe feudal, porque meu avô era praticamente o meu bi-savô era feudal. Eu, como não tinha nada, os outros eram ricos, eu achava que com revolta ia corrigir essa injustiça. Não é assim?

Tá cansado? Eu cansei vocês? Eu sou emigrante de Cataguases. Igual a eu,

igual a eu tem 72% da população de Cataguases, que não pode viver em Cataguases. Termina o ginásio aqui, vai embora pro Rio, para São Paulo. Tem mães aqui que não sabem o paradeiro de um filho, ou de uma filha! São jovens assim que abandonam sua casa, sua roça, não é? E saem aí, sem, destino, em busca da esperança. Eu, embora que já fui preso muitas vezes, não tive condições de viver (em Cataguases). Hoje, eu tenho condições de mudar pra aqui, morar então, mas tô enraizado em Belo Horizonte. Estou com minha fa-mília, trabalhando. Mas eu chego aí, transito livremen-te. Eu sou um que lutou! Tenho 72 anos de idade: acor-do as seis, vou dormir às onze da noite lutando. Eu

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luto! Porque você vê o povo, meu povo, muito infeliz! Infeliz, sem perspectivas! Se o nosso povo resolver... tomar cultura... ver como Nação... É o trabalho mais sagrado esse que vocês estão fazendo: dar cidadania ao nosso povo.

Entrevistado em 9/9/1988 por Gláucia Siqueira e João Carlos Borges Justi.

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Meu nome é Homero de Souza, mi-nha idade é 66 anos. Nasci na Vila Peixoto, atrás da Indústria Irmãos Peixoto. Num tem o Pronto Cordis ali naquele beco? Nasci e me criei... Ali nas-ci, ali me criei, ali trabalhei quase quarenta e dois anos. A primeira casa que foi feita atrás da Indústria Irmãos Peixoto foi pra minha família: família Manoel Geraldo de Souza. Lá na Irmãos Peixoto traba-lhou meu pai Manoel Geraldo. Trabalhou Geraldo de Souza, trabalhou Aristides de Souza, traba-lhou Homero de Souza, trabalhou Maria de Souza,

H O M E R O D E S O U Z AO P E R Á R I O

6 6 a n o s

Foto: Saída dos operários da Fábrica de Tecidos, Gilson Costa, s/d, acer-vo iconográfico do IBGE

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Euclides de Souza e OrIando de Souza... Só traba-lhou na Industrial meu irmão que faleceu, Wilson de Souza... 22 anos. Wilson de Souza e Joana de Souza trabalhou aqui (Industrial). Mas o resto, oito filhos, trabalhou na Irmãos Peixoto.

Meu pai... já tem uns quarenta e tantos anos que morreu... trabalhou lá uns vinte anos, pra morrer com 42 anos. Meu pai morreu e deixou a família toda pequena.

Primeiro trabalhei na família Menezes. Tra-balhei três anos na família, Menezes... de lá saí em 1937. Eu comecei a trabalhar na fazenda do Mané (Menezes) com oito anos, mais ou menos. Depois dali fui trabalhando, trabalhando, fui pra Irmãos Peixoto... e trabalhei vinte e tantos anos de colchoeiro em mi-nha casa, pra não deixar meus filhos passarem fome.

Eu entrei... acho que com 13 anos, 12 anos pra 13 anos, acho que foi uma coisa assim. Lá trabalhei quase quarenta e dois anos. Minha função foi todas: fui tirador, fui varredor primeiro, depois catador de espula... catador de espula vazia, fui passadorista, fui maçaroqueiro, fui carquista, depois passei a trabalhar, vinte anos mais ou menos, na parte mecânica. Fui mecânico especializado em manutenção de fiação e tecelagem. Aprendendo por experiência e por práti-ca! Trabalhei em quase todas as máquinas!

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Antigamente quando a pessoa ia trabalhar lá não precisava ter 14 anos. A pessoa entrava com 8 anos... 9 anos... 10 anos... 13 anos. Meus irmãos co-meçaram assim. Porque não existia esse negócio da pessoa estudar, não precisava de diploma. Eu fui até terceiro ano de Grupo só. Antigamente não tinha ho-ra pra trabalhar. Trabalhava-se até dezesseis horas por dia: começava às seis da manhã ia até dez horas da noite! Trabalhava direto! Depois, com o tempo ela (a Indústria Irmãos Peixoto) passou a trabalhar assim à noite. É, de turno... a noite toda. O jovem trabalha-va assim de dia. Mas aqui não tinha horário, porque antigamente não tinha lei trabalhista. Eu, quando co-mecei a trabalhar não existia lei trabalhista.

Então não existia lei. (Era) a lei seca, o modo de dizer, a lei do chubaco, a lei do chicote! Você tra-balhava direto! Não tinha esse negócio de hora extra, pagar hora extra, não tinha nada! Você ganhava aqui-lo que... Eu, pelo menos, devo ter entrado naquela época ganhando oitenta réis. É, antigamente era por hora... Entrei ganhando uma base de oitenta réis por hora. Não era eu só não, era todo operário. E naquela época o maquinário era muito ruim... o maquinário quase não produzia. Aquelas máquinas de 910, 911, 912... era assim. Hoje, uma moça... uma fiandeira ho-je toca dez máquinas... E antigamente era uma moça

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pra tocar um lado só, quer dizer que duas moças to-cavam uma máquina filatória.

Folgava nos domingos, mas quando precisa-va... ficava apertado... precisando de muita produção trabalhava (domingo).

Essas crises que estão existindo agora, de man-dar operário embora. Isso a vida toda existiu. Porque antigamente, quando meus pais trabalhavam na fá-brica... tinha meu avô que trabalhou lá... um italia-no... muitos anos também... trabalhou lá de foguista. Antigamente, quando dava crise, o que eles faziam? Eles plantava, muito milho no morro. Ali naquele morro pra cima do SENAI, no fundo das casas da Irmãos Peixoto. Então eles punham aquele operá-rio pra capinar quintal, o pasto, capinar o morro ali. Punha o operário pra debulhar milho... descascar mi-lho. Ficava fazendo hora porque a fábrica estava pa-rada, porque não podia dar mais produção, porque tinha estoque de pano. Toda vida existiu crise!

Acidentes haviam e não havia recurso ne-nhum! Porque antigamente não existia assistência. O que havia aqui em Cataguases era um hospital pe-queno e existia o Posto de Saúde, onde é a Cima, que tinha um médico ali que era o Dr. Raton... era tratado por Dr. Raton.

O patrão passava dentro da fábrica, dentro da

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indústria, (mas) o chefe geral que comandava... aque-la equipe de chefe geral. Muito chefe que, antigamen-te, não tinha assim... foi criado uma certa considera-ção com o trabalhador. Não tinha assim... foi criado naquela época, modo de dizer, sem nenhum preparo. Porque lá não existia um técnico! Não existia uma técnica! Eles não iam pra fora estudar! Eles mesmos se formavam com a fábrica e a experiência. Então eles abusavam do poder!

Existia lá um chefe geral que era o Serafim Spínola... tinha o Mário Bagno... um chefe de tecela-gem que o senhor Werneck... e naquela época, quando eles mandavam o trabalhador embora, o trabalhador não recebia um tostão de indenização! Se quisesse, sa-be o que ele recebia? Era um puxão de orelha e um pontapé na bunda, no modo de dizer. Um pontapé... porque eu vi muitos companheiros tomar pescoção. Eles chamavam um tal de João Nego, Fedeno, João Caolho... Eu vi esses companheiros tomarem muito pescoção dentro da fábrica! E pontapé! Isso eu falei até com o próprio Zezito Peixoto, uma vez... Isso era do encarregado, não era do patrão... O patrão não man-dava ele agir daquela maneira. Ele agia por espontâ-nea vontade, porque ele não tinha uma certa cultura. Para poder então ganhar o nome com o patrão... Batia! Isso eu vi com os meus olhos muitas vezes! (O ope-

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rário) continuava porque precisava trabalhar, vivia na miséria... passando fome... não tinha outro recurso.

Era pior (com os coronéis) o trabalhador... eles passavam fome, passavam a maior miséria. Também porque não existia dinheiro. O povo não passava mais fome sabe por quê? Porque naquela época qual-quer córrego desse aqui... o Rio Pomba... a pessoa pe-gava era muita raça de peixe! Piau pulava mais de uns cem... duzentos... tudo assim... O sujeito ia com uma varinha, pegava um peixe e matava a fome! E naquele “corguinho” que desce na Vila Domingos Lopes, em frente daquele Grupo “Guido Marlière... aquele córrego a gente ia ali e pegava bolão de pei-xe... Mas pegava o peixe e não tinha gordura pra fri-tar o peixe! Fazia um ensopado e comia aquilo pra matar a fome!

A gente ia na Chácara do “Seu” João Carroceiro (que) tinha uns 100 anos, mais ou menos. A gente ia ali, enchia o saco de laranja, matava a fome! Por ali no Bairro Haidée não tinha uma casa que existe ali (hoje). Só tinha uma casinha lá em cima... morava um crioulo que chamava Tio Mané... tinha uns 120 anos... A gente ia ali, apanhava aquelas canas, amar-rava aqueles feixes, batia né... amassava com pau, torcia eles, fazia aquela garapa e coava o café pra po-der tomar... nem açúcar podia às vezes comprar! E ali

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arrancavam saco de inhame, saco de batata... então matava a fome da gente! O salário não dava nem pra vida do trabalhador. O trabalhador toda vida levou uma vida ruim, no modo de dizer. Nunca levou uma vida assim... um padrão de vida bom. E continua passando miséria até a data de hoje!

Nenhuma (diversão)! O que tinha era futebol. Sempre existiu Operário e existiu Flamengo. Onde que é a Industrial que era o Campo do Flamengo, antigamente, uns cinquenta anos atrás. E o campo do Operário naquele lugar mesmo, ali... Na vila on-de morei tinha um campinho... tinha um basquete... futebol...ali. Existia um salão: chamava Ninguém Reseste Salão Clube. E tinha o Violeta. Existia o Social naquela época, mas o Social eu não podia ir lá. Só podia ir branco, preto não podia ir. Aquilo era dos poderosos, dos ricos, o pobre, não podia entrar ali. O escuro, só com branco, mas que tivesse dinheiro tam-bém! E antigamente filho de pobre não podia estudar também. Só estudava rico. Não formava um filho de pobre pra professor! Não formava um filho de pobre pra Direito!

Aquela fábrica ali é a mãe de todas as fábricas de Cataguases. Quando eu comecei a trabalhar a fá-brica não era a metade do que ela é hoje. E dali que nasceu a riqueza deles, é dali que veio a fortuna de-

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les. O pai dos Peixoto, o Peixoto Velho, foi um tra-balhador também. Porque trabalhava na Leopoldina, trabalhava na Estrada de Ferro. Ele montou essa pe-quena fábrica com aqueles teares antigos que davam pouca produção. E dali ele foi modernizando, mo-dernizando até chegar ao ponto que chegou. Eles são os maiores empresários daqui. Daqui dessa zona é Peixoto e Dr. Ivan Botelho... São os maiores empre-sários.

Naquela época o que tinha aqui era a fábrica do Nogueira: a fábrica de bala, de macarrão... Existia só a Irmãos Peixoto. Da Irmãos Peixoto nasceu a Industrial. Da Industrial veio a Manufatora, depois da “Manu” veio a Multifabril. Foi aí que veio ago-ra a Goitacáz. Depois veio a Estopam, lá embaixo. Aqui não existia fábricas não! Existia os coronéis. O Coronel Antônio Augusto tinha a Usina que empre-gava muita gente. Eles tinham canavial pra toda par-te, aqui pro lado da Saudade... Tudo aquilo era dos coronéis! Então tinha muito empregado, mas mão de obra tinha pouco. O pessoal trabalhava mais era nas roça. E nas fábrica, toda vida existiu crise.

Pressão (política) houve demais, porque anti-gamente existia duas arenas aqui: Peixoto, naquela época era UDN e Pedro Dutra, PSD. Então existia aquela política! Qualquer trabalhador que falasse no

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Pedro Dutra era mandado embora! Se passassem até no portão da casa do Pedro Dutra... se eles vissem bater o pé no portão, era mandado embora! Eles per-seguiam mesmo! Claro, eram obrigados a votar com eles! Não tinham aquela liberdade pra poder falar no nome do Pedro Dutra! Mas eu não ligava pra is-so. Toda vida, eu sempre pensei: “eu sou um homem livre”! Tinha a minha liberdade! Eu conversava com o Pedro Dutra, ia lá dentro da Rádio, saía com Pedro Dutra, não queria nem saber o que ia dar!

O trabalhador não entendia que ele tinha aque-la liberdade... eles não entendiam que tinham o di-reito de expressar aquilo que... Eu, naquela época, eu nunca tive medo. Toda vida eu acho que tenho minha liberdade! Eu tenho direito de pensar! Eu trabalhava na fábrica, mas eu sempre conversava com o Pedro Dutra. Eu sempre conversei com o pessoal “pedrista”, porque naquela época o trabalhador não podia... eles pediam (votos). Até faziam uns piqueniques, naque-la época... Iam lá pro Horto, ia lá pra Astolfo Dutra, ia pra Miracema... Fazia aqueles piqueniques. Então eles conquistavam o trabalhador, porque o trabalha-dor precisava mesmo. Naquela época eles faziam o seguinte: cada família que tivesse um trabalhador, eles davam um quilo de carne. A que tinha dez ope-rários levava dez quilos de carne... tinha cinco, levava

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cinco. Fora de eleição eles faziam isso também. Não tinha diversão, naquela época o trabalhador... De ma-drugada, cinco horas da manhã... quatro e meia, o re-lógio do trabalhador era o tamanco, era o treco... Eles, iam andando, fazia muito barulho, fazia muito baru-lho aquele batido. Tanto que o relógio do trabalha-dor era o tamanco: aqueles que levantavam primeiro acordavam aqueles que estavam dormindo. De roupa simples e de tamanco. O calçado que o trabalhador tinha era tamanco e treco, porque não tinha jeito de comprar, não tinha condição. Passava a maior misé-ria, maior fome! Naquela época existia muita fartu-ra, mas não existia dinheiro. Não dava pra comer. Eu estou dizendo a você que o negócio é esse. Eu falo e provo: uma broa de melado, estou recordando... João Bonifácio fazia uma broa de melado deste tamanho assim! Era um tostão. Mas o sujeito não tinha um tostão pra comprar aquela broa! Antigamente, eram vinte quiabos, daqueles quiabos desse tamanho as-sim por um tostão! Meio litro de leite eles vendiam por duzentos réis, naquela época. Um mamão-melão desse tamanho era duzentos réis... uma rapadura era um tostão... E nós, lá em casa, não tinha um tostão às vezes pra comprar! Naquela época era assim: o su-jeito comprava fiado e pagava por quinzena. Então o meu pai saía da fábrica às cinco horas e ia fazer com-

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pra... Levava aquele dinheirinho recebido pelos meus irmãos todos... Reunia, ia lá fazer compra, pagava o que estava devendo... O negociante falava: não vou vender porque você não pagou tudo o que você esta-va devendo! Nós ficávamos até às oito horas da noi-te... nove horas, dez horas... esperando mantimento pra fazer janta. Meu pai chegava com aquele saco na mão, sem nada! Aí nós dormíamos com a barriga va-zia, estômago vazio! No outro dia meus irmãos iam trabalhar com o estômago vazio!

A fome nunca que acaba, isso é difícil. Só o dia que o trabalhador entender que o Brasil é nosso! Que cada um de nós mandarmos num pedacinho desse território! Aí o trabalhador se liberta da fome! Do contrário, não. Porque desde que existe o mundo, existe a miséria. De maneira então, que sempre foi is-so que estou dizendo... O trabalhador não pode, não tem aquela liberdade pra dispor o que ele quer.

Sou um dos fundadores desse Sindicato. Eu fiz parte da chapa do sindicato umas cinco vezes. Graças a Deus sempre liderei perante os trabalhado-res e sempre quem aponta o presidente do sindicato sou eu. Eu que aponto! E toda chapa que eu apresen-to ela é eleita! Têm uns trinta anos que eu venho li-derando e nunca fui derrotado. Posso ser derrotado agora, daqui pra frente, mas, nunca fui derrotado!

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Nós fizemos uma greve. Essa greve que nós fi-zemos embora... foi jogada fora pra mais de setecen-tos operários. Essa greve deve ter mais ou menos uns dois anos... eu não fiz greve porque sou aposentado. (A greve) ela foi e não foi (vitoriosa), mas o traba-lhador numa parte foi, porque ele deu, como se diz, deu uma demonstração de força, de união! O traba-lhador não teve medo de se manifestar nesse recinto! Eu disse aqui, numa Assembleia: “vocês vão fazer a greve, mas vocês podem esperar que vem chumbo grosso depois. Eles vão mandar muito operário em-bora... eles vão enquadrar vocês num decreto... ou vocês vão ser mandados por justa causa ou então pena máxima de trinta dias...” Eu, mais meus com-panheiros - Zé Rosa, que foi presidente aqui mais doze companheiros... nós levantamos pra pedir um aumento de salário. Eles ficaram de dar e não deram. Depois nós cismamos de parar as máquinas... para-mos a mando do chefe geral, que chamava Mário Bagno. Paramos as máquinas! Resultado: a resposta que eles deram a nós foi um aviso de trinta dias de suspensão! Entramos na Justiça, eu e mais quatro companheiros, mas perdemos. A justiça foi ao con-trário! Voltamos a trabalhar, mas passamos a maior miséria! Eu não passei tanta miséria porque minha mulher é uma senhora que, no modo de dizer, era

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um “pé-de-boi” que eu tinha! Então ela lutou comigo lado a lado! No dia que minha mulher ganhou uma garotinha - dia 4 de fevereiro nasceu minha filha - no dia 5 recebi uma suspensão de trinta dias. Nesses trinta dias minha mulher quebrou o resguardo, secou o leite, foi um desarranjo! Mas, como eu não tinha uma profissão, só trabalhava na minha casa como colchoeiro, até duas horas da madrugada... fazendo colchão pra não passar miséria, pra poder tratar dos meus cinco filhos! Então ela me ajudou a trabalhar e eu não fui ao desespero... ela me ajudou a trabalhar e eu não passei miséria! Comi lá arroz com feijão, angu, uma abóbora lá, mas comia. Mas muitos companhei-ros passaram aperto.

No golpe de 64 foi preso o Zé Rosa, presidente do sindicato, o Joaquim Ladeira, o Primo, presidente do Sindicato da Construção Civil... foi preso o Wilson Valverde, o Nanto que trabalhava no INPS, o Wilson, o Rubens Policarpo, o Pescoço... esse pessoal todo foi preso!

Prenderam aqui e levaram para Juiz de Fora, de Juiz de Fora levaram para Belo Horizonte e lá fica-ram um mês. Essa prisão foi um ato de perseguição! Uma perseguição porque não havia motivo nenhum pra... Teve “dedo duro” aí que entregou... Você sabe que pobre não tem liberdade pra falar, mas o Galba

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não era dono da cidade. O Galba não era autoridade nenhuma aqui pra poder mandar prender todo mun-do. Houve uma perseguição! Você sabe, trabalhador não pode evoluir.

Trabalhador tem que ficar na ignorância! Se le-vantar a cabeça toma bordoada e tem que abaixar a cabeça. Ele tem que passar fome calado! Se ele falar que tá passando fome, ele é agitador... ele é tudo na vida! Ele tem que ficar debaixo de chicote! Ele não pode se libertar! Ficar independente, como? Porque se o trabalhador ficar independente, amanhã eles não tem mão de obra barata. Então o trabalhador tem de viver na miséria sempre, pra poder ser escravo do poder econômico! Enquanto existir o poder econô-mico, essa luta do trabalhador contra o capital não acaba: Ele não tem pena do pobre! O negócio deles é sugar, porque quanto mais eles têm, mais eles que-rem. Então não adianta, porque nós é que somos a alavanca do país! Nós é que damos produção, mas eles não dão valor a nossa mão de obra!

Eu não pude responder você assim... na altura, porque tem muita coisa pra recordar... Porque eu re-cordo muita coisa... Conheci aquela rua ali...

Entrevistado em 2/8/1988 por João Carlos Borges Justi e Rosangela Schettini Rodrigues.

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Atendendo a um especial convite da Secretaria de Cultura de Cataguases - eu me sinto honrado com esse convite - posso dizer que Cataguases sempre soube honrar o nome de Princesa da Mata! Não só pela parte cultural, pela parte políti-ca, pela parte religiosa e pela esportiva.

Eu preciso dizer, de antemão, que Cataguases não decepcionou aos seus filhos de outrora, pois aqui militaram grandes políticos. Como o doutor Astolfo Dutra Nicácio Neto que, por seis vezes consecutivas foi o grande presidente da Câmara dos Deputados. E também o seu filho, o doutor Pedro Dutra Nicácio

J O Ã O F A B R I N O B A I Ã OE S C R I V Ã O F E D E R A L

8 0 a n o s

Foto: Bonde puxado a burro no dia da inauguração, s/a, s/d, Departamento Municipal do Patrimônio Histórico e Artístico de

Cataguases

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Neto, que seguindo as plagas de Cataguases, tam-bém demonstrou ser um grande político: amigo dos pobres, muito contribuiu para o progresso da nossa cidade. A esses dois Políticos nós devemos muito, muito mesmo. Porque deles surgiu o progresso daqui de Cataguases. Filhos e netos dos fundadores des-sa cidade - Major Joaquim Vieira e do José Resende Vieira - eles trouxeram grandes melhoramentos.

O doutor Astolfo, por exemplo, na ocasião da grande cultura de café em Cataguases. Porque nes-sa ocasião, pelo esforço que o doutor Astolfo fez, na presidência da Câmara, trazendo para Cataguases uma colônia de imigrantes italianos... E ele então, juntamente com o governador de nosso Estado, ele conseguiu uma grande área na parte da agricultura. Ali ele distribuiu quarenta e dois lotes para esses imi-grantes italianos. Cataguases, nessa ocasião abran-gia Laranjal, Miraí, Astolfo Dutra, Dona Euzébia, Santana e ltamarati, que souberam honrar nosso nome na cultura do café, se tomando Cataguases o maior município produtor de café no Brasil!

Eu quero também ressaltar que o Banco do Brasil veio pra Cataguases, sob os auspícios do doutor Astolfo Dutra Nicácio. Foi a vigésima quin-ta agência instalada em todo território nacional e a quarta em nossa Minas Gerais, depois de Três

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Corações, Uberaba e Juiz de Fora, nos primórdios de 1º de maio de 1918. Além disso, o doutor Astolfo Dutra também construiu, ajudou a construir o Hospital de Cataguases. A Ponte Metálica, que é nos-so símbolo de Cataguases, também foi construída sob auspício do grande benemérito Astolfo Dutra!

O material todo dessa ponte - eu tinha cin-co anos de idade e via, o material foi importado da Alemanha. Muitos eram daqui, sabe, mas veio gente especializada que eu não sei o nome. Os operários daqui, tudo isso, mas eu, no momento não sei te di-zer, a não ser fazendo uma pesquisa. Vi também a ponte velha, sabe, a ponte velha era toda de madeira e por ocasião dessa, eu tinha mais ou menos quatro anos de idade, via passar muitos transportes pesados. E todo mundo, às vezes, quando tava pra construir a Usina Maurício - essa eu não presenciei - mas to-do mundo às vezes falava assim: a ponte vai cair, a ponte vai cair! Porque, ali passava todo material pra construção da Usina, que foi inaugurada no dia 14 de julho de 1808.

No dia da inauguração da Força e Luz foi cantado o Hino de Cataguases. A cidade toda escu-ra, de repente, acende a luz. Então, sob a direção do maestro Pascoal Ciodaro e Dona Honorina Ventania

- esposa do senhor Olímpio Rabelo, diretora do

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“Coronel Vieira”, primeiro Grupo Escolar - ela então ensaiava o coral. Então, naquela ocasião, acende a luz, entra o Hino de Cataguases! Aquilo foi um es-petáculo!

Eu vejo contar, porque naquela ocasião eu num tinha nascido, mas deve ter sido mesmo um es-petáculo! O Hino de Cataguases foi composto pelo maestro, foi um dos maestros daqui de Cataguases, Francisco Raimundo Corrêa. A primeira banda de música que teve em Cataguases... E o Seu Rebeldino Batista, um poeta que era de Piacatuba, que mais tarde veio para Cataguases, foi jornalista... compôs o hino.

Eu só conheci da Força e Luz um grande au-tomóvel. Foi o primeiro automóvel de Cataguases, que era um Benz, sabe. Então era um carro enorme que cabia umas quatorze pessoas. Aquilo pra nós era um... era um sucesso um carro daquele! Foi o primei-ro carro, automóvel, que eu vi na minha vida! Depois, mais tarde, foram surgindo os outros, né. Isso por volta, mais ou menos, de 1915,16, sabe. Mais tam-bém, então, veio a febre do automóvel, sabe, com o carro Ford. O Ford ”Três Colheres”, que foi um su-cesso, e o primeiro carro que entrou aqui! Por incrí-vel que pareça, foi de um cunhado meu, sabe, que é pai de dona Ione das Neves Peixoto... ele chamava

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Teófilo Carvalho Fonseca... O pai dele era um gran-de fazendeiro do município de Recreio, Conceição da Boa Vista... Então vinha por aqui e... exatamente quando ele se enamorou da minha irmã Zuzinha... E posteriormente vieram outros carros bonitos. Lindos como o Buick né, e o Packard. Um dos grandes auto-mobilistas era o senhor Barãozinho é, o pai do Carlos Olinto Teixeira e Castro. Esse dava-se ao luxo de an-dar até num rolls-royce. Por aí se pode ver o poder econômico de Cataguases, desde aquela época!

Já com certa idade (fui) escrivão federal de Cataguases, substituindo meu pai que faleceu. Aqui só teve dois escrivães federais: meu pai e eu. Meu pai trabalhou durante vinte e sete anos, desde 1902 até 1929, e eu quarenta anos como escrivão. Nesse ínte-rim eu tive uma oportunidade de conhecer um gran-de homem de Cataguases, doutor Norberto Custódio Ferreira, a quem atendia prontamente na minha repartição, fazendo sua declaração de imposto de renda. Ele então comentava que Cataguases já tinha sido um grande núcleo agrícola no nosso Estado. E como as terras das nossas lavouras estavam ficando cansadas, ele e mais dois companheiros ilustres de Cataguases - o coronel João Duarte, que foi várias ve-zes presidente executivo do município de Cataguases, homem de administração possuindo grande fortu-

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na e muito talento sobre trabalho juntamente com o senador José Ribeiro Junqueira, de Leopoldina, fun-daram a Companhia Força e Luz prevendo já que Cataguases, na parte agrícola, com as terras cansadas, precisava que viesse pra cá... seriam instaladas aqui indústrias, a fim de que o município prosseguisse na sua atualização econômica.

Cataguases ainda teve a grande sorte! Em outras eras aqui aportaram pessoas que estavam exiladas pela revolução, sabe, da insurreição do na-vio Saldanha da Gama. Aqui, então, grande e ilus-tres pessoas da família Saldanha da Gama também vieram enriquecer o patrimônio cultural da nossa cidade.

Sob o ponto de vista da cultura, Cataguases sempre primou nessa parte, sabe, na parte teatral. Nós sempre tivemos essa oportunidade de presenciar grandes companhias teatrais do Rio de Janeiro, que aqui permaneciam durante uma semana e alguns dias, apresentavam vários números. Nunca repetin-do os temas teatrais! De maneira que nós tivemos essa grande oportunidade. Porque o teatro daqui era de propriedade do senhor Augusto Gonçalves da Cunha, sabe. Homem que sempre incentivou a cultu-ra de nossa cidade. Sempre promovia esses grandes espetáculos trazendo artistas de maior renome nacio-

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nal. O que nos brindou muito. E Cataguases muito lucrou com isso!

O prédio (do cineteatro) era do Coronel (João Duarte), mas ele (Augusto Cunha) era proprietário do cinema. Na mesma época que foi fundado o teatro, foi o clube - Comercial Clube - no qual meu pai foi presidente no período de 1915 a 1917, sabe. Era em cima do teatro... Eu mesmo representei e fui muito aplaudido. Inclusive o Humberto Mauro, quando eu acabei a minha apresentação numa cançoneta portu-guesa - eram dez rapazes de um lado e dez moças de outro - e eu sei que a nossa turma foi aplaudida cinco vezes voltando ao palco, sabe... E assim que eu nun-ca recebi tanto beijo de moça depois de completar a minha atuação no palco! Inclusive o grande cineasta Humberto me fez um convite: deixa estar que eu ain-da vou te fazer um grande artista cinematográfico. E já estava começando sua atuação aqui, sabe, com a Phebo Filmes.

E, de maneira que Cataguases nessa parte tam-bém desenvolveu muita cultura, sobre a parte teatral. Inclusive minha irmã Ecila, que era um verdadeiro espetáculo! Quando ela caía no palco, antes mesmo da apresentação, era palmas e mais palmas! Ela par-ticipava e, além disso, dirigia também, sabe. Ela era uma graça mesmo. Teve uma ocasião que ela veio ao

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palco também várias vezes... ela só cantarolava por-que a música não tinha letra, mas com toda graciosi-dade dela, tudo isso, sabe. Johnny Walker... E de vez em quando eu escuto essa música e me traz muita recordação.

Cataguases destacou-se não só na parte tea-tral, mas também na poética. Ah! O Antoniquinho Mendes era um grande declamador! Era aprecia-díssimo sim! E além de ser um grande declamador era um grande orador. Cataguases foi terra de gran-des oradores! Um deles foi ele... e outro foi o dou-tor Herberto Dutra Nicácio, também irmão do dou-tor Pedro. Pra mim foi um dos maiores oradores! E o doutor Sandoval Soares de Azevedo, que foi nosso promotor, professor na Escola Normal e mais tarde deputado estadual. E mais tarde ele foi até Secretário de Educação do nosso Estado.

E de maneira que Cataguases sempre foi assim alegre ativa, tudo isso! O Humberto Mauro foi na épo-ca mais ou menos de 1925... 26, e artistas todos daqui!

Posteriormente vieram outros artistas como Luiz Soroa, Carmem Santos, do Rio de Janeiro. Mas a minha irmã mesmo, a Zizete, sabe, no Brasa Dormida participou tocando piano... quem tocava eram as mãos da minha irmã Ester, sem (o público) saber. Houve um blefe aí, sabe, e ela aprecia porque... mais

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viçozinha... Ela era de uma graciosidade e muito fo-togênica! De maneira que ela participou e consta nos anais do Brasa Dormida, o nome dela. Ela é aquela que está ali naquele retrato... aquela, naquele canto... Eva Nil foi a grande aqui de Cataguases! O primeiro filme dela foi Senhorita Agora Mesmo, mais ou me-nos na época de 1925, sabe. Exatamente quando co-meçou o Grupo Verde.

Em 1917 o Flamengo foi fundado por vá-rias pessoas e o meu irmão. Aristóteles Fabrino foi um dos fundadores. Dirijo o Flamengo ininterrup-tamente... às vezes eu quero sair, mas eles não dei-xam. Nós temos muita semelhança do Flamengo de Cataguases com o Flamengo do Rio. O Flamengo teve vários campos, sabe. O primeiro foi ali embai-xo, na Vila Domingos Lopes, na época da fundação. O segundo foi na Avenida Astolfo Dutra, o terceiro foi na Vila Tereza, um terreno cedido pelo coronel Antônio Augusto de Souza. O quarto foi ali na Rua Gama Cerqueira, perto da Casa Felipe, nos terrenos de Antônio Henriques Felipe Fonseca, que também nos cedeu. Mais tarde, o Flamengo já não podia mais ficar vivendo de campos emprestados, nós então con-seguimos de definitivo um campo, com um contra-to de comodato durante noventa anos. Juntamente com outros companheiros e com o prestígio do

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Pedro Dutra Nicácio Neto, por sete vezes fui a Belo Horizonte, empenhar-me com pessoas de influência junto ao governador Bias Fortes. E dessa época em diante, então, sou sempre Flamengo, na direção do Flamengo: ora como diretor esportivo, ora como di-retor social, ora como secretário... tesoureiro... pre-sidente... Eu ocupei todos os postos, inclusive até de massagista, sabe. Já joguei também! Jogava no Flamengo também! Jogava no segundo quadro, mas de vez em quando eu participava das partidas do primeiro quadro também. Eu tenho até fotografias no arquivo.

Já fui também diretor do Clube do Remo, quando o Flamengo ocupou o Clube do Remo. Nessa ocasião o Flamengo existia... a parte terrestre e a par-te náutica. E por essa ocasião então, o presidente da seção do remo do Flamengo, teve a grata satisfação de doar ao Clube do Remo dois barcos. (As competi-ções a remos eram realizadas) no próprio Rio Pomba. Esse Clube do Remo foi fundado em 1927 pelo dou-tor Vanor Ribeiro Junqueira e outras pessoas proemi-nentes da Cidade: setenta e cinco sócios proprietários. E teve também, por essa ocasião, a visita honrosa do nosso ex-presidente do nosso Estado, doutor Antônio Carlos Ribeiro de Andrada, que transferiu o governo do Estado para Cataguases, durante sete dias.

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Eu nunca vi festa mais linda! As árvores ilu-minadas na Praça Santa Rita, na Rui Barbosa todas as árvores feericamente iluminadas! Cada árvore ilu-minada com uma cor de lâmpada, desde o topo até o tronco! E o Antônio Carlos, ao sair do banquete que lhe foi oferecido no cineteatro Recreio - naquele tem-po era o Teatro Recreio, mais tarde veio a ser cinete-atro Edgard - ele dispensou seu motorista e preferiu ir a pé até a residência do doutor Pedro Dutra, onde ele estava hospedado, para apreciar a beleza incom-parável, nunca vista nessa região toda! E isto a gente fica mesmo comovido porque durante sete dias vá-rias solenidades foram feitas. Entre elas um almoço que lhe foi oferecido no Horto Florestal. E por essa ocasião, Cataguases foi foco de grandes comentá-rios da imprensa nacional. Vieram aqui repórteres de Belo Horizonte, de São Paulo, do Rio, sabe. No clube do Remo, o presidente presenciou a primeira prova esportiva oficial. E num momento da disputa de uma das competições, ele tirou de sua corrente uma medalha e presenteou a um grande esportista. E nessa ocasião o presidente quis ressaltar que (em) Cataguases era o primeiro clube de remo do Estado de Minas Gerais.

Naquela ocasião eu estava com dezoito anos. A única participação direta que eu tive, naquela oca-

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sião, foi o recebimento de suas mãos do título de re-servista do colégio aqui de Cataguases, da Escola 123. Cataguases tinha dois Tiros de Guerra: o 241 e o 123. Ali (no 123) só quem era aluno do senhor Antônio Amaro.

O Ginásio Cataguases era internato, desde o tempo do senhor Amaro, era internato. Antes do Seu Amaro dirigia aqui o colégio - esse já não era do meu tempo - doutor Arnaldo Carneiro. Foi o primeiro, de-pois veio o senhor Antônio Amaro, um grande edu-cador! Ele primava por tudo. Dava muito apoio aos alunos... Tinha as festas sociais, esportivas... E eu tive também esse Antônio Amaro como um grande pro-fessor, não só de matemática, física, como também de moral e cívica. Aprendi coisa em moral e cívica!

Mais tarde então foi transformado nesse outro colégio. Ali era chamado a Chácara da Granjaria... não conheci mas é de origem da família Santos, de Cataguases: tradicional família de Cataguases. Tudo isso aqui na Avenida Astolfo Dutra, na Avenida Coronel Artur Cruz, na Avenida Melo Viana... Humberto Mauro, tudo isso aqui era a Granjaria. Não tinha casa nenhuma aqui, sabe. Quando eu es-tava estudando, não tinha casa aqui, tudo era brejo. Nessa área não também nada, só a sede do ginásio. E nessa ocasião também funcionava o bondinho, né.

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O bondinho funcionava puxado a burro, eu andei também no bondinho, tenho até fotografia do bondi-nho. E o bondinho ia até lá no Ginásio. Ia na Escola Normal. Chegou até ir na ponte metálica também, só até ali. E circundava a cidade... Ia na Vila, passava pelas praças, ia na Sandoval Azevedo também. E a gente distraía muito com isso.

Ah! Praça da Estação? Era muito interessante, né. Antigamente não se tinha pra... o Rio de Janeiro não tinha estrada de rodagem, né, era só estrada de ferro. Cataguases, o seguinte: o primeiro trecho de estrada de ferro não foi daqui pro Rio nem nada. Foi daqui pra Miraí, por causa da... pra puxar café, sabe. Depois, mais tarde, passou a estrada de ferro aqui li-gando ao Rio de Janeiro. E nessa ocasião passaram daqui até Ubá... O ponto passeio predileto era esse: nove horas da manhã, pessoas que vinham de Ubá que iam pro Rio de Janeiro... cinco horas da tarde pessoas que vinham do Rio e iam pra Ubá. E então (a Praça da Estação) era o passeio... o passeio comum e um atrativo!

Mas na Praça Rui Barbosa era a concentração maior. Porque ali até moças brincavam de roda. As crianças... havia jogos esportivos e jabolô. Você co-nhece jabolô? Jabolô é com dois paus com um fio amarrado em cada ponta e dois cones ligados um ao

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outro, de lata. Jogava para cima e aparava no barban-te. Aquilo era muito interessante, sabe. E tinha jogo de “cricket”, um jogo inglês também. Eu era criança e via aquelas marretada lá e a gente apreciava!

E, além disso, as bandas de música que tinham aqui eram espetaculares! De Rogério Teixeira, um componente e maestro da Lira Cataguasense, e Pierre Teotônio da Silva ao presidente, diretor e também maestro da Sete de Setembro. Então havia rivalida-de entre essas duas bandas. Uma não tocava - não podia tocar - no mesmo lugar. Uma tocava na Praça Santa Rifa, que era a Sete de Setembro. E a Lira... Tinha dois coretos... Pra você ver como Cataguases, na parte da cultura, se esmerava! O Rogério Teixeira, ele fez o Hino do Flamengo, composição do Rogério Teixeira. A primeira parte foi composta pelo Madeira Passeado, mais tarde, o meu sobrinho Edson Fabrino, vendo que só tinha as estrofes da primeira parte, completou a segunda parte. Eu vou cantar aqui pra vocês verem:

Flamengo Clube mostra o teu valor É sempre querido, quer vencido ou vencedorFlamengo Clube alegria dos rapazesÉs valoroso, vitorioso de Cataguases

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Quando há vitória vem sorrindo nos braçosSe jogamos com fervor, conquistamos com amorMais um troféu para nossa glóriaVitorioso, és tu Flamengo

Flamengo Clube legenda de uma saudadeA tua glória orgulho de uma cidadeOh meu Flamengo, voz estuante de muitas geraçõesTeu pavilhão quando oscila descontrola tantos corações!

Além disso, meu sobrinho Edson Fabrino Ramos compôs várias músicas populares. E uma de-las dedicou a Cataguases, sabe. “Meu Oásis”, a qual nós vamos escutar agora, nesse momento.

Também tinha dois clubes rivais. Eu frequenta-va o Comercial, mas também tinha outro, sabe. Esse era um palácio ali perto da prefeitura, um palácio, um palacete! Zeferino, exatamente: Palácio Zeferino. Era na Rua Major Vieira, logo assim... o primeiro prédio depois da prefeitura. O nosso era mais popu-lar, porque os viajantes faziam peão em Cataguases, e muitos desses viajantes eram diretores do Clube. Gastavam fabulosas quantias! Seu Alberto Landóes foi um dos primeiros diretores do Comercial Clube. Alberto Landóes era um fotógrafo de nome. Eu nun-ca vi um fotógrafo tão bom assim! Ele era suíço e as

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filhas dele muito animadas: Albertina e outras mais. Fazia parte aqui. O Clube tinha até a parte feminina, na qual elas faziam parte. A minha mãe foi presiden-te. E Lúcia Moreira de Resende; Joana Cardoso, da família Saldanha da Gama; Augusta Landóes; Alzira Tâmega; Ecila Fabrino Baião, minha irmã; Luiza Villas Bouçada. E tinha Guiomar Mares Guia, Adalgisa Landóes, Rosa Amélia Baião, minha tia; Leonor Ventania, Vânia Salomi Barreto... Uma diretoria mas-culina e outra feminina... Os bailes lá eram uma coisa extraordinária! Bonito e muito farto! Porque a gente tomava café com leite, chá preto, chá mate, café com biscoito... Naquele tempo os biscoitos finos Aymoré - bebida alcoólica existia nos bares, mas isso quem qui-sesse tinha que pagar - tudo era de graça! Chocolate, doces... distribuídos pra todas as pessoas dos bailes. Era assim, sabe. Pastéis, empadas... tudo isso era ofe-recido gratuitamente pela comissão feminina.

Era bonito um baile em Cataguases! Você ima-gina que os rapazes se trajavam - porque às vezes o baile era a rigor tudo de preto. E as moças tudo de rosa! Às vezes invertia, as moças de rosa e os rapa-zes de branco. E aquilo era uma coisa fora de série! E o Rogério Teixeira, um dos maestros... A gente pre-senciava ali a verdadeiros dançarinos! E tinha uma vantagem, sabe. Naquela ocasião, pra dançar não era

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muito fácil. A gente precisava esperar uma piscada de olho, uma coisa qualquer, tudo isso pra... E, por-que as moças davam muito valor a si, não é como hoje, sabe, as moças são mais entregues. A gente pra conquistar uma moça era muito difícil! E então, exis-tia uma plaqueta dizendo qual era a próxima mú-sica: fox-trot, valsa, maxixe, tudo isso. Tinha então um livreto em que os rapazes às vezes combinavam: oh, essa é minha! Aquilo já estava tudo programado. Então a gente já sabia... Não podia dançar par cons-tante, né. Mas aqueles que já tinham mais... já esta-vam comprometidos, eles respeitavam... Até quadri-lha! Eu quando criança dançava quadrilha também, sabe. Eu nasci naquele Clube!

Naquela ocasião havia essa rivalidade até no carnaval Nessa primeira etapa só gente mais granfina, sabe. Depois é que veio o carnaval de rua, das pes-soas mais simples. O senhor Emílio nem existia aqui nessa cidade. Eram os Felinianos, os Tenentes do Diabo. Depois é que veio o carnaval... o Lord Clube, o senhor Emílio com as Mimosas Camélias. Havia competição, já era de rua. Então havia uma comissão julgadora, que no Comercial Clube sempre existiu.

Eu fui visitar uma escola de samba em Juiz de Fora, a Feliz Lembrança. Ajudei muito lá a escola de samba. Eles então quiseram que eu fosse o pre-

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sidente: presidente de honra! E com isso eu trouxe a primeira escola de samba pra cá. Eu criei a esco-la de samba em Cataguases. E dessas coisas eu me envaideço, porque eu nasci assim... Nasci alegre des-de pequeno! Na parte social, na parte recreativa do carnaval, eu nunca vi uma derrota. De maneira que seguidamente o Flamengo foi campeão! Agora, no futebol... de vez em quando um vence... outro vence...

Por vários anos eu fui presidente do Clube Social, o antigo Comercial Clube, sendo que num prédio mais novo. Foi mais ou menos no período de 1871 a 1976. Fui reeleito quatro vezes! Durante o meu período eu tive ocasião de hospedar pesso-as ilustres e embaixadores ilustres. Aqui esteve em certa ocasião a embaixada - vários diretores - do Fluminense. E então eu abri as portas do Clube e, principalmente, do bar, oferecendo tudo, tudo para eles de graça! Inclusive champanhe! Mais tarde tam-bém Cataguases foi palco da Semana de Inverno e eu me descobri, como presidente do Clube, atenden-do, fazendo o mesmo que eu fiz com os diretores do Fluminense: abrindo as portas. Em vez de champa-nhe eu dava licores, porque tava frio.

Cataguases, em todos os sentidos, sempre brilhou com sua participação, sabe. Inclusive até na Grande Guerra, na Segunda Grande Guerra. Numa

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radiosa manhã de 30 de setembro de 1944, aqui aportaram redatores do Estado de Minas Gerais, à procura de dona Leonídia Belarmina da Conceição, uma humilde lavadeira, mãe do herói da Segunda Guerra Mundial: o soldado FEB número 258, José Marques Neto, apelidado de Zezé do Beco do Rio Pomba, para o recebimento das homenagens que fo-ram prestadas àquele valente e heroico soldado. O soldado José Marques Neto entrou na primeira vila capturada pelos brasileiros! Os “pracinhas” foram vinte e um. Todos eles voltaram com vida O único ferido foi esse rapaz que tinha o nome de Edmundo Vargas Fonseca, dono de um antigo bar aqui em Cataguases. A Associação dos Escoteiros foi a única entidade civil presente a uma solenidade, na qual nós ressaltamos o valor do soldado cataguasense! Eu fui o fundador do escotismo aqui; da segunda turma de escotismo, que houve uma primeira e fracassou... Os pracinhas foram esses aqui: Euzébio de Souza Paiva, Geraldo Silva, Hélio Padilha, Jairo Vieira, João Batista de Castro, João Venâncio Brito Filho, Joaquim Alves Moreira, Jorge Cortes de Barros, José Alves Moreira, José Bento dos Santos, José Bento de Souza, José Marques Neto, José Pascoal Vita, Moacir Lopes, Murilo Ribeiro Guimarães, Nelson Fialho Garcia, Edmundo Vargas Fonseca, Orozimbo Resende,

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Oslon Ribeiro, Oswaldo Fialho, Pedro de Medeiros, Sebastião Coimbra, Venceslau Antunes Werneck, Virgílio Dias Morais e Waldir Vieira Viana.

Cataguases tem essa praxe: desmanchar anti-go pra fazer o moderno. Eu mesmo, por exemplo, fui favorável à construção da nova matriz. O padre me perguntou, o bispo Dom Delfim veio me perguntar se era favorável desmanchar aquela igreja. Bom, falei assim, se é para aumentar o espaço para os crentes, se é para embelezar... Parece que Cataguases des-mancha o passado para vir o presente! Então eu sou favorável. Eu dei a minha opinião favorável Muita gente condena, mas é isso mesmo, aqui é como o poeta Ascânio Lopes falou sobre Cataguases né, no passado. Disse aquele verso tão bonito dele, que fala sobre Cataguases. Tão lindo!

Eu estou, então, por isso, pelo modernismo. Sou modernista, gosto da... agora também respeito o antigo. Como também acolhi bem as poesias do Movimento Verde, porque poetas do Movimento co-mo Ascânio Lopes, Rosário Fusco, a gente tem que tirar o chapéu! E principalmente o Rosário Fusco!

Mas como foi de praxe, já tava fazendo o colé-gio, depois o clube, e outras residências aí, do Oscar Niemeyer né. Falei assim: não, nós vamos ter que mudar o que tá sobrando agora!

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No momento são tantas as coisas que a gen-te... são certas passagens que a gente relembra com satisfação, tudo isso, e com saudade, né? Porque ago-ra eu vou encerrar minha carreira social. E quero ver se encerro também a carreira esportiva. Quero ver se alguém... precisa me substituir, porque a gente... Senão não tem continuidade a ação. Faço votos que outras pessoas façam o que eu fiz e, desprendida-mente, somente por amor à terra! Eu fui condecorado como personagem do ano na parte cultural! Isso me envaideceu muito, porque a gente faz isso por amor à terra... Cataguases é assim, sempre aberta para o mundo exterior!

Entrevistado em 26/7/1988 por João Carlos Borges Justi e Rosângela Schettini Rodrigues.

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Eu tenho alguma coisa que eu vi, que eu posso contar. Tem coisas que eu escutei de outras pessoas sabe. Pode ser que sirva para o trabalho que vocês estão fazendo...

Eu nasci em Carangola, no dia 15 de junho de 1913, mas eu vivo em Cataguases desde o dia 22 de setembro de 1920, consequentemente, há sessenta e oito anos. Vim para cá com 7 anos. Eu vim com mi-nha mãe e meus irmãos, porque meu pai faleceu em Além Paraíba, e nós viemos pra casa da minha vó pa-terna. Ela era uma pessoa que foi muito conhecida,

J O S É L U I Z S A L E S VA L EJ U I Z D E PA Z

7 6 a n o s

Foto: Plantação de mudas na Festa das Árvores na Avenida Astolfo Dutra, Alberto Landóes, 1917, Departamento Municipal do Patrimônio

Histórico e Artístico de Cataguases

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no seu tempo, na cidade, porque ela foi servente do Grupo Escolar “Coronel Vieira”. Chamava Luiza do Vale, uma pessoa assim... muito dedicada ao trabalho. E tinha muito cuidado em ajudar as professoras na educação das crianças.

Estudei no “Coronel Vieira” e recebi meu di-ploma lá. Eu tinha muita vontade de continuar estu-dando. Quando eu recebi o diploma do quarto ano, eu tive de parar. Não tive condição financeira. Minha mãe ficou viúva com três filhos, mais uma velha cega que a minha mãe trouxe consigo lá de Porto Novo... E nós não tínhamos meios financeiros pra gente estu-dar, não é? Agora, eu sempre gostei muito de ler. E ti-nha contato também com pessoas esclarecidas: literá-rios, poetas... Mas fundaram aqui em Cataguases um curso chamado Rural, que funcionava lá no Grupo Coronel Vieira. Eu frequentei ele algum tempo. Mas aconteceu uma coisa desagradável lá no Grupo, que me afetou e eu não tolerei. Eu falei: “Mas a senhora sabe que eu não participei da algazarra! A senhora quis dar exemplo comigo? Eu não tenho nada que ver com isso! Não fico não!” Fui embora. E comecei a trabalhar.

Mais tarde fundaram lá no Colégio Cataguases o curso de comércio, um tal de professor Langoni que tinha aqui, funcionário do Banco de Crédito

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Real. Funcionava de noite. Fazia um sacrifício medo-nho: eu trabalhava até as cinco e trinta, seis horas... largava o serviço depressa e ia lá perto da Praça de Esportes, eu morava lá, pegava os livros, tomava um banho e subia o morro do Colégio de carreira, porque eu tinha que chegar lá às sete horas. Então enfrentei aquele curso. Eles usavam um sistema interessante. Por exemplo: aula hoje é de português, era uma hora só de aula de português. No dia seguinte era aula de matemática, era outro professor. E contabilidade era o tal de professor Langoni. Mas havia níveis diferen-tes de conhecimento. Era uma turma de gente atra-sada danada! Eu fiquei decepcionado. Eu estou pa-gando o colégio pra perder meu tempo! Eu não podia brincar porque o negócio comigo era sério! Tive que desistir de estudar. Mas a vida ensina a gente!

Uma coisa que me ajudou muito foi a tipogra-fia de jornal. Eu ia compor um artigo... um artigo so-bre um assunto qualquer, então eu ficava conhecen-do o assunto. Você sabe o que é compor um artigo? É juntar as letras aqui. Isso aqui chamava original. Ia para a banca de tipo, ia usando uma ferramenta chamada componidor, ia tirando as letras daque-la caixinha e colocando aqui até formar numa linha dessa... Eu gosto da feição atual do Cataguases: está com uma paginação bem feita, assuntos variados...

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Se eu fosse redator ou dono de uma tipografia eu não publicaria artigos grandes. Eu gosto muito da-quela seção do Cataguases que tem aqueles pedaci-nhos... Tipógrafo de jornal eu trabalhei muitos anos. Eu trabalhei na tipografia da A Tribuna, um jornal fundado pelo senhor Luiz Soares dos Santos... Foi ta-belião aqui durante muitos anos e fundou esse jornal na campanha para a eleição do senhor Julio Prestes. O adversário dele era o senhor Getúlio Vargas, não é? Depois da eleição começou a notícia de que tinha sido ganha pelo senhor Getúlio Vargas. E o senhor Getúlio Vargas tinha sido esbulhado. Então ele, que era governador do Estado do Rio Grande do Sul, se aliou ao governador do Estado de Minas, que chama-va Antônio Carlos Ribeiro de Andrada e ao governa-dor do Estado da Paraíba, João Pessoa, e fundaram a Aliança Liberal. Essa Aliança Liberal, que sustentou a candidatura do senhor Getúlio foi evoluindo para a Revolução de 1930, que acabou levando o senhor Getúlio ao poder, pela primeira vez.

Um pouco pra cá da farmácia Santa Maria era a tipografia da A Tribuna, mais ou menos perto da farmácia Santa Maria, ali perto da Estação da Estrada de Ferro Leopoldina... O senhor Luiz Soares dos Santos foi um intelectual, um poeta. Ele me entregou um soneto, que esse eu guardei... Eu acho esse sone-

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to dele muito interessante por causa do fundo moral que existe, pela pregação do perdão:

“Eu tenho às vezes ímpetos terríveis de esmagar com as minhas mãos possantes arauto das perfídias mais incríveis aos meus ideais edificantes.

E quando eu chego a arremessar meu braço na sombra da mais justa indignação Tu me acodes a mente, oh Terezinha Quando no jardim do céu, meiga santinha E o meu furor transmite o seu perdão.”

Depois disso eu trabalhei, também, durante muitos anos na tipografia do Cataguases. E lá, na tipografia do Cataguases, o Rosário Fusco, o doutor Enrique de Resende, Antônio Mendes e outros iam lá na redação, rever os artigos deles, as trovas... E conversavam muito com a gente. Quando surgia um assunto desconhecido da gente, a gente perguntava a ele: doutor Enrique, o que é isso? O que significa isso? O doutor Enrique tinha uma boa vontade... ele perdia um tempão dando uma verdadeira aula pra gente! E aconteceu uma noite lá, uma coisa interes-sante também: um certo cidadão que tinha aqui (em Cataguases), arranjou uma briga com um cliente de-

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le. Esse cidadão era tintureiro, ele tinha o apelido de Coco... Ele foi lá no Cataguases para fazer uma pu-blicação insultando mesmo o cliente dele, por cau-sa do problema com uma calça. Então a redação do Cataguases rejeitou, não ia publicar uma coisa da-quela, não tinha condição. Então houve aquela con-versa e tal. Então o doutor Enrique fez - ele era re-pentista - uma quadrinha assim:

“Por causa de um par de calças um homem se fez louco cuidando das ditas cujas por um triz lhe parte o Coco.”

Eu já vi, vi essas coisas e, normalmente eu guar-do. Sempre li muito. E depois dos meus dezoito anos, eu me dediquei muito a estudar religião: religião ca-tólica, religião protestante e, sobretudo, o espiritismo.

A gente não tinha assim recursos para com-prar livros. Então a gente lia livros emprestados. Uma pessoa que me emprestou várias vezes foi um rapaz chamado Peterson. Ele me emprestou inclu-sive Os Miseráveis do Victor Hugo, O Corcunda de Notre Dame e outras obras. De modo que eu lia essas coisas. O livro do Alexandre Dumas, os brasileiros O Guarani, de José de Alencar, aquelas poesias do Castro Alves...

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As pessoas que eu conheci aqui e que se en-volviam com literatura... Na ocasião em que eles pu-blicaram a Verde, a revista Verde... Eu convivi com o Rosário Fusco, Antônio Mendes... Francisco Peixoto, ele era o braço forte, o financiador, porque os outros eram todos pobretões! O editor chamava-se Daniel da Silva Lopes, o homem em cuja tipografia foi feita a Verde. A tipografia dele era mais ou menos ali onde agora é aquele prédio do Valverde, perto da Estação... Conheci o Ascânio Lopes. Não conheci muito assim não, porque quando eu conheci o Ascânio ele já es-tava doente. Segundo me disseram foi tuberculo-se. Ele, inclusive, publicou nas poesias dele alguma coisa com referência à doença. Esses estudantes, que lutavam com dificuldade, geralmente eles estuda-vam em Ouro Preto, outras cidades... Alimentavam mal... Viviam a vida também. E longe da família, sem aqueles cuidados de alimentação, cometiam exces-sos de toda espécie: Eles usavam o costume de co-locar as pernas dentro de uma bacia com água fria, para não dormir, e ficavam estudando... Conheci dona Onorina Ventania mal-mal... Ela era cantora da Igreja. Foi ela quem gravou, pela primeira vez, o hino de Cataguases. Aquele: “Flor esplendente da Mata, Cataguases bem fadada...” Tipógrafo geralmente tem muito contato com os intelectuais, não é?

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Eu faço parte do movimento espírita em Cataguases, principalmente da diretoria do Centro Espírita Paz e Amor, desde criança. Eu tinha mais ou menos 18 anos quando fui pela primeira vez pre-sidente do Centro. Ele é originário de um grupo de pessoas que viveram aqui e que aceitaram a doutri-na espírita e se reuniram, se cotizaram e construíram aquele prédio da Avenida. Antes ele funcionou na ca-sa de um senhor chamado José Justiniano de Godoi, que foi dono também da Padaria Godoi, que é hoje aquela padaria ali daquela esquina, perto do Banco do Brasil. Um farmacêutico chamado Armando Drumond e outros se reuniram, se cotizaram e conse-guiram uma quantia insignificante, mas para aquela época já era uma quantia importante: seis mil réis! E conseguiram terreno na prefeitura e câmara muni-cipal. Nós temos ainda, lá, no nosso arquivo, o do-cumento de doação do terreno. (O Centro) está fun-cionando há mais de sessenta anos. Nós temos um trabalho assistencial bastante desenvolvido, mas de-ficiente por causa da exiguidade de recursos. A gente não pode fazer mais do que tem sido feito, principal-mente por falta de meios. Aquilo é uma sociedade composta de sócios, sócios quase todos eles com pou-cos recursos, que se cotizam e obtêm recursos para esse trabalho de assistência social. No momento nós

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temos uma sopa para os pobres, aos sábados, que es-tá atendendo a mais de trezentas pessoas de cada vez. Temos um trabalho de assistência à parturiente po-bre e ao recém-nascido, com distribuição de roupas, e outras coisas mais que no momento eu não estou lembrando... Nós fazemos duas campanhas por ano: a campanha do agasalho e a campanha do Natal dos pobres. Essas duas campanhas são muito bem aceitas pela população e ela sempre nos ajuda, sem proble-mas. O número de espíritas não é muito grande não. Somos poucos, somos a minoria mesmo.

Do meu tempo para cá a compreensão, a edu-cação das pessoas, o desenvolvimento, o esclareci-mento das criaturas, tornou o Centro Espírita, e seus adeptos, respeitados. Em outros tempos nós chega-mos a ter hostilidade. Hostilidade física não, mas ha-via uma prevenção, um preconceito... Agora nós não temos nada que queixar da população da cidade.

Eu tinha de recordar alguma coisa da vida de Cataguases... Em Cataguases houve uma empresa que criou e explorou uma estrada de ferro. É... estra-da de ferro que ia daqui pra Miraí. Foi construída por uma empresa cataguasense, com capital de pessoas daqui. A Estrada de Ferro Leopoldina encampou a es-tradinha que Cataguases criou para Miraí. Quem era o chefe da empresa era um francês chamado Boujois.

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Nós tivemos uma linha de bonde aqui na ci-dade. Ia lá da Vila Domingos Lopes, atravessava a ponte velha. Até bem pouco tempo os trilhos ainda existiam lá. E essa empresa também foi construída, foi montada com o capital de pessoas que viviam aqui. Parece que o senhor Joaquim Carvalho, o se-nhor Manoel Peixoto... o velho, o que começou tudo... Eu cheguei a ver um dos bondes colocado. Foi recos-tado num barracão em frente à fábrica velha... bonde puxado a burro!

O Coronel João Duarte foi dono de quase tu-do aqui em Cataguases. Foi chefe do executivo mu-nicipal... na administração dele construiu aquele ca-nal da Avenida. Ele era um homem assim... dotado de espírito empreendedor. Começou muito pobre: ele veio para Cataguases como imigrante português, para trabalhar na Estrada de Ferro Leopoldina, e ele chegou a ser um grande capitalista industrial! O Coronel João Duarte era um homem assim... que pen-sava muito nas coisas, também, que não eram pro-priamente negócios. O Cinema Recreio, um prédio interessante... aquelas colunas... Não era só negócios, fortuna. Tinha preocupação com a cidade, a cultu-ra... Ele e outras pessoas, inclusive o senhor Manoel Peixoto, pai dessa família toda, fundaram o ginásio de Cataguases. Eles eram muito idealistas. E pessoas

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muito procuradas. Tudo que tivesse que fazer aqui na cidade iam buscar recursos com eles!

Nós tínhamos um Banco de Cataguases aqui. O Banco de Cataguases ainda tem o resto dele, não é? Era ali onde está a Cobal. O Coronel João Duarte, além do Banco, ele tinha um engenho de serra, de ser-rar madeira, serrar aquelas toras, tão importantes que a Estrada de Ferro Leopoldina criou um desvio, que ia diretamente lá dentro da Serraria, naquele beco ali, entre a leiteria e aquele Supermercado Cataguases. Ele tinha máquina de beneficiar café. Havia uma quanti-dade enorme de compradores de café, aqui na cidade mesmo, ali na Estação, no prédio onde está a leiteria e a Cobal, por ali afora... Até encostava carro de boi - não tinha caminhão - então os carros de boi entravam na cidade chiando, vinham fazendo aquele barulhinho: trazendo café. Muito café! Café, arroz, milho... O açú-car, que era produzido aqui, era um açúcar chamado instantâneo, um açúcar preto, açúcar cristal veio de-pois. Então havia um movimento muito grande na es-tação da Estrada de Ferro Leopoldina. Até hoje aque-le piso da Estação está sulcado ali, dos carrinhos que vinham para carregar mercadoria. A Cidade era uma movimentação formidável! A Indústria Irmãos Peixoto, por exemplo, ele tomava conta das duas balanças do despacho de mercadorias aos sábados. Aos sábados, os

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funcionários iam pra lá... Tinha tanto despacho para fazer que a gente não conseguia fazer despacho.

A cidade... primeiro não tinha calçamento em rua nenhuma. Era um atoleiro só, pra tudo enquanto é lado! Ali, onde está o Banco do Brasil, do lado, ti-nha um açude. Do outro lado tinha uns casebres, que eram da propriedade do senhor Domingos Tostes, um farmacêutico. Naquela passagem ali, tem aquela rua que desce, não é? Ali era um atoleiro! Uma coisa medonha! Então, aos domingos, as pessoas vinham à missa e sujavam os calçados ali. Então, os meninos engraxates eu inclusive - ficavam lá no jardim da Praça Santa Rita engraxando os sapatos, limpando os sapatos daquelas pessoas, porque elas não que-riam entrar na Igreja com o pé sujo. Ali, na Avenida Astolfo Dutra, do Centro Espírita pra cá, aquilo tudo era um deserto. Tinha ali uns casebres, onde morava inclusive um cidadão chamado Pedro Mendes, que era lixeiro da cidade e trabalhava com uma carroça de burro. Ele recolhia todo o lixo da cidade com uma carroça de burro.

Usava-se plantar árvores... No dia da Árvore havia aquele agrupamento de alunos, de escolas, discursos... Ali na Avenida Astolfo Dutra tinha uma quantidade enorme de frutinha chamada framboesa. Mas uma quantidade! Então uma parte da população,

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assim, nas tardes e aos domingos, ia pra lá e ficava catando framboesa, por ali... assim...

Na esquina ali da Avenida Artur Cruz tinha o Colégio Normal. A primeira turma de professores da cidade se formou lá. Era uma casa bem... dava bem pra funcionar o Colégio Normal ali. Do lado do Colégio Cataguases, aquilo tudo era um alagado por ali afora. O córrego da Avenida não era controla-do dali pra cima não. Aquilo ali era água espalhada. Havia um açude lá... gente pescava, nadava... e o ca-minho que levava a gente... Ali tinha uma planta cha-mada Maripá, era boa para o tratamento da “espa-nhola”, e ficou com apelido de Dr. Maripá. Então as pessoas chegavam ali, tiravam folhas, outras passa-vam a tirar galho. Quando terminou a doença, a epi-demia, você só via aquele toco, sem casca, sem nada.

A cidade precisava de um hospital. Então jun-taram um grupo de pessoas aqui da cidade - gente de influência e também de bom sentimento de caridade

- se reuniram para cuidar da construção do hospital. Então construíram uma chamada comissão constru-tora. Fazia parte dela: senhor Caetano Mauro, pai do Humberto Mauro; o padre João Crisóstomo; um juiz de direito que tinha aqui chamado Kleber Toscano; o senhor Peixoto, e outros. Então eles fizeram tudo para conseguir o recurso, inclusive uma coisa cha-

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mada bando precatório, que não se usa há muitos anos, que é o seguinte: reunia um grupo de pessoas senhoras, homens, moças - aquela coisa toda, percor-riam as ruas da cidade com a bandeira brasileira se-gura pela ponta. As moças segurando pela ponta. As outras moças iam pela calçada pedindo dinheiro às pessoas e jogando dentro da bandeira. Eles fizeram leilões, leilões de gado, de prendas... E contribuições também particulares. Conseguiu o fundo para aquele primeiro prédio que houve ali. Aí ele ficou deficiente, porque também a construção não era apropriada, ti-nha escada... Havia necessidade de uma coisa moder-na, uma coisa maior.

Eu tenho o “xerox” do testamento do dou-tor Norberto Ferreira. Ele foi um dos fundadores da Companhia Força e Luz Cataguases-Leopoldina. Ele deixou para o hospital, para o orfanato Dom Silvério uma certa quantia de ações, e também para o orfanato a Fazenda da Graminha. E para o hospital a Fazenda Fumaça, muito grande, muito boa! E deixou o uso-fruto da fazenda para o administrador dela, o senhor Fernando Lobo, e na falta do senhor Fernando Lobo, a fazenda passaria a ser administrada diretamente pelo hospital. Ela pensou em tudo. Tudo, tudo! Nos empregados dele... todos eles foram beneficiados no testamento. Todos os empregados dele! O jornal

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Cataguases publicou o testamento do doutor Norberto Custódio Ferreira, no dia 28 de fevereiro de 1935.

Ah! Eu tive uma porção de profissões. Da mi-nha infância até agora eu fui uma porção de coisas. Eu trabalhei em marmoraria, trabalhei numa fábrica de colchões, trabalhei numa lenharia - atendendo telefo-ne e ajudando a encher carroça de lenha - fui tipógra-fo duas vezes, trabalhei no comércio. Fui empregado da Casa Carcacena por três vezes - saía, voltava, saía, voltava. Fui gerente da Cooperativa dos Operários, fui encarregado do posto de venda do SAPS... E antes tra-balhei também numa firma - Bonfim e Cia. - atacadista de cereais e outros artigos. De maneira, que nós tive-mos, assim, que lutar muito, não é? Eu fui funcionário público e atualmente sou juiz de paz. Pra mim todas elas tiveram muito valor porque me ajudaram a viver e criar minha família. Todas foram uma experiência muito boa!

Eu amo Cataguases! Eu gosto dessa gente e te-nho muita gratidão, muito reconhecimento por tudo quanto aconteceu comigo nessa cidade! Porque eu fui criado aqui e nunca me faltou trabalho... nunca faltou amparo. Eu sempre fui tratado com uma certa consideração.

Entrevistado em 6/7/1988 por Gláucia Siqueira e Hedileuza Valadares

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Tem muitas coisas que a gente não lembra mais, não é? Tem muita coisa que a gente es-quece... Sou portuguesa, do Conselho de Albergaria, distrito de Aveiro. Nasci em 3 de outubro de 1908. Vim com minha mãe, vim ter com uma irmã... Minha irmã morava no Rio de Janeiro. Eu perdi o pai com 4 anos. Morei em Barra do Piraí e me casei logo depois de dez meses que estava em Barra do Piraí. Vim com 15 anos, vim fazer 15 anos aqui (no Brasil)... me casei com 16 anos incompletos. Casei-me com um italia-no, que morava em Barra do Piraí, e dele eu tive dois filhos que é Hélio Antônio Caruso e Elvira Antônio Caruso Pugliesi, casados. Tenho seis netos e uma ne-ta, quatro bisnetos...

L A U R E N T I N A C A R U S OC O M E R C I A N T E

8 1 a n o s

Foto: Esquina da Rua Cel. João Duarte com Avenida Astolfo Dutra, s/a, 1932, CDH do Instituto Francisca de Souza Peixoto

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De Barra do Piraí cheguei aqui dia 10 de se-tembro de 1929. Giolito Antônio Caruso era progres-sista, adorava Cataguases! Ele não queria morrer fora de Cataguases! Ele veio a primeira vez com 8 anos. Ficou uns tempos aqui, uns tempos com o pai de-le... O pai dele vinha passar uns tempos... passava uns tempos na Itália... depois ele foi para a Itália e ficou lá até 18 anos. E voltou para o Brasil para tra-balhar com o pai dele, isso em Barra do Piraí. Ele comprou uma agência de jornal e revistas, loterias e veio morar aqui (em Cataguases). Viemos aqui nego-ciar, viver aqui. Paraíso da Sorte... vendia muita sorte grande. Sempre vendia! Nós tínhamos o privilégio parece, ter sorte de vender. O Domingos Tostes foi contemplado com cem contos. Era muito dinheiro! O Vasco Pelorace também com cem contos, o maior prêmio! Ele comprou o Paraíso da Sorte do Fenelon Barbosa. Depois, ele adoeceu e não pôde mais traba-lhar. Adoeceu do coração, ficou dezenove anos doen-te do coração. Mas ele também tinha caminhões de transporte para o Rio de Janeiro, para São Paulo, Juiz de Fora... Agora eu não me lembro o nome não... Não sei se era Transportadora Caruso... Nós também tí-nhamos um bar onde é hoje a Loja Sahione. Não sei se era Bar Caruso, não me lembro bem. Meu marido queria montar um restaurante, mas eu falei: não põe

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não, porque empregada é muito difícil! Aqui, sempre foi difícil empregada.

Agora, ele pra aqui mudou, como ele dizia mesmo. Nós fomos na Itália passear e ele esteve mui-to mal lá. E ele dizia: “Não quero morrer aqui, eu quero morrer no Brasil! E eu disse: Deus faça a sua vontade. Você vai morrer no Brasil, não morre aqui não. E ele veio morrer aqui. Morreu muito novo, morreu com 52 anos. Eu não tinha ainda 47 (anos). Já vai fazer trinta e dois anos, agora no dia 15 de agosto.

Vim pra cá em 1929, eu devia estar com 20... 21 anos. Fui muito bem recebida em Cataguases. A primeira amiga que eu tive foi dona Eponina Peixoto, depois a Dona Elisa Ribeiro, senhora Fortunato Ribeiro. Essas foram as primeiras amizades. Sempre fui bem recebida na sociedade. (A colônia portuguesa no início do século) era bem grande. Agora está redu-zida. Tinha uns quinze, por aí. Tinha o Antero Ribeiro, o Licínio Garcia, o João Garcia, Fortunato Ribeiro, o Joaquim Peixoto que é pai da Minalda Lourenço, ti-nha diversos portugueses. Tinha alguns italianos... muitos não. Tinha o João Ciodoro, tinha uns italianos que moravam numa roça, que eu nem sei o nome da roça... Eu conhecia eles de vista. Morreu muita gente antiga, da minha época: o Dr. Lobo e dona Arlete, o Manoel Peixoto, a dona Ondina, o Antero Ribeiro, a

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senhora dele, a dona Eponina. Todos os amigos mais antigos já morreram...

Havia festas portuguesas muito bonitas (no início do século). Aqui fechavam o comércio dia 5 de outubro em homenagem aos portugueses. O motivo, eu não sei não. E havia também bailes muitos bonitos, a rigor. Muito bonitas as festas aqui, muito selecio-nadas. Frequentei muitos bailes, dancei... Era lá em cima do Cinema Recreio. Ali se chamava Comercial, onde é hoje o Edgar. Ali se dançava a alta sociedade! Tinha bailes nas casas, eu não frequentava, mas na casa do senhor Manoel Peixoto havia bailes.

A minha primeira residência foi aqui perto da Padaria Cabral, aquela descida para a Rua do Pomba. A segunda foi aqui onde é a Real. A terceira foi aqui e eu já estou aqui há a uns cinqüenta anos. Graças a Deus nunca me faltou nada. Sempre me achei muito bem de saúde e de finanças. Já tinha as casas que tem hoje. Só foi feito o Banco Nacional novo e a Caixa Econômica EstaduaI. E tínhamos o Banco do Brasil que era em frente à Caixa Econômica Federal. Era ali o Banco do Brasil, onde é o SL (restaurante). A cida-de... a gente aqui não encontrava nada. Não havia uma quitanda! Não tinha uma fruta, uma pêra, uma maçã, uma verdura, uma cenoura, não tinha nada! Apenas tinha uns portugueses, que trabalhavam na

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Granjaria, então eles vendiam lá repolho, uma cou-ve... Mas se você queria qualquer coisa para variar, não tinha. Não tinha cenoura! Não tinha alface! Não tinha nada! Estranhei muito aqui, por causa disso, no começo. Tanto que eu queria ir embora. Chorava pa-ra ir embora!

Agora nós temos tudo aqui. Não foi mui-to rápido não. Pelos anos que eu estou aqui em Cataguases, né? A Granjaria não era habitável. Ali no Bairro Haidee Fajardo também não era habitável tudo só morros, não tinha residências. Na Granjaria, ali na Rua Melo Viana não tinha casa nenhuma. Só tinha de um lado, do outro lado era brejo. Hoje é ha-bitável. Nós temos (hoje) aqui boas residênclas, feitas pelo Oscar Niemeyer. Tínhamos o painel Tiradentes (Cândido Portinan) no Colégio, que foi vendido pa-ra São Paulo... Eu acho que tinha muitas casas. Aqui nesta rua (Coronel João Duarte) todas as casas são as mesmas. Umas são reformadas. Foi o Banco Nacional que veio, o Crédito Real, o BEMGE... Agora nós te-mos a Caixa Econômica Federal Naquele tempo não, nem existia a Estadual!

Quando eu vim pra cá não tínhamos hospi-tal. Tinha um hospital velho, de indigentes onde é hoje a Casa de Saúde. Quem fez o hospital novo foi o Emanuel Peixoto. A Casa de Saúde foi o tio de-

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le, o José Inácio Peixoto. No hospital velho só tinha três quartos particulares muito ruinzinhos, precá-rios... Quem fundou o velho hospital foi o doutor Norberto... Tive duas cirurgias urgentes. Aqui tinha bons médicos.

Tínhamos os políticos antigos: Artur Cruz, Manoel Peixoto e Pedro Dutra. O Joaquim Cruz foi prefeito e o João Peixoto foi prefeito duas ou tres ve-zes. O senhor Manoel Peixoto foi deputado federal. A política era muito quente. Eles brigavam muito, era feia a briga!

Nós éramos do lado dos Peixotos... simpatia por eles... Coisas desagradáveis houve, no tempo da guerra na Europa, que o Brasil também... os brasilei-ros foram para a Europa... Eles apedrejavam as casas dos estrangeiros, de italianos. Era molecada encabe-çada pelo Paulo Sucasas e outros... As pessoas mes-mo de juizo não fizeram nada não! Jogavam pedras, arrombavam a porta... chamavam de quinta coluna.. Mesmo a casa de alguns brasileiros, porque eles ves-tiam camisas verdes, os integralistas... Atacaram o Banco de Crédito Real, porque o José Maria Manso, que era diretor do Banco, era integralista. O povo mesmo é que atacava nossas casas. Teve aí algumas casas bem estragadas... portas de aço estragadas... Atacaram a casa do José Gallo, que já é morto, amas-

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saram as portas todas dele, aqui embaixo, onde hoje é o Plínio Guilherme. Não houve mortos, mas hou-ve prisões. Achavam que eles eram quinta coluna, considerada o inimigo do Brasil. Não tinha nada de quinta coluna! Os estrangeiros deviam ser considera-dos inimigos... Nós saímos de casa. Eu deixei a casa. Fui para a casa de Antero Ribeiro, ele veio me buscar. Mas felizmente, depois tudo se apaziguou, acabou a guerra, acabou tudo. Eles só fizeram uns ataques só quando arrebentou a guerra, à noite, depois, quando acabou a guerra também a polícia se preparou, por causa das manifestações. Só por ser italiano eles ata-cavam. Era uma inimizade gratuita.

Lembro de certas famíllas antigas. A dona Nenem Silveira vai fazer 100 anos, dia 25 de janei-ro (1989). Conheci a dona Catarina... O coronel João Duarte não cheguei a conhecer. Dona Catarina era italiana... A chácara de Dona Catarina parece que agora vai ser transformada em biblioteca... museu... A família Peixoto toda é minha amiga. Hoje já morreu a dona Ondina, o senhor Manuel, o João... Conheci o Humberto Mauro. Ele foi o pioneiro do cinema, não é? Mas foi ele o pioneiro e o Homero Cortes. Que eu me lembre era o Homero Cortes Vieira e parece que também o Agenor de Barros. Acho que era o Agenor de Barros. E, Pedro Comello, que a Eva fazia parte,

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não é? De artista... Ela (Eva Comello/Eva Nil) foi ar-tista de cinema.

Fábricas... tinha a Irmãos Peixoto. Foi o pio-neiro Manuel Peixoto, português. Depois morreu, em 12 de outubro, ficaram os filhos dele. Agora não tem mais os filhos que morreram e ficaram os ne-tos. Depois da Fábrica Irmãos Peixoto se construiu a Industrial, onde eu sou acionista de fundação. E de-pois a Manufatora. Depois a Fábrica de Papel, onde também sou acionista. A Fábrica de Papel andou pra trás, foi para os Matarazzo. Aqui em casa nós tínha-mos cinco ou seis acionistas e até hoje a gente não tem nada, não sabe nada daquilo, nada! Se tem ren-dimento, se não tem... Está tudo parado. Eles não dão satisfação de nada!

Nunca trabalhei fora. Eu ajudava na loja. Não passava nem lavava. Sempre tive lavadeira e passa-deira, até hoje eu tenho. Não gosto de lavar roupa em casa não. A minha roupa tem lavadeira. Quando ele morreu, eu fiquei muito abalada. Aí comecei a vender uns bordados, até abri uma loja aqui. Depois achei que não valia a pena trabalhar, parei.

Voltei a Portugal, em 1952. Eu, minha filha e meu marido ficamos lá seis meses. Estava diferente, melhor. Dizem que hoje está melhor ainda! Ainda tenho uma sobrinha, umas primas, primas diretas...

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Se eu pudesse voltar lá, eu ia, mas eu acho que não estou em condições de viajar, eu não ando de avião...

Eu já me habituei aqui, melhoraram muito em estradas! Não tinha estradas para o Rio, hoje temos a Rio-Babia. A gente levavá o dia inteiro para viajar para o Rio... (estrada) de chão, tinha muita pedra na estrada. As pessoas enjoavam... demorava muito. Era muito longe! Eu tinha um ford naquela época. Ia passear em Petrópolis, almoçava em Petrópolis e voltava... A estrada de ferro tinha muita freqüência, os trens andavam sempre cheios... fui daqui ao Rio... Lembro (quando surgiu a primeira linha de ônibus). Foi o senhor Miguel Guercio, de Astolfo Dutra para Cataguases, e dentro da cidade foi o João Ciodaro... Carros de praça, por exemplo, só tinha quatro. O ponto era lá perto da Estação, em frente à farmácia Santa Maria. Era o João Luiz, era o Ivo, o Geninho... A farmácia Santa Maria é das mais antigas... Quando eu cheguei aqui tinha A Brasileira, era de portugueses: Antero Ribeiro, João Garcia, Licínio Garcia, nesta Rua Coronel João Duarte mesmo. Vendia tecido, tudo! As lojas de época eram grandes, como a Casa Felipe, do Licínio com os sócios antigos: era o Jovelino Santos, o Raul Pessoa, o Antônio Henrique Felipe. A Casa Felipe é muito antiga. A Nacional era aqui logo em-baixo, na esquina da Asfolfo Dutra, depois passou

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para cá (Praça Rui Barbosa). A Carcacena era uma casa muito grande... o senhor Homero Cortes e o Jarbas, os donos. Fiquei com pena da derrubada da Carcacena. Fiquei triste... Quando eu passo ali me dá uma tristeza... A matriz antiga eu conheci. Muito bo-nita! Foi pena ter sido derrubada. Na minha opinião, ela devia ficar como estava e só ser consertada. E hoje fizeram essa igreja! Eu não gosto dela não, acho mui-to rústica!

Entrevistada em 12/08/1988 por Gláucia Siqueira e Hedileuza Maria de Oliveira Valadares.

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Nasci em 31 de julho de 1914. Estou com 73 anos, já beirando os 74 anos. Nasci em Cataguases, na Vila Domingos Lopes. Sou filho de Inácio das Neves Peixoto e Francisca de Souza Peixoto, na ocasião. Depois minha mãe casou-se no-vamente e se transformou em Francisca de Souza Ribeiro. Eu não tenho irmãos do primeiro matri-mônio, só tenho irmãos do segundo matrimônio. Eu tinha três anos quando meu pai morreu e nes-sas alturas dos acontecimentos já morava na Rua Monsenhor... acho que é Monsenhor Horta, não sei bem. Hoje é a Rua Manoel da Silva Rama. Quando

M A N O E L D A S N E V E S P E I X O T O

A D V O G A D O E P R O F E S S O R

7 4 a n o s

Foto: Antigo Ginásio de Cataguases onde hoje é o Colégio Cataguases, s/a, s/d, Departamento Municipal do Patrimônio Histórico e Artístico

de Cataguases

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meu pai morreu, a irmã mais velha, Dedé, a mulher do senhor Rama, nos levou, a mim e a minha mãe pa-ra a sua casa, um solar, praticamente defronte. E ali passei uma parte razoável da minha infância ao lado de Francisco. Daí essa aproximação muito grande, de irmão, minha com o Francisco.

Alguém já disse que eu tomei parte da Verde. Não, a Verde foi um pouco anterior à minha pessoa. Eu era um menino quando a Verde funcionou em Cataguases. Eu conheci o elemento exponencial da Verde que foi o Francisco, a quem Cataguases muito deve pelo que ele realizou. Não só pelo que ele escre-veu, mas como principalmente pelo exemplo que ele deu, pela dedicação sua e por ter construído este mo-numento em Cataguases que é o Colégio; por ter tra-zido aqui para Cataguases a tela de Portinari... enfim, por ter sido o iniciador de um, movimento, uma re-forma muito grande em Cataguases! Principalmente este aspecto de construir, esta procura ansiosa do bom gosto! Mas quanto ao demais não fiz parte de movimento algum. Eu fui um assistente desses movimentos. Foi uma grande aventura ser compa-nheiro de Francisco: uma criatura enorme, a quem Cataguases muito deve.

Conheci o Enrique de Resende muito! O Enrique foi uma espécie de mentor desse Grupo

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Verde. Mais velho do que os outros - Francisco, Rosário Fusco! O Enrique era uma espécie de men-tor. O mínimo que ele fez foi encorajar essa menina-da que estava começando. A ponto de um deles, es-se Rosário Fusco, dirigir ao memorável Américo de Almeida - José Américo de Almeida - ”mande essas publicações, seu burro!” - Queria aparecer de qual-quer maneira!

O restante da minha infância e a minha ado-lescência foram passados em Juiz de Fora e depois em Belo Horizonte, para onde eu fui com 16 anos de idade, como estudante de Direito. Pelos 7 ou 8 anos, quando minha mãe se casou outra vez, eu fui para Juiz de Fora e lá fiz o meu curso de ginásio, no Instituto Bicalho. Comecei aqui, na Dona Lucila Taveira, o pré-primário. Curso primário realmente eu fui fazer em Juiz de Fora.

Em 1931 eu me formei e passei a bacharel em Ciências Políticas e Sociais em 1935. Logo me nomearam, pela generosidade do então deputado Manoel Peixoto - Manoel Inácio Peixoto - promotor de justiça de Estrela do Sul, Triângulo Mineiro, on-de passei uma longa temporada. Depois eu vim pa-ra Cataguases... passei alguns meses. Nesse ínterim eu recebi um convite para ir para Goiás... lá fiquei dois ou três anos. Advoguei em Inhumas. Depois

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de Inhumas voltei outra vez para Cataguases, sem me desprender completamente da cidade. Daqui, de Cataguases, eu retomei e recebi um convite para per-manecer em Goiânia. Eu fiquei muito satisfeito por-que o Pedro Ludovico, fundador de Goiânia, me ar-ranjou logo um lugar de professor na Faculdade de Direito de lá. Gostei imensamente de Goiás! Gostei também de Inhumas, gostei de Goiânia... quando eu comecei a receber umas sugestões do Francisco, uma vaga ideia da criação, aqui, de um colégio... E aquilo foi me machucando... o ensejo de ser um lugar tenente dele também, por que não? Ficar em Cataguases, perto de quem sempre quis bem, perto de minha mãe, já novamente viúva... viúva pela se-gunda vez. E as coisas aconteceram realmente assim: vim para Cataguases me parece que foi em 39... 40. Já em (19) 41 começando a aventura colegial!

Começamos antes, no velho colégio, no colé-gio do senhor Amaro, no ginásio do senhor Amaro... no mesmo local. Era uma casa solarenga. Era uma casa assim... neste estilão mineiro. Mineiro não é muito de construir casas altas, não. Mineiro é de construir casas simples para que haja possibilidade de aglutinações sempre térreas para os filhos e os netos! Mineiro é muito disso, de espichar no sentido da horizontalidade, não é verdade?! (Alturas) minei-

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ro tem pavor disso! Mineiro vai se esparramando na horizontal.

O primeiro nome a ser lembrado como diretor é Gastão de Almeida, Francisco sempre falava nele. Eu não sei, talvez por um receio de se deslocar de Rio Branco... Na verdade é que ele não quis vir. E o Francisco, naquela emergência, começou a conversar comigo e acabei topando a ideia. E aí começou a doce aventura do Colégio de Cataguases como diretor. E lá permaneci uma temporada! Depois fui chegando à exaustão. Cansei!

Modéstia à parte, eu fui um diretor muito fre-quente! Eu não saía. Naquele tempo eu não tinha carro. Aliás, eu sou um animal estranho, eu não sei dirigir até hoje! De modo que eu ficava lá no alto da Granjaria de sábado a sábado, de domingo a domin-go. Eu não saía. Era raro eu ir à cidade. Aquela agonia de que algum aluno pudesse não chegar... se houvesse um problema... o internato sempre com muita gente, geralmente mais heterogênea, prevalecendo sempre, é claro, a classe A, a classe A no sentido financeiro. Nós tivemos alunos da Argentina, de Rosário. Inclusive gente do Paraguai. Da Argentina ficou por pouco tempo, uns seis meses ou um ano... não sei se estou certo. O “Paraguai” ficou os três anos do Científico... Chico Buarque... Carlos Imperial... de maior evidên-

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cia são esses dois, mas não posso me esquecer do Paulo Matoso, vivíssimo em minha lembrança! Ele e Luizinho, irmão dele, são pessoas que não me saem nunca da minha lembrança... Geraldo Linhares... que hoje está aposentado em uma fazenda...

Eu me lembro que entrando dezembro, parece que de 40 para cá, agora não me recordo bem a data, estava eu no prédio velho quando chegaram várias criaturas para um entendimento comigo: eles iam de-molir o prédio tão logo eu lhes desse condições.

- Tá certo. Já que a coisa é para começar, podem vir amanhã.

Tomei todas as providências. Já estava de fé-rias, muitos alunos já tinham ido... esvaziei tudo e demoliram! Aí falei: e agora José?! Como é que vai ser depois dessa coisa toda! E se isso não ficar pron-to, pelo menos em condições de funcionar, nós es-tabeleceremos um hiato! Como é que iremos fazer? Trabalhou-se a todo vapor, com as caldeiras funcio-nando! Na ocasião da matrícula para o próximo ano, eu já estava num local, ainda no prédio velho, num pequeno local que ficou, e com o prédio novo vindo com toda a força! O prédio começou perto da minha casa, da casa do diretor. Ali era o salão dos...

Hoje são salas de aula. Tinha uma parede lá. Quando começou, uma parte era um salão. De modo

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que nós funcionamos de uma maneira muito precá-ria no primeiro ano. Entre vigas, barrotes, nós dáva-mos aulas em algumas salas já prontas e em salas... naquelas salas laterais que transformaram depois em biblioteca.

O (projeto) é de Oscar Niemeyer, (ideia) do Francisco, inegavelmente! Foi por isso que eu disse a você que Cataguases deve a Francisco. Não tanto por aquilo que ele fez como instrutor, mas princi-palmente por esta visão, bom gosto! Ele entregou a um nome nacional! O Oscar Niemeyer esteve (aqui) uma vez, como também esteve o grande Portinari! Ele veio de certa feita, logo que ficou pronto, ele olhou aqui. O painel (Tiradentes, hoje no Memorial da América Latina, em São Paulo) foi colocado um pouco mais tarde, evidentemente. Quando o paredão ficou pronto, eu estava na secretaria quando chegou uma criatura trazendo dois ou três cilindros. Pediu licença... O colégio já estava avançando, já tinha qua-se acabamento... Me pediu licença e partiu pro pau... e começou: paf, paf... Oh! Meu Deus! Esse cara vai arrebentar tudo isso! Nada disso, ele já estava acos-tumado a fazer essas coisas! E explodiu no novo colé-gio o Mural! A verdade é a seguinte: muitas pessoas vinham a Cataguases exclusivamente para ver o mu-ral! E o mural virou... ah! Virou uma atração extraor-

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dinária! Cataguases adquire uma dimensão incrível com o mural! O Colégio depois teve uma propagan-da muito interessante, muito bem feita na revista

“Cruzeiro”. Fizeram uma propaganda muito interes-sante, vários alunos no primeiro plano...(O Colégio) era muito revolucionário para a época. De linhas au-daciosas. Tinha praça de esportes: a praça de espor-tes tinha campo de basquete, campo de vôlei, futebol, tênis, piscina. Era uma coisa singular em termos de estabelecimento de ensino! Um corpo docente muito esforçado, muito ativo! Eu não tenho a menor queixa desse corpo docente. De modo que tudo isso fez com que nós, daquela época, vivêssemos um grande perí-odo, que foi o período do Colégio Cataguases!

Nós devemos bastante ao professor Gradim, ao professor Gonzaga - o Luiz Gonzaga da Fonseca - foi uma pessoa importante também na estrutura do Colégio. (O Grêmio teve uma atuação de) muito destaque!

A praça de esportes, evidentemente... com Lyses Brandão, nas suas matemáticas, onde ele era tremendamente temido pelas notas muito racionadas que dava! E havia o português, o latim do Gradim... o português e o latim do Gonzaga e depois o professor Avelar, uma criatura assim muito lembrada também neste Colégio - Avelar Alves Maia - sem esquecer o

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Amaro, elemento inicial. O Colégio foi adquirido de-le... o local, o prédio velho... E ele continuou como professor. O Cardoso, sempre brincalhão, sempre ir-reverente, foi nosso professor também. E muito bom professor! Muito alegre! Muito alegre, sempre com uma piada!

(E havia) “O Estudante”... e outros jornais que saíam paralelamente ao Estudante. Inclusive era uma impressão rudimentar, muito rudimentar, no próprio Colégio. Era interessante. O Colégio tinha padaria, o Colégio tinha gabinete dentário, o Colégio tinha bar-bearia, tinha apiário. Acontece que, ao contrário do que muita gente pensa, o Colégio, para que ele ficas-se em equilíbrio (financeiro) era um esforço muito grande. Gastava-se muito. Não era de boa rentabili-dade. Até hoje colégio não é de grande rentabilidade. Há coisa melhor que um colégio... a taxa de custeio é maior do que a rentabilidade do colégio, principal-mente se o ponto de referência for tão próximo como Cataguases. Não vai comparar a rentabilidade de um colégio com a Industrial. (A família) tinha interesses nas fábricas, naturalmente. E o Francisco percebendo essas coisas ele acabou... o Colégio foi dado... dado... entregue ao Estado. Ele falou: “Faz favor, toma conta disso”. Tudo foi entregue ao Estado. E nessa oportu-nidade ficou o filho do Francisco como diretor. Ele já

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era (diretor), continuou como diretor do Estado, li-gado agora ao Estado. E eu como... como professor. De um modo geral os professores continuaram. Não houve trauma nesse aspecto. O único trauma foi no aspecto comercial ligado à cidade. Porque aqueles alunos internos, uns duzentos rapazolas, filhos de papai rico, deixavam aqui, mensalmente, nos bares, nas festas... enfim na rotina de Cataguases, deixavam muito dinheiro! Então Cataguases perdeu um pouco dessa explosão provocada pelo aluno de fora: duzen-tos alunos deixaram de vir para Cataguases e, con-sequentemente, deixaram de gastar em Cataguases. Alunos que tinham mesadas assim que assustavam o “mineirão”: cem mil réis... cem cruzeiros... Eu acha-va aquilo uma quantia! Eu me lembro muito... o Zé Juber era aluno interno. (Ele é) de... encostado aqui... Astolfo Dutra. Zé Juber chegava, era cinco mil réis, dez mil réis... e se aventurasse a pedir mais...

A cidade adquiriu uma certa notoriedade gra-ças a esse Colégio. E claro que há elementos negati-vos. Agora, no conjunto, na soma geral, é um fator in-teressantíssimo para Cataguases! Interessantíssimo! Cataguases procurou atender a esses alunos de Rio e São Paulo, do Nordeste, de Manaus... Tinha rapazes com apelido de “Amazonas”. Veio gente até de Bagé, gente do Rio Grande do Sul. O Colégio atraía! É cla-

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ro que decepcionava alguns, mas de um modo geral era um ponto de atração. Apesar dos aspectos nega-tivos, o internato foi interessante porque de qualquer maneira era um elemento que permaneceu... De mo-do que era com mais facilidade... plasmava criatu-ras assim... Certa habilidade como Luis Gonzaga da Fonseca, e antes o Gradim e também, por que não, o Avelar. Começaram a lidar com esses alunos dentro do Grêmio Literário Machado de Assis. E também, modéstia a parte, eu. De modo que nós realizávamos assim... uma operação com mais facilidade do que se tratasse de um elemento externo, um elemento de maior mobilidade. No internato nós tínhamos faci-lidade de opção: ora em sala de aula, ora em salão de estudo, que tinha o nome curioso, no início quan-do chegamos aqui de (salão) de repouso. Lá não era lugar de repouso, era lugar de estudo. Então muda-mos o nome de sala de repouso para salão de estu-do. Enfim, nós víamos, sentíamos, plasmávamos e, consequentemente, realizávamos uma operação mais profunda. Daí um número muito grande de jornai-zinhos de sala de aula, de revistas, tudo de maneira assim... de porte pequeno, mas de qualquer maneira eram manifestações de criatividade. O aluno escre-via e nisso nós contávamos com o auxílio do Gradim, como remanescente do prédio antigo, que permane-

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ce até hoje lá. Aquela sala literária no quintal... são lembranças do prédio antigo, daquelas acomodações antigas. Ah! O Gradim... a sala dele era disputada. O aluno queria opinião sobre este ou aquele adjetivo, esta ou aquela frase, como ele devia fazer... como de-via se portar na tribuna do Grêmio... Tudo isso era uma festa e de qualquer maneira era uma espécie de trabalho, um delicioso trabalho de artesanato em re-lação ao aluno.

Eu era constantemente bombardeado por mo-ças pedindo: “Dr. Manoel deixa os alunos internos virem aos bailes, às festas”... Se eu deixasse, toda semana isso aqui virava um “seio de Abraão”... “Eu lamento, eu não posso, compreende”... Eu dava um não, mas sem procurar machucar. É o meu velho fei-tio. “Eu não posso fazer isso, minha filha”. Isso aqui é um estabelecimento de ensino... Ele tem que vir à au-la amanhã cedo... Como é que ele vai assistir aula, se ele chegar aqui às seis horas... sete horas vai enfrentar o Gradim, o Lyses!?! Mas eu era constantemente as-sediado. Essas festinhas, todo mundo sabia! Tanto é por sugestão das alunas externas os pais pediam que eu deixasse. Isso significa que eles começaram a exer-cer uma função interessante em Cataguases. Essas maiores festas geralmente eram aos sábados, porque eles ficavam mais tempo, os maiores. Eles podiam

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ficar até dez e trinta... E quando havia muita insis-tência até onze horas. No sábado para domingo, por-que domingo tinha o horário mais parado. Podiam permanecer até mais tarde, não é verdade? Podiam dormir um pouco mais porque não havia problemas de sala de aula.

As suas normas, as suas maneiras de ser co-mo... Eles acordavam às seis horas e iam dormir às nove horas da noite. Às oito e trinta terminavam os estudos: das seis às oito e trinta... às oito e quarenta e cinco batia o sino. Eles vinham, desciam a rampa e iam tomar café. Depois subiam outra vez e iam... Eu me recordo que havia dois horários à noite. O primei-ro horário era para tomar café, depois eles iam para o salão de estudo. O segundo horário é que eles su-biam, iam para o último andar. No último andar era o dormitório. Se você se colocar diante do colégio, do lado direito, aquele que está perto da casa do dire-tor, era o dormitório dos menores. E aquela sala, pe-quena sala, que hoje também transformaram em sa-la de aula, me parece, assim onde foi a secretaria do Normal... Aquelas salas ali eram apartamentos: onze apartamentos, muito engraçadinhos, inicialmente destinados aos alunos do terceiro científico. Depois alunos do segundo e terceiro e, finalmente, do pri-meiro ano também tiveram acesso, desde que hou-

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vesse vaga. Mas eu dava um jeitinho... todo mundo queria saber do apartamento. Eram quatro alunos em cada, quatro alunos... era uma delícia para eles, não é? Podiam estudar além do horário previsto.

(As saídas eram condicionadas ao) comporta-mento e notas. Eu não me recordo qual era a nota mí-nima. Acho que a nota mínima era 5, 4 não me lem-bro... Sinal vermelho é menos de 4 ou 5. Parece que era 4. Uma nota 5 com o Lyses era uma festa! Lyses e Gradim. O comportamento então... se o aluno não tivesse um bom comportamento... E nós nunca fize-mos pressão. Se o aluno tivesse um problemazinho

– não era muito comum – empurrava, para não entrar em desentendimento com os pais.

Sou cruzeirense, sou vascaíno... em Cataguases é o “Operal”. Tinha até uma boa: “o Operal, campeão local”. Gosto imensamente! Outra coisa deve-se mui-to ao Robertão. Cataguases deve muito ao Robertão, como deve ao Pérsio. O Pérsio é do Operário, o Robertão é do Flamenguinho. Eu gostava à dis-tância, eu não ia ao futebol, não assistia não. Eu ia quando o Colégio jogava: Colégio contra o Operário, Colégio contra o Flamenguinho. Tínhamos grandes times! O Colégio teve grandes times de futebol, de vôlei, de basquete. O vôlei tinha o Poca, filho do Gastão de Almeida, extraordinário para jogar vôlei

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e futebol também! (O Colégio) corria essas cidades todas: time de alunos, que se transformavam em ex-alunos. Alunos de São João, de São Lourenço, perto de São Lourenço, de Caxambu. O colégio foi parar lá no Sul de Minas. O Colégio foi a Juiz de Fora jogar com o Esporte, competir natação... Ubá, Leopoldina também... O Colégio andou muito! O aluno interno gostava, porque havia sempre muita movimentação. O interno... o externo tinha a cidade como entreteni-mento. Andavam à vontade pela cidade, mas o inter-no, que era normalmente preso, ele ia acompanhar o Colégio como torcedor.

Mais tarde abandonei a direção e me transfor-mei em professor de História, porque eu sempre gos-tei de História! Gostei muito de História e Geografia... tive amor a primeira vista. Gostava muito de ler so-bre a vida de Napoleão, vida de César... Estava meio saturado de ser diretor. Diretor durante tanto tem-po... agora se eu for reprovado (para ser professor)... fiquei apavorado! Mas correu tudo bem. Eu fiz uma ótima... uma boa prova escrita. E não fiquei apavora-do com a cadeira no Colégio Cataguasense: eu pro-fessor de História; Cardoso, professor de Geografia e o Lyses, professor de Matemática.

Depois eu advoguei. Advoguei bastante tem-po... causas civis... civis e trabalhistas. Jamais causas

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comerciais! Criminais, por incrível que pareça eu não gostava muito... Véspera de júri eu me empolgava. O que fazia sofrer era o processo... na hora do júri eu gostava!

E andei escrevendo umas crônicas neste tem-po todo... publicava no Cataguases. Cheguei a pu-blicar também em outro jornal, a pedido do Tarcísio (Henriques). Eu não me recordo qual o jornal, mas publiquei em outro jornal. Aqui em Cataguases tinha um outro jornal. Jornal de vida curta... mas cheguei a publicar. Inclusive eu me lembro que... nitidamente ter publicado uma crônica com o professor Adir. O título é “Mãos, mãos... as mãos do Adir”. Adir é uma pessoa mágica! Adir é uma pessoa que fazia exposi-ção sobre contato com os alunos. Trabalho de... pa-lha de milho, ou então de madeira, artesanato. Adir Pereira de Resende: extraordinário ele! Para ganhar dinheiro a função de advogado é bem melhor, mas inegavelmente a função de professor foi bem mais gratificante. Ela ilumina a gente!

Entrevistado em 13/6/1988 por Gláucia Siqueira e Hedileuza Maria de Oliveira Valadares.

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Eu agradeço vocês essa distinção... Eu me sinto honrado... Meus pais eram Vitório Fernandes da Paixão e Filomena da Paixão, que eram meus avós que me criaram. Minha mãe mesmo era Maria Augusta da Paixão, entendeu? Meu pai não foi registrado como pai... Meu avô foi o primeiro mora-dor ali, no chamado Largo do Rosário, hoje Alfredo Barroso, que tem aquela chácara lá, quando eu fun-dei o Rancho Alegre. Eu e minha geração do centená-rio de Cataguases.

Papai (o avô que me criou) sempre foi assim uma pessoa pobre, independente. Ele gostava mui-

M Á R I O D A P A I X Ã OF U N C I O N Á R I O P Ú B L I C O F E D E R A L

7 4 a n o s

Foto: Hotel Cataguases, s/a, reprodução de Archicteture D’Aujourdhui, 1952

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to... soltava foguete, pescava... Ele tinha uma chácara e vivia daquilo. Mas nunca foi empregado. A única coisa que meu pai fez de importante foi, que na épo-ca da febre amarela, esse meu avô - ali onde é a fábri-ca de papel tem uma chácara, uma casa grande que hoje ainda existe lá, tipo uma fazendinha - ali que levava o pessoal doente, contaminado. E ia jogando lá. E ele foi a única pessoa que teve coragem de cui-dar daqueles doentes, na época de febre amarela. Foi em 1918, que eles falam... Eu não me lembro não. Isso não é do meu tempo, que eu nasci em 1915.

A minha infância foi toda aqui. Eu estudei a primeira vez foi na Escola Metodista. Era esco-la mesmo, onde é essa aí na Avenida Astolfo Dutra. Ela começou primeiro numa casinha encostada na cadeia. Ali foi a primeira escola da Igreja Metodista. Depois fez aquela nova e nós fomos transferidos para lá. Estudei lá dois anos e depois saí. Minha profes-sora foi Lili Sucasas. A minha mãe era lavadeira do Sucasas, que era diretor da Igreja Metodista e tinha uma padaria aqui na Praça Rui Barbosa, onde é a Nacional, o maior prédio que tinha na época. Depois fui pro Grupo Escolar, quando dona Clélia Dutra era diretora e Zé do Grupo contínuo. Aliás, fui o pior aluno que teve no grupo! Fui expulso no terceiro ano! O Alberto Bittencourt era o mais brigão... O Ciro

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Pacheco também da minha época; João Magalhães, os filhos do Onofre Bonfim... Depois não estudei mais.

Aí fui engraxate, aqui onde é o Grande Hotel. Depois de engraxate tornei rapazinho e tal... e quinze anos... Eu fiz, então, acompanhado do Zeferino Vilela, do Balduíno Silva - como eu nadava muito bem, eu era um menino que nadava muito - fizemos um raio de Cataguases a Campos. Nós íamos de barco a re-mo. E quando nós estávamos a dois quilômetros de Campos, nós paramos pra preparar a nossa chegada. Aí arrebentou a revolução de 30! Nós estávamos no Estado do Rio com um barco mineiro! Nós fugimos e fomos pra outra cidade, pra baixo de São Fidélis. E incorporamos na revolução, porque vinha as tropas mineiras, seguindo pra, tomar São Fidélis. Nós fica-mos do lado da polícia mineira, do Getúlio Vargas, é. Como venceu a revolução nós entramos em Campos e ficamos lá aquartelados. Foi uma emergência, e coi-sa de doido. Nem pensava... era garoto de 15 anos... Tanto que não podia carregar um fuzil, tinha uma carabina! Mas não dei nenhum tiro na revolução. Nós estávamos em Campos e ficamos aquartelados. Ficamos na Rua das Flores, na Escola de Artífices, em Campos, até o dia 20 de novembro.

Depois houve um desemprego terrível! Houve a revolução de 32. Eu me incorporei outra vez à mi-

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lícia aqui, pra ir pra São Paulo, na revolução de São Paulo, do “Túnel”... Mas em vez de me mandar pra São Paulo, mandaram que nós fosse aquartelado aqui em Muriaé. Pra procurar o Artur Bernardes em Arapongas. E nós invadimos Arapongas, dis-trito aí de Muriaé, a procura do Artur Bernardes. E não houve nada, não encontramos ele. Encontramos uns jagunços lá, demos uns tiros lá, prenderam um fazendeiro... Depois de uma semana voltávamos para Cataguases. Acabou também a revolução: a Constitucionalista, que eles chamaram... É isso mes-mo, é isso mesmo... Nós íamos pro “Túnel” e acaba-mos indo aqui pra Muriaé... É, chamava (porque) a batalha maior era no túnel, em São Paulo.

Aí vem e, em 1932, fui trabalhar pro João Peixoto: era empregado de quintal. Trabalhei pro João Peixoto três anos e tanto. Quando foi em 1935, a namorada do doutor Francisco, dona Amelinha, ta-va no Rio... ela arrumou pra mim trabalhar na casa do doutor Antônio Carlos Ribeiro de Andrade. Nessa época ele era presidente da Câmara dos Deputados. Tinha até assinado a Constituição de 1934 como presidente da Constituinte e era vice-presidente de Getúlio. E como empregado dele - na ida de Getúlio à Argentina ele assumiu a presidência da República – então foi o primeiro presidente da República que eu

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conheci pessoalmente, entendeu? Uma coisa muito emocionante!

No Rio, eu fiquei na casa dele. Trabalhei lá um ano. Aí, nesse intervalo que eu estava na casa do Antônio Carlos, conheci as grandes personalidades, porque iam na casa dele. E assisti a revolução de 35, Intentona Comunista. Saí da praia de Botafogo e vi quando eles saíram prisioneiro. De madrugada nós fomos avisados da Intentona. Nós estávamos arru-mando as coisas pra fugir. E aí eu, como empregado, fui chamado e entrei em contato com Filinto Müller, que era chefe de polícia. A revolução tinha sido uma surpresa! Aí de 35, ele me deu um lugar no Banco do Brasil, mas eu não pude tomar posse, porque eu não tinha o certificado de reservista. Voltei a trabalhar com o João Peixoto.

Voltando pra Cataguases me tornei rapaz e, depois de um certo tempo, o João Peixoto arrumou pra mim aprender ofício na fábrica. Aí aprendi de maçaroqueiro. Maçaroqueira é uma máquina grande, entendeu? Que a gente faz a maçaroca é com algodão. Logo que eu aprendi o ofício eu fui, o segundo ope-rário, pra Companhia Industrial (e fiquei) nove anos e nove meses.

Nós operários, nós calçávamos tamanco, que eles chamavam de “treco”. Então, quando operário

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andava na rua, nós fazia: treco, treco, treco, treco. O operário não podia comprar nem um agasalho, nem um guarda-chuva. Nós ficávamos em frente da fábri-ca debaixo de chuva! Então, uma turma entrava as seis, saía às dez. Depois entrava as duas, a outra saía, depois voltava as seis, saía às dez. E nós como ma-çaroqueiro. Como não dava a fiação o sustento para a tecelagem ficava uma turma trabalhando das dez até a meia-noite. Eu era daquela turma que pegava às seis da manhã, saía as onze, voltava as seis e saía à meia-noite.

As moças, por exemplo, andavam de tamanco. As moças tinha roupa simples. E se ela ia molhada, nós aproveitava muito daquilo! Porque elas no mo-lhar, a roupa colava e a gente via as formas do corpo delas. E gostava daquilo! (Mas) dava até muito caso de tuberculoso, porque a gente ficava na chuva, e a alimentação era muito escassa, entendeu? Hoje não se destaca mais operário de fábrica. Naquela época você sabia quem era operário de fábrica porque às dez horas era aquela multidão na rua! Treco, treco, treco… qualquer um sabia que era operário de fábri-ca. Hoje você não sabe! Havia uma harmonia entre operário e patrão. Não havia uma submissão, havia o medo. Porque se ele perdesse o emprego ele tava desgraçado! O Peixoto era nossa vida: ele determi-

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nava a vida que nós deveria viver! Eu era liderança. Era líder dos operários politicamente. Eu fazia aquela liderança. Se nós encontrasse um operário sabotan-do, que quebrasse uma peça qualquer, nós ia dizer ao seu João (Peixoto). Mas também eu pedia ao Seu José certas coisas para o operariado, certo? Seu José, ele avançou mais de trinta anos naquela época, nas leis trabalhistas. Ele nos deu a participação de lucro, fez consultório médico, dava assistência no sanató-rio, fez aquelas casas pro operário, certo? Seu José Peixoto foi um líder! Ele era alheio a homenagem, tanto que ele não se enfiou em política. Não quis ser candidato nem nada! Pois bem, o seu José morre… naquele local que eu tinha falado fizeram uma praça e tava escrito: Praça José Peixoto.

Não havia greve porque nós não tinha carteira, na época. Depois que foi feito. Então, depois que veio as carteiras. Quando nós fomos fazer o sindicato - foi eu, Eudaldo Lessa, Mário Bagno, Antônio Quirino - fomos os fundadores do sindicato que hoje existe. O operário não queria o sindicato porque tinha medo. Até isso! O medo de se sindicalizar e perder o em-prego! Então foi uma luta. E nós precisava de uma reunião que tivesse certo número de operários que assinasse. Quando nós não conseguimos levar o nu-mero de operário a esta reunião, eu bolei o seguin-

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te: o pessoal era doido por baile! Ali, onde é o Hotel Pires, eu consegui aquele salão e fiz o primeiro baile. Quando o operário tava lá dentro, dançando – o sa-lão tava cheio, porque o baile era de graça - eu pa-rei a música. Aí o grito: não, nós queremos dançar e tal… Eu falei: só dança depois que assinar aqui! Todo mundo assinou. Acabou de assinar, vamos ao baile. Foi o único meio que nós tivemos pra apanhar o nú-mero suficiente de assinaturas. E foi talvez, coisa rara pra nós fazer esse sindicato, nós pedimos consenti-mento ao patrão. Pode? Na Irmãos Peixoto pediram ao seu Manoel, e nós (da Industrial) pedimos ao seu José. Havia cabresto (na eleição). Aí que era duro! Porque o seguinte: operário não tinha liberdade de votar. Se eu amanha chegasse e contasse que era do Pedro Dutra (PSD), você estava na rua! Essa liberda-de nós não tinha. Então nós era da UDN, um partido completamente em desacordo com o operário, quan-do o partido (do operário) era o PTB. Mas nós era tudo udenista, você está entendendo? E eles faziam com que... e aquilo tudo acabava cativando porque havia liderança. Eu aqui (na Industrial), o Adauto na Manufatora, Mário Bagno, o Djalma, o Serafim na Irmãos Peixoto. Então além de nós ter a liderança entendeu, nós já estava impregnado naquela políti-ca, entendeu? É que a própria pressão... Tudo deles!

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Só gente ligado, pessoas que eles pudessem mandar... Porque ele mandava embora!

A pressão do Pedro Dutra era de uma tal for-ma, que ele explorava a miséria do operário em cima dos Peixoto. Então, a campanha política era contra os Peixoto entendeu? Então, quando os Peixoto despe-dia um operário, qualquer coisa ele entrava na justiça. Pedro Dutra fazia com que os direitos (do operário) fosse a dia entendeu? Ele era o sujeito que... a panela de pressão sobre os Peixoto pra não fazer aquilo que eles queriam! Era uma política sangrenta! Até dinami-te jogaram no comício... tiroteio na Rádio e nos fomos invadir, entendeu? E havia aqueles apaixonados! Eu, por exemplo, quarenta e tantos anos com João Peixoto, eu não tinha liberdade de agir. E era um homem casa-do, pai de filhos... Ele me dominava! Fui praticamente criado com o João Peixoto! Em 1932 já tava com João Peixoto! Tanto que diziam: o Mário do João...

Nossos comícios era uma coisa formidável porque eu fazia do comício carnaval! Eu fazia a ban-da tocá música de carnaval. Então nós cantava muito essa música assim: “Ai como dói, ai”... Então leva-va aquela onda, entendeu. A gente ia prum comício acompanhando o candidato na rua, na passeata, can-tando.... E aquilo tornava um carnaval, porque a gen-te aproveitava daquilo pra dançar.

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E nas eleições ninguém quase tinha liberdade. Os Peixoto davam condução, apanhavam o sujeito em casa, trazia pro curral onde dava comida. Dali uma pessoa pegava aquele elemento e levava ele na boca da urna, até ele entrar na sala. E revistado! A pessoa tinha tanto medo que se você fosse votar no Pedro Dutra... Você não diria a ninguém, só a pró-pria família, com medo de se trair. Cê podia dizer a um amigo qualquer que ia votar nele. E você se traía. (Hoje) ele até dentro da fábrica pode dizer: vou votar em fulano. Os dirigentes da fábrica hoje não é políti-co. O Josué não é político, o Zezito não é político...

Eu saí da fábrica sem acordo, e sem criar caso, certo? Porque eu era grato. Quando eu saí do sanató-rio a fábrica tinha pago essa despesa. Voltei drenado. Naquela época nós não tinha INPS, essa coisa não. Minha família tava passando fome. E eu saí do sa-natório com dreno e essas coisas, me apresentei na fábrica. Então eu drenado andando dentro da fábrica, na minha máquina: “Seu José eu não posso mais! O senhor deixa eu ir pra sala de pano. E tudo pra mim continuar”. Ele disse: “não”. Pois a única coisa que eu tenho é sair. Depois que saí da fábrica, foi que eu tinha nove anos e nove meses. (Quase) tinha a minha estabilidade. Mas acima das leis trabalhistas estava eles. E além das leis trabalhistas tava a força deles!

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Que que adianta eu ganhar as leis trabalhistas aqui se não tem emprego em lugar nenhum? Você fica marcado igual ficou Antonio do Vale, que eles cha-mavam de “Espanador”, que eles pagava pra ele ficar de fora. Pagava o “Espana Lua” pra ele não botar os pés na fábrica!

Aí saí da fábrica e fui então... O João Peixoto assumiu a Prefeitura e conseguiu que eu fosse fiscal do Posto de Higiene, fiscal de saúde. Naquela época chamava de “mata mosquito”. E ali eu fiquei até um certo tempo. (Quando) fundaram o Hotel Cataguases, então eu fui chamado pra fazer limpeza e preparar o Hotel Cataguases. E quando eu tava lá eles pediram pra mim ficar. Aquele domínio, eu fiquei e larguei o emprego público e me botaram como porteiro. O Hotel antigamente era baseado na frequência de via-jantes. Não havia turismo, essas coisas. Quer dizer: setenta por cento do hotel era viajante e os viajantes não gostavam do sistema desse francês que eles trou-xeram para dirigir o Hotel. Eu na portaria conversan-do com os viajantes todo dia, conquistei os viajantes. E eles pressionaram o Hotel... que eu devia ser o ge-rente. Eu então passei a ser gerente. Ainda me lembro que naquela época o gerente ganhava seis mil réis, e eu fui ganhar trezentos mil réis. Então fui gerente do Hotel Cataguases quatro anos. Quando o Hotel co-

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meçou a dar renda, que tava bom, eles começaram a criar aquele caso! Isso, aquilo, e acabou eu saindo. Aí o Zé Esteves assumiu a prefeitura ele tinha largado o Pedro Dutra, que tinha eleito ele e virou pros Peixoto

- então eu fui ser fiscal de renda da prefeitura. Aí eu conheci o Celso Passos, que casou com a Elza Peixoto, filho do Gabriel Resende Passos, que é cunhado do Juscelino, e ele (Celso Passos) apanhou uma amiza-de muito grande por mim. E quando o pai, na queda do Jango Goulart assumiu o Ministério das Minas e Energia, dentro de uma semana ele me chamou. E eu fui então pra Brasília. O doutor Celso me tirou dessa dependência dos Peixoto3.

Dependente... Ele tava doente, Dona Zélia pe-ga e me leva que era pra eu passar férias com eles em Guarapari. Então ela fez a minha cabeça: “O João tá doente, já não pode viver sem você... Num pode viver sem você”. Ele compra o hotel ali e reforma o hotel pra mim ser gerente, pra mim ficar perto de-le... Nem um tostão! Pelo contrário, ele inventou uma

3) Uma dependência que só depois da morte do João Peixoto... Inclusive o senhor em Brasília, o João Peixoto ficou doente, ele veio pra cá pra cui-dar do João Peixoto. O paizinho não poderia deixar Brasília, (mas) por causa dele veio, por insistência da família. Essa gratidão que no meu en-tendimento como fiIlho, que acompanhei de perto a vida dele, que sou o filho mais chegado - não existia isso! Foi aquele negócio de sentimen-to de culpa de ter abandonado ele no fim da vida (observou Ronaldo).

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história no fim da vida dele e morreu incompatibili-zado comigo... Chegou a ponto de me prender den-tro de um quarto e, de madrugada, quis me bater de chicote, acompanhando de outras pessoas. Inclusive, referindo-se a esse fato, o Francisco Peixoto me pede desculpas sobre a atitude que o João Peixoto teve co-migo. Lê, pode ler!

Cataguases, 1 de dezembro de 1976

Caro Mário,

Recebi duas cartas sua, e não três. Se não respondi há mais tempo é porque, como adivinhou, tenho certa difi-culdade em escrever. Você saberá desculpar-me. Sempre lamentei a quebra de seu relacionamento com o João. E agradeço por não ter guardado ressentimento dele. Assim procedendo, você dá mostras de ter um bom caráter, mas não sei dizer-lhe mais. Abraço do seu amigo,

Francisco

O doutor Francisco, foi o seguinte: nossa ami-zade veio naturalmente. Ele morava no Rio, enten-deu? Quando conheci dona Amelinha, dona Dora, já conhecia o doutor Francisco. Quando ele veio para Cataguases que ele fez aquela residência, ele então me chamou! Mário, quero que você organize a minha

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casa para mim. Eu sempre trabalhei nisso: decoração, que eu gosto, enceração, arrumar... Dali nossa amiza-de foi bastante... Ultimamente, não recebia ninguém compreendeu? E nós trocava correspondência... Ele era difícil de entender, certo? Assim como ele recebia bem, te recebia mal, entendeu? Mas ele... eu era geren-te do Hotel. Ele saía de tarde com a dona Amelinha, passava lá, eu descia... Nós passeávamos na Avenida, tomava chá quase toda noite e tal. Era uma amizade não íntima demais, mas uma coisa que nós dois se intercalava. Mas eu ficava distante na minha posição com o doutor Francisco, não é... Eu não podia assim... dizer que era amizade em igualdade, não é... Ele me dispensava isso. Me ajudava na leitura... Ganhar gos-to pela leitura, que eu tenho hoje. Gosto demais! Eu leio em média dois romances por mês.

O Emanoel Peixoto era mais chegado, mais li-gado. Essas correspondências dele aqui é tudo confi-dências! Tudo que se passava com ele... Mas na épo-ca da política em que todo mundo se amedrontava e se acovardava, eu tava do lado dele. Eu saía com ele pros comícios, caminhões e tudo. A Lêda se pre-ocupava com aquilo... Correndo risco de vida... Eles até apelidaram ele de Sputnik. O Emanoel era um verdadeiro amigo! Ele nunca me faltou! (O Emanoel como político era) fantástico! Porque todo mundo se

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acovardava com o Pedro Dutra. Ele foi o único que não! Chegou a pegar o Pedro Dutra pelo peito da camisa e dizer as verdades a ele, pessoalmente. Eu assisti! A lisura havia porque o Emanoel não queria nada, o Emanoel queria... ele tinha aquela vaidade de ser o Sputnik, o valente e o amor à família. Mas proveito próprio não. Ele não precisava... Mas ele morreu desiludido porque na época ele era endeusa-do! Inclusive também (quero) deixar escrito... sobre o carnaval. Minha mulher era de Porto Novo. Ela foi a maior porta-bandeira! O primeiro baliza de porta-

-bandeira foi o meu tio, Pedro Ângelo da Paixão, a porta-bandeira Alzira de Oliveira. Isso foi uma tradi-ção. O primeiro foi o Ninguém Reseste, em 1927. Eu era muito garoto nessa época ainda, mas vi o desfi-le. Parece que era ali, onde mora o Silveira, ali entre a Rua Rabelo Horta, era ali. Depois veio o Modesta Violeta e mais tarde... Eu fiquei viúvo. Eu casei de no-vo. Tira aí essa fotografia pequena... Ah ela aqui, essa aqui no meio... Sem minha mulher eu não venho de jeito nenhum! Se ela viesse pra Cataguases... Então, quando chegava o carnaval, a gente ficava alucinado de chegar o carnaval! E ali que extravasava. Quando terminava o baile, batia no peito, dizia: a última vez! A gente em vez de dançar ia pro canto e chora-va. Moças e rapazes, porque ia esperar um ano pra

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aquilo! Então havia sentimento, havia amor. A gen-te ia dançar um bolero. Tocava uma música de bo-lero, Gregório Barrios, o Vargas, aquela coisa enten-deu. Você pegava a moça às lágrimas. Muitas vezes chorando... Tinha que dançar bem! Exigente. A gente tinha que ir de gravata conforme o Emílio diz bem: baile de branco. Tanto que tinha muito nego que não podia comprar um terno bom, fazia de saco de fari-nha de trigo a roupa. Então, como o Ataulfo Alves dizia: “Nós era feliz e não sabia”...

A nossa maior festa era o bloco de sujo. Eu e o Emílio lançamos isso. Nós, por exemplo, domingo dava uma hora da tarde, nós tava na rua, chovendo ou fazia sol. Nós no bloco do sujo ia entrando e pu-xando gente. Os bailes era uma coisa interessante. Eu comecei com o Emílio varrendo salão, e tal. Depois eu fui ser baliza e aí ganhei fama de baliza, e a maior porta-bandeira foi essa, que foi minha esposa que morreu. E dali saiu até casamento, nós dois dançan-do! E depois desse negócio com o Emílio e tal, de-pois formou uma dissidência e nós fundamos o Lord Clube. Eu, o Rafael Mana, o Eudaldo Lessa. E foi o maior carnaval!

O Emílio ali perto da fábrica e nós também. O Lord durou um ano só... aquele carnaval. Mas foi uma luta renhida e que dividiu a cidade. A cidade se divi-

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diu igual na política: era o Lord e o Emílio (com as) Mimosas Camélias. Nós botamos dez carros na rua!

(Quando) o clube do Remo ficou em constru-ção e o pessoal não tinha onde dançar, eu tinha uma vitrola. Então o pessoal do Clube do Remo ia lá pra minha casa dançar lá. Então, como a turma do Clube do Remo ia lá, eu achei que eu tava em condições de ser sócio do clube do Remo, e pedi a minha inscrição. Nunca saiu! Uma pessoa ligada a mim contou. Não Mário, é uma questão de cor. Por isso é que não sai. Eu revoltado, então resolvi fazer um clube. Então eu fiz o Rancho Alegre, baseado em que ia acabar com o racismo. Foi uma das grandes, também, decepções da minha vida. Eu queria fazer um clube pra preto. Conforme tinha o Clube Social pra branco, e Clube do Remo. Mas acontece que o branco do Clube do Remo e Social terminava o baile deles aqui, de ma-drugada, e ainda ia dançar no meu, do preto! E as preta só queria dançar com eles! E briga em cima da outra! Porque os preto ficava revoltado porque elas não queriam dançar com eles, mas dançava com os brancos! Porque a branca não ia dançar com o pre-to? Só o branco que ai lá aproveitar da moça preta. Ia branca pobre, a branca operária, mas a branca de elite não ia lá. Então aquilo me machucou muito, en-tendeu? Eles não conseguia compreender o que eu

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queria fazer. Queria revolucionar Cataguases sobre isso, que lá não entraria branco. Eu sei que era racis-mo. Mas então eu estava em guerra; racismo de lá, racismo de cá.

Acabou aquela coisa. Aquela vida, aquela coisa que tinha as festas, o povo vinha. Em 1927, o Antônio Carlos Ribeiro de Andrada... A Avenida toda ilumi-nada até o fim. Esses fícus aí todo iluminado!

É engraçado o amor a Cataguases, porque aqui tem raízes.

Fui pra Brasília em 60, vim, 62 fui definitivo. O doutor Celso Passos me tirou dessa dependência dos Peixoto. Então Cataguases agigantou-se mate-rialmente. Eu não conheço mais Cataguases. Quer di-zer, nós estamos nessa cidade enorme e que se abriu desarvorada né, sem planejamento. Uma rua que sai pra aqui, outra rua que sai pra lá, mas está subindo os morros, tá entrando aí onde era roça, e tudo. Mas o principal de Cataguases não existe, entendeu? O principal é isso que eu vou te dizer.

Na cidade tinha jogos de futebol todos os do-mingos: Operário e Flamengo, campo lotado! E não tinha arquibancada, não. Precisava sentar no cana-vial, ali do Flamengo. Quer dizer, cheio porque havia paixão pelo Operário, paixão pelo Flamengo! Os bai-les, clubes, cheio. Tanto o Social aos domingos, como

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o nosso! A Praça, essa Praça era vida! Entupida, cheia, entendeu? O coração vibrava! O cinema chegava dar três sessões! Cheios, porque havia aqueles filmes em série. Hoje os cinemas tá tudo uma mosca aí. Tinha regatas no Clube do Remo, tinha rapazes que fazia halterofilismo, era tudo musculoso, não é.

Há até uma história muito... Gabriela estou vendo... era um Clube de Cataguases, ali onde é... em frente o Fernando Paratela, numa esquina, descendo a Rua Dr. Sobral. Ali tinha garotas, que era do tipo o cabaré do “Machadão” da Gabriela. Tinha pensão chique, zona, entendeu? Tinha duas casas lá: Ernéfia e a Mafisa. Ali, descendo a Praça Sandoval Azevedo, do lado de cá da Rua Joaquim Peixoto. E nesse caso existe uma coisa muito interessante. A Mafisa tinha um filho chamado Orlando. Foi ele que trouxe a pri-meira “baratinha” em Cataguases. Baratinha é aquele automóvel... chamava baratinha, automóvel pequeno, só de duas pessoas na frente, arriava capota... E era o rapaz que vestia mais chique! Ele morava no Rio, estudava. Quando ele chegava ali, ele botava todo mundo doido pela roupa que ele desfilava, não é? E pela “baratinha”. Mas na sociedade ninguém aceita-va ele: (filho) de prostituta, da dona de pensão. Ele tinha os amigos da boemia. Mas ele dentro da socie-dade, ele num... uma moça não conversava com ele

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na rua... Essas mulheres vinham de fora e ela era fi-chada ali, e a mulher só podia vir na rua de madru-gada. Aí depois das dez horas elas vinham para os bares, entendeu? Pela rua não. Uma mulher naquela época fumando, com o vestido de cetim, loura, era uma coisa condenável. Tava pro lado da prostituição. Uma mulher decente não fazia isso: fumar, usar rou-pa de cetim, decote... Essas mulheres vinham de fora. A não ser que fosse uma muito bonita dentro da cida-de... e que resolvesse a seguir pelo caminho. Era di-fícil. Quando acontecia era o casamento na polícia. A moça se entregava hoje de noite, no outro ela contava aos pais: cadeia nele! E casava mesmo! Agora, o rico fazia o cambalacho. Firmava o casamento e pronto. Eles, quando tinha muito dinheiro e a moça era po-bre, pagava o pai e ele calava. Muitas operárias da fábrica foram assim... O bar começava às sete horas, a moça só podia ir acompanhada da mãe, ou de uma conhecida da mãe. Era aquele recato! Então o salão ti-nha que ser iluminado. Se a gente encostava um mu-cadinho, a mãe tirava, entendeu? Nós tínhamos que lutar pra dar um beijo numa moça. Era uma dificul-dade! Era uma coisa horrível, era um beijo roubado! Hoje se beija aí, na rua durante o dia.

Destruíram a cidade... Botar uma árvore como essa no chão! A Praça Santa Rita não se enxergava do

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outro lado! Era uma mata fechada, bonita, árvores lindas! O doutor Edson veio e meteu o machado em tudo. Ninguém gritou, ninguém falou nada! Nossos rios tão acabando... O Pomba tá, oh! O Rio Meia Pataca, que era um rio respeitado, taí, oh! Acabou. Isso aqui chamava Zona da Mata! Eu conheci isso aqui! Isso aqui era tudo cheio de árvores. Hoje, o que vocês veem aí? Não tem nada. Sabe por quê? Porque eles só sabiam vender lenha pra Leopoldina, porque, os trens andava de lenha, de carvão...

É engraçado o amor a Cataguases, porque aqui tem raízes. Eu, por exemplo, gasto uma hora da Prefeitura até aqui porque não consigo andar, enten-deu? É como se eu tivesse aqui, é mais ainda que se eu tivesse aqui. E amigos um atrás do outro! Não me deixam andar! E um fenômeno que eu encontro aqui, todos eles de cabelo branco... E paro porque sei que ele vem me encontrar, porque ele é da minha geração. (Mas) os filhos dos meus amigos que morrem conti-nuam me admirando, porque o pai falava. Então, não consigo andar na rua! Chega a ponto de... Uma coisa que me comove... Encontro uns dez, quinze, cinquen-ta pessoas... Eu abraço ele e coisa, mas (às vezes) não sei quem é... Agora, por que o Mário da Paixão é co-nhecido! No carnaval a gente desfilava na rua feito um rei! Quer dizer: a cidade toda via! Eu fazia comí-

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cios: todo mundo via o Mário da Paixão falando no alto do palanque! Eu fui fiscal de renda, frequentava casa por casa. Na época da política, eu fazia campa-nha política percorrendo as casas. Então, tudo isso marcou! Eles reconhecem o que eu fiz! Então, o que me traz a Cataguases é... Vamos dizer que seja um pouco de vaidade! Essa pose que os outros não têm, de ser querido... Cada um tem história do Mário da Paixão pra contar, não é?

E quero deixar aqui a maior mágoa que eu te-nho de Cataguases. O maior sentimento que eu tenho na minha vida é não ter fundado um museu indígena.

Não consegui! Eu tinha trezentos e cinquenta peças já, (e) o apoio do presidente da FUNAI, o apoio do Ministro do Interior, entendeu. Poderia na cida-de hoje ter um museu. E esse material era todo do-cumentado, escrito o nome e tudo o que era. Como é que eu podia fazer sem o apoio da Prefeitura?

Um amigo meu me disse pra mim o seguinte: Mário, cê num deve voltar para Cataguases não! O Fusco me disse o seguinte: “Mário, você nunca volte para Cataguases. Usufrui dessa auréola, que você tá lá fora. O dia que você mudar pra aqui acaba isso, vi-ra rotina, você se torna comum. Você tá lá fora, você é uma preciosidade! Todo mundo lembra o Mário da Paixão! É melhor fazer falta, do que ser demais...”

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Quando eu fui candidato a juiz de paz até hou-ve um slogan muito bonito que o Rosário Fusco fez: o Mário tem paixão por Cataguases. Então é isso que nós sentimos... Eu pedi aos meus filhos o seguinte: eu quero ser enterrado aqui, ao lado dos meus amigos. Depois, defunto, ficar lá em cima vendo o Pomba correr...

Entrevistado em 4/11/1988 por Gláucia Siqueira e Hedileuza Maria de Oliveira Valadares.

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Não tenho boa memória não... tem muita coisa que eu me esqueço... Eu rabisquei aqui, tá tudo rabiscado aqui, vamos ver se eu pesquiso... Eu sou das bandas lá de Dona Euzébia, afastado num canto, mas fui registrada em Astolfo Dutra. Eu vim para cá com 8 anos. Vim fazer o primário todo aqui... Minha mãe teve onze filhos; criou oito, perdeu três pequenos assim, com cinco meses, e eu sou a mais velha. Já viu falar sobre a madrinha da tropa? A ma-drinha da tropa vem toda enfeitada anunciando que a tropa vai chegar!

R I TA L O P E S M A C H A D O ( D O N A F I L H I N H A )

E S T E T I C I S TA

7 9 a n o s

Foto: Interior do Cineteatro Recreio, s/a, s/d, Departamento Municipal do Patrimônio Histórico e Artístico de Cataguases

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Eu não me lembro da primeira professora, no primeiro ano... Não sei se foi a Dona Sidonga... Acho que foi. Depois foi a Ecila... Estudei aqui no Grupo Coronel Vieira, só tinha esse, os outros foram cons-truídos muito depois. O segundo (grupo) foi o Guido Marlière... Foram construindo os outros na medida da necessidade, porque tinha muita criança. A cidade foi crescendo e foi muito necessário. Hoje tem vários grupos na cidade... escolas primárias... Mas então o meu primário foi feito no “Coronel Vieira”. A dire-tora era Dona Cecília Coelho. Era uma pessoa gor-da... criança tem sempre uma coisa que marca, né? Quando Dona Cecília passava eu namorava os pés dela, porque ela tinha pés pequenos e usava salto muito alto. E o sapato era decotado, bem decotado, e então o pezinho gordo... caía aquele papinho de gordura de cima do decote do sapato. Eu namorava aqueles pezinhos dela! Achava lindo aquilo! Eu acha-va aquilo um horror, sabe?! Mas Dona Cecília Coelho era uma senhora muito simpática, não sei se foi casa-da... isso eu não me lembro.

O corpo docente era tão maravilhoso! As pes-soas daquele tempo... não pode haver nem compara-ção com o professorado de hoje. Porque tudo mudou, tudo evoluiu... Naquele tempo as pessoas saíam da Escola Normal quase doutoras! Tanto é que no gru-

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po escolar elas não admitiam que se pronunciasse errado. Tinha que ser português correto! A gente pronunciava palavra errada, tomava castigo e, às vezes, tinha que copiar aquela palavra, aquela con-cordância várias vezes pra não errar mais. Era um primário tão bem feito que a gente saía de lá poden-do entrar... Havia o curso de admissão depois que se terminava o quarto ano primário, né? Mas se você quisesse pular pro primeiro ano ginasial não tinha tantas dificuldades.

Antigamente, no tempo de minha vó era as-sim... eram esses castigos bravos, coisas horríveis mesmo... Minha vó que contava isso. Naquela época havia mesmo... era até meio desumano. Mas as pes-soas do meu tempo eram por demais humanas, mui-to bondosas. O corpo docente aqui desse Grupo do meu tempo... depois, até muito tempo depois, por-que as pessoas custavam muito a mudar né? Elas para se aposentar tinha que trabalhar mesmo! E sabe como elas faziam? Imagina você: elas regiam classe e ainda davam aulas de trabalhos manuais. Quando chegava o fim do ano elas apresentavam uma expo-sição de trabalhos manuais feito pelas alunas, pelos alunos em geral. Eu me lembro, não sei se foi no segundo... acho que foi no terceiro ano, que eu fiz... Ainda me lembro de dois trabalhos muito bonitos

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que eu fiz com a Ecila Fabrino. Só me lembro desses dois. Ela ia na casa das mães, quando via que a alu-na era jeitosa, pedir pra deixar ir pra casa dela após o almoço. Então a gente chegava em casa, almoçava, tomava banho e ia pra lá. Lá a gente fazia lanche e só saía às cinco horas pra vir pra casa. Lá ela ensinava a bordar. Eu fiz pra ela um caminho de mesa no li-nho cru, que eu me lembro até hoje! Eu sou capaz de reproduzir o desenho de tão lindo que era! Um tra-balho português que eu fiz pra ela. Era tudo borda-do a mão, lógico. Bordado à mão, e o tipo português, porque o bordado português em geral é cercado de preto, tem aquela cercadura preta... faz depois uma aplicadura preta naquele bordado. E tinha também o abajur. Eu fiz um abajur de organdi rosa todo borda-do de ponto de sombra! Agora como é que podia ter capacidade pra aquilo? Ela me ensinava. Trabalhou comigo sempre com aquela paciência. Ensinava a to-das, não só a mim.

Eu fui considerada uma boa aluna. Era respon-sável, estudava muito. Tinha que estudar, tinha fazer força pra ser alguma coisa! As professoras levavam pra casa os alunos mais carentes... que haviam uns que não queriam nada como até hoje. Uns mais mo-leques, mais displicentes, né? Elas levavam aquele grupo para casa pra trabalhar com eles, estudar com

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eles, pra que eles acompanhassem a classe, pra quan-do chegasse o fim do ano eles pudessem passar. Era muita dedicação mesmo! Era muito amor à arte, né? Um amor à profissão! Elas faziam isso... elas organi-zavam teatros com os alunos... e que paciência pra colocar aquela gente pra declamar, ensinar a repre-sentar... E os teatrinhos eram um sucesso!

Naquele tempo não havia escola da noite. Quando foi criado o curso da noite, foi criado mais para as domésticas, (que) trabalhavam durante o dia e, não tinham tempo de frequentar a escola. Minha cunhada, a Dona Totó (Maria) Machado foi diretora desse Grupo (Coronel Vieira) à noite. Ela criou um ensino de corte e costura. Ela organizou e conseguiu! Então as moças iam pra lá e tinham uma pessoa espe-cializada, tenho a impressão que era a Ritinha Cortes que dava aula... Não eram classes tão cheias assim como hoje. Porque hoje são mais de trinta em cada classe, não são não?

Papai era muito amigo do Pedro Dutra, ele é que mandava na cidade: Dr. Pedro Dutra Nicácio Neto. Naquele tempo o presidente Antônio Carlos veio aqui em Cataguases e foi uma festança! Porque pra receber um presidente o Pedro Dutra tinha um grande número de adeptos... Ele veio com uma comi-tiva boa também, mas eles não faziam... Não a comi-

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tiva dele... Eles tinham... Eram banquetes e mais ban-quetes. O que fui, foi no Horto Florestal. Fizeram um galpão muito grande e ali fizeram aquela mesa bonita. Foi o banquete ali, um deles, e nesse eu fui. Até falei com você que eu ganhei de um garçom uma caixinha de charuto, caixinha vazia. Eu conservava esta caixi-nha até pouco tempo: lembrança da festa do presi-dente Antônio Carlos. Depois me dispuz dela, mas eu olhava sempre e, como sou muito romântica eu con-sigo guardar as coisas. Eu tenho a caixinha do perfu-me que eu usei no dia do meu casamento! E onde eu guardo meus grampos, meus clipes, essas coisas.

Eu sempre gostei de dançar, mas meu pai não gostava. Não me deixava ir para as festas, para os bai-les, então eu chorava e dizia pra ele assim, lágrimas escorrendo: “eu vou me vingar, quando eu me casar, quero um marido bem folião. Não quero perder uma festa, nenhum baile, nem nada!” Olha o que o destino me pregou, a peça que o destino me pregou: arranjei um marido muito bom, muito amigo, mas que não sabia nem mudar o pé do lugar pra dançar um bo-lero, que era dois pra lá, dois pra cá. E músico! Mas não gostava não. Eu tirava ele pra dançar comigo e ele saía feito duro! E eu falava: você não tem jeito não, pode sentar lá. Então eu perdi o encanto e pronto. Mas ele foi muito bom, (dançar) não fez falta não.

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(Papai) foi hoteleiro: Hotel Avenida, onde é a Caixa Econômica Federal. Foi ali que eu me casei: eu me casei foi em dezembro de 1939. Improvisaram um altar... Naquele tempo não se casava na Igreja não. O padre ia em casa e celebrava. O casamento era assim...

Em 30 houve a revolução. Tinha aqueles... eles chamavam milicianos, os soldados. Então foi uma coisa que a cidade inteira ficava tomada. E aí eles faziam aquelas passeatas, eles marchavam pelas ru-as. Depois a minha mãe teve um trabalho tremendo, porque eles iam fazer refeição lá no Hotel.

O cineteatro Recreio era bonito! Era lindo mesmo! Era um prédio grande, alto. Embaixo era o cinema, na parte dos fundos do cinema tinha os camarotes, tinha as torrinhas lá em cima. Chamava torrinha, aquele negócio onde ficavam as pessoas que podiam pagar menos, iam pra lá. O palco sem-pre muito bom! Organizavam os teatros ali, com as moças da nossa sociedade, os rapazes também. Eu me lembro do Milton Peixoto, do João Guimarães Peixoto representando lá. O João era muito engra-çado! Tinha umas pilhérias boas que eles contavam ali, fazendo aquelas palhaçadas. E as moças sempre tomavam parte. Essas moças que representavam, que faziam parte do elenco, eram as mais jeitosas,

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mais graciosas. Então aquilo era muito bem deco-rado muitas flores. E a cidade inteira tomava parte, apoiava, porque aquilo era uma renda pro Hospital E a casa ficava cheia, quer dizer, o povo prestigiava! Era muito importante isso, esses teatrinhos. Agora, quem animava essas... sempre havia uma música. Então tinha um grupo, e o meu marido era o flautis-ta... mas em solteiro, porque depois que nos casamos ele não quis mais, abandonou. Ele era o flautista. Eu não me lembro o instrumento que tocava o Rogério Teixeira, mas acho que era clarinete. A Dona Marieta, esposa dele, era pianista; o João Ciodário era violon-celo; o Diocélio era violino e tinha mais umas duas ou três figuras. A música que se tocava... eles toca-vam tudo... O cinema era mudo, naquele tempo, en-tão era acompanhado daquela música, daquele coro, daquele conjunto. A orquestrazinha estava lá tocan-do e animando!

E os saraus! Os saraus eram reuniões festivas em casas de família. Então as famílias ofereciam sal-gadinhos e doces pra turma toda que vinha ali. Eram umas festas muito agradáveis! A moçada se reunia ali alegremente, porque ali se declamava, se cantava, se dançava! Então quando o Antoniquinho aparecia, ele que abrilhantava essas festinhas, esses saraus... Antoniquinho, o doutor Antônio Martins Mendes,

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foi um brilhante advogado que nós tivemos aqui. O Antoniquinho era muito inteligente, declamava mui-to bem, tinha poemas muito bonitos. Eu não me lem-bro se os poemas eram dele, isso eu não me recordo, mas ele declamava bem mesmo!

Vamos ver agora os bailes, os bailes que nós tínhamos aqui na cidade. Só havia um clube, que era o Social, ali mesmo. Mas era no velho cinema (Recreio), em cima existia o Social. O Clube Social era muito bonito, aquele salão muito grande, onde havia aquela parte separada para os músicos, aquele palco onde os músicos ficavam. O clube era todo espelha-do, aqueles espelhos enormes, bizotados, espelhos importados. Em lindos aqueles espelhos! Uma ma-ravilha! Todo o clube era revestido de espelhos! Era um encanto! Os bailes eram mesmo de gala. Eu não me lembro se uma vez por mês... Acho que não po-dia ser não, ficava muito dispendioso pra época. Mas sempre tínhamos os bailes de gala. Então o clube se engalanava para receber os seus convidados e todo mundo de traje a rigor, traje a rigor mesmo! Os ca-sais levavam os filhos e os rapazes estavam lá espe-rando as suas candidatas. Então as valsas eram lin-das! Vocês já devem ter visto até no cinema aquelas valsas, porque tem filmes assim. Eram valsas muito bem dançadas. E dançava-se também muito o bole-

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ro. Outra música não me recordo. Recordo da valsa e do bolero. Mas o que abrilhantava mesmo a festa era o tango argentino, porque nem todos os pares dançavam o tango. Eram pouquíssimos os pares... Ficava todo mundo ao redor do salão. Todo mundo assentava e ficava apreciando o tango! Quem dança-va muito bem o tango era o Tute com a Lilia, o Raul com a Carmem, a Iracema com o Fonseca e se tives-se mais dois ou três eram muito! Fazia sucesso por-que o salão ficava vazio e todo mundo apreciando... Porque o tango tem que ser muito bem dançado, pra ser bonito! Porque tem passos complicados. Mais tar-de apareceu o meu filho o Carlos Edmundo, que pôs todo mundo no chinelo! Ele dançava o tango com uma maestria... Precisava ver. Dançou muito bem! O Carlos Edmundo. Hoje ele tá feio, barrigudo. Mas ele era muito elegante e dançava como ninguém! Então, quando ele saía pra dançar o tango ninguém mais saía! Nem os que já estava habituados a dançar! Dançava com Isis, aquela sobrinha da Dona Elza e do senhor Dauton. Depois a lsis se casou e foi morar em São Paulo e ele dançava com a Dayse, que é hoje a esposa dele.

E as serestas? As serenatas! Tinha sempre nas ruas: grupos de rapazes, as vezes até moças partici-pavam também. Mas eram os rapazes os seresteiros,

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que dedilhavam suas violas e violões com tanto amor, com tanto romantismo, cantavam músicas românti-cas... Cantavam debaixo das janelas das namoradas, das rosas amadas. Então era uma coisa linda! A gen-te acordava ao som daquelas músicas românticas, aí corria pra janela, pra escutar, pra ver! E o carnaval? O carnaval era muito bonito, a começar pelos gru-pos de afoxé. Eles não faltavam até hoje não faltam! Afoxés, vocês sabem, é o som do “bloco do sujo”, não é? Eles faziam questão, aquelas moças saíam de sujo, os rapazes também. Faziam uma festa assim... muito grande. Mas à noite não havia quase esses afoxés. No carnaval... ali na Praça Rui Barbosa é que acontecia o carnaval... Então os carros eram conversíveis e assen-tados nas capotas as moças fantasiadas, muito bem fantasiadas, e as outras em pé. Um carro após outro, assim muito devagar, rodava na praça... Era só ali. Então, ali ficava tão entrelaçado de serpentina, e as batalhas de confete se davam ali também. Era muito bonito! Mas isso era um carnaval que era mais da eli-te. Naturalmente tinha outros clubes onde dançavam as pessoas mais humildes, como sempre teve isso.

O senhor Emílio (de Souza) sempre teve o de-le. Ele promovia festas, era muito entusiasmado! E o Mário Paixão também. Aliás, onde o Mário possuía a casa dele, nessa rua onde mora a Hilda Falcão, nes-

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sa rua que começa ali naquela praça Sandoval de Azevedo, que era o nosso Largo do Rosário, naque-la época... Ali o Mário possuía uma casa muito mo-derninha, ao lado o terreno era grande e ele fez um clube. O Mário era um entusiasta! Ele era um grande animador de festa! Quando o Mário passava com a Escola de Samba, a minha filha ficava louca! Ele sa-bia que ela gostava muito... ela era menina, garota... Então, a gente sentava ela na janela, ela ficava louca, batia palma, se entusiasmava! O carnaval era muito bonito! Eu me lembro que tinha carros alegóricos. Esse carro que eu... era o fundo do mar. Acho que foi a sua vó, Rosângela (a Olinda Schettini) que veio dei-tada como sereia. O carro era todo revestido de filó verde-água, quer dizer, representando mesmo a água, e dentro preparando como se fosse o fundo do mar aquelas pedras, e aquela sereia deitada.

Eu sou esteticista, eu fiz meu curso em 1974, já bem madura, porque eu acho que minha aptidão maior... tenho impressão que nasci para ser cabelei-reira porque em menina, menina-moça, eu já cortava cabelo. Eu preparava as noivas que iam lá pro hotel. Eu era garota ainda, estudava no Grupo. Vinha aque-las noivas da roça... eu preparava as noivas, penteava, arrumava pintura... Eu tinha prazer de fazer aquilo! Tinha loucura, loucura de fazer aquilo! Eu cortava ca-

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belo e era tudo de graça. Então fui convidada pra ir lá na casa do Sr. Manoel Peixoto, pela Dona Audina. Telefonou lá pra casa pedindo pra eu ir lá acertar só o cabelo dela, a nuca que ela queria ir ao banquete. Eu fui lá e cortei cinco cabelos: dela e das filhas. E ma-mãe ainda me recomendou: você vai, mas não pode se demorar. Eu fiquei por lá, demorei muito. Eu gos-tava muito! Depois meu irmão quebrou a minha te-soura... enfiou na greta do assoalho e quebrou a folha. Papai disse: “não dou outra a você porque não cobra e isto não dá certo, você faz tudo isso sem cobrar”. Mas eu tinha tanto prazer de fazer aquilo! Aí fiquei triste, mas depois... (hoje) eu tenho uma tesoura por-que foi minha filha que me deu.

Eu sempre cortei os meus cabelos. Ultima-mente não, porque o Edmundo começou a implicar:

“você fica estragando os cabelos, fica cortando... vai cortar no cabeleireiro”. E então eu comecei a cortar no cabeleireiro, e aí não tive mais ilusão de cortar, não. Mas eu nunca fico satisfeita, sempre tem al-guma coisa que não me agrada. Mas tá bom assim mesmo...

Valeu a pena viver aquele tempo. Valeu a pe-na... era muito gostoso. Valeu a pena aquele tempo, foi um tempo muito bom... Valeu mesmo a pena... Bons tempos foram estes! A minha época foi muito

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boa, deixou muita saudade... A mocidade de hoje não tem nada pra contar, não vai ter nada pra contar.

Eu não me lembro de muita coisa, não tenho boa memória... Eu não falei na chácara de Dona Catarina, onde vai ser o museu que a Prefeitura vai fazer. Ali foi um ponto de encontro também muito bom pras festas...

Entrevistada em 24/5/1988 por João Carlos Borges Justi e Rosângela Schettini Rodrigues.

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