mídia e discurso - clara câmara e diego amaral (orgs.)

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"Mídia e Discurso: teoria, consumo e produção de sentido na comunicação contemporânea", organizado por Clara Câmara e Diego Amaral, apresenta subsídios para o debate sobre a contemporaneidade costurando temas diversos por um fio condutor determinante: a mídia.

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Coletivo COMjunto de Comunicadores Sociais

Editora Xeroca!

A Editora Xeroca! é fruto do Coletivo COMjunto de comunicadores sociais. Carrega consigo a principal bandeira levantada pelo coletivo: a Democratização da Comunicação. Possibilitando o compartilhamento de ideias, pesquisas e de diversos pontos de vista através de publicações impressas e virtuais, com a linha editorial voltada para a desconstrução das relações opressoras da sociedade. Foge da lógica do lucro, tendo como prioridade a circulação e o acesso.

Missão

Publicar livros que possam promover o debate crítico sobre a sociedade, cultura, educação e comunicação, estimulando a leitura e a produção.

CONSELHO EDITORIALCecília Bandeira Delosmar Magalhães Isa Paula Morais Juliana Terra Mayra Medeiros

CONSELHO FISCAL Alexandre Santos Isadora Dias Lucas Pontes

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CLARA CÂMARA DIEGO AMARAL

(ORGS.)

Mídia e discursoTeoria, consumo e produção de sentido na

comunicação contemporânea

Maurício LiesenRogério Covaleski

Janaine S. Freires AiresDiógenes Lycarião

Karla Regina Macena P. PatriotaZandra Marina de Holanda Monteiro

Jocélio de OliveiraAlanna Maltez

Cristianne Melo

1ª edição

João PessoaEditora Xeroca!

2015

Page 6: Mídia e Discurso - Clara Câmara e Diego Amaral (orgs.)

PROJETO GRÁFICO E EDITORAÇÃO ELETRÔNICAJanaine Aires

REVISÃOClara Câmara, Diego Amaral e Douglas Romão

BIBLIOTECÁRIA RESPONSÁVELLeyde Klébia Rodrigues da Silva

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SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO /9PREFÁCIO /11

Do medium à medialidade. Sobre a necessidade de uma revisão conceitual | Maurício Liesen /16

O exercício da cidadania na literacia das novas narrativas

publicitárias |Rogério Covaleski /49

Narrativas periféricas: reflexoes sobre o lugar do outro nos jogos documentais | Clara Câmara e Diego

Amaral /69

“O presidente dando o resultado da Tele-Sena” e se Silvio Santos

tivesse sido eleito? | Janaine Aires /99

~

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Uma ilha discursiva submersa pela indiferença: a invisibilidade da regra 42 na cobertura da Conferência

do Clima de Copenhague | Diógenes Lycarião /118

Uma “luta discursiva” e fantasmática: O usuário e suas

reclamaçoes sobre a crise aérea brasileira | Karla Patriota e Zandra

Monteiro /143

Consumo e usos do telejornal Correio Verdade no Mercado Central

de João Pessoa | Jocélio Oliveira /177

“Pessoas como eu” e os discursos de consumo na Internet: a

publicidade diante do atual cenário comunicacional | Alanna Maltez /206

As configuraçoes publicitárias na cibercultura: O conceito de

publicidade híbrida e sua aplicação nos doodle/google | Cristianne Melo

/232

~

~

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APRESENTAÇÃO

Mídia. Conceito recorrente nos estudos de Comunicação, a serviço de inúmeras problematizações. Diante disto, cabe uma questão: seria essa versatilidade um indicador de falta de clareza? Ou ainda, até que ponto pode um conceito resistir às diversas abordagens distintas e, por vezes, contrastantes? Tal diversidade pode ser encarada como caráter complexo e volúvel do conceito, mas pode também indicar uma dificuldade de delimitação.

Embora esta obra não traga consigo a pretensão de solucionar tais questões, são indagações como essas que motivam sua produção. Em primeiro plano, é de nosso interesse propor uma reflexão acerca da mídia; tanto no sentido de revisitar suas premissas, quanto no de explicitar que as apropriações feitas nas mais diversas proposições não se invalidam, mas antes, compõem um mosaico de construções que contribuem para elucidar o contemporâneo.

Com este intuito, abrigamos provocações que vão desde um questionamento sobre a validade do atual arcabouço teórico em torno deste objeto, passando por debates sobre o alcance educativo da mídia, até a análise das mais diversas manifestações da mídia enquanto poder, a exemplo do jornalismo, da publicidade e dos jogos digitais.

Assim, buscamos mostrar como um único fio condutor é capaz de suscitar investigações sobre representações

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Apresentação Sumário

sociais, apropriações de consumo, considerações no campo da política e subjetivação. Ao mesmo tempo, ligar temas tão diversos, embora sugira um risco, na perda de clareza no nosso propósito, manifesta o nosso interesse fundamental em desvelar a mídia em suas diferentes facetas. Como um objeto múltiplo que se revela a cada novo olhar, a cada nova perspectiva, queremos reforçar a multiplicidade do objeto.

Certos de que não esgotaremos esse tema em toda a sua complexidade - sobretudo por acreditarmos que se ganha mais em alimentar um debate do que na tentativa de finalizá-lo - tentamos, com esta obra, lançar combustível sobre um debate que julgamos de fôlego.

Esperamos, então, contribuir para enriquecer essa jornada, em detrimento de propor uma saída ou resposta conclusiva. Não como cartilha, mas como cardápio, apresentamos a perspectivas e autores diversos, cujos questionamentos e respostas instigam e motivam nossa caminhada.

Clara Câmara e Diego AmaralOs organizadores

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PREFÁCIO

A coletânea “Mídia e discurso: teoria, consumo e produção de sentido na comunicação contemporânea” reúne nove artigos assinados por doze pesquisadores, em sua maioria, oriundos e/ou vinculados a seis diferentes programas em Comunicação do país (UFPB, UFPE, UFF, UFMG, UFRJ, USP). Os problemas investigados, por sua vez, pertencem a diferentes campos de estudo e contemplam questões de natureza teórica e prática. Trata-se, portanto, de uma obra cujos textos têm um perfil bastante heterogêneo.

Um leitor mais atento, no entanto, consegue enxergar que dentro de um campo de estudo específico, os problemas eleitos como objeto de investigação partem de inquietações em comum. Por exemplo, no caso dos trabalhos sobre publicidade e consumo, objetiva-se pesquisar as transformações do fazer publicitário diante das novas tecnologias digitais e das interações em rede.

É o que faz Alanna Maltez no artigo “Pessoas como eu” e os discursos de consumo na Internet: a publicidade diante do atual cenário comunicacional. A autora fala do descrédito das publicidades tradicionais diante dos

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12 | MÍDIA E DISCURSO

Prefácio Sumário

depoimentos online dos consumidores e mostra que, neste cenário, a publicidade vem adotando duas estratégias de credibilização baseadas no consumidor online: o endosso espontâneo e as microcelebridades.

Rogério Covaleski, por sua vez, em O exercício da cidadania na literacia das novas narrativas publicitárias, busca entender como as narrativas publicitárias atuais - diluídas em conteúdos midiáticos de entretenimento e passíveis de interação –, contribuem e/ou afetam o “letramento” dos consumidores contemporâneos impactados por esses discursos persuasivos.

Em As configurações publicitárias na cibercultura: o conceito de publicidade híbrida e sua aplicação nos Doodle/Google, Cristianne Melo afirma que a publicidade de hoje adotou um modelo centrado na experiência individual, no entretenimento e na fruição estética. Para exemplificar, analisa os chamados Doodles e considera que a transformação do logotipo da Google visando veiculações breves em datas comemorativas é consequência da era tecnológica e de um mundo globalizado, que apresenta como características a mutação, a velocidade, a conectividade e a colaboração.

Karla Regina Macena P. Patriota e Zandra Marina de Holanda Monteiro também lançam um olhar para as novas práticas em rede em Uma “luta discursiva” e fantasmática: o usuário e suas reclamações sobre a crise aérea brasileira. Elas elegem um site de reclamação como lócus de análise e mostram que é a relação entre

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Prefácio Sumário

satisfação e percepção que baliza a construção do discurso dos usuários sobre o serviço aéreo no país.

Enquanto os trabalhos sobre publicidade e consumo da coletânea focalizam novas práticas sociais correlacionadas às novas tecnologias de comunicação e informação, os papers sobre jornalismo abordam assuntos mais diversos.

Em Uma ilha discursiva submersa pela indiferença: a invisibilidade da regra 42 na cobertura da Conferência do Clima de Copenhague, Diógenes Lycarião demonstra que, durante a cobertura da 15ª Conferência do Clima das Nações Unidas, a Folha de São Paulo e o Jornal Nacional deixaram de noticiar o conflito em torno da implantação da chamada regra 42. No entanto, mais do que um déficit deontológico das práticas jornalísticas, o autor argumenta que a invisibilidade em torno de tal tema evidencia a indisposição generalizada da sociedade em prol de uma transformação estrutural da política contemporânea.

Em Consumo e usos do telejornal Correio Verdade no Mercado Central de João Pessoa, Jocélio de Oliveira relata o estudo de recepção que fez no Mercado Público Central de João Pessoa com os espectadores do telejornal policial Correio Verdade. Trata-se de uma pesquisa cuja atenção volta-se para a fruição de programas televisivos em ambientes públicos; entre outros resultados, aponta o poder de persuasão do apresentador de tal programa.

Em O presidente dando o resultado da Tele-Sena, e se Silvio Santos tivesse sido eleito? , Janaine S. Freires Aires também fala do poder midiático de um apresentador.

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Prefácio Sumário

Ela aborda o fenômeno da midiatização da política a partir de uma situação imaginária: a eleição de Silvio Santos para presidente em 1989. A autora defende que tratar de algo que não ocorreu - mas que poderia ter ocorrido - também faz parte da política, pois esta é atravessada pelas dimensões sensíveis e do imaginário.

Afora os textos sobre jornalismo e publicidade, o estudo dos games também se faz presente na obra. Em Narrativas periféricas: reflexões sobre o lugar do outro nos jogos documentais, Clara Câmara e Diego Amaral analisam a representação da figura do oprimido nas narrativas dos docu-games, ou newsgames, no intuito de mostrar como tais jogos proporcionam ao usuário uma relação de empatia com o outro ancorada na vivência da alteridade.

Além das análises de natureza mais empírica, a coletânea traz o texto de Maurício Liesen, que propõe uma revisão teórica do conceito de medium. Em Do medium à medialidade. Sobre a necessidade de uma revisão conceitual, o autor introduz o leitor no debate da Filosofia dos Media, mapeando uma série de autores e obras ainda não tão discutidos no cenário acadêmico nacional.

Enfim, em sintonia com importantes questões de comunicação do contemporâneo, os trabalhos aqui reunidos debruçam-se sobre visibilidades e dizibilidades do tempo presente e, com isso, apontam para importantes estratégias de construção dos discursos e das subjetividades. Trata-

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Prefácio Sumário

se, portanto, de uma obra que interessa não apenas aos estudantes e pesquisadores do campo das Ciências Sociais, mas ao leitor preocupado em pensar as novas formas de vida. Fica aqui, então, o convite à leitura e ao pensamento.

Cristina Teixeira Vieira de Melo Recife, 8 de junho de 2015

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Do medium à medialidade. Sobre a necessidade de uma

revisão conceitual1

Maurício Liesen2

Introdução

Os media atuam em nossa sensibilidade, em nossas formas de apreensão do mundo e em nossas possibilidades de ação. Desta maneira, eles possuem não apenas uma dimensão material, mas uma dimensão perceptiva (estésica) e cognitiva. Por esse motivo, a elaboração conceitual do termo medium se tornou fundamental para as ciências humanas.

Estimuladas pelos avanços técnicos dos meios de expressão, empreendidos principalmente durante os séculos IX e XX, diversas teorias dos media buscaram defini-lo a partir de sua função: como um instrumento, como um sistema de possibilidades, como um significante, como um material que transmite, armazena e processa uma informação. Do ponto de vista da produção de sentido, essas correntes podem ser divididas, de maneira bastante genérica, entre

1 Trabalho produzido sob os auspícios da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) – Processo 2014/06555-7.

2 Pós-Doutorando da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo e pesquisador visitante do Instituto de Artes e Media da Universidade de Potsdam (Alemanha). Homepage: mauricioliesen.wordpress.com. E-mail: [email protected].

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Maurício Liesen Sumário

aquelas que defendem um “apriorismo” medial (o medium é o próprio sentido) ou um “secundarismo” medial (ele carrega um sentido que está em outro lugar). Ou seja, o medium é considerado ou um produtor ou um transportador de um sentido. O objetivo deste texto é apresentar um terceiro caminho, no qual o conceito de medium é abordado a partir de sua medialidade. Tal abordagem tomou forma nos últimos anos, particularmente no debate alemão sobre a constituição de um campo chamado de Filosofia dos Media [Medienphilosophie] (HARTMANN, 2000; MARGREITER, 2007; ROESLER, 2003; SANDBOTHE; NAGL, 2005). Pensar o medium a partir das suas características constitutivas e das suas formas fenomênicas, ou seja, a partir da sua medialidade, é a tônica desta tendência teórica.

Como escreveu um dos precursores desta revisão teórico-filosófica do termo, o teórico Georg Christoph Tholen, em sua principal obra A cisão dos media (2002), “a medialidade dos media constitui o horizonte no qual ela mesma não pode ‘nascer’. Media são indiferentes àquilo que eles armazenam, transmitem e processam” (THOLEN, 2002, p. 8–9).

Ao mesmo tempo em que questiona sobre a sua especificidade conceitual, este caminho “do meio” tenta superar a dicotomia entre o apriorismo e o secundarismo mediais ao situar a problemática em torno do conceito de medium na percepção – amparada numa discussão estética e performativa desenvolvida principalmente na filosofia da

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Maurício Liesen Sumário

linguagem do último século. A figuração dessas diferenças teórico-conceituais, portanto, é o objeto deste trabalho.

Teorias mediais

Grosso modo, poderíamos agrupar as teorias que definiram o conceito de medium e que constituíram as chamadas ciências dos media no século passado em três correntes principais: as que definem o medium a partir do seu caráter técnico-instrumental; aquelas que o definem como possibilidade, como disposição dentro de um sistema; e aquelas para as quais o medium faz parte de um sistema sígnico. O primeiro grupo – o medium como um instrumento – resume o modelo predominante principalmente no cenário anglo-saxão das teorias dos media: de Harold Innis a Marshall McLuhan, passando por Eric Havelock e Jack Goody. Em geral, as suas obras constituem não uma teoria dos media em sentido estrito, mas uma teoria da cultura histórica que emprega uma fundamentação medial a questões sociais, políticas, históricas e antropológicas.

Os media são concebidos como ferramentas que aperfeiçoam a ação e a percepção humanas. Por esse motivo, o conceito de medium se confunde com o conceito de coisa ou de ferramenta: ele pode ser um martelo, a energia, os óculos, o telefone – qualquer instrumento que amplie os sentidos humanos é considerado um medium.

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A obra mais influente desta corrente teórico-medial é o livro Understanding Media: The Extensions of Man, do pensador canadense Marshall McLuhan, publicado em 1964. Neste trabalho, McLuhan não apenas definiu o medium como sendo qualquer tecnologia que expande as capacidades humanas, mas também delineou já no seu primeiro capítulo – cujo título se transformou rapidamente num slogan: “o medium é a mensagem” – uma postura teórica que representa o que pode ser classificado como apriorismo medial, ou seja, o medium é o próprio sentido, é o seu produtor, e toda forma de apreensão do mundo deve ser repensada como uma relação medial. O medium em si – e não o seu conteúdo – atuaria sobre a sociedade que o produziu. Portanto, sob este ponto de vista, o mais importante para a pesquisa de uma teoria dos media seria não o que um medium transmite, mas o próprio suporte material. Como a intenção deste primeiro momento do texto é apresentar um panorama das teorias dos media a partir de agrupamentos temáticos, um detalhamento das nuances e críticas de cada teoria foi deixado de lado, pois dentro de cada um dos três grandes grupos convivem, até mesmo, abordagens contrárias.

Com o intuito ilustrativo, podemos citar a obra do filósofo alemão Friedrich Kittler (1980, 1986, 1995), que representa uma visão instrumental de medium, mas, ao mesmo tempo, é uma crítica ao pensamento de McLuhan. De maneira bastante genérica, para Kittler os media não seriam extensões do homem, mas antes o contrário: eles

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Maurício Liesen Sumário

são instrumentos históricos que precedem nossas formas de apreensão do mundo. Em sua obra, Kittler busca provar o a priori técnico, não apenas das teorias dos media, mas das ciências humanas. A segunda corrente teórica de conceitualização de medium é aquela que o considera como uma possibilidade: medium é aquilo que possibilita o surgimento de determinadas formas. Esta tendência é representada pela teoria dos sistemas e foi elaborada principalmente pela obra de Niklas Luhmann (1984, 1997, 2004). Pensar o medium como possibilidade é defini-lo como uma disposição, como uma multiplicidade aberta de relações possíveis. Por isso, um medium nunca pode ser algo material ou presentificável. Ao contrário de McLuhan, o medium não é uma mensagem, mas aquilo que a possibilita. Este conceito luhmanniano de medium teve a sua inspiração no texto Coisa e Medium [Ding und Medium] do psicólogo vienense Fritz Heider, publicado em 1927. O medium surge como um conceito capaz de responder ao problema de como uma unidade pode surgir de uma multiplicidade. Seu oposto é a forma: da mesma maneira que o par figura/fundo, a forma e o medium se condicionam mutuamente.

Em outras palavras, isso significa que todo medium pode ser uma forma, assim como toda forma pode ser um medium. Um curto exemplo: as palavas podem ser consideradas como o medium de uma frase, mas como a forma da linguagem. Como uma estrutura, o medium dá possibilidade ao surgimento das formas, bem como as formas evidenciam os media – como

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pegadas na areia. Logo, a arte, a sociedade e as capacidades humanas de percepção surgem como exemplos de media na obra de Luhmann. A terceira principal corrente teórico-medial é aquela que conceitua o medium a partir de uma visão sígnica: o medium é sempre algo que está para uma outra coisa. Como um signo, o medium faz a conexão entre o significado e o significante.

A semiótica, por exemplo, ocupa-se de um incessante acontecimento sígnico. E, com o conceito de signo, a semiótica dá uma base material ao sentido. É o signo – aquilo que relaciona um objeto à sua significação – que está no foco das investigações. Ao submeter a função medial à semiose, a semiótica constitui uma das bases teóricas daquilo que pode ser chamado de “idealismo medial”, já que, se toda forma de pensamento e experiência só pode ocorrer mediada signicamente, não existiria um “fora” do medium (um i-mediato). Para Charles Sanders Peirce, um dos fundadores da Semiótica, o “único pensamento que possivelmente pode ser conhecido é o pensamento em signos. Entretanto, um pensamento que não pode ser conhecido não existe. Por isso, todo pensamento deve ser necessariamente em signos” (PEIRCE, 1965, p. 165[CP 5.251]). Essas três formas de responder ao que um medium é (instrumento, possibilidade, signo) conformaram os estudos universitários sobre os meios de comunicação a partir da metade do século passado e adquiriram grande aceitação no cenário brasileiro. Mesmo que, por vezes, não filiados

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diretamente a alguma dessas correntes, boa parte dos estudos comunicacionais possuem como seu principal elemento constitutivo o apriorismo sígnico ou linguístico.

Seja na concepção de que todo fenômeno mediático é um texto esperando ser lido, seja na acepção de que todo suporte técnico e sua medialidade possam ser decupados em relações de signos, tais apriorismos anulam a necessidade de problematização de conceitos-chave – como os de comunicação e medium – para a formação de uma teoria comunicacional. Alguns exemplos, de forma esquemática: a) para a hermenêutica, a linguagem é o medium do entendimento e a comunicação é o próprio processo de compreensão; b) para a semiótica, o signo é o medium do sentido e a comunicação é o processo de significação, a semiose; c) para a psicanálise, os símbolos são o medium do sentido, e a comunicação é seu processo de deciframento.

O que se procura com esses métodos não é a medialidade do medium ou o processo de comunicação, mas a interpretação e o sentido (Cf. MERSCH, 2010a, p. 148 e ss.). Se, por um lado, essas abordagens são bastante produtivas na criação de formas de entendimento e de discurso – portanto, fundamentais para a constituição do campo da comunicação – por outro lado, a totalização/redução de qualquer fenômeno em linguagem ou signo não alcança modalidades expressivas que não se deixam reduzir ou até mesmo que questionam o primado linguístico.

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Esse mal-estar teórico pode ser observado nos estudos comunicacionais da música instrumental, das artes de van-guarda, do cinema experimental, etc. particularmente quan-do a materialidade é posta em evidência em detrimento a qualquer sentido.

Por uma revisão conceitual

Por sua vez, tal aparente sedimentação conceitual foi intensivamente questionada nos últimos vinte anos, ao ponto de um novo campo surgir dentro das Ciências dos Media na Alemanha: a Mediephilosophie que, como o próprio nome indica, volta-se à filosofia para promover uma revisão e uma nova proposição conceitual do termo medium.

Um dos principais representantes deste movimento teórico é a filósofa alemã Sybille Krämer. Em suas investigações (KRÄMER, 2008, p. 66 ss.), ela categoriza os principais problemas teóricos das recorrentes teorias dos medias. São eles: 1. o apriorismo – ou seja, os media não são um fenômeno qualquer, mas formam a cultura, a sociedade e a história; 2. a atribuição de um status transcendental aos media (não existe um “fora” deles); 3. o generativismo: os media não são instrumentos de transmissão ou tradução de algo que está para além deles, mas eles são os produtores do sentido (a própria mensagem); 4. a despersonalização ou o a priori tecno-linguístico: a humanidade utiliza os media, mas o que eles são não é definido pela relação homem-medium; 5. a sua centralização na comunicação, ou seja, a fonte das

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funções mediais é a comunicação (entendida como transporte de informações e como intencionalidade); 6. o idealismo medial, o que significa ainda dizer que o condicionado e o condicionante devem ser refletidos pelas mesmas categorias. Em seu principal livro, Medium, Mensageiro, Transmissão [Medium, Bote, Übertragung], publicado em 2008, Krämer aponta para a necessidade de diferenciação entre duas abordagens: uma voltada para o que é transmitido signicamente e outra para o que é traduzido medialmente: “Na perspectiva semiológica, o ‘oculto’ do sentido está atrás do sensual; na perspectiva mediológica, ao contrário, o ‘oculto’ da sensação está atrás do sentido” (KRÄMER, 2008a, p. 34). Em outras palavras, o signo deve ser perceptível, mas o que nele é perceptível, é secundário: o significado é que é importante, ou seja, aquilo que é tomado costumeiramente por ausente, invisível, ou até mesmo imaterial.

O signo é, em geral, concebido como algo que está para uma outra coisa, que indica algo além de sua materialidade. O medium, por sua vez, funciona justamente ao contrário: o que nós percebemos é a própria mensagem, que surge no acontecimento medial. O medium é o secundário: ele se neutraliza, se recolhe no seu uso. Ao contrário da relação sígnica, que atrás do sensório encontra-se o sentido, a perspectiva medial propõe que atrás da mensagem visível se esconde o medium invisível (Krämer, 2008a, p. 35). A tônica da Filosofia dos Media é a busca da especificidade do conceito de medium, com intuito de delinear caminhos que escapem aos impasses produzidos pelas teorias dos media

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correntes. Este, por exemplo, foi o movimento executado pelo já mencionado Georg Tholen (THOLEN, 2002, p. 9), para quem a mais fundamental definição de medium é o “entre”: uma diferença que constitui uma diferença. Historicamente, o termo medium é bem antigo e remete aos escritos estéticos de Aristóteles (De Anima) e seu conceito de metaxy, traduzido na Idade Média por Tomás de Aquino como media diaphana. Introduzido como estrangeirismo em meados do século XVII na língua alemã, o termo foi largamente explorado pela filosofia de Kant, passando pelo Idealismo Alemão com Fichte, Schelling e Hegel, pela nascente filosofia da linguagem com Humboldt e Herder, até os escritos do início do século XX com Walter Benjamin e Theodor Adorno.

De modo geral, as teorias dos media da Alemanha expressam, cada qual a seu modo, as diferenças que a própria língua germânica possibilita entre as palavras Medium, Mitte (meio) e Mittel (aquilo que medeia).

Mesmo de origem latina, a palavra medium nunca foi incorporada ao vocabulário da língua portuguesa. Originalmente, o termo foi traduzido do latim como meyo (meio). Com a emergência das tecnologias massivas de transmissão de informações, a palavra medium (e seu plural media) foi empregada pelos países de língua inglesa.

Consequentemente o Brasil adotou, como uma redução da expressão anglo-saxã mass media, a palavra mídia. Ciro Marcondes Filho, um dos críticos desta terminologia para os estudos comunicacionais, escreveu: “a forma brasileira mídia

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(...) é uma construção linguística espúria, obtida a partir da pronúncia norte-americana do termo media e não se justifica essa incorporação ilegítima e empobrecedora, já que o termo medium é latino, como é a própria língua portuguesa, e nos data da forma linguisticamente mais correta do termo media.” (MARCONDES FILHO, 2009, p. 249)3. O termo latino medium se refere àquilo que está no meio ou o que medeia entre outros, como, por exemplo, na matemática, na qual os termos médios de qualquer série proporcional são os que estão entre os extremos. Tal sentido – daquilo que está entre – está naturalmente contido na palavra meio – e isso desde os primeiros dicionários da língua portuguesa, como pode ser verificado no Vocabulario Portuguez, e Latino (1712-1728), de Rafael Bluteau.

Entretanto, como o próprio verbete deste antigo léxico expressa, o termo primevo meyo já era uma tradução de distintos termos latinos, como via, ratio, modo, semi e inter (deduz-se que os três primeiros sentidos estão retidos na corrente expressão “meios de comunicação”). Como tradução direta do termo medium, Bluteau define o meyo como aquilo que está entre suas extremidades e, dentre outros exemplos, cita uma máxima de Cícero: “Entre guerra, & paz não há meyo [sic]. Inter bellum, & pacem medium nihil est” (BLUTEAU, 1716, p. 474).

3 Evitando aqui um debate terminológico, a proliferação do termo mídia no vocabulário cotidiano oferece uma vantagem no momento em que este trabalho utiliza o termo medium. Consequentemente, utiliza-se durante todo o texto o adjetivo “medial” e sua derivada substantivação, já que o adjetivo “mediático” refere-se expressamente à palavra “mídia”.

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Curiosamente, a palavra medium só aparece em algum dicionário contemporâneo português em sua forma acentuada médium, que denota uma pessoa que em determinados rituais religiosos serve como intermediária entre os espíritos e os viventes.

No médium pode ser observado a aporia ou o paradoxo do medial: o médium ausenta-se no momento mediúnico para presentificar uma outra entidade – o seu corpo está ali, mas o médium não pode mais estar presente, ele está impossibilitado de se co-mediar. Ele sacrifica suas formas de aparição no momento em que deixa algo aparecer. Ela já é um outro – mas suas características interferem e tomam parte no próprio processo mediúnico.

Este paradoxo medial, ou seja, a impossibilidade de uma mediação co-mediar suas materialidades e estruturas, é o eixo central de uma teoria negativa dos media, cujas linhas gerais foram delineadas pelo filósofo alemão Dieter Mersch.

Teoria negativa dos media

Entender o medium como um a priori significa dizer que não existe um fora do medium, já que toda forma de conhecimento e reconhecimento seriam mediadas (por signos). Ou seja, a partir desta visão se instaurou um topos comum nas humanidades que reverbera a certeza de que o real é um efeito dos media, de que os media constroem realidades, produzem conhecimento, representam pensamentos, guardam memórias, possibilitam a ação e a comunicação, em

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suma, uma atitude teórica que reverbera a máxima de que os media são as condições de possibilidade de toda experiência.4 Assim, tal visão – que estrutura a nossa relação com o mundo como uma relação mediada – incorre numa espécie de idealismo medial, numa totalização que fica paralisada diante da questão de como o medium poderia ser reconhecido, já que tudo seria seu produto: como a medialidade poderia ser percebida, localizada ou compreendida? Como experienciar algo medial dentro do próprio medial? Estas são algumas das perguntas que movem a teoria negativa dos media. A teoria negativa dos media proposta por Dieter Mersch pode ser considerada como uma crítica – ou uma saída – ao apriorismo medial que inundou as ciências humanas nas últimas décadas. Mersch reconhece que o pensamento e a produção de sentidos não podem existir sem os media, mas – e esse é o ponto crucial de sua argumentação – isso não quer dizer que os media são os produtores destes sentidos. Os media tornam algo audível, visualizável, sensível, eles organizam, retêm, transportam, transformam, mas não criam significados: eles os pressupõem. “Não existe nenhum simbólico, nenhuma percepção livre dos media – mas nenhum medium é jamais o doador do seu acontecimento” (ibid., p. 77). Além deste aspecto imaterial ou operacional, o filósofo ressalta a inseparabilidade da dimensão material do medium,

4 “Tal transcendentalidade e ubiquidade do medium também foi consistentemente abordada e criticada na obra da filósofa Sybille Krämer “ (Cf. 1998, 2003).

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já que eles também são, sempre, alguma coisa, sejam arquivos, imagens, aparatos técnicos etc5. Por isso, mesmo que transparente, a medialidade não brota metafisicamente das funções do medium.

A transparência da medialidade6 é inspirada na concepção de medium da estética aristotélica exposta no livro Sobre a Alma [De Anima], mais precisamente na sétima parte do segundo livro, intitulada A sensibilidade: A visão e o seu objeto (ARISTÓTELES, 2010, p. 80 ss.). Para o filósofo grego, o diáfano7 é aquilo que possibilita a percepção. O transparente atua como o contraponto do μεταξυ (metaxy), ou seja, daquele vazio que está no meio (entre) o órgão sensorial e o objeto. Nas palavras de Aristóteles:

Não se pronuncia corretamente Demócrito, ao considerar que, se o que está no meio estivesse vazio, se veria claramente até uma formiga no céu. Ora isso é impossível. O ver acontece, de facto, quando o órgão sensorial sofre alguma afecção — e é impossível, evidentemente, que tal afecção seja produzida por ação da cor vista. Resta, nesse caso, que a afecção seja produzida pelo intermediário,

5 A questão da materialidade do signo vai ser explorada extensivamente por Mersch em sua obra Was sich zeigt: Materialität, Präsez, Ereignis, particularmente na segunda parte, intitulada Os signos e seu outro [Die Zeichen und ihr Anderes]: Cf. MERSCH, 2002, pp. 131-355.

6 Outro filósofo que explora a característica da transparência do medial, mas sob uma perspectiva fenomenológica, é o professor da Universidade de Jena, Lambert Wiesing, cf. WIESING, 2005.

7 Do grego antigo διαφανής (diaphanein), formado pelas palavras δια (dia), “através”, e φανήιν (phanein), “parecer”. A palavra medieval latina transparente guarda este mesmo sentido.

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pelo que tem de existir necessariamente um intermediário. Assim, se de facto estivesse vazio o espaço entre eles, não se veria claramente — ou melhor, nada se veria, de todo (ARISTÓTELES, 2010, p. 82).

Para Dieter Mersch, o diáfano pode fornecer a um outro modelo para compreensão do medial, considerado portanto como algo – material – que possibilita o aparecer. Não é o material que é transparente, mas o próprio aparecer como trans-parente, na medida em que algo através disso se faz visível. Como o filósofo alemão desenvolve no ensaio Meta/Dia: Zwei unterschiedliche Zugänge zum Medialen [Meta/Dia: Dois acessos distintos ao medial] (MERSCH, 2010b), o diáfano surge como o lugar próprio da visualização: algo que mostra, mas que, ao mesmo tempo, se recolhe. O deslocamento do “meta” para o “dia”, ou do espaço-através para o diáfano, direciona a pesquisa para a necessidade de uma compreensão performativa do medial, que implica uma passagem do debate em torno da transcendentalidade do medial e do problema da constituição das condições de possibilidade para a questão das práticas criadoras e seus acontecimentos.

Tal movimento impossibilita não apenas a discussão de uma teleologia do medial, como também de uma ontologia da mediação: “O que o medial é, não pode ser dito – não há qualquer ontologia da mediação, já que ela se nega de forma crônica à sua definição, mas provavelmente se consegue uma reconstrução parcial dos seus ‘movimentos’” (MERSCH,

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2004, p. 82). Para explicitar essa impossibilidade de definição do medium e responder ao problema da tematização do medial no próprio medial, Mersch recorreu à filosofia da linguagem de Ludwig Wittgenstein, Martin Heidegger e Jacques Derrida. O filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein, em sua primeira grande obra, o Tractatus Logico-Philosophicus, publicada em 1922 e que constitui ao mesmo tempo uma teoria lógica e um método filosófico, ao delimitar que onde cessa o dizer entra a dimensão do mostrar, extrai o cerne de uma importante questão da filosofia da linguagem: como tematizar a linguagem quando todo falar sobre ela já é, ele próprio, linguagem?

Acima de tudo, para Wittgenstein o dizer e o mostrar são dois regimes intraduzíveis. A forma lógica da imagem e da linguagem sempre buscam se exibir de forma diferente, como expresso em duas passagens: “Sua forma de afiguração, contudo, a figuração não pode afigurar; apenas a exibe” (WITTGENSTEIN, 1968, 2.172); e “A proposição não pode representar a forma lógica, esta espelha-se naquela. Não é possível representar o que se espelha na linguagem. O que se exprime na linguagem não podemos expressar por meio dela. A proposição mostra a forma lógica da realidade. Ela a exibe” (ibid., 4.121). A partir dessas categorias, Mersch agrupa os media em modos discursivos (a palavra e os números) e os estésicos (o som e a imagem) que se desdobram como dimensões irredutíveis, ou seja, que não podem ser convertidas entre

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si8, mesmo que exista a possibilidade de transcrição em outro suporte. Por exemplo, no caso da música, que pode ser escrita como partitura musical, permanece sempre a diferença entre a percepção e a aparição, de um lado, e a textualidade e o discurso de outro.

Um dos trabalhos de uma teoria dos media seria o de delimitar a incompatibilidade entre os media, na contramão da dinâmica de totalização presente em boa parte do discurso teórico em prol de uma intermedialização numérica absoluta. A diferença entre a aisthesis e o discursivo assinala a pluralidade dos media de acordo com o dizer e o mostrar nos moldes de Wittgenstein: “O que pode ser mostrado, não pode ser dito” (WITTGENSTEIN, 1995, p. 34 [4.1212]). Esses dois aspectos estão presentes em todos os formatos mediais, mas um deles rege o medium. “Media discursivos mostram – onde eles mostram – no modo do dizer, enquanto media estésicos – onde eles dizem – falam no modo do mostrar” (MERSCH, 2004, p. 85). Mesmo diferentes, as dimensões do dizer e do mostrar são colaterais, ou seja, uma não existe sem a outra. “Poder-se-ia dizer com isso: a linguagem é sempre mais do que ela diz. Mostrando, ela abriga um excesso que, dizendo, não se deixa nunca apreender” (MERSCH, 2002, p. 244). A partir do pensamento de Wittgenstein, o que se expõe é a característica da linguagem como acontecimento que se mostra ao falar.

8 Para um aprofundamento desses quatro modelos mediais básicos (palavra, número, som e imagem) na obra de Dieter Mersch, cf. MERSCH, 2003.

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Não por acaso, sua filosofia fundamenta a teoria performativa dos atos de fala (AUSTIN, 1975). Essa relação entre o mostrar e o dizer constitui uma estrutura quiasmática na qual permite a co-existência de dois contrários no processo de medialidade, a saber, a simultaneidade da distância e da proximidade, da ausência e da presença. Esse caráter de acontecimentalidade atingiria toda forma de comunicação9. Por exemplo, a percepção de uma imagem, na qual o processo de medialidade acontece a partir de uma dupla diferença: “Primeiro, por uma impossibilidade de mediatização do ponto sedutor do olhar e, segundo, pela impossibilidade de encenação da consumação comunicativa que pode acontecer por si só” (MERSCH, 2004, p. 87). Como Mersch resume, a partir da filosofia primeira de Wittgenstein os aspectos mediais da linguagem podem ser exibidos pela lógica negativa do recolhimento: “‘Sobre’ a linguagem não se pode falar, no melhor dos casos pode-se falar apenas ‘dela’: a linguagem se nega tanto à sua reflexão quanto a sua totalização. O linguístico [Sprachlichkeit] da linguagem permanece, com isso, um mistério permanente” (MERSCH, 2002b, p. 253). Como pensar esse mistério da linguagem foi o objeto das investigações linguísticas do filósofo alemão Martin

9 Tal posição não é muito distinta da exposta pela Nova Teoria da Comunicação, elaborada pelo teórico brasileiro Ciro Marcondes Filho. A partir do conceito deleuziano de Acontecimento, Marcondes Filho considera o acontecimento comunicacional como um momento extremo de abertura a uma alteridade que nos força a pensar e nos transforma profundamente. Cf. MARCONDES FILHO, 2010.

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Heidegger, exibidas em ensaios escritos entre 1950 e 1959 e reunidos no livro Unterwegs zur Sprache [À caminho da linguagem]. Heidegger escreve sobre a necessidade de arruar um caminho pela linguagem até a linguagem, ou melhor, para trazer a linguagem para a linguagem e exibir sua essência (seu movimento) acontecimental, como expressa na sua fórmula: “Trazer a linguagem como linguagem para a linguagem” (HEIDEGGER, 1985, p. 242 et passim). Como o ser humano habita a linguagem, todo falar sobre a linguagem já está enredado em um dizer (ibid., p. 161). Portanto, é necessário se ter uma experiência com a linguagem para exibir, de forma indireta, sua medialidade. Como descrito anteriormente, o significado heideggeriano de experiência carrega o verbo alemão widerfahren, de difícil tradução ao português, já que ele guarda um sentido passivo de “ser atingido por algo que acontece”, por algo que não se tem qualquer controle. Como, então, a linguagem se revelaria como linguagem? “A linguagem fala [Die Sprache spricht]. O ser humano fala, na medida em que ele corresponde à linguagem” (ibid., p. 33). Isso significa que a essência da linguagem é a linguagem da essência, já que não falamos a linguagem como também falamos dela. “Toda fala que se encontra ‘a caminho’ da linguagem já ‘marcou’ esta última na própria fala, ou seja, também a modificou. Por isso, a filosofia da linguagem não consegue encontrar a linguagem – tampouco uma filosofia dos media os próprios media –, mas tão somente ‘sulcamentos’ ou rastros de tal modificação” (MERSCH, 2013, p. 211). Para caminhar à linguagem é necessário uma escuta: escutar

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o falar linguagem. Percebê-la em movimento a partir dos seus rastros, seus sulcos [Furchen], onde manifesta-se sua “rasgadura” [Aufriss]10: “a linguagem fala no momento em que ela diz, ou seja, mostra” (Heidegger, 1985, p. 255). Para Heidegger, esse momento em que a linguagem se mostra pode ser revelado no recolhimento à linguagem (em contraponto ao isolamento) e, particularmente, na poesia. No momento em que acontece, a linguagem concede, em sua essência, a morada aos mortais. “O movimento [Be-wägung] traz a linguagem (o ser da linguagem) como linguagem (a saga) para a linguagem (para a palavra falada)” (ibid., p. 262). A saga é justamente o caráter acontecimental da linguagem, que se mostra.

Como ressalta Dieter Mersch, tanto Heidegger quanto Wittgenstein usam a mesma palavra para apresentar a linguagem para além de uma ferramenta simbólica, a saber, o “mostrante” [Zeige]: “O ‘mostrante’ é aquilo que no processo do falar, isto é, na performatividade da fala, consegue apenas mostrar-se ou revelar-se. E o que se manifesta ou se mostra não pode ser pronunciado. Ele se nega a uma possibilidade de definição adequada” (MERSCH, 2013, p. 212). A abordagem da negatividade medial na linguagem também pode ser encontrada – ressalvando-se as diferenças nas formações filosóficas desses pensadores – na obra do

10 Apesar do uso comum da palavra alemã Aufriss como “planta”, “contorno”, “delineação”, faz-se aqui a opção pelo termo utilizado na tradução de Márcia Sá Cavalcante Schuback do livro A caminho da linguagem, com a finalidade de uma coerência terminológica. Além de rasgadura, o conceito foi traduzido por ela em outras passagens do livro como debuxo, sulco e fenda.

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filósofo francês Jaques Derrida. Para ele, o signo é aquilo que representa o presente na ausência: “Quando não podemos tomar ou mostrar a coisa, digamos o presente, o ente-presente, quando o presente não se apresenta, então significamos, servimo-nos do subterfúgio de um signo. Significamos. O signo seria então a presença diferida” (DERRIDA, 1991, p. 41).

Em sua conhecida conferência “La Différance”, pronunciada na Sociedade Francesa de Filosofia em 1968, Derrida mergulhou até as margens do signo para tentar figurar algo que não pode ser expresso por nenhum conceito, nenhuma palavra, nenhuma expressão, que nenhuma língua poderia exprimir: a própria estruturalidade do signo. Aqui pode-se perceber o mesmo problema enfrentado por Wittgenstein e Heidegger: como conceituar algo no qual a própria conceituação eliminaria o que se pretende conceituar? Como (a)presentar o que não pode ser presente ou substancializado no verbo ser? Como escrever sobre o inominável, sobre o inexprimível? Não é através de um conceito, de uma metáfora ou de uma figuração que Derrida busca manifestar a medialidade do signo linguístico, mas através de um jogo de provisoriedades, expresso pela troca do e por um a na palavra francesa différence, que significa “diferença”. Tal alteração de vogais só é percebida na escrita, já que a pronúncia das palavras é a mesma.

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A différance é a própria condição de possibilidade do próprio sistema sígnico – e, por extensão, do pensamento – e por isso não pode ser descrita pela linguagem. É ela quem produz a linguagem através de espaçamentos, diferença entre as palavras, silêncios que mal cabem no próprio conceito de signo.

A différence apresenta a recursividade e a iterabilidade da linguagem, bem como a falta de sua origem, na qual os conteúdos dos signos são apenas mais signos. Ao mesmo tempo, a différence acentua os deslocamentos e alterações que ocorrem através da presentificação, da performatividade da linguagem. A différance é rastro, traço [trace, Spur]:

Uma vez que o rastro não é uma presença, mas o simulacro de uma presença que se desloca, se transfere, se reenvia, ele não tem propriamente lugar, o apagamento pertence a sua estrutura. Não apenas o apagamento que sempre deve poder surpreendê-la, sem o qual ela não seria rastro, mas indestrutível e monumental substância, mas o apagamento que desde o início o constitui como rastro, que o instala na mudança de lugar e o faz desaparecer na sua aparição, sair de si na sua posição. O apagamento do rastro precoce (die Frühe Spur) da diferença é portanto “o mesmo” que o seu sulcamento no texto metafísico. Este deve ter guardado a marca daquilo que perdeu ou reservou; pôs de lado. O paradoxo de uma tal estrutura é, na linguagem da metafísica, esta inversão do conceito metafísico que produz o efeito seguinte: o presente torna-se signo do signo, rastro do rastro. Ele não é mais aquilo para que em última instância reenvia todo reenvio. Torna-se uma função numa estrutura de reenvio generalizado. É rastro e rastro do apagamento do rastro (DERRIDA, 1991, p. 58).

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O traço possibilita uma escrita sobre a escrita e dentro da escrita. Às origens do pensamento da différance são reveladas pelo próprio Derrida (ibid., p. 49 e ss.), que a encontra já nos textos de Nietzsche (força), de Freud (inconsciente), de Levinas (alteridade radical) e, principalmente, Heidegger.

Os limites da metafísica, do pensamento, da linguagem, do eu, da consciência, ou sumariamente, de tudo aquilo que havia sido descrito por meio de suas estruturas – cujo limiares ou mesmo superação não se colocavam como uma possibilidade – foram a tônica do pensamento pós-guerra, retomando aquilo que Heidegger havia apontado com a sua diferença ontológica (a diferença entre ser e ente). O que Derrida escreve como sendo o movimento indefinido da estruturalidade da estrutura, ou seja, os rastros, pode ser entendido como alteridade: “Eles determinam que o acontecimento [Ereignis] do sentido surge [ent-springt] como acontecimento [Geschehen] do entre ou do meio de sua ‘diferença absoluta’” (MERSCH, 2004, p. 89). Ao tentar expressar o inexprimível como a estruturalidade da estrutura, Derrida apresenta resultados semelhantes aos de Heidegger. A instauração de um novo vocabulário e do trabalho nas margens do medium são necessários para exibir o medium que se nega a qualquer definição. O medium emerge como aquilo que com-forma, mas que sacrifica suas formas.

Para Dieter Mersch, a medialidade se mostra “como aquela indefinibilidade da qual apenas novos esboços podem ser feitos e cujos riscos e rasgaduras provêm principalmente

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de performatividades e interrupções transversais, que chegam indiretamente e se agarram às estruturas, criando rachaduras e contradições, para combater o paradoxo do medial” (MERSCH, 2013, p. 212). É a partir da possibilidade de manifestação da estruturalidade da linguagem com Wittgenstein, Heidegger e Derrida que se delineia uma teoria negativa dos media, cujo objetivo é revelar os traços do medial que obstinadamente desaparecem na aparição, que se sacrificam na perfeição técnica, mas que permanecem como a presença de uma ausência. A partir do que foi discutido, pode-se visualizar os três bloqueios mediais denunciados por Mersch em sua teoria negativa: ao bloqueios da materialidade (indisponibilidade de apreensão de todos os aspectos do medium), das diferenças (inescrutabilidade entre a palavra, a imagem, o som e o algarismo) e da autorrealização do medial (seu caráter acontecimental). “Essas três barreiras correspondem às três impossibilidades primordiais de representação: recolhimento da medialidade do medium, limites de possibilidade de conversão mútua e impossibilidade de definição do lugar de onde a mediatização ocorre” (MERSCH, 2004, p. 90). Dizer que o medium não encontra uma representação adequada é afirmar que ele se recusa a qualquer explicação teórica estrita. Ele encerra qualquer possibilidade de explicação discursiva. Daí o caráter indireto de sua natureza. Ele se manifesta apenas na sua performance, ou seja, no momento de sua execução. A materialidade do medium é a

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fronteira na qual se estruturam as condições mediais. Todo medium dispõe de algo finito, concreto, que limita a sua execução.

É justamente pela materialidade – a ex-sistência do medium – que ele deixa seus rastros. É no momento de sua deterioração, que a medialidade se torna aparente: “Não é um outro medium que o torna visível, mas ele próprio se faz visível, mostra-se, onde ele se despedaça. Seu mostrar está conectado à sua negatividade” (MERSCH, 2004, p. 83). É na palavra rasurada, no disco arranhado, na tela travada, nos retardamentos, no filme mofado, no ruído, na pertubação da atenção, na cor desbotada, no bug, no pixel estourado, no controle emperrado etc. que a perfectio medial entra em crise. A efetivação de um medium está diretamente relacionada à criação da ilusão de uma amedialidade. Quanto mais os media e suas medialidades passam despercebidos, mais efetivos eles são. A teleologia da técnica é a manutenção do mistério medial, ou seja, ela consiste em garantir a impenetrabilidade que sustenta o ilusionismo do a priori medial.

Por este motivo, os efeitos sempre foram os elementos mais ponderados do processo de medialidade, já que aquilo que está “no meio” tende a ser ignorado. Na imaterialização de sua materialidade o medium cumpre a sua função. Mas, até em processos de medialidade bem-sucedidos, existem elementos que logram ilusão de amedialidade: “Nenhuma percepção sucumbe totalmente ao medium no qual ela contempla, como nenhuma memória segue ao seu registro e

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nenhum pensamento corresponde inteiramente à escrita na qual ele se articula; sempre há ‘inconvenientes’ e com isso também indisponibilidades, que correm por assim dizer ‘como rastros’ sem deixar vestígios e frustram obstinadamente a realização do medial” (ibid., p. 83). Algo sempre excede as estruturas de medialidade. E é esse próprio excesso que permite a reflexão do medial. Uma teoria dos media que atenta para o aspecto negativo do medial deve permanecer persistentemente nesta fronteira do recolhimento estrutural do medium. Por atuar nos limites das materialidades e das funcionalidades do medial, a arte emerge como um lugar privilegiado para apreensão do medium como medium11. Por isso, a percepção, a linguagem ou qualquer forma de expressão não se resumem às suas medialidades. Existe algo que sempre escapa à qualquer tentativa de totalização. Daí a necessidade de várias abordagens sobre um mesmo fenômeno. Uma teoria negativa não anula qualquer outra teoria que se debruça sobre as condições ou os efeitos mediais. Elas atuam como um suplemento inesgotável, mas sempre incompleto.

11 E isso é basicamente o que Dieter Mersch busca em seus trabalhos estéticos ao se deparar com um dos grandes problemas da Estética, o essencialismo, que se debruça sobre questões como a especificidade do medium da imagem, da poesia etc. Cf. MERSCH, 2002.

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Considerações finais

Aos modos de um panorama, este texto buscou apresentar as linhas gerais de algumas propostas medial-filosóficas – principalmente figuradas na obra de Dieter Mersch – e suas relações com teorias dos media já sedimentadas. Como em todo trabalho panorâmico, a insuficiência deste tipo de texto se encontram na falta de uma elaboração mais detalhada de questões teóricas importantes para a crítica filosófica.

Por outro lado, ele tem a vantagem de oferecer um mapa de autores e obras ainda não tão discutidos no cenário acadêmico brasileiro. Mesmo tratando-se de um campo bastante recente, discorrer sobre a filosofia dos media é reafirmar a necessidade constante de revisão conceitual – de manter a inquietude teórica – dentro de campos aparentemente já engessados, como o das teorias da comunicação.

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O exercício da cidadania na literacia das novas narrativas

publicitárias1

Rogério Covaleski2

Pressupostos conceituais

Vinculações cada vez mais recorrentes entre os campos da Comunicação e da Educação têm contribuído para a consolidação de novos vieses investigativos e cujas denominações variam entre “educação para a mídia”, “pedagogia da comunicação”, “alfabetização digital”, “literacia midiática”, entre outros.

As diferentes designações respondem às variadas visões de inúmeros especialistas que têm se debruçado sobre os temas circunscritos nessas intersecções. Lugares de pesquisa sujeitos a revisões e a atualizações conceituais. Como afirmam

1 Texto anteriormente apresentado no 3º Congresso Literacia, Media e Cidadania, realizado em Lisboa – Portugal, em abril de 2015.

2 Doutor em Comunicação e Semiótica, Professor do Programa de Pós-graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco (PPGCOM/UFPE) – Recife, Brasil. Colíder do Grupo de Pesquisa “Publicidade nas Novas Mídias e Narrativas do Consumo” (PPGCOM/UFPE) e membro do Grupo de Pesquisa “Comunicação, Discursos e Poéticas do Consumo” (PPGCOM/ESPM). Bolsista da Capes (processo BEX 2047-14/4) de pós-doutorado supervisionado pelo Professor Carlos Scolari, na Universitat Pompeu Fabra – Barcelona, Espanha.

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Amat, Santpere & Paredes (2011)3, as transformações rápidas, constantes e profundas geradas pelo crescimento exponencial do volume de informações levaram a um repensar teórico das funções e das organizações, não apenas dos canais que transmitem e reproduzem tais informações, mas das próprias instituições reprodutoras do conhecimento, que devem se adequar ao progressivo processo que, em geral, costumam omitir – ou pelo menos esbater –: a distinção entre informação e conhecimento.

Educação; alfabetização; aprendizagem; literacia – expressões que são cultural e historicamente diversificadas e mutáveis. Assim, conceituações contemporâneas desses termos devem presumivelmente incluir os entendimentos e as competências que são desenvolvidas em relação às tecnologias de comunicação compreendidas como “novas”, sem preterir daquelas tecnologias rotuladas como “antigas”, mas que persistem e coexistem com as mais recentemente surgidas.

Como é proposto por Buckingham & Sefton-Green (2001), ao se propiciar o tempo e o espaço adequado para que os aprendizes experimentem, e tragam as suas experiências culturais para a tecnologia, poderemos compreender como a sua “escrita”, a sua “produção”, desafiarão nossos conceitos de literacia.

3 Ao longo do texto, há várias traduções feitas pelo autor deste capítulo, a partir de trechos citados de diversos outros autores referenciados e cuja versão original está em outros idiomas, como o Espanhol e o Inglês.

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A evolução das novas tecnologias exige dos indivíduos da contemporaneidade ao menos duas habilidades de primordial importância para um usufruto eficiente dos recursos tecnológicos atuais: a literacia digital e a literacia midiática. Enquanto a literacia digital trata do domínio das novas ferramentas que estão à disposição das pessoas em seu cotidiano, a literacia midiática enfatiza o uso sensato e responsável dessas ferramentas. Ademais, diante da presença rotineira e da acessibilidade crescente a toda a sociedade, as competências relacionadas às novas tecnologias desempenham um papel decisivo na educação, no trabalho, no lazer e, em particular, na cidadania ativa e participativa.

Como entende Zacchetti (2003), a literacia midiática é um conceito de ordem superior, uma vez que aborda várias questões levantadas pelo nível de influência e penetração que imagens e informações têm junto ao público que atingem. E com avanços tecnológicos que evoluem em escala e ritmo sem precedentes, como amenizar a influência e o fascínio das gerações que nascem sob a égide da tecnologia? A essa questão, devemos entender a literacia midiática como a capacidade do indivíduo em se comunicar de forma competente em todos os meios, sejam eles antigos ou novos, além de saber como acessar, analisar e avaliar os conteúdos a que está exposto em seu dia a dia.

Convém pensarmos a literacia midiática como um contínuo de aprendizagem, a fim de atingirmos pensamento e letramento críticos acerca dos conteúdos midiáticos a que estamos expostos. Como propõe Abreu (2011), talvez devamos

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compreender a literacia midiática como uma ferramenta para o ensino do pensamento crítico na perspectiva de todos os textos da mídia do século XXI, para fornecermos competências em literacia global, cívica, tecnológica e de informação e, assim, preenchermos eventuais lacunas de conhecimento.

A literacia midiática pode colaborar em diversos letramentos, como no ensino da criatividade, da metacognição e do despertar da curiosidade intelectual.

Se entendermos a literacia midiática como uma perspectiva a partir da qual nos expomos aos meios de comunicação e interpretamos os significados das mensagens que encontramos, podemos supor que nós mesmos construímos nossas perspectivas de estruturas de conhecimento. Para construir essas estruturas, precisamos de ferramentas, matéria-prima e vontade. As ferramentas são nossas habilidades. A matéria-prima é a informação dos meios de comunicação e a realidade que nos cerca (POTTER, 1998).

Aquelas pessoas, cujas capacidade de compreensão e operação midiática são amplas, são capazes de ativar um conjunto de habilidades altamente desenvolvidas. Estão aptas a inserir uma mensagem nos meios dentro do contexto de uma estrutura de conhecimento bem elaborado e, por isso, capacitadas a interpretar qualquer mensagem em várias dimensões diferentes.

Ainda de acordo com Potter, isso lhes propicia mais opções de significado. Indivíduos plenamente alfabetizados

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midiaticamente são instigados a classificar as opções de significado e a selecionar o que é mais útil a partir de vários pontos de vista: cognitivo, emocional, moral e estético. Assim, podemos presumir que o alfabetizado midiático tem maior controle sobre as mensagens da mídia.

Em perspectiva contrária, aqueles indivíduos que operam em níveis mais baixos de literacia midiática dispõem de uma capacidade limitada de operar os meios. Eles possuem interpretação mais superficial, menor capacidade de estruturação do conhecimento e reduzida condição de correlacionar e compreender o contexto de uma mensagem mediática. Em geral, não dispõem de condição para confrontar habilidades; entendem as mensagens midiáticas como axiomas, sobre os quais não cabem questionamentos ou relutâncias.

Como resultado, é improvável que as pessoas com níveis mais baixos de literacia midiática consigam construir múltiplos significados a partir de uma mensagem dos meios, por isso acabam se tornando muito mais propensas a aceitar o significado superficial da própria mensagem. Diante disso, tais indivíduos são menos capazes de identificar distorções, de entender controvérsias, de apreciar ironias ou sátiras, ou de desenvolver sua própria visão pessoal do mundo.

Ainda apoiados na leitura de Potter (1998), podemos encerrar tal compreensão sobre a necessidade de nos desenvolvermos como letrados midiáticos quando percebermos o poder que passaremos a deter a partir de nossa capacidade de controlar nossas crenças e comportamentos

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tal qual aceitemos como corretos, sem levarmos em conta os padrões estabelecidos e massivamente sugeridos – de modo dominante e impositivo – pela mídia.

Mudanças, acessibilidade e desigualdades

Na busca pelo entendimento de qual o estágio da literacia midiática da população é inquestionável ponderarmos acerca da exclusão digital, ainda capaz de gerar desigualdades aos cidadãos. Seja afetando o acesso à informação ou influindo na competitividade profissional e na preservação dos direitos básicos de cidadania.

García Canclini (2004) afirma que quem não estiver conectado estará excluído de maneira cada vez mais intensa. A exclusão digital tende a aguçar os contrastes entre regiões, países e grupos sociais. Os países menos digitalizados ficarão aquém das possibilidades propiciadas pela globalização em termos de comércio, valor agregado à produção, à presença cultural, à liderança política, ao crescimento econômico e, acima de tudo, ao bem-estar social.

García Canclini defende que se faz necessário educar para o interculturalismo – que vai além de uma educação multicultural, simplesmente. A interculturalidade incentiva a continuidade dos pertencimentos étnicos, de grupos e nacionais, juntamente com um acesso direto aos repertórios transnacionais difundidos pela comunicação massiva.

Com a combinação de múltiplas telas – televisão, computadores, videogames, dispositivos móveis –, as

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novas gerações estão familiarizadas com o modo digital de experimentar o mundo, com estilos e ritmos próprios de inovação dessas redes, e a consciência de pertencer a uma região mais ampla do que o próprio país onde vivem. Atuam em um tempo e espaço em que podem estar interligados por diferentes realidades e se veem diante de um conhecimento que envolve a socialização e o aprendizado das diferenças entre o discurso e a prática dos direitos humanos interculturais.

Um obstáculo para esse aprendizado é a participação desequilibrada nas redes de informação, combinadas com a distribuição desigual de recursos de mídia e de mensagens a partir dessas culturas com as quais estão interagindo. Como construir uma sociedade do conhecimento (global), onde poderosas culturas históricas, com centenas de milhões de falantes, são excluídas dos mercados? – questiona García Canclini (2004).

É inegável como a tecnologia digital está alterando as bases do saber e do fazer comunicacional, atesta Scolari (2008). No campo do saber, as transformações geraram novos debates e integraram novos interlocutores às redes conversacionais. No que diz respeito ao modo de fazer, as transformações incluem todas as etapas do processo comunicacional, indo da disseminação de uma lógica de produção cooperativa – o autor cita como exemplos o jornalismo participativo, o open sourcing, as trocas P2P – até o surgimento de novas rotinas produtivas e perfis profissionais, passando pelas novas textualidades e alterações nas formas de consumo.

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Mas o ato de consumir se relaciona de que forma com o nível de discernimento midiático ou com a capacidade de atuar criticamente do cidadão, como reflete Baccega?

O consumo relaciona-se fortemente com a educação, formal ou não, processo social no qual se pode formar o cidadão crítico. Para tal formação, para que o sujeito consiga ser atuante na construção de nova realidade social é imprescindível que ele tenha condições de relacionar-se reflexivamente com o consumo. Dizemos que ele está no bojo do campo comunicação/ educação por ser esse lócus privilegiado da formação dos sentidos sociais palco da guerra permanentemente entre o que existe e o que há de vir, território da luta entre as agências, na disputa pela constituição dos significados sociais, incluindo o próprio consumo e dos valores que vão se ressignificando de acordo com o espaço e tempo da práxis. É aí que podemos ganhar muitas batalhas, num processo cumulativo para a mudança, usando a arma do conhecimento. (BACCEGA, 2012, p. 254).

Mas, como alerta García Canclini (2008), à medida que a fragmentação do espaço urbano privatizado permite que uma minoria reduza suas relações com “as massas”, por meio da segmentação e mercantilização da comunicação, direciona-se o consumo e distinguem-se as camadas sociais.

Com o enfraquecimento do papel atribuído ao poder público para garantir a democratização da informação e da socialização dos bens científicos e artísticos de interesse coletivo, percebemos que esses bens se tornam inacessíveis à maioria. Quando essas transformações não implicam

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democratização política e cultural, a obliquidade que propiciam no poder urbano e tecnológico torna-se, mais que dispersão pluralista, hermetismo e discriminação, pontua García Canclini.

Passemos ao ponto da reflexão sobre como atuamos e ganhamos poder quando desempenhamos nossos novos papéis na sociedade em rede.

Participação e poder na rede

Castells (2012) conceituou que vivemos em uma “sociedade em rede”, na qual o poder é multidimensional e está organizado em torno de redes programadas em todos os campos da atividade humana, de acordo com os interesses e valores de seus atores empoderados. Essas redes de poder têm exercido influência na mente humana predominantemente por tramas de comunicação multimidiáticas. Portanto, defende o autor, as redes de comunicação são fonte decisiva para a construção de poder.

Logo, para compreendermos a atuação e a participação das pessoas nas redes de comunicação e, assim, vislumbrarmos aspectos que se relacionam à literacia midiática, devemos entender que tal poder é exercido por meio da programação e conexão das redes. Desse modo, o contrapoder partiria da tentativa deliberada de alterar as relações de poder por meio da reprogramação de redes em torno de interesses e valores alternativos ou pela interrupção das conexões que exercem

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papel dominante, criando-se redes de resistência e mudança social.

Os atores dessa mudança social, necessariamente, são aqueles empoderados midiaticamente, que podem exercer influência decisiva com o uso de mecanismos de construção de poder. A produção de conteúdos autônomos pode conceder aos cidadãos da sociedade em rede novos paradigmas, subvertendo a prática usual de comunicação, ocupando os meios e produzindo e disseminando suas mensagens.

Mas, talvez, esses sejam sinais da cultura pós-moderna, não como um reflexo da alienação e falta de sentido, mas da diversidade de pensamentos e da criatividade expressiva. Como lembram Buckingham & Sefton-Green (2001), para descrevermos o processo contemporâneo de consumo e produção, lembremos que nele, somos, simultaneamente, “leitores”, “escritores”, e “jogadores”.

Isso nos leva ao conceito de hipermediações, proposto por Scolari (2008). Para entendê-lo, devemos ir além do processo de produção ou das novas textualidades. Devemos mergulhar nas novas dinâmicas de consumo. As hipermediações nos trazem novas modalidades interpretativas e se relacionam diretamente com as práticas de leitura “intensiva” e “extensiva”.

Scolari (2008, p.288) esclarece que “as leituras intensivas são profundas e se focalizam em um meio por vez (ler um livro, assistir a um filme, escutar um disco) enquanto que as extensivas são mais superficiais e se caracterizam por um consumo multimidiático. ‘Surfar’ na internet é atualmente

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uma das experiências mais evidentes de leitura extensiva”. As tecnologias digitais atenuam as fronteiras entre os papéis exercidos por consumidores e produtores, colaborando para romper com um paradigma histórico que ditou o modelo de comunicação dos meios massivos. E continua:

O conceito de audiência elaborado pelas teorias da comunicação de massa a cada dia perde algo de seu sentido nos ambientes digitais marcados pela personalização dos conteúdos, pelo consumo assíncrono e pelas trocas muitos a muitos. As tecnologias participativas aprofundam ainda mais este processo ao oferecer ao usuário a possibilidade de criar e distribuir seus próprios conteúdos. Uma teoria das hipermediações deveria refletir sobre o conceito de audiência e avaliar possíveis alternativas conceituais para nomear essas comunidades de prossumidores em rede. (SCOLARI, 2008, p.289)

É senso comum que novas categorizações precisam ser elaboradas para dar conta de organizar o pensamento reflexivo acerca do panorama comunicacional atual, enquadrando as novas formas de consumo, produção e reprodução textual. Como corrobora García Canclini (2007), o internauta é um ator multimodal que lê, vê, escuta e combina materiais diversos, procedentes de leituras e de espetáculos. A máxima que ainda insiste em pôr o leitor do lado dos ativos, pensando, e o espectador do lado dos passivos submissos – lógica que nunca se sustentou –, acaba de cair quando leitura e espetáculo se combinam no internauta. Para o autor, ser internauta aumenta, para milhões de pessoas, a possibilidade de serem leitores e espectadores.

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Sobre a capacidade de interação dos novos meios, Manovich (2005) reforça e lembra que, ao contrário do que sucedia com os suportes midiáticos mais antigos, que eram estanques, agora os usuários podem interatuar com o objeto midiático. Nesse processo de interação, o usuário pode escolher quais conteúdos lhe serão exibidos ou por quais caminhos seguirá, criando, assim, uma obra única, personalizada e customizada aos seus interesses de consumo midiático. Nesse sentido, o usuário torna-se coautor do trabalho.

Embora seja relativamente fácil especificar as várias estruturas interativas utilizadas nos objetos dos novos meios, é muito mais difícil abordar teoricamente as experiências que os usuários têm delas. Este aspecto da interatividade continua sendo uma das questões teóricas mais difíceis levantadas pelos novos meios de comunicação. [...] Toda a arte clássica, e mesmo a moderna, é “interativa” de várias maneiras. As elipses na narrativa literária, os detalhes ausentes nos objetos da arte visual, e outros “atalhos” da representação exigem que o usuário complete a informação que falta. [...] A mídia e a arte moderna têm feito avançar cada uma destas técnicas, convocando o espectador a novas demandas físicas e cognitivas. (MANOVICH, 2005, pp.103-104)

Destarte, não podemos deixar de relacionar a relevância dos avanços tecnológicos que propiciaram a capacidade de interação e que contribuem com a literacia midiática, pois sem tais instrumentos de intervenção nos conteúdos dos meios, o

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gozo da cidadania estaria muito aquém do que percebemos na atualidade.

Os “novos” meios trazem um potencial de ação para “escritores e leitores”, “criadores de textos” e “reconfiguradores de textos”; a isso se refere Kress (2005), que, à verdade, a facilidade tecnológica coincide com as mudanças sociais, culturais, econômicas e políticas, todas as quais estão produzindo conjuntamente essa mudança e nos convidando – de modo premente – a produzirmos conteúdos, interagirmos com os meios, exercermos nossos direitos de consumidores e, quiçá, gozarmos nossa cidadania.

Considerações finais

Ao nos debruçarmos sobre os estudos que avaliam o papel da mídia a partir do ponto de vista das narrativas publicitárias, devemos ter em conta que a literacia para os meios precisa, para ser analisada, que a mensagem midiática seja dividida, desconstruída. A partir daí poderemos estudar seus componentes e entendermos como ela foi construída. Em geral, o público leigo, sobretudo o de gerações mais velhas – em sua maioria –, mostra-se pouco capacitado a interagir com publicidades, programas de televisão, filmes ou páginas web.

Diferente panorama é percebido junto ao público mais jovem, incluindo os chamados “nativos digitais”. Como destaca Baker (2008), em anos recentes, os jovens passaram a produzir conteúdos e compartilhá-los, principalmente

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quando isso representa um aumento de sua popularidade e relevância social entre seus pares.

Este fato por si só ajuda a explicar a explosão de popularidade de sites com conteúdos gerados pelo usuário, como o YouTube, Flickr, Tumblr, Instagram, entre muitos outros. O storytelling digital – o uso de ferramentas digitais para contar histórias – tem se tornado popular nas escolas porque o liga à narrativa tradicional com o uso da produção visual e a veiculação midiática. Evidencia-se a formação de um público habilitado a produzir conteúdos a serem compartilhados; um público que passa, na própria escola, pelos letramentos digital e midiático.

Para educarmos os jovens cidadãos midiaticamente, sobretudo no que diz respeito ao conteúdo publicitário a que cotidianamente estão expostos, é importante ressaltarmos alguns princípios fundamentais da literacia midiática que se relacionam às mensagens e aos conteúdos disseminados pela mídia, como propõe Baker (2008): todas as mensagens midiáticas são criteriosamente construídas; as mensagens são construídas usando uma linguagem criativa e persuasiva seguindo um conjunto próprio de regras, técnicas e linguagens; pessoas-alvo das mensagens experimentam o mesmo conteúdo midiático de modo distinto; a mídia tem valores e pontos de vista próprios e que são incorporados no conteúdo que veicula; a maioria das mensagens midiáticas é organizada para obtenção de lucro e/ou poder.

Na esteira desses princípios, um rol de críticas sociais irrompe. A capacidade persuasiva e de penetração da

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publicidade se tornou preocupação e alvo constante de críticos sociais. Alguns deles consideram como manipuladores inescrupulosos os anunciantes que se valem de recursos persuasivos, por vezes diluídos e disfarçados em conteúdos de entretenimento, com a única finalidade de alcançar vendas e obter lucro, a que preço for. Outros consideram louvável como alguns anunciantes cumprem um papel de responsabilidade social pela manutenção da economia, mesmo quando impulsionados por uma criatividade que incentiva o consumo desenfreado.

Potter (1998) nos lembra de que a análise conjuntural da publicidade nos expõe a um objeto de investigação que é ambíguo e dinâmico, para o qual, sem dificuldade, podemos supor aspectos negativos e positivos – tendo em conta os diferentes pontos de vista e interesses dos atores envolvidos no processo de produção, divulgação e consumo.

As críticas mais frequentes à publicidade dizem respeito a variadas percepções do público, em geral, a maior parte delas é controversa, pois não é raro encontrarmos pessoas que se posicionam favoravelmente ou contrariamente a cada uma delas. Isso é flagrante em comentários postados nas redes sociais digitais, por exemplo, espaço que tem constituído um “muro de lamentações” ou um “altar de louvor” de experiências de consumo, sejam elas lamentáveis ou aprazíveis. Potter (2008) enumera sete problemas, cuja diferença de posicionamento sobre eles pode ser atribuída a filosofias subjacentes a outros aspectos, que vão além da publicidade em si: a publicidade avilta a língua vernacular;

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torna-nos muito materialistas; instiga-nos a consumir o que não precisamos; por vezes, é ofensiva ou de mau gosto; por vezes, é excessiva ou abusiva; por vezes, contribui na perpetuação estereótipos; anunciantes deveriam ser mais socialmente responsáveis.

Com motivação essencialmente comercial, à publicidade interessa conquistar e persuadir uma audiência e induzí-la ao consumo do que anuncia. Mas, como toda atividade profissional, também está sujeita a uma combinação que envolve legislação, autorregulação e crivo da opinião pública. Seguramente, é uma das áreas mais controversas da atividade mediática, pois dentre seus públicos-alvo estão muitos indivíduos que não dispõem da devida capacidade cognitiva para interpretação de suas mensagens – é o caso das crianças.

Para White (2003), a indústria da publicidade é sensível sobre as alegações de uso inapropriado de crianças em suas mensagens. Mas, como há problemas com o conceito de autorregulação na publicidade, os mecanismos só estão equipados para lidar com violações graves das regras, enquanto os principais problemas resultam do efeito acumulativo dos estereótipos banais que são usados recorrentemente e sem sanção.

Ademais, os códigos da linguagem publicitária, muitas vezes, carecem de noções básicas de “bom gosto” e “decência”. Mas como imputar restrições a uma forma de comunicação que pressupõe, em seu processo criativo, liberdade de expressão e se baseia em conteúdos polissêmicos, sustentados por poderosas imagens indutoras ao consumo? Além disso, em

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uma era de comunicação global, qualquer material preparado no contexto de uma região ou país pode ser transmitido a qualquer outra parte do mundo, onde prevalecem diferentes valores e expectativas culturais.

Nesse enfrentamento, tendo de um lado cidadãos empoderados com os recursos de interação e disseminação das novas tecnologias e, de outro, o discurso de viés dominante de alguns anunciantes que insistem em prorrogar a lógica da comunicação massiva, assistimos ao surgimento de uma nova geração de consumidores: os prossumidores midiáticos. Como define Scolari:

São estes prossumidores que se apropriarão de um mundo narrativo e o estenderão criando novos personagens e aventuras. Também desfrutarão criando textos curtos como continuações falsas, paródias e recapitulações de poucos minutos. É fundamental que os produtores de uma narrativa transmídia não vejam esses prossumidores como um bando de piratas textuais que lhes roubam seus conteúdos; não só deveriam protegê-los, como também conversar com eles e lhes dar espaço onde possam se expressar. (SCOLARI, 2013, p.223)

E assim seguimos, buscando compreender como as práticas persuasivas presentes em narrativas publicitárias – na atualidade, diluídas em conteúdos midiáticos de entretenimento e passíveis de interação –, contribui e/ou afeta o “letramento” dos consumidores contemporâneos impactados por esses discursos persuasivos. E como isso implica na constituição da cidadania na sociedade atual. Um

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porvir que inspirará muitas pesquisas acerca da literacia midiática.

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Narrativas periféricas: reflexoes sobre o lugar

do outro nos jogos documentais

Clara Câmara1 Diego Amaral2

Todas as penas tornam-se suportáveis se as narrarmos ou fizermos delas uma história.

Isak Dinesen

Introdução

O termo periferia, que tem sido amplamente empregado em estudos acadêmicos, exige uma tomada de posição quanto a seu uso neste artigo. Nesse sentido, cabe observar que este tema pretende marcar a presença de duas questões principais que guiam o presente trabalho: em primeiro plano, pretende-se lançar luz sobre enunciados que

1 Jornalista e Internacionalista. Mestre em Comunicação pela UFPB e doutoranda do Programa de Pós-graduação em Comunicação da UFF. Integrante do grupo de pesquisa Laboratório de Mídia e Democracia (Lamide). E-mail: [email protected]

2 Publicitário, mestre em Comunicação pela UFPE e professor da Uninassau. Membro do grupo de pesquisa Publicidade, Novas Mídias e Narrativas de Consumo. E-mail: [email protected]

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abordem perspectivas marginalizadas no discurso da mídia hegemônica. Secundariamente, a expressão remete ao lugar dos games independentes aqui analisados, que ocupam posição marginal na indústria de jogos.

Embora os videogames sejam hoje uma das principais expressões da indústria cultural, essa mesma difusão tem também estimulado criações independentes que, a exemplo de alguns documentários cinematográficos, têm lançado o olhar e elevado a voz de segmentos minoritários ou mesmo dissidentes da sociedade, atuando como discursos anti-hegemônicos.

Na comparação com o cinema documental cabe, então, uma primeira questão de interesse desta pesquisa. Seriam os jogos capazes de subverter a perspectiva tradicional das mídias apreciativas com sua mecânica participativa? Seria uma contribuição da narrativa em jogos o deslocamento do olhar do observador em relação ao problema do outro, e por conseguinte, em relação ao Outro? Naturalmente, há na narrativa cinematográfica um exercício de deslocamento do olhar do espectador.

O que se pretende com esses questionamentos, contudo, é avaliar se o jogo, ao incorporar as decisões do usuário à sua materialidade, poderia proporcionar uma experiência de fruição estética capaz de contribuir para uma relação de empatia ancorada na vivência da alteridade, a partir dos elementos não apenas audiovisuais mas também mecânicos. Trata-se, pois, de pensar o jogo como uma obra vivida.

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Pensando nisso, o presente artigo busca discutir a representação da diferença em jogos com finalidade político-ideológica, em particular em dois jogos documentais (docugames): The Killer e PeaceMaker. Tomando como base jogos cujas narrativas envolvem conflitos, pretende-se analisar a configuração da perspectiva da minoria - os que estão na periferia do poder - nos discursos dos jogos eletrônicos independentes e suas respectivas estratégias de representação da figura do oprimido.

Nesse sentido, propomos conceber jogos enquanto dispositivos (FOUCAULT, 1980; DELEUZE, 1990, AGAMBEM, 2009), em um tensionamento com o conceito de entre-lugar (BHABHA, 1998) e devir minoritário (DELEUZE, 1996). Assim, nossa proposta é discutir a incorporação do sujeito à narrativa (CALLEJA, 2007) por meio da simulação (FRASCA, 2003), onde seu eu usuário encontra no oprimido um outro eu proposto pelo autor na narrativa.

Por que narrativas periféricas?

Os estudos pós-coloniais trazem contribuições relevantes para se refletir sobre os mais diversos temas das chamadas Humanidades, sobretudo a partir de um tensionamento sobre as questões relativas às representações históricas das periferias culturais e dos centros hegemônicos. Todavia, os pós-coloniais não são os únicos a questionar a, até então, hierarquia dos discursos baseada em poder econômico e político e, consequentemente, em dominação cultural.

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Em um caminho semelhante, os Estudos Culturais e os autores identificados com o pós-estruturalismo, a exemplo de Foucault e Derrida (PRYSTHON, 2012; COSTA, 2006), colocam suas preocupações em torno da reconfiguração do lugar de fala dos historicamente excluídos e oprimidos.

Apesar de alguns desencontros conceituais e metodológicos, é possível reconhecer uma preocupação com a equidade da visibilidade das produções daqueles que, historicamente, tinham sido colocados na posição de “dominados”, destacando-se a necessidade de compreender o lugar de fala dessa produção vinda das “periferias do mundo”. Os debates, em cada uma dessas matrizes teóricas, se ampliaram, as preocupações foram sendo moldadas de acordo com os objetos das mais diversas áreas, da História, passando pela Ciência Política e o Direito, até a Comunicação.

Mas que periferias são essas? Que lugares são esses que buscam legitimidade? Pode-se afirmar que a preocupação desses estudos não é apenas com o direito a voz das periferias geográficas, mas, sim, com o direito a voz (e também sua completa compreensão) das periferias simbólicas. Ou seja, os apontamentos sobre os excluídos, os diferentes, enfim, sobre o Outro, vão além dessas discussões geograficamente localizadas: o importante é atentar para as condições subjetivas que estão atreladas à situação de dominado.

Dessa forma, importa o excluído, o humilhado, as minorias que sofrem preconceito estando em países colonizados por superpotências, mas que também estão dentro dessas superpotências. Ou, nas palavras de Deleuze

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(2010, p.133-34), “minoria designa aqui a potência de um devir, enquanto maioria designa o poder ou a impotência de um estado, de uma situação”. A minoria, segundo esta abordagem, refere-se aos grupos não hegemônicos que lutam por uma identidade não fechada, que está sempre em processo, que é devir.

Assim, são inúmeras narrativas periféricas, emergindo de todas as partes do mundo, que se perdem, principalmente em sentido, por não chegarem completas às audiências. Perde-se por não ter informações suficientes sobre a história do que é diferente e, mesmo quando se tem, não se destina tempo para sentir-se minimamente tocado por ela.

O que é interessante de observar é a necessidade de se pensar além da história única, que propõe um percurso linear, em que há um dominador e um dominado, que necessariamente estaria numa posição de submissão e de total assimilação de conceitos. É preciso, então, admitir o complexo, as narrativas sobrepostas, de um dominador que impõe suas visões, mas que, ao mesmo tempo, também recebe uma carga cultural de seu dominado.

Então, há negociações, conflitos e acertos nessas relações que, antes, não eram considerados. De acordo com Bhabha (1997, p.20):

(...) a articulação social da diferença, da perspectiva minoria, é uma negociação complexa, em andamento, que procura conferir autoridade aos hibridismos culturais que emergem em momentos de transformação histórica.

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É justamente essa percepção de periferia que tomamos para guiar este artigo: a periferia que negocia com o centro, que se põe como voz a ser ouvida, apesar das tentativas de silenciamento. Os jogos aqui analisados, então, participam dessa dinâmica desempenhando um papel de enunciados de resistência. Antes, porém, é preciso, em um primeiro plano, discutir a narrativa enquanto experiência de configuração espaço-temporal que viabiliza a construção desses enunciados.

Narrativa, História e memória

Para uma abordagem deste tema, apoiamo-nos nos estudos de Ricoeur (2012; 2003), para quem a narrativa é sobretudo um recurso do homem para apreensão do tempo. Afinal, conforme observa o autor ao revisitar Agostinho (1992), tanto o passado quanto o futuro são abstrações, que não podem ser vivenciadas.

O presente é igualmente problemático à medida que sua fugacidade não permite apontar sua ocorrência. Para estabelecer, então, uma medida e uma descrição possível entre esses três marcos temporais, o homem se utilizaria da narrativa como artifício para organizar o mundo.

A partir da narrativa seria possível ao ser humano reconhecer seu lugar no mundo, e estabelecer perspectivas espaço-temporais. Este recurso pode ser aplicado tanto ao indivíduo quanto à coletividade, exemplo disto são as grandes narrativas históricas que marcam o entendimento do homem sobre a própria história, em especial no caso da

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modernidade no Ocidente. As colonizações, constituição de nações e revoluções são eventos em que a organização narrativa é diretamente responsável pela construção histórica, alimentando também a memória coletiva que foi, como afirma Ricoeur (2003, p.6), “não apenas instruída, mas igualmente ferida pela história”.

Na afirmarção, o filósofo aponta para uma relação delicada entre memória coletiva e História oficial. Não é difícil observar que a construção das grandes narrativas tende a dissipar as nuances e eventuais incoerências em favor de um escopo narrativo harmonioso. Para além dos evidentes interesses ideológicos inerentes à construção de uma, ou múltiplas, narrativas históricas, é necessário ainda observar que a complexidade dos fatos demanda a escolha de um enquadramento por parte do narrador.

Tais limitações, de acordo com Ricoeur (2003, p.5), tem como consequência:

(...) imposições narrativas de maneira a permitir ao historiador fornecer uma legibilidade ao texto e uma visibilidade aos eventos que narra, por vezes, em detrimento da complexidade e da opacidade do passado histórico.

Ou seja, a própria necessidade de se realizar um relato coerente dos fatos é um fator que pode comprometer a integridade dos fatos narrados. Em contrapartida é relevante observar, como lembra o mesmo autor, que a memória coletiva

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também possui recursos de representação do passado que vão além dos relatos produzidos pelos historiadores.

Entre essas obras, estariam as produções culturais, tais como fotos, quadros e filmes, entre os quais o autor destaca “A Lista de Schindler”, do cineasta judeu Steven Spielberg, a respeito da atuação de um oficial do exército alemão responsável por evitar o assassinato de centenas de judeus durante a ditadura nazista na Alemanha.

Ao referir-se à produção fílmica para tratar dos enunciados históricos, Ricoeur (2003) aponta para a importância dos enunciados culturais na tessitura da narrativa histórica, e da memória coletiva. Parece, então, inegável, e mesmo da ordem do lugar comum, apontar para o entrelaçamento entre a narrativa oficial e as manifestações marginais, os enunciados de resistência.

Afinal, conforme lembra Foucault (1976), a resistência é parte inerente das relações de poder. Ou, nas palavras do autor, as resistências fazem parte do poder, “são o outro termo nas relac ̧ões de poder; inscrevem-se nestas relac ̧ões como o interlocutor irredutível” (Idem, p.91-92).

A partir de Foucault (2008) é possível também compreender o exercício do poder através do que o autor chamaria de práticas discursivas, mecanismos de constituição do próprio saber que, conforme aponta o autor em diferentes momentos de sua trajetória, é fruto de uma construção histórica.

Nesse sentido, entendemos ser possível situar os jogos independentes na ordem dos discursos de resistência, cujo

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papel reside essencialmente na subversão da perspectiva dominante. É justamente sobre este exercício de deslocamento de perspectiva pelo uso dos videogames que trataremos em seguida.

A questão do lugar na narrativa em jogos

Neste ponto, retomamos a questão anterior a respeito dos jogos digitais. E se o lugar do outro fosse o meu lugar? E se fosse possível um deslocamento de perspectivas, que, no caso do jogo, parece ser acompanhado de uma nova identidade?

Seguindo a premissa de que, no jogo, o sujeito assimila o ambiente e nele interfere de forma criativa, Calleja (2007) elaborou um modelo conceitual para análise do envolvimento em jogos digitais. Para fundamentação de sua proposta, o autor recorre ao conceito de frame em Goffman (1974), aliada à apropriação desta teoria por Fine (1983).

Antes de darmos prosseguimento a este estudo, é fundamental destacar que, no trabalho de Goffman (1974), a proposta de análise de frames, ou análise de quadros ou do enquadramento, é um modelo metodológico que lança um olhar sobre a interação humana a partir da organização de experiências. O quadro, portanto, seria uma estrutura cognitiva na qual o indivíduo organizaria as experiências cotidianas. Para Gamson et al (1996, p.384), a análise de frames exerce papel fundamental na análise dos discursos midiáticos, ao construir coesão e oferecer coerência a uma série diversa de símbolos.

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Ainda mais relevante a respeito do conceito de frames é o fato de estes, como lembram Gamson et al (1996, p.384), serem capazes de equilibrar a tensão entre “estrutura e agência”. Trata-se, então, de um enquadramento metodológico valioso para a análise do discurso em jogos digitais, que se constituem pelo tensionamento entre uma estrutura previamente definida e o ponto de vista do jogador sobre esta estrutura.

Assim, em um desdobramento da abordagem, Fine (1983) sugere a adoção do método ao estudo dos Role Playing Games (RPGs), ou jogos de representação de papéis. Para este último, seria possível identificar três frames a partir dos quais a experiência em um RPG seria interpretada.

Neste ponto, chegamos à proposta de Calleja (2007). Segundo o teórico, é possível dividir a experiência do indivíduo em um jogo digital em duas dimensões temporais e seis frames, os quais atuariam de forma interdependente. As dimensões temporais seriam o macro e o micro envolvimento, e cada um dos frames parte desta última dimensão. Ou seja, cada frame analisado pelo autor seria responsável por um momento de envolvimento cognitivo do usuário face ao objeto digital. Entre os frames analisados por ele estão seis tipos de “envolvimento”: tático, espacial, performativo, narrativo, compartilhado e afetivo.

Para este trabalho, entretanto, não interessam as especificidades de cada tipo de envolvimento, ou enquadramento, citados pelo autor. Antes, interessa saber que a incorporação seria derivada da síntese entre esses seis tipos de envolvimento entre o sujeito e o mundo virtual.

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Conforme explica o próprio autor, para que haja incorporação, é necessário que o jogador internalize as regras do jogo assimile uma tática, desempenhe seu papel ficcional (na narrativa), se faça presente face aos demais agentes do game e se desloque em um determinado ambiente (CALLEJA, 2007, p.255). Logo, cada um dos tipos de envolvimento elencados por Calleja (idem) indica formas de participação no ambiente de jogo.

Este processo, portanto, pressupõe que a atenção do indivíduo em contato com o ambiente lúdico deverá alternar por diversos estados a fim de atender às demandas da experiência. O autor também comenta que a ação não é o único parâmetro para mensurar a atenção no jogo. Um exemplo citado pelo próprio teórico são os momentos em jogos de tiro em primeira pessoa, em que o personagem se mantém parado à espera de um ataque.

Antes de ser mera inércia, há ali um estado de atenção focada que prevê um movimento potencial. Logo, não é a ação que revela importância ou o grau do engajamento do indivíduo no game, e sim seu grau de atenção, sua dedicação àquela experiência.

A partir da noção de incorporação proposta por Calleja (2007), reforçamos a importância da inserção espacial do sujeito no cenário do jogo, contribuindo para uma vivência espaço-temporal daquele ambiente.

A ideia de incorporação do sujeito no ambiente de jogo também encontra eco em Frasca (2003), quando este cita o videogame como meio baseado em simulação. No cerne desta

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tese estaria a ideia de que, no jogo, o envolvimento do jogador é decisivo para o curso das ações, interferindo inclusive na temporalidade da narrativa, em oposição, por exemplo, à narrativa literária ou cinematográfica, que de acordo com o mesmo autor, seriam baseadas em representação. Afinal, se ação, e portanto a passagem do tempo ficcional, na narrativa clássica prescindem da audiência, o jogo possui uma temporalidade dual repartida entre o tempo da ficção e do jogador (JUUL, 2005).

Neste ponto, Frasca (2003) aponta para um dilema quanto à adoção do conceito de narrativas em jogos. Afinal, em uma narrativa, assim pensada a partir da semiótica, há a noção de sequência estruturada de eventos (TODOROV, 2011), onde o sujeito exerce o papel de interpretar esses mesmos eventos. Já na simulação, estrutura que rege o jogo eletrônico, segundo Frasca (2003), a dinâmica está ancorada no comportamento do ator humano.

Como exemplo, o autor realiza a comparação entre um filme sobre pouso e um simulador de voo. No caso do filme é possível ao indivíduo chegar a diferentes conclusões sobre a experiência de um pouso – se foi forçado ou tranquilo –, bem como avaliar sua experiência em relação ao vídeo. Já no simulador de voo, cabe ao usuário executar o pouso e, desta forma, tornar-se parte do curso de eventos, interpretando-os simultaneamente.

Admitindo a validade das objeções quanto à aplicação do arcabouço teórico clássico sobre narrativas, apontamos novamente em direção à obra de Ricoeur (2012) com o

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objetivo de repensar esta relação. Neste ponto, lembramos que, de acordo com o filósofo, a organização da narrativa consistiria na ocorrência de três operações miméticas, conforme proposto por Aristóteles (1996).

De acordo com esse raciocínio, a primeira operação mimética consistiria na compreensão do mundo ainda não narrado. Nesta instância, há o mundo pré-configurado, ou o mundo concreto sem a interferência do narrador. Já a segunda operação mimética consistiria na configuração simbólica do tempo com a incidência do elemento poético e discursivo da narrativa, logo carregado da intencionalidade do autor. Nesta fase, o narrador elabora sua configuração do mundo. Como consequência, teríamos o mundo narrado, que por sua vez demanda a interpretação.

Já na terceira operação mimética (Mimese III) o leitor completaria a experiência, relacionando as duas primeiras operações em uma reconfiguração desse mundo ficcional por meio da interpretação.

A partir da teoria proposta, é possível entender a narrativa enquanto experiência que é simultaneamente fruição e compreensão de mundo. É reflexão e construção. Na abordagem mimética da narrativa, que abdica da linearidade rígida proposta na análise estrutural, reconhecemos o processo de fruição e pensamento nos videogames.

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Narrativas periféricas e o empoderamento do Outro

A análise que propomos aqui parte da noção de que jogos são dispositivos, conforme defendido por Amaral (2015). O conceito, apresentado por Foucault (1980), revisitado por Deleuze (1990) e Agamben (2009), contribui para a compreensão da dinâmica de representação da diferença que apresentamos. Isso porque, de acordo com Deleuze (idem), o conceito de dispositivo está centrado na relação entre “saber, poder e subjetivação”, sendo a subjetivação um elemento também privilegiado na análise de Agambem (idem).

Conforme proposto por Agambem (2009), os dispositivos seriam responsáveis por orientar, modelar ou mesmo reificar o indivíduo, em um processo dinâmico. Apoiados nessa ideia, então, buscamos perceber como essas relações de subjetivação podem ser estimuladas a partir de jogos eletrônicos, que convidam o jogador a pensar e agir a partir de uma perspectiva alheia.

Para tanto, nos apoiaremos nos games “The Killer” e “PeaceMaker”, artefatos desenvolvidos com uma finalidade político-ideológica específica e, portanto, plataformas projetadas para abrigar relações de saber e exercícios de poder. O primeiro caso chama atenção para o autogenocídio ocorrido sob o regime do Khmer Rouge no Camboja, enquanto o segundo propõe a reflexão a respeito do conflito entre Palestina e Israel.

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Evocando o conflito como narrativa comum, ambos transformam a experiência de se pensar o Outro em uma incômoda constatação de semelhança.

Convém, para compreendê-lo bem, considerar sua lógica: todo devir forma um “bloco”, em outras palavras, o encontro ou a relac ̧ão de dois termos heterogêneos que se “desterritorializam” mutuamente. Não se abandona o que se é para devir outra coisa (imitac ̧ão, identificac ̧ão), mas uma outra forma de viver e de sentir assombra ou se envolve na nossa e a “faz fugir” (Zourabichvili, 2004, p.24).

Nesse sentido, entendemos pela possibilidade de um estudo dos jogos enquanto dispositivos cuja capacidade de representação seja capaz de promover um lugar de encontro entre o eu e o próximo. No caso dos jogos em questão, trata-se de reconhecer o lugar do oprimido, desterritorializando o jogador em um exercício que contribuiria para um devir-oprimido, termo aqui cunhado como leitura do “devir minoritário” de Deleuze (1996).

Isto é, ao permitir ao jogador ocupar uma posição de enunciação a partir do lugar do oprimido, o jogo consente ao sujeito deslocar-se de sua condição originária, e potencialmente majoritária e dominante, para ocupar um posto de indefinição e desconforto.

Percebemos os jogos independentes que trabalham conflitos como linhas de fuga transversais, capazes de desafiar o lugar comum do lugar do Outro, convidando sujeitos que

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ocupam originariamente posições socialmente majoritárias ou minoritárias a se repensarem a partir da ocupação de um lugar estranho e suas consequentes demandas comportamentais e regras próprias deste lugar. Ou, nas palavras de Bakhtin:

Quando contemplo no todo um homem situado fora e diante de mim, nossos horizontes concretos efetivamente vivenciáveis não coincidem. Porque em qualquer situac ̧ão ou proximidade que esse outro que eu contemplo possa estar em relac ̧ão a mim, sempre saberei e verei algo que ele, da sua posic ̧ão fora e diante de mim, não pode ver: as partes de seu corpo inacessíveis ao seu próprio olhar – a cabec ̧a, o rosto e sua expressão -, o mundo atrás dele, toda uma série de objetos e relac ̧ões, em func ̧ão dessa ou daquela relac ̧ão de reciprocidade entre nós são acessíveis a mim e inacessíveis a ele. Quando nos olhamos, dois diferentes mundos se refletem na pupila de nossos olhos. Assumindo a devida posic ̧ão, é possível reduzir ao mínimo essa diferenc ̧a de horizontes, mas para eliminá-la inteiramente, urge fundir-se em um, tornar- se um todo único e tornar-se uma só pessoa (BAKHTIN, 2003, p. 21).

Essa concepção de Bakhtin resume essencialmente o que buscamos analisar nos jogos que servem de corpus para este artigo. Assumimos, então, que o ambiente de jogo mostra-se extremamente propício para o exercício de ver o Outro, servindo de base para um deslocamento do olhar.

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Análise dos jogos

Nas palavras de Raessens (2006, p.3), os jogos sérios são “usados em áreas tais como educação, treinamento, política e vão além do mero entretenimento”. Em comum, é possível observar nos jogos sérios uma característica iminentemente persuasiva, onde o uso dos dispositivos digitais para formulação de experiências lúdicas é utilizado também como plataforma para a persuasão ou difusão de pontos de vista. Não à toa foram elencados dentro do arcabouço desse tipo de jogos de “política e treinamento”.

Já Bogost (2007), ao tratar do uso de jogos enquanto plataformas que permitem a reflexão, distingue os jogos sérios dos jogos persuasivos, terminologia adotada por ele para definir o uso primariamente ideológico de jogos.

A alcunha de jogos persuasivos, então, seria mais aplicada a jogos com finalidade que, além de endossar posicionamentos institucionais, remetam também a posicionamentos críticos em relação a essas mesmas instituições, incitando posicionamentos político-ideológicos, a exemplo dos docugames que serão analisados neste tópico.

Para Bogost (2007), no entanto, a principal característica dos jogos enquanto meios expressivos residiria em sua estrutura processual, que, de acordo com ele, favorece uma retórica específica: a retórica processual. Retórica processual, portanto, é o termo cunhado para descrever o convencimento através de processos, conforme observa-se em diversos

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jogos digitais, inclusive, segundo entendemos os casos que analisaremos em seguida.

Neste trabalho, contudo, pretendemos destacar que, para além da característica processual, que caracteriza a persuasão em jogos, há elementos discursivos cuja importância é tão ou mais importante que os aspectos mecânicos, ou processuais. Para tanto, analisaremos dois casos onde a indução, ou construção processual, é apenas um dos tantos elementos relevantes na construção de sentido da experiência.

The Killer

O jogo é baseado em uma mecânica absolutamente simples. É possível controlar o andar, a mira da arma do personagem e atirar. São apenas dois personagens: o primeiro portando uma arma, ao passo que o segundo está, em pé, à frente deste. O comando inicial informa ao jogador que ele deve pressionar o botão de espaço para começar a caminhada, sem qualquer discriminação a respeito de qual personagem irá ser controlado.

Ao apertar o comando indicado, percebe-se que somos o algoz, já que o personagem que pode ser controlado é o atirador, e que a missão que nos é dada é levar o refém até um lugar específico, os campos que ficam depois da praia, conforme indica um comando do jogo acionado sempre que o jogador para sua caminhada. Essa referência a um lugar pode ser acompanhada através do cenário, que mostra a passagem

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por montanhas, árvores e cachoeiras até, por fim, chegar ao ponto requerido.

As escolhas gráficas do jogo prezam pela simplicidade, e mesmo os personagens são representados por figuras que mais lembram “bonecos de palito”. O minimalismo na mecânica e nas escolhas gráficas contribuem para que o jogo seja absolutamente intuitivo, evitando a necessidade de fases explicativas ou recursos textuais excessivos. Trata-se de uma experiência que preza pela reflexão, silêncio e experiência da temporalidade.

É possível concluir, por exemplo, que o algoz é um vilão com base na pressuposição que, por portar uma arma, esta será utilizada para atingir o personagem à sua frente. A descoberta da arma, contudo, ocorre apenas quando ambos começam a andar e o personagem controlado pelo jogador empurra seu companheiro de jornada, obrigando-o a seguir com a caminhada.

Anda-se por um tempo. Percebe-se que o tempo vai passando através da mudança de paisagem, mas, também, porque o céu vai escurecendo e clareando, marcando a passagens dos dias. Ao atingir o local especificado para se ir no início, o jogador percebe que a sua posição de algoz deve ser efetivada. “Use o mouse para apontar”, indica o jogo. O jogador se percebe, então, com duas opções: apontar diretamente para a vítima e atirar, ou apontar para qualquer outra área, tentando evitar que o assassinato se consume.

No entanto, descobre-se, mais adiante, que nem mesmo a pretensa demonstração de piedade é capaz de

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salvar neste jogo. Quando se atira diretamente na vítima, esta cai lentamente em direção ao fundo da terra, onde vai encontrando, pelo caminho, diversas outras vítimas, que, pressupõe-se, foram exterminadas da mesma forma. Por outro lado, quando se dirige a arma para outro alvo, após uma falsa ilusão de que a vítima teve condições de fugir, percebe-se que, lentamente, ela também vai caindo para o fundo da terra. No trajeto, pode-se observar mais corpos pelo caminho.

Figura 1 e 2: imagens dos corpos caídos no jogo The Killer

Daí, seguem as mensagens finais que são cruciais para a compreensão do jogo: “Entre 1975 e 1979 um quarto da população do Camboja morreu sob o regime Vermelho de Pol Pot, no que talvez tenha sido o pior autogenocídio da História da humanidade. As vítimas foram torturadas, depois levadas a campos onde foram mortas a tiros ou a pauladas, e foram deixadas lá, para que seus corpos fossem consumidos pela terra. Tenentes como você eventualmente eram mortos junto com os outros”.

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Figuras 3 e 4: telas de explicação do jogo The Killer

Neste ponto, o sentido da trajetória do usuário no jogo é concluído. Ao longo de sua caminhada é possível perceber a tensão, mas não é possível compreender os motivos para que a dada situação esteja acontecendo. Então, ao ler as informações sobre a trágica história do Camboja, o jogador é levado perceber a metáfora em que estava inserido.

Não seria também a ignorância do jogador a respeito da situação, de alguma maneira, semelhante àquela daqueles que contribuíram com sua atuação para o massacre? A narrativa do jogo elabora, portanto, uma experiência onde o que é revelado e o que é ocultado do jogador contribuem para um exercício de descobrimento sobre si e sobre o próximo.

O primeiro ponto que nos leva a esse entendimento é o do personagem que se tem que comandar. Como dito, ao jogador não é possível escolher, ser o algoz ou a vítima: é preciso ser o algoz. É fundamental, para que a experiência do jogo seja coerente e bem sucedida, que o jogador seja colocado numa posição de ignorância em relação a seu papel, conduzir alguém para a sua morte em uma caminhada solitária.

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Ao ser colocado nesse posto e ao ser confrontado, ao final, com as implicações que as ações atreladas a essa condição trouxeram, o jogador é levado a refletir, em primeira pessoa, sobre as injustiças vividas pelos cidadãos do Camboja na década de 1970. Ali é incitado o incômodo com o lugar que se ocupa, a sensação de impotência e a clareza de que “não há como impedir que se seja parcial, já que a neutralidade já implica em uma tomada de decisão3” (ZIZEK, 1998, p.184).

A cada novo jogador, resta um relato sobre o sofrimento cambojano a ser acatado ou rejeitado. O que não se pode evitar, contudo, após a experiência de jogo, é a noção de que as próprias ações podem levar às circunstâncias mais trágicas, em um exercício de deslocamento em que esmaecem as fronteiras entre o eu e o Outro.

PeaceMaker

O conflito entre Palestina e Israel é o cenário de PeaceMaker. Ali, a primeira decisão que o jogador deve tomar é de qual lado deseja ficar: na condição de presidente da Palestina, ou de Primeiro Ministro de Israel. Essa decisão é central para todos os desdobramentos futuros no jogo, assim como a decisão pelo nível de dificuldade (calmo, tenso ou violento).

3 Tradução livre do trecho: “La lección que se puede extraer de todo esto -que cobró actualidad con la reacción occidental hacia la guerra de Bosnia- es que no hay forma de impedir el ser parcial, en la medida en que la neutralidad implica tomar partido”.

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Aos poucos, situações conflituosas se manifestam e é demandado que o jogador escolha como deseja lidar com cada uma delas. Investir em educação, tomar medidas militares drásticas e dialogar com o líder do lado oposto, são algumas das opções à disposição do jogador. Porém, cada ação está vinculada a um resultado específico, que pode ser bom para o seu lado e trazer muitos problemas para o lado oposto.

A partir disso se desenvolve a dinâmica do jogo: tentar achar um ponto em que as políticas assumidas por um Estado não interfira ou traga danos para o vizinho. O objetivo do jogo, então, como o nome já supõe, é levar a paz ao Oriente Médio, através de medidas que equilibrem as relações diplomáticas entre Palestina e Israel, respeitando as ambições e autonomia de ambos.

Para manter o jogador ciente de que o cenário de conflito retratado está constantemente perto de ser um jogo de soma zero (em que os ganhos de um jogador representam, necessariamente, em perda para o seu oponente), a cada ato com implicações negativas para o outro, aparece um informe com detalhamento dessas consequências. Fotos de bombardeios, incêndios e de vítimas chorando após perderem famílias e pertences são frequentes.

Figuras 5 e 6: telas de informação do jogo PeaceMaker

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Dessa forma, o jogo está permanentemente pressionando o jogador a se colocar na situação de seu oponente, já que a vitória está intrinsecamente relacionada com a satisfação dos dois lados. Pensar no semelhante, então, é a prerrogativa básica para se alcançar o sucesso neste game. Assim, como consequência, o jogo também leva a refletir sobre as dificuldades de se chegar a um acordo em um conflito que, ainda hoje, não está próximo do fim.

Figura 7: tela informando a derrota no jogo PeaceMaker.

Reflete-se, então, sobre a complexidade da situação

e sobre querer fazer o melhor e, mesmo assim, encontrar barreiras impostas pela compreensão diferente que o Outro tem do que seria esse melhor. Experimenta-se a impotência, a frustração e a dor de ambos os lados.

Além disso, percebe-se que o conflito no Oriente Médio está muito além do maniqueísmo apresentado pelas interpretações Ocidentais. É possível, então, perceber que as narrativas comumente transmitidas a respeito desse conflito

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são incompletas, no sentido de não pensar sobre os anseios e os conflituosos desejos de paz desses atores.

Excluídos da “lógica civilizada” dos países que conseguiram manter seus territórios em paz, interna e externamente, Israel e Palestina são vistos sob a perspectiva do caos, sem grandes aprofundamentos sobre as implicações disso no cotidiano de seus respectivos habitantes. Por conseguinte, o conflito tende a ser percebido como uma realidade distante, dificultando a aproximação com a vida dos que não estão lá.

Tendo em vista o conceito de “entre-lugar” (in between), trabalhado por Bhabha (1997, p.20), concebendo-o como “momentos ou processos que são produzidos na articulação de diferenças culturais”, podemos afirmar que essa percepção apresentada pelo jogo é um estimulante para que o jogador ocupe o lugar daquele que é diferente de si.

Seja por razões étnicas, ideológicas, de gênero ou quaisquer outras, as diferenças tendem a atuar como elementos de afastamento entre os indivíduos e grupos, contribuindo para simplificações e estereótipos. Quaisquer que sejam os casos, contudo, a condição pós-moderna parece contribuir para processos de fragmentação que torna cada vez mais necessária a assimilação da realidade em sua natureza complexa.

Neste artefato, a capacidade de compreender a posição do Outro em suas nuances é uma habilidade fundamental. Isso porque ele (o jogador), além de se colocar como um palestino ou israelense, não é apenas levado a observar o lugar

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que está ocupando no jogo, mas também as circunstâncias e particularidades que circundam o seu oponente direto.

As diferenças culturais, então, se colocam em dimensões diversas. Em primeiro plano tem-se o jogador, em seu lugar de fala, que pode ou não fazer parte da realidade de Palestina ou de Israel. Portanto, sendo o jogador de qualquer outro lugar do mundo, haverá de se esforçar para compreender as dinâmicas próprias de um lugar que não é o seu, de uma disputa com a qual se está pouco – ou nada – familiarizado e, mais importante, apesar de seu frágil envolvimento com a história local, terá que se empenhar para por fim em um conflito que pode não atingi-lo diretamente.

Essas são algumas das negociações possíveis no entre-lugar, que, em última instância, “fornecem terreno para a elaboração de estratégias de subjetivação – singular e coletiva – que dão início a novos signos de identidade e postos inovadores de colaboração e contestação, no ato de definir a própria ideia de sociedade” (BHABHA, 1997, p.20).

O jogo, então, propõe não apenas uma aproximação com uma realidade conflituosa, ou a percepção da empatia para com aqueles que sofrem as consequências de uma guerra, mas também busca amenizar a antiga parcela de não reconhecimento do Oriente Médio como lugar merecedor de respeito e atenção. Baseando-nos nas ideias de Canclini (2004, p.114), poderíamos pensar o PeaceMaker como uma tentativa de reconhecimento das diferenças, de correção das desigualdades e de conexão das maiorias às redes globalizadas,

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peças fundamentais para solucionar problemas de políticas sociais e culturais.

Considerações finais

Apesar de toda a intensa troca de contato e informações que somos levados a vivenciar nos tempos atuais, é possível perceber uma tentativa de hierarquização de sensações, em que as histórias de uns ganham mais destaque do que as de outros. O sofrimento, as exclusões, os conflitos, de forma geral, aparecem como legítimos para um seleto grupo, enquanto a outros resta apenas o desassossego do anonimato de sua dor.

Não se trata, no entanto, de dizer que vozes são silenciadas, que a visibilidade de uns é a causa da invisibilidade de outros. É uma questão que se põe anterior a isso; mais sensível e elementar que essa. Estar conectado, saber do lugar e da dor do outro não faz com que eu a sinta, com que eu assimile em algum grau a empatia que o caso deveria me impor.

Ou seja, estamos conectados, mas essa possibilidade de interação intensa não é uma relação de causa e efeito simples, que resulta em automática identificação e empatia com causas políticas e sociais que oprimem e limitam. Mas, por outro lado, é possível utilizar todos os recursos que essa conectividade proporciona para que as narrativas empurradas para as periferias ecoem de forma consistente por todos os espaços.

Neste artigo, especialmente, analisamos a partir de um desses recursos (os games) duas narrativas de conflitos

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políticos que buscam desafiar e instigar a capacidade de empatia e reconhecimento do Outro como semelhante e próximo – a partir de um exercício de alteridade que consiste em delegar ao sujeito (eu) as decisões e o contexto do próximo (Outro). O jogo, então, desempenha essa função de entre-lugar, sendo o “fio cortante da tradução e da negociação” que leva consigo o significado da cultura, em uma referência às ideias de Bhabha (1997, p.69).

Assim, uma valiosa lição a respeito da alteridade permanece: o reconhecimento da diferença, inevitavelmente, recai sobre o Outro. Mais do que um processo retórico de convencimento pelos processos, trata-se de usar os processos como ponto de partida para evocar problematizações de ordem simbólica que transcende as ações.

Afinal, para que se veja o Outro como diferente é necessário um exercício que leva em consideração o grau de distanciamento da similitude que o sujeito enxerga em relação a ele. Difere-se o próximo a partir de si. Da mesma forma, enxerga-se o próximo a partir de si. Talvez, apenas ocupando o lugar dele possamos ter uma melhor compreensão do que seja o nosso lugar nesta relação.

Referências

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“O presidente dando o resultado da Tele-Sena” e

se Silvio Santos tivesse sido eleito?

Janaine Aires1

Aos domingos vai ter um programa Pra mostrar no que o país avança (e)

Se ficar ainda alguém na lama Esse vai pra porta da esperança

Milhares de telespectadores Ajustando a antena

Pra ver bem o presidente Dando o resultado da Tele-Sena

Rafael Castro na música “Silvio Santos para presidente”2

Introdução As Ciências Humanas certamente encararão com preocupação uma reflexão que parte de uma condicional. A música, no entanto, tem muito mais liberdade e nos fornece um excelente ponto de partida para discorrermos sobre as relações entre a mídia e a política na contemporaneidade.

1 Doutoranda em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Vice-coordenadora do Projeto “Clientelismo e patrimonialismo nas Políticas de Comunicação brasileiras: dinâmicas assimétricas de poder e negociação”. Bolsista Fundação Ford. Integra o Peic – Grupo de Pesquisa em Políticas e Economia da Informação e da Comunicação. E-mail: [email protected]

2 Ouça: “Silvio Santos para Presidente”, de Rafael Castro: https://www.youtube.com/watch?v=JCwyyKUzFMY.

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A canção “Silvio Santos para presidente”, de Rafael Castro3, descreve o cenário hipotético do Brasil caso Silvio Santos tivesse sido eleito em 1989, quando se candidatou à Presidência do país.

Da compatibilização de interesses entre partido e eleitorado à cerimônia de posse, as relações atravessadas pela lógica midiática ficam bem evidentes. A letra é um convite que nos leva a imaginar o presidente jogando dinheiro para o povo ou sorteando casas e carros zero km na televisão. Transporta-nos para as caravanas de “colegas de trabalho”, como o apresentador prefere as classificar, que no mundo imaginário que cria, quando cidadãs, seguiriam rumo ao Congresso para brincar de forca com as palavras de nossa bandeira.

O exercício de imaginação vai além e nos faz “sentar na poltrona em um dia de domingo” para assistir a um programa que nos apresenta os avanços do país e não deixa ninguém de fora. Afinal, se sobrar “alguém na lama”, a medida social que o presidente aplicará é a “Porta da Esperança”. Neste artigo, pretendemos pensar sobre um fenômeno que a cada eleição ganha mais evidência: o papel de centralidade que a candidatura de profissionais da mídia tem adquirido na disputa eleitoral nos seus diversos níveis.

Embora busque colaborar com um fenômeno contemporâneo, a proposta que elaboramos aqui volta seus olhares para o passado. E mais do que isso, dedica-se a refletir

3 Conheça o artista: http://www.rafaelcastro.com.br/

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sobre uma situação que não ocorreu. Por quê? Adotar uma situação que poderia ter ocorrido como objeto de análise, à primeira vista, pode ser um caminho pouco recomendado, mas se justifica. Acreditamos que é preciso conceber como elemento de nossas reflexões o não apreensível, o não planificável, o que escapa à ordem dos fatores. Abrir espaço ao que não passaria de imaginação.

Compreendemos este passo como fundamental para, em certa medida, dar conta da complexidade de relações que envolvem a mídia e a política. Afinal, falamos de uma relação atravessada pelas dimensões sensíveis e do imaginário que, articulada com a organização normativa e partidária, imprime na política brasileira um retrato tão singular. O fenômeno não é novo e muito menos exclusivo do Brasil. Silvio Santos também não o inaugura. A presença e a proximidade diária no cotidiano brasileiro, no entanto, colabora com a compreensão de que se trata de um fenômeno natural, resultado da popularidade destes personagens somada ao “clamor” de seu público. É este caráter de naturalidade com o qual queremos romper.

Não há dúvidas: o processo reproduz a transformação paulatina do político em comunicador e do comunicador em político (VIDAL NUNES, 2001), consequência da crescente relação de proximidade entre os campos político e midiático. No entanto, acreditamos que este fenômeno, para além de derivar desta sobreposição, reproduz características estruturais dos meios de comunicação brasileiros e da política nacional, tem impactos determinantes no jogo político

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partidário e, principalmente, na concepção de Estado e Democracia. E é sobre isso que vamos discorrer a seguir.

Mídia e Política

A mídia tem sido apontada com frequência como elemento central das relações sociais contemporâneas. Acredita-se que, nesta posição, ela atravessa e transforma diferentes processos e esferas da sociedade. O campo político é, talvez, aquele em que esta característica melhor se manifesta.

Isto acontece porque, na atualidade, a mídia concorre e assume – obviamente que não sozinha - o papel antes reservado a outras instituições no que se refere à socialização, como as igrejas, as escolas e mesmo a família. É através da mídia que vários aspectos da vida são construídos e adquirem um significado, por isso, é cada dia mais fundamental compreender que a política e a comunicação não podem ser entendidas como dimensões isoladas.

Os impactos desta realidade se revelam nas mais variadas fases do processo democrático: da elaboração da agenda de debates à competição política; da construção positiva ou negativa dos candidatos ao grau de exposição dos temas; das assimetrias de acesso e de produção à formação de opiniões. A combinação dos dois campos (o político e o midiático), ao contrário do que nossas inferências até o momento podem sugerir, também é conflituosa e dialética e, portanto, muito mais complexa do que somos capazes de traduzir.

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Mauro Porto (1996, p. 49) destaca que “apesar de não serem o único fator a determinar os resultados da disputa eleitoral, os meios de comunicação de massa - e particularmente a televisão - estão impondo importantes transformações à própria natureza da política”. É para este impacto que desejamos chamar atenção.

Afinal, um tipo de elaboração política limitada pelo tempo midiático, pelas exigências da ilustração visual caras à produção audiovisual (por exemplo) e pelos critérios de relevância estabelecidos a partir da lógica midiática gerará também uma concepção diferenciada de Estado e, logo, de regime político. É pensando nisto que retomamos o nosso objeto de análise. Antes de lançar-se à Presidência, Silvio Santos foi cotado a outros cargos, o primeiro deles foi à prefeitura da maior cidade do país, São Paulo, em 1988. A candidatura havia sido orquestrada por Orlando Dorsa, subordinado de Jânio Quadros e Inocêncio Erbella, do PFL/SP (SILVA, 2000). Sempre que aceitou os convites, tanto para a prefeitura quanto para a Presidência da República, Silvio Santos promoveu uma enquete televisionada com seus familiares e companheiros de trabalho perguntando qual a opinião deles com relação a sua candidatura. Por unanimidade, nas duas ocasiões, todos os familiares e empregados questionados aconselharam o apresentador a não se candidatar, apresentando os motivos: “como animador você pode dar muito mais para o seu público do que como

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Presidente da República”, “você sempre foi o Papai-Noel do ano inteiro, como presidente você não poderá ser o Papai-Noel” (sua filha Cíntia Abravanel)4. Alguns parentes preferiram alertar o apresentador: “você vai tentar fazer as coisas rápido, você vai tentar fazer milagre e não vai conseguir fazer” (o seu sobrinho Leon Abravanel)5; “o povo prefere comer a pagar impostos e não haverá dinheiro para fazer obras”, “sem dinheiro não podem pagar médicos e recorrem à macumba”, “diante dessa situação, o prefeito não poderia fazer as melhorias necessárias e seria culpabilizado e todos se voltariam contra você” (sua filha Sílvia Abravanel)6. A resistência da família contrastava com a empatia do meio político que o convidara, mas, claro que o meio político opositor não enxergava a situação com tamanha benevolência. Por telefone, o ex-presidente Jânio Quadros, que na ocasião era o prefeito de São Paulo, disse: “o senhor inquestionavelmente é um grande administrador. Na televisão, o senhor proporciona lazer e educação à população de São Paulo e do Brasil. Por isso, o senhor tem todos os

4 Assista ao depoimento de Cíntia Abravanel veiculado no programa Silvio Santos https://www.youtube.com/w a t c h ? v = h g m y U 4 r 1 S 3 Y & l i s t = P L 6 W o _ 0 i w M 5 _ c 3 i V r m e p D q _Do9qRe3EIY5&index=26

5 Assista ao depoimento de Leon Abravanel veiculado no programa Silvio Santos https://www.youtube.com/watch?v=NpOdkP8k380&index=19&list=PL6Wo_0iwM5_c3iVrmepDq_Do9qRe3EIY5

6 Assista ao depoimento de Silvia Abravanel veiculado no Programa Silvio Santos https://www.youtube.com/watch?v=hjW_pt7NRIM&list=PL6Wo_0iwM5_c3iVrmepDq_Do9qRe3EIY5&index=16

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elementos para ser um grande candidato. [...] Cabe notar ainda que há aspectos altamente positivos, altamente emocionais, altamente humanos. O senhor tem sabido usar esta arma poderosa que é a televisão7”. Contrariando a família e os amigos, mas em conformidade com as forças políticas que o convidaram, o apresentador aceitou o convite para disputar, em um primeiro momento, o município de São Paulo. Mas não automaticamente. Ainda lhe restavam dúvidas sobre o “regime de trabalho” ao qual o prefeito estaria submetido. Por isso, dedicou um programa para esclarecê-los publicamente. Entre os quadros do seu show, Silvio Santos dedicou um àqueles que lhe encaminharam a carta-convite, fazendo as perguntas que reproduzimos abaixo:

1. Prefeito pode animar programa de televisão nos domingos? 2. Prefeito pode ter dois dias de folga por semana? 3. Prefeito pode colocar um vice-prefeito a sua escolha, independente de partido, para dividir com ele a prefeitura, e ele, o prefeito, pode ir para Miami quando desejar e deixar o vice-prefeito na prefeitura? 4. O que o prefeito pode fazer sem precisar da Câmara de Vereadores? Quais as obras? 5. Prefeito pode ficar isolado e não apoiar nem tomar conhecimento de vereadores, Presidente da República, governadores, deputados, etc?

7 Assista ao depoimento do ex-presidente Jânio Quadros no programa Sílvio Santos: https://www.youtube.com/watch?v=b4iPKXFQI24&list=PL6Wo_0iwM5_c3iVrmepDq_Do9qRe3EIY5&index=18

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6. Prefeito pode colocar nas secretarias os profissionais que ele desejar para trabalhar, independente de partidos políticos? 7. O que é o PFL? Quais são as suas idéias? Poderei, eventualmente, fazer o que o PFL não quer?8. O prefeito pode falar sobre o que faz, durante todos os dias, na TV do prefeito? Ou o Ministério das Comunicações não deixa? (SANTOS, 1988, Programa Silvio Santos)8

As perguntas aparecem reformuladas na biografia de Silvio Santos, publicada pelo seu assessor de imprensa Arlindo Silva (2000, p. 125). O programa e os questionamentos que fazia foram recebidos pelos jornalistas na época como ironia. E, realmente, podem ter sido, mas elas são importantes para apontar a relação assimétrica que caracteriza o vínculo político que se estabelece ali. Mais do que sugerir um “regime de trabalho”, os questionamentos dirigidos aos corregilionários por Silvio Santos deixam claro a natureza do laço político que se estabelece entre ele e o partido político que o convida: a figura do apresentador é mais forte que o partido e promove certa renúncia e distanciamento da proposta partidária. Há espaço para agir sem precisar de vereadores? Posso ir a Miami? Posso continuar com os meus programas aos domingos? O meu secretariado precisa estar submetido ao partido? Seríamos muito ingênuos se sugeríssemos

8 Assista a trechos do programa: https://www.youtube.com/w a t c h ? v = K V I S M 2 a L G 4 8 & l i s t = P L 6 W o _ 0 i w M 5 _ c 3 i V r m e p D q _Do9qRe3EIY5&index=13 | https://www.youtube.com/watch?v=T5a8dapq7T4 | https://www.youtube.com/watch?v=wlbAmaTsMbM .

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desconhecimento de Silvio Santos das leis que regem o serviço público. As perguntas parecem mais do que isso e insinuam uma barganha entre a força política do apresentador e aquela que o sonda a compor seus quadros. Para justificar a escolha do partido o apresentador esclareceu: “foi o primeiro partido que me procurou. Eu assinaria a ficha de qualquer outro, mesmo que fosse do PT ou o PCB” (SILVA, 2000, p. 125).

O espaço do cálculo

O fato de falarmos do apresentador popular mais poderoso do Brasil, um olimpiano (MORIN, 1984 e 1986), talvez não torne este exemplo um bom parâmetro. A relação, neste caso, é mais assimétrica do que a que se estabelece na atualidade entre apresentadores populares e/ou celebridades e partidos políticos nos Estados brasileiros. No entanto, as perguntas feitas naquela noite de domingo em 1988 soam familiares para as novas gerações de eleitores. Aqueles que acompanharam as propagandas do palhaço Tiririca podem ter notado a reedição. Com a mesma humildade, Tiririca compartilhou com o público, em 2010, o mesmo “desconhecimento político” que o apresentador: “O que é que faz um Deputado Federal? Eu também não sei! Mas vote em mim que depois eu te conto!9”. Atualmente, compreende-se a participação de personagens deste tipo no jogo político partidário de modo

9 Assista a campanha do Deputado Federal Tiririca: https://www.youtube.com/watch?v=dxQNdSskjVU

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superficial. A chave explicativa sugerida é que se tratam de agentes “puxadores de voto” no cálculo político eleitoral e que estes personagens lidam com um público político específico, geralmente iletrado e periférico. Logo, este aspecto passou a ser denominado como “efeito Tiririca10”. A questão é mais do que uma ferramenta de publicização de candidaturas. Desejamos demonstrar que estes personagens vêm, a cada dia, tornando-se mais importantes na agenda política e na busca por votos. Constrói-se um discurso político voltado para uma parcela da população abandonada pelos serviços públicos, negando-se o jogo político tradicional, mesmo sendo elemento deste. A reedição de episódios como este se revelam também nas eleições à prefeitura de São Paulo, em 2012. Em uma sabatina promovida pelo SBT, a jornalista Flávia Ribeiro perguntou ao candidato Celso Russomano: “o senhor trabalhou por 10 anos no mesmo partido de [Paulo] Maluf, o PP. Como será a primeira eleição longe dele? [que apoiava a candidatura de Fernando Haddad]. E o fato do seu nome

10 Em 2010, o humorista Tiririca recebeu 1,3 milhão de votos pelo Partido Republicano e tornou-se deputado federal eleito pelo estado de São Paulo.O acumulo de votos implicou na eleição de mais quatro candidatos de seu partido. Assim, partidos têm requisitado a filiação de pessoas famosas e celebridades para se beneficiar dessa possibilidade, como foi o caso do PSOL que a despeito da natureza do partido elegeu o ex-BBB Jean Willys e Cabo Darcilo, líder de uma greve militar que teve ampla repercussão midiática. O “efeito Tiririca” acontece porque nas eleições proporcionais – deputados estadual, federal e vereador –, o voto não é dado somente aos candidatos e sim aos seus partidos e para que estes possam atingir o coeficiente eleitoral (isto é, número que resulta da divisão dos votos válidos dados aos candidatos mais aqueles dado à legenda pelo total de cadeiras nas câmaras e assembleias) e garantir mais vagas recorrer a esses expedientes.

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ter sido ligado por muitos anos ao ex-prefeito te ajuda ou te atrapalha?11”. Russomano respondeu.

Olha, nunca ajudou. A gente não pode esquecer que a minha primeira eleição não foi pelo partido do Paulo [Maluf], a minha primeira eleição foi pelo PSDB [Deputado Federal em 1994]. E eu fui o deputado mais votado do Brasil. E a cada eleição em tenho um aumento na minha votação. Na última eleição, eu tive 600 mil votos. Isso faz do Celso Russomano um deputado que faz a legenda sozinho. Eu não precisaria de nenhum outro candidato para me eleger Deputado Federal. Eu tenho estrela própria e minha condução sempre foi a mesma: atuar na defesa do consumidor. Quando falo do direito do consumidor, não falo do consumidor da iniciativa privada, mas o consumidor dos serviços públicos também, e foi isso que fez o meu crescimento político. [grifo nosso] (RUSSOMANO, Sabatina Candidatos SBT, 21 de maio de 2012)

Embora chame atenção a confusão que o apresentador promove entre cidadania e consumo, que podemos tratar em outra ocasião, interessa-nos apontar a ciência de Celso Russomano de que é a própria legenda, conforme grifamos na fala reproduzida anteriormente. A fala é semelhante à de Silvio Santos quando buscou entender “o que poderia fazer um prefeito?”.

O que foi acatado como uma ironia pelos jornalistas, mais tarde, o fez pensar mais alto: para quê se candidatar à

11 Assista a sabatina: https://www.youtube.com/watch?v=4LZH4FLcIMY

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prefeitura se poderia lançar-se à Presidência da República? A consciência do seu poder de barganha se manifestou mais tarde nas coletivas de imprensa que se sucederam quando ele declarou: “Não faço alianças políticas e coligações por uma razão: eles disseram para mim, na primeira conversa que tivemos, que eu seria um candidato com possibilidades de ganhar até sem segundo turno. Então para que coligações, para que apoios, para que gastos? Não vou gastar nem um tostão em campanha” (SILVA, 2000, p. 132).

Silvio Santos se manteve filiado ao PFL e cogitou a sua candidatura por 150 dias. A desistência foi atribuída a um problema na garganta, que exigia do apresentador repouso e cuidados com as cordas vocais. Mas a despedida da disputa deixou clara a estratégia. O apresentador destacou que o PFL lhe havia dado três grandes emoções: a primeira o reconhecimento de seu nome por um importante partido que o viu como candidato para a maior cidade da América Latina. A segunda emoção foi a publicação da pesquisa que o apontava como o preferido à prefeitura. E a terceira foi outra pesquisa que indicava voto em Silvio Santos, naquele dia, à Presidência da República (SILVA, 2000, p. 144).

Dinâmicas Assimétricas

A nossa história política recente guarda uma série de exemplos que reproduzem essa relação. Em todos os Estados brasileiros, apresentadores populares têm sido candidatos a cargos diversos, conforme já destacamos em outras

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oportunidades (AIRES, 2013). Do Amazonas da Família Sousa (Wallace, Fausto e Carlos) do Programa Livre, ao Rio Grande do Sul de Lazier Martins e Ana Amélia da RBS, afiliada da Rede Globo.

É necessário, no entanto, destacar um aspecto. A popularidade dos apresentadores e da equipe, apesar de ser um elemento importante de seu capital político, não é o único. No caso dos apresentadores populares que se baseiam em programas focados nas coberturas policiais e/ou na prestação de serviços, verificamos que o capital político não se resume somente ao seu status de celebridade e a sua aparição na mídia.

O exercício político é desenvolvido no processo de identificação diário dos interesses coletivos e dos interesses que envolvem apresentadores e radiodifusores. Destaca-se o uso político das concessões de radiodifusão brasileiras. No caso da Rede Record de Comunicação, por exemplo, a postura política de apresentadores populares ligados à rede de televisão reproduz os interesses da Igreja Universal do Reino de Deus e tem forte conexão com os partidos ligados à entidade (PRB, PR e PP). Este tipo de relação estabelece dinâmicas assimétricas significativas de poder no contexto político brasileiro, que, diga-se, não são somente eleitorais.

Com isto, queremos destacar que o capital político próprio da mídia, assim como o capital político tradicional, não é resultado “natural” da relação entre celebridade/apresentador e o seu público. Não são somente os seus interesses que estão em jogo.

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A assimetria começa na penetração social da mídia e na plataforma de visibilidade permanente que ela proporciona. Mas não se resume somente a isso, como falaremos mais adiante. A desincompatibilização exigida pela legislação eleitoral não é suficiente para dar conta do fenômeno e tornar a disputa mais paritária. O Estado do Amazonas nos fornece uma série de exemplos disto. Apresentadores populares sensacionalistas se revezam com membros da família na apresentação de seus programas, assim, quando um membro está proibido pela justiça, outros assumem o seu lugar, impedindo o controle legal e promovendo campanha para o familiar, mesmo quando não é ele quem está de frente para as câmeras.

O que nos prova que a relação não é importante somente para os comunicadores e os seus patrões, mas também para todos aqueles que, por algum motivo, tenham a imagem associada positivamente a ele. Por outro lado, há os casos em que o programa se transforma no gabinete do prefeito (AIRES, 2014), como foi o caso da cidade de Bayeux, na Paraíba, no qual o prefeito acumulou suas funções com aquelas que foram fundamentais para a sua eleição: a televisão e o rádio, por seis anos (75% dos seus dois mandatos). O mesmo acontece no Mato Grosso do Sul, onde o deputado Maurício Picarelli, desde a década de 1980, apresenta todos os dias seu programa no rádio e televisão.

Além da eloquência, natural de comunicadores, não se pode negligenciar a importância da plataforma permanente. Tal aspecto explica, em parte, a importância

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que estes personagens adquirem no jogo político partidário contemporâneo, sendo figuras importantes dentro de partidos com pouca expressividade e até mesmo as mais importantes figuras nas campanhas políticas de suas localidades.

A capacidade de identificação diária dos interesses do público os diferencia de outros personagens que surgem na política a partir da mídia, como cantores (as), atores e atrizes e mesmo humoristas, como o próprio Tiririca. Embora, em ambos os casos, a visibilidade se constitua como elemento chave, o processo político que os lança é diferenciado.

No caso de Silvio Santos, além da potencialidade da lida diária sobre o público, pairava também a figura de benfeitor, do “homem que abria as Portas da Esperança”, o poder de radiodifusor e de empresário que detinha. E ele sabe disso. Quando questionado se teria o apoio do então presidente José Sarney, Silvio Santos ponderou: “um homem popular como eu sou, até acredito, um homem querido como eu sou. Porque se eu amo o povo, o povo também me ama, é uma recíproca. Não seria importante para mim qualquer tipo de posicionamento. O que importa para mim é a querência do povo12”.

Nem todos os casos gozam de tamanha plataforma. Talvez, por isso, a ousadia em se lançar à presidência, com um pacote de medidas bem sucinto: “quero somente três Ministérios, o da Agricultura para dar comida ao povo; o da Educação para educar o povo; e o das Finanças”, concluindo:

12 Assista a esse depoimento. https://www.youtube.com/watch?v=RQnNr6YqpIc

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“eu não acho que administrar o país é difícil, basta que sejamos sinceros, que nós falemos dos problemas com o povo, que tentemos resolver os problemas com o povo. Eu vou me assessorar com pessoas do bem, porque o bem atrai o bem”.

A singularidade de sua condição elevou ao cúmulo a característica da televisão brasileira, que surge como “uma espécie de objeto mítico, capaz de transformar a borralheira em princesa, ao ritmo da varinha de condão do apresentador, deslocando-se de sua ‘abóbora’ (a favela, o subúrbio) para a celebridade e a casa própria, o mágico prêmio final” (PAIVA E SODRÉ, 2002, p. 135).

A política que emerge desta plataforma tem sido apontada como populista. Acreditamos que é preciso superar tal abordagem, de um lado porque não podemos confundi-la somente com um “estilo político”, sob a pena de não compreendê-lo estruturalmente e, sim, de modo personalista e reduzido. Como sugere Waisbord, “o relacionamento entre jornalismo e democracia envolve também um modelo de democracia” (2013, p.505). Para tanto, não podemos negligenciar a importância e a necessidade de exame das políticas de mídia contemporâneas para se compreender os fenômenos de audiência. Reduzir o fenômeno a um “estilo” moldado somente pela relação com o seu público (que se revela na máxima “é disso que o povo gosta”), coloca este fenômeno como uma forma de comunicação – caracterizada pela presença do líder, pela manipulação da mídia e por uma determinada forma de representar discursivamente o povo, distante do

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contexto político que fundamenta a sua estrutura. Buscamos, então, destacar que não se trata somente da incorporação de traços característicos do fenômeno político na programação da televisão.

Considerações finais

Precisamos retomar o exercício de imaginação que nos motivou inicialmente. E se Silvio Santos tivesse sido eleito? Certamente, o país contaria com um cenário tal qual revela a música que nos inspirou e a cena em que o telespectador “ajustaria a antena para ver o presidente dando o resultado da tele-sena” seria visionária.

A prática política que se expressa através desta plataforma é diversa e bastante complexa, além de se sustentar em diversos capitais. De um lado, o capital midiático que se transforma em capital político quando direcionado para isso e, mais adiante, em voto e penetração popular; de outro, o capital mítico que personaliza, na figura do apresentador/celebridade, a característica da televisão brasileira em realizar os sonhos dos telespectadores.

O fenômeno, no entanto, também é dotado de outros aspectos salutares e que manifestam a natureza da relação entre mídia e política na contemporaneidade: 1.) a negação da política - nega-se a política, mesmo sendo partícipe dela; 2.) a barganha política – o capital midiático é determinante para o jogo político partidário e, consequentemente, para a Democracia; 3.) transferência de capital político e midiático –

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que inaugura uma nova forma de transmissão e perpetuação de famílias políticas, que através dos meios de comunicação seguem atuando nas duas plataformas.

Referências

AIRES, Janaine. Como o Correio Verdade se tornou o gabinete do prefeito da cidade de Bayeux/Paraíba. In: XVI Congresso de Ciências da Comunicação na Região Nordeste, 2014, João Pesso. XVI Congresso de Ciências da Comunicação na Região Nordeste - “Guerra e Paz”. São Paulo: Intercom, 2014.

__________ . A Política do Grotesco: programas sensacionalistas como trampolins políticos. In: CONECO, 2013, Rio de Janeiro. VI Coneco - Perfomance, corpo e subjetividade. Rio de Janeiro: UERJ, 2013. v. 1. p. ---.

MORIN, Edgar. Cultura de massa no século XX: neurose. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1984. _________. Cultura de massa no século XX: necrose. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1986. PAIVA, Raquel e SODRÉ, Muniz. O império do Grotesco. Rio de Janeiro: Vozes, 2002.

PORTO, Mauro. Televisão e Voto: A Eleição de 1992 para Prefeito de São Paulo. In: Revista Opinião Pública, Vol. IV nº1 - pp. 41-50 – Abril/1996

SILVA, Arlindo. A fantástica história de Silvio Santos. São Paulo: Editora do Brasil, 2000.

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Janaine Aires Sumário

VIDAL NUNES, Márcia. Rádio e Política: do microfone ao palanque – os radialistas políticos em Fortaleza (1982-1996). São Paulo: Annablume, 2000.

WAISBORD, Silvio. Democracy, journalism and Latin American Populism. Journalism, 2013, pp. 504-521.

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Uma ilha discursiva submersa pela indiferença: a invisibilidade da regra 42 na cobertura da Conferência do Clima de Copenhague1

Diógenes Lycarião2

Introdução

A COP-15 é o termo que serve de abreviação para a 15ª Conferência da Convenção-Quadro das Nações Unidas para Mudanças Climáticas (UNFCCC, sigla em inglês). Ela foi realizada em dezembro de 2009, em Copenhague (Dinamarca), e obteve a maior visibilidade que uma Conferência das Partes já obteve (ver BOYKOFF & NACU-SCHMIDT, 2013).

A COP-15 gerou, à época, grande expectativa em torno da renovação do Protocolo de Kyoto e da criação de um novo acordo com compromissos vinculantes de longo prazo para

1 Este artigo é uma versão reformulada do trabalho apresentado no 1º Praxisjor, no GT de Jornalismo e Éticas, na Universidade Federal do Ceará (UFC), no dia 4 de maio de 2015.

2 Diógenes Lycarião é pós-doutorando do PPGcom da UFF (Universidade Federal Fluminense) desde setembro de 2014. Mestre e doutor em Comunicação pela UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) e bacharel em Comunicação, com habilitação em Jornalismo pela UFC (Universidade Federal do Ceará). Fez doutorado-sanduíche na Universidade de Mannheim (Alemanha) e estágio de pesquisa durante o mestrado no Póscom da UFBA (Universidade Federal da Bahia).

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combater os piores efeitos das mudanças climáticas. Havia, desse modo, a expectativa de que acordos multilaterais pudessem evitar esses efeitos e também criar condições institucionais para que os países se adaptassem a elas, isso sem maiores perdas humanas e econômicas.

No entanto, o Acordo de Copenhague produzido ao final da COP-15 não estabeleceu qualquer meta legalmente vinculante nem teve adesão de todos os países que participaram dessa cúpula. A presidência da Convenção se limitou, portanto, a tomar nota de um documento com metas e adesões voluntárias. Muitos veículos jornalísticos, diante disso, não hesitaram em classificar o resultado final da cúpula como um verdadeiro fracasso.

Ao examinar a cobertura jornalística desta Conferência do Clima pela Folha de São Paulo (65 matérias) e pelo Jornal Nacional (21), este trabalho discute, através de uma análise interpretativa e de conteúdo, se essas coberturas falharam ou não em tratar, com a devida atenção, das causas que impediram - e impedem até hoje - que um efetivo regime de governança internacional se edifique conforme as disposições mais elementares de um processo democrático.

Para entender essas causas, trataremos de uma das mais sintomáticas omissões que a cobertura aqui analisada revelou sobre as frágeis condições políticas para que se edifique um efetivo regime de governança internacional em torno das mudanças climáticas. Tratou-se, no caso, da invisibilidade conferida ao conflito sobre a regra 42 dos procedimentos da Convenção do Clima. Conflito esse que, inclusive, foi

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protagonizado por negociadores brasileiros e pelos da Papua Nova Guiné, um país arquipélago que se posicionou a favor da discussão da regra 42 e de sua aprovação no plenário da COP-15, já no primeiro dia da Conferência.

A regra 42 é a única regra que tem sido deixada de fora em relação às disposições que têm guiado os procedimentos da Convenção. Ela dispõe, com exceção de alguns temas, que as decisões, após o devido debate e exauridas as possibilidades de consenso, possam ser tomadas mediante votação cujo item seja aprovado por mais de dois terços das partes. Como esta regra não obteve consenso até hoje, a única forma de tomar decisões que a UNFCCC possui é mediante o consenso pleno entre as partes.

Por isso mesmo, o Acordo de Copenhague não se constituiu em decisão efetiva da Convenção, apesar da ampla maioria das delegações ter dado apoio ao acordo. Uma maioria que ultrapassou inclusive os dois terços de que dispõe a regra 42. Ao final da COP-15, entretanto, tudo que se obteve foi apenas um documento de que a presidência da Conferência tomou nota. Isso porque, até hoje, não se conseguiu validar a efetividade da regra 42. Uma efetividade que foi defendida pela delegação de Papua Nova Guiné, mas que teve sua respectiva discussão bloqueada pela delegação brasileira.

O trabalho irá, então, descrever como o conflito em tela se deu, tendo em vista, primeiramente, quais foram os conteúdos visibilizados pela cobertura analisada para, posteriormente, refletir sobre como a invisibilidade do conflito em questão é sintomática de uma indisposição generalizada em prol de

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uma transformação estrutural da política contemporânea. Disso, propõe-se que o estudo de caso aqui analisado, mais do que um déficit deontológico das práticas jornalísticas investigadas, evidencia um grave déficit de cosmopolitismo da cultura política contemporânea. A conclusão aponta para a necessidade de se reforçar o caráter ativo do trabalho intelectual na esfera pública como forma de se tentar reverter esse déficit.

A cobertura da COP-15: entre uma visibilidade oficialista e crítica

A COP-15 foi, até agora, a Conferência do Clima da ONU que mais atenção despertou dos holofotes mediáticos e, assim, mostra-se como um caso oportuno para se analisar o papel do jornalismo em cumprir funções ético-políticas de suma importância para a legitimação democrática de decisões que envolvem alto nível de complexidade social.

Dentre essas funções, destaca-se, neste caso: (a) o dever de tornar inteligível para a esfera cidadã

problemas sociais complexos3, como o das mudanças climáticas;

(b) reportar, de maneira crítica e vigilante4, as discussões e negociações políticas em torno

3 Ver Peters, 2008a, p.221; 2008b, p.109; Peters, 2008c, p.151; Fischer, 2009, p.208-209; Habermas, 2009, p.136.

4 Ver Arato, 2002, p.96; Azevedo, 2006, p.110; Gurevitch & Blumler, 1990, p.25; Maia, 2012 p.03; Marques & Miola, 2010, p.10-11; Norris, 2000, p.28.

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desses problemas, o que, neste caso, aplica-se às negociações da COP-15 e sua respectiva tentativa de produzir um acordo que pudesse viabilizar uma ação coordenada de caráter global de enfrentamento às mudanças climáticas.

Diante de tais expectativas normativas, pergunta-se, neste trabalho, se e como o sistema mediático brasileiro realizou, em suas instâncias centrais, uma cobertura jornalística que pudesse trazer para o domínio público uma compreensão acerca dos principais problemas e entraves que impediram a formalização do tipo de ação coordenada referida acima.

Para explorar o desempenho do sistema mediático brasileiro nesse sentido, a cobertura da COP-15 foi submetida a uma análise interpretativa e de conteúdo através do JN (n=21) e da FSP (n=65). O período selecionado foi o mesmo do evento: 7 a 19 de dezembro de 2009, o que totalizou 12 dias de cobertura. Desses veículos, foram analisadas apenas matérias na forma de notícias ou reportagens. Ou seja, editorais, charges, entrevistas e colunas assinadas não integram a amostra analisada. Sob esses critérios e outros de caráter formal (ver livro de códigos em LYCARIÃO, 2014), a amostra foi censitária. Isso implica que todas as matérias encontradas, sob tais especificações, foram codificadas.

Com o objetivo de verificar o que “deu errado” na COP-15 e se a cobertura jornalística esclareceu esta questão, uma análise interpretativa e de conteúdo das sessões

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formais de deliberação também foi realizada, o que incluiu as conferências de imprensa que tiveram a presença e fala de representantes que falaram em nome do Brasil (o que incluiu coalizações como o Grupo 77 e a China). Para isso, utilizou-se o site da organização5, no qual estão disponíveis publicamente as gravações desses âmbitos discursivos. Ao realizarmos a codificação das arenas discursivas em comparação (cobertura jornalística x sessões da COP-15), o foco se debruçou sobre como e em que medida a cobertura reportou as propostas políticas assumidas por representantes que falaram em nome do Brasil durante as sessões e conferências de imprensa da COP-15. Ao realizar essa análise, verificamos que 34 posicionamentos assumidos por esses representantes foram reportados pelo JN e pela FSP. Esses posicionamentos constituem, assim, os 34 tipos de casos da Tabela 1. Como alguns desses posicionamentos se repetiram ao longo tanto das sessões como da cobertura, para a primeira, eles totalizaram 88 casos e, para a segunda arena (os media), 85.

5 http://unfccc4.meta-fusion.com/kongresse/cop15/templ/ovw.php?id_kongressmain=1&theme=unfccc

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A figura 1, por sua vez, mostra os 11 casos mais frequentes (que mais se repetiram) em cada arena discursiva sob análise. Entretanto, desses 11 posicionamentos, apenas 5 deles estiveram entre os 11 mais frequentes em ambas as arenas. Como resultado, 17 casos foram comparados ao todo. A comparação desses posicionamentos se encontra na Figura 1. Ela expressa, através de uma pirâmide populacional, as diferentes ênfases que as demandas ou propostas políticas receberam em cada arena.

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Após uma análise interpretativa e de conteúdo, desses casos ou posicionamentos, percebeu-se algumas diferenças entre as arenas aqui estudadas. Uma delas se refere à proposta do Brasil de reduzir a curva estimada de suas emissões de gases do efeito estufa, a qual está identificada na Figura 1 como “Mitigação brasileira”. Esta proposta foi a que mais recebeu atenção da cobertura, mas ela teve apenas um peso médio nas sessões da COP-15. Isso indica um viés na forma com que a cobertura selecionou as propostas e demandas políticas feitas em nome do Brasil na COP-15. Um viés que privilegiou as perspectivas nacionais (do Brasil) em detrimento das propostas de coalização (o que inclui todos os países do G77 e a China).

Isso também fica claro para os casos relativos a “financiamento” (divididos entre “para cumprir metas”; “generalista”; “para mitigação” e “direcionado” – ver figura 1). Mediante uma análise interpretativa dessa diferença,

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percebeu-se que a cobertura se mostrou mais preocupada em reportar demandas ou propostas políticas mais específicas e detalhadas do que o padrão predominante encontrado nas sessões. Em tal arena discursiva, os declarantes frequentemente se furtavam de especificar quem deveria receber esse financiamento e quem deveria provê-lo. O viés da cobertura em selecionar demandas e propostas que contivessem esse tipo de informação parece ter sido, portanto, uma evidência a favor de uma mediação de qualidade dos posicionamentos proferidos pelos representantes que falaram em nome do Brasil durante a COP-15.

O mesmo não pode ser dito, não ao menos com base nos dados em questão, para os casos referentes à demanda por “Inclusão” [nas negociações]” e por mais “Transparência” das mesmas. Como se pode notar, elas apresentam indícios quantitativos que podem sugerir um viés que camuflou os aspectos procedimentais enfatizados pelo G77 e a China durante as negociações. Esses indícios, por sua vez, tornam-se ainda mais consistentes quando se tem em perspectiva que a forma com que as negociações foram conduzidas, durante a COP-15, foi alvo de grande controvérsia durante todo o processo. Isso porque essa forma foi, por diversas vezes, considerada como pouco transparente e inclusiva pelo G77 e a China. Daí que, nas sessões, o tema “negociações” foi um dos mais enfatizados, assim como as demandas por transparência e inclusão, nesse âmbito, acabaram também sendo as mais repisadas.

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Na liderança desse tipo de padrão discursivo esteve o negociador sudanês Lumumba Stanislaus Di-Aping, o qual falou, em diversas vezes, em nome do G77 e a China. Lumumba foi, durante as plenárias e conferências de imprensa, severo crítico de como o processo de negociação estava sendo conduzido pela presidência da Dinamarca. Esse tom crítico esteve presente desde o começo quando, já no segundo dia de negociações, foi revelado que a presidência dinamarquesa estaria tentando fechar um acordo nos bastidores com as grandes potências para pressionar as demais nações a aceitar o resultado “possível”. Esse episódio e outros6 geraram, segundo Sérgio Abranches, uma escalada de desconfiança e contestação do processo, o que culminou com as nações africanas abandonando temporariamente as negociações:

Delegações africanas deixaram todas as mesas de negociação, reclamando de falta de transparência e ação efetiva na cúpula do clima. [...] Os africanos reagiam a rumores de que os países desenvolvidos negociavam em paralelo um novo documento, que seria apresentado diretamente aos chefes de Estado na quinta-feira (ABRANCHES, 2010, p.174).

Esse tipo de reação, todavia, não foi ignorado pela cobertura, tal como parecem sugerir os dados referentes aos

6 Abranches relata que a presidência da COP-15, presidida por Connie Hedegaard, foi alvo de intensa crítica depois do vazamento em questão: “Connie ainda causaria outra comoção naquela quarta-feira ao anunciar que o plenário seria convocado a deliberar sobre dois textos, que estariam à disposição das delegações em breve e seriam apresentados formalmente pelo presidente Rasmussen. O anúncio causou furor entre os que suspeitavam de conspiração de uma pequena elite, desde o vazamento do ‘documento dinamarquês’, no começo da COP15.” (ABRANCHES, 2010, p.191).

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17 casos comparados (ver figura 1). Tanto que a revelação das negociações paralelas foi alvo de notícias da FSP bem como do JN. Este, em reportagem do dia 8 de dezembro, noticiou que “a indignação dos africanos ecoou pelo centro de convenções. Eles reagiam à revelação de um acordo paralelo articulado pela Dinamarca, junto com Estados Unidos e Grã-Bretanha”. Já a FSP, no dia seguinte, publicou a matéria “Proposta de anfitriões vaza e cria celeuma em cúpula” em que o conteúdo dessa proposta foi detalhado:

O texto dinamarquês cita um compromisso em auxiliar os países mais pobres a se adaptarem à mudança climática. Ele não cita assistência aos países em desenvolvimento com emissões a mitigar – e, nesse ponto, é uma ruptura com o Plano de Ação de Bali, documento que serve de base à discussão em Copenhague. Mas cobra deles metas. No Protocolo de Kyoto (1997) só os países desenvolvidos, maiores responsáveis pelo aquecimento global, tinham de se comprometer com o corte (FSP, Doc FSP020, 2009).

Ao se analisar outros dados desta pesquisa, divulgados anteriormente, é possível perceber que o viés indicado anteriormente (o de esconder a crítica aos procedimentos da COP15) pode ter sido bem menos intenso do que a Figura 1 sugere. Um indício, nesse sentido, é observável na distribuição do criticismo desfavorável entre os atores políticos. Essa distribuição está apresentada em Lycarião & Maia (2015) e ela informa que o ator mais criticado na cobertura foi justamente a presidência dinamarquesa da COP-15. Ao mesmo tempo,

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esse ator não foi alvo de cobertura favorável – não, ao menos, em termos de avaliação favorável.

Um exemplo de criticismo com relação à Dinamarca pode ser encontrado na matéria “Comando dos dinamarqueses semeia discórdia” publicada pela FSP, no penúltimo dia de cobertura analisado (19/12), e que apresenta o seguinte trecho:

Os anfitriões da conferência do clima criaram em torno de si mesmos um clima de desconfiança que paralisou negociações e fez países em desenvolvimento endurecerem posições. Por duas vezes, tentaram aprovar textos de acordo escritos por eles que foram considerados ilegítimos por outros países (FSP, Doc FSP115, 2009).

Esse exemplo fornece uma pista preciosa que pode explicar porque a crítica às negociações de bastidores, liderada pela Dinamarca, não apresentou traços relevantes na cobertura dos casos (ver Figura 1). A pista em questão é que essa crítica não foi reportada como sendo do Brasil ou dos países em desenvolvimento, mas de outros atores. Como a codificação dos casos só levou em conta como fonte atores políticos formais que falaram em nome do governo brasileiro ou dos países em desenvolvimento, logo, a crítica ao processo das negociações que, como vimos, foi robusta na cobertura, parece ter sido produzida muito mais pela fala dos próprios jornalistas e de outros atores do que pelos que falaram em nome do Brasil.

Diante disso, e, tendo em vista os dados apresentados em trabalhos anteriores (LYCARIÃO & MAIA, 2015), torna-

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se razoável afirmar que a cobertura da COP-15 pelo JN e pela FSP foi marcada por um viés nacional (privilegiando a voz oficial do governo brasileiro), mas também crítica aos atores que se furtaram a desempenhar um papel construtivo e democrático durante essa Conferência do Clima.

Uma invisibilidade sintomática: a regra 42

Destarte, pode-se afirmar que a cobertura em questão é um indício consistente de que o sistema mediático se mostra como um fator indispensável à legitimação democrática de regimes de governança marcados por alta complexidade social. Afinal, esta pesquisa revela, em sua totalidade (ver LYCARIÃO, 2014), que a cobertura jornalística em questão se lançou tanto a explicar a natureza do problema das mudanças climáticas como a criticar os atores políticos que não conduziram as negociações de modo inclusivo e democrático.

Apontar o sistema de mediático como um fator de legitimação democrática, no entanto, não pode ser confundido com a ideia de que os resultados substantivos da COP-15 foram democraticamente legítimos. Muito menos significa que a cobertura em tela alcançou padrões excelentes de qualidade jornalística em termos ético-políticos. Isso porque ambas as instâncias falharam em tratar, com a devida atenção, das causas que impediram – e impedem até hoje – que um efetivo regime de governança internacional se edifique conforme as disposições mais elementares de um processo democrático.

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Para entender essas causas, é oportuno identificar algumas omissões da cobertura aqui analisada. Como, por exemplo, aquela decorrente de não se ter questionado o principal negociador brasileiro à época da COP-15 – o então embaixador Luiz Figueiredo Machado (atualmente embaixador do Brasil nos EUA e ex-ministro das relações exteriores) – sobre a razão de ele ter rechaçado, já na primeira sessão da COP-15, a tentativa da delegação de Papua Nova Guiné de discutir a aplicação da regra 42 dos procedimentos da Convenção.

A regra 42 é a única que tem sido deixada de fora em relação às disposições que têm guiado os procedimentos da Convenção7. Ela dispõe, com exceção de alguns temas, que as decisões, após o devido debate e depois de exauridas as possibilidades de consenso, podem ser tomadas mediante votação com mais de dois terços das partes a favor da proposta submetida à votação. Como esta regra não obteve consenso até hoje, a única forma de tomar decisões que a UNFCCC possui é mediante o pleno consenso entre as partes. Por isso mesmo, o Acordo de Copenhague não se constituiu em decisão efetiva da Convenção. Foi apenas um documento de que a presidência da Conferência tomou nota.

O que a representação diplomática de Papua Nova Guiné tentou trazer à pauta do debate em plenário, logo após a pomposa cerimônia de abertura, foi o mérito de se implementar a regra 42. Essa regra, segundo o negociador

7 Essas regras estão disponíveis em < http://unfccc.int/resource/docs/cop2/02.pdf> Acesso em 08 de março de 14.

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chefe do país arquipélago, Kevin Conrad, mostrava-se oportuna àquele momento, pois um consenso total entre as partes “significa que qualquer acordo aqui só pode pretender chegar no mais baixo denominador comum entre nós. Do nosso ponto de vista [...] tomar decisões com base apenas no menor denominador comum é, além de irresponsável, seriamente negligente8”.

Kevin Conrad fez esse apelo logo após citar as drásticas transformações e impactos que as mudanças climáticas já haviam causado em seu país. Para ele, e para outros representantes dos países mais vulneráveis a essas mudanças, estava muito claro que o tempo para evitar o agravamento agudo dos impactos da mudança do clima estava se esgotando.

Após a intervenção de Conrad, a presidente da Conferência, Connie Hedegaard, informou ao negociador que não seria produtivo debater a questão em plenário, pois consultas feitas às partes já haviam indicado que a implementação da regra 42 não obteria consenso. Ela propôs, então, continuar consultando as partes na tentativa de alcançar o consenso necessário para que, eventualmente, ela fosse, só então, implementada.

Kevin Conrad não se deu por satisfeito e disse que aquele era o momento e a hora de se debater a questão. Ou seja,

8 “Consensus means that any agreement here can only aspire to the lowest common denominator amongst us. From our perspective [...] making decisions based only on the lowest common denominator is beyond irresponsible, it’s gravely negligent.” Conteúdo disponível ao tempo 01:24:41 do seguinte vídeo: <http://unfccc4.meta-fusion.com/kongresse/cop15/templ/play.php?theme=unfccc&id_kongresssession=2279> Acesso em 08 de março de 14.

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na frente do olhar e da inédita atenção pública que estava colocada sobre os negociadores, e não, portanto, na surdina das consultas de gabinete. A insistência de Conrad parecia irritar a todos. Mostrou-se deselegante e perturbador do andamento regular que era esperado para aquela situação. Seu apelo foi, então, refreado pelo negociador brasileiro que, irritado, também apelou ao colega: “por favor, deixe-nos trabalhar”.

Não havia clima para a agenda de Conrad. Ele era representante, naquele momento, não apenas de um arquipélago de ilhas ameaçado pela força eminente de uma natureza alterada pela intervenção humana. Ele representava uma ilha discursiva, isolada e incapaz de evitar ser subsumido pelo oceano de interesses divergentes que lhe rodeava.

Após a intervenção do negociador brasileiro, as negociações seguiram seu curso regular e, sob esse curso, chegaram exatamente ao mínimo denominador que Conrad havia alertado. Mesmo sob esse mínimo denominador, não houve total consenso. Resultado: o JN, no dia 19 de dezembro daquele ano, destaca no seu noticiário que o “suposto acordo, anunciado ontem pelo presidente americano Barack Obama, foi considerado decepcionante - especialmente porque não tem força de lei, nem estabelece metas concretas para a redução mundial de gases poluentes.”. A FSP, por sua vez, numa das poucas primeiras páginas dedicada ao assunto, apresentou como matéria principal de capa “Cúpula do clima acaba em fracasso”.

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Muito se destacou, portanto, o fracasso que já havia sido prenunciado por Conrad. Mas, sobre o episódio envolvendo o embate de perspectivas deste com as do negociador brasileiro, não se escreveu nem sequer uma linha. Tanto os jornalistas como os observadores não perguntaram nas conferências de imprensa, muito menos noticiaram, qual era, afinal, a posição política do Brasil em relação à regra 42. Segundo consta no banco de dados desta pesquisa, a posição em relação ao tema por parte da delegação brasileira foi codificada como “incerta”. Isso porque o que foi rechaçado por Figueiredo foi colocar, na agenda de debate do plenário, a implementação da regra 42 e não o mérito da implementação em si.

Ao não dar atenção a essa questão, a não fazer essas perguntas, a cobertura evitou que viessem à tona algumas das razões que têm permitido a constante deterioração do regime de governança criado para tratar das mudanças climáticas. Um regime que, por trabalhar sob condições raras de consenso – o de tipo unânime –, mina qualquer possibilidade de contrariar interesses locais. Como observa Abranches, as “regras da Convenção do Clima foram feitas para proteger interesses nacionais. Não serviam para acordos que exigissem mudanças estruturais e novas prioridades para as políticas de governo” (ABRANCHES, 2010, p.199).

Esse diagnóstico ajuda a explicar porque aquelas perspectivas mais otimistas que se haviam aberto alguns meses após a COP-15 acabaram não vingando. Tais perspectivas se abriram como resultado da progressiva adesão de vários países ao Acordo de Copenhague:

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Para aqueles analistas que utilizavam apenas a palavra “fracasso” para caracterizar a Conferência de Copenhague, o quadro de março de 2010 mostra-se mais complexo. Pela primeira vez, EUA, Austrália, China, Brasil, Índia, Indonésia, África do Sul, México e Coréia do Sul estão assumindo o compromisso político de reduzir suas emissões ou o crescimento de sua curva de emissões, e esse compromisso vem com números anexados (VIOLA, 2010, p.20).

No entanto, o termo “fracasso” parece novamente fazer sentido quando levamos em conta o que ocorreu nas últimas COPs. Para entender os impactos negativos desses acontecimentos, é preciso levar em conta que, mesmo com o aumento de participantes no acordo de Copenhague, o tamanho de corte de emissões que ele representava já estava, segundo Viola, “muito aquém dos níveis requeridos pela ciência” (ibidem). Além disso, o autor ainda adverte que o acordo e os compromissos acima destacados não precisaram ser ratificados por nenhum Parlamento e seus cumprimentos passaram, portanto, a depender “inteiramente de que cada um dos países cumpra com suas promessas. É uma situação muito sui generis e incerta na história dos tratados internacionais” (ibidem). O certo é que, nas COPs seguintes, além de se constatar que grande parte das promessas não havia sido cumprida, algumas delas foram inclusive refeitas para patamares menos exigentes. Foi o caso do Japão e da Austrália que, na COP-19 em Varsóvia, anunciaram a revisão de suas metas para baixo.

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Isso era concebível, uma vez que, não sendo ratificados em lei, os compromissos poderiam ser alterados mediante a simples mudança de governo.

A política global do clima se mostra, desse modo, extremamente vulnerável à situação conjuntural de cada país. Muitos dos quais, aliás, haviam enviado para Copenhague delegações pouco sensíveis à magnitude do problema que estava em debate:

Um acordo com substância e efetividade, dentro das regras formais da Conferência das Partes, ficara praticamente impossível. São 192 países dispostos a usar o poder de veto. A maioria de votantes muito circunstanciais, sem papel relevante nas negociações, deliberava sobre assuntos de grande complexidade, alto impacto e interdependentes, com os olhos postos no curto prazo ou em seus interesses específicos (ABRANCHES, 2010, p.194).

Considerações finais

Como resolver esse impasse? Como constituir um regime de governança internacional que venha a prover substância democrática e efetividade? Sobre isso, deve-se ter claro que a simples implementação da regra 42 não constitui nenhum tipo de panaceia que destravaria todas as dificuldades impostas a um regime tão complexo de governança como o da UNFCCC. Aliás, caso a única coisa diferente, em Copenhague, tivesse sido a implementação da regra 42, seria possível afirmar que qualquer acordo viabilizado por essa regra tenderia a sofrer déficits de legitimidade ainda mais severos.

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Isso porque a mera concentração de poder nas mãos de instituições internacionais tende a intensificar as lacunas de responsabilização e controle externos já existentes. No caso da COP-15, essas lacunas foram – em parte e temporariamente – encurtadas pela visibilidade mediática que essa conferência obteve. Mas, caso decisões de tipo majoritárias tivessem sido tomadas, antes ou depois desta Conferência, o nível de controle pela esfera pública seria provavelmente muito menor. E, mesmo em Copenhague, qualquer decisão aí produzida seria implementada por uma Convenção cujos tomadores de decisão eram apenas extensões do poder executivo dos países que dela participam, i.e. uma assembleia de diplomatas. Seria democraticamente legítimo que uma assembleia não eleita tomasse decisões tal como um Parlamento?

Ademais, é preciso retomar ao ponto nevrálgico que constitui o processo de monitoramento aberto e contínuo dos centros de poder político pela esfera cidadã. Esse processo pressupõe não apenas que o sistema mediático produza estratos informativos diversificados, mas requer que o sistema informativo ampliado forneça a possibilidade dos cidadãos e cidadãs ultrapassarem a ponte comunicativa da “mediação preliminar” produzida pelo jornalismo de eventos sociais complexos (ver LYCARIÃO, 2014). Só que, para essa travessia, é preciso que exista do outro lado um sistema informativo ampliado capaz de adensar essa mediação. Para isso, esse sistema necessita fornecer informações, além de completas, também inteligíveis. Não obstante, o regime institucional de governança da UNFCCC oferece uma transparência oficial

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(ver seu site institucional) que pode até satisfazer o primeiro requisito, mas certamente não o segundo. A começar por uma simples observação: o conteúdo, pois, apesar de estar disponível em diversas línguas, não tem o português como uma delas.

Diante disso, pode-se perceber que a tentação de transferir mais poder a organizações internacionais pode ter como custo o estrangulamento de diversos processos e procedimentos democráticos. Tendo em vista esse dilema, pensadores como Jürgen Habermas (2012) e James Bohman (2007) têm proposto novos conceitos e arquiteturas institucionais de ordem global que permitem um aumento simultâneo do poder político dessas instituições e também das formas de controle externo das mesmas.

A esse respeito, Habermas (2012, p.53-73) chega a defender a produção de uma Constituição Global ao lado de um parlamento de mesma ordem. Isso tudo sob a égide de uma comunidade cosmopolita de cidadãos globais, os quais elegeriam os membros desse Parlamento de povos. Quando se leva em conta esse tipo de proposta, que vai a fundo nas questões procedimentais que poderiam elevar a eficiência e a legitimidade democrática de regimes de governança, como os da UNFCCC, é possível perceber que, por trás do “fracasso de Copenhague”, permaneceram veladas muito mais questões do que a cobertura foi capaz de trazer à tona. Dentre elas, a proposta da delegação de Papua Nova Guiné de implementar a regra 42 representava apenas a ponta do iceberg. E mesmo esta não emergiu à esfera de visibilidade

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mediática, demonstrando, portanto, que a cobertura da COP-15 deixou de tematizar as causas procedimentais que tornam o regime de governança da UNFCCC ineficiente.

É preciso, contudo, tomar essa crítica não apenas como uma crítica de mídia, mas, sobretudo, como uma crítica de sociedade (ver BRAGA, 2006). Isso porque a invisibilidade das questões procedimentais em tela é mais sintomática da indisposição generalizada em prol de uma transformação estrutural da política contemporânea do que um problema específico das práticas jornalísticas aqui analisadas. Trata-se, portanto, de um claro sinal de que a internacionalização da política se transformou numa agenda política démodé, pois a “explosão de entusiasmo da virada do século, que anunciava uma nova ordem mundial baseada em organizações internacionais, em vez de nações, e na colaboração entre os países, em lugar da soberania tradicional, parece já ter dado marcha a ré.” (GIDDENS, 2010, p.254).

Por isso, é preciso estar ciente de que defender a necessidade de uma estrutura de governança internacional e democrática com soberania suficiente para gerar políticas vinculantes não significa que a conquista de tal estrutura seja imediatamente viável no curto prazo. No entanto, é preciso, tal como Kevin Conrad, insistir e, algumas vezes, até de modo inconveniente, dado que o papel do trabalho intelectual não se restringe à descrição do presente ou à projeção de realidades futuras plausíveis, mas envolve também a crítica e a tomada consequente de posição política na esfera pública. Talvez isso

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faça com que o considerado impossível ou irrealista hoje, possa vir a se tornar, amanhã, simplesmente o óbvio.

Referências

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BRAGA, José Luiz. A sociedade enfrenta sua mídia – dispositivos sociais de crítica midiática. São Paulo: Paulus, 2006.

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Uma “luta discursiva” e fantasmática: O usuário e suas reclamaçoes sobre a

crise aérea brasileira

Karla Regina Macena P. Patriota1

Zandra Marina de Holanda Monteiro2

Introdução

O uso de aviões no transporte internacional passou a ser mais recorrente após a II Guerra Mundial, com a introdução de motores a jato em aviões comerciais a partir de 1952. No Brasil, a aviação comercial teve início em 1927. A extensão do país e a precariedade de outros meios de transporte foram

1 Pós-doutora em Sociologia pela University of Cambridge - UK, Doutora em Sociologia e Mestre em Comunicação pela UFPE, Especialista em Administração de Marketing pela UPE e Graduada em Comunicação Social pela UNICAP. Professora da Universidade Federal de Pernambuco do Mestrado e Doutorado em Comunicação e do Curso de Publicidade e Propaganda. Pesquisadora das áreas de publicidade, propaganda, mídia e novas tecnologias. É líder do grupo de pesquisa do CNPq Publicidade nas Novas Mídias e narrativas de consumo, autora e organizadora dos livros Publicidade Ilimitada: Reflexões e reflexões sobre comunicação e consumo e A Natureza das Mídias Digitais. Novos paradigmas para a Publicidade.

2 Graduada em Comunicação Social - Publicidade e Propaganda pela UFPE. Mestrado em Administração pela UFPE. Doutoranda em Sociologia pela UFPE. Membro do grupo de pesquisa Lócus de Investigação em Economia Criativa. Interesse de pesquisa em tecnologias digitais, relações sociais, identidade coletiva, cultura, comunicação.

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motivos para que a aviação tivesse forte expansão no território brasileiro, apesar das altas tarifas cobradas.

Décadas depois, o cenário da aviação civil no Brasil se destaca por seus altos percentuais de atraso e cancelamento dos voos, longas filas de espera por informação e usuários insatisfeitos reclamando nos mass media. Segundo estatísticas da Infraero3, de janeiro a dezembro de 2013, 134.785.561 passageiros4 embarcaram nos aeroportos brasileiros com 113.463.768 kg de bagagem. Ainda na avaliação desse período, a Agência Nacional de Aviação Civil - Anac - registrou mais de 155 acidentes5, em sua maioria por falha do motor ou perda de controle em voo, o que aponta para erros técnicos e humanos.

Os problemas estruturais se alastram de modo a criar uma teia complexa de ineficiência no serviço aéreo e passam a ter consequências concretas para o usuário em geral. No início de dezembro de 2013, por exemplo, a companhia aérea Gol alcançou um índice de atraso nos voos domésticos de 48%, apenas em um final de semana. No mesmo período, a Anac divulgou o relatório “Demanda e Oferta do Transporte Aéreo – Empresas Brasileiras”, cujos dados mostravam um aumento de demanda (7,9%) e oferta (6%) do transporte

3 Disponível em: <http://www.infraero.gov.br/images/stories/Estatistica/2013/dez.pdf>. Acesso em 09.fev.2014

4 Passageiros – embarque mais desembarque computadas as conexões (sem militar).

5 Disponível em: <http://www2.anac.gov.br/Estatistica/acidentes/2013.pdf>. Acesso em 09.fev.2014

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aéreo doméstico, quando comparadas com o mesmo mês em 2012. Foi o maior nível de demanda no mercado doméstico para o mês de dezembro nos últimos dez anos, como mostra o gráfico 1:

Gráfico 1 - Oferta e Demanda domésticas – mês de dezembro, 2004 a 2013

Oferta Demanda Desta forma, é possível observar que a demanda crescente não está sendo acompanhada por melhorias no serviço e, somadas as falhas estruturais, sejam estas técnicas ou humanas, o cenário da aviação civil no país revela características caóticas dando origem ao chamado “caos aéreo”, iniciado em setembro de 2006. Naquele ano, um fato peculiar marcou o início desse cenário: um choque entre o jato Legacy e um Boeing da Gol, que provocou a morte de 154 pessoas, além de imensas filas e atrasos em todos os aeroportos do Brasil. Tal episódio apenas despertou a atenção da sociedade para a precariedade do

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setor, culminando com a greve branca dos controladores de voo, que gerou o “apagão aéreo”. Ou seja, bastou que um dos elos da corrente não funcionasse tão bem, para que toda a fragilidade do sistema viesse à tona.

Recursos mal administrados, aeroportos sem estrutura, déficit no número de controladores de tráfego aéreo, radares com zonas cegas, rádios de comunicação que não funcionavam. São diversos os fatores que, conjuntamente, deram origem e vêm agravando o problema. O que se pode deduzir hoje é que a noção de caos aéreo é consequência de um crescimento desordenado e desproporcional em relação ao número de usuários de voos e o investimento em infraestrutura para dar suporte a este crescimento (SALGADO, 2009).

Obviamente, tal conjuntura é potencializada, em termos concretos, pelo crescimento constante dos usuários da emergente classe C, agora entrantes no sistema. Segundo dados do Ipsos Marplan, no primeiro trimestre de 2014, 43% da população brasileira inserida na classe C declarou que pretendia viajar nos próximos 12 meses pelo Brasil e, de todos os que usaram o avião nas suas viagens, 23% pertenciam a esta mesma classe. Nesse cenário de ampliação do acesso e crescimento de entrantes, o usuário sofre com a incerteza das informações e os péssimos serviços prestados. Assim, o objetivo deste artigo é compreender como o usuário de transporte aéreo no Brasil percebe e significa o caos aéreo nos seus altos e baixos do momento. Portanto, levantamos a seguinte questão de

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pesquisa: qual o discurso do usuário que corporifica o caos aéreo brasileiro? Para isto, apresentaremos na segunda seção os fundamentos teóricos que embasaram a análise, adotando a Teoria Perceptual, da Psicologia, ancorando-nos igualmente em alguns postulados da análise do discurso. Na seção 3 serão expostos os procedimentos metodológicos e, na seção 4, a apreciação dos dados coletados para o desenvolvimento desta análise.

O serviço como alicerce da qualidade percebida

Mello e Oliveira (2001) definem serviço como atos, processos e performances que não assumem a forma de um bem material, mas que satisfazem uma necessidade e têm valor agregado no momento em que é utilizado. É essencialmente intangível e depende do usuário para alcançar seu efeito. Lovelock (in MELLO; OLIVEIRA, 2001) propôs uma classificação dos serviços, considerando alguns pontos, como a natureza da prestação de serviços (vide tabela 1), o tipo de relacionamento que a empresa tem com os consumidores, entre outros.

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Natureza do serviço

Recebimento do serviçoPessoas Coisas

Ações tangíveis Serviços dirigidos ao corpo das pessoas: • Cuidados com a

saúde;• Transporte de

passageiros;• Salões de

beleza;• Clínicas de

exercícios;• Restaurantes;• Cortes de

cabelo.

Serviços dirigidos a produtos ou outros bens físicos:• Transporte de

fretes;• Manutenção de

produtos;• Indústrias;• Lavanderias;• Jardinagem;• Cuidados

veterinários.

Ações intangíveis

Serviços dirigidos à mente das pessoas:• Educação;• Programas de

TV;• Serviços de

informação; • Teatros;• Museus.

Serviços dirigidos a ativos intangíveis:• Bancos;• Serviços legais;• Contabilidade;• Seguros;• Segurança.

Tabela 1: Natureza e oferta de serviçosFonte: Lovelock (in MELLO; OLIVEIRA, 2001) – grifos nossos.

A natureza e o tipo de recebimento do serviço produzem uma ancoragem que possibilita a composição dos dados, estes potencialmente geradores de estratégias gerenciais, além de nortearem nossos estudos quanto à especificidade do tema.

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Assim, percebemos como o usuário deve ser encarado como fundamental à sobrevivência econômica da empresa e que os fornecedores de serviços precisam compreender como os usuários escolhem e avaliam suas ofertas, principalmente o que esperam de sua performance. Berry e Parasuraman (in MELLO e OLIVEIRA, 2001) defendem que a qualidade da experiência é um atributo que só pode ser avaliado após a compra e durante a “produção/consumo”. Os autores ainda definem a qualidade percebida em um serviço como um julgamento global, relacionando pontos como confiabilidade, segurança, empatia, entre outros, enquanto a satisfação estaria relacionada a algo mais pessoal. Com isso como o norte, e para atender aos objetivos deste artigo, demos enfoque à relação entre satisfação e percepção. Dois fatores que se coadunam internamente ao indivíduo, para dar significação à realidade, a um determinado fato.

Satisfação versus percepção: o usuário no caos

Chon et al (2000) definem usuário como a pessoa que usa um determinado produto ou serviço e Miller (in MACKAY, 1997) argumenta que diferentes perfis de usuários implicarão em distintas expectativas. O autor ainda defende que, para alcançar tais expectativas, o usuário empenha um dado esforço, o que ele denomina de “apropriação”.

Nesse contexto, a participação do usuário vai além da mera adoção de um serviço e ocorre como um processo ativo, geralmente encarado com prazerosa satisfação (MILLER in

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MACKAY, 1997). Portanto, o indivíduo cria expectativas na satisfação de um desejo e se engaja em sua execução, sendo influenciado por suas próprias práticas, tempo, significados e determinações (COELHO; HENSELER, 2012). A satisfação do usuário, então, viria pela correspondência entre as expectativas criadas sobre tais características e o que, de fato, ele percebe como recebido (LAMPEL; MINTZBERG, 1996).

O usuário se apropria do serviço não como um fim do processo, mas como o começo de um novo, cujas influências alcançam o nível produtivo. O usuário adquire essencial controle do processo de uso (MILLER in MACKAY, 1997), adotando uma postura atuante. No caso do caos aéreo, a participação dos usuários pode ser observada por meio da análise dos índices de reclamação em órgãos de defesa do consumidor, como Anac e Procon6.

Nos meses de novembro e dezembro de 2013 e janeiro de 2014 as manifestações de usuários registradas no “Fale com a ANAC” somaram um total de 20.217 registros (ANAC, 2014). No período analisado, problemas com bagagens e bilhetes aéreos foram expressivos alvos das críticas, como pode ser observado nos gráficos abaixo:

6 Programa de Proteção e Defesa do Consumidor - fundação com personalidade jurídica de direito público, cujo objetivo é elaborar e executar a política estadual de proteção e defesa do consumidor.

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Gráfico 2 - Manifestações recebidas pela ANAC (novembro e dezembro de 2013 e janeiro de 2014).

Fonte: ANAC

Gráfico 3 - Assuntos mais recorrentes nas reclamações(novembro e dezembro de 2013 e janeiro de 2014).

Fonte: ANAC

É perceptível, quando comparados a outros meses do ano, que as reclamações aumentam nos meses de maior

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fluxo, não só pelo período das festividades natalinas e de final de ano (dezembro), mas principalmente em janeiro, mês de férias escolares e intenso movimento nos aeroportos. Na outra vertente, o maior percentual de reclamações está agrupado no mau atendimento (26%), seguido pelas questões que envolvem as bagagens, como extravios, danos e roubos (25%). O quadro de problemas, igualmente, é evidenciado na pesquisa realizada pela Secretaria da Justiça e da Defesa da Cidadania e Fundação Procon, de São Paulo, referente aos meses de maio a setembro de 2012 – principalmente no que diz respeito aos cancelamentos e atrasos de voos – o que causa transtornos de diversas ordens e gera aborrecimentos que reverberam no crescimento dos registros de reclamações. A pesquisa em questão ressalta, por exemplo, que, em números absolutos, a empresa que afetou o número maior de passageiros foi a Gol, com o registro de 2.601 reclamações em maio e 1.341 em setembro, estas referentes à reclamação “mais grave”: cancelamentos de voos – como podemos ver nas tabelas 2 e 3, a seguir.

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Com efeito, em meio a um cenário de serviço aéreo ineficiente, diversos são os fatores que exercem influência na opção por este modal. Chon et al (2000) apresentam um diagrama baseado no trabalho desenvolvido por Mayo e Jarvis (1981) para ilustrar as maiores influências no comportamento do usuário em relação a viagens, mas em um período no qual a utilização do avião como meio de transporte para os brasileiros não era tão comum. A grande questão, portanto, está no “tensionamento” da permanência da percepção como o principal elemento para a decisão no comportamento de viagem.

Diagrama 1 - Maior influências no comportamento de viagem do indivíduo (CHON et al, 2000)9

9 Tradução livre do original, em inglês.

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Como no diagrama apresentado por Chon et al (2000), a percepção aparece como um dos principais fatores relacionados à escolha, juntamente com a experiência dos usuários (MILLER in MACKAY, 1997), que neste caso abarca o aprendizado no mesmo nível da percepção. Hochberg (1966) afirma que o estudo da percepção é uma busca para explicar o mundo que nos rodeia, seja por razões práticas e específicas ou genéricas e teóricas, suscitadas pela vontade do homem de conhecer seu próprio universo. Além disso, a percepção é definida por Chon et al (2000) como o processo pelo qual um indivíduo seleciona, organiza e interpreta informações para criar um cenário do mundo com significados. De modo que orienta o comportamento e, por sua vez, é influenciada por acontecimentos comportamentais (HASTORF et al, 1973; BARBER; LEGGE, 1976). A percepção, portanto, é social, resultado de aprendizagem e educação (HOCHBERG, 1966).

Um rubor, por exemplo, pode ser sinal de ira ou vergonha no semblante de um homem. Sem a experiência, não é possível interpretar tal dado. “Os estímulos de percepção social são, eles próprios, os instrumentos, por meio dos quais, grande parte da previsão e comportamento humanos – incluindo a aprendizagem – é realizada na prática” (HOCHBERG, 1966, p. 155).

Variáveis sociais afetam as percepções individuais, nas quais estão incluídos todos os efeitos de experiências, interesses, recompensas, punições, expectativas passadas, valores sociais, entre muitos outros (HOCHBERG, 1966). A percepção, que é definida em termos de categorização de

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estímulos, caracteriza-se como uma atividade implicativa de decisão (PENNA, 1968).

Assim sendo, como postulam Mello e Oliveira (2001), a percepção está relacionada às expectativas e estas são dinâmicas, diferindo entre espaços temporais e culturais. Percebemos os objetos – coisas, acontecimentos, pessoas – não como são, mas como cremos ser. O processo perceptivo, então, é subjetivo, pois o usuário apropria o serviço à sua realidade; é seletivo, uma vez que opta entre as alternativas possíveis; é simplificador, um indivíduo não pode perceber integralmente todas as situações; é limitado no tempo, dependendo de fatores como interesse e memória; e é cumulativo, compondo seu repertório de vivências e dele se utilizando (KARSAKLIAN in MELLO; OLIVEIRA, 2001).

Tal entendimento é complementado por Aguiar (1988), que afirma haver a limitação da própria natureza da percepção, por ser um processo psicológico que envolve diversos outros processos psicológicos. Deste modo, a percepção que se tem é parcial e, embora em constante mutação, transmite a ilusão de uma realidade acabada.

Obviamente, sabemos que a percepção de serviços sofre, na atualidade, significativas influências por conta da vida digital em rede, principalmente porque as pessoas têm recomendado marcas, produtos e serviços na cultura participativa – o que pode moldar, em grande medida, a percepção mais ampla dos usuários – que tendem a se espelhar, nesse ambiente, na percepção dos outros.

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Refletindo sobre a metodologia e a análise do discurso

Segundo Peirce (1990), existem três tipos fundamentalmente diferentes de raciocínio: dedução, indução e retrodução. O primeiro analisa o estado das coisas, a partir de premissas, percebendo relações não explicitamente mencionadas, mas que sempre subsistiram, ou subsistiram em certo número de casos, levando à conclusão da provável verdade dessas relações. Por sua vez, a indução adota determinada conclusão, pois a mesma resulta de um método de inferência.

Para Popper (1980), o contexto da descoberta, ou seja, como a hipótese foi formulada, não é essencial. A relevância para a pesquisa está em estabelecer como tal hipótese pode e deve ser testada, seu contexto de justificação, que tem como objetivo determinar até que ponto a hipótese pode ser aceita como científica e sustentada como válida.

A metodologia adotada neste artigo segue o raciocínio da retrodução, que aceita provisoriamente uma hipótese e, por meio de verificação da mesma e suas consequências, analisa sua persistência ou seu desacordo com os fatos. Ou seja, a retrodução consiste em um processo de formulação de relações que visam à construção de um enunciado, a partir das condições necessárias ou que tornariam possível a ocorrência de um fato. Vale, ainda, a ressalva de que diferentes quadros podem viabilizar uma mesma realidade e que as condições possíveis nem sempre produzem o fenômeno estudado.

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A lógica da pesquisa, portanto, compõe-se em sucessivos ciclos retrodutivos de reelaboração contínua da hipótese, modificada a partir do aprofundamento do conhecimento sobre o objeto analisado. Assim sendo, por meio de uma dinâmica retrodutiva, este artigo busca referências na Teoria do Discurso, como seu conceito de lógica, para evidenciar a realidade pesquisada. Assim, adotamos inicialmente uma hipótese sobre o posicionamento do usuário no cenário da crise aérea que, ao longo da pesquisa e análise, sofreu modificações e indicou novos caminhos ao processo de construção do discurso do usuário.

Para estruturar a nossa análise, utilizamos as postulações de Laclau (2003), que define as lógicas como abstrações reais que podem ser entendidas como sistema de regras que estabelecem relações possíveis entre os elementos de um dado contexto social. Por outro lado, diferentemente das lógicas sociais, as lógicas políticas e fantasmáticas tornam possível a criação e extinção dos sistemas sociais. As lógicas, portanto, estão profundamente relacionadas com a percepção do discurso, que se constituem como mecanismos essenciais à geração de articulações (LACLAU; MOUFFE, 2001).

Tal constatação nos leva a defender que o discurso do usuário, fruto da sua percepção dos serviços ofertados em meio ao caos aéreo, é reflexo de toda uma articulação, mesmo que não explícita, de diversos indivíduos que compartilham do mesmo sistema social e suas regras. Assim, para aprofundamento dos estudos, a coleta de dados seguiu o viés da análise do discurso - AD, de linha francesa, que busca

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analisar as construções ideológicas presentes em um texto (ORLANDI, 1999).

Segundo Orlandi (1999), o estudo do discurso busca entender como o homem constitui a realidade, visto que o sujeito é o indivíduo e a complementação do outro, e o centro da relação está no espaço discursivo, no qual está o texto. Para a autora, a AD é uma disciplina de entremeio para a construção de um dispositivo de interpretação, capaz de promover a identificação, a partir da superfície discursiva, dos jogos simbólicos utilizados pelo sujeito.

Por isso, a prática da análise do discurso foi utilizada para a observação do corpus desta breve reflexão, ao analisarmos as declarações dadas por usuários do transporte aéreo à mídia em sites de reclamação, espaços nos quais outros usuários podem perceber e serem influenciados pelos serviços que são alvos das críticas e descontentamentos expostos. Contudo, mesmo sabendo desse potencial de influência e reverberação, a nossa proposta é apenas a de analisar a instância produtora da reclamação (o usuário insatisfeito que usou o ambiente digital para a sua queixa). Como base para categorização e interpretação dos dados, utilizamo-nos, para formação do nosso ethos de observadoras, de teorias da Psicologia Perceptual, que abordam a percepção, vista como um componente fundamental na forma como o usuário demonstra estar inserido no cenário do caos aéreo, descritas aqui nas seções anteriores deste artigo.

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O usuário e suas reclamações sobre a crise aérea brasileira

Diante das consequências da crise aérea que chegavam aos usuários, como longas filas, falta de informação, atrasos e voos cancelados, o comportamento destes em relação às companhias aéreas se constitui como propenso, em grande medida, a realizar reclamações. Para tanto, o advento da Internet e o desenvolvimento de novas práticas em rede, sem fronteiras temporais ou geográficas, trouxeram infinitas possibilidades para a adoção de serviços e comunicação com outros usuários, modificando o comportamento das pessoas (CASTELLS, 1999; MACKAY, 1997).

Tal mudança pode ser observada em dados apresentados pela pesquisa Global Consumer Survey, da empresa Accenture10, que revelam que 42% dos brasileiros postam informações sobre alguma experiência ruim em suas relações de consumo nas redes sociais, enquanto a média mundial é de 29%. Para 60% dos entrevistados é “extremamente frustrante” ter uma promessa não cumprida pela empresa. Isso nos faz considerar a hipótese de que os altos índices de reclamantes brasileiros pode não ser “apenas” porque “gostamos de reclamar”, mas, principalmente, porque os serviços oferecidos no Brasil, quando comparados com outros países, deixam a desejar.

10 Pesquisa realizada em 2013, entrevistou 12 mil consumidores, em 32 países (incluindo o Brasil). Disponível em: http://newsroom.accenture.com/index.cfm. Acesso em 10 fev. 2014.

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Miller (in MACKAY, 1997) ressalta a importância do entendimento da relação entre expectativa e satisfação do usuário, argumentando que diferentes perfis implicarão diferentes expectativas, mas que o não atendimento das mesmas por parte do prestador do serviço gera frustração e descontentamento em todos os casos.

Dessa forma, a insatisfação por parte dos usuários pôde ser percebida em diversos contextos (das relações pessoais às entrevistas fornecidas à mídia). Contudo, para a delimitação da nossa análise, deteremo-nos no site de reclamações “Reclame Aqui”. A título ilustrativo, no gráfico a seguir (4), apresentamos uma visão global da reputação que a empresa Tam Linhas Aéreas possui no referido site, por votação de seus passageiros. Para sua montagem, foram utilizados dados dos anos compreendidos entre 2011 e 2014, em um total de 23.052 reclamações.

Gráfico 4 - Reputação global – TAM Linhas Aéreas (2011 a 2014).

Fonte: Reclame Aqui

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O volume de reclamações registradas é maior em dezembro de 2013, o que ratifica as informações fornecidas pelos números da Anac, quando evidenciou como o período foi expressivo nas manifestações de insatisfações por parte dos usuários. Ou seja, a percepção que se faz do cenário do caos na aviação civil parece mostrar como a situação é determinante para que o usuário se mova na direção de tomar uma atitude concreta: reclamar publicamente. Segundo Penna (1968), sempre haverá margem para decisões, na medida em que a percepção se formule diante de situações ambíguas, que respondem por uma dimensão emocional. Desse modo, o usuário está envolvido emocionalmente e empiricamente (pois sofre, de forma prática, as consequências) na situação caótica. Com os voos atrasados e cancelados, por exemplo, os transtornos deflagram uma gama de sentimentos que vão do descontentamento à raiva – o que é evidenciado pelo volume de reclamações expressando tais sentimentos. A opção pelo meio de transporte é basicamente racional (preço, rapidez, segurança, entre outros), mas, quando de seu uso, o serviço envolve o indivíduo, que busca satisfação. Assim, entra em cena a dimensão emocional.

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Figura 1 – Reclamação (1) de usuário de serviço aéreo.

Fonte: Reclame Aqui

Na Reclamação 1, a falta de informações concretas sobre a situação incitou no autor sentimentos como indignação, raiva e desespero, moldando sua percepção sobre a ocorrência. Uma questão estrutural, como uma aeronave parada na pista, gerou um entendimento negativo sobre o fato e passou a influenciar a compreensão da experiência.

Na visão do sujeito que compartilha seu discurso de insatisfação, a crise aérea representa a angústia de não obter notícias sobre sua esposa. Sua voz espelha o mesmo sentimento negativo a que outros parentes de passageiros estavam sendo submetidos, não apenas do voo relatado, mas todos que já passaram por situações semelhantes ou apresentam algum grau de empatia, por associações psicológicas das mais diversas, baseadas em suas próprias vivências.

Muitos usuários percebem a crise aérea com indignação, pois o caos não se apresenta em momentos estanques, mas de forma conjuntural. E, apesar de não ser um fato recente e que

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vem se agravando, o passageiro não tem a percepção de que algo está sendo feito para solucionar os problemas. Mesmo as medidas legais iniciadas por órgãos de defesa do consumidor, como as multas aplicadas pela Anac às companhias aéreas pelo atraso nos voos, não são percebidas como eficazes. Os benefícios das providências que, eventualmente, são tomadas, não alcançam o usuário, pois o que chega a ele são as longas filas e funcionários despreparados.

Com efeito, fatores como promessas, sejam implícitas ou explícitas, experiências anteriores e alternativas de serviço percebidas, são influenciadores na construção da expectativa acerca do serviçose determinantes na percepção do que, de fato, é recebido. Para ilustrar esta relação perceptiva, elencamos a seguir (no diagrama 2) a natureza e os determinantes das expectativas dos consumidores acerca dos serviços, para que possamos ligá-los à construção das reclamações que afloram nas mídias online.

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Diagrama 2 - Natureza e determinantes das expectativas dos consumidores acerca dos serviços.

EXPECTATIVA ACERCA DO SERVIÇO

Serviço desejado

Zona de tolerância

Serviço adequado

Intensificadores da durabilidade do

serviço

Necessidades pessoais

Intensificadores transitórios do serviço

Alternativas de serviço percebidas

Papel auto-percebido no serviço

Fatores situacionais

Promessas explícitas

Promessas implícitas

Comunicação boca-a-boca

Experiências anteriores

Serviço predito

Fonte: Zeithaml e Bitner (in MELLO; OLIVEIRA, 2001)

Justamente pelos fatores que determinam as expectativas dos sujeitos, vemos, na Reclamação 1, o autor da crítica declarar que teve uma “promessa quebrada”, pois os horários de voos predefinidos não foram atendidos, gerando um desequilíbrio entre o serviço desejado, a zona de tolerância e o serviço adequado, fazendo emergir uma percepção negativa sobre o serviço predito, tão expressivo para o mesmo, que este sentiu a necessidade de ir a um site de reclamações para registrar sua indignação. Esta, por sua vez, irá ajudar a compor e alicerçar as expectativas de prováveis outros usuários (comunicação boca-a-boca potencializada pelo ambiente digital), que o site do Reclame Aqui ainda convoca: “espalhe essa reclamação”. Sendo, assim, o serviço prestado pela companhia aérea visto como

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indesejado e inadequado por conta dos fatores situacionais compartilhados discursivamente.

Vejamos, então, outra situação discursiva que amplia e materializa a percepção negativa dos usuários:

Figura 2 - Reclamação (2) de usuário de serviço aéreo.

Fonte: Reclame Aqui

De igual forma, a Reclamação 2 ilustra como os diversos fatores estruturais e técnicos (situacionais), que dificultam a fluidez normal dos procedimentos de voo, são interpretados pelo passageiro. Os aeroportos não possuem preparo para lidar com situações climáticas, as quais lidam cotidianamente, a companhia aérea não tem planejamento sobre sua própria tripulação. Resultado: as falhas de comunicação entre os aeroportos, despreparo dos funcionários, que lidam

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diretamente com o cliente externo, para prestar “informação confiável” (todos como intensificadores transitórios do serviço). O passageiro não atribuiu credibilidade ao que lhe era noticiado, as promessas explícitas e implícitas. Então, significou sua experiência como uma falta de respeito. Para o autor da Reclamação 2, diversos fatores que motivaram o atraso de seu voo puderam ser sintetizados em “descaso”. Novamente, como se repete na Reclamação 1 e em inúmeras outras presentes no site Reclame Aqui, aflora a percepção, traduzida em sentimento, de que os passageiros são expostos a situações absurdas e recebem tratamento desrespeitoso. Falta de informações e descaso são, portanto, queixas recorrentes.

Na visão do usuário, ele cumpriu com sua parte no “acordo”, comprando passagens caras, comparecendo com antecedência, requisitando seus bilhetes aéreos pela internet ou telefone (papel autopercebido no serviço). Ou seja, de sua parte foi proativo e agiu corretamente, tendo, portanto, a perspectiva que a companhia aérea atenderia, minimamente, suas expectativas de possibilitar a chegada no horário previsto a seu local de destino, ou prestar um atendimento cordial e eficiente. Afinal, no processo de adoção de um serviço, o usuário atua, conjuntamente, com a empresa prestadora para que a satisfação seja alcançada (MILLER in MACKAY, 1997).

Vejamos, na sequência, a terceira reclamação que analisamos:

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Figura 3 - Reclamação (3) de usuário de serviço aéreo

Fonte: Reclame Aqui

Penna (1968) defende que a própria formação do eu11

é objeto de apreensão perceptual, ou seja, da mesma forma que percebemos a realidade, percebemos nós mesmos. Esta autoapreensão é condição de regulação da conduta. Assim, na Reclamação 3, o usuário se sente lesado em seus direitos e, por conseguinte, seu entendimento é de que a Companhia Tam o está “fazendo de palhaço”, pois suas reclamações não foram respondidas. Enfatiza-se a percepção de que o caos aéreo é um desrespeito, um descaso com o usuário, gerando revolta. Em matéria exibida pela Record12, uma passageira afirmou, quando entrevistada pelo repórter, que o cancelamento de um voo da Tam, por motivo de manutenção

11 Inclusão do ego como objeto de conhecimento perceptivo, sustentada por Carl Rogers (PENNA, 1968).

12 No dia 22 de novembro de 2010.

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técnica, é “um absurdo, uma palhaçada”. Outro usuário, José Fernandes, quando entrevistado sobre o cancelamento do voo e a assistência que deveria estar sendo prestada pela companhia aérea para acomodação dos passageiros, responde, indignado: “eles nem sabem o que estão fazendo”. Entre as principais queixas estão a falta de informação, encarada como desatenção ao usuário e o desrespeito ao cliente. Assim como na Reclamação 2, não há credibilidade nas informações que são transmitidas pelos funcionários das companhias aéreas.

Do ponto de vista do passageiro, as companhias aéreas estão atuando arbitrariamente, pois, apesar da reclamação dos usuários e medidas legais aplicadas por entidades como a Anac, as longas filas, cancelamentos, atrasos e falta de informação persistem. Tal persistência é percebida como absurda e transmite esta significação ao caos aéreo, pois a crise percebida é aquela que, concretamente, atinge a realidade do sujeito e a construção das condições de produção do seu discurso.

Considerações finais

Após a análise dos dados levantados, retomamos a questão que norteou nossas reflexões neste estudo: qual o discurso do usuário que corporifica o caos aéreo brasileiro? A significação dada pelos que utilizam o serviço é formada a partir de suas percepções da situação na qual se encontram. De modo que suas vivências anteriores compõem um

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repertório que servirá de base para a análise do cenário (RAVASI; RINDOVA, 2008) do caos aéreo e, além disso, formarão parte do quadro as expectativas construídas sobre a satisfação, com o uso do serviço e outros contextos sociais – inclusive as manifestações públicas de outros usuários.

Segundo Verón (1980), as frases nunca são analisadas isoladamente. Nesse sentido, a análise dos enunciados proferidos pelos usuários do transporte aéreo vai, naturalmente, exigir que se construa uma relação de uma dada sentença com as demais. Isso mostra que o real e profundo sentido de um enunciado apenas existe relativamente ao sentido de outros enunciados. E, portanto, demonstram a ideologia de um grupo.

Assim, a construção do discurso é uma atividade interativa altamente complexa de produção contínua de sentidos e que se realiza, evidentemente, com base nos elementos socioculturais apresentados e na sua forma de organização, mas que requer a mobilização de um vasto conjunto de saberes (KOCH, 2002). A satisfação pelo uso de um serviço, então, é determinada pelo autoconceito que o usuário tem do mesmo (parte desses significados pode estar enraizada na história pessoal e experiência dos usuários) e no conjunto de significados associados ao próprio serviço, pelos demais usuários.

No caso analisado, os discursos estão inteiramente entrelaçados com a insatisfação originada pelas expectativas frustradas. Esta visão é agravada, negativamente, pela tendência que os demais ramos de serviços se ancoram em

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atendimentos com qualidade e foco na satisfação do cliente. A composição do repertório de serviços, consequentemente, vai sendo moldada em relação a tudo que compõe a vida do usuário, servindo de base comparativa para um “bom” ou “mau” serviço.

O usuário, cada vez mais participativo, sente-se frustrado em não ter suas reclamações atendidas, além de não ser o fator central na tomada de decisão das companhias aéreas. Sua indignação e revolta são demonstradas pela escolha dos termos empregados nas reclamações e também pela alteração emocional exibida em reportagens televisivas. Como um serviço percebido como “não voltado para os usuários”, o transporte aéreo gera descontentamento por suas longas filas e horas de espera nos aeroportos, mas, principalmente, pelo agravante da falta de assistência e informações por parte das companhias aéreas, se estendendo até o “desconforto” de algumas aeronaves.

Logo, o usuário apresenta um discurso de insatisfação e descontentamento com o serviço prestado pelas companhias aéreas e com a ineficiência do Estado em tomar medidas regulatórias que solucionem, efetivamente, a situação, punindo tais empresas e propiciando a melhoria na estrutura dos aeroportos. Dados da Infraero revelam que foi a partir de 2010 que vários fatores exógenos influenciaram ainda mais a percepção dos usuários, principalmente o fato de o Brasil ter sido escolhido como sede da Copa de 2014 (após o término do Mundial da África em 2010). Assim, o foco da imprensa nacional e internacional voltou-se para o Brasil, aumentando

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os questionamentos sobre os gargalos na infraestrutura aeroportuária e sobre os investimentos/obras previstos para os próximos anos – o que ampliou a percepção negativa da situação. Não por acaso, pouco antes da realização da Copa do Mundo no país, uma das hashtags mais observadas no ambiente digital quando o assunto em pauta era os aeroportos brasileiros era a #imaginanacopa.

Com vistas a tentar minimizar tal percepção negativa, várias ações na esfera comunicacional do Governo Federal foram realizadas com o objetivo de melhorar a imagem que os usuários tinham e reduzir as matérias negativas na grande mídia nacional. Foram investimentos em campanhas de imagem; alteração de logomarca (da Infraero) e criação de plataforma de comunicação junto aos usuários dos aeroportos. A ideia, segundo o governo, foi a de modificar “o caráter do relacionamento entre a Infraero e seus públicos”.

Em meio a todos esses investimentos e cenário peculiar, com a avalanche de reclamações no ambiente online, o que vemos mesmo é a emergência de uma lógica fantasmática, que mobiliza e organiza o grupo de usuários, mesmo que este esteja formalmente desarticulado (ANDRADE, 2013). Tal lógica funciona como o tabuleiro sobre o qual os indivíduos se movem e adquirem consciência da sua posição. Estes, munidos das armas discursivas, lutam a favor ou contra um projeto de sociedade. Em nossa análise, o indivíduo teve a percepção da crise aérea, se posicionou enquanto usuário e passou a reivindicar melhores serviços, lutando,

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discursivamente, contra o ônus do caos. Portanto, uma “luta discursiva” e fantasmática, ainda sem vencedores.

Referências

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Consumo e usos do telejornal Correio Verdade

no Mercado Central de João Pessoa

Jocélio Oliveira1

Introdução

A onipresença da TV, enquanto objeto, rompeu a visão de uma “domesticidade” do aparelho. As casas e lares deixaram de ser o palco principal de onde se acompanha o fluxo televisivo. Em Silveira (2003), há uma reflexão sobre como essa concepção foi naturalizada na pesquisa acadêmica a partir da compreensão de que os conteúdos midiáticos precisariam imergir na realidade das audiências e que o espaço próprio para apreensão da cotidianidade seria o da domesticidade. O autor aponta, contudo, na direção de que é impossível falar em um ambiente natural para recepção do fluxo.

De tal forma, as várias maneiras de habitar e circular pela cidade podem proporcionar diferentes formas de experimentar e se relacionar com a televisão. Já não causa

1 Mestre em Comunicação pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Culturas Midiáticas da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) na linha de pesquisa Mídia e Cotidiano. Jornalista formado pela UEPB. Integrante do Grupo de Estudos e Pesquisas em Etnografias Urbanas (GUETU/UFPB). E-mail: [email protected].

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mais estranheza esperar por diversos serviços assistindo aos programas em consultórios, shoppings, transportes coletivos, ou até mesmo no trabalho. Parte-se, nesse sentido, de um paradigma doméstico para um situacional, ainda de acordo com as reflexões de Silveira (2003).

Ponto de vista semelhante tem o pesquisador Repoll (2010). Em sua pesquisa, ele analisou os usos da televisão em alguns dos mercados públicos da Cidade do México, capital federal. Ele parte do reconhecimento do avanço tecnológico e da mobilidade dos aparelhos receptores de sinais de TV para afirmar que a família não pode mais ser encarada como a unidade de análise mínima, já que o telespectador pode acompanhar o fluxo de qualquer lugar. A conclusão a qual o pesquisador chega, sobre a consequência dessa relação, é provocadora para nossos estudos quando aponta para uma “(...) consolidación de los medios como el espacio público desde donde se ve y comparte la ciudad (…)” (REPOLL, 2010, p. 87).

Neste trabalho, desenvolvemos uma experiência parecida com a do autor. Propomos uma reflexão sobre os usos e o consumo do telejornal policial Correio Verdade no Mercado Público Central de João Pessoa, no estado da Paraíba. Tendo em vista, ainda, as compreensões e leituras do mundo ao redor que se fazem a partir do contato com esse produto midiático. O programa é exibido de segunda a sábado, a partir do meio dia, pela TV Correio, emissora filiada à Rede Record de Televisão. Ao todo, o jornal conta com, aproximadamente, uma hora e meia de produção, e veicula casos de crimes, acidentes,

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operações policiais, entre outras questões relacionadas à violência urbana e assuntos policiais.

Na praça de alimentação do mercado, um ritual é cumprido todos os dias. Em meio ao ritmo frenético do atendimento aos clientes durante o horário de pico, o almoço, os donos de boxes da praça de alimentação do mercado colocam suas TVs à disposição. A opção mais comumente ofertada é o telejornal policial que detém hoje a maior audiência do horário na capital paraibana, o Correio Verdade, apresentado por Samuka Duarte. Nos momentos de interação possíveis2, os olhares e a audição dos consumidores e trabalhadores do local procuram saber o que se passa naquela representação do mundo na qual se reconhecem. É sobre essa busca, desenvolvida pelos comerciantes, que se debruçam as considerações deste artigo.

A partir disso, procuramos compreender os usos do telejornal Correio Verdade feitos pelos comerciantes do Mercado Central. Para a realização dessa análise, visitamos o Mercado Central durante sete dias, sendo 5 deles para realização de observação participante e realização de entrevistas abertas, além de outros 2 para registro fotográfico do ambiente. Ao todo, cinco boxes foram visitados na praça de alimentação (um por dia), nos quais oito comerciantes foram entrevistados. A proposta foi acompanhar os donos e trabalhadores dos boxes nos momentos antes, durante

2 Falamos sobre momentos de interação possíveis, porque, como será descrito mais à frente, a relação com o programa se dá sob uma atividade intensa de trabalho, de forma que o consumo do telejornal acontece mais na condição de espiadelas ou em ocasiões pouco comuns na qual não há grande demanda de clientes.

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e após a exibição do telejornal. Durante todos os dias da pesquisa, fizemos a refeição no box do entrevistado, para observar com discrição detalhes da rotina dos comerciantes e, também, como estratégia de sociabilidade. Como alguns dos interlocutores não permitiram a divulgação de seus nomes neste trabalho, nós usaremos pseudônimos.

A escolha do primeiro boxe ocorreu de forma aleatória, levando-se em conta apenas o fato de a TV estar ligada no programa Correio Verdade. As visitas subsequentes partiram da indicação do comerciante entrevistado no dia anterior. A opção pelo Mercado Central levou em consideração o intenso fluxo de pessoas diariamente pelo local. Segundo dados fornecidos pela direção do local, há 2.114 comerciantes cadastrados no mercado, além dos trabalhadores informais instalados ao redor da área de 31 mil metros quadrados.

Além disso, a média diária de clientes e outras pessoas que circulam pelo local é de 5 mil usuários, de segunda a quarta, chegando a 10 mil na quinta e sexta, e atingindo o pico de 20 mil aos sábados, ainda de acordo com as informações divulgadas pela direção. Também foi levado em conta o objetivo de identificar uma possível influência da localização geográfica, em relação à sede da emissora de TV, para a audiência de seus programas. A distância entre os dois pontos é de poucos metros, já que o Mercado e a TV Correio localizam-se na mesma rua, separados por um quarteirão.

As reflexões apresentadas aqui são resultado de uma experimentação teórico-metodológica para teste de procedimentos e abordagens de uma pesquisa de mestrado

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desenvolvida pelo autor no programa de pós-graduação em Comunicação e Culturas Midiáticas da UFPB. No estudo, buscamos realizar uma pesquisa de recepção, também do programa Correio Verdade, com moradores do bairro Mandacaru, em João Pessoa. Em função das particularidades dos estudos que se aproximam da lógica do receptor, este texto apresenta algumas ligações metodológicas e teóricas com a Antropologia. Tendo isso em vista, buscamos aqui realizar certa interpretação da cultura dos comerciantes em sua relação com a TV.

No eixo teórico, articulamos o debate do pragmatismo americano sobre experiência estética (fundamentalmente a partir de Dewey) e a reflexão latino-americana sobre consumo midiático (baseada em Canclini) a um ponto de vista antropológico sobre a noção de lugar (tendo como referente principal a discussão de Marc Augé). Já no eixo metodológico, testamos técnicas comuns às pesquisas de recepção: observação participante, entrevista aberta e registro fotográfico dos interlocutores e do ambiente da pesquisa.

Sobre a escolha metodológica, compreendemos a técnica da observação participante como uma abordagem de caráter qualitativo, na qual o pesquisador se insere no contexto dos indivíduos no qual o fenômeno que ele deseja observar se desenvolve. Pela própria natureza, a técnica implica numa alteração do ambiente justamente em função dessa inserção de um novo elemento. No entanto, alguns dos interlocutores não permitiram a gravação, situações nas quais a coleta de dados se baseou apenas no registro e anotação em caderno

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de campo das ideias-chave apontadas. Estes fatos não comprometem o seu valor enquanto procedimento, já que na observação participante “procura-se dizer que há mais coisas a compreender e não apenas aquilo que pode ser verificado estatisticamente” (PERUZZO, 2005, p. 130). Embora a autora não negue a validade da dimensão quantitativa, ela esclarece que, com essa técnica particular, estamos diante da capacidade de captar o movimento para compreender a essência do fenômeno e de suas dimensões (Idem).

Consumo midiático e experiência

Quando situamos o consumo do fluxo televisivo fora do ambiente familiar, fora da casa como espaço principal (ou unidade básica) de recepção, não pretendemos excluir a cotidianidade do lar como espaço da mediação, mas, sim, de reconhecer a proporção que lhe cabe. Assistir TV faz parte do que Silveira (2003) chama de “paisagem urbana contemporânea”. Essa é a situação vivenciada neste trabalho. Para nós, é bastante significativo reconhecer a televisão como sendo um dos elementos constituintes da vida cotidiana, pois isso implica que:

Essa inserção em um terreno cultural e social em que outros sujeitos estão inscritos, cria a intersubjetividade, que é a projeção das subjetividades dos indivíduos de modo cruzado, ou seja, há um entrelaçamento das diferentes subjetividades. Assim, a realidade da vida cotidiana apresenta-se aos sujeitos como um

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mundo intersubjetivo, em que os sentidos são construídos pela ação e pela interação dos atores sociais (SILVEIRA, 2003, p. 4).

Essa abordagem se aproxima das reflexões sobre consumo cultural propostas por Canclini (1995). Este autor sugere que a apropriação dos produtos é sociocultural, o que aponta para uma dimensão de coletividade na partilha e produção de sentidos sociais. Além disso, tendo-se que “(…) o consumo é o conjunto de processos socioculturais em que se realizam a apropriação e os usos dos produtos” (CANCLINI, 1995, p. 53), apreende-se que a estruturação de valores na mente não é repentina nem imediata ao ato de assistir TV, mas, sim, algo contínuo.

A teoria do consumo aponta para sua dimensão distintiva e demarcadora de identidades, de diferenciação, o que só é possível porque há o reconhecimento comum dos significados dos objetos de desejo. Tais valores são mais simbólicos do que econômicos, mas criados culturalmente como ferramenta definidora, ora de limites, ora de aproximação. Ou seja, consumir é uma forma de comunicar ao mundo e, também, de interpretá-lo. Tal comportamento pressupõe gestos e ações sobre o cotidiano. Aplicados ao consumo midiático, tais apontamentos afastam do campo da recepção um possível caráter passivo na conduta da audiência.

As pesquisadoras Toaldo e Jacks (2013) fazem ainda uma distinção no sentindo de caracterizar o consumo midiático como uma esfera dentro do consumo cultural. Essa opção nos parece válida na tentativa de delimitar ainda mais o que

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pretendemos neste texto. Para as autoras, o consumo de mídia é “o processo da prática de ver televisão enquanto atividade” (MORLEY apud TOALDO & JACKS, 2013, p. 7).

Tal concepção tem limites, sob os quais trabalhamos. São eles “saber o que os indivíduos consomem na mídia – meios e produtos/conteúdos –, a maneira como que se apropriam dela (do que consomem – meios e produtos/conteúdos) e o contexto em que se envolvem com ela (lugares, maneiras, rotinas...)” (TOALDO & JACKS, 2013, p. 7). As autoras ainda esclarecem que esse tipo de pesquisa se preocupa com a maneira que a experiência midiática é afetada pelos contextos em que acontecem, ao mesmo tempo em que também atinge as percepções que os indivíduos têm de si e do mundo.

Ao fazer um mapeamento dos estudos sobre TV, Vera França reforça essa compreensão quando diz que “a televisão é um veículo de informação e de socialização, estabelecendo um repertório coletivo (tanto no que diz respeito a temas como vocabulário, formas expressivas, representações e imagens) e estendendo o mundo comum” (2006, p. 25). Com isso, a pesquisadora acredita que essa mídia tem uma função identitária que se estabelece justamente na criação de referências comuns. França alinha-se ao grupo que reconhece nessa mídia um lugar de prática, um lugar ativo e do fazer. Mas também como sendo uma atitude comunicativa, o que implica numa dimensão simbólica, de partilha de discursos que se amparam no cotidiano. Dessa forma, a TV é essencialmente o lugar da nossa experiência diária, aparecendo no pensamento da pesquisadora como algo que integra a vida social, como

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sendo uma de suas práticas, com a ressalva de ter um forte poder de penetração nos diversos setores da vida.

Essa dimensão de partilha nos leva à reflexão sobre o que seria uma “experiência” de consumo midiático do público em sua relação com o telejornal policial analisado. Para o filósofo americano John Dewey, a experiência pode ser algo contínuo, mas que é resultado da interação entre um indivíduo e algo que lhe é externo ao mundo que habita. Ampara-se nas emoções e nas ideias como elementos que lhe intensificam. O autor reconhece a possibilidade de termos experiências “fracas”, ou que aconteçam de forma incipiente. Mas, no seu texto, busca caracterizar principalmente o que seria ter “uma” experiência, que para ele será sempre estética (que tem a ver com apreciação/percepção).

Numa apropriação ao nosso trabalho, é interessante ter em mente que “em experiência, ‘incorporar’ significa/envolve uma reconstrução que pode ser dolorosa” (DEWEY, 2010, p. 118). Ela se consuma na medida em que se compreende o vivido e se dá entre o “estar sujeito a” e o “fazer”. Ao se estruturarem na razão, esses fenômenos se fixam na memória. Quando posto em relação com o telejornal, temos a transmissão de valores e sensações bastante marcada no discurso do programa policial.

Em uma experiência, o fluxo vai de algo para algo. À medida que uma parte leva a outra e que uma parte dá continuidade ao que veio antes, cada uma ganha distinção em si. O todo duradouro se diversifica em fases sucessivas, que são ênfases de suas cores variadas (DEWEY, 2010, p. 111).

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Por outro lado, queremos nos aproximar da televisão a partir da ideia do que seria um “lugar antropológico”. Contudo, é preciso fazer uma torção no que propõe Augé (1994) sobre esse conceito. A discussão que o autor estabelece diz respeito ao lugar, como um espaço físico, e as relações simbólicas e sensíveis que os indivíduos e/ou grupos sociais podem estabelecer com esses dispositivos, vínculos esses que se convertem em identidade do grupo, tornam-se referências. Para o autor “(...) o dispositivo espacial é, ao mesmo tempo, o que exprime a identidade do grupo e o que o grupo deve defender contra as ameaças externas e internas para que a linguagem da identidade conserve um sentido” (AUGÉ, 1994, p. 45). Nesse sentido, estabelece-se uma ‘transparência’ entre sociedade, cultura e indivíduo, ainda de acordo com o pesquisador.

As diferentes formas de se relacionar com os aparelhos podem resultar em diferentes compreensões da cidade, do ambiente urbano a partir da interação com esses dispositivos espaciais. A ideia de centro e periferia muda de acordo com o grupo e suas referências com o lugar. Esse uso pode se tornar legado a outros indivíduos, já que, para Augé, o “lugar antropológico” também é algo histórico, mas no sentido de que as pessoas aprendem sobre o que já deixaram de ser, fazendo e atualizando a história de determinados espaços.

Contudo, a principal contribuição que pode servir como ponto para a interpretação que propomos aqui, refere-se ao esforço do autor para definir seu conceito:

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Reservamos o termo “lugar antropológico” àquela construção concreta e simbólica do espaço que não poderia dar conta, somente por ela, das vicissitudes e contradições da vida social, mas à qual se referem todos aqueles a quem ela designa um lugar, por mais humilde e modesto que seja. É porque toda antropologia é antropologia da antropologia dos outros, além disso, que o lugar, o lugar antropológico, é simultaneamente princípio de sentido para aqueles que o habitam e princípio de inteligibilidade para quem o observa (AUGÉ, 1994, p. 51). (grifo nosso)

A torção que pretendemos estabelecer se dá no sentido de estender a aplicação desse conceito não apenas a espaços da cidade, mas à própria televisão, tanto como aparelho quanto como produto cultural. Acreditamos que ela é um dispositivo vinculante, estabelecedor de “laços sociais3”, como descrito por Wolton (1996), e que, por isso mesmo, é possível (ao pesquisador) enxergar o movimento das dinâmicas sociais a partir do consumo e usos de determinados programas em detrimento de outros. A TV é um lugar onde os sujeitos se

3 Na obra “Elogio do grande público” o pesquisador francês Dominique Wolton discute, entre outras questões, sobre o fato de que a televisão consegue promover uma ligação entre as experiências individuais e coletivas. Sobre a ideia de laço social ele explica que “A questão fundamental é: para que serve a televisão a um indivíduo que não é jamais passivo diante da imagem e que não retém senão aquilo que quer reter? Ela serve para se conversar. A televisão é um formidável instrumento de comunicação entre os indivíduos. O mais importante não é o que se vê, mas o fato de se falar sobre isso. A televisão é um objeto de conversação. Falamos entre nós e depois fora da casa. Nisso é que ela é um laço social indispensável numa sociedade onde os indivíduos ficam frequentemente isolados e, às vezes, solitários” (WOLTON, 1996, p. 16).

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conhecem e reconhecem, onde se produzem e constroem. É um espaço de proximidade, onde os atores se relacionam com os símbolos e signos: há interação.

Nesse sentido, acreditamos que assistir ao programa Correio Verdade é um ato de elaboração de identidade e de identificação, distinção social, partilha de sentidos comuns aos comerciantes e ao próprio programa. O repertório pessoal e coletivo com o qual os comerciantes se debruçam sobre o programa resulta numa experiência de consumo midiático que torna a TV um lugar antropológico. Dessa forma, a vivência e fruição da experiência televisiva aparecem como uma chave para a compreensão do lugar de referência ocupado pelos programas policiais.

A noção de que o processo de “fidelização do público” não ocorre no curto prazo nos leva à busca pela compreensão de quais são as respostas coletivamente socializadas pelas audiências em relação ao programa Correio Verdade. Para nós, a partilha desses afetos consegue se estruturar de forma a desenvolver hábitos e gosto, isto é, opções de consumo midiático.

Mercado e televisão no dia a dia

A praça de alimentação do Mercado Central de João Pessoa recebe funcionários de boxes locais, assim como trabalhadores de empresas das proximidades, em 42 boxes. É possível perceber o aumento do fluxo de pessoas no setor de acordo com o passar da hora, entre 11h30 e 13h30. A

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movimentação cresce e se esvai na duração do programa, de forma que, por vezes, antes mesmo do fim do telejornal, os comerciantes já iniciavam a limpeza dos utensílios usados para a produção de alimento. Nesse sentido, a praça de alimentação parece ser, de fato, um lugar de passagem, durante as refeições, sem prazos maiores para discussões, conversas ou descanso.

Mas, mesmo diante dessa rotina, as pessoas se conhecem pelo nome, apelidos, de forma íntima. Conhecem aspectos da vida pessoal um do outro, tanto clientes, como comerciantes. Nem todos os boxes oferecem almoço, de forma que, durante a exibição do telejornal, os boxes de lanche costumam estar mais vazios. Contudo, na área final do corredor, próxima aos banheiros, alguns homens se juntam para se divertir com jogos de dominó e baralho, próximo a algumas unidades que oferecem apenas lanches e/ou bebidas.

A região onde esse equipamento público está instalado tem supermercados, distribuidoras, lojas de venda de objetos de atacado para o comércio, salão de beleza, serviços de saúde, assim como duas emissoras de TV: Correio (Rede Record) e Clube (Rede Bandeirantes). No próprio mercado são vendidos produtos diversos, desde utensílios domésticos, com peças de barro e artesanato, até a tradicional feira de frutas, verduras, passando ainda por bolos, carnes e queijos. Há ainda bancas de revista e, além da área construída pela prefeitura para abrigar os feirantes, há um comércio informal estruturado ao redor do mercado.

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Figura 1: Praça de alimentação do Mercado Central de João Pessoa

Fonte: Registro feito pelo autor

Identificamos a presença de aparelho de televisão na maioria dos boxes. Três comportamentos foram identificados em relação ao seu uso antes do meio-dia: alguns boxes estão com os televisores desligados, outros exibiam a programação nacional de outras emissoras, a exemplo da TV Globo e, por fim, alguns comerciantes já acompanhavam programas similares ao Correio Verdade, cuja exibição tem início em horário anterior, tais como o “Aqui na Clube” (TV Clube/Bandeirantes) e o “Cidade em Ação” (TV Arapuan/Rede TV). Parte considerável deles mudava de canal ou ligava a TV quando do início do Correio Verdade.

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O comportamento variado se repete também ao fim do telejornal. Há comerciantes que, antes mesmo do encerramento do Correio Verdade, já procuram os canais com programas esportivos. Parte desliga os televisores e inicia a limpeza de pratos, panelas e talheres utilizados, de acordo com o fluxo de clientes. Já no que diz respeito aos nossos interlocutores, todos acompanharam a programação que se segue ao telejornal.

Embora haja uma identificação com o programa analisado, as características dos boxes apontam também para um consumo geral do tipo de jornalismo chamado “popular”. Tendo em vista dois casos: além dos programas policiais, as unidades de comércio também tinham exemplares do jornal impresso “Já”, produto do Sistema Correio de Comunicação com perfil editorial semelhante ao do programa televisivo.

Em função do intenso e constante fluxo de clientes na praça de alimentação do Mercado, no horário de almoço, a televisão cumpre papel de meio de comunicação sonoro para a maioria dos comerciantes. Eles só se detêm a assistir ao programa em momentos de intervalo entre a chegada de um e outro cliente. Também é comum acompanharem as imagens num boxe e ouvirem a programação em outro. Durante esse período, é comum que comentem entre si os fatos noticiados pelo telejornal.

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Uma compreensão possível

As considerações dos entrevistados sobre a sua relação com o programa Correio Verdade e as análises da observação podem ser agrupadas em 10 temas principais e recorrentes nas conversas durante a observação: 1) a presença do bairro de residência do comerciante no telejornal; 2) a relação entre assistir ao programa e a clientela; 3) a popularidade dos profissionais de telejornalismo e uma possível divisão da audiência; 4) a qualidade dos concorrentes; 5) emoções relacionadas ao ato de assistir ao programa; 6) a questão da publicidade no telejornal; 7) o apresentador; 8) exibição de violência no programa; 9) um possível envolvimento de Samuka Duarte com a política partidária e 10) os comentários do apresentador sobre os casos noticiados.

Dentre estes, selecionamos os quatro últimos, por considerarmos mais próximos da definição e compreensão da relação entre o público e o telejornal analisado. Também nos detemos sobre o que os comerciantes falam em relação à TV e do programa como atrativo comercial para os seus boxes. Mas, não para refletir sobre os temas que medeiam a audiência, e sim sobre os usos que se faz da programação televisiva.

O apresentador

Ao discutir a relação entre um acontecimento jornalístico e o cotidiano, as autoras Lana e França (2008, p. 3) afirmam que

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“ao contrário da fragmentação das experiências ordinárias, uma experiência se distingue das demais porque não é mecânica e integra a dispersão vivida em outros momentos, formando um todo. Uma experiência, portanto, não é intrusa, ela se baseia na experiência ordinária” (grifos das autoras). Acreditamos que esse é um ponto de vista importante para compreender o primeiro aspecto a ser analisado: as opiniões sobre “o apresentador” Samuka Duarte.

A partir da nossa observação, percebemos que a identificação com o apresentador se dá em função da presença e contato constante dele com os comerciantes. Segundo relatos, Samuka comumente toma café da manhã no Mercado, enquanto que o almoço é mais raro. Quando está no local, ele demonstra humildade ao falar com todos, além de fazer um revezamento entre os boxes. A comerciante Helena Santos (45 anos) comentou que “ele entra aqui e olha o que tem nas panelas”. Esse é, de fato, um atributo caro a alguém próximo. Contudo, como processo, essa proximidade é construída no dia a dia, não é dada por um status de celebridade televisiva, mas, sim, pelo lidar e tratar constante com as pessoas.

Foi possível identificar a valorização de uma popularidade que se aproxima também da simpatia. Nos relatos foi comum a ideia de que Samuka fala com todo mundo, é popular, trata todos como iguais, ou mesmo que ele é “gente da gente”. Outro aspecto de destaque é a compreensão de que, ao utilizar os serviços oferecidos no Mercado Central, em especial o de alimentação, ele estaria ajudando os comerciantes.

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Essa visão se estende não apenas à relação com os próprios donos dos boxes, mas também ao público em geral, segundo o comerciante João Costa (41 anos), que, em entrevista durante a observação, relatou que Samuka costuma receber diversos pedidos de emprego. Em uma brincadeira entre João e sua funcionária, Socorro Azevedo (19 anos), chegou-se a levantar a hipótese de um casamento entre os dois, ideia que foi recebida positivamente por ela: “eu casaria com Samuka se ele quisesse”, comentou.

Parte da valorização do apresentador também se relaciona ao reconhecimento de sua competência profissional. “É melhor em termos de tudo”, resume o comerciante Pedro Lira (47 anos) sobre a performance do apresentador à frente do Correio Verdade. Para ele, Samuka explica bem as reportagens e também as comenta melhor. Essa dimensão do comentário também aparece como fator importante na relação com o telejornal.

Comentários do apresentador

É importante salientar que o espaço destinado ao comentário nas matérias exibidas no programa é utilizado de forma variada. Podemos perceber pelo menos 3 comportamentos que podem ser complementares entre si ou aparecer de forma isolada: 1) o apresentador pratica o aconselhamento para o público semelhante ao tematizado na reportagem exibida (sejam jovens, mulheres, pais etc.), por vezes utilizando a bíblia e temas religiosos; 2) Samuka

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critica com veemência, e forte reprovação, a postura dos envolvidos, tanto os autores de crimes (dependendo do grau de “barbaridade” que aparenta ser medido pelo senso comum), quanto o Estado e seus aparelhos, de acordo com a competência e eficácia na atuação; Por fim, 3) o apresentador provoca o riso e faz chacota da situação exibida, geralmente em casos curiosos, pitorescos ou que têm alguma particularidade.

Esse mapeamento ajuda a situar as posições dos nossos interlocutores sobre o que intitulamos, de maneira geral, como “comentários”. A nossa interlocutora Carla Beatriz (27 anos) destacou que: “Samuka dá conselhos e mostra a realidade. O apresentador mostra o que as drogas estão fazendo com os jovens e eles têm mesmo que ver isso para não querer ir ‘aparecer em Samuka’”. A “catequização” dos jovens, principais vítimas de crimes4, é um dado positivo para os interlocutores e o caminho da religião aparece como alternativa apropriada.

Ainda sobre a orientação dos jovens, seis dos oito entrevistados foram consultados sobre esse tema. Cinco deles acreditam que esse tipo de atenção deveria ser de responsabilidade dos pais, ou mesmo da igreja. No entanto, reconhecem que essas instituições não conseguem cumprir esse papel. Para Amanda Silva (sem idade), “os jovens hoje

4 No estado da Paraíba a faixa etária mais vitimada pelos Crimes Violentos Letais Intencionais (CVLI) é a que vai dos 20 aos 24 anos. Foram 315 registros no ano de 2011 e 325 em 20012, segundo dados da Secretaria de Estado da Segurança e da Defesa Social (SEDS). A estatística se manteve em 2013, com 289 casos e no primeiro trimestre de 2014, com 59 homicídios contra jovens. Os outros dois grupos etários que mais próximos no ranking são os dos 15 aos 19 e dos 25 aos 29 anos, com números próximos.

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em dia não escutam os pais. Devia existir alguém para levá-los para igreja e não para as festas, mas não tem”, afirma. Os comerciantes João Costa (41 anos) e Pedro Lira (47 anos) acreditam que esse também é o papel de Samuka como apresentador. Já Marcos Albuquerque (69 anos) comentou ainda que “ele é pai também. Não está falando o mal, está falando o bem”.

Sobre o comportamento lúdico do apresentador, José Tavares (58 anos) acredita que “é importante ter a brincadeira durante o programa, para aliviar da tensão da violência”. Para ele, a constante discussão sobre crimes no telejornal não é boa e, nesse sentido, a brincadeira fornece um alívio, dá ritmo e permite a continuidade e o prosseguimento do fluxo televisivo.

Contudo, é interessante chamar atenção para uma resposta que destoa do consenso em torno desse tema. A partir do seu próprio repertório, a comerciante Socorro Azevedo (19 anos) apontou discordâncias em relação à forma como Samuka fala dos menores infratores e também das companheiras de presos. Ela acredita que há exageros e certo desconhecimento da realidade dessas pessoas, de forma que o comentário não aparece contextualizado.

O seu comentário se baseava na experiência da mãe dela como funcionária de um presídio paraibano, assim como no caso da irmã dela, que já foi casada com um presidiário. Neste segundo caso, Socorro refutava o comentário de Samuka que sugeria que todas as companheiras de detentos também teriam vínculo com práticas ilícitas. A particularidade da leitura que

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Socorro faz do programa ajuda a reforçar a compreensão de que o público não consome gratuitamente e acriticamente os conteúdos midiáticos, mas, sim, que o processo de apropriação e usos é sociocultural e se circunscreve num contexto de vivências e circulação do indivíduo.

Violência na TV

Sobre o tema da violência na TV, a maioria dos entrevistados falou que é importante se informar sobre crimes para ficar “por dentro da rotina da cidade”. Questionamos os comerciantes acerca da necessidade de também se informar sobre outros temas que fazem parte do que seria a rotina da cidade, tais como política, educação etc. Chamam atenção as respostas de José Tavares (58 anos). A primeira diz que “a segurança é o principal problema da sociedade hoje em dia. Isso e educação. Mas o jovem que não tem educação vai parar na criminalidade”.

Ainda no seu relato, ele aponta que a cidade ideal é uma cidade sem violência, mas reconhece que “a violência faz parte da realidade do Brasil. Aonde você chegar tem violência”. Há, nesse sentido, uma naturalização da violência, ou incorporação dela como elemento cotidiano. Movimento que também pode ser reconhecido na fala do comerciante Pedro Lira (47 anos) ao dizer que “todos os programas passam” as notícias relacionadas a crimes. E também na de João Costa (41 anos), quando afirma que Samuka “está na obrigação dele ao mostrar essas imagens”.

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Mas essa “naturalização” também pode ser forçada. Essa foi a experiência vivida pela interlocutora Amanda Silva (sem idade). Em seu relato durante o período de observação ela explicou que não gostava desse tipo de programa e que não gosta de assistir reportagens de crimes e “coisas” ruins. Mas, Amanda afirma que “se habituou” e reforça que, mesmo que a televisão do boxe onde ela trabalha não esteja ligada no Correio Verdade, há outros próximos que estão exibindo o telejornal, de maneira que ela está sempre exposta.

Esse tipo de situação reforça a discussão de Silveira (2013), que fala que, em função da onipresença da TV, hoje somos mais vítimas do que senhores do nosso olhar. Para o autor, “as imagens televisivas, assim como os sons, estariam penetrando incontroladamente o indivíduo, independentemente de sua vontade, de sua espontânea, consciente e detida exposição à tevê” (SILVEIRA, 2003, p. 13). Fenômeno que aponta para uma preocupação nossa nesse texto, que é a de identificar a estruturação desses afetos como hábitos na definição de gostos e consumos midiáticos.

Caso semelhante é o de Helena Santos (45 anos). Ela relata que há casos que, só de ouvir a narração do apresentador, já se choca. No entanto, mesmo assim, ela gosta de se informar para “orar pelas famílias das vítimas e dos próprios acusados envolvidos nos crimes”. A motivação dela parte de uma inquietação: “Imagina como fica a família de uma pessoa como essa!”. Por outro lado, uma solução utilizada pela equipe do programa para amenizar a “força das imagens” é o borrão sobre quadros que mostram sangue ou situações

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violentas. Estratégia que satisfaz a maioria os telespectadores com quem conversamos.

Samuka Duarte e a política partidária

Em relação a esse assunto, é curioso destacar o seguinte: embora pessoalmente identificados com o apresentador, nenhum dos entrevistados votaria nele. Contudo, eles acreditam que Samuka venceria facilmente uma eleição. O tema de uma possível candidatura de Samuka Duarte foi levantado várias vezes durante as entrevistas. Inicialmente, surgiu de forma natural, nas outras conversas foi induzido pelo autor para a criação de um quadro de referência.

No campo da experiência, tomada pelas emoções e ideias, como algo que pode ser “doloroso”, foi comum entre os comerciantes a memória do caso “Jota Júnior”. Atualmente apresentador de outro programa do Sistema Correio, o jornalista se elegeu prefeito da cidade de Bayeux, região metropolitana de João Pessoa e, antes disso, ele era o apresentador do Correio Verdade. A comerciante Carla Beatriz (27 anos), que mora nessa cidade, condena o envolvimento de apresentadores e repórteres na política. Disse ainda que “Jota é bom no que faz, mas que perdeu a credibilidade porque passou oito anos sem fazer um bom trabalho em Bayeux”.

No entanto, a descrença não reside apenas nos casos de profissionais da televisão que se envolvem com a política. Outro relato comum aos comerciantes é o de que não votarão em ninguém nas próximas eleições “porque nenhum presta”.

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Tal comportamento aponta para uma descrença na eficiência do Estado no cumprimento de suas funções. Problema sério e cuja crença é reforçada pelo apresentador no telejornal, quando nos comentários destaca que parte do problema da segurança pública no país está relacionado à corrupção e à ineficácia das políticas públicas.

A TV como um atrativo

Como objeto de entretenimento (para clientes e funcionários), a televisão se situa como elemento obrigatório nos boxes de alimentação. Do nosso ponto de vista, essa obrigatoriedade por si mesma borra a compreensão pelos comerciantes de que ela seja utilizada como um atrativo (marketing) ou como peça de conforto para os clientes. Contudo, a fala dos interlocutores deixa bem claro que há uma relação entre os clientes e os usos do aparelho.

João Costa (41 anos), por exemplo, comentou uma situação em que um usuário pediu para que ele fizesse a troca do canal. “Como te falei ontem, eu dependo do cliente. Então o rapaz estava aí almoçando e pediu para eu colocar nesse canal. Mas, quando ele foi embora, eu coloquei novamente em Samuka”. José Tavares (58 anos) e Amanda Silva (sem idade) também relatam que o uso do aparelho se dá de acordo com o gosto dos clientes, sendo que José é o único comerciante que reconhece essa possibilidade de atrair consumidores por meio do aparelho (independentemente do programa).

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Nesse aspecto, a nossa experiência se aproxima do estudo de Repoll (2010) – a despeito do principal conteúdo televisivo visto nesses ambientes ser o futebol – quando o autor fala que o mercado não é um lugar para se assistir televisão, mas se assiste, e nesse sentido, tal ato se incorpora à paisagem urbana, ao ritmo cotidiano das pessoas. No entanto, o trabalho do pesquisador mexicano não foca nos trabalhadores dos mercados, mas articula sobre clientes e demais pessoas que transitam por esses espaços.

Outra conclusão semelhante aponta para o fato de que a função da TV não é apenas de atrair clientes, mas, sim, de entretê-los durante o consumo primário pretendido no local. Situação que também pudemos verificar. Noutra direção, Repoll afirma que acompanhar a programação é um ato individual, já que as pessoas o fazem em ritmos diferentes, diante da atividade que desempenham no ambiente. Pela nossa experiência de campo, percebemos que há interação e troca de opiniões na duração do fluxo, mesmo que o acompanhamento seja fragmentário.

Considerações finais

Quando nos referimos à possibilidade de encarar a TV como um “lugar antropológico”, pensamos em como o seu consumo pode ser revelador de dinâmicas sociais. No caso particular de nosso estudo, as referências que os interlocutores fazem à descrença na política partidária, conformação com um contexto de violência urbana, além da necessidade de

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orientação dos jovens diante de uma fragilidade do contexto familiar são, para nós, indicadores de alguma tendência, alguma conjuntura que se dá a ver a partir de um dos usos que se faz desse aparelho.

Referimo-nos aqui à ideia de televisão como “laço social”, como extensão de um mundo comum e de referências partilhadas. Esse aspecto é simbólico, cultural e menos materializado quando comparado à apreensão da TV como estratégia de potencialização do alcance do boxe, otimizando a oferta do serviço. Contudo, ultrapassando esse uso mais “pragmático”, digamos assim, temos um retorno à esfera sociocultural da relação com a TV, isso na medida em que a escolha por determinado produto (programa), como ato de consumo, implica na aceitação, valoração e comunicação de uma série de signos identificados como positivos no interior do fluxo televisivo.

Em termos de experiência, foi possível perceber que a repetição desse contato pode mobilizar os indivíduos na aceitação de certas posturas, assim como na reprovação de alguns atos. Seja a partir de uma relação dolorosa ou prazerosa com o meio. Mas a consolidação dessa interação se dá a partir de um repertório próprio que interfere na forma como nos relacionamos com os conteúdos que nos são expostos.

No que diz respeito ao ambiente próprio do consumo do telejornal Correio Verdade, é importante apontar algumas questões que contextualizam esse ato. A recepção se dá entre vários ruídos: desde o barulho da rua até o barulho do próprio mercado, passando pelas conversas na mesa (e aí, quanto

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mais distante, mais atrapalha a compreensão) e até mesmo o som da cozinha na preparação dos pratos. Os comerciantes assistem ao programa de maneira fragmentada. O período de tempo que eles têm livre não coincide com o início ou fim do telejornal, já que se estabelece de acordo com a demanda diária de clientes.

A partir da abordagem feita aos comerciantes, foi possível perceber que o processo de identificação dos telespectadores com o Correio Verdade acontece por meio de um reconhecimento das características pessoais do apresentador Samuka Duarte. Por sua vez, essa aproximação é fruto dos laços e vínculos criados no cotidiano, no relacionamento interpessoal construído no ambiente do Mercado Central. Durante as entrevistas houve menções constantes a Samuka como “alguém da família”, “gente como a gente”, “pessoa humilde”, que “fala com todos” ou que “trata todo mundo de forma igual”.

Muito embora seja um lugar de reconhecimento e identificação, as trocas simbólicas feitas entre os comerciantes e o Correio Verdade não implicam necessariamente na ausência de conflito. Pelo contrário, esse processo pode ser controverso e doloroso, em termos de experiência, como relatado por Helena Santos sobre o tema da violência na TV. Contudo, as “narrativas mediáticas disponibilizam sentidos que participam da tessitura do fazer cotidiano. A experiência fragmentada da vida de todo dia é cada vez mais tensionada pelas experiências e acontecimento do espaço público mediatizado” (LANA e FRANÇA, 2008, p. 7).

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Acreditamos que a observação aqui desenvolvida não pode nem deve ser vista como totalizante ou como regra. Mas que precisa ser novamente testada e replicada em diferentes ambientes. Tentamos reproduzir essa postura ao comparar, em certa medida, as nossas escolhas e resultados com as de outros pesquisadores dentro dos limites de cada cultura e objetos empíricos.

Referências

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SILVEIRA, Fabrício. Sobre a ‘‘naturalização’’ da domesticidade televisiva: uma problematização e um protocolo para a observação empírica. In: Intexto, Porto Alegre: UFRGS, v. 2. n. 9. p. 1-17, julho/dezembro, 2003.

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WOLTON, Dominique. Elogio do grande público. São Paulo: Ática, 1996.

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“Pessoas como eu” e os discursos de consumo na Internet: a publicidade diante do atual cenário

comunicacional

Alanna Maltez1

Introdução

As atuais condições comunicacionais, baseadas, sobretudo, na expansão das redes telemáticas e popularização da Internet, fomentaram um novo cenário para a publicidade. Hoje, ela se depara com o excesso de informação, a escassez de atenção e a emergência de um novo perfil do consumidor engajado na arena de consumo, especialmente online, cético com relação aos seus apelos.

Diante disso, nota-se que a credibilidade do discurso publicitário decresce, enquanto as recomendações de outros consumidores online são cada vez mais valorizadas. De forma a diminuir a resistência às suas mensagens na Internet, a publicidade vem adotando estratégias que utilizam o consumidor como uma instância intermediária de credibilização.

1 Mestre em comunicação pelo PPGCOM/UFPE, graduada em Publicidade e Propaganda pela UFPE. Professora do curso de Publicidade e Propaganda da UNIFAVIP e de Comunicação Social da Faculdade Joaquim Nabuco. Email: [email protected]

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Ao incorporar recursos ligados aos atuais formatos híbridos ancorados na Internet, permite-se que, por meio do compartilhamento (sob a forma de “curtir”2, “retweets”3, comentários, etc.), o consumidor online, divulgue seus achados na Rede, incluindo conteúdo publicitário, e, a menos que exponha claramente o contrário, os endosse.

A base dessa dinâmica estaria em tornar a mensagem publicitária mais tolerável não só por ela ser interessante e proporcionar uma experiência diferenciada, mas também por chegar até o consumidor por meio da recomendação de “pessoas como eu”: alguém em quem ele confia por ser conhecido ou, ainda, alguém que ele vê como modelo e com características em comum, como algumas microcelebridades. Disso emergiriam duas estratégias de credibilização baseadas no consumidor online: o endosso espontâneo e as microcelebridades como embaixadoras de marcas.

Nesse artigo, buscaremos entender essa dinâmica, considerando a nova arena de consumo que emerge impulsionada pela atual configuração comunicacional.

2 Termo empregado no Facebook para designar a ação de “assinar” as publicações de uma fanpage ou demonstrar aprovação a uma publicação feita por algum usuário.

3 Ação de republicação de um tweet (publicação no Twitter) feito por outro usuário. Também pode aparecer sob a forma abreviada “RT”.

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A atual configuração comunicacional

As novas tecnologias da informação, baseadas em microeletrônica e desenvolvidas a partir da segunda metade do século XX, estão contribuindo para uma reconfiguração econômica, social e cultural. O fato é que um novo paradigma tecnológico se instaura e, como explica Castells (2010), a sua matéria-prima é a informação. A base de sua dinâmica está na aplicação de conhecimentos e informação para produção de mais conhecimentos e dispositivos de processamento/comunicação da informação num ciclo que se retroalimenta. Uma vez que a informação é parte comum de toda atividade humana, os efeitos das novas tecnologias penetram os mais diversos processos da vida em sociedade.

É da interação entre aspectos sociais, culturais e as tecnologias advindas da convergência da informática com as telecomunicações que emerge a cibercultura, resumida por Lemos (2003) como a cultura contemporânea sob a marca das tecnologias digitais. Trata-se de um estágio em que a tecnologia da informação não está mais restrita a domínios específicos de conhecimento, mas, graças à popularização dos computadores e aparatos técnicos equivalentes e à expansão das redes telemáticas, sendo operacionalizada por uma parcela considerável da população (RÜDDIGER, 2011).

Essa conjuntura promoveu, entre outros fenômenos, a integração de tudo e todos sob a topologia da rede numa dimensão nunca experimentada, e, consequentemente, uma reformatação espaço-temporal. Além disso, impulsionou o

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surgimento de uma conformação comunicacional peculiar, caracterizada, sobretudo, pela liberação do pólo de emissão numa conjuntura específica, midiatizada.

Na era da cultura digital (cibercultura), as práticas comunicacionais suportadas pela Internet, como blogs, páginas pessoais, fóruns, sites de redes sociais, sites de geolocalização e tantos outros, permitem a qualquer indivíduo tecnicamente habilitado produzir e distribuir informação. Conforme Lemos (2003), agora, constatamos a emergência de vozes e discursos reprimidos, até então, pela mídia de massa. Esse é um fator importante para a compreensão do excesso de informação que igualmente caracteriza o atual panorama comunicacional.

Contudo, é preciso considerar que estamos imersos num cenário híbrido, no qual práticas comunicacionais novas e tradicionais coexistem e os conteúdos são convergentes (JENKINS, 2008). No que diz respeito à atual configuração comunicacional, é preciso sempre destacar que é a lógica da reconfiguração, e não a do aniquilamento, que vigora (LEMOS, 2003).

A partir dos pontos levantados, podemos concluir que, quando tratamos da atual configuração comunicacional, falamos de um cenário caracterizado, sobretudo, pelo hibridismo midiático e de práticas comunicacionais, pela imensa variedade de mídias, fontes e mensagens e por uma audiência de maior poder e atividade. Porém, se até então o seu poder se limitava a escolher entre as opções disponíveis, atualmente ela está envolvida na criação de novas alternativas

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de comunicação. Os indivíduos não são apenas consumidores, mas também produtores de conteúdo.

No que se refere ao consumo de conteúdo, o comportamento da audiência, agora, é participativo. De acordo com Jenkins (2008), a circulação de conteúdos depende cada vez mais da participação ativa dos consumidores; e a tão falada convergência, menos que um processo tecnológico ligado à união de várias funções num mesmo equipamento, refere-se a uma transformação cultural. Os “consumidores são incentivados a procurar novas informações e fazer conexões em meio a conteúdos midiáticos dispersos” (JENKINS, 2008, p. 28). Enquanto produtores, a partir do controle do fluxo informativo, reunião e remix de informações, podem emitir suas opiniões assegurados do grande alcance que suas vozes podem obter.

Podemos considerar, igualmente, que se trata da concretização da possibilidade de feedback a que Castells (2010) se referia. Discursos oficiais da mídia e da publicidade, como seus mantenedores, continuam a circular, todavia sujeitos à contestação, principalmente na Internet, a Ágora moderna.

O processo de emergência de um novo perfil do consumidor

Se pudéssemos resumir o perfil do consumidor atual em uma palavra, seria: informado. A facilidade de acesso, produção e divulgação (compartilhamento) de informação

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e conhecimento, característica da atual configuração comunicacional, tem ampliado o poder do consumidor. Suas decisões de compra e percepções sobre marcas e produtos não se baseiam restritamente nas informações “oficiais”, disponibilizadas pelas próprias marcas.

De maneira progressiva, o consumidor tem buscado e considerado as opiniões de outras pessoas como ele, dispostas especialmente na Rede e duvidando dos discursos marcários. Da mesma forma, ele participa produzindo e divulgando conteúdo relativo às suas experiências de consumo. Vale até mesmo dizer que essa dinâmica de recomendação se aplica não só ao consumo de produtos e serviços, mas, igualmente, ao consumo de informação, inclusive a própria publicidade.

A chamada “propaganda boca a boca” é algo que sempre fez parte da vida do consumidor, porém as circunstâncias comunicacionais correntes impulsionaram essa prática a um nível nunca antes experimentado. Baseando-nos em Huba e McConnel (2008), podemos dizer que vivemos uma época de multiplicação exponencial do poder individual.

Não por acaso, como sinaliza Jaffe (2008), nas últimas décadas o poder parece ter sido transferido das mãos do marketing para as mãos do consumidor. Já não cabe ao profissional de marketing dizer o que, como e onde comprar. Para o autor, atualmente são os consumidores que estabelecem os termos e as condições que o marketing deve seguir.

Segundo Covaleski (2010), a voracidade por novidades tecnológicas e a postura ativa dentro de suas redes sociais,

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próprias desses consumidores, lhes dota de uma tendência a influenciar a decisão de compra de outros, principalmente fazendo uso das novas tecnologias de comunicação e informação. Além disso, desempenham um papel importante na difusão de conteúdo publicitário via plataformas sociais online.

Contudo, é importante destacar que essas características diferenciadas apenas começam a ser identificadas no comportamento do consumidor. Podemos, portanto, considerar que se trata de algo “em processo” e que ainda não atinge a maior parte dos consumidores inseridos no mercado.

Ainda assim, o fato é que a atividade de tal consumidor dotado de uma nova postura, juntamente com as possibilidades comunicacionais atuais, baseadas, sobretudo, na Internet, vêm engendrando uma arena de consumo diferenciada. Os poderes dos principais atores vão sendo redistribuídos e estratégias de “informação, conquista e convencimento” convencionais dos consumidores, como a publicidade, precisam ser revistas.

Indo por outros caminhos, os próprios consumidores podem ser os principais divulgadores de marcas e produtos, através do compartilhamento de suas experiências de consumo em suas redes. Uma comunicação que considere a ação desses consumidores, e o discurso que eles vêm construindo a partir disso, precisa ganhar cada vez mais espaço.

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O ceticismo com relação à publicidade

A publicidade é, provavelmente, o esforço de comunicação de maior evidência realizado pelas marcas e o mais facilmente identificado pelo público, ainda que este não o entenda plenamente. Não por acaso, quase toda tentativa de comunicação das marcas4 com o consumidor tende a ser encarada pelo senso comum como publicidade. Essa percepção só corrobora a resistência à publicidade propriamente dita, uma vez que ela está propensa a ser notada como ainda mais presente do que já é.

Uma vez pontuado isso, vale destacar que essa mensagem publicitária a qual o consumidor atual tende a se mostrar especialmente avesso está ligada, sobretudo, ao que se costuma chamar de publicidade tradicional. Essa pode ser definida como uma “ação comunicativa de densa carga persuasiva, direcionada a um receptor padrão e pré-moldado pela mensagem, evidenciando incentivo ao consumo e clara exposição da marca anunciante” (COVALESKI, 2010, p. 145). A publicidade tradicional5 está ligada especialmente

4 As ferramentas de comunicação abarcam muitas outras possibilidades além da publicidade. Por exemplo, promoção de vendas, merchandising, eventos e assessoria de imprensa.

5 Vale ressaltar que mesmo na Internet podemos identificar formatos publicitários que podem ser considerados como publicidade tradicional. Vide, por exemplo, os banners, pop-ups e flyers veiculados em grandes portais. Trata-se, portanto, de uma definição que está menos ligada ao meio em que a mensagem é veiculada do que à forma como ela é apresentada.

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aos meios de massa, onde continua sendo alocada a maior parte da verba publicitária.

Segundo informações da Nielsen (2012), em 2011, mundialmente, houve um crescimento de 7% nos investimentos publicitários na mídia tradicional. Ainda assim, dados do mesmo instituto de pesquisa apontam que a confiança dos consumidores em publicidade paga inserida em televisão, revistas e jornais está em queda. Segundo Nielsen (2012), atualmente 47% dos consumidores confiam na publicidade nesses espaços. Desde 2009, este número estaria decrescendo, em média, 23% ao ano.

A conjunção dos fatores: a) saturação da audiência, b) abordagem baseada na interrupção, c) restrição à réplica própria do modelo broadcast e d) um domínio médio das técnicas de sedução publicitárias tem gerado uma aversão crescente ao discurso publicitário.

Todavia, é preciso pontuar que o que defendemos aqui não é a debilidade da publicidade como um todo. A depender do objetivo, do produto e do público, mesmo estratégias ligadas à publicidade tradicional continuam a ter sua importância e espaço. Mais do que isso, conforme Carvalho (2001), o poder da publicidade:

(...) não é simplesmente o de vender tal ou qual marca, mas integrar o consumidor à sociedade de consumo. Pode-se, eventualmente, resistir ao imperativo (“compre”), mas quase sempre se atende ao indicativo. E mesmo que eu não acredite no produto, “creio na mensagem publicitária que me quer fazer crer” (BAUDRILLARD, 1968,

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p. 272). Pode-se dizer que é algo parecido com a crença em Papai Noel: mesmo que não se acredite no mito, todos o aceitam como um símbolo de amor e proteção (CARVALHO, 2001, p. 18).

Na nossa visão, o que o discurso publicitário enfrenta hoje são maiores resistência e ceticismo por parte do público inserido num cenário de quase informação perfeita, no qual quase ninguém consegue esconder nada de ninguém, o que se torna decisivo no processo de transformação progressiva do perfil do consumidor em potencial. Atingi-lo e envolvê-lo exige cada vez mais criatividade, consistência e nexo (LONGO; TAVARES, 2009).

Tornando-se continuamente mais conscientes do perfil do consumidor contemporâneo e apropriando-se do potencial dos recursos tecnológicos atuais, os publicitários têm se voltado para estratégias e abordagens diferenciadas, baseadas, sobretudo, na Internet.

A publicidade na era informacional

Diante do que foi exposto, é inegável que a publicidade passa por um momento de transformação, enquanto negócio e formato. De acordo com Patriota (no prelo, p. 75), tanto a recente configuração midiática quanto o atual perfil do consumidor impulsionam a quebra de paradigmas do, não mais estável, negócio publicitário. Longo e Tavares (2009) parecem endossar essa opinião, ao questionarem qual deveria ser o escopo e a atuação das agências na atualidade. Segundo

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eles, às agências cabe, cada vez mais, um papel consultivo, baseado na gestão de marcas. A intenção é manter-se na liderança de todo o processo de comunicação do cliente, e não apenas ter participações pontuais.

No que se refere aos formatos publicitários, Covaleski (2010) reflete sobre uma nova comunicação publicitária que vem se delineando como reação ao cenário apresentado, em especial à progressiva segmentação midiática e ao incômodo causado pela abordagem baseada na interrupção do conteúdo editorial. O autor fala do surgimento de soluções híbridas, que integram as funções de anunciar, entreter e interagir. Segundo ele, a mensagem publicitária ganha mais espaço quando menos se parece com o que entendemos por ela. Ou seja, quanto menos recorra aos recursos habituais do discurso publicitário tradicional.

Segundo Covaleski (2010), o atual momento da publicidade está ligado a um processo de hibridização entre os elementos e as técnicas publicitárias e os do entretenimento e das tecnologias interativas, configurando o que o autor chama de “publicidade híbrida”. Busca-se, assim, investir na relação entre marcas e conteúdos de interesse do consumidor, de forma a proporcionar experiências marcárias exclusivas e inimitáveis.

Tudo isso colabora para o surgimento de práticas que costumam ser abarcadas sob o termo branded content6, entre elas, o entretenimento publicitário interativo. Este último,

6 “Conteúdo publicitário constituído de narratividade e que mimetiza produtos midiáticos de entretenimento” (COVALESKI, 2010, p. 49).

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que de forma mais superficial pode ser compreendido como ações publicitárias híbridas que têm as mídias digitais como suporte, compreende um novo produto midiático baseado em quatro elementos (COVALESKI, 2010): entretenimento, persuasão, interatividade e compartilhamento.

Um exemplo de ação publicitária que apresenta os elementos do entretenimento publicitário interativo é o site desenvolvido pela Ogilvy da Ucrânia em 2012 para a marca de água mineral Borjomi, da Geórgia. Para divulgar a marca, destacando a qualidade do produto a partir do argumento de que a fonte fica a oito quilômetros de profundidade, a agência desenvolveu “The world’s deepest site7”. Trata-se de um site com oito quilômetros de rolagem, representando o percurso subterrâneo até a fonte da água Borjomi.

Figura 1: Screenshot do “The world’s deepest site”, da Borjomi.

7 Tradução nossa: o site de maior rolagem do mundo. Link para o site: http://thedeepestsite.com/.

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O desafio proposto ao público é se esforçar deslizando a barra de rolagem até chegar à fonte. Para tornar o “passeio” mais interessante, uma série de informações fica disponível durante a descida: mensuração de tempo e profundidade, número de pessoas online naquele ponto do trajeto e, ainda, curiosidades sobre a localidade e como a água é coletada.

Além disso, à medida que se avança na rolagem do site, é possível realizar check-in nas profundidades e publicá-lo no Facebook. Ou seja, não só se obtém a interação do público com a marca, como se incentiva que ele compartilhe a experiência, despertando a curiosidade nos seus contatos e, logo, convidando-os a conhecer e participar do desafio.

Vale pontuar, contudo, que nessa ação elementos mais tradicionais, como o packshot, ainda são aplicados. Ainda assim, a inserção é feita de forma integrada ao conceito criativo da ação, portanto menos agressiva.

A proposta do entretenimento publicitário interativo segue a estratégia que Rocha (2009) acena como contraponto à publicidade tradicional, mesmo aquela presente na Rede: a oferta de um valor adicional em troca da atenção. É nesse sentido que a questão da experiência proporcionada se reforça, tanto por si só quanto pela possibilidade de compartilhamento. Além do status que pode ser criado para aquele que a compartilha, seu papel como intermediário é essencial. Diante do imenso fluxo de informação e conhecimento disposto na Internet, um guia rumo ao que realmente interessa ao usuário é de extrema importância. “É

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precioso um conselho, uma orientação, quando o espaço é tão grande” (LÉVY, 2010, p. 179).

Além disso, mais do que uma orientação, o que o usuário que compartilha uma experiência faz, como a proporcionada pela Borjomi, é endossar a mensagem da marca. Diante do excesso de informação a que o consumidor é exposto, especialmente na Rede, e da sua resistência ao discurso publicitário, a existência de uma instância que facilite o acesso ao conteúdo que pode parecer interessante ao usuário e, ainda, o credibiliza é de extrema importância.

A recomendação de “pessoas como eu”: endosso espontâneo e microcelebridades como embaixadoras de marcas

De forma a diminuir a resistência ao seu discurso na Internet, a publicidade vem adotando estratégias que utilizam o consumidor como uma instância intermediária de credibilização. Ao incorporar recursos como os sobre os quais se baseia a publicidade híbrida, por exemplo, permite-se que, por meio do compartilhamento, o consumidor online divulgue seus achados na Rede, incluindo conteúdo publicitário e, a menos que exponha claramente o contrário, o endosse.

O fato é que contar com o próprio consumidor online parece ir se estabelecendo como uma alternativa para superar a resistência ao conteúdo publicitário. Diante do imenso fluxo de informação disposto na Internet, o público precisa cada vez mais de guias que o auxiliem a direcionar sua atenção para

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aquilo que lhe pode ser relevante, incluindo as escolhas de consumo de seus pares. Agindo como curadores uns para os outros, os consumidores podem aliar a força e a credibilidade da sua recomendação online ao discurso publicitário.

A base dessa dinâmica estaria em tornar a mensagem publicitária mais tolerável não só por ela ser interessante e proporcionar uma experiência diferenciada, mas também por chegar até o consumidor por meio da recomendação de “pessoas como eu”: alguém em quem ele confia por ser conhecido ou, ainda, alguém que ele vê como modelo e com quem reparte características em comum, como algumas microcelebridades8, ou seja, “personas elevadas à condição de celebridades no seu microâmbito de atuação9” na Internet (BRAGA, 2010, p. 6). Tal confiança só existe porque, ao menos à primeira vista, esses indivíduos não parecem visar à persuasão, e, por isso, sua mensagem pode ser recebida com menos defesas.

Nesse sentido, vê-se uma transformação até mesmo no endosso (testemunhal) publicitário tradicional. Primeiramente porque todos aqueles que compartilham ou curtem conteúdo publicitário tornam-se endossantes espontâneos. Depois, “pessoas como eu” de destaque na Rede, as microcelebridades, têm se transformado em embaixadoras de marcas dotadas de uma ação diferenciada

8

9 Na nossa percepção, a autora utiliza o termo “personas” para definir as microcelebridades exatamente por considerar o quanto a subjetividade exposta por alguns indivíduos pode ser construída de forma favorável aos seus interesses.

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tendo em vista seu principal meio de ação na Rede: replicar a mensagem publicitária. Não só suas imagens e credibilidade são associadas às marcas, como elas têm um papel importante na divulgação desse conteúdo via seus espaços de publicação, geralmente blogs e perfis no Facebook, Twitter e Instagram10. Ou seja, o que elas vendem são seu endosso e espaço na mídia online.

Sendo assim, vê-se progressivamente emergir esse consumidor que se coloca, que está atento à recomendação de seus pares e ao qual a publicidade está tendo de se adaptar. Ainda que a atual configuração comunicacional tenha potencializado a recomendação ligada ao consumo pelo número de opiniões a que podemos ter acesso e o alcance que nossas recomendações podem obter, esse comportamento não é recente. Uma vez que o consumo sempre foi um fenômeno social, todo indivíduo é influenciado por aquilo que, aqueles que o cercam, pensam e compram (TRENDWATCHING11, 2011).

Ao longo da sua história, a publicidade tem se valido do endosso como forma de atrair a atenção do consumidor (no caso do uso de celebridades, por exemplo) e assegurar a confiabilidade da mensagem que anuncia. Como é sabido, o discurso publicitário se baseia, notoriamente, na persuasão

10 Aplicativo que permite aos usuários tirar fotos, aplicar efeitos variados sobre elas e publicá-las, além de no próprio Instagram, em seus perfis nas plataformas sociais online.

11 Empresa que pesquisa tendências de consumo. Link para o site: http://www.trendwatching.com.

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como forma de convencer o consumidor a adquirir um produto ou, ainda, criar identificação com o posicionamento de uma marca.

O endosso, ou seja, o depoimento sobre um produto ou marca, pode ser entendido como um recurso para credibilizar a informação veiculada, diminuindo a resistência do público a ela. A mensagem de uma marca associada e/ou validada por alguém visto como crível seria consequentemente dotada de credibilidade. A partir disso, conforme já mencionado, podemos identificar duas estratégias de associação do consumidor online, ou seja, “pessoas como eu” ao discurso publicitário, credibilizando-o: endosso espontâneo e microcelebridades como embaixadoras de marcas.

Sempre que curtimos ou compartilhamos posts e fanpages, utilizamos determinados aplicativos e outros conteúdos ligados às marcas e/ou produtos, a menos que expressemos nossa posição contrária a eles sob a forma de comentário, tornamo-nos endossantes espontâneos. A aprovação é replicada para toda a nossa rede de contatos, tornando algumas dessas pessoas endossantes em potencial. Curtir ou compartilhar é sinalizar para outros com quem se mantém algum nível de identificação que aquele conteúdo que foi interessante para mim também pode o ser para ele.

Uma ação interessante que serve de exemplo de endosso espontâneo e fez as recomendações de “pessoas como eu” chegarem em tempo real às lojas, impactando o consumidor

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diretamente no ponto de venda, foi o Fashion Like C&A12. Lançada em 21 de abril de 2012 para divulgar a coleção de Dia das Mães da marca de fast fashion, a ação consistia em um aplicativo13 na fanpage da C&A através do qual os usuários podiam “curtir” as peças que mais gostassem e, dessa forma, ajudar as consumidoras indecisas na hora da compra.

Como é da lógica de funcionamento dos aplicativos no Facebook, cada peça curtida pelo usuário era compartilhada para toda a sua rede através de uma mensagem automática gerada pelo aplicativo, configurando, assim, um endosso espontâneo. Fora isso, cabides especiais em uma arara instalada na loja da C&A no Shopping Iguatemi em São Paulo contabilizavam o número de “curtir” que cada peça da coleção havia recebido.

Segundo informações da agência criadora da ação, a DM9DDB, mais de 8 milhões de pessoas foram impactadas pelo Fashion Like C&A, a fanpage da marca obteve uma média de mil novos fãs por hora, e parte da coleção de Dia das Mães foi esgotada em um dia.

12 Video case disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=TyWQrmiRoLE.

13 Atualmente, fora do ar.

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Figura 2: Screenshot do aplicativo Fashion Like C&A

Outra possibilidade de endosso, que se beneficia dos mesmos recursos de recomendação e replicação citados acima, é a transformação de microcelebridades em embaixadoras de marca. Como aponta Braga (2010), a facilidade de publicação de conteúdos e os baixos custos de produção proporcionaram a emergência de um grande número de novos enunciadores nos meios digitais ligados à produção de conteúdo de tendência literária ou jornalística. Contudo, são poucos os que conseguem obter o reconhecimento de seus pares e do público, atingindo o status de microcelebridades.

Alguns desses indivíduos vêm sendo igualmente associados a marcas e produtos em ações que, não raro, extrapolam a Rede. Além disso, microcelebridades como

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endossantes podem ter uma participação muito mais ativa na divulgação da mensagem publicitária.

A partir do que vem sendo realizado no Brasil, é possível notar que boa parte dessas “pessoas como eu” de destaque que vêm sendo envolvidas nas estratégias publicitárias na Internet são blogueiros. Eles costumam participar desenvolvendo um conteúdo autoral exclusivo para a marca, o que inclui post no blog, fotos e chamadas para serem usadas na replicação do post via outras plataformas sociais online. Como é possível notar, o endosso publicitário de microcelebridades costuma envolver a criação de conteúdo atrelada à disponibilização do espaço de mídia.

As microcelebridades tendem a já serem criadores e curadores de destaque, que a partir da divulgação de suas produções online criaram uma audiência significativa. Elas costumam expor suas opiniões e, naturalmente, estão propensas a se pronunciar sobre marcas e produtos. Em tese, seriam transformadas em embaixadoras de marcas por, em algum momento, já terem se manifestado de forma espontânea sobre uma marca ou produto.

Na prática, quando isso não acontece, existe ao menos uma identificação entre o universo da microcelebridade e o que será anunciado14. A credibilidade da microcelebridade parece passar por dois pontos: a certeza de que ela não

14 Caberia à microcelebridade ao menos testar e buscar informações além das disponibilizadas pelo anunciante antes de tornar-se embaixadora de uma marca.

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recomendaria algo que não usa ou aprecia e a força daquela microcelebridade como modelo a ser seguido.

Como exemplo de microcelebridade endossando marcas e produtos, podemos citar a blogueira Camila Coutinho, do blog Garotas Estúpidas15, voltado especialmente para moda e beleza. Ainda em 2007, a blogueira publicou um post16 em que dizia gostar do Biscoito Treloso, da Vitarella, e, certamente, deve ter citado o produto em outros momentos. Isso foi levado em consideração pela marca ao escolhê-la como embaixadora da Vitarella durante a ação do Dia do Biscoito (08 de novembro de 2012). Em nome de Camila, foram enviados a vários blogueiros kits do Biscoito Treloso para divulgar a ação.

A blogueira não só publicou um post17 sobre a ação em seu blog, como replicou a mensagem da marca via Facebook e Instagram. Igualmente, um vídeo18 com uma receita usando biscoito Vitarella foi produzido e exposto no blog. É importante notar o quanto a divulgação do conteúdo da marca em outros espaços, por Camila, permite atingir o público em momentos diferentes.

15 Blog criado em 2006, voltado para assuntos como moda e beleza. Segundo informações disponibilizadas pela blogueira, atinge uma média de 70 mil visitantes únicos por dia. Link para o site: http://www.garotasestupidas.com/.

16 Disponível em: http://www.garotasestupidas.com/kit-de-sobrevivencia/.

17 Disponível em: http://www.garotasestupidas.com/hoje-e-diadobiscoito/.

18 Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=IaRroMxyeWo.

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Figura 3: Screenshot do post do blog Garotas Estúpidas divulgando o Dia do Biscoito da Vitarella

Finalmente, esse tipo de associação do consumidor, baseado no endosso, por dar espaço à colocação de “pessoas como eu”, que se aproximam do consumidor comum, pode ter um ganho quanto à credibilidade a partir da familiaridade e identificação do público com o endossante.

Contudo, é possível que o endosso espontâneo seja o mais relevante nesse aspecto. Afinal, a ausência de ganhos financeiros eliminaria as dúvidas quanto à associação de uma “pessoa como eu” a uma marca; questionamento que se mantém no caso do endosso da microcelebridade, ainda que a identificação seja mantida.

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Considerações finais

O livre acesso ao consumo, produção e divulgação de informação, impulsionado pelas configurações comunicacionais contemporâneas ancoradas na Rede, tem contribuído para a progressiva transformação do perfil do consumidor. Hoje, ele tem uma ação determinante não só sobre o fluxo de informação que recebe, mas até sobre toda uma cadeia produtiva que reconhece o valor da sua opinião e o seu poder de influência potencializado pelo ambiente online.

Como abordamos, o comportamento de ajuda de mercado é algo que existe desde sempre, uma vez que o consumo sempre foi social, e, por isso, é próprio dos indivíduos se manterem atentos ao que seus pares consomem. Contudo, os recursos aos quais os consumidores online têm acesso atualmente só fazem com que essa dinâmica seja ainda mais determinante.

No estágio atual de seu contínuo processo de transformação, o empenho da publicidade de se credibilizar a partir do endosso de “pessoas como eu”, tanto quanto uma estratégia de “sobrevivência”, é um reconhecimento do poder desse consumidor. Ao se mimetizar de entretenimento e incorporar recursos que permitam o compartilhamento, a publicidade confia na atuação dos consumidores online e na importância que as suas recomendações têm para sua rede. De forma direta, a publicidade confia na credibilidade do consumidor online e a ela busca se associar. Sendo assim,

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transforma-o numa instância intermediária de credibilização do seu discurso.

Dessa forma, a nosso ver, diante dos novos desafios impostos a ela, a publicidade segue mudando. Porém, é no mínimo curioso notar o quanto, cada vez mais, instâncias inicialmente apartadas se abeiram. No que diz respeito ao ambiente online, a publicidade já não busca só se aproximar do consumidor apenas para garantir que a sua mensagem seja apreendida. Hoje, a participação do consumidor vai se configurando como de grande importância para que a publicidade atinja plenamente seus fins.

Referências

BRAGA, Adriana A. Microcelebridades: entre meios digitais e massivos. In: XIX Encontro Anual da COMPÓS, 19, 2010, Rio de Janeiro, RJ. Anais.... Rio de Janeiro: PUC-Rio, 2010. 1 CD.

CARVALHO, Nelly. Publicidade: a linguagem da sedução. São Paulo: Ática, 2001.

CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. São Paulo: Paz e Terra, 2010.

COVALESKI, Rogério. Publicidade híbrida. Curitiba: Maxi Editora, 2010.

HUBA, Jackie; MCCONNEL, Ben. Citizen marketers: clientes armados e organizados ameaça ou oportunidade? São Paulo: M.Books, 2008.

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JAFFE, Joseph. O declínio da mídia de massa: por que os comerciais de TV de 30 segundos estão com os dias contados. São Paulo: M. Books, 2008.

JENKINS, Henry. Cultura da convergência. São Paulo: Aleph, 2008.

LEMOS, André. Cibercultura: alguns pontos para compreender nossa época. In: CUNHA, P. (Org.). Olhares sobre a Cibercultura. Porto Alegre: Sulina, 2003. p. 11-23.

LÉVY, Pierre. O ciberespaço e a economia da atenção. In: PARENTE, André (Org.). Tramas da rede: novas dimensões filosóficas, estéticas e políticas da comunicação. Porto Alegre: Sulina, 2010.

LONGO, Walter; TAVARES; Zé Luiz. Marketing na era do nexo: novos caminhos num mundo de múltiplas opções. Rio de Janeiro: BestSeller, 2009.

NIELSEN. Nielsen: global consumers trust in earned advertising grows. Nielsen’s press room, Nova York, 10 abr. 2012. Disponível em: <http://www.nielsen.com/us/en/insights/press-room/2012/nielsen-global-consumers-trust-in-earned-advertising-grows.html>. Acesso em: 21 dez. 2012.

PATRIOTA, Karla. As novas mídias, os novos consumidores e o potencial da publicidade on-demand . In: ______ (Org.). A Natureza das Mídias Digitais. Novos Paradigmas para a Publicidade. No prelo.

ROCHA, Maria Eduarda da Mota. Publicidade e Internet: a difícil convergência. Revista Galáxia, São Paulo, n. 17, p. 81-93, jun. 2009.

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RÜDIGER, Francisco. As teorias da cibercultura: perspectivas, questões e autores. Porto Alegre: Sulina, 1999.

TRENDWATCHING. The F-factor. Online, maio 2011b. Disponível em: <http://www.trendwatching.com/pt/trends/ffactor/ >. Acesso: 17 jul. 2013.

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As configuraçoes publicitárias na cibercultura:

O conceito de publicidade híbrida e sua aplicação nos

doodle/google

Cristianne Melo1

Introdução

A cibercultura modificou a relação emissor/receptor, reconfigurou as formas de acesso ao conhecimento e direciona os meios de produção de conteúdo. Presente neste ambiente digital e on-line, o fazer publicitário também reconfigura-se em busca de uma adaptação frente às novas tecnologias.

Com o aumento significativo do número de anunciantes e com a crescente velocidade de acesso a informação, a estratégia de conquistar o consumidor por meio de um relacionamento individual e por experiências contemplativas e estéticas tornou-se um caminho em ascensão. Diante deste cenário, é possível visualizar com clareza a materialização

1 Bacharel em Comunicação Social – pela Universidade Estadual da Paraíba (2009), Bacharel em Arte e Mídia pela Universidade Federal de Campina Grande (2010) e Mestre em Comunicação pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Atualmente leciona para o curso de Publicidade e Propaganda na Universidade do Vale do Ipojuca – UNIFAVIP. E-mail: <[email protected]>.

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do conceito de Publicidade Híbrida, proposto por Rogério Covaleski.

Logo, para a construção deste artigo, e na tentativa de exemplificar tal conceito, utiliza-se a estratégia publicitária dos doodles da empresa Google, que se configura como um importante produto mercadológico para o entendimento dos processos comunicacionais e publicitários da contemporaneidade.

A complexificação do processo comunicacional

Ao conjecturar sobre a história evolutiva do campo comunicacional, pode-se apreender com nitidez a interferência dos aparatos tecnológicos que surgem e, consequentemente, oferecem novos canais para a transmissão do conhecimento, a exemplo do sistema de impressão, do rádio, da televisão, entre outros. Desta maneira, a forma de disseminar informações se reconfigura, o relacionamento entre emissor/receptor sofre alterações, assim como o processo de comunicação se torna cada vez mais complexo. A introdução destes novos meios também é capaz de alterar a estrutura social e suas formas de interação. Lucia Santaella (2008) destaca seis grandes eras civilizatórias: a era da comunicação oral (centrada na fala); a da comunicação escrita (na qual o registo cultural acontece por meio da escrita pictográfica, ideográfica, hieroglífica e também fonética); a da comunicação impressa (responsável pela reprodutibilidade da escrita em significativa quantidade

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por meio de cópias geradas a partir de uma matriz); a era da comunicação propiciada pelos meios de comunicação de massa (com ênfase nos meios de comunicação “tradicionais”, permitindo a disseminação da informação para diversos receptores ao mesmo tempo); a era da comunicação midiática (em que dispositivos tecnológicos, como o equipamento portátil de vídeo, proporcionam a apropriação produtiva por parte do público, retirando, desta forma, a exclusividade do campo da emissão das grandes empresas de comunicação) e, por fim, a era da comunicação digital (a cibercultura), a qual se configura como foco deste artigo. Faz-se necessário ressaltar que uma era não leva a anterior ao desaparecimento; elas se sobrepõem, combinam-se e se permutam.

Manuel Castells (2013) conceitua a atual sociedade, marcada pelas tecnologias digitais, como “Sociedade em Rede”, pois sua construção ocorre por meio de redes em todas as dimensões fundamentais da organização e da prática social. Tal autor ressalta que esta sociedade não apresenta as fronteiras “Estado-Nação”, constituindo-se, assim, como um sistema global. Esta postura corrobora o pensamento de Lemos (2002), ao afirmar que a rede encontra-se em tudo e tudo está em rede. Ela é praticamente onipresente em todos os lugares, bem como nos equipamentos que frequentemente tornam-se máquinas de comunicar. Seguindo esta mesma linha de raciocínio, Canclini (2008, p. 88-89) conclui: “Graças à Rede, sabemos mais sobre muitos detalhes do mundo”.

Presente neste ambiente digital e on-line, o usuário tem acesso a informações infinitas, as quais são veiculadas

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em formato de texto, vídeo, imagens, infográficos e sons, disponíveis em vários idiomas. Santos (2003) afirma que o computador, como um dispositivo visual, trabalha indefinidamente com signos imagéticos e verbais. No tocante ao conceito de hipertexto, ressalta que este dispositivo tem a capacidade de “[...] lançar um segundo texto a partir de um primeiro, de permitir ligações constantes de uma página sempre-avir, e ancoragens efêmeras nessa que acabou de ser armazenada na memória” (SANTOS apud SANTAELLA, 2012, p. 233). O referido autor apoia-se em Hoffman para ressaltar que o meio eletrônico é o único capaz de tornar acessível todos os testemunhos textuais, manuscritos, datiloscritos e impressões, bem como suas transcrições e interpretações.

De acordo com Castells (2013), a sociedade contemporânea passa por um momento de mudanças radicais no âmbito da comunicação, a qual atualmente se organiza em torno da Internet e da comunicação sem fio, gerando uma transformação cultural fundamental à medida que a virtualidade se torna uma dimensão essencial na realidade humana. Estando conectado ao mundo virtual, este leitor – que, nas palavras de Canclini (2008), também é espectador e internauta –, ao acessar páginas na internet, pode assistir a canais de televisão cuja programação é transmitida ao vivo ou ouvir estações de rádio; pode igualmente realizar a leitura do conteúdo de jornais ou revistas, bem como ler informações por meio de sites de notícias, blogs ou até mesmo das redes sociais.

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Tais afirmações corroboram o pensamento de Castells (2013), quando este alega haver grande convergência entre os meios de comunicação de massa tradicionais (considerados pelo autor como redes verticais, cuja produção e emissão de informação são dominadas pelas grandes empresas de comunicação) e as redes de comunicação baseadas na internet (correspondendo a redes horizontais, as quais se referem ao conteúdo emitido de forma descentralizada por múltiplos emissores). Para justificar tal afirmativa, Castells (2013) explica que as mídias tradicionais utilizam blogs e redes interativas para alimentar-se de informações, como também para distribuir conteúdo e interagir com a audiência.

Não obstante, Lemos e Cunha (2003) propõem uma importante reflexão: “Trata-se aqui da migração dos formatos, da lógica da reconfiguração e não do aniquilamento de formas anteriores. Não é transposição e não é aniquilação” (LEMOS e CUNHA, 2003, p. 15). Os autores afirmam ainda que “em várias expressões da cibercultura trata-se de reconfigurar práticas, modalidades midiáticas, espaços, sem a substituição de seus respectivos antecedentes2”.

No ciberespaço, o leitor pode participar do processo comunicacional com maior facilidade. Em épocas pregressas, por exemplo, utilizava-se o telefone para participar de programas de rádio. Já para opinar em revistas ou jornais, os leitores enviavam cartas. Na atualidade, por sua vez, basta acessar a página do veículo de comunicação e publicar algum

2 Id, p. 19.

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comentário no campo correspondente. O leitor pode ainda criar seu próprio site ou blog, difundindo desta maneira o conteúdo que deseja de forma rápida e fácil, além de manifestar-se em perfis individuais abrigados por várias redes sociais.

“Qualquer indivíduo pode, a priori, emitir e receber informação em tempo real, sob diversos formados e modulações (escrita, imagética e sonora) para qualquer lugar do planeta3”. Cria-se, deste modo, uma comunicação alternativa, caracterizada pela transmissão instantânea de dados, a qual modifica a fórmula “um-todos” para “todos-todos”. Este usuário, participante do processo comunicacional organizado em torno da Internet e da rede sem fio, pode ainda ser classificado quanto ao seu envolvimento com o ambiente em questão.

Hoje, entende-se que há três espécies de indivíduos quanto ao trato com as tecnologias da informação: os turistas digitais, os imigrantes digitais e os nativos digitais. Embora haja relação com a idade dessas pessoas, o fator preponderante é a mentalidade, a postura (COVALESKI, 2013, p. 27).

No entanto, é importante ressaltar que estar conectado ao ciberespaço e com os mais variados pólos de emissão não é ainda fato generalizado, pois, mesmo com o crescimento exponencial do número de pessoas com acesso às conexões, não existe mídia totalmente democrática e universal. Para

3 Id. p. 14 Ibid.

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explicar tal fato, Lemos e Cunha (2003) asseveram que metade da população mundial nunca utilizou o telefone convencional.

Tais mudanças no processo comunicacional também abarcam o campo publicitário. E, para sua adequação ao universo da cibercultura, foram necessárias mudanças significativas, tantos em relação ao relacionamento com o público, quanto ao próprio conteúdo das campanhas. Assim, novos mecanismos de interação e participação com o público foram incorporados e a mensagem imperativa transforma-se em entretenimento.

As reconfigurações publicitárias para o ambiente on-line

Dadas as mudanças ocorridas no processo comunicacional, inevitavelmente o sistema publicitário passaria por significativas reconfigurações, tanto para encaixar-se neste cenário digital e on-line quanto para não perder seu público consumidor. As transformações não se concentram apenas na maneira como se anunciam os produtos ou serviços, mas na relação com o público, que abandona características de passividade para tornar-se deveras participativo. Hoje em dia, o público é convidado a compartilhar de experiências que almejam não apenas a venda de um produto, mas a configuração de um relacionamento de confiança e fidelidade por meio de construções embasadas na emoção e no entretenimento.

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A publicidade quer participar dos processos de imersão mediática, quer distanciar-se da prática que a consagrou como uma das pontas do processo de comunicação linear, isolada na emissão da mensagem e sua codificadora dentro da sociedade de consumo/massas; procura aproximar-se do sujeito, não quer perdê-lo, procura pela sua permanência como autora das alternativas oferecidas na ação publicitária com um discurso pretensamente não linear, “aberto” à participação do “outro”, procura preservar o poder adquirido dentro da lógica da comunicação/consumo para as massas (BEKESAS, 2011, p. 12).

É possível reduzir significativamente os custos com a veiculação de campanhas – se comparado ao valor bastante elevado que é cobrado pelas mídias mais tradicionais, como a televisão –, bem como se pode usufruir dos mecanismos que proporcionam a interação com o público.

Desta maneira, sem grandes custos para a veiculação das campanhas on-line, o número de empresas presentes no ciberespaço cresce a cada dia, de modo que a escolha da marca, no momento da compra, tornou-se ainda mais difícil devido à grande quantidade de opções disponíveis no mercado digital. Segundo Austin & Jim (2007, p. 42), “os consumidores estão estragados pelo excesso de opções”. Além disso, o desenvolvimento tecnológico provocou a proliferação dos canais de mídia. Em virtude disto, as marcas (empresas) precisaram rever suas estratégias para conquistar o público consumidor.

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O público atual se apresenta cada vez mais exigente, crítico, atualizado e ciente dos mecanismos de persuasão deste campo. Ainda conforme os autores em pauta, os consumidores atuais estão mais bem-educados, confiantes e difíceis de influenciar do que nunca. “Eles sabem como funciona a propaganda e podem decodificá-la. Eles sabem quando estão sendo tratados com condescendência. E simplesmente não estão preparados para tolerar alegações falsas: eles não têm tempo para isso4”.

Logo, os anúncios que se configuram por meio de mensagens diretas e curtas não apresentam grande aceitação. A interrupção que a publicidade gera na navegação do público – como o pop-up5 ao acessar um site – é frequentemente menosprezada. Conforme Covaleski (2013), a própria publicidade instituiu este hábito de interrupção para despertar a atenção do público. Tal estratégia era aceita considerando que o consumidor não apresentava mecanismos para reagir. Entretanto, com o advento das novas tecnologias, é possível controlar ou interferir parcialmente no conteúdo. O mesmo pensamento também pode ser encontrado nos estudos de Scott Donaton (2007, p. 12):

O consumidor, que já não se deixava enganar por tentativas espalhafatosas de manipulação, agora conta com meios para banir de vez propagandas manipuladoras no seu dia-a-dia, escorraçando sem

4 Id. p. 19.

5 Pop-up: janela que surge involuntariamente ao visitar uma página na Internet, contendo anúncios publicitários.

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dificuldades comerciais filmes, programas de TV ou músicas que, em vez de divertir ou informar, mais parecessem artifícios para vender produtos.

Nesses novos tempos de “publicidade on-line”, a criação do relacionamento individual é fundamental, pois outra característica marcante do ciberespaço é a descentralização do público alvo. Desde que o consumidor esteja conectado, ele pode receber informações dos mais variados anunciantes e escolher com maior facilidade o que deseja ler e ouvir, migrando de um site para outro na velocidade de um clique. Assim, a saída encontrada pelos publicitários se encontra no entretenimento, na interatividade. Seria o mascaramento da publicidade em diversão. Pode-se dizer, então, que:

(...) há duas grandes tendências que podem resumir o panorama do ambiente comunicativo atual – e com reflexos diretos sobre a atividade publicitária: a primeira delas é que, com a convergência midiática e a evolução das relações de consumo, passou-se de uma mídia de massa para a segmentada, até chegar – com a interatividade – a uma mídia praticamente personalizada; a segunda tendência é a de se evitar a interrupção do conteúdo editorial e/ou artístico que a publicidade, inevitavelmente, gera com seus breaks comercias e anúncios (COVALESKI, 2013, p. 38).

Nesse diapasão, ganha destaque um conceito atual,

denominado de Madison, Vine & Valley – MVV – que corresponde à junção da publicidade ao entretenimento e às novas tecnologias, por meio da qual cada palavra do termo refere-se ao endereço dos respectivos conglomerados.

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Covaleski (2010) apoia-se em Donaton (2007) para destacar como exemplo deste conceito as estratégias publicitárias de informertials, a publicidade de longo formato; o product placement, referindo-se à inserção de conteúdos em novelas, filmes, séries e reality shows; o branded content, que são programas produzidos ou financiados pelas próprias empresas anunciantes; bem como o entretenimento publicitário interativo, que desencadeou o conceito de publicidade híbrida.

Proposto por Covaleski (2010), o referido conceito refere-se a uma publicidade hibridizada por quatro dimensões: persuasão, sendo a atividade primordial do campo publicitário, pois busca o convencimento por parte do receptor em relação ao conteúdo veiculado; entretenimento, possibilitando a fruição estética e distração intelectual do público; interação, correspondendo à capacidade de mediação do conteúdo; e compartilhamento, consistindo na recomendação espontânea realizada pelo receptor. De outro modo, segundo o autor, trata-se de uma publicidade mesclada ao conteúdo, transformada em entretenimento, apta à interatividade e passível de ser compartilhada.

Sobre estas reconfigurações publicitárias, Donaton (2007, p. 169) ressalta que:

(...) o negócio de entretenimento de marcas está de fato no começo. A única certeza que temos é que ele vai mudar e evoluir, e daqui a alguns anos provavelmente será bem diferente do que é hoje em dia. O indiscutível é que as tecnologias digitais mudaram o eixo de poder, dos criadores de conteúdo

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para o consumidor, e isso vai forçar mudanças na maneira como os anunciantes, publicitários e produtores de entretenimento se comunicam com os espectadores.

Desse modo, pode-se visualizar a ênfase na emoção, um apelo ao estético. O que antes era criado com base no tempo de veiculação e de maneira direta e clara, hoje pode ser recriado em busca da interação com o consumidor, criando experiências contemplativas que almejam conquistá-lo por meio do visual. Para Pierre Lévy (2004), a sociedade atual atravessa um período de deslocamento para a economia da atenção. “Após ter sido durante séculos uma economia de subsistência, depois, durante algumas dezenas de anos, uma economia da informação e do conhecimento, a economia se desloca agora em direção às ideias e – ainda além – em direção à atenção” (LÉVY, 2004, p. 183).

Atualmente, o mercado publicitário aponta cada vez mais para o entretenimento, produzindo filmes, séries e imagens que prezam pela arte, geram status e conquistam o consumidor. Ainda segundo Lévy (2004), para a prática de uma boa estratégia de comunicação no ambiente da cibercultura, é preciso “[...] atrair, canalizar, estabilizar a atenção e escutar o que querem as pessoas e dar isso a elas. Senão, elas irão para outro lugar, muito rápido, num só clique6”. Na esteira desse pensamento, Covaleski (2013, p. 23) elucida que:

6 Id. p. 179.

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(...) atualmente, a publicidade em processo de hibridização se mescla ao conteúdo e, por si só, passa a ser compreendida e consumida por parte do público como entretenimento. É uma nova maneira de se trabalhar a comunicação publicitária, baseada na aglutinação de três fatores: informar persuasivamente, interagir e entreter.

Portanto, o campo publicitário volta seus olhos para as expressões artísticas, para outras formas de entretenimento, como o cinema, as séries, a música e os jogos. Ainda segundo o autor, “vivemos um momento em que as expressões culturais e artísticas passam a ditar caminhos no marketing e na publicidade, gerando hibridizações cada vez mais frequentes na comunicação publicitária atual” (COVALESKI, 2010, p. 45). Canclini, citado por Covaleski (2013, p. 59), assinala que:

(...) en el momento en que los artistas y los espectadores “cultos” abandonan la estética de las belas artes y de las vanguardias porque saben que la realidad funciona de otro modo, las industrias culturales, las mismas que clausuraron essas ilusiones en la producción artística, las rehabilitan en un sistema paralelo de publicidad y difusión7.

Tornou-se, então, rentável para as empresas anunciantes apoiar-se, inspirar-se e apropriar-se das expressões de arte, pois, ao veicular um comercial com características

7 “[...] no momento em que os artistas e os espectadores ‘cultos’ abandonam a estética das belas artes e das vanguardas por saberem que a realidade funciona de outra forma, as indústrias culturais, as mesmas que incutiram essas ilusões na produção artística, eles as reabilitam em um sistema paralelo de publicidade e difusão”. Tradução livre da pesquisadora.

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emotivas e artísticas, a marca proporciona ao leitor uma experiência individual, na qual cada ser humano, ao imergir no anúncio, leva consigo suas experiências e cosmovisões, tornando a contemplação algo particular. Vieira & Maldaner (2012) destacam que o melhor caminho para o sucesso da marca está no elo emocional, haja vista que, na publicidade contemporânea, “emocionar ao invés de persuadir é a palavra de ordem8”.

Conseguindo fidelizar o consumidor, a marca também conquista um divulgador de seus valores e produtos. De acordo com Trindade & Perez (2009), isto se explica em virtude de a publicidade, em busca da sua essência inovadora, conseguir dialogar com outros gêneros e formatos. Esta convergência configura-se como um dispositivo estratégico que garante, “[...] a partir de seus argumentos de sedução e persuasão, a empatia e a simpatia que envolve o receptor, estimulando-o à adesão e à compra, e ainda, se possível, a ser um divulgador ativo da marca” (TRINDADE & PEREZ, 2009, p. 31). Em tempos nos quais a ação de compartilhar e comentar conteúdos na web já faz parte do cotidiano de um público cada vez maior, a realização desta estratégia é fundamental para a permanência e o sucesso da marca no ambiente digital.

Diante das possibilidades oferecidas por este panorama digital e também on-line, a empresa Google vem investindo, desde 1998, em estilizações artísticas no seu próprio logotipo,

8 Id. p. 06.

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os Doodles. Esta estratégia publicitária pode ser compreendida como uma materialização do conceito de publicidade híbrida, proposto pelo pesquisador Rogério Covaleski (2010).

O Doodle/Google: Aplicação do conceito de Publicidade híbrida.

Ao acessar a página de busca do Google, o usuário pode ser surpreendido por modificações artísticas no próprio logotipo da empresa. Tais ilustrações são desenvolvidas para celebrar feriados, acontecimentos importantes ou aniversários de personalidades do mundo das artes e da ciência. Os criativos que desenvolvem esta ação definem: “Doodles are the fun, surprising, and sometimes spontaneous changes that are made to the Google logo to celebrate holidays, anniversaries, and the lives of famous artists, pioneers, and scientists9”.

Os doodles do Google apresentam um ciclo de vida bastante curto, na maioria das vezes, 24 horas. E adequam o conteúdo interativo e as estilizações apenas ao espaço do próprio logo, ou seja, apresentam-se sempre no mesmo ambiente, no local da marca do Google – abaixo da barra de endereço do navegador e acima do campo destinado para digitar o assunto da busca. Este local predeterminado facilita a associação por parte do público, mesmo quando se trata de intervenções mais densas, as quais apresentam uma

9 Tradução: “Doodles são mudanças divertidas, surpreendentes e, às vezes espontâneas que são feitas no logotipo do Google para comemorar feriados, aniversários e as vidas de artistas famosos, pioneiros e cientistas.” Disponível em: <http://www.google.com/doodles/about>. Acesso em: 24 abr. 2015.

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difícil ou ausente identificação da marca, como o doodle em comemoração ao aniversário da artista plástica canadense Agnes Martin (em 22 de março de 2014) ou em homenagem ao diretor de cinema turco Ertem Egilmez (em18 de fevereiro de 2014). Segundo Kreutz & Fernández (2009), modificar propositadamente o logotipo para rápidas veiculações é considerado uma consequência da era tecnológica e de um mundo globalizado, que apresenta como características a mutação, a velocidade, conectividade e colaboração. No tocante ao ambiente contemporâneo, tais autores afirmam que: “A ciber-tecno-cultura faz surgir novos modos de divulgação de uma marca (formatos, superfícies e discurso), além de exigir mudanças mais rápidas, mais movimento, mais ação, mais hibridismo, mais participação dos públicos” (KREUTZ & FERNÁNDEZ, 2009, p. 93).

Já os pesquisadores Louise A. Elali, Danielle I. Keiser e Ozen Odag (2012) ressaltam que os doodles/Google se configuram como um meio que possibilita a conexão e identificação com o público, auxiliando a empresa a construir uma conexão mais profunda e pessoal com seus usuários. Tais autores chamam esta estratégia publicitária de logomorphism. Pois, os doodles/Google produzem uma marca antropomórfica – com características humanas definidas e personalidade agradável – o que contribui para a construção de uma ligação mais profunda e mais pessoal com seus usuários.

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Os “Doodles” do Google são mais do que traços, rabiscos e desenhos. Eles significam total liberdade criativa, que permite que esta esteja integrada/conectada ao seu contexto, interagindo com seus públicos e permitindo sua participação ativa, provocando-os emocionalmente, seja pelas homenagens prestadas, pelas histórias contadas, ou, simplesmente, por ser divertido (KREUTZ & FERNÁNDEZ, 2009, p. 93).

Os doodles/Google podem variar de acordo com o país onde estão sendo veiculados. Por exemplo, ao acessar a página com domínio do Brasil, em alguns eventos específicos do nosso país, como o dia da Independência, na data correspondente, apenas aqueles usuários que acessaram a página seguida de “.br” podem visualizar o doodle que aborda tal assunto. Destarte, Elali; Keiser e Odag (2012) afirmam que os doodles agem para manter e afirmar a marca do Google, refletindo valores globais, bem como tradições nacionais ou de locais específicos. Contudo, trabalhar com uma ideologia hegemonicamente ocidental, que promove valores que podem não ser globais, compromete a conectividade com seus usuários.

A marca Google está adequada ao seu tempo-espaço, à interação e às instituições sociais e aos meios técnicos de produção e transmissão, pois participa da globalidade da organização; materializa o espírito, o sensível, as emoções; capta as expectativas de seu público; incita o desejo de participação; representa o desejo comum; tem uma estrutura envolvente; rompe com a visão mecânica e estática de uma imagem unívoca; e possui traços de identidade que permitam ao espectador a

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identificação de seus valores no objeto observado (KREUTZ & FERNÁNDEZ, 2009, p. 105).

Segundo Covaleski (2010), o ambiente contemporâneo em que a publicidade se encontra inserida oferece para as marcas oportunidades de apresentação diferenciada, na qual a estrutura rígida dos gêneros não tem sentido em uma sociedade fragmentada e mediatizada. Assim, presente neste processo de transição comunicacional em curso, somou-se à função essencial de anunciar, as derivadas de interagir e entreter. “São produtos midiáticos híbridos, que aliam o discurso persuasivo à fruição estética e, com isso geram um composto comunicativo novo” (COVALESKI, 2010, p. 46). O autor ainda ressalta que são, sobretudo, produtos midiáticos de entretenimento. Como já exposto, o conceito de Publicidade Híbrida é composta por quatro dimensões: Persuasão, Entretenimento, Interação, e Compartilhamento.

Ao refletir sobre a estratégia dos doodle/Google, podemos visualizar as quatro dimensões mencionadas: por meio desta estratégia publicitária, o Google exerce sua persuasão, uma vez que continua a vender sua marca e seu mecanismo de busca; configura-se como um produto de entretenimento, possibilitando fruição estética e distração intelectual – e neste composto as artes cumprem um importante papel –; para determinados casos existem ações interativas que solicitam a participação do público, quando, por exemplo, se configuram como games e, para estas peças,

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o consumidor é convidado a jogar na plataforma do site, ou somente após o “play” do usuário veiculam-se vídeos ou animações; bem como estão suscetíveis ao compartilhamento pela cópia do endereço eletrônico da página ou utilizando um botão que direciona a ação para as redes sociais e é disponibilizado pelo próprio buscador do Google.

Na tentativa de ilustrar as preposições aqui apresentadas, destacamos alguns doodles. Em 21 de maio do ano de 2010, para comemorar os 30 anos do lançamento do jogo Pac-Man, o Google produziu o primeiro doodle game, no qual o internauta poderia jogar um game muito próximo ao original, usando as teclas direcionais do teclado. Esta interação, segundo o site Olhar Digital (2010), quadruplicou o tempo em que os usuários passavam na página do Google de 11 para 45 segundos. Nesta ocasião, o buscador teve mais de 500 milhões de visualizações, bem como causou um prejuízo de US$ 120 milhões de dólares – por horas não trabalhadas.

Figura 1 - O doodle game sobre o aniversário do jogo Pac-Man.

Fonte: http://www.google.com/doodles/

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Já em 16 de abril do ano de 2011, em comemoração ao 122º aniversário do consagrado artista britânico Charlie Chaplin, o doodle veiculado abrigava um vídeo produzido com a estética característica do artista. Tal vídeo permaneceu na página do Google por 36 horas e, segundo o doodler10 Ryan Germick, o objetivo da equipe concentrava-se em explorar o poder da narrativa visual do cinema mudo11. Para visualizá-lo, o público consumidor precisava realizar uma interação com a marca no site e apertar o botão play. Caso contrário, nada aconteceria e o doodle permanecia semelhante a uma configuração estática.

Figura 02: Doodle-vídeo em homenagem a Charles Chaplin

Fonte: http://www.google.com/doodles/122nd-birthday-of-charlie-

chaplin

Também se enquadrando no conceito de Publicidade Híbrida, encontra-se o doodle em homenagem ao fotógrafo inglês Eadweard J. Muybridge, veiculado no dia 9 de abril de 2012, em comemoração ao 182º aniversário do artista.

10 Profissional responsável pela criação do doodle.

11 Informações disponíveis em: < http://www.google.com/doodles/122nd-birthday-of-charlie-chaplin>. Acesso em: 15 mar. 2015.

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Na ocasião, a estilização do logotipo do Google realizou uma referência clara aos experimentos de Muybridge para capturar o movimento por meio de múltiplos fotogramas. Nele, posto em sequência e visualizados em determinada velocidade, uma imagem se sobrepõe a outra e, por meio do fenômeno chamado persistência da retina, o leitor poderia observar o movimento em ação. As imagens que capturaram o galope de um cavalo referem-se ao experimento mais conhecido do artista, O Cavalo em Movimento (1878). E, deste modo, o uso de elementos artísticos – os fotogramas de Muybridge – compõe o quadro de entretenimento presente no doodle. Assim sendo, no case em questão, o público é convidado a visualizar o movimento do galope do cavalo, quando se dispõe a clicar no “play” presente na imagem e, consequentemente, iniciar o vídeo. O experimento de Muybridge adquiriu as cores do logotipo do Google, já que o nome “Google”, comumente empregado nos doodles, não se fazia presente.

Figura 03 - Doodle-vídeo em homenagem a Muybridge e o experimento O Cavalo em Movimento (1878).

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Por fim, em 08 de novembro do ano de 2013, o psiquiatra e psicanalista Hermann Rorschach foi homenageado com um doodle para celebrar seu 129° aniversário. Na ocasião, o leitor era convidado a clicar nos desenhos, conhecidos como o “teste da mancha de tinta de Rorschach” e, posteriormente, a compartilhar o que estava visualizando por meio de um link que dizia “Share what you see”. A cada clique na imagem, um novo desenho surgia. Neste exemplo, o conceito de Publicidade Híbrida pode ser facilmente empregado, já que o doodle em questão apresenta persuasão, entretenimento, interação e compartilhamento – em um pedido explícito.

Figura 04: Doodle em homenagem a Hermann Rorschach e um balão com um pedido de compartilhamento.

Fonte: http://www.google.com/doodles/hermann-

Considerações Finais

Diante de uma era globalizada, que produz competições acirradas, e da rápida evolução tecnológica, a publicidade tradicional se encontra em constante processo de transformação. A administração das grandes corporações passou a enxergar no entretenimento uma saída para conquistar o consumidor e prosseguir gerando lucros. Logo, passou-se a dominar e difundir um modelo publicitário

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centrado na experiência individual, no entretenimento e nas relações por meio da fruição estética.

A ação dos doodles se torna significativamente viável e se faz marcante no ciberespaço com o ambiente digital e on-line, pois é preciso considerar a velocidade das atualizações das marcas estilizadas – 24 horas ou menos –, bem como sua veiculação específica para determinados países. O envolvimento com as novas tecnologias é igualmente essencial para a sua realização. Por conseguinte, proporcionar entretenimento interativo é, sem dúvida, um dos motivos do seu grande sucesso. Conforme lembra Covaleski (2013, p. 37), “os diálogos entre comunicação e tecnologia ditam boa parte das inovações que visam à interação entre públicos”. Esta estratégia publicitária também proporciona a difusão de informações para um público que, em um primeiro momento, não apresentava o interesse no assunto que foi retratado no logotipo. Ela retoma conhecimentos que, por vezes, foram esquecidos ou não faziam parte da cultura de várias pessoas. Funciona como um hipertexto, cujo objetivo, além dos aspectos mercadológicos, é despertar a curiosidade sobre determinado evento, sobre artistas, personalidades da ciência ou da História. Os doodles contribuem, dessa forma, para o crescimento do repertório cultural do seu público consumidor. Nesse contexto, Lemos e Cunha (2003) ressaltam que são as características e tecnologias do cenário digital e on-line que possibilitam emitir informação para além do espaço e do tempo.

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Além de posicionarem-se como um importante exemplo do conceito de Publicidade Híbrida, ao escolher assuntos reconhecidos e/ou próximos do público, os doodles/Google atribuem um status viral às mensagens de marca. E, ao solicitar a participação do público, esta empresa cria elos emocionais e cativantes com seu público. Ressalta-se, também, que o uso de referências artísticas por meio desta ação comunicacional, além de valorizar a própria estratégia, valoriza o assunto que é abordado em cada logotipo estilizado. No entanto, é de extrema importância mencionar que esta estratégia publicitária não é exclusiva, nem tampouco pioneira. A emissora de televisão MTV, por exemplo, já utilizava a veiculação do seu logotipo variavelmente estilizado.

Referências

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________. Idiossincrasias Publicitárias. 1. ed. Curitiba, PR: Maxi, 2013.

DONATON, Scott. Publicidade + Entretenimento: Por que estas duas indústrias precisam se unir para garantir a sobrevivência mútua. Trad. Álvaro Oppermann. São Paulo: Cultrix, 2007.

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Editora XEROCA!

Para obter mais informações sobre outros títulos da Editora Xeroca!, visite o blog:www.comjuntocoletivo.blogspot.com

A presente edição foi composta pela Editora Xeroca!, com fonte Georgia, em agosto de 2015.

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