método espaço direcional beuttenmuller

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  • Joo Pessoa, Vol. 2, n. 2, 121-130, jul./dez. de 2011 121

    MTODO ESPAODIRECIONALBEUTTENMLLER, MUITO ALM DAS PALAVRAS

    BEUTTENMLLERS SPACE-DIRECTIONAL METHOD, FAR BEYOND WORDS

    Jane Celeste GuberfainProfessora Escola de Teatro da Universidade

    Federal do Estado do Rio de Janeiro UNIRIO.

    Resumo: Este artigo analisa a contribuio do Mtodo Espao-Direcional-Beuttenmller formao e ao trabalho vocal do ator teatral. Investiga os princpios que o norteiam e ressalta a sua relevncia para a pre-parao da voz em cena. Veriicamos que o Mtodo apresenta uma estrutura lexvel, valoriza as experin-cias individuais, a partir da sensibilidade e da conscincia corporal e espacial, acompanhando as tendncias teatrais contemporneas. Redescobre a palavra no sentido da sua expresso como um abrao sonoro no ouvinte.Palavras-chave: voz; qualidade da voz; treinamento da voz.

    Abstract: This article analyzes the contribution of Beuttenmllers Space-Directional-Method to theater ac-tors development and vocal work. It investigates its underlying principles and highlights its relevance for on-stage voice training. We conclude that the method provides a lexible structure and is sensitive to indi-vidual experience, based on physical and spatial sensitivity and awareness, in ways that are coherent with contemporary theatrical approaches. The Method situates the word in terms of its expressiveness as a sonorous hug to the listener.Keywords: voice; voice quality; voice training.

    Introduo

    A escritora e baronesa dinamarquesa

    Karen Blixen (1885-1962), em seu

    livro Out of Africa1, descreve uma passagem de sua vida no Qunia, onde dirigia

    uma fazenda de caf. Karen Christentze

    Dinesen, seu nome verdadeiro, costumava

    ler noite, em voz alta, poemas em ingls de

    Byron, de Shelley, de Pope e de Shakespeare. O

    empregado da baronesa, um menino africano

    da tribo quicuia, apesar de no entender

    outra lngua se no a da sua comunidade

    1 Traduzido para o portugus com o ttulo A fazenda africana.

    ouvia atentamente a leitura dos poemas. Aps

    certo tempo a escritora precisou viajar para

    Zanzibar. Ao voltar para sua casa, encontrou

    o menino sua espera, ansioso para ouvir

    novamente a leitura rotineira. Como ela

    demorava a retornar as leituras o menino

    apelou para a sua patroa, dizendo: Fala como

    chuva outra vez, fala! Podemos constatar que

    a leitura dos poemas pela baronesa despertou

    no garoto fortes sensaes e sentimentos,

    alm do simples gosto de ouvir histrias. Com

    certeza a baronesa encantou o menino com

    as suas palavras, por saber modular a voz de

    modo a transmitir matizes de sentimentos. Os

    puros e sensveis ouvidos de um jovem quicuio

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    foram afetados por aqueles sons e ainados

    pela musicalidade, que o tocavam tanto quanto

    um som da natureza como o da chuva.

    Para obter tal resultado na leitura

    dos poemas, acreditamos que a baronesa

    tenha aproveitado vrios recursos da

    fala, com suas imensas possibilidades de

    sugesto, envolvimento e sensibilizao. A

    fala, independentemente da lngua e do seu

    contedo signiicativo, age como um fenmeno

    capaz de inluenciar sensivelmente o outro,

    atravs de suas diversas modulaes. Um

    texto, como o de Karen Blixen, que a princpio

    foi elaborado para a escrita, ao ser oralizado

    adquiriu materialidade e identidade prprias

    a partir das suas potencialidades de expresso.

    No teatro, a voz tem uma importncia

    fundamental, j que o ator utiliza vrios

    recursos para a interpretao: suas

    possibilidades vocais e corporais aliadas

    s emoes, sentimentos e energias do

    personagem. Parte-se do princpio que o

    modo de dizer tem uma funo lingstica,

    quer signiicativa, quer distintiva. Ou seja, o

    poder de sugesto da fala transcende o carter

    lingstico. A emisso de palavras idnticas

    pode resultar em mensagens distintas, com

    interpretaes diferentes, devido variao

    da curva meldica, resultando em uma

    expressividade peculiar.

    O Mtodo Espao-Direcional-

    Beuttenmller (M.E.D.B.) busca despertar

    a sensibilidade para a percepo dessas

    caractersticas, que so prprias da natureza

    da voz e, muitas vezes, pouco exploradas

    pelos proissionais da comunicao.

    Procuramos investigar em nossa pesquisa

    essas possibilidades do mtodo, que, aplicado

    expresso da fala pretende associar a cincia

    fonoaudiolgica aos aspectos que constituem

    o verdadeiro mistrio da voz: cores e formas

    das palavras, tcnica e sensibilidade, fala e

    vocalidade potica, isionomia, expresso

    corporal-vocal, sentimentos e sentidos. Enim

    aspectos que fazem da voz um instrumento

    privilegiado da arte da comunicao. A

    professora e fonoaudiloga Maria da Glria

    Cavalcanti Beuttenmller foi a mentora do

    Mtodo Espao-Direcional-Beuttenmller.

    1. A fonoaudiloga e professora Maria da Glria Beuttenmller

    Maria da Glria Cavalcanti

    Beuttenmller gosta de ser chamada de

    Glorinha. Conta que o diminutivo foi uma

    opo pessoal, pois considera este nome mais

    aberto, mais projetado, favorecido pelo grupo

    consonantal [gl], principalmente pelo fonema

    [l] que, por ser uma consoante lquida,

    impossvel de ser pronunciada para dentro e

    pela slaba rin, que propicia uma ressonncia

    nasal ao nome (BEUTTENMLLER, 2003:15).

    Respeitando o seu desejo, passaremos a trat-

    la, ao longo do trabalho, como Glorinha. Ela

    constri a originalidade do seu mtodo luz

    da experincia proissional e do conhecimento

    adquirido nas reas da Msica, Teatro,

    Fonoaudiologia, Pedagogia, Odontologia e

    Psicologia.

    Beuttenmller construiu o M.E.D.B. a

    partir de sua experincia como professora de

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    vrias instituies de ensino e coordenadora

    do Setor de Logopedia, de ensino

    especializado, no Instituto Benjamin Constant,

    de 1960 a 1974, aliada sua sensibilidade,

    adquirida como violinista e declamadora e

    sua formao como fonoaudiloga.

    A necessidade de aprimoramento

    da palavra falada dos deicientes visuais

    do Instituto Benjamin Constant permitiu

    a Beuttenmller sensibilizar-se sobre a

    dimenso da importncia da expressividade,

    pois percebia grande diiculdade nos alunos

    de compreenso para determinadas palavras e

    conceitos. Diante dessa situao, pressentiu a

    necessidade de estimul-los atravs dos outros

    sentidos do corpo, veiculando sensaes tteis,

    gustativas, olfativas e auditivas ao signiicado

    das palavras.

    O poder de sugesto, de imerso do

    ouvinte em um espao sensorial inerente

    fala um dos aspectos que investigamos

    no M.E.D.B. E para o ator, que precisa se

    relacionar como um atleta do corao, com o

    espectador, tal caracterstica da fala apresenta-

    se como recurso interpretativo essencial no

    seu trabalho e que ele precisa dominar.

    2. O Mtodo Espao-Direcional-Beuttenmller (M.E.D.B.)

    Em sua atuao como professora dos

    deicientes visuais no Instituto Benjamim

    Constant, Beuttenmller pesquisou

    formas inovadoras de produzir nos cegos a

    compreenso do sentido das palavras atravs

    de sensaes e sentimentos. Associando

    vozes e gestos, criava, atravs do movimento,

    uma representao das coisas que eles nunca

    chegaram a enxergar, a im de conseguir

    um resultado corporal e vocal satisfatrio

    para a declamao dos poemas como se

    a voz fosse um instrumento que as izesse

    enxergar: As cores, a luz e os movimentos,

    que os olhos jamais puderam ver, ganharam

    novas dimenses no mundo escuro e limitado

    dessas meninas, quando aprenderam que pelas

    palavras e gestos poderiam substituir o prazer

    da viso (BEUTTENMLLER, 2003, p. 52).

    Ela conseguiu que os seus alunos

    deicientes visuais compreendessem que o

    prejuzo da viso poderia ser compensado por

    meio de outras sensaes e expresses no-

    visuais, como o prazer de falar e de gesticular

    no espao. Nesse sentido, para compensar a

    falta da viso, os cegos receberam estmulos

    auditivos, olfativos, tteis e gustativos. A

    informao visual era substituda por uma

    percepo sensorial, permitindo que os

    cegos vivenciassem sensaes corporais. Tais

    sensaes geravam, por sua vez, uma imagem

    mental, uma memria, um registro, facilitando

    a compreenso do signiicado das palavras.

    Tudo comeou com o trabalho realizado com a

    professora cega que lhe pedira uma orientao

    vocal: Preciso que algum me ensine as

    palavras que desconheo. Voc no precisa

    me explicar o que o sol. O sol tem calor e eu

    o vejo e sinto. Mas no sei como a lua... (...)

    E, por isso, no sei falar a palavra lua com

    verdade (BEUTTENMULLER, 2003, p. 31).

    Valendo-se de sua veia potica, logo viu que o

    problema era ttil, uma coisa de pele, intuiu

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    consigo mesma. Mas no o disse em voz alta.

    Meio de improviso, replicou: A lua morna. E

    inspira os namorados (2003, p. 31).

    Beuttenmller conseguiu converter

    uma imagem visual dicil de explicar, como a

    lua, numa percepo ttil, associando-a aos

    sentimentos. Assim como a lua, muitos outros

    conceitos foram compreendidos atravs do

    estmulo de outros sentidos. As sensaes

    estimulam nos cegos a criao de imagens

    mentais que facilitam o reconhecimento e a

    compreenso do mundo, colaborando para

    uma expresso oral mais eiciente, atravs da

    expanso de uma memria sensorial.

    O senso comum entende que os cegos,

    por no terem a viso, no so capazes de

    construir imagens representativas, porm

    est comprovado que possuem um mundo

    de representaes sensoriais (no visuais),

    que podem ser evocadas pela memria na

    ausncia dos objetos que as provocaram. A

    diferena consiste em que o vidente integra

    as informaes de outros sentidos formando

    uma imagem visual das experincias; no

    cego essas imagens visuais esto ausentes,

    mas no a imagem mental. Uma pessoa cega

    tem peculiaridades especicas e limitaes

    inegveis, em relao a uma pessoa vidente,

    porm possui um aparelho psquico capaz

    de representar o mundo de uma maneira

    qualitativamente diferente, capaz de adaptar

    sua evoluo e funcionamento psicolgico com

    a informao sensorial de que dispe.

    Beuttenmller foi percebendo outras

    diiculdades dos cegos, sempre relacionadas

    questo espacial: extenso, distncia, alto e

    baixo, esquerda e direita, frente e trs, cheio

    e vazio, veloz, devagar ou parado, e todas as

    diversas combinaes dessas percepes

    (BEUTTENMLLER, 2003, p. 33). Concluiu que

    a diiculdade com o reconhecimento do espao

    pode acarretar problemas de emisso vocal,

    pois, sem a devida noo de onde e em que

    dimenso deve projetar a sua voz o indivduo

    se intimida e tem diiculdades para falar e

    expressar-se com naturalidade e eicincia.

    Com base na percepo desta questo

    espacial, como vimos, ela desenvolveu com

    seus alunos esse trabalho bem sucedido,

    de Coro Falado, obtendo reconhecimento

    pelos efeitos extremamente positivos na

    comunicao dos deicientes visuais. A partir

    desta experincia, Beuttenmller ratiicou a

    importncia da conscincia do espao para

    a projeo adequada da voz, base da sua

    metodologia de trabalho.

    O M.E.D.B. foi considerado

    revolucionrio na poca da sua criao

    (dcadas de sessenta e setenta do sculo XX,

    Rio de Janeiro). Os atores tradicionais, ao

    tentarem impostar a voz para serem ouvidos,

    de acordo com a esttica vigente, produziam

    um efeito sonoro de verticalizao, falando

    alto demais e em uma nica direo, para a

    ltima velhinha surda da platia. Na viso

    proposta pelo M.E.D.B., os atores desenvolvem

    uma nova relao com o espao cnico: a voz

    tem que ter direo e ao mesmo tempo tem

    que envolver o espectador. No preciso uma

    superarticulao das palavras para que se

    tenha uma boa compreenso delas; preciso

    acima de tudo, respeitar cada vocbulo, de

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    acordo com a sua forma e a imagem perceptual

    que cada uma tem em si.

    O smbolo do M.E.D.B. uma borboleta,

    com uma pessoa no centro e as letras do nome

    do mtodo, como podemos visualizar a seguir:

    Figura 1: Smbolo do M. E. D. B. (BEUTTENMULLER, 1995)

    A palavra borboleta derivada do

    latim belbellita < bellu, bom, belo. e quer dizer pequena bela. As borboletas so insetos

    originados de um processo de metamorfose.

    Primeiro larva, torna-se crislida e depois,

    inalmente, a borboleta. Talvez exista essa

    relao implcita entre o smbolo da borboleta

    escolhida por Glorinha Beuttenmller para

    o seu mtodo e a metamorfose em diferentes

    etapas que pretende promover no uso da voz

    pelo ator.

    Na Grcia antiga, quando a borboleta

    emergia do casulo (da crislida) dizia-se

    que este momento era idntico libertao,

    equivalia ao acesso imortalidade.

    Simbolicamente, Beuttenmller, com o

    seu M.E.D.B., traz a possibilidade desta

    metamorfose, desta libertao pela palavra.

    Cria uma forma original de expressar a

    comunicao - ao mesmo tempo, trabalhando

    com o belo, com as cores e formas da palavra,

    como as diferentes fases da borboleta. Por

    outro lado, a borboleta, como alguns outros

    insetos, tem grande atrao pela luz, e o seu

    aparecimento prenuncia acontecimentos

    alegres. Ao buscar o sentido da palavra na

    relao entre imagem e forma, Glorinha lana

    luz sobre as possibilidades de signiicao

    dessa palavra.

    E foram essas peculiaridades que

    Glorinha conseguiu perceber e soube

    trabalhar para o aprimoramento das tarefas

    comunicativas dos deicientes visuais.

    Glorinha ensinou-lhes a perceber que o mundo

    oferecia sons, cheiros, texturas, temperaturas,

    que devem ser percebidas pelo corpo todo,

    com o auxlio da informao verbal, pelo poder

    evocativo que a palavra possui.

    Nesse sentido, a palavra memria.

    A palavra memria de duas naturezas: a

    palavra como memria individual, resultado

    das experincias particulares de cada um; a

    palavra como memria social, no sentido de

    que a palavra um signo ideolgico, como

    airma Bakhtin (1979). Traz uma marca

    social, um registro social de possibilidades

    semnticas. Segundo Bakhtin, no texto do

    falante, a signiicncia vai alm da fala, ou

    torna-se translingustica, pois o dialogismo

    da linguagem compreende as relaes

    intertextuais. A palavra signiicada dentro

    de um contexto social, em um processo

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    narrativo que ultrapassa as relaes

    signiicante-signiicado, em um dilogo que

    transfere a condio de sujeito da narrao

    ao destinatrio. Este, o sujeito da leitura,

    o intrprete daquele que enuncia algo para

    si mesmo e para o outro. Dessa maneira

    tentando articular o sentido da palavra a

    sensaes e sentimentos, Beuttenmller

    amplia e refora pela memria sensorial e

    sentimental as possibilidades expressivas do

    signo verbal.

    Os fenmenos so explicados no

    prprio estilo de ver o mundo, e o que

    signiicativo para o enunciador pode no ser

    para o outro, na mesma realidade social. Em

    cada situao particular, em um processo

    dialtico e contnuo, cada agente sente de

    modo singular, com sua prpria histria

    de vida e constri signiicados especicos,

    engendrando um texto igualmente especico

    para a compreenso do fenmeno. O M.E.D.B.

    tem a preocupao de reunir signiicante

    e signiicado, valorizando as experincias

    individuais e o poder sugestivo ideolgico do

    discurso, de que nos fala Bakhtin.

    A partir da experincia bem sucedida

    com os cegos, os princpios do M.E.D.B., que

    analisaremos a seguir, foram aplicados e

    aprimorados no tratamento e na formao

    dos proissionais da voz em geral, tais

    como atores, cantores, locutores, polticos,

    oradores, pastores e professores de

    quaisquer modalidades de ensino, cuja voz

    , essencialmente, o seu instrumento de

    trabalho.

    Maria da Glria Beuttenmller criou

    vrios conceitos no seu mtodo, reformulando

    as concepes sobre a impostao vocal. Nesse

    sentido, a impostao da voz passou a ser

    traduzida em um abrao sonoro na platia,

    como se as pessoas fossem tocadas pela voz,

    um verdadeiro efeito de tato distncia.

    Essa opinio reforada pela jornalista

    Ftima Bernardes, locutora de telejornal de

    uma importante emissora no pas: O que

    de mais importante aprendi com Glorinha

    foi que, a cada frase, a cada texto, devemos

    dar um abrao sonoro no pblico. Para isso

    precisamos falar no apenas com a boca, a

    garganta, e sim com o corpo inteiro. Essa

    mensagem icou, e uso em minha carreira

    desde ento (Apud BEUTTENMLLER, 2003, p. 46).

    Esses e outros conceitos como ncleo

    sonoro, escultura sonora, dentre outros,

    criados no M.E.D.B. reletem um desejo pela

    mudana de postura do ator, que relete uma

    concepo e um olhar para o mundo sob

    uma nova perspectiva, uma perspectiva mais

    humana da realidade e no mais apenas pela

    tica da tcnica propriamente dita. Nesse caso,

    o ator deve aliar a natureza e a singularidade

    dessa tcnica com a sensibilidade e a

    afetividade.

    Acreditamos pertinente reproduzir

    o organograma do M.E.D.B., que explicita

    claramente a interligao de todos os aspectos

    a serem trabalhados no ator e que expressam a

    viso global do Mtodo.

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    Figura 2: Organograma do M.E.D.B.

    (BEUTTENMLLER; LAPORT, 1974, p. 2)

    Ao analisarmos as relaes apontadas

    neste organograma, percebemos um

    movimento circular que sugere uma ao

    constante de retro-alimentao. A conscincia

    e vivncia de todas estas etapas so

    consideradas imprescindveis para garantir

    um desenvolvimento artstico harmonioso e

    um bom desempenho do ator no teatro, seja

    qual for a natureza da concepo esttica da

    encenao, a tendncia do texto ou a exigncia

    da direo.

    Um dos aspectos essenciais apontados

    constitui o objetivo principal do ator:

    relacionamento, que se encontra no centro

    do esquema de Beuttenmller. A atividade

    teatral deve ser realizada pelo ator com

    equilbrio e controle do seu esquema corporal-

    vocal, atravs de movimentos bsicos e

    esforos motores, na busca de uma presena

    cnica capaz de produzir um envolvimento

    sonoro no espao.

    Projetar a voz no ncleo sonoro do espao essencial, tanto para garantir a

    audibilidade e envolvimento sonoro, quanto

    para garantir o melhor rendimento com o

    mnimo de esforo do aparelho fonador. Para

    tanto, de suma importncia a percepo

    desse ncleo, que varia de acordo com o

    tipo de palco ou espao cnico. Para se ter

    a percepo do ncleo sonoro, traam-

    se no espao de atuao linhas diagonais

    imaginrias e estabelece-se o ponto de

    encontro dessas linhas, para que a voz seja

    lanada no espao global pelo ator.

    Por outro lado, o ator deve ter um

    treinamento especializado para que possa

    aproveitar as caixas naturais de ressonncia

    com o controle respiratrio. A sonorizao

    deve ser realizada respeitando-se a forma

    global da palavra e a sua imagem. Ao

    pronunci-la, devemos levar em conta a

    percepo corporal, vocal, espacial e rtmica,

    atravs dos movimentos e esforos motores,

    para que se estabeleam relaes na atividade

    artstica.

    O relacionamento a base da arte

    teatral: do ator com os outros atores, do ator

    com o cenrio, do ator com os objetos cnicos

    e do ator com o pblico. Esse relacionamento

    deve ser realizado atravs do uso dos

    sentidos, sentimentos e emoes do ator,

    expressos vocal e corporalmente, a partir de

    suas vivncias, como recomenda Stanislavski

    (1995).

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    De acordo com o M.E.D.B., voz vida,

    voz movimento, voz ar. E essa voz tem que

    envolver o ouvinte. Esse envolvimento tem a

    ver com o abrao sonoro que a adequada

    projeo da voz no espao. E para se conseguir

    dar o abrao sonoro no pblico, Beuttenmller

    recomenda olhar-ver-enxergar para poder

    tocar o espectador com a voz. Devemos

    usar o nosso corpo e a nossa voz de forma

    criativa e personalizada, pois para ela: A

    voz a identidade, o selo, a marca sonora de

    uma pessoa (...) Falamos com o corpo inteiro,

    desde a ponta dos ps at a ponta dos cabelos

    (BEUTTENMLLER, 2003, p. 40). Por este

    motivo, o corpo e a voz devem estar sempre

    ainados, atravs da sensibilidade, conscincia

    dos movimentos, equilbrio interno e externo

    e da economia de esforos. curioso observar

    que esses fatores tambm so fundamentais

    para os pesquisadores Rudolf Laban (1978)

    e Moshe Feldenkrais (1977), constatado em

    nossos estudos do Doutorado.

    Alm disso, devemos usar a expresso

    do olhar quando se fala, para que se possa

    conjugar o olhar-ver-enxergar, reunindo

    todos os outros sentidos de uma forma

    humanista, pois envolve afetividade.

    Beuttenmller prope uma outra natureza de

    interpretao, pois esse afeto vai se reletir

    no gesto, no movimento, na fala e em todas as

    aes, pois no teatro se dialoga principalmente

    com afetos. As idias podem ser obtidas pela

    leitura dos livros. Os afetos se transformam

    em voz. Voz que expressa o afeto dando um

    abrao sonoro no espectador.

    Podemos estabelecer uma relao com

    a epgrafe do livro do autor portugus Jos

    Saramago (1995): Se podes olhar, v, se

    podes ver, repara. O mesmo recomendado

    no M.E.D.B. saber ver, saber reparar, para que

    se possa tocar o outro com a voz. Seu prprio

    olhar e a sua voz se manifestam tocando o

    outro. Essa atitude s pode ser concretizada

    se houver o domnio do espao. E isso implica

    no domnio da projeo vocal no espao que

    deve vir acompanhada da forma e da imagem

    das palavras. Tal pensamento se relaciona com

    a Teoria da Gestalt, que considera a percepo

    como um fenmeno de totalidade, mais do que

    como uma justaposio de partes. A Teoria da

    Gestalt surgiu no inal do sculo XIX e hoje

    importante linha de pesquisa e atendimento

    teraputico na Psicologia (GOMES FILHO,

    2000).

    A palavra vai expressar um universo

    de imagens e signiicados que devem ser

    levados em considerao pelo ator na

    expresso vocal, da palavra como fenmeno

    de totalidade, a partir de sua percepo, da

    sua sensibilidade e da sua experincia. Cabe

    ao ator, ao representar seu personagem,

    transmitir sentimentos e sensaes, dar vida

    s palavras, atravs da sua maneira prpria de

    falar. Descobrindo suas possibilidades, o ator

    pode ir alm do signiicado padronizado ou

    pr-estabelecido, criando nuanas e sutilezas

    de mbito supra-segmental2. Nesse sentido,

    2 Os aspectos supra-segmentais dizem respeito aos sons no-verbais, alm da explorao da melodia das palavras. Esto relacionados aos aspectos extralingsticos

  • Joo Pessoa, Vol. 2, n. 2, 121-130, jul./dez. de 2011 129

    Mtodo espao-direcional-beuttenmller, muito alm das palavras Intera

    es entre C

    orp

    o e Vo

    z no

    Esp

    ao

    a palavra pode trazer em si a representao da realidade ou criar outra realidade, sugestiva de sentidos, como se fosse uma escultura sonora.

    Para que se possa viver intensamente

    um personagem preciso perceber o mundo

    nossa volta, utilizando com propriedade os

    sentidos e expressando os sentimentos de

    forma envolvente para o pblico. Segundo

    o M.E.D.B., para que se estabeleam essas

    relaes entre os sentimentos e os sentidos, o

    ator necessita olhar-ver-enxergar em cena,

    de forma a dominar o espao atravs da viso.

    Concluso

    A ausncia da dimenso espacial

    existente na limitao dos cegos inspirou

    o desenvolvimento do Mtodo Espao-

    Direcional-Beuttenmller, realizado de

    forma emprica, orientada por sua formao

    terica, por sua grande intuio e pela

    experimentao, Mtodo em que o corpo e a

    palavra projetada no espao ocupam um lugar

    essencial na emisso da voz.

    Maria da Glria Beuttenmller

    aprimorou a aplicao do seu mtodo nos

    atores e alunos das escolas de teatro do Rio

    de Janeiro. Sua grande intuio foi fortemente

    excitada pelo exerccio da experincia docente,

    associada densa bagagem acumulada nos

    anos anteriores com os deicientes visuais

    e pelo embasamento cientico obtido nos

    cursos realizados. Uma vivncia extremamente

    da comunicao.

    enriquecedora, que propiciou terreno frtil

    para o aperfeioamento do seu mtodo e a

    sua aplicao, no s junto aos atores, como

    tambm junto a outros proissionais.

    Beuttenmller parte assim da premissa

    de que a palavra traz em si mesma a cor e

    a forma que deinem o seu poder sugestivo

    e sinestsico, envolvendo uma fuso de

    sensaes na sua emisso. Esse aspecto da fala

    ser um pilar sobre o qual se fundar a sua

    metodologia espao-direcional.

    Artigo recebido em 18 de maro de 2011.

    Aprovado em 20 de abril de 2011.

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  • Joo Pessoa, Vol. 2, n. 2,121-130, jul./dez. de 2011130

    Jane Celeste Guberfain In

    tera

    es

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    e V

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    BEUTTENMLLER, Maria da Glria. O que

    ser fonoaudiloga: memrias proissionais

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