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1 Textos Informativos Complementares Expressões Português 12.° ano EXP12 © Porto Editora SEQUÊNCIA 4 Memorial do Convento e o romance histórico Apesar do título – Memorial do Convento –, alguns críticos não consideram esta obra um romance histórico, pois apesar de nele encontrarmos uma recriação fiel do passado, a perspetiva que nos é dada desse tempo surge com base no presente e os factos históricos permitem a crítica ao tempo presente, pelo que esta obra de José Saramago subverte a essência daquilo que se consi- dera o tradicional romance histórico. Por outro lado, Saramago contrapõe uma outra visão da História àquela que havia sido imposta oficialmente, centrando a ação no relato dos acontecimen- tos realizados pelo povo, convidando-nos a uma reflexão que se opõe à aceitação dogmática da História do país. Podemos, assim, concluir que, ainda que Memorial do Convento não possa ser considerado um romance histórico, esta obra está diretamente relacionada com este tipo de texto, constituindo uma evolução do mesmo. São vários os aspetos que, em Memorial do Convento, conduzem à recriação do passado: • a referência pormenorizada ao vestuário das personagens • a descrição exaustiva dos espaços físicos • o relato de episódios que surgem como reconstituição de acontecimentos históricos • a linguagem das personagens JACINTO, Conceição, e LANÇA, Gabriela, 2008. Memorial do Convento – José Saramago. Porto: Porto Editora Tendo em conta que nesta obra a diegese se encontra situada numa época histórica remota, prevista pela caracterização de um romance histórico, impõe-se considerá-la como um romance histórico. Na verdade, procede-se à recriação de uma época histórica, o reinado de D. João V, século XVIII, decorada e enriquecida por descrições pormenorizadas de espaços físicos e sociais, entre os quais se destacam Lisboa e Mafra, e por referências aos usos e costumes de uma socie- dade hierarquizada. No entanto, o narrador não se limita a uma narração objetiva e distanciada no tempo; assume, pelo contrário, uma atitude que contraria a tipologia descrita. Assim, o narrador segura a diegese num tempo passado, mas transporta-a também para o presente, e ao fazê-lo incute-lhe intempo- ralidade; distancia-se, muitas vezes e criticamente, da história e coloca-se no tempo do discurso; assume diferentes focalizações e diferentes estatutos, não se sujeitando aos previstos por este tipo de narrativa; não raras vezes, acompanha os acontecimentos e participa como personagem e como testemunha, tecendo oportunos e jocosos comentários; enfim, procura reescrever a história. Por outro lado, urge referir a importância do segundo plano do romance e oportunamente caracterizado: a história da construção da passarola, mas sobretudo o par Baltasar-Blimunda, seres excecionais, marcados pelo misticismo e pelas vivências de uma sexualidade plena e des- complexada, que protagonizam uma história de amor, única pela sua autenticidade e pela sua singularidade. Como se verifica, torna-se bastante complexo categorizar esta obra, pela sua especificidade; sendo um romance histórico, pelas razões apresentadas, podemos também dizer que, paralela- mente, se desenvolve uma genuína história de amor, que procura suavizar os aspetos patéticos e dramáticos que se desenvolvem no primeiro plano da narrativa. FERNANDES, Cidália, 2010. Páginas de Saramago. Memorial do Convento em Análise. Lisboa: Plátano

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  • 1Textos Informativos ComplementaresExpresses Portugus 12. ano

    EXP1

    2 Porto Editora

    SEQUNCIA 4

    Memorial do Convento e o romance histrico

    Apesar do ttulo Memorial do Convento , alguns crticos no consideram esta obra um romance histrico, pois apesar de nele encontrarmos uma recriao fiel do passado, a perspetiva que nos dada desse tempo surge com base no presente e os factos histricos permitem a crtica ao tempo presente, pelo que esta obra de Jos Saramago subverte a essncia daquilo que se consi-dera o tradicional romance histrico. Por outro lado, Saramago contrape uma outra viso da Histria quela que havia sido imposta oficialmente, centrando a ao no relato dos acontecimen-tos realizados pelo povo, convidando-nos a uma reflexo que se ope aceitao dogmtica da Histria do pas.

    Podemos, assim, concluir que, ainda que Memorial do Convento no possa ser considerado um romance histrico, esta obra est diretamente relacionada com este tipo de texto, constituindo uma evoluo do mesmo.

    So vrios os aspetos que, em Memorial do Convento, conduzem recriao do passado: a referncia pormenorizada ao vesturio das personagens a descrio exaustiva dos espaos fsicos o relato de episdios que surgem como reconstituio de acontecimentos histricos a linguagem das personagens

    JACINTO, Conceio, e LANA, Gabriela, 2008. Memorial do Convento Jos Saramago. Porto: Porto Editora

    Tendo em conta que nesta obra a diegese se encontra situada numa poca histrica remota, prevista pela caracterizao de um romance histrico, impe-se consider-la como um romance histrico. Na verdade, procede-se recriao de uma poca histrica, o reinado de D. Joo V, sculo XVIII, decorada e enriquecida por descries pormenorizadas de espaos fsicos e sociais, entre os quais se destacam Lisboa e Mafra, e por referncias aos usos e costumes de uma socie-dade hierarquizada.

    No entanto, o narrador no se limita a uma narrao objetiva e distanciada no tempo; assume, pelo contrrio, uma atitude que contraria a tipologia descrita. Assim, o narrador segura a diegese num tempo passado, mas transporta-a tambm para o presente, e ao faz-lo incute-lhe intempo-ralidade; distancia-se, muitas vezes e criticamente, da histria e coloca-se no tempo do discurso; assume diferentes focalizaes e diferentes estatutos, no se sujeitando aos previstos por este tipo de narrativa; no raras vezes, acompanha os acontecimentos e participa como personagem e como testemunha, tecendo oportunos e jocosos comentrios; enfim, procura reescrever a histria.

    Por outro lado, urge referir a importncia do segundo plano do romance e oportunamente caracterizado: a histria da construo da passarola, mas sobretudo o par Baltasar-Blimunda, seres excecionais, marcados pelo misticismo e pelas vivncias de uma sexualidade plena e des-complexada, que protagonizam uma histria de amor, nica pela sua autenticidade e pela sua singularidade.

    Como se verifica, torna-se bastante complexo categorizar esta obra, pela sua especificidade; sendo um romance histrico, pelas razes apresentadas, podemos tambm dizer que, paralela-mente, se desenvolve uma genuna histria de amor, que procura suavizar os aspetos patticos e dramticos que se desenvolvem no primeiro plano da narrativa.

    FERNANDES, Cidlia, 2010. Pginas de Saramago. Memorial do Convento em Anlise. Lisboa: Pltano