mitos japoneses

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MITOS JAPONESES. O SHINTO O animismo foi o primeiro estádio religioso do Japão, a primeira explicação mitológica que os humanos querem dar-se dos fenômenos e poderes que se afastam da compreensão, desde o ciclo do dia e a noite até à doença e a morte, passando pela sorte dos cultivos e o gado e pelo comportamento das forças atmosféricas. Esta religião da natureza, na que não há dogma nem existem diferenças entre os deuses, os humanos, os animais, as plantas e a matéria inanimada, é uma doutrina de meditação, de conhecimento da unidade universal, que vai unida inseparavelmente à total aceitação da ordem reinante, à assunção da circunstância social e familiar. O Shintô proclama a necessidade da pureza e a exigência da sinceridade. A pureza supõe a eliminação da contaminação pelo sangue, pela morte, pelos alimentos impuros e se consegue através dos ritos purificadores do imi (abstinência), o misogi (banho frio) e o harai (o rito oficiado), que alcança o seu máximo nas festas semestrais do 30 de Junho e do 31 de Dezembro, nos dias do O-harae (Grande purificação). O Shintô (Shin, deuses; tô, caminho = caminho de deuses) foi colhido numa coleção de textos (shinten); finalmente no século VII, numa versão depurada que se transmitiu oralmente até princípios do VIII, quando a imperatriz Gemmyo fez com que Yasumaro recolhesse da memória de Hieda o conteúdo do relato e o escrevesse, dando ao conjunto o nome de Kojiki (Crônica dos tempos antigos) em três livros, mais uma história nacional, o Nihongi, ou Nihom Shoki (Crônica do Japão). Esta doutrina sintoísta renovada, por propugnar a obediência à ordem, ao imperador, terminou por ser a doutrina oficial e a inimiga do budismo no período de recuperação da autoridade imperial, de 1868 a 1872, passando depois a ser uma instituição à qual se deve uma observação e um respeito mais nacionalista do que religioso. O KOJIKI E O NIHONGI No primeiro livro do Kojiki estão contidos todos os relatos mitológicos; no segundo livro conta-se a história legendária do Japão, do século VII ao século IV (aC); enquanto no último livro, a Crônica se torna mais histórica, por proximidade temporária, abrangendo do século IV aos princípios do VII. Estes livros, escritos por Yasumaro num japonês arcaico, hoje em dia são de difícil leitura; não é o caso do Hihomgi, que foi redigido no idioma importado pelos nobres, em chinês, e que se trata de um texto muito mais extenso e elaborado ao gosto da corte, no qual também se misturam as origens legendárias e os mitos ancestrais com as páginas da história real, mas apartando-se bastante do Kojiki nas suas exposições mitológicas. O Kojiki expõe a criação simultânea do Universo e de três divindades invisíveis: Centro do céu, Augusto Criador e Divino Criador. No período de formação do nosso mundo, sobre a sua massa ainda deforme, brotaram outras divindades invisíveis celestes, nascidas do primeiro rebento de junco. Depois, da terra ainda quente, começaram as sete gerações da era divina com o Eterno da Terra e o Rebento Fértil, que se complementaram mais

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MITOS JAPONESES. O SHINTO

O animismo foi o primeiro estádio religioso do Japão, a primeiraexplicação mitológica que os humanos querem dar-se dosfenômenos e poderes que se afastam da compreensão, desde o ciclodo dia e a noite até à doença e a morte, passando pela sorte doscultivos e o gado e pelo comportamento das forças atmosféricas.Esta religião da natureza, na que não há dogma nem existemdiferenças entre os deuses, os humanos, os animais, as plantas e amatéria inanimada, é uma doutrina de meditação, de conhecimentoda unidade universal, que vai unida inseparavelmente à totalaceitação da ordem reinante, à assunção da circunstância social efamiliar.

O Shintô proclama a necessidade da pureza e a exigência da sinceridade. Apureza supõe a eliminação da contaminação pelo sangue, pela morte, pelosalimentos impuros e se consegue através dos ritos purificadores do imi(abstinência), o misogi (banho frio) e o harai (o rito oficiado), que alcança oseu máximo nas festas semestrais do 30 de Junho e do 31 de Dezembro,nos dias do O-harae (Grande purificação). O Shintô (Shin, deuses; tô,caminho = caminho de deuses) foi colhido numa coleção de textos(shinten); finalmente no século VII, numa versão depurada que setransmitiu oralmente até princípios do VIII, quando a imperatriz Gemmyofez com que Yasumaro recolhesse da memória de Hieda o conteúdo dorelato e o escrevesse, dando ao conjunto o nome de Kojiki (Crônica dostempos antigos) em três livros, mais uma história nacional, o Nihongi, ouNihom Shoki (Crônica do Japão). Esta doutrina sintoísta renovada, porpropugnar a obediência à ordem, ao imperador, terminou por ser a doutrinaoficial e a inimiga do budismo no período de recuperação da autoridadeimperial, de 1868 a 1872, passando depois a ser uma instituição à qual sedeve uma observação e um respeito mais nacionalista do que religioso.

O KOJIKI E O NIHONGI

No primeiro livro do Kojiki estão contidos todos os relatos mitológicos; nosegundo livro conta-se a história legendária do Japão, do século VII aoséculo IV (aC); enquanto no último livro, a Crônica se torna mais histórica,por proximidade temporária, abrangendo do século IV aos princípios do VII.Estes livros, escritos por Yasumaro num japonês arcaico, hoje em dia sãode difícil leitura; não é o caso do Hihomgi, que foi redigido no idiomaimportado pelos nobres, em chinês, e que se trata de um texto muito maisextenso e elaborado ao gosto da corte, no qual também se misturam asorigens legendárias e os mitos ancestrais com as páginas da história real,mas apartando-se bastante do Kojiki nas suas exposições mitológicas. OKojiki expõe a criação simultânea do Universo e de três divindadesinvisíveis: Centro do céu, Augusto Criador e Divino Criador. No período deformação do nosso mundo, sobre a sua massa ainda deforme, brotaramoutras divindades invisíveis celestes, nascidas do primeiro rebento de junco.Depois, da terra ainda quente, começaram as sete gerações da era divinacom o Eterno da Terra e o Rebento Fértil, que se complementaram mais

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tarde com a aparição das divindades irmãs, masculina e feminina do barro eda areia, da semente e da vida, os irmãos e senhores do Grande Palácio, osirmãos divinos da adoração e os irmãos precursores Izanagi e Izanami, ospais de Hiru-Ko. Estes deuses não o são propriamente, pois o Shintô nãoreclama para eles nenhum culto, mas são a explicação mítica a umas fasessupostas de formação do Universo, até chegar à aparição dos primeirospovoadores legendários da terra, aos irmãos Izanagi e Izanami.

IZANAGI E IZANAMI

Izanagi e Izanami desceram um dia à superfície da terra, construindoprimeiro uma coluna celestial e, ao seu redor, um palácio. Depoiscomeçaram a girar no sentido oposto em torno a essa coluna até seencontrarem, mas Izanami disse palavras de amor ao seu irmão emprimeiro lugar, enquanto giravam ao seu redor. Depois, já unidos osirmãos, engendraram um filho, HiruKo, demasiado fraco, que foiabandonado nas águas numa balsa; depois tiveram uma filha que tambémnão os satisfez e que converteram na ilha Awa, que está na costa de Osaka.Pouco contentes com aqueles dois primeiros filhos, foram ao Céu paraconsultar as divindades, que concluíram que aqueles nascimentos tinhamsido nefastos porque Izanami tinha falado antes de que o homem. De novona terra, repetindo a cerimônia corretamente, dado que Izanagi foi agora oprimeiro em dizer as palavras de amor, tiveram os catorze filhos queformaram as oito grandes ilhas e as seis menores do Japão. Após ter paridoas catorze ilhas, deram vida às dez divindades: O-wata-tsumi, deus do mar;ao casal Hayaaki-tsu-iko e Hayaaki- Tsu-hime, deuses dos rios pais dos oitodeuses da água; Shima-tsu-hiko, deus do vento; Kukuno-chi, deus dasárvores; O-yama-tsumi, deus das montanhas, e Kayanu-hime, deusa dosplanícies, pais doutros oito deuses da terra; o deus Ameno-tori-bune; O-getsu-hime, deusa dos alimentos; Kagu-tsuchi, deus do fogo, o último dosdez filhos divinos. Mas o parto de Kagu-tsuchi foi horrível para Izanami,que, devorada pelo fogo, caiu numa terrível dor, retorcendo-se entrevômitos, excrementos e urina, dos quais nasceram o deus e a deusa monte-metálico, o deus e a deusa do barro, o deus da colheita e a deusa serpentede água.

A IRA DE IZANAGI

Ao ver morrer a sua amada Izanami daquela terrível maneira, o maridodivino começou a chorar desconsolado, mas as lágrimas do viúvo Izanagiainda serviriam para dar vida à deusa do pranto. Passado aquele primeiromomento de desconsolo, Izanagi encolerizou-se com o filho que foi causada morte de Izanami e cortou-lhe a cabeça com a sua espada, matando-oimediatamente, mas fazendo também o duplo prodígio de que o seu sanguedesse vida a outras oito novas divindades, do fogo, das rochas, trituradordas raízes, triturador das rochas, da chuva, do sol, do vento, dos vales, eque dos restos mortais de Kagutsuchi se fizessem nascer outras tantasnovas divindades das montanhas, protetoras de caminhos, de ladeiras, dorefúgio, da escuridão, dos bosques, etc. Mas tudo isso importava bempouco ao choroso Izanagi, que queria recuperar a sua perdida esposa aopreço que fosse; de maneira que decidiu descer aos infernos e lá encontrou-a; mas também soube pelas suas palavras que a infeliz Izanami já tinha

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comido da mesa do país dos mortos e que, portanto, nunca podiaabandonar aquele recinto infausto, se não fosse com a especial licença dodeus do inferno. Com aquela promessa, Izanami desapareceu no negrointerior. Passava o tempo e a amada não regressava, de maneira queIzanagi tomou um dente de um pente, ateou-lhe fogo, como se fosse umateia, e foi pelo mesmo caminho por onde tinha visto passar antes aIzanami. Lá a encontrou, entre vermes que a devoravam e que não eramsenão os oito deuses do trovão que tinham nascido da decomposição do seucadáver. Izanagi ficou ainda mais aterrado ao ouvir a investida que lhelançava Izanami, por tê-la humilhado com aquela contemplação do seuvergonhoso estado.

A FUGA DO INFERNO

Ao grito da indignada Izanami acudiram os espíritos infernais, mas o astutoIzanagi lançou a tempo a sua coroa ao chão e esta se transformoumilagrosamente num cacho de saborosas uvas,que os espíritos pararampara apanhar; depois voltaram a correr atrás dele, mas Izanagi lançou osdentes que restavam no seu pente, que agora se converteram em brotos debambu tenro, e os espíritos voltaram a parar, apanhando-os com gula; masos rebentos acabaram-se e os espíritos seguiram atrás de Izanagi, agoraacompanhados pelos oito deuses do trovão, comandados por uma horda demil e quinhentos demônios que a humilhada Izanami tinha mandado emauxílio dos estúpidos espíritos. Izanagi, sem deixar de fugir, brandia aespada às suas costas, matando quem se aproximava demasiado, e assimprosseguiu, até chegar a Izumo, onde está a boca do inferno, onde pôdeapanhar três pêssegos maduros que arrojou contra os seus muitosperseguidores, conseguindo pô-los a todos em fuga. Agradecido, Izanagiparou, tomou fôlego e falou aos pêssegos que lhe tinham salvo a vida:como ajudaram a Izanagi, ajudem os humanos do Japão quandonecessitarem de auxílio. Nesse momento, os pêssegos ficaram convertidosem frutos divinos. Mas a própria Izanami tinha ficado tão furiosa ao ver quetodos lhe falhavam que ela própria saiu para acabar com o que foi seuamado marido na vida, porque agora já não era a esposa, senão que setinha transformado na maior deusa do inferno. Mas o veloz Izanagi soubefechar a entrada do inferno com uma enorme rocha, mas não totalmente,de modo que, quando chegou Izanami, ela ainda pôde ameaçá-lo,anunciando que se vingaria dele, matando num só dia mil humanos; masIzanagi não se alterou perante as tremendas palavras de Izanami erespondeu-lhe que se ela matasse a mil homens, ele faria nascer outros mile quinhentos e tapou de todo a entrada com a divina rocha, a que impede aentrada à casa dos mortos.

IZANAGI DÁ VIDA A NOVOS DEUSES

Terminada a trágica aventura do mundo subterrâneo, Izanagi decidiu queera hora de purificar-se após o seu contato com os mortos e foi ao rio Voto,em Tachibana, para submergir-se nas suas águas. De cada peça de roupaque tirou, nasceu um novo deus, até completar uma dúzia de divindadestão diversas como a do final do caminho, dos caminhantes, dos doentes,das dúvidas, da saciedade, das praias, do oceano, do alto mar, da ressaca,das costas longínquas, etc. Mas também, ao banhar-se nas águas do Voto,

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a poluição do reino dos mortos se transformou em duas divindadesnegativas, a dos oitenta males e a dos grandes males, às quais Izanagirespondeu com a criação de dois deuses benignos que reparam e purificam,à parte doutros seis deuses encarregados de velar pelo fundo, a partemédia e a superfície do mar. Mas os deuses mais importantes ainda nãotinham sido criados nas suas abluções, dado que foi ao lavar o olhoesquerdo quando deu lugar a Amaterasu, a deusa do Sol; ao fazer a mesmacoisa com o olho direito, deu vida ao deus da Lua, Suki-yomi-no-Kimoto; aolavar o nariz, engendrou o deus Take-haya-Susa-no-o, o homem porexcelência. Orgulhoso dos seus filhos partenogenéticos, Izanagiencomendou-lhes o governo do Céu, da noite e do mar, respectivamente,embora o recém-nascido Susa-no-o tivesse começado a chorar, porque nãoqueria o reino do mar senão a região subterrânea onde estava a suadefunta mãe. Izanagi encolerizou-se ao ouvir tal pretensão e pô-loimediatamente fora do seu lado, mas o perplexo Susa-no-o pediu ao seu paia graça de poder elevar-se ao Céu, para ver, antes de partir para o inferno,a sua boa irmã Amaterasu. Concedida a licença, Susa-no-o sulcou os céusatrás da sua irmã, entre os tremendos sons duma Terra que se estremeciaem tempestades e erupções e que se sacudia em terremotos.

AMATERASU E SUSA-NO-O

Ao ouvir aqueles horríveis sons que também subiam ao Céu, Amaterasupreparou-se com o seu arco tenso e mil flechas no seu saco, para recebercomo merecia aquela desconhecida visita que se anunciava de tal maneira.Quando viu que o temido visitante era o seu irmão, a deusa desconfiou dosmotivos que o levavam ao seu reino, pois receava que ele quisesseapoderar-se dele. Susa-no-o fez protestas da sua boa vontade e explicouque a única coisa que desejava era chegar às profundidades da terra, paraver a sua defunta mãe, e que só queria despedir-se da sua irmã queridaantes de partir. Após aquelas palavras, os irmãos fizeram um juramento e,dos troços da espada de Susa-no-o, Amaterasu forjou três deusas; por suaparte, Susa-no-o tomou os ganchos das tranças de Amaterasu e com elesdeu forma a cinco deuses. Foi assim como nasceram os oito deusesfundadores das grandes famílias, sendo a imperial uma delas, precisamentea única que saiu do alfinete da trança esquerda de Amaterasu. Mas Susa-no-o sentiu-se embriagado pelo orgulho de ter sido capaz de criar maisdeuses do que a irmã, entregando-se a uma louca destruição do reino deAmaterasu, até ao ponto de que ela correu a esconder-se atemorizada,refugiando-se numa caverna do céu, tampando a entrada com uma granderocha. Ao desaparecer o Sol, o Japão escureceu e os deuses celestesalarmaram-se. De maneira que as oitenta mil divindades se reuniram emassembléia, tentando solucionar a espantosa escuridão, e encontraram aforma de fazer sair Amaterasu da cova, dispondo que a deusaAmanouzume, divindade do baile, se pusesse a dançar estrondosamente,enquanto todos os deuses falavam a gritos e riam alvoroçados, Amaterasu,do seu esconderijo, não pôde evitar ouvir a alegra daquela festa e quissaber a causa de tal algaravia. Então disseram-lhe que o faziam porquetinham encontrado uma nova deusa, melhor do que qualquer uma dasconhecidas. Curiosa, Amaterasu assomou-se para ver para essemaravilhoso ser, ficando deslumbrada pelo seu reflexo num espelho que osseus companheiros divinos tinham orientado para a entrada da cova. Então

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Tajikarao, deus da força, agarrou-a pelo braço enquanto Futotama colocavana entrada da cova a rede de corda de palha de arroz, o shimenawa quetinha tecido previsoramente, para impedir qualquer tentativa de regresso aorefúgio. Com Amaterasu fora da cova rochosa do céu, voltou a luz ao Japãoe a paz aos deuses.

SUSA-NO-O NA TERRA

Paralelamente ao resgate de Amaterasu, a assembléia dos oitenta mildeuses decidiu dar um castigo exemplar ao blasfemo Susa-no-o, arrojando-o do céu, não sem antes lhe ter cortado cabelo e unhas rentes. O castigadodesceu à terra, caindo no monte Torikami, em Izumo, onde se encontra aporta do inferno. Depois pôs-se a caminho para um povoado e encontrou-secom que uma casal de anciãos, que estava com uma filha de curta idade,chorava desconsoladamente. Susa-no-o perguntou a razão daquela pena eos anciãos lhe explicaram que eles, Ashinazuchi e Tenazuchi, sofriamdesconsoladamente porque essa menina era a última com vida de oitoirmãs; que as sete anteriores tinham sido devoradas pelo dragão de Koshiano após ano e que agora voltaria o dragão vermelho das oito cabeças e asoito caudas, do tamanho de oito montanhas e oito vales, para exigir aoitava e última das suas filhas. O arrependido Susa-no-o sentiu piedade poraqueles anciãos e pensou um plano. De maneira que lhes pediu a meninapor esposa, afirmando que ele era nada menos do que o recém-chegadoceleste irmão de Amaterasu. Os pais consentiram em dar-lhe a filha poresposa, vendo depois como o deus transformava a menina em pente e aenredava no seu penteado. Pediu sake em quantidade ao casal, ao mesmotempo que ele fazia uma cerca ao redor dos poços onde se colocariam oitobarris desse licor. Chegado o dragão, e atraído pelo cheiro do sake, foidiretamente para a cerca, bebendo-o todo de um único gole. Naturalmente,o dragão vermelho ficou adormecido pela embriaguez e Susa-no-o só teveque aproximar-se do inerte monstro e cortar as suas oito cabeças com oitocortes da sua espada; depois, ao cortar a cauda, a sua espada tropeçoucom algo, que era outra espada de grande fio. Esse arma magnífica, aespada Kusanagi, foi a oferenda do vencedor à sua irmã Amaterasu; é umadas três jóias imperiais e é venerada no templo de Atsuta, após ter sidouma santa relíquia no templo de Ise; as outras duas jóias imperiais, oespelho Yata-no-kagami que deslumbrou Amaterasu e o invisível colarYasakani-no- magatama que luzia Amaterasu quando foi visitada por Susa-no-o, estão no templo de Ise, um, e no palácio imperial, o outro, ondeninguém, nem os sacerdotes que as cuidam, as pode ver fora dos seusenvoltórios, a não ser que queira perder a sua vida.

A DESCENDÊNCIA DE SUSA-NO-O

Após derrotar o dragão vermelho, Susa-no-o instalou-se em Izumo,encontrando em Suga o sítio ideal para estabelecer-se e fundar a suafamília. Uma vez construído o palácio, Susa-no-o mandou vir o seu sogro, oancião Ashinazuchi, filho de O-yama-tsumi, deus das montanhasengendrado por Izanagi e Izanami. Com a sua jovem esposa teve umhomem, Yashima; depois tomou como nova esposa uma irmã do seu sogro,com quem teve O-toshi e Uka-no-Mitama; enquanto Yashima casava comuma filha do seu avô O-yama-tsumi e continuava a estirpe do seu pai que

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chegaria, na sétima geração, a O-Kuni-nushi e aos seus oitenta malvadosirmãos, de quem se afirma que foi quem conseguiu a mão da desejadaprincesa Yakami de Inava pela sua bondade, dado que, embora os seusoitenta irmãos pretendessem casar com ela, Yakami deixou bem claro quesó casaria com O-kuni-nushi. Os malvados trataram de tirar o rival do meioabrasando-o com uma pedra ao rubro, esmagando-o entre duas metades deuma árvore, disparando-lhe oitenta flechas, mas cada vez que morria, osdeuses lhe outorgavam nova vida. E assim continuavam as persecuções,até que O-Kuni-nushi se refugiou no inferno, no reino do seu antepassadoSusa-no-o, seguindo o conselho da sua mãe, que julgava que o seuantepassado o ajudaria a escapar daquela interminável persecução. Masnão foi assim, dado que foi no reino do inferno onde o jovem esteve emmaior perigo, estando a pontos de ser morto em várias ocasiões; a primeiravez pelas serpentes, mas a filha de Susa-no-o, a princesa Suseri, tambémapaixonada pelo atribulado O-Kuni-nushi, soube livrá-lo do seu veneno;depois Susa-no-o, que só demonstrava os seus piores sentimentos paracom o jovem, tentou matá-lo entre escorpiões, vespas, escolopendras, masSuseri sempre o protegia do mortal veneno com um amuleto apropriado.Quando terminaram as intrigas de Susa-no-o, O-Kuni-nushi tomou asarmas sagradas do seu antepassado e lançou-se triunfal atrás dos seusoitenta irmãos. Vencedor e dono da terra de Izumo, desposou a suasalvadora Suseri, não sem antes ter tido um filho com a amada princesaYakami que, depois de concebê-lo e temendo os ciúmes da poderosa Suseri,deixou o filho de ambos nas terras de Izumo e regressou sozinha para o seupaís.

A ESTIRPE IMPERIAL DE AMATERASU

Da deusa e virgem Amaterasu nasceu um filho, Osi-ho-mimi, a quem adeusa do Sol pediu que descesse à terra para governar o Japão, tomandopara si o reino que tinha o descendente do seu irmão Susa-no-o, O-Kuni-nushi e que pensava passar para o seu filho e sucessor Kotosiro-nushi. MasOsi-ho-mimi não cumpriu a ordem divina e justificou-se perante a mãedizendo-lhe que o filho que ele tinha tido, Ninigi, no seu casamento com afilha de Takamimusubi, devia ser o precursor da estirpe imperial japonesa.Aceitou Amaterasu a troca e Ninigi foi enviado para o Japão, na companhiade cinco deuses e com as três jóias imperiais que lhe serviriam para adorara deusa do Sol em qualquer momento e como prova do seu poder divino,aterrando na corte celestial sobre o país dos juncos. Depois se dividiram,indo os cinco deuses pelo seu lado, para estabelecer o culto do Shintô, eNinigi pelo dele, à procura da donzela que teria que ser sua esposa.Encontrou em Kasasa a muito bela princesa Kono-hana-Sukuya-hime e fê-lasua esposa; mas, na sua primeira noite, a princesa anunciou que jáesperava o nascimento de um filho; Ninigi não pôde aceitar que aquele filhopudesse ser seu e respondeu-lhe que devia ser filho de um ser da terra;perante as suas dúvidas, a princesa Kono-hana-Sukuya-hime mandouconstruir uma cabana, depois encerrou-se nela até que chegaram as doresdo parto; então, queimou a cabana, jurando que se o filho que vinha nãoera filho de Ninigi, pedia que o mesmo fogo matasse esse menino, dandoassim prova da sua virtude. E a princesa Sukuya-hime deu felizmente à luz,não a uma, mas três criaturas, três belos homens, que receberam, comorecordatório da honestidade da mãe, o nome do fogo probatório (ho),

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chamando-se: Ho-deri (fogo brilhante), Ho-suseri (fogo ardente) e Ho-ho-demi (fogo de brasas).

AVENTURAS E DESVENTURAS DE HO-HO-DEMI

O terceiro filho, Ho-ho-demi, pediu ao seu primeiro irmão, Ho-deri, o anzolprodigioso que ele usava para pescar, e Ho-deri emprestou-lho mas comtão pouca sorte que não pescou nada e, além disso, perdeu o anzol. Deregresso a casa, pediu humildemente perdão a Ho-deri e quis recompensá-lo pela perda sofrida, entregando-lhe em troca a sua espada. Mas Ho-derirejeitou o seu oferecimento e Ho-ho-demi foi à beira do mar, pesaroso porter sido o culpado daquele sarilho. Ouvindo o seu lamento, o deus Shiko-zuchi aproximou-se para consolá-o, recomendando-lhe que fosse com O-wata-tsumi, deus do mar, pois ninguém melhor do que ele podia resolver oseu problema. Na morada de O-wata-tsumi, Ho-ho-demi apresentou-se aodeus do mar, mas conheceu então a sua bela filha, Toyo-Tama-bime, porquem ficou imediatamente prendado, pois se grande era a sua beleza,maior era a sua gentileza e doçura. Portanto, o jovem filho de Ninigiapresentou-se como tal e pediu ao rei do mar a mão da sua filha e casoucom ela. Só ao cabo dos anos, Ho-ho-demi recordou que a sua presençanessa corte marinha foi motivada pelo desejo de recuperar o anzol do seuirmão Ho-deri e expôs tal desejo ao seu sogro. Pouco demorou O-wata-tsumi em encontrá-lo e menos ainda em aconselhar-lhe que fosse muitoprudente com o seu irmão ao devolver-lhe o anzol, recomendando-lhe que,ao entregá-lo, com a outra mão atrás do corpo, apontasse que se tratavade um anzol desonrado. Teria então que estar atento às palavras do seuirmão, pois exprimiria uma série de desejos. Se ele quer cultivar as terrasaltas, estabelece-te tu nas baixas; se quer fazê-lo nas baixas, fá-lo tu nasaltas; eu, senhor das águas, manda-las-ei para as tuas terras. Para tuaproteção dou-te uma concha de vidro e outra de madrepérola para governaras ondas. Se Ho-deri quiser o teu mal, afoga-o; se Ho-deri mostrar o seuarrependimento, livra-o da morte. Fez Ho-ho-demi o que o seu sogro lhetinha ensinado e em breve a fortuna estava a seu lado, tanto que Ho-deritentou matá-lo, mas as ondas aplacaram a sua fúria e Ho-ho-demi ficouamo do território; chegou ao seu lado a sua esposa Toyo-Tama-bime, queesperava um filho, pedindo um lugar oculto para o parto que seaproximava. Quando estava dando à luz, Ho-ho-demi teve a indelicadeza deesquecer o desejo da sua esposa, aproximando-se para a olhar no seuretiro. Então viu com espanto que a princesa filha do deus do mar era,nesse momento do parto, um tubarão. Pariu a princesa, mas tendoobservado que o seu marido a tinha visto transformada daquela maneira,fugiu humilhada do seu lado, deixando a criatura com o seu pai e enviandodo reino do mar a sua irmã mais nova, Tama-Yori-bime para que o cuidassepor ela. O menino casou mais tarde com a sua mãe adotiva, tendo quatrofilhos com ela. O menor, Toyo-mike-nu, quando se converteu num homem,deixou a terra do pai e estabeleceu-se em Yamato, convertendo-se noprimeiro imperador do Japão, sendo conhecido para a posteridade com onome de Jimmu-tennô. Após esta descrição, termina a mitologia e dá inícioà história legendária no segundo livro do Kojiki.

OUTRAS DIVINDADES MENORES

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O-Kuni-nushi, embora perdesse o trono do Japão, ficou convertido em deusda Lua, depois desempenhou a figura do deus Daikoku, a divindade quepremiava o amor os pais, mas que agora é deus da riqueza, sentado sobreuma boa quantidade de arroz. Também O-Kuni-nushi,como deus doinvisível,se ocupa de vigiar que não possam vencer as intrigas e aperversidade. O seu filho, Kotosiro-nushi, perdeu o trono do Japão mastambém foi compensado com outras honras, dado que foi assimilado aEbisu, deus do comércio, com um peixe na mão ou vestido de pescador.Daikoku e Ebisu são dois dos sete deuses da felicidade, novas divindadescom misturadas origens budistas, taoístas e populares. Junto deles estáHotei, na origem um santo bonzo chinês. O variável Susa-no-o, agora umdeus dos meninos, Jurôjin e Fukurokuju vêm do panteão taoísta, e sãotutelares da caridade e da devoção. Da Índia chegou o guerreiro Bishamome a única deusa, Bentem, divindade das belas artes e padroeira dos artistas.Entretanto, o fundador da família de Okuni-nushi é agora um bom deus doamor entre esposos. Parece que, realmente, esta mudança de culto foicausado pela vitória das armas em Izumo, os imigrantes do sul, impondo asua nova divindade solar de Amaterasu e a gente de Kyushu tendo queabandonar o culto de Susa-no-o.Seguramente, Amaterasu, paraestabelecer-se entre os fiéis de Kyushu, também teve que enfrentar outradeusa agrícola anterior, a da alimentação, Uke-mochi-no-kano, pois seconta que enviou uma divindade lunar, Suki-yomi, de visita, mas o maucomportamento de Uke-mochi na mesa fez com que a divindade lunar nãotivesse mais remédio que matá-lo.

O BUDISMO NO JAPÃO

O Butsudô, o caminho de Buda, entrou oficialmente no Japão no século VI,quando no ano 538, Songmyong, rei tributário do senhorio japonês dePaekche ou Kudara, Coréia, fez chegar à corte do imperador Kimei umaestátua de Buda e os livros onde se narrava a santa vida de Sakyamuni.Nessa primeira época Asuka de aceitação da religião vinda da grande China,os ídolos do budismo se uniram tanto aos kami do sintoísmo que a novaimaginaria terminou também por confundir-se num culto híbrido, pondo-seem andamento uma nova atitude litúrgica, centrada na incorporação àliturgia dos heróis legendários e dos antepassados. Os encarregados de darforma às imagens do Buda japonês, os busshi, se ocuparam de criar umMirok (Mitreya) local; de ajaponezar os Quatro Reis Celestes chinesesencarregados de velar pela lei budista; a rainha Maia, mãe do Buddha; dasrepresentações da Tríade de Amida (Buda da Luz, Amitabha); da Tríade deYakushi (Buda da Medicina, Bhaisajyaguru); das múltiplas reproduçõesdomésticas em relevo dos oshi-dashi-butsu; das figuras cerâmicas dos DezDiscípulos e as oito classes de Divindades; as imagens dos dois Rikishi; dosdoze Generais Guardas; os Buda de Mil Braços, ou de Onze cabeças. Masjunto destas devoções também estão os imperadores sacraliza dos: Jimmu-tennô, o primeiro; Sujin-tennô, o oitavo, que mandou construir o santuáriode Ise para venerar nele as jóias imperiais; o grande herói imperial Yamato-takeru, filho do décimo imperador; Ojintennô, conhecido como Hachiman,décimo-quinto imperador; Tenjin, divindade humana da escritura; os gêniostengu, os sennin, os shôjo, os oni; os animais míticos raiju, baku, nuye,ema, namazu, kappa, kitsune, gami-inu, koma-inu, otsukai, etc., atécompletar o quadro mais amplo de seres divinos e divinizados.

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O ZEN

Finalmente, uma das escolas budistas deu lugar a uma doutrina plenamentejaponesa (o zen) a partir de uma idéia chinesa (o chan) que procura aidentificação do indivíduo com o espírito universal. Mas o zen chegou atomar forma própria nas suas diversas vertentes ou seitas, nas quaisprevalecia quer a experiência mística, quer a reflexão. O zen, a meditaçãopura, aproximou-se muito mais do que nenhuma outra forma do budismoao espírito do seu fundador, embora também se diferenciasse do seutratamento ascético, de maneira que converteu-se em breve numa formade tentar encontrar, só pela pretendida intuição, o controlo da matéria e omovimento. O zen trata de alcançar o conhecimento dos mistérios atravésde um misticismo libertador, de uma revelação ou encontro com o mistério,de uma meditação sem lógica, mas com fé, que é simplesmente a fuga doracionalismo e o abandono de qualquer tentativa de explicação teológica oumitológica do Universo. Por essa simplicidade da dedicação a uma únicaidéia, o exercício individual da introspecção, do silêncio e a falta denecessidade de explicar-se ou explicar aos outros, o zen arraigourapidamente entre os guerreiros, entre os samurai, convertendo-serapidamente numa religião que era só um instrumento, um meioauxiliar,que tratava de levar os seus fiéis ao triunfo individual. O zenconcretizou-se numa série de práticas que tinha que realizar numa sucessãoinseparável, regras de compreensão muito fácil e sem exigênciasintelectuais, para tentar alcançar a sua meta em quatro passagensconsecutivas: situar-se numa única idéia, fazendo possível a concentraçãoespiritual; fazer a reflexão na paz do espírito; conhecer o prazer daserenidade; depurar a concentração de qualquer sentimento, para conseguiro objetivo final da serenidade perfeita e pura, alcançando o indivíduo ocontrole instantâneo e total do poder cósmico, a unidade com a realidadeuniversal.