microsoft word - alexandre dumas pai - os irmãos corsos

Upload: apsantana

Post on 14-Jul-2015

337 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

OS IRMOS CORSOS

ALEXANDRE DUMAS, pai

OS IRMOS CORSOS

Adaptao de MYRIAM CAMPELLO Ilustraes de JAIME CORTEZDigitalizao: Argo

NDICEA hospitalidade corsa................................................................................ Na casa de Savlia de Franchi.................................................................. O jovem Luciano....................................................................................... As armas histricas................................................................................... Os irmos gmeos.................................................................................... O co e o Mucchio.................................................................................... Histria de uma vendetta.......................................................................... O bandido Oriandi..................................................................................... vendetta fracassada............................................................................... O pacto estranho dos de Franchi............................................................... Reconciliao............................................................................................. Graziella e Bonomi..................................................................................... Peripcias de um noivado.......................................................................... Despedida.................................................................................................. Lus de Franchi.......................................................................................... A desconhecida.......................................................................................... Causas do duelo........................................................................................ "Que arma voc prefere?" ......................................................................... O grave perigo............................................................................................ Luciano vingar.......................................................................................... Duelo a pistola............................................................................................ A apario do pai........................................................................................ Nove horas e dez minutos.......................................................................... Os mortos andam depressa........................................................................ Luciano em ao......................................................................................... "Seu filho foi vingado!" ....................................................................... Os ttulos acima foram introduzidos pelo Editor. (N. do E.) 7 14 18 23 29 38 42 48 52 68 74 84 90 95 99 110 117 124 129 135 139 142 149 157 161 167

CAPTULO 1

A HOSPITALIDADE CORSA

rsega uma regio misteriosa, pitoresca e muito surpreendente. Quando resolvi visitar a ilha, em maro de 1841, pensei que teria de enfrentar uma viagem longa e complicada, que me deixaria com os ossos quebrados e a lngua de fora. Qual nada! Embarca-se em Toulon e dali a vinte horas descemos em Ajcio, j em solo corso. L chegando, temos que comprar ou alugar um cavalo para nos levar localidade desejada. Mas no se assuste, leitor: tanto o aluguel como a compra so oferecidos por um preo to baixo que, mesmo sem muito dinheiro, somos tentados a comprar uma boa meia dzia de montarias. bem verdade que quando adquiri meu animal tive medo de que o coitado no agentasse andar cem metros. Enganei-me redondamente: ele no apenas suportou com firmeza toda a viagem como fez coisas que fariam morrer de inveja um cavalo francs. Fiquei espantadssimo: o bicho era rpido, gil e resistente. Saltava obstculos incrveis, subia e descia elevaes com uma facilidade que me dava calafrios na espinha. Sem falar das pinguelas que atravessava com passo firme e displicente. Um verdadeiro animal de combate. Eu, claro, fechava os olhos e confiava no seu bom senso, que, em se tratando da Crsega, era muito maior que o meu. Fazamos umas quinze lguas por dia sem que o extraordinrio cavalo exigisse gua ou comidinhas especiais. Quando, de tempos em tempos, eu parava para visitar um velho castelo feudal ou uma antiga torre construda pelos genoveses, o animal mastigava um tufo de erva, lambia uma pedra coberta de musgo e matava a sede em qualquer riacho. Pronto, estava resolvido o assunto. 7

C

Hospedar-se na ilha gratuitamente coisa ainda mais fcil. Basta que o viajante percorra a rua principal de uma povoao e escolha a casa mais bela e confortvel de todas. Isso feito, s bater porta: um instante depois surge o dono ou dona, convida o viajante a descer, oferece-lhe uma boa ceia e seu prprio leito, caso tenha apenas um. No dia seguinte, esse acolhedor hospedeiro nos acompanha at a porta e agradece-nos a preferncia com que o honramos. No fantstico? Mas, ateno, caro leitor, para um detalhe importante: nem sonhe em oferecer dinheiro ao dono da casa se no quiser fazer dele um corso ofendido. E um corso ofendido valha-nos Deus! algo que sempre devemos evitar. No mximo, podemos oferecer sua filha um retalho de qualquer fazenda fina com o qual far uma touca para ir prxima festa da cidade. O dono da casa aceitar de bom grado uma faca ou punhal com que certamente matar seu inimigo, caso o encontre. Outro hbito comum na Crsega serem os parentes pobres do proprietrio muitas vezes empregados deste ltimo, em troca de casa, comida e um pequeno salrio. Embora tal coisa possa parecer estranha a um francs, os corsos acham semelhante barganha perfeitamente natural. Apesar da tradio de violncia da ilha, jamais ouvi falar de roubos e ladres em toda minha permanncia na Crsega. O mesmo, entretanto, no se pode dizer sobre os bandidos. No se devem confundir, contudo, os primeiros com os segundos. Os corsos fazem muita questo de diferenciarem os ladres a quem desprezam dos bandidos, a quem muitas vezes admiram e de quem so freqentemente amigos. O leitor pode ir a Ajcio ou a Bastia com uma bolsa recheada de ouro pendurada na sela e no correr o menor perigo. Atravessar a ilha de ponta a ponta sem que nenhum corso o moleste. No entanto, pobre dele se quiser se deslocar de Occana a Levaco tendo um inimigo que lhe declarou a temvel vendetta! No dou um tosto furado por sua vida ao fazer esse curto trajeto de duas lguas. A vendetta um dos costumes mais arraigados na Crsega, como se fizesse parte do solo, das rvores e do prprio ar da ilha. A palavra quer dizer "vingana" e significa a eterna luta de uma famlia que se 8

julga ofendida contra outra que supostamente a ofendeu. Essa luta, que passa de pais para filhos atravs das geraes, vai semeando assassinatos at no mais restar um s membro de uma das duas famlias para contar a histria. Chegando Crsega e logo depois de visitar Corte e Ajcio, resolvi partir para Sartene. Embora toda a ilha seja habitada por gente corajosa e brigona, a provncia de Sartene a terra clssica da vendetta, o que estimulava extraordinariamente minha curiosidade. Posso mesmo dizer que foram as fantsticas histrias ouvidas sobre aquela provncia que me decidiram a visitar a Crsega. Tomando um guia para no me perder pelas montanhas e matagais que atravessam a regio, cheguei pelas cinco horas de uma tarde calma e ensolarada ao alto da colina de onde se viam as cidades de Olmeto e Sullacaro. Levei menos de um minuto para me decidir por Sullacaro e suas graciosas ruas quase desertas. Descemos at o povoado, encontrando apenas, de quando em quando, uma ou outra mulher que caminhava apressadamente, sem olhar para os lados. O guia virou-se para mim com ar interrogativo. Onde deseja o senhor passar a noite? perguntou afinal. Observei atentamente o povoado, olhando as casas que minha vista podia alcanar. Finalmente, decidi-me por uma habitao quadrada e slida, construda maneira de uma fortaleza, com ameias diante das janelas e por cima das portas. Era a primeira vez que eu via essas fortificaes domsticas e olhei a casa cheio de curiosidade. Pareceu-me tambm a mais confortvel de todas as que vi, e tratei de perguntar ao guia a quem pertencia tal morada. Muito bem escolhido, senhor! aprovou ele. Esta casa pertence Sra. Savlia de Franchi, uma excelente dama e uma verdadeira corsa. Ser muitssimo bem recebido e no se arrepender. Mas escute perguntei j preocupado , no h nenhuma inconvenincia em que eu v pedir hospedagem a uma senhora? O corso pareceu no entender. Inconvenincia? perguntou admirado. Por que motivo? Ora! respondi. Se a Sra. de Franchi uma mulher ainda 9

moa, hospedar um homem, ainda que por pouco tempo, poder compromet-la, no acha? Compromet-la? tornou a perguntar o guia, sem entender o sentido da frase que eu italianizara minha vontade, como bom francs. O italiano falado por mim estava longe de ser perfeito, mas a incompreenso de meu interlocutor comeava a impacientar-me. Que diabo, amigo! exclamei, sem poder conter-me. Essa senhora no viva? , senhor. E mesmo assim receber em sua casa um homem ainda moo? Como eu contava apenas trinta e seis anos e meio, acreditava merecer ainda esse ttulo. O guia olhou-me espantado, sem compreender patavina. Mas que diferena far para a Sra. de Franchi que o senhor seja velho ou moo? Perdi as esperanas de chegar a uma concluso se continuasse a interrog-lo desse modo e resolvi mudar de assunto. Que idade tem ela? Meu companheiro cocou a cabea. Mais ou menos uns quarenta anos respondeu, depois de um momento. Ah! exclamei, sem saber exatamente por qu. E tem filhos? Sim, senhor. Dois excelentes rapazes. Ambos moram com a me? Apenas um. O outro vive em Paris. Que idade tm eles? Vinte e um. Os dois? Sim, senhor. So gmeos. Estudam? O que est em Paris ser advogado. E o outro? O outro ser corso respondeu o guia, com um sorriso feliz que ia de orelha a orelha. Achei a resposta dada no tom mais natural e onde no havia a 10

11

mnima sombra de brincadeira bem caracterstica da regio. Pouco a pouco comeava a entender o orgulho que os habitantes da ilha tm de sua terra. Muito bem disse eu. Vamos ento casa da Sra. Savlia de Franchi. Dez minutos depois, cansados e cobertos de poeira, entrvamos no povoado. Notei ento que todas as casas eram to fortificadas como as da Sra. Savlia, o que no pudera observar do alto da montanha. As mais pobres no contavam com ameias, mas sim com pranchas e tbuas grossas forrando o interior das janelas, com pequenas aberturas para a passagem de fuzis. Em outras casas, o reforo era feito com tijolos vermelhos dispostos em duas camadas. Como se chamam essas aberturas que se comunicam com o interior das casas? perguntei ao guia, seguindo um pensamento que me ocorrera. Seteiras, senhor respondeu-me ele. Eu tinha razo. Por sua resposta, constatei que as vendettas corsas eram muito anteriores s armas de fogo. Sabe Deus quando teria uma famlia disparado a primeira flecha ou at mesmo dado a primeira paulada contra outra! Enquanto avanvamos pelas ruas de Sullacaro, ia notando como a vila parecia triste e solitria ao entardecer. As paredes e portas de muitas casas mostravam-se crivadas de balas, o que aumentava a impresso de tristeza do lugar. Repentinamente, medida que caminhava, senti-me espiado sem saber exatamente de onde. Continuei a andar com toda a calma, embora redobrasse de ateno ao observar, quase sem mover a cabea, as aberturas negras de cada casa. Sbito, distingui um olho brilhando na escurido. Logo adiante surpreendi outro que me vigiava. No consegui perceber se pertenciam a um homem ou a uma mulher: s sei que me acompanhavam atentamente at a minha sada de seu ngulo de viso. Senti-me um pouco desconfortvel com semelhante espreita. Mas, bolas! Afinal de contas, estava ou no estava na Crsega? Chegamos finalmente casa da Sra. de Franchi, sem dvida a maior de toda a vila. Meu olhar curioso caiu logo sobre os buracos de 12

bala que vi nas portas e paredes verdade que eram antigos, datando talvez de uns quinze anos atrs; mesmo assim, ali estavam vestgios de uma vendetta! Meu guia bateu porta e ficamos esperando: pouco depois, um homem de casaco e culote de veludo, faixa de seda na cintura e polainas de couro apareceu. Da faixa de seda pendia a bainha de uma faca de modelo espanhol. Senhor disse-lhe eu , perdoe-me a ousadia, mas sou estrangeiro e no conheo ningum em Sullacaro. Seria demasiado abuso de minha parte pedir-lhe hospitalidade por uma noite? Por suas palavras notei ento, pasmo, que era criado, apesar da elegncia exibida. Lembrei-me ento dos costumes corsos: aquele homem devia ser um primo pobre ou sobrinho do dono da casa. De modo algum, Excelncia respondeu ele. O estrangeiro honra a morada na qual se hospeda. Maria disse para a criada que tambm acorrera , informe a Sra. Savlia de que um viajante francs esta pedindo hospitalidade. Dizendo isso, saiu da casa e veio segurar as rdeas de meu cavalo, que olhou com ar de conhecedor: O animal causou-lhe algum problema durante a viagem, senhor? perguntou-me com um leve sorriso. Nenhum respondi. Trouxe-me at Sullacaro quase sem que eu tivesse de dirigi-lo. Nossos cavalos conhecem bem a velha Crsega concluiu satisfeito, dando um tapinha carinhoso no lombo do animal. J tivemos alguns viajantes estrangeiros que se mostraram bastante surpreendidos com a rapidez e agilidade de nossas montarias, achando provavelmente que todas deveriam constituir um formidvel bando de pangars. verdade repliquei. O que o viajante deveria fazer um seguro contra os colapsos cardacos, de tanto que esses cavalos sobem e descem. Desmontei e pus-me a desatar a bagagem que trazia comigo, mas o criado impediu-me: Vossa Excelncia no tem que se preocupar com nada disse ele. Levaremos toda a bagagem para o seu quarto. Que alvio! Estava to cansado que nunca como naquele momento 13

apreciei a verdadeira e real hospitalidade corsa. CAPTULO 2

NA CASA DE SAVLIA DE FRANCHI

Sacudi com tapas vigorosos um pouco da poeira de minhasroupas e entrei na casa. Um corredor fresco e mergulhado na penumbra me esperava, coisa muito agradvel depois de tantas horas viajando sob um sol fortssimo que por pouco no me fritara os miolos. Ao fim desse corredor, que desembocava numa sala mais clara, estava uma senhora alta, vestida de preto, que me olhou diretamente nos olhos. Pensei com meus botes: eis a Sra. Savlia de Franchi. Deveria ter uns quarenta anos de idade, tinha um rosto bonito, cabelos negros e aquela determinao que muitas vezes se encontra nas mulheres mediterrneas. Dirigi-me a ela e parei sua frente. Senhora disse eu inclinando-me , provavelmente me julgar muito indiscreto e audacioso por vir incomod-la em sua casa. Entretanto, os costumes da terra desculpam-me e as palavras de seu criado deixam-me mais vontade para pedir-lhe hospedagem. Seja bem-vindo para a me como ser dentro em pouco para o filho respondeu-me amvel e dignamente a Sra. de Franchi. A partir deste momento, senhor, a casa sua, use-a como melhor lhe parecer. A hospitalidade que lhe peo, senhora, apenas por uma noite. Tenciono partir amanh bem cedo, logo ao romper do dia. O senhor far como lhe for mais conveniente. Espero, contudo, que mude de opinio e nos d a honra de uma longa permanncia. Agradeci-lhe e inclinei-me pela segunda vez. 14

A Sra. de Franchi virou-se para a criada: Maria, acompanhe este senhor ao quarto de Lus. Acenda imediatamente o fogo e prepare-lhe um banho. Perdo, senhor disse sorrindo a Sra. de Franchi, enquanto a criada se afastava. Sei que o maior desejo de um viajante ao chegar um bom banho e uma lareira acesa, pois se nossos dias so quentes, as noites, como notar, so bastante frias. Quando a moa voltar tenha a bondade de segui-la. Pea-lhe, por favor, tudo aquilo de que necessitar. Cearemos dentro de uma hora. Logo que meu filho chegar ir receber as suas ordens, caso isso no o incomode. Ser um prazer conhecer o Sr. Lus de Franchi. Peo-lhe, senhora, que desculpe minhas pobres roupas de viagem. Claro que sim respondeu-me. Desde que o senhor nos desculpe a rudeza da recepo. Como a criada viesse de volta, inclinei-me mais uma vez ante a Sra. de Franchi e acompanhei a moa at o quarto. Este estava situado no primeiro andar e dava para os fundos, abrindo-se para um lindo jardim plantado com mirtos e palmas cor-derosa, atravessado por um riacho de guas claras. A vista era limitada por um bosquezinho de pinheiros to cerrado que mais parecia uma muralha verde. Depois de contemplar durante algum tempo a encantadora paisagem que me cercava, voltei minha ateno para o quarto. Como acontece com todos os quartos das casas italianas, as paredes deste tambm eram caiadas de branco e adornadas com alguns afrescos representando paisagens. Pelo tamanho do aposento e seu conforto imaginei que me davam o melhor quarto, provavelmente o do filho ausente, e minha curiosidade se acendeu. Logo depois que tomasse banho, resolvi, esquadrinharia atentamente a moblia, os livros e todos os detalhes que l se encontravam, para ter uma idia da personalidade de seu habitante costumeiro. Uma vez banhado e quase totalmente vestido, pus mos obra: primeiro, dei uma olhadela atenta e circular por todo o quarto, passando em revista os diferentes objetos que me cercavam. A moblia, para minha surpresa, era bastante moderna fato raro nessa parte da ilha, onde a civilizao ainda no chegou. Constava de 15

um grande leito de ferro com um colcho delicioso, macio e resistente ao mesmo tempo, um travesseiro, um diva, quatro poltronas, seis cadeiras, uma grande estante e uma escrivaninha de acaju. Por esta lista o leitor pode imaginar como era espaoso o quarto de Lus de Franchi. Tive vontade at mesmo de pegar meu cavalo e dar um galope l por dentro antes do jantar. Cortinados de uma bonita fazenda estampada pendiam das janelas e cobriam o leito. O div, poltronas e cadeiras eram forrados com o mesmo tecido, dando um aspecto alegre ao quarto. Resolvi ento examinar a estante que ocupava toda uma das paredes. Nosso Lus devia ser um grande leitor: l estavam os poetas franceses mais famosos, como Corneille, Racine, Molire, La Fontaine, Ronsard, Victor Hugo e Lamartine. Tambm os moralistas como Montaigne, Pascal e La Bruyre enfileiravam-se nas prateleiras; os historiadores, como Mzeray, Chateaubriand, Agostinho Tierry e mesmo sbios franceses, como Cuvier, Beudant, Elias de Beaumont. Em outra parte da estante estavam os romances, entre os quais notei orgulhosamente as minhas Impresses de Viagem. Como eu fosse um curioso de marca maior, resolvi investigar tambm as gavetas da estante. Abri uma delas: encontrei pginas de uma histria da Crsega, escritas provavelmente pelo prprio Lus, e tambm um trabalho sobre os meios a empregar para abolir a vendetta. Alguns versos franceses e sonetos italianos em manuscrito estavam colocados sob todo o resto. Era mais do que eu precisava para formar uma idia sobre Lus de Franchi: na certa tratava-se de um rapaz estudioso, que gostava muito de ler e escrever. Segundo suas leituras, devia ser tambm partidrio das reformas liberais francesas. Eis por que deseja ser advogado, pensei comigo mesmo. Decidi pr o palet de veludo preto, para estar totalmente pronto quando o irmo de Lus aparecesse. O espelho me devolveu uma imagem bizarra: se no estava no rigor da elegncia, pelo menos no me faltava o pitoresco. Meu casaco, aberto nas costuras das mangas para permitir ventilao nas horas quentes do dia, deixava entrever uma camisa de 16

seda de listras suaves. As calas eram tambm de veludo preto, apertadas do joelho ao tornozelo em polainas espanholas abertas do lado com bordados de seda colorida. A grande esquisitice de meu traje, contudo, era o chapu de feltro capaz de tomar todas as formas possveis e imaginveis de acordo com os socos e amassaduras que eu lhe dava. Entretanto, ficava ele vontade principalmente como um sombrero1 pois nisso o transformava com mais freqncia. Como v o leitor, eu contava com a indulgncia da dona da casa para com os meus trajes. Apesar de me arriscar a um acesso de riso de me e filho, recomendo tais roupas aos viajantes, pois so extremamente cmodas. Estava ainda diante do espelho quando bateram porta do quarto. O mesmo criado que me fizera entrar na casa dos De Franchi apareceu no limiar. Perdo desculpou-se ele. Mas o Sr. Luciano de Franchi acaba de chegar e deseja ter a honra de lhe vir apresentar as boasvindas, se isso no o incomoda. A honra ser minha respondi. Mande entrar o Sr. Luciano. Alguns segundos depois ouvi o rudo de passos rpidos no corredor e meu hospedeiro apareceu na porta.

1

Chapu. (N. do E.)

17

CAPTULO 3

O JOVEM LUCIANO

Era um rapaz de cabelos e olhos negros, pele queimada de sol eno muito alto, embora forte e bem proporcionado. Seu rosto de traos firmes era bem tpico daquela regio, um rosto bonito e viril. Era visvel que, na pressa de vir cumprimentar-me, Luciano de Franchi subira a meu quarto com a mesma roupa com que chegara da rua. Usava um casaco de pano verde, uma cala cinzenta bem justa e botas com espora. Na cintura trazia uma bem fornida cartucheira, o que lhe dava uma aparncia militar. Uma grande pistola pendia de seu lado direito, mas Luciano parecia no confiar inteiramente nela; segurava na mo esquerda uma carabina inglesa ultramoderna. Completando tudo, sua cabea estava coberta por um chapu tipo explorador, dando-lhe um ar bastante bizarro. Apesar de ser muito jovem vinte e um anos, segundo o guia que me conduzira a Sullacaro , Luciano de Franchi tinha uma aparncia de independncia e firmeza que me surpreendeu bastante. Ali estava um homem habituado a viver em meio ao perigo, educado para a luta mas ao mesmo tempo prudente, calmo e grave. Num olhar rpido observou as roupas que eu acabara de vestir, as que eu despira, minhas armas e at mesmo a bagagem trazida por mim. Era bem o golpe de vista rpido e seguro de um homem cuja vida depende muitas vezes disso. Perdoe-me se o incomodo, senhor disse Luciano. Queria apenas dar-lhe as boas-vindas e saber se necessita de algo. Ns, os corsos, somos to selvagens que sempre com inquietao que vemos chegar a nossa casa um viajante estrangeiro sobretudo um francs, devido nossa pobre hospitalidade cheia de falhas. Contudo, mesmo 18

19

com todos os erros que poder observar nela, dentro de pouco tempo ser a nica tradio da Crsega que sobreviver. Nada tem a recear, caro senhor respondi-lhe. Sua me foi de uma amabilidade sem limites, provendo-me de tudo que eu pudesse necessitar. "Alm disso continuei, olhando rapidamente pelo quarto , se os corsos so selvagens, eu sou um chins recm-importado da China. Possuem uma excelente biblioteca e todo o aposento de um extremo bom gosto. Se eu no estivesse vendo esta admirvel paisagem atravs das janelas, julgaria estar num dos mais elegantes bairros de Paris." Talvez respondeu Luciano com um leve sorriso. Na verdade, meu irmo Lus sempre teve hbitos mais franceses do que corsos. Gostava de viver rodeado por objetos e idias que lhe lembrassem a Frana, embora seu amor pela Crsega seja grande. Contudo prosseguiu Luciano com ar triste no creio que ao voltar de Paris consiga adaptar-se nossa pobre caricatura de civilizao. Isto lhe bastava antes da partida, mas agora. . . Ficamos um momento em silncio. H quanto tempo seu irmo deixou a ilha? perguntei finalmente a Luciano. H seis meses, senhor. Regressar em breve? Somente daqui a uns trs ou quatro anos. Ter que concluir primeiro seus estudos de advocacia. Notei que a fisionomia de Luciano se entristecera ainda mais. Sem dvida uma ausncia bem longa para dois irmos que se estimam comentei. Oh, sim respondeu-me, olhando atravs da janela. Somos grandes amigos. Ele provavelmente vir visit-lo antes de terminar os estudos, no? perguntei. possvel disse, tornando a fitar-me com tranqilidade. Pelo menos foi o que prometeu. Bem, se ele no cumprir a promessa o senhor sempre poder visit-lo em Paris, no verdade? No... eu nunca deixo a Crsega. 20

O orgulho que Luciano de Franchi tinha pela ptria e a indiferena pelos outros lugares transpareceu em sua resposta. Sorri. Vendo isso, ele tambm sorriu. Pode parecer estranho que eu no queira abandonar uma terra miservel como a nossa disse, apoiando a coronha da carabina numa das botas. Mas nada posso fazer. Sou uma espcie de produto da ilha, como a azinheira e as palmas cor-de-rosa. Eu morreria se fosse obrigado a ficar longe dessa terra, de seu perfume de mar e de montanha. "Alm disso continuou , sou muito ativo, preciso mover-me constantemente no meio da natureza; necessito atravessar torrentes a nado ou de barco, sinto falta de rochedos para subir, florestas para explorar. Preciso de espao e de liberdade. Se me levassem para Paris ou para qualquer grande cidade me sentiria um pssaro na gaiola. Seria desastroso, como bem pode imaginar." O senhor e seu irmo possuem, assim, temperamentos bastante diferentes. Apesar de uma semelhana fsica extraordinria acrescentou ele. Verdade? Sim afirmou , a ponto de, quando ramos crianas, nossos pais serem obrigados a colocar nas minhas roupas e nas de Lus um sinal que nos distinguisse. Quando cresceram, a semelhana no foi alterada por nada? perguntei curioso. Apenas uma leve colorao na pele, determinada por nossos hbitos respondeu. Lus, sempre trancado em seu quarto a ler e escrever, tornou-se bem mais plido, ao passo que eu, como o senhor v, sou bastante moreno, pois meu tempo despendido quase todo ao ar livre. Essa diferena serve de guia aos amigos concluiu Luciano, dando uma risada. Espero que me d oportunidade de constatar essa diferena disse eu encarregando-me de levar uma carta ou presente que o senhor porventura queira enviar a seu irmo. Gostaria muitssimo de conhecer Lus de Franchi. Claro, com imenso prazer de nossa parte. Mas, agora, peo-lhe que me desculpe: vejo que o senhor j est pronto para o jantar e eu acabo 21

de chegar da rua. Ainda no tomei banho nem mudei de roupa e dentro de quinze minutos teremos de estar mesa. por minha causa que se dar ao trabalho de mudar de roupa? Mesmo se fosse este o motivo, o senhor que teria me dado o exemplo. De qualquer modo, terei que trocar a roupa que estou usando por uma de montanhs; depois do jantar tenho um assunto a resolver e, para onde vou, estas botas com esporas seriam muito incmodas. Vai sair depois do jantar? perguntei. Sim respondeu. Tenho um encontro... Sorri. Oh! No nada do que o senhor est pensando. Trata-se de uma simples entrevista de negcios. Perdo se fui indiscreto disse eu. No pretendia forar nenhuma confidncia. Por favor, no se desculpe, o senhor no foi indiscreto. A verdade que no vou mesmo a nenhum encontro amoroso. Nunca tive uma amante e provavelmente nunca terei nenhuma. Se meu irmo se casar e tiver filhos, quase certo que eu nem me case. Mas se ele permanecer solteiro terei que arranjar uma esposa para que nosso nome no se extinga. J lhe disse acrescentou com uma risada , sou um verdadeiro selvagem que veio ao mundo cem anos depois do que devia. De repente, lembrou-se de que estava atrasado. Meu Deus! Se continuar aqui falando pelos cotovelos no estarei pronto hora do jantar. Podemos continuar a conversa depois que tomar banho disse eu , enquanto for se vestindo. O seu quarto fica em frente a este, no ? Deixe a porta aberta e poderemos conversar. Por que no vem ao meu quarto dentro de alguns minutos? Se o senhor gosta de armas, ver as minhas enquanto me visto. Tenho algumas de certo valor histrico.

22

CAPTULO 4

AS ARMAS HISTRICAS

sugesto de Luciano vinha perfeitamente ao encontro de minha vontade de comparar os quartos dos dois irmos. Desse modo, esperei os minutos necessrios e logo depois bati porta de meu hospedeiro, que j comeara a se vestir. Entre, por favor disse ele sorrindo. Em pouco tempo estarei pronto. Que arsenal! Quem entrasse em tal quarto no poderia ter iluses sobre o temperamento de seu dono. Na certa seria o de um caador ou guerreiro, do mesmo modo que o quarto de Lus pertencia a um estudioso. As paredes, forradas com couro de Espanha, estavam cobertas de armas antigas e modernas de vrios tipos diferentes. Os mveis eram slidos e todos dos sculos XV e XVI, com o leito guarnecido por um cortinado de damasco verde com flores de ouro. As cortinas das janelas eram do mesmo tecido, contrastando agradavelmente com a moblia escura. Fique vontade disse Luciano, encaminhando-se para o quarto de vestir, cuja porta se abria para os seus aposentos. O senhor est rodeado por trs sculos de armas. Examine-as enquanto me visto de montanhs, como j lhe disse. Creio que achar graa de meus trajes. Se eu rir dos seus respondi , o senhor deve estar sufocando uma boa gargalhada desde que viu os meus. Luciano riu com gosto. O que est achando das armas? perguntou sua voz do outro quarto. Muito interessantes respondi. Apesar de no ser um 23

A

especialista, tenho algumas em casa bastante razoveis. Quais so, entre estas espadas, arcabuzes e punhais, as armas histricas de que me falou? So trs. Vamos por ordem. Observe cabeceira de minha cama, um punhal isolado, com o boto do punho formando um sinete e o punho protegido por uma grande concha. Estou diante dele. a adaga de Sampietro. Do famoso Sampietro, o assassino de Vanina? Assassino, no! protestou Luciano. Matador. No a mesma coisa? Talvez em todo o resto do mundo, mas no na Crsega. Pertenceu realmente a Sampietro? Sim disse Luciano. Repare bem seu braso gravado no punho. A flor-de-lis francesa ainda no aparece porque ele s foi autorizado a us-la depois do cerco de Perpinho. Ignorava esse detalhe. E de que modo o punhal chegou at sua famlia? Bem, est com os De Franchi h trezentos anos. Foi dado pelo prprio Sampietro a Napoleo de Franchi. Sabe em que ocasio? Sei. Esse meu antepassado e Sampietro caram muma emboscada armada pelos genoveses e lutaram como lees. Em certo momento, o capacete de Sampietro desprendeu-se e um genovs a cavalo j ia derrub-lo com sua massa quando Napoleo de Franchi cravou-lhe o punhal por uma pequena abertura da couraa. "O punhal continuou Luciano animadamente ficou to preso no ferimento que meu ancestral no conseguiu retir-lo. O genovs no esperou uma nova tentativa de Napoleo de Franchi: esporeou o cavalo e fugiu o mais rpido que pde para a sua retaguarda. "Napoleo prosseguiu ele ficou furioso por ter perdido sua arma, mas nem os improprios que lanou na direo do genovs o fizeram voltar, claro. Para consol-lo da perda, Sampietro deu-lhe ento seu prprio punhal, de fabricao espanhola, uma excelente arma, como v, e que corta ao meio duas moedas de cinco francos superpostas." Posso fazer essa experincia? 24

Claro que sim respondeu Luciano, sorrindo. Coloquei duas moedas de cinco francos uma sobre a outra no cho do quarto e vibrei-lhes uma punhalada seca e vigorosa. Luciano dissera a verdade. Quanto levantei o punhal as duas moedas estavam cravadas na lmina, cortadas de lado a lado. Acho que s mesmo o punhal de Sampietro seria capaz de tal proeza disse eu para Luciano, que voltava ao quarto. S no entendo por que preferiu matar a mulher com uma corda, possuindo arma to perfeita. Luciano riu. A explicao simples disse. Nessa poca, ele j havia dado seu punhal a meu antepassado. Deve ser isso. Sampietro contava mais de sessenta anos de idade quando veio especialmente de Constantinopla a Aix para trombetear ao mundo uma importante lio: a de que as mulheres no devem se intrometer na poltica. O que acha o senhor? Concordo com Sampietro. Mas da a estrangul-las com uma corda vai um certo exagero, no verdade? No sei se Luciano de Franchi um timo rapaz mas com certas idias antiquadas entendeu minha ironia. Coloquei o punhal cuidadosamente em seu suporte e dei uma olhadela pelo resto do quarto. Passemos a outro disse Luciano. Est vendo aqueles dois retratos? Sim respondi. Paoli e Napoleo Bonaparte. Bem. Sob o retrato de Paoli h uma espada. C est disse eu, caminhando naquela direo. Era a dele. A espada de Paoli? Verdade? Autntica, como o punhal de Sampietro? Disso no h a menor dvida respondeu Luciano, cheio de orgulho , pois tambm foi dada a uma antepassada minha. A uma senhora? perguntei espantado. Exatamente. Ter o senhor ouvido falar de uma mulher que, durante a guerra de independncia, veio at a torre de Sullacaro 25

acompanhada de um rapaz? No. Conte-me a histria. No chega a ser uma histria. um pequeno episdio. Melhor ainda. Acho que no temos mais tempo para conversar agora. Oh, por favor. Estou curiosssimo: o que aconteceu mulher? Bem, ela e o rapaz apresentaram-se torre de Sullacaro, onde pediram para falar a Paoli. Como este estava ocupado, escrevendo, os soldados que guardavam a porta de seu gabinete no a deixaram entrar. Ela insistiu, mas foi repelida por duas sentinelas. A mulher no se deu por vencida, tornando a tentar. Ouvindo barulho de vozes que discutiam, Paoli abriu a porta e perguntou o que se passava. "Sou eu que te quero falar", disse a mulher. "Pois no", respondeu Paoli. "Pode falar." "Venho dizer-te que tenho dois filhos. Soube ontem que o mais velho morreu em defesa da ptria, e caminhei vinte lguas para te trazer o mais novo." Fiquei muitssimo impressionado com a histria que me contava Luciano. Parece uma cena de Esparta murmurei. verdade concordou o jovem corso. E quem era essa mulher to corajosa? Minha bisav respondeu. Diante de suas palavras, Paoli arrancou ento a prpria espada e entregou-a minha bisav, emocionado. Muito bonito esse modo de apresentar desculpas a uma mulher. Paoli realmente no era um homem comum. Nem minha bisav, no acha? perguntou Luciano, cheio de orgulho. Certamente. E este sabre aqui? falei, apontando para uma arma de excelente qualidade. o que Napoleo usou na Batalha das Pirmides. No diga! Ter entrado para a sua famlia do mesmo modo que o punhal e a espada? Sim. Eis a histria: a batalha j estava no final quando Bonaparte deu ordem a meu av para atacar um grupo de cinqenta 26

homens, um ncleo de mamelucos que resistia ainda em torno do chefe j ferido. Meu av obedeceu, dispersou o grupo e capturou o oficial que os comandava, trazendo-o presena do Primeiro Cnsul. "Napoleo os observava com os olhos entrefechados prosseguiu Luciano e viu quando meu av tentou, em vo, guardar a espada na bainha: a arma estava to estragada e torta pelos choques com as armas dos mamelucos que tal coisa no foi possvel. "Meu av, furioso, atirou longe o sabre e a bainha como trastes velhos. Foi ento que Napoleo, tirando o prprio sabre da cintura, deuo a meu av, que se sentiu honradssimo com o presente e suficientemente consolado." Em seu lugar falei para Luciano gostaria de ter os dois sabres: tanto o de Napoleo quanto o de seu av, por mais estragado que estivesse. Luciano riu espertamente. Olhe diante de si e o encontrar. Napoleo mandou que apanhassem a arma entortada, fez incrustar no punho o diamante que est vendo e devolveu-a minha famlia com a inscrio que o senhor pode ler na lmina. Na parede entre duas janelas, meio sado da bainha onde j no cabia, estava o sabre. Em sua lmina via-se a seguinte inscrio: "Batalha das Pirmides, 21 de julho de 1798 ". Nesse momento, o mesmo servidor que me recebera porta e me fizera entrar surgiu no quarto: A Sra. de Franchi manda preveni-lo de que a ceia est servida disse ele, dirigindo-se a Luciano. Muito bem, Grifo respondeu o rapaz. Diga a ela que estamos descendo. Foi ento que reparei nas suas roupas de montanhs: jaqueta de veludo, culote e polainas. Do traje anterior conservava apenas a cartucheira colocada em diagonal sobre o peito. Continua elegante, Sr. Luciano cumprimentei-o eu. Acha? perguntou ele, meio incrdulo. Pois bem. S aceito o cumprimento se passar a me chamar pelo meu nome. Nada de 27

"senhor" ou coisa que o valha. Certo concordei satisfeito, pois a mim incomodava tratar um rapaz da idade de Luciano de modo to cerimonioso. Mas ter que fazer o mesmo. Com prazer disse ele. Imagine que. . . Parou de repente, ao ver-me olhando atentamente para duas carabinas penduradas uma em frente a outra, e nas quais eu no reparara at aquele momento. Ambas tinham gravada na coronha a seguinte data: "21 de setembro de 1819 onze horas da manh". A preciso do horrio me intrigou. Essas carabinas perguntei so tambm armas histricas? Sim, ao menos para ns. Uma era de meu pai. E a outra? perguntei curioso. A outra respondeu Luciano, rindo de minha me. Mas vamos descer pois ela j deve estar nossa espera. E passando adiante para me mostrar o caminho, fez-me um sinal para que o seguisse.

28

CAPTULO 5

OS IRMOS GMEOS

Descendo a escada que nos levaria sala de jantar, pensava nafrase de Luciano: "Esta a carabina de minha me". Diante disso, minha curiosidade crescera como um bolo no forno. Decidi observar com mais ateno ainda a Sra. de Franchi, a quem at agora s vira rapidamente. L estava ela, j sentada mesa. Luciano beijou-lhe respeitosamente a mo, homenagem que ela recebeu com a dignidade de uma rainha e com um sorriso. Perdoe-me por t-la feito esperar, minha me disse Luciano. A culpa foi minha, Sra. de Franchi apressei-me a explicar, inclinando-me. Seu filho mostrou-me armas to curiosas e contoume histrias to interessantes que acabamos nos atrasando para o jantar, graas s minhas interminveis perguntas. No se preocupe respondeu amavelmente. Acabo de descer neste momento. "Luciano continuou ela dirigindo-se ao filho , eu estava querendo que chegasse logo para saber notcias de Lus." Por acaso seu filho est doente? perguntei Sra. de Franchi. Luciano pensa que sim respondeu ela. Recebeu alguma carta de seu irmo? indaguei a Luciano. No, e justamente isso que me preocupa. No entendi mais nada. Como sabe ento que seu irmo est doente? Porque uns dias atra andei passando bem mal. Continuei sem compreender patavina do mistrio. 29

Desculpe as minhas eternas perguntas, Luciano, mas isso no esclarece o fato de voc saber a respeito de Lus. No sabe que somos gmeos? perguntou ele. Sim, o guia j me havia dito. Quando viemos ao mundo, estvamos ligados pelo flanco. Sabia tambm desse detalhe? No. Pois foi necessrio um golpe de bisturi para nos separar. Demesmo corpo. Qualquer reao fsica ou moral que um dos dois experimenta reflete-se logo no outro. Ora, nesses ltimos dias tenho andado inquieto, triste, sombrio, e sem nenhum motivo aparente. Algo me comprime fortemente o corao. No tenho a menor dvida de que algo de errado est acontecendo a Lus. Olhei espantado para Luciano. A certeza com que falara do estranho fenmeno certeza partilhada inteiramente por sua me me impressionou muito. A Sra. de Franchi sorriu tristemente. Deus olhar por Lus disse ela. O principal voc estar certo de que ele vive. Se estivesse morto observou tranqilamente Luciano eu o teria visto. E j me teria contado, no , meu filho? perguntou a Sra. de Franchi com angstia. Claro, minha me. No mesmo instante. Ela virou-se para mim. Peo-lhe que me desculpe por no ter sabido reprimir, em sua frente, as minhas inquietaes de me. que, alm de Lus e Luciano serem os meus nicos filhos, so os ltimos do nosso nome. Depois de um instante, em que seus olhos negros me fixaram, recobrou-se. Queira sentar-se minha direita, senhor disse ela. Luciano, fique ali. O rapaz obedeceu, sentando-se no lugar vazio esquerda da me. Sentamos cabeceira de uma longa mesa. No outro extremo estavam colocados outros seis talheres para as pessoas que na Crsega 30

so chamadas de "famlia", isto , os intermedirios entre os criados e os patres nas grandes casas. A mesa estava abundantemente servida. Na verdade, entretanto, embora sentisse uma fome de lobo graas viagem, comi distraidamente, procurando apenas saciar-me. No prestei a mnima ateno ao delicado sabor dos pratos que me eram servidos. Minha cabea trabalhava em outro rumo: tinha a impresso de que ao entrar naquela casa penetrara num mundo irreal, onde continuava vivendo como em sonhos. Quem seria aquela mulher que possua uma carabina como qualquer soldado? Que estranho irmo era esse que sentia as mesmas dores e aflies de seu gmeo, embora trezentas lguas os separassem? Que me to especial era aquela que recebia do filho a promessa de, se visse o irmo morto, contar-lhe imediatamente? Eu sentia que um mistrio insondvel rodeava meus hospedeiros. A Crsega era mesmo uma estranha regio! De repente, percebi a indelicadeza de meu silncio. Levantei a cabea e voltei-me para meus interlocutores. Me e filho perceberam imediatamente que eu desejava voltar conversa. a primeira vez que visita a Crsega? perguntou Luciano, cumprindo a minha vontade. Sim. H muito tempo tinha esse projeto na cabea, mas s agora pude realiz-lo. Felizmente no se demorou mais tempo. Daqui a alguns anos, com a constante invaso de gostos e costumes franceses, os que vierem aqui em busca da Crsega no a encontraro mais. Luciano falara aquilo com um profundo ar de tristeza. De qualquer modo consolei-o , se o antigo esprito da ilha est recuando diante dos hbitos franceses e procurando se refugiar em algum recanto dessa regio, certamente ser na provncia de Sartene e no vale do Tvaro. Supe isso? perguntou Luciano sorrindo. Sim. Sinto que o que vejo em torno de mim, aqui, um quadro perfeito e nobre dos velhos costumes corsos. possvel. No entanto, apesar de quatro sculos de tradies, 31

nesta mesma casa de ameias e seteiras habitada pelos De Franchi, o esprito francs veio roubar meu irmo Lus ao nosso convvio, levando-o para Paris. De l voltar advogado. Morar em Ajcio, ao invs de habitar a casa de seus pais. Cuidar de muitas causas e, se tiver talento, talvez venha a ser nomeado procurador do rei. Luciano tomou um gole de vinho e continuou. Ento perseguir os pobres diabos que cometerem algum erro, e confundir o assassino com o matador, como fez o senhor ainda h pouco. Reclamar, em nome da lei, a cabea daqueles que tiverem feito algo que seus pais teriam considerado uma desonra no fazer. Preferir as leis dos homens s leis de Deus. E noite, quando tiver conseguido uma cabea para o carrasco, acreditar ter servido ao pas, colocando mais uma pedra no templo da civilizao, como diz o nosso prefeito. Ah! meu Deus! Vi que o rapaz falara com grande emoo e pensei na grande diferena de temperamento entre os gmeos. Era mesmo fantstico que fossem to amigos. Mas como v retruquei , se Deus fez de seu irmo um seguidor dos costumes franceses e cosmopolitas, conservou em voc o amor pelos velhos hbitos, equilibrando as coisas. Luciano ficou pensativo durante um momento. No sei. No pense que eu seja um corso to perfeito assim. s vezes fao coisas indignas de um De Franchi. Voc? No creio, Luciano. Pois a pura verdade. Quer que lhe diga o que veio procurar na provncia de Sartene? Pode dizer. Voc veio para c com a sua curiosidade de homem mundano, talvez seja um artista ou poeta; no sei o que faz nem o estou indagando nesse momento. Quando partir poder dizer-nos algo a respeito, se for de seu agrado. Do contrrio conservar sua ocupao em segredo, tem plena liberdade para isso. . . Pois bem, voc veio com a esperana de presenciar alguma vendetta, de conhecer um bandido bem original, como os que Mrime pintou na Colomba. Nesse caso, devo ter errado o alvo respondi. Parece-me que a sua casa a nica da povoao que no est fortificada. O que prova que tambm eu vou degenerando: meu pai, meu 32

av, meu bisav, qualquer um deles teria tomado partido por uma ou outra das duas faces na luta que h dez anos divide a aldeia. Eu, no. Luciano deu um suspiro. Sabe o papel que desempenho em tudo isso? continuou ele. Sou o rbitro. Em meio a esses tiros, a essas punhaladas e facadas, limito-me a ser o mediador. O que acha disso? Notei em silncio que irritao e tristeza transpareciam de suas palavras. Voc veio provncia de Sartene para ver bandidos, no assim? Pois bem. Venha comigo esta noite e lhe mostrarei um. Fiquei contentssimo. Permite mesmo que eu o acompanhe? Claro respondeu. Se isto o diverte, no me custa nada lev-lo. Aceito com o maior prazer. Nosso hspede deve estar fatigado, Luciano disse a Sra. de Franchi, olhando rapidamente para o filho. Senti nela, subitamente, a mesma espcie de tristeza e vergonha que dominava o filho, ao ver os costumes corsos degenerarem de tal modo. No queria que tal decadncia fosse exibida a um estrangeiro. Afinal de contas, quem entrava numa vendetta era pessoa corajosa, digna e sria! No, minha me protestou Luciano. at bom que ele venha. Por uma ironia do destino, o que julgamos certo eles julgam errado. Assim, quando ouvir falar nos sales de Paris sobre as terrveis vendettas e nos implacveis bandidos corsos que ainda assustam as crianas de Bastia e Ajcio, poder encolher os ombros e dizer o que h de verdade em tudo isso. No h nenhuma possibilidade de se deter a grande luta que divide essa aldeia h tantos anos? Me e filho se entreolharam. Possibilidade, h. Mas, quando se pensa que est tudo resolvido, os nimos se esquentam de novo. E qual foi o motivo dessa querela que dura j dez longos anos? Luciano sacudiu os ombros. 33

Ora, numa disputa dessas pouco importa o motivo, e sim o resultado. Se uma mosca voando de banda causou a morte de um homem, nem por isso o homem est menos morto. Notei nele uma certa hesitao em me contar as causas da vendetta que h tanto tempo assolava a aldeia. Luciano, entretanto, no me escaparia com tal facilidade. Quanto mais hesitava, mais eu insistia em descobrir o segredo que tentava encobrir. Bem, de qualquer modo, deve ter havido um motivo para tamanha briga. Esse motivo secreto? No, absolutamente respondeu Luciano. A coisa surgiu entre os Orlandi e os Colona. Nova hesitao da parte dele. Finalmente, decidiu-se. Bem, uma galinha fugiu do galinheiro dos Orlandi, indo parar no terreno dos Colona. Quando os Orlandi foram reclamar a galinha, os Colona afirmaram que a ave era deles; os verdadeiros donos ameaaram ento os Colona de os levarem presena do juiz de paz e lhes exigirem um juramento. Ento, a velha Colona, que segurava a galinha, torceu-lhe o pescoo e atirou-a cara da vizinha, dizendo-lhe: "J que tua, come-a, tratante!" "Diante disso, um Orlandi segurou a galinha pelos ps e chicoteou com ela a velha Colona que agredira sua irm. Desgraadamente, um dos Colona tinha a espingarda carregada, desfechando um tiro queima-roupa no Orlandi agressor. Matou-o imediatamente. E quantos j morreram nessa luta? At agora, nove pessoas respondeu-me Luciano. E tudo isso por causa de uma msera galinha! Sim, mas, como j lhe disse h pouco, no a causa que interessa, e sim o resultado. E j que h nove pessoas mortas, imprescindvel que haja uma dcima? Claro que no retorquiu Luciano, notando talvez a irritao e o espanto que transpareciam em minhas palavras. Por isso me tornei o juiz da questo. Na certa a pedido de uma das famlias. Oh! no, de modo nenhum. A pedido de meu irmo, a quem fa34

35

laram em casa do ministro da Justia. No sei por que diabo eles, em Paris, tm que se intrometer nas coisas que acontecem num obscuro povoado da Crsega. Tenho quase certeza de que foi o prefeito quem nos pregou a pea, escrevendo para Paris e dizendo que, se eu quisesse, poderia intervir e liquidar a questo com uma palavra, como num espetculo de teatro, com casamento e final feliz. Luciano deu um suspiro. Meu irmo, claro, segurou a oportunidade pelos cabelos: escreveu-me logo dizendo ter comprometido a sua palavra de que eu procuraria arranjar as coisas. Diante disso, nada pude fazer seno me transformar no apaziguador de Sullacaro. Ningum dir que um De Franchi empenhou a palavra e seu irmo no honrou o compromisso. E voc ento conseguiu um acordo entre os dois grupos em briga? Acho que sim. Embora aqui na Crsega, como lhe disse, vivamos de surpresa em surpresa. O homem que vamos ver esta noite o chefe de um dos partidos? Sim. Um Orlandi ou um Colona? Um Orlandi. E onde se dar o encontro? Nas runas do castelo de Vicentello d'Istria. muito longe daqui? No muito. Mais ou menos a uma lgua de distncia. Quanto tempo levaremos para chegar ao local? No mximo quarenta e cinco minutos respondeu o rapaz, depois de alguma hesitao. Quarenta e cinco minutos? repeti eu, pensando: "Que o Senhor me d pernas fortes!" J me sentia exausto s em imaginar o estiro que teria de andar! Luciano interveio a Sra. de Franchi , lembre-se de que para um montanhs como voc bastaro apenas quarenta e cinco minutos; mas para um parisiense a coisa no ser to fcil: ele no passar com a mesma facilidade pelos caminhos ngremes que voc atravessa. Luciano coou a cabea. 36

Tem razo, minha me. Talvez precisemos, no mnimo, de hora e meia. Nesse caso, no devem perder tempo replicou a Sra. de Franchi, dando um olhar para o relgio da parede. At j, minha me disse Luciano, beijando-lhe a mo. Depois virou-se para mim. Em todo o caso disse se o nosso hspede prefere acabar tranqilamente a ceia, subir um momento ao quarto, aquecer os ps e fumar um bom charuto, eu o compreenderei perfeitamente. Deve estar morto de cansao. Nem pense nisso! repliquei eu, energicamente. Que diabo! Voc me prometeu um bandido. Quero o meu bandido! Pois bem: apanhemos ento as espingardas, e a caminho! A Sra. de Franchi sorria do meu nimo. Saudei-a respeitosamente e deixamos a sala. Grifo ia na frente, para nos iluminar o caminho. Subindo ao meu quarto, afivelei um cinturo de viagem que mandara fazer em Paris; dele pendiam o faco de caa, plvora e chumbo. Afinal de contas, eu estava na Crsega! Luciano tambm trazia sua cartucheira, uma espingarda de dois canos de Manton e na cabea um lindo barrete bordado. Os preparativos no duraram mais de cinco minutos. Devo ir com o senhor? perguntou Grifo. No preciso respondeu Luciano , mas solta Diamante; provvel que, com esse luar, consigamos abater algum faiso e nesse caso vamos precisar dele. Um momento depois, um grande cachorro espanhol pulava entre as nossas pernas, ganindo de alegria ante a perspectiva do passeio. Samos. O luar fazia a noite quase to clara quanto o dia. Luciano virou-se para Grifo: Ah, ia-me esquecendo. Avisa na aldeia que se ouvirem tiros de espingarda na montanha, somos ns que estamos caando. Fique tranqilo, senhor. Se no forem avisados acrescentou Luciano para mim so capazes de pensar que as hostilidades recomearam e logo ouviremos a resposta aos nossos tiros pelas ruas de Sullacaro. Samos da casa. Dentro de poucos minutos, tomamos uma viela direita que conduzia diretamente montanha. 37

CAPTULO 6

O CO E O MUCCHIO

ma brisa deliciosa soprava do mar, trazendo at ns um perfume spero e vivo. A lua, felizmente para mim, tornava muito claro o caminho, impedindo-me de tropear nos acidentes do terreno. Acostumado desde que nascera quela regio, Luciano galgava com a tranqilidade de um cabrito o monte nossa frente. De vez em quando eu olhava para trs e via a ilha, l embaixo, toda banhada de luar. Que espetculo! Era estranho pensar que sob aquela aparncia to calma escondiam-se dios de sculos, que matavam pais, filhos e os filhos dos filhos. Naquele momento, esquecida de tudo, a Crsega dormia. medida que subamos avistvamos melhor o Mediterrneo, espelho de prata que rodeava a terra corsa. O rudo dos grilos era agradvel e tranqilizador. O mesmo eu no diria de outros barulhos totalmente desconhecidos que acompanhavam nossa caminhada. Totalmente desconhecidos para mim, claro! Luciano parecia conhec-los perfeitamente. A apreenso que me causavam no era compartilhada por meu companheiro. Finalmente, chegamos a um trecho em que o caminho se dividia em dois: num atalho que parecia dar a volta montanha e em outro, pouco visvel, que dobrava direita. Luciano parou. Ento disse-me ele voc tem p de alpinista? P, talvez respondi ; mas olho, no. Costuma ter vertigens? Infelizmente sim. A altura no me faz l muito bem. Nesse caso, evitemos os precipcios. Vamos por este caminho que s nos oferece dificuldades de terreno. 38

U

timo. Os terrenos acidentados no me assustam. Luciano avanou primeiro por um pequeno bosque de azinheiras. Eu o segui, afastando os ramos que s vezes me impediam o caminho. Diamante corria nossa frente uns cinqenta ou sessenta passos, ora direita, ora esquerda, movendo alegremente a cauda como para nos anunciar que podamos prosseguir sem perigo. Repentinamente, o co se deteve, orelhas em p. Luciano levantou a espingarda pronto para qualquer emergncia. Paralisado, senti meu corao disparar dentro do peito, enquanto tentava enxergar entre as rvores do bosque. O que poderia ser? De sbito, Diamante disparou pelo bosque atrs de algo que se movia na frente. Luciano baixou a espingarda. Ora! exclamou, entre aliviado e decepcionado. apenas uma lebre dos montes! O susto me impediu de perguntar o que pensara que fosse. Via-se que Diamante fora ensinado a caar o bpede e o quadrpede, isto , bandidos e animais, como certos cavalos que so animais de sela e de cabriol. A fim de mostrar a Luciano que eu, aos poucos, ia conhecendo os costumes corsos, comuniquei-lhe minha observao. Pois est enganado respondeu ele. Diamante caa realmente homens e animais, mas o homem que ele caa no o bandido e sim um misto de gendarme e de guarda da polcia voluntria. Como! Ento Diamante um cachorro de bandido? Sim, se quiser cham-lo desse modo. Ele pertenceu a um Orlandi a quem eu, de vez em quando, enviava comida, plvora, balas, cobertores, coisas desse tipo, enfim, muito necessitadas por um foragido. Esse Orlandi foi morto por um Colona certo dia; no dia seguinte recebi o seu cachorro, que estando acostumado a vir a minha casa habituou-se a mim com facilidade. Do meu quarto avistei um outro cachorro brincando no ptio. Foi tambm de um Orlandi? No. Brusco tem as mesmas qualidades que o Diamante, mas pertenceu a um Colona morto por um Orlandi. Por isso, quando vou visitar um Colona levo Brusco; e quando tenho algo a tratar com um Orlandi levo Diamante. Mantemos sempre um animal preso enquanto o 39

outro est solto. Caso contrrio, meu amigo, eles lutariam entre si at um dos dois tombar morto. Os homens continuou Luciano aps um momento podem se acomodar, mas os cachorros jamais fariam as pazes. So mais dignos e mais fiis s suas paixes. Notei a amargura de suas palavras. Diamante e Brusco so dois verdadeiros cachorros corsos, ento disse eu, procurando consol-lo. Mas onde foi parar Diamante? Acho que ficou encabulado com os elogios que lhe fez. No se preocupe disse Luciano. Sei onde ele est. Sim? Onde? No Mucchio. Quando eu ia perguntar onde era o tal Mucchio, ouvi um prolongado e triste uivo. Estremeci e parei, segurando o brao de Luciano. O que isso? Nada respondeu ele. Diamante chorando. E por que chora? Pelo dono. Os cachorros, meu caro, no so como os homens, j lhe disse. Jamais esquecem aqueles que os estimaram um dia. Ah, sim. Um segundo uivo cortou os ares, ainda mais triste e lamentoso que o primeiro. Por acaso perguntei o Mucchio o tmulo do antigo dono de Diamante? l que o animal est agora? Sim. Mucchio o monumento que os transeuntes erguem sobre a campa de todo o homem assassinado, atirando-lhe uma pedra ou um ramo silvestre. Assim, ao invs de se apagar e desaparecer com o tempo, como acontece aos outros tmulos, o Mucchio faz com que a tumba da vtima cresa incessantemente, smbolo da vingana que deve sobreviver ao morto e aumentar cada vez mais no corao de seus parentes mais prximos. Continuamos a andar, agora em silncio. Subitamente, um terceiro uivo chegou at ns, e desta vez to perto que senti um calafrio na espinha, embora agora j conhecesse os motivos de Diamante. 40

Realmente, quando dobramos uma curva do caminho avistei, a uns vinte passos de distncia, um monte de pedras formando uma pirmide de quatro ou cinco ps de altura. Era o Mucchio. Junto ao estranho monumento, de pescoo estendido e goela aberta, estava Diamante. Luciano tirou o barrete, apanhou uma pedra do cho e se aproximou do Mucchio. Eu fiz o mesmo. Junto pirmide, ele quebrou um ramo de azinheira, jogou primeiro a pedra e depois o ramo. Em seguida fez com o polegar um rpido sinal da-cruz, gesto comum entre os corsos e ao qual o prprio Napoleo recorreu em ocasies difceis. Eu o imitei. Depois de um momento, reiniciamos a caminhada, silenciosos e pensativos. Diamante ficou para trs. Uns dez minutos depois ouvimos um ltimo uivo do cachorro e dali a poucos instantes o animal passou por ns. Vinha de cabea baixa e cauda descida, mas num passo rpido que logo o colocou a uma boa distncia de ns. O co fiel fora deixado para trs. L estava, novamente, o nosso batedor Diamante.

41

CAPTULO 7

HISTRIA DE UMA VENDETTA

Continuamos avanando. O caminho, como avisara Luciano,tornava-se cada vez mais ngreme. Como agora precisasse das duas mos, pus minha espingarda a tiracolo. Meu hospedeiro continuava a subir como se caminhasse num terreno sem a menor dificuldade. De vez em quando dava uma olhadela para trs, naturalmente para certificar-se de que eu o seguia ou se teria cado numa vala. Aps alguns minutos de escalada atravs das penedias, agarrandonos em sarmentos e razes que cresciam no monte, chegamos finalmente a um plat: l estavam as runas do castelo de Vicentello d'Istria, objetivo de nossa viagem. At chegarmos s runas propriamente ditas, tivemos que escalar ainda, por uns cinco minutos, pedras e vegetao. Na ltima etapa, Luciano estendeu a mo e ajudou-me a subir. Ora viva! exclamou ele. Para um parisiense, voc at que no se comporta mal. que este parisiense respondi, depois de retomar o flego , embora no seja um cabrito como voc, j fez algumas excurses deste gnero. Ah, sim comentou Luciano, rindo. Vocs tm em Paris uma montanha que se chama Montmartre, no ? Temos; mas alm de Montmartre, seu orgulhoso, j subi em outras montanhas, como o Righi, o Faulhorn, a Gemmi, o Vesvio, o Stromboli e o Etna. Puxa! exclamou ele. Nesse caso quem vai rir de mim voc, pois at hoje subi apenas ao monte Rotondo. Como pode ter feito tantas escaladas se tem vertigem de altura? 42

Ah, mas isso foi h muitos anos. Naquela poca, enfrentava qualquer montanha. Bem, chegamos disse Luciano, ao atingirmos finalmente o castelo arruinado. Quatro sculos atrs, meus avs teriam dito: "Bem-vindo seja ao nosso castelo". Hoje em dia o descendente deles aponta para estas pedras e lhe diz: "Bem-vindo seja s nossas runas". Este castelo pertence ento sua famlia desde a morte de Vicentello d'Istria? perguntei curioso. Desde antes. Seus primeiros habitantes foram Luciano de Franchi e sua mulher, a famosa Savlia. Mas, inmeras peripcias aconteceram ao castelo, que foi perdido e retomado algumas vezes por nossa famlia. Fiquei em silncio por um momento, enquanto olhava em torno as majestosas runas banhadas de luar. At que no me contive: Escute, Luciano, o historiador Filippini no conta uma histria terrvel a respeito de Savlia de Franchi? Ou estarei enganado? No, no est. Se fosse de dia, voc poderia ver daqui mesmo as runas do castelo de Valle. Era l que morava o Sr. de Gidice, to feio e detestado, quanto Savlia, a castel daqui, era formosa e estimada. O homem apaixonou-se por ela, j ento viva de Luciano. Como Savlia no desse mostras de corresponder a esse amor, Gidice mandou avis-la audaciosamente que, se ela no o quisesse por bem, seria obrigada a aceit-lo pela fora: se no se casasse com ele dentro de um certo prazo, ele a roubaria. Savlia de Franchi prosseguiu no era algum que se deixasse intimidar. Assim, fingiu ceder finalmente a Gidice e o convidou para jantar em sua casa. O homem ficou no auge da alegria. Esquecera completamente suas ameaas ofensivas, achando que Savlia optara pela soluo mais sbia. No dia do jantar, compareceu ao castelo acompanhado apenas de trs servidores. Mas Savlia preparara-lhe uma surpresa: logo que as portas se fecharam sobre eles, Gidice foi agarrado e trancafiado num calabouo. Venha sugeriu-me Luciano , vamos dar uma volta pelas runas. Passamos por pedras irregulares cobertas de relvas e chegamos a uma espcie de ptio interno. Os muros que ainda permaneciam de p projetavam misteriosas sombras no cho. 43

Luciano consultou o relgio. Estamos vinte minutos adiantados murmurou ele. Vamos sentar um pouco. Voc deve estar cansado. Sentamo-nos, ou melhor, deitamo-nos num declive coberto de trevo que ia dar numa larga fenda mais adiante. Durante algum tempo olhamos o cu claro e lmpido da Crsega. Sabe, Luciano falei eu, interrompendo o silncio , tenho a impresso de que voc no me contou tudo sobre Savlia de Franchi. verdade respondeu. Onde paramos? Ah! Sim. Com Gidice trancado no calabouo. Bem, todas as tardes, Savlia entrava no calabouo onde estava trancafiado Gidice, e uma vez l, separada do inimigo apenas por uma grade, despia-se e mostrava-se nua ao homem do outro lado da grade. "Gidice dizia-lhe ela , como que um homem to horrendo como voc pde pensar que um dia possuiria tudo isto?" Ela o torturou desse modo durante trs meses, duas vezes por dia continuou Luciano. Ao fim de trs meses, contudo, para desgraa de Savlia, Gidice conseguiu subornar um guarda e fugiu. Para um homem vingativo como ele, a desforra era uma questo de tempo. "Pois foi o que aconteceu prosseguiu meu interlocutor. Ao cabo de quinze dias, Gidice armou um pequeno exrcito de vassalos e assediou o castelo de Savlia at tom-lo. Isso feito, apoderou-se dela e exibiu-a nua dentro de uma grande jaula de ferro, numa clareira da floresta chamada Bocca di Cilaccia, oferecendo ele prprio a chave da jaula a todos os passantes. Ao fim de trs dias dessa prostituio pblica, Savlia estava morta." Ficamos calados durante algum tempo, pensando no destino terrvel daquela que habitara exatamente no local onde nos encontrvamos. Seus antepassados comentei para Luciano compreendiam bem a vingana. Mas parece-me que seus descendentes degeneraram bastante, pois agora contentam-se em matar com um tiro de espingarda ou uma punhalada certeira. . . O pior disse rindo Luciano que acabaro por no se matarem de todo. Mas a luta entre as famlias De Franchi e Gidice foi terrvel: os dois filhos de Savlia, que eram ainda garotos quando se deu 44

a morte da me, estavam em Ajcio sob a guarda de um tio j velho, mas que os educou como verdadeiros corsos. Assim que tiveram idade suficiente, puseram-se a guerrear os filhos de Gidice. "Esta luta entre os De Franchi e os Gidice continuou ele durou nada menos de quatro sculos. S terminou no dia 21 de setembro de 1819, s onze horas da manh, data que o senhor deve ter visto nas carabinas de meu pai e minha me." Sim, lembro-me dessa inscrio. Fiquei alis muito curioso, mas esqueci depois de lhe perguntar o significado que teria. A histria a seguinte: em 1819, restavam da famlia dos Gidice apenas dois irmos; dos De Franchi existia apenas meu pai, que se casara com uma prima. Pois bem: trs meses aps esse casamento, os Gidice resolveram acabar conosco de uma vez. "Um dos irmos continuou Luciano ficou de tocaia na estrada de Olmedo, esperando meu pai que voltava de Sartene. O outro Gidice, aproveitando essa ausncia, iria assaltar nossa casa. A sorte de meus pais que foram prevenidos a tempo: logo que minha me recebeu o aviso do marido atravs de um homem de confiana, reuniu os nossos pastores e ps-se ela mesma espera, de carabina em punho, apoiada a um pequeno quadrado de madeira recortado na janela. Por sua vez, meu pai, na montanha, tomou as precaues necessrias. Desse modo, quando o ataque foi executado, encontrou os dois De Franchi bem defendidos. "Aps cinco minutos de luta, os dois irmos Gidice tombavam mortos, um atingido por meu pai e outro por minha me. Meu pai olhou o relgio: eram exatamente onze horas. Em sua casa, por uma estranha coincidncia, minha me fez o mesmo gesto: eram exatamente onze horas: A raa dos Gidice fora exterminada ao mesmo tempo." Luciano deu um suspiro e continuou: A partir desse dia vitorioso, a famlia De Franchi, depois de quatro sculos de luta, passou ento a viver tranqilamente, nunca mais se envolvendo em nenhuma contenda. Para celebrar o combate final, meu pai mandou gravar nas duas carabinas a data e a hora do acontecimento, pendurando-as lado a lado. Sete meses depois minha me teve dois gmeos: este montanhs da Crsega que aqui v e seu irmo Lus, o cosmopolita. 45

Sinto que voc lamenta ter nascido tarde demais para participar da vendetta com os Gidice, hem Luciano? brinquei eu. Ele deu uma gargalhada. Talvez tenha razo respondeu. Confesso que a vida aqui na Crsega anda um pouco montona para o meu gosto. Por que no comea outra luta? D um soco no queixo de seu vizinho, chame Lus e ponha novamente a famlia De Franchi em p de guerra! Nova risada de Luciano. Por favor disse , deixe o pobre Lus fora disso. No h ningum que tenha mais horror violncia do que ele. Acho que no concordaria com a sua proposta. Alm disso, meu vizinho um santo homem e meu parceiro de cartas pelo menos duas vezes por semana. Foi a minha vez de rir. Bem, j que seu parceiro de cartas, vamos poup-lo; no. . . Fomos interrompidos por um leve rudo atrs de ns. Olhamos imediatamente naquela direo. Numa parte do terreno iluminada pelo luar destacavam-se as sombras de um homem e de um cachorro. Eram Orlandi e nosso amigo Diamante. Nesse exato momento ouvimos o sino do relgio de Sullacaro bater nove badaladas com lentido. Fiquei impressionado com" a pontualidade do bandido: este seguia risca o exemplo de Lus XIV, para quem a exatido no cumprimento dos horrios era a polidez dos reis. E quem seria mais rei daquela spera regio montanhosa do que Orlandi, que conhecia todos os seus recantos? Luciano e eu nos levantamos, dirigindo-nos para o homem que esperava.

46

47

CAPTULO 8

O BANDIDO ORLANDI

bandido. No se preocupe com ele respondeu o rapaz. Este senhor um amigo meu que ouviu falar sobre voc e quis conhec-lo. Achei que no devia recusar-lhe este prazer. Nesse caso, seja bem-vindo disse Orlandi, inclinando-se educadamente. Correspondi ao cumprimento como se estivesse ante o rei de Frana, pois sei como os corsos so rgidos em matria de etiqueta. O bandido deu alguns passos em nossa direo. J esto aqui h muito tempo? perguntou. H uns vinte minutos respondeu Luciano. Ah, por isso ouvi os uivos de Diamante no Mucchio e h uns quinze minutos ele est comigo. um cachorro fiel, hem, Sr. Luciano? Isso mesmo, Orlandi. Diamante um excelente animal falou Luciano, enquanto acariciava o plo macio do cachorro. O pensamento tanto de Orlandi quanto de Luciano voara para o antigo dono de Diamante que jazia agora no Mucchio. Na minha cabea, entretanto, se formava uma pergunta. Voltei-me para Orlandi. Se sabia que Luciano estava aqui perguntei , por que no apareceu antes? Porque o nosso encontro estava marcado para as nove horas disse ele e to impontual chegar quinze minutos antes como quinze minutos depois. Est me censurando, Orlandi? perguntou rindo Luciano. No, de modo nenhum; o senhor pode ter tido algum motivo para modificar seus hbitos. Alm disso, veio acompanhado, e talvez 48

Est

acompanhado,

Sr.

Luciano?

perguntou

o

tenha sido por causa deste senhor que sua pontualidade se alterou. Sei melhor do que ningum como rigoroso quanto aos horrios; graas a Deus o senhor tem se incomodado bastante por minha causa... Deixemos isso para l, Orlandi; esta vez ser provavelmente a ltima. O rosto de Orlandi assumiu uma expresso meio constrangida. Temos algo a conversar sobre isso, no? perguntou o bandido com voz sumida. Sim, se quiser acompanhar-me. . . Estou s suas ordens. Luciano virou-se para mim. Vai desculpar-me, no ? Nossa conversa ser rpida. Por favor, fique vontade! Ambos se afastaram, dirigindo-se para uma parte do terreno bastante iluminada pela lua. As duas silhuetas fariam um bom alvo para seus inimigos, pensei com meus botes. Pus-me a observar sobretudo Orlandi com ateno. Era um homem alto, de grande barba, e vestia-se exatamente como o jovem De Franchi. A nica diferena que sua roupa mostrava vestgios de um contato prolongado com o mato e os espinhos. Por vrias vezes fora obrigado a fugir dos gendarmes corsos atravs da vegetao cerrada, o que causara aos seus trajes alguns rasges. A poeira cobria tambm, numa camada fina, as calas e a camisa, pois Orlandi dormia todas as noites no cho, sob as estrelas. No consegui entender uma s palavra do que diziam: primeiro porque estavam a uns vinte passos de mim e segundo porque falavam o dialeto corso, do qual eu no sabia patavina. Compreendi, entretanto, pelos gestos enrgicos de Orlandi, que o bandido recusava algo que lhe era dito por Luciano. Este no parecia se abater; comeava tudo de novo com uma calma que mostrava bem sua imparcialidade diante do assunto. Aos poucos, os gestos de Orlandi foram ficando menos freqentes e mais calmos; suas palavras eram pronunciadas num tom menos alto at que afinal se transformaram num murmrio. A ltima frase de Luciano foi recebida pelo bandido com um balanar afirmativo de cabea. Depois disso, Orlandi estendeu a mo ao rapaz e ambos puseram-se a caminhar em minha direo. 49

Meu caro disse-me Luciano , Orlandi deseja apertar-lhe a mo para agradecer-lhe. Agradecer-me o qu? Ter consentido em ser um de seus padrinhos. Prometi-lhe isso em seu nome. Se voc lhe prometeu algo em meu nome, aceito sem nem mesmo saber do que se trata. Estendi a mo a Orlandi, que me honrou com a ponta dos dedos. Alexandre falou Luciano para mim , agora poder dizer a meu irmo que tudo est resolvido, de acordo com a vontade dele. Haver at mesmo um contrato entre as duas partes para voc assinar. E talvez um casamento. Sim? exclamei eu, espantado. Luciano sorriu. J, j, no respondeu. Mas provvel que acontea. Bonomi Orlandi e Graziella Colona simpatizam um com o outro e fariam um belo par. O bandido fechou a carranca. Ora, Orlandi censurou-o Luciano. Sabe muito bem que o corao passa por cima das velhas brigas entre as famlias. Alm disso, os moos no do um caracol pelas tradies. E talvez at mesmo estejam com a razo suspirou. A ver meu filho casado com uma Colona respondeu Orlandi preferiria trancafi-lo no celeiro pelo resto de sua vida. Paz sim, j que o senhor tanto insiste sobre isso, mas casamento jamais. Respeito suas razes, Orlandi, mas repito que fariam um magnfico casal, ainda que isso possa aborrec-lo. Mas falemos de outra coisa. Luciano virou-se para mim. Ouviu alguma coisa enquanto falvamos? A conversa entre voc e Orlandi? Claro que sim respondi. No me refiro conversa. No ouviu o cacarejar de um faiso bem perto de ns? Ouvi, mas no imaginei que aquele rudo fosse produzido por um faiso. Pois foi confirmou Orlandi. H um faiso empoleirado 50

no grande castanheiro que o Sr. Luciano conhece, a cem passos daqui. Eu o ouvi quando passei, momentos atrs. Nesse caso disse Luciano, contente , vamos tratar de com-lo amanh. Orlandi cocou a cabea. Ele j estaria no cho se eu no temesse que na aldeia pensassem: "J est Orlandi atirando num Colona". No se preocupe, Orlandi disse Luciano. Mandei Grifo avisar em Sullacaro que talvez cassemos um pouco. Por falar nisso continuou o rapaz, voltando-se para mim , cedo-lhe a vez. Por favor, Luciano. Fao absoluta questo de comer minha parte do faiso amanh, e seu tiro deve ser mil vezes mais certeiro do que o de um pobre parisiense falei. Luciano riu. Bem disse ele , atirar deve ser uma das poucas coisas que um "pobre corso" faz melhor do que um "pobre parisiense". Alm disso, voc no deve ter o hbito, muito comum entre ns, de caar noite, e certamente atiraria baixo demais. De qualquer modo, se no tiver nada para fazer amanh de manh, poder tirar a sua desforra.

51

CAPTULO 9

A VENDETTA FRACASSADA

Abandonamos as runas e fomos nos internando no matoem declive. Luciano, com a espingarda engatilhada, marchava frente. Quando entramos num bosque de castanheiros, o faiso ps-se novamente a cacarejar. Imveis, procuramos nos guiar pelo rudo: o faiso se escondia entre os ramos de uma rvore cercada por arbustos espessos e de difcil acesso, a uns oitenta passos de distncia. Toquei o ombro de Luciano. Como poder se aproximar sem que ele o oua? perguntei. Vai ser difcil. verdade respondeu-me, aps um momento. Se ao menos eu pudesse enxerg-lo, atiraria daqui mesmo. Daqui? Sua espingarda to poderosa que mata faises a oitenta passos de distncia? Com chumbo, no. bala, sim. Ah! Ento, ainda bem que no sou eu quem vai atirar. Quer ver o faiso? perguntou Orlandi. Sim. Precisamos com-lo amanh respondeu Luciano. Espere um momento. Orlandi levou as duas mos junto boca e ps-se a imitar o cacarejo da fmea do faiso. Pouco depois percebemos um movimento entre as folhas do castanheiro. O faiso subia de ramo em ramo, respondendo com cacarejos ao apelo que lhe fazia Orlandi. Finalmente, bem no alto da rvore, surgiu ele. Sua forma destacava-se perfeitamente visvel contra o cu. A emoo por termos conseguido que a ave aparecesse me fez estremecer. 52

Orlandi calou-se. O faiso ficou imvel, como se pressentisse que algo de estranho se passava. Felizmente Luciano no perdeu tempo. Empunhou a espingarda e aps um rpido momento em que fez uma perfeita pontaria, atirou. O faiso foi acertado em cheio. Confesso que no pude evitar um grito de alegria, logo acompanhado pelas providncias que se toma diante de uma caa tombada. Vai busc-lo gritou Luciano a Diamante. O cachorro no esperou segunda ordem: meteu-se pelos arbustos cerrados e dali a cinco minutos voltou com o faiso na boca. A bala atravessara-lhe o corpo. Que belo tiro, Luciano! exclamei eu. Voc um campeo. Ora! Grande vantagem! disse Luciano. Um dos canos raiado e dispara as balas como uma carabina. No importa. De qualquer modo esse tiro merecia um primeiro lugar em qualquer concurso. Com uma carabina mesmo disse Orlandi , o Sr. Luciano acerta a trezentos passos numa moeda de cinco francos. Voc atira com pistola to bem como com a espingarda? perguntei a Luciano. Mais ou menos respondeu. Consigo atingir com seis balas entre doze a lmina de uma faca colocada a vinte e cinco passos de distncia. Dei um assobio. Seu irmo to bom no gatilho quanto voc, Luciano? Meu irmo? Pobre Lus! Acho que no consegue nem distinguir uma espingarda de uma pistola. Meu medo que se envolva em alguma dificuldade em Paris e, por ser valente, deixe-se matar para no desonrar seu nome e o nome de sua terra. Luciano abriu sua sacola e ajeitou cuidadosamente o faiso l dentro. Bem, meu caro Orlandi disse ele , ento at amanh. At amanh, Sr. Luciano. Sei que voc pontualssimo: s dez horas, voc, seus amigos e parentes estaro no extremo da rua, no assim? Do lado da montanha, 53

mesma hora, no extremo oposto, Colona chegar com o pessoal dele. Ns estaremos na escadaria da igreja. Muito bem, Sr. Luciano. Obrigado por tudo que tem feito. E ao senhor, cavalheiro disse Orlandi, estendendo-me a mo , obrigado pela honra que me d em ser meu padrinho. Apertamo-nos as mos e nos separamos. Orlandi tornou a se internar no mato enquanto caminhvamos em direo aldeia. Nesse momento, notei uma coisa curiosa: Diamante ficou indeciso entre Orlandi e ns, olhando ora para a esquerda, ora para a direita. Depois de alguns instantes, afinal resolveu nos dar a honra de sua companhia. Chegara para mim o terrvel momento de descer a encosta pedregosa; quando a subira, pensara com meus prprios botes de que modo a desceria, pois, mesmo apesar da lua, eu poderia despencar com facilidade l de cima: bastava tropear num acidente do terreno. Felizmente Luciano adivinhou os meus temores, enveredando por um caminho diferente daquele pelo qual viramos. Como a descida era branda, sem os sacolejes da subida, podamos conversar. Ainda no tnhamos dado cinqenta passos quando me deixei arrastar pelas perguntas, como sempre. Ento, as pazes entre as duas famlias foram feitas? Sim. Ufa! Que trabalho me deram! Consegui convencer Orlandi dando-lhe a entender que todos os esforos partiram dos Colona. Em primeiro lugar eles tiveram cinco homens mortos, ao passo que os Orlandi s tiveram quatro. Os Colona concordaram ontem com a reconciliao, mas os Orlandi s hoje deram o seu consentimento. Os Colona prometeram devolver publicamente uma galinha viva aos Orlandi, num gesto que prova o reconhecimento do antigo erro. Esta ltima parte foi que decidiu Orlandi a se reconciliar com o inimigo. E amanh que tudo ser resolvido? Sim, amanh s dez horas. At que o senhor teve sorte, no , j que esperava ver uma vendetta! Teve um riso amargo. Bela vendetta! H quatrocentos anos no se ouve falar de outra coisa na Crsega. De qualquer forma, ver uma reconciliao, coisa muito mais rara que uma vendetta. 54

Pus-me a rir. Voc tem toda a razo de se rir de ns: somos mesmo uma gente muito esquisita! No, no isso. Estou rindo porque est furioso consigo mesmo de ter conseguido o trmino da briga Orlandi-Colona. Ah, Luciano, acho impossvel algum ser mais corso do que voc! Pois gostaria que visse com que eloqncia defendi o restabelecimento da paz. pena que o assunto, alm de ter sido conversado em particular com o chefe de cada famlia, foi todo discutido em dialeto corso. Mas volte daqui a dez anos concluiu e fique certo de que todo o mundo falar francs. Fiquei em silncio, observando meu companheiro enquanto caminhvamos. admirvel o amor que voc tem por esta terra, Luciano falei. Voc um excelente advogado da Crsega. No, no. Sou apenas um rbitro; Lus empenhou a minha palavra: pois bem. Tentei cumprir a misso do melhor modo possvel, sem deixar que minha opinio sobre o assunto interferisse na soluo do caso. Se me nomeassem juiz entre Deus e o Diabo procuraria fazer com que chegassem a um acordo, embora no ntimo estivesse convencido de que Deus, dando-me ouvidos, estaria cometendo uma grande tolice. Percebendo que esse tipo de conversa irritava muito Luciano, tratei de mudar de assunto. Como por seu lado ele no tentou aliment-lo, caminhamos em silncio durante algum tempo. Estava eu imerso em meus pensamentos quando o som de um tiro me sobressaltou. Olhei imediatamente para Luciano, que se imobilizara. Imitei-o, voltando o rosto na direo do som. O eco de um novo tiro cortou os ares, desta vez seguido de intensa fuzilaria. Orlandis e Colonas puseram-se a brigar novamente! Meu Deus, o que ter acontecido com Grifo? exclamou Luciano. Por que no avisou que amos caar? Sua voz mostrava-se extremamente aflita. Um calafrio de emoo me percorreu a espinha de alto a baixo. Se o prprio Luciano, acostumado desde criana a essas reviravoltas corsas, estava to nervoso, que a situao deveria ser de uma seriedade absoluta. 55

O que poder fazer para contornar a situao, Luciano? perguntei. No tenho a mnima idia, Alexandre. De qualquer modo, tenho que voar para Sullacaro. Se estiver muito cansado para correr, volte tranqilamente. De modo nenhum, Luciano. Vou com voc. impossvel descrever a rapidez com que disparamos pelos campos e bosques iluminados pela lua. Diamante, como sempre, ia na frente, animado por nossa correria. Eu me esforava ao mximo para no perder meu companheiro de vista: ele movia-se com a ligeireza de uma lebre, desviando-se de pedras e rvores, saltando fossos, superando enfim qualquer obstculo que se atravessasse em nosso caminho. Um toco de rvore quase fez com que eu me estatelasse no cho, mas consegui recuperar o equilbrio. Metade movido pela curiosidade do que estaria acontecendo, metade movido pelo orgulho de poder acompanhar um corso quela velocidade e em seu prprio terreno, sentia minhas roupas se rasgarem aqui e ali contra os galhos e meus sapatos se lascarem contra as pedras, mas nada me faria parar. J no tinha mais o mnimo flego quando Luciano diminuiu a corrida e ps-se a caminhar. Ah! Como abenoei aquilo! Confesso que estava a ponto de estourar, a boca aberta e ressecada, o corao saltando fora do peito. Luciano parou de todo, olhando para mim. Percebi ento que parara para que eu pudesse descansar, no porque estivesse fatigado. Fiquei abismado. Eu nunca poderia competir com ele em seu terreno, pois meu companheiro nem sequer ofegava! Agradeci-lhe mentalmente o gesto delicado, pois no podia pronunciar uma palavra. Poucos momentos se haviam passado quando uma nova fuzilaria chegou a nossos ouvidos. Luciano estremeceu. Tenho que continuar! disse ele, novamente recomeando a correr. Disparei no seu encalo, agora um pouco mais descansado. Felizmente j estvamos quase chegando ao local de onde partiam os tiros. 56

57

Luciano parou atrs de um grande muro de pedra para examinar a situao. Os Colona cercaram a casa dos Orlandi murmurou ele. O pior que Orlandi, com o barulho dos tiros, deve estar descendo a montanha como um tufo! Depois de pensar durante um momento, Luciano galgou rapidamente o muro de pedra. Quer vir? perguntou ele, estendendo-me a mo. No hesitei, e dois segundos depois estava tambm em cima do muro. Do muro, Luciano passou para um telhado prximo, situado quase mesma altura do paredo de pedra. Pulamos mais alguns telhados, aproximando-nos cada vez mais da zona de fogo. Luciano procurava fazer os movimentos o mais rpido possvel e com o corpo curvado; imitei-o, imaginando que temia uma bala perdida. Finalmente, diante de um ptio interno, meu companheiro parou: uma bala passou sibilando bem prxima de ns, o que nos obrigou a esconder-nos atrs de uma chamin de tijolos vermelhos. Teramos sido confundidos com o inimigo por alguma das duas famlias? Deite-se imediatamente e fique o mais possvel atrs dessa chamin! murmurou Luciano. a nossa nica chance! Colei-me completamente ao telhado, procurando manter a cabea atrs da chamin. Nossas silhuetas recortadas pelo luar, entretanto, haviam chamado a ateno dos Orlandi, que despejaram a seguir sobre ns uma furiosa saraivada de balas. O ombro de Luciano foi sacudido pelo impacto: um tiro o havia atingido. Meu companheiro levou rapidamente a mo ao ferimento, mas o sangue corria por entre seus dedos. Fiquei em pnico, ali no alto daquele telhado, com Luciano ferido e as balas chovendo em torno de ns. Depressa! disse ele. Rasgue um pedao de minha camisa e faa um torniquete. Tenho que pr um fim a esta loucura de qualquer modo! Minhas mos tremiam, mas consegui fazer o que me pediu. J com o ombro amarrado, Luciano apoiou a cabea na chamin; 58

imaginava a dor que poderia estar sentindo e isso me tornava ainda mais nervoso. Como sairamos dali? Um suor frio grudava minha roupa no corpo. Pensei naquele instante que havia soado nossa hora. Luciano arrastou-se o mais que pde para dentro do ptio, embora grudado s telhas, e gritou: Ouam-me, Orlandis! Luciano de Franchi quem fala! Os tiros, entretanto, impediam que fosse ouvido. Depois de suportar outra chuva de balas, arrastou-se novamente para o lugar onde estvamos antes. Dessa vez ofegava. O nico jeito tentar com os Colona! falou. Temos que voltar pelo mesmo lugar de onde viemos! Rastejamos pelo telhado at nos pormos fora do alcance das balas que continuavam a cantar. Pulamos como dois macacos por todo o caminho de volta, e posso dizer que tivemos sorte. Com aquele tiroteio, devamos at agradecer aos Orlandi por s terem atingido Luciano no brao! Finalmente chegamos ao grande muro e descemos ao cho. No sei como Luciano conseguiu a faanha, com o brao ferido, mas o fato que l estvamos ns correndo por entre as casas, nos aproximando cada vez mais da rua onde lutavam. Subitamente, Luciano estacou, fazendo sinal para que parasse tambm. Obedeci com o corao batendo como um tambor: ficamos ali com a respirao presa, imveis, esperando. O que teria notado o meu companheiro? Eu no ousava perguntar nada com medo que ouvissem, e olhava atentamente a rua com manchas de luar e zonas de sombra pelo cho. De repente, ouvi um rudo quase imperceptvel: a uns cinqenta passos de distncia, um vulto destacou-se da rvore junto qual estivera abrigado e, correndo, pulou o porto de uma casa s escuras e que me pareceu em runas. Era um Colona em busca de um lugar melhor para atirar, ou que procurava penetrar na casa dos Orlandi pela parte de trs. Seus movimentos foram acompanhados de intensa fuzilaria partindo das janelas e portas dos Orlandi, e respondida dos mais variados lugares. Puxa, havia Colonas em toda a parte! Atrs das chamins das casas 59

vizinhas, junto s rvores, colados aos muros; as pistolas cuspiam fogo de vrias direes. De repente compreendi o temor de Luciano: ele tinha medo de gritar e ser morto antes que soubessem de quem havia partido o grito. Do jeito como os nimos estavam exaltados, Orlandis e Colonas atirariam no fantasma do prprio pai sem se perguntarem duas vezes! S havia uma soluo, pensei comigo mesmo: era Luciano aproximar-se de um deles, agarr-lo tapando-lhe a boca e dizer-lhe no ouvido: Sou Luciano de Franchi. claro que a soluo era arriscada, mas eu no via outra. Luciano pareceu adivinhar meu pensamento. Pronunciou um "Espere aqui" quase inaudvel e comeou a mover-se em direo ao renque de rvores que dividiam em duas partes as ruas de Sullacaro. Via seu vulto esgueirar-se agilmente por entre os grossos muros das casas prximas, torcendo de todo o corao para que no o percebessem. Depois no vi mais nada: Luciano fora engolido pela enorme sombra formada pelas rvores. Apurei o ouvido, enquanto o suor frio grudava minha roupa ao corpo. A angstia pelo que poderia acontecer a meu amigo tornava-me a boca seca e as pernas trmulas. Entretanto, desconhecendo o modo corso de emboscada e no estando habituado quele gnero de coisas, qualquer tentativa de ajuda de minha parte s poderia atrapalh-lo. Alm disso, que diriam aqueles exaltados habitantes de Sullacaro ao verem um estrangeiro imiscuindo-se em seus negcios? Somente Luciano tinha autoridade para faz-lo. Ao mesmo tempo, sua nica chance de conseguir apanhar um Colona era que este o tomasse por um deles. Via-se que aquela gente tinha um ouvido fino e no se deixaria pegar com facilidade. De repente, uma idia me ocorreu: e se tentasse chamar a ateno sobre mim? Havia uma chance de que Luciano pudesse atingir melhor seu objetivo se os Colona fossem atrados por um rudo qualquer. Assim pensando, apalpei o cho em busca de algumas pedras. Felizmente encontrei logo algumas muito boas para o que eu pretendia fazer; protegido pela esquina do muro, encomendei a alma a Deus e atirei as pedras a uns dez metros de distncia. Meu corao quase parou quando ouvi um ligeiro rudo direita 60

do lugar onde eu estava. Prendi inteiramente a respirao, esperando que a qualquer momento um Colona saltasse sobre mim e me esganasse. Um minuto inteiro transcorreu sem que nada acontecesse. Provavelmente os Colona depois de um momento de estranheza me haviam tomado por um de seus parentes. O que teria acontecido a Luciano? Minha aflio aumentava a cada momento. Como se fosse uma resposta pergunta que eu fazia, um som parecido com um gemido veio do grupo de rvores mergulhado na sombra. Pouco depois, a voz desconhecida de um Colona gritou: Parem todos de atirar! Luciano de Franchi est. . . Um tiro cortou-lhe as palavras. Era Orlandi que chegara! Emboscado no alto de um telhado e vendo sua casa cercada, resolvera agir sem demora. O tiroteio que se seguiu foi espantoso. Balas passaram zunindo pelo meu ouvido e iam se cravar nas paredes de uma casa vizinha. Durante um minuto s se ouvia o barulho e s se via o fogo cuspido por carabinas e pistolas empunhadas pelas duas famlias. Eu no podia recriminar os Colona, pois agora se defendiam da pontaria certeira de Orlandi. Quando os tiros diminuram de intensidade, a voz de Luciano gritou: Orlandis e Colonas! Luciano de Franchi quem fala! Parem imediatamente de atirar! Dessa vez, por milagre, as armas silenciaram. Luciano no esperou mais: Houve um terrvel engano! gritou. O tiro que ouviram na montanha foi disparado por mim contra um faiso! Orlandi no atirou em ningum! Mandei que Grifo avisasse na aldeia sobre nossa caada, mas algo deve ter acontecido a ele, pois no o fez! No permitam que um engano ponha a perder o que havamos combinado! Lembrem-se de suas esposas e filhos! Silncio. De repente, uma voz gritou entre os Colona: Hei de arrancar o couro de todos os Orlandi se meu filho Gicomo foi morto por um tiro deles! Gicomo est vivo, Colona! O tiro passou-lhe de raspo pelo ombro! gritou por sua vez Luciano. 61

Se est vivo, que fale! berrou Colona. Uma voz mais jovem cortou a noite: verdade, pai! A bala passou de raspo! Um longo silncio. Novamente ouvi a voz forte de Colona: Quem mais est ferido entre ns? perguntou. Ningum respondeu. Um estremecimento me percorreu. O silncio podia ser tanto bom como mau. Houve uma movimentao entre as rvores, acompanhada de alguns murmrios. Anselmo! berrou a voz de Colona. Sim, pai! respondeu algum atrs da rvore mais distante. Napoleo! gritou Colona, continuando o balano de seus parentes. Aqui estou, tio! Federico! Tudo bem, Marco! respondeu uma voz vinda do telhado em frente casa atacada. Ferrcio! Sim! Paolo! Sim! Colona, com sua voz estentrea, continuou assim por mais cinco ou seis nomes. Eu estava completamente fascinado com aqueles velhos nomes italianos berrados atravs da noite corsa, e espantadssimo ao ver que respondiam de lugares que eu nunca teria imaginado estarem ocupados por Colonas. Quando o ltimo nome respondeu, respirei, aliviadssimo. O mesmo alvio que Luciano deveria estar sentindo naquele momento. H algum ferido em minha casa? rugiu Orlandi, com uma voz de trovo que ribomba nas montanhas. No, pai! respondeu algum de dentro dos muros. Minha alegria no tinha limites. Ali estava a p