monografia_ellenfernandanaraujo(1)

42
UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E FILOSOFIA CURSO DE CIÊNCIAS SOCIAIS Ellen Fernanda Natalino Araujo Experiências (d)e um conceito: pensando a noção de cultura a partir da mobilidade acadêmica internacional Niterói 2014

Upload: ellen-f-gusa

Post on 14-May-2017

215 views

Category:

Documents


1 download

TRANSCRIPT

Page 1: Monografia_EllenFernandaNAraujo(1)

UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E FILOSOFIA

CURSO DE CIÊNCIAS SOCIAIS

Ellen Fernanda Natalino Araujo

Experiências (d)e um conceito: pensando a noção de cultura a partir da mobilidade

acadêmica internacional

Niterói

2014

Page 2: Monografia_EllenFernandaNAraujo(1)

Ellen Fernanda Natalino Araujo

Experiências (d)e um conceito: pensando a noção de cultura a partir da mobilidade acadêmica

internacional

Monografia apresentada ao

curso de Ciências Sociais da

Universidade Federal

Fluminense como requisito

parcial para obtenção do Grau

de Bacharel em Ciências

Sociais.

Orientadora Professora Dra. Alessandra Siqueira Barreto

Niterói

2014

Page 3: Monografia_EllenFernandaNAraujo(1)

Ellen Fernanda Natalino Araujo

Experiências (d)e um conceito: pensando a noção de cultura a partir da mobilidade acadêmica

internacional

Monografia apresentada ao

curso de Ciências Sociais da

Universidade Federal

Fluminense como requisito

parcial para obtenção do Grau

de Bacharel em Ciências

Sociais.

BANCA EXAMINADORA

Profa. Dra. Alessandra Siqueira Barreto – Orientadora

Universidade Federal Fluminense

Profa. Dra. Ana Cláudia Cruz da Silva

Universidade Federal Fluminense

Profa. Dra. Renata de Sá Gonçalves

Universidade Federal Fluminense

Niterói

2014

Page 4: Monografia_EllenFernandaNAraujo(1)

AGRADECIMENTOS

Aos meus pais que dedicaram suas vidas a constituírem a minha com toda a saúde que é o amor.

Aos meus amigos de hoje e outrora. Ao Ruan, pela crença compartilhada no caminho

antropológico, pela companhia diária nas aulas, nas cantareiras e nos sonhos. Por conjugar a minha

primeira pessoa, ao plural. O nós desse texto, somos, várias vezes, eu e ele. À Renata pelas

gentilezas, por expandir meus sorrisos, e minha fé.

Aos meus colegas da Receita Federal, Zezé, Gabriel, Camilla e David, que são verdadeiros amigos.

Por fazerem do trabalho um detalhe prazeroso e divertido em minha vida, por escutarem meus

estranhos problemas de antropologia e por estarem sempre presentes mesmo quando meus

pensamentos e passos precisam voar para longe dali.

Às minhas professoras e professores por fazerem da generosidade um ofício e conservarem-se na

crença diária que sempre é preciso aprender. Em especial, às professoras Ana Cláudia Cruz da Silva

e Renata de Sá Gonçalves que gentilmente se dispuseram a avaliar e contribuir com esse trabalho.

Ao Tarlile, pelo amor que cruza todas as fronteiras, as dos espaços, dos tempos, das diferenças, dos

eus. Por ser meu companheiro e minha perspectiva.

E por fim, àquela pessoa, que orienta e inspira não apenas esse trabalho, mas todo um caminho no

descobrimento e no enfrentamento do que é, e pode ser, a minha vida, a Professora Alessandra

Barreto. Por me ensinar que antropologia não é apenas um corpus teórico, mas um princípio no

encontro com o outro. De perto, eu vi a sua prática diária e incessante do respeito e da compreensão

distribuída a todos e qualquer um de nós, alargando nossas perspectivas do que é ser humano. Por

me abrigar na delicadeza de seus olhos, e me acolher na firmeza de suas palavras de perseverança.

Por escutar todo o meu silêncio.

Page 5: Monografia_EllenFernandaNAraujo(1)

RESUMO:

Através do delineamento de nossas experiências no curso de Ciências Sociais e da reconstrução dos

caminhos que percorremos no aprendizado do conceito de cultura, esse escrito-dito monográfico é a

face pública de um esforço em busca de melhor compreensão de tal conceito, pensando-o a partir de

uma experiência específica: a da mobilidade acadêmica internacional de estudantes de graduação.

Tal exercício de colocar em perspectiva dois deslocamentos – o do conceito e o das nossas

interlocutoras – nos permitiu ver como a cultura se objetifica e aparece nesses movimentos, pois é

algo que se inventa, e nós da a ver, mediante as diferenças.

PALAVRAS-CHAVE: cultura, mobilidade acadêmica, experiências, invenção.

Page 6: Monografia_EllenFernandaNAraujo(1)

Sumário

Introdução .......................................................................................................................................................... 8

.1~ da forma desse escrito-dito monográfico ~ ............................................................................................. 8

.2 ~ da natureza daquilo que nos é dado produzir ~ ...................................................................................... 9

.3 ~ os antecedentes de nosso tema específico ~ ......................................................................................... 10

.4 ~ construindo um aterro ~ ....................................................................................................................... 11

2. As experiências e as trajetórias do conceito ................................................................................................ 14

.1~ nossas experiências com o conceito ~ ................................................................................................... 14

.2 ~ as trajetórias do conceito ~ ................................................................................................................... 16

.3~ a retomada de Roy Wagner ~ ................................................................................................................ 23

3. As experiências e as trajetórias de nossas interlocutoras ............................................................................. 26

.1 ~ Diane ~ ................................................................................................................................................. 26

.2 ~ Julie ~ ................................................................................................................................................... 28

.3 ~ Marcella ~ ............................................................................................................................................. 29

.4 ~ Nicolla ~ ............................................................................................................................................... 31

.5 ~Teodora ~ .............................................................................................................................................. 33

4. Elas e nós, antropólogas ou inventoras de cultura ....................................................................................... 35

5. Ponto final e de partida ................................................................................................................................ 39

6. Referências .................................................................................................................................................. 41

Page 7: Monografia_EllenFernandaNAraujo(1)

qualquer traço linha ponto de fuga

um buraco de agulha ou de telha

onde chova

qualquer perna braço pedra passo

parte de um pedaço que se mova

qualquer

qualquer fresta furo vão de muro

fenda boca onde não se caiba

qualquer vento nuvem flor que se imagine além de onde o céu acaba

qualquer carne alcatra quilo aquilo sim e por que não?

qualquer migalha lasca naco grão molécula de pão

qualquer dobra nesga rasgo risco

onde a prega a ruga o vinco da pele

apareça

qualquer lapso abalo curto-circuito

qualquer susto que não se mereça

qualquer curva de qualquer destino que desfaça o curso de qualquer certeza

qualquer coisa

qualquer coisa que não fique ilesa

qualquer coisa

qualquer coisa que não fixe

Qualquer: Arnaldo Antunes, Hélder Gonçalves e Manuela Azevedo

– tocava essa canção quando do meu encontro com a antropologia

Page 8: Monografia_EllenFernandaNAraujo(1)

8

Introdução

.1~ da forma desse escrito-dito monográfico ~

Tal esforço monográfico, escrito, assim, ao final de uma trajetória, precisa lidar com a

impropriedade de sua forma. É das circunstâncias que as palavras arranjem-se aqui como em uma

linha, que os substantivos corram na direção dos verbos, objetos e complementos deitando-se ao

papel um após o outro, acomodados na estrutura do texto, do texto acadêmico. Desse assentamento

textual, toda ordem parece emergir, e tudo se passa como se o caminho fosse reto, certo, único. Se

evoluíssemos da “arte da cerâmica” “ao processo de fundir minério de ferro”, no esquema de

Morgan (1877). Ora, os caminhos das culturas não são assim, desde Boas (1938) sabemos.

Tampouco podem ser os dos indivíduos.

Comecemos, então, por lidar com as propriedades da forma pela qual propomos tecer esse

escrito-dito monográfico. Mesmo que essa composição nos pese enquanto requisito obrigatório para

a aquisição do grau de bacharel em Ciências Sociais, optamos por encará-la em seu potencial

oportuno: que esse possa ser o momento e a superfície para juntarmos os fios que se emendaram na

tessitura de nossa formação, produzindo um arremate provisório na trajetória. A proposta, portanto,

é que esse texto-tecido verse, sim, acerca de um tema de estudo específico, mas a esperança é que

suas palavras também possam forjar alguma totalidade do que é e foi nossa graduação.

Colocada de tal maneira nossa ambição, é preciso afirmar que as referências precisarão ser

mais que bibliográficas. Se todas as texturas são para nós matéria-prima, não só o que foi lido

ganhará suas aspas aqui, mas também aquilo que foi ouvido e visto. Junto das teorias aprendidas

nos livros e trechos de livros que fomos lendo por entre os períodos, e dos dados etnográficos que

buscamos, tentaremos trazer também instantes, imagens e vozes cujo único substrato é nossa

precária memória.

Tambiah (1985) - autor que lemos na ocasião de prestar um processo seletivo para o

mestrado em Antropologia Social, no ano passado – afirmou que a função dos rituais de magia,

descritos por B. Malinowski em Corel Gardens, realizados pelos trobriandeses antes do plantio do

inhame e da fabricação das canoas do Kula, servia menos a extravasar a ansiedade que precediam

tais eventos, como descrevia o argumento psicologizante do antropólogo polonês/britânico, e mais

enquanto um recurso técnico, estético e avaliativo das propriedades de suas atividades. De tais

Page 9: Monografia_EllenFernandaNAraujo(1)

9

recursos, prossegue Tambiah,(op. cit.) homens e mulheres ocidentais estariam alijados, uma vez que

o processo produtivo capitalista estanca suas partes e não permite reconhecê-las.

Levando em conta tal argumento, poderíamos dizer que nossa estratégia retórica inspira-se

sutilmente nesses rituais de magia trobriandeses. Nós que também estamos alijados dos meios de

fabricação de nosso “artesanato intelectual” (Mills,1975), na superação desse hiato, tentaremos

produzir um artefato que resguarde suas marcas criativas, seus sentidos, seus caminhos percorridos,

para poder enfrentar o problema do absoluto de toda síntese que é um texto e um título, guardando

no tempo os fragmentos mais fortuitos que os possibilitaram e condicionaram.

.2 ~ da natureza daquilo que nos é dado produzir ~

A tentativa enunciada de trazer ao texto, os elementos que geralmente ficam de fora,

reconstituindo seus rastros que não são impressos, serve-nos assim, para pensarmos as condições

como se realizou nossa graduação, e tenta lidar com uma pergunta incontornável: que tipo de

conhecimento nós podemos produzir? Essa se tornou uma questão que não podemos colocar de

lado, sobretudo depois que cursamos a disciplina “Antropologia e Texto Etnográfico”, com a

professora Tânia Neiva. Naquelas noites alternadas em que nos encontrávamos, estivemos

empenhados em um debate que, a princípio, se dava em torno das propriedades da escrita

antropológica e de suas estratégias de produção de autoridade. (Clifford, 1998) Logo, o

desenvolvimento dessa reflexão nos levou a outra fundamental. Se o texto é a maneira pela qual o

conhecimento antropológico se apresenta consequentemente é também a maneira como ele se

produz. Portanto, pensar acerca das propriedades da escrita era também pensar sobre a natureza do

conhecimento que podíamos e desejávamos produzir enquanto ‘cientistas sociais’.

Pela serenidade de uma voz, cujo tom parecia não carregar a gravidade daquilo que

anunciava, estivemos alguns meses, enredados com os problemas da “reconfiguração do

pensamento social”, tal como nos colocava Geertz (1997), destacando sua natureza de “paradoxo

vivo”, singular, mas, sobretudo, múltiplo. Nós que ensaiávamos os primeiros passos no ofício da

ciência social, ou da antropologia, precisávamos estar atentos, desde aquele momento, às mudanças

nos objetivos e nos recursos do empreendimento de estudar a vida coletiva, cultural e social. Pois

como prosseguia o argumento geertziano (op, cit.), do material sobre o qual nos debruçávamos –

“instituições, ações, imagens, elocuções, eventos, costumes” – não se poderia buscar mais a

derivação de leis e universais, uma vez que as explicações através de causas unívocas e seus efeitos

correspondentes perdiam sua força de medida do movimento que é a vida social. Não tínhamos

mais os problemas de outrora, os de “mecânica social, de fisiologia ou de taxonomia”, mas,

Page 10: Monografia_EllenFernandaNAraujo(1)

10

concluía-se, ainda tínhamos problemas. Aceitando essa perspectiva de Geertz (op. cit.), a

multiplicidade que sempre foi da vida e dos homens, (a qual durante muito tempo se ignorou ou se

reprimiu, se temeu ou se negou) se impõe agora como condição de qualquer atividade que queira

lidar com a vida ou com homens. E assim, para dar conta deste universo desestabilizado, a natureza

do conhecimento precisa ser pensada ou, melhor, repensada.

As assertivas de Becker (2009), que na oportunidade também lemos e debatemos,

confluíam com a perspectiva de Geertz (op. cit.). Afirmando haver muito mais representações sobre

o mundo do que poderia supor qualquer conhecimento científico monopolizador de sentidos, o

autor, na tradição interdisciplinar da Escola de Chicago, nos mostrou como variadas modalidades de

expressões lidam com as análises sociais tão caras às produções acadêmicas. Mapas, fotografias,

peças de teatro, filmes, contos e romances em muitos se poderia ver a busca humana pelo

entendimento daquilo que lhe escapa.

Em todas essas obras, as representações sociais, incluída as ‘científicas’, emergem em

contextos organizacionais estruturantes e limitantes daquilo que pode ser feito, já que há sempre

uma comunidade interpretativa preparada para ouvir e ver aquilo que se diz e se faz. Esgarçando

tais controles, Becker (p. 273) afirma que “há muito mais a dizer do que nossas formas permitem,

há mais a pensar também”.

Assim, a composição desse escrito-dito monográfico entorta um pouco a forma de uma

monografia para que nela caiba aquilo que, nesse momento, acreditamos ter para dizer. Menos que

certezas assentadas, temos é nossas perguntas e nossas experiências. Inspirando-nos em uma frase

dita pelo professor Marco Mello na disciplina de “Etnografia Urbana”, citando algum filósofo

alemão, poderíamos dizer aqui também que “nossos limites são o nosso ponto de partida”. Se assim,

tomemos o texto enquanto um percurso, uma trilha a conservar e partilhar nossas memórias e a

“desinflamar nossas dúvidas”.

.3 ~ os antecedentes de nosso tema específico ~

O tema específico ao qual nos deteremos aqui pode ser construído e explorado a partir de

nossa integração (como voluntária) a um projeto de pesquisa, sob orientação da professora

Alessandra Barreto, a partir do sexto período. Esse estudo (ainda em andamento) busca entender

como a experiência da mobilidade acadêmica internacional (espacial e do transito simbólico),

vivida por jovens universitários, é integrada ao discurso sobre a constituição de suas identidades e

trajetórias, concepções de mundo e projetos, nos termos de Velho (1994). Esses deslocamentos,

cada vez mais recorrentes na realidade universitária brasileira, são compreendidos, de saída, como

Page 11: Monografia_EllenFernandaNAraujo(1)

11

uma das ações presentes nas denominadas sociedades complexas, as quais se “caracterizam por um

intenso processo de interação entre grupos e segmentos diferenciados (…) [e] uma permanente

troca cultural através de migrações, viagens, etc.” (VELHO, 1994: 38-39).

Não apenas por limitações estruturais, que impedem deslocamentos em companhia dos

nossos interlocutores, é o próprio 'aonde ir' uma questão a ser colocada nesse estudo. Se a nós era

impossível realizar o ideal malinowskiniano (1986) “do trabalho de campo com observação

participante” um dos primeiros desafios a enfrentar fora aquele de constituir certas delimitações

fronteiriças e metodológicas, forjando assim uma aldeia. A exemplo de outros trabalhos que

investigam os fluxos materiais e imateriais, como o de Mapril (2004), uma das estratégias

empregadas é aquela de investigar as trajetórias desses atores em movimento, pensando “o terreno

não como um sitio, mas sim como um campo de relações sociais que são significativas para as

pessoas”. (p.67). Afinal, como nos ensina Geertz (1973) antropólogos “não estudam as aldeias, mas

sim nas aldeias” podendo ser estas de contornos reais (leia-se, políticos) ou desenhados (leia-se

metodológicos). (grifos nossos).

Ao levantarmos tais questões por meio de entrevistas semi-dirigidas, realizadas com

interlocutores brasileiros (que já retornaram ao país) e estrangeiros (que estão ou estiveram no

Brasil, especialmente em Niterói, estudando na UFF), a ideia não é reconstituir biografias – afinal

como diria Bourdieu (1996) estas representam mais as condições materiais e históricas de um

campo – uma vez que os indivíduos agem conformados por um habitus. Mas fazer aparecer essas

experiências de mobilidade a partir de uma perspectiva antropológica, ou seja, aquela que emerge

pela investigação das trocas sociais e pelo estabelecimento de uma relação específica entre

observador e observado.

.4 ~ construindo um aterro ~

Entre os pensamentos que nos apresentava, os de Nietzsche, Marcel Mauss, Lévi-Strauss,

Pierre Clastres e Deleuze, o professor Ovídio, nas aulas de “Antropologia e Filosofia” também nos

colocava diante do desafio que é a construção do nosso (próprio) pensamento. Sua frase era: “é

preciso que vocês construam um solo próprio para pisar”. Porque até hoje dessas palavras nos

lembramos e nelas nos empenhamos é que essa monografia se escreve como quem tenta construir

os primeiros metros de um aterro, tal qual o que nos sustenta o chão nesse Gragoatá às margens da

Guanabara. É, portanto, menos palavra e mais areia esse empreendimento textual - que é também

mobiliário, porém diferente daquele que nos cerca o campus e a vista, não é particular. Vandalizem-

no.

Page 12: Monografia_EllenFernandaNAraujo(1)

12

Justificamos tratar-se esse estudo de um empenho na construção de tal solo ou aterro, pois o

que se apresenta nas próximas linhas é uma leitura interessada dos dados etnográficos colhidos

junto a nossos interlocutores, a qual busca dar vazão a algumas problemáticas teóricas que vem nos

inquietando no percurso da graduação. No célebre texto que lemos quase desde o primeiro período,

‘O trabalho do antropólogo’, afirma Roberto Cardoso de Oliveira (1996) que escrever é

fundamental não apenas para registrar acontecidos, mas também como exercício cognitivo que

permite organizar e desenvolver o pensamento. Apostando nessa afirmativa, esse texto é a face

pública de um esforço em busca de melhor entendimento de um conceito, o de cultura.

De duas maneiras propomos levar a cabo esse esforço. A primeira, e que será desenvolvida

na próxima seção, é a de refazer nosso percurso pelo conceito de cultura, retomando os

ensinamentos das disciplinas e dos autores que nos foram apresentados. A segunda é refletir o

conceito de cultura do ponto de vista das experiências de mobilidade das estudantes com as quais

pesquisamos. A ideia é 'colocar em operação', principalmente, uma acepção específica dessa noção

antropológica, aquela que nos aproximamos com a leitura de Roy Wagner (2010).

A inspiração para compor o trabalho a partir dessas duas iniciativas, ou seja, a aposta de que

é possível pensar a noção de cultura em antropologia a partir da reflexão dos discursos das jovens

sobre a experiência de mobilidade é afiançada em dois argumentos, um declarado conjuntamente

por Velho e Viveiros de Castro (1980): a discussão sobre o conceito de cultura “assume novas

dimensões quando é contextualizada no que se chama sociedades complexas e/ou hetereogêneas.”

(p.5); e o outro proposto só por Velho (2010): a experiência do ir e vir dos indivíduos em trânsito

pode gerar a possibilidade de uma reinvenção da cultura. Esses enunciados dão sentido à nossa

proposta que a princípio poderia ser vista como uma arbitrariedade circunstancial: afinal haveria

outras questões a serem problematizadas dessas viagens estudantis e outros caminhos e

interlocutores pelos quais e com os quais poderíamos pensar o conceito cultural antropológico.

Sendo assim, as afirmativas dos autores acima são as ideias que costuram a pertinência de

emendar tal conceito em tais experiências específicas. Da primeira assertiva podemos concluir que

se o conceito de cultura pode/deve ser repensado nas sociedades complexas, as experiências de

mobilidade nos oferecem uma perspectiva pela qual, ou um campo onde, é possível realizar esse

exercício de flexionar o conceito.

Da segunda, colhemos a inferência de que a mobilidade internacional pode ser encarada a

partir da perspectiva do conceito de cultura já que uma das suas possibilidades é proporcionar

àqueles que a vivem uma reinvenção da cultura. Ainda que para ser fiel à proposta de Velho (2010)

é preciso a ressalva de que a reinvenção a que ele se refere seria realizada em plano bem menos

abstrato que o do conceito, isso não invalida a inspiração, uma vez que um dos referentes da cultura

Page 13: Monografia_EllenFernandaNAraujo(1)

13

a ser reinventada é também antropológico, já que como ilustra Roy Wagner (2010) é a partir dos

variados sentidos dados à palavra cultura que se constrói o conceito cultural da antropologia.

Page 14: Monografia_EllenFernandaNAraujo(1)

14

2. As experiências e as trajetórias do conceito

.1~ nossas experiências com o conceito ~

Poderiamos dizer que se houve uma ideia privilegiada (ou que privilegiamos) em nossa

formação no curso de Ciências Sociais, sobretudo depois que enveredamos, de forma mais

consciente, pelas trilhas antropológicas, essa ideia é a do conceito de cultura. Nas linhas dos livros

ou nas vozes de nossos professores e colegas de turma, ele estava lá, presente em seus múltiplos e

contraditórios significados.

Nem nos lembramos em quantas disciplinas o texto de Geertz (1978)‘O impacto do

conceito de cultura sobre o conceito de homem’ foi indicado, lido e debatido. No exagero da

memória, diriamos que em todas. O fato é que o impacto extrapola o conceito, e chega até aqueles

que passam a trilhar o caminho antropológico. Recordamo-nos da ilustração feita no quadro pela

professora Ana Cláudia (em Antropologia I, no primeiro semestre de 2010) buscando exemplificar,

e nos ensinar, aquilo que Geertz (op. cit.) chamava de “concepção estratigráfica” (p.49) que

perdurou dos séculos XVIII ao início do XX, nos ideais e práticas do iluminismo e da antropologia

clássica, quando da busca de entendimento sobre o homem.

O desenho em giz tratava-se de uma cebola com quatro camadas, cada uma, irredutível, e

correspondendo hierarquicamente às características pela quais o homem era concebido: na

superfície estaria sua cultura, em seguida sua estrutura sociológica, mais adentro os fatores

psicológicos e no âmago os fundamentos biológicos ou orgânicos. Essa separação do ser humano

em níveis existenciais era acompanhada de (ou causado por) uma divisão acadêmica disciplinar,

cabendo a cada área específica estudar suas questões. À antropologia cabia estudar os fatos

culturais. E considerando tal concepção, suas investigações buscavam dar conta dos universais da

cultura, traços que seriam invariáveis e essenciais à existência humana porque responsivos às

necessidades situadas em níveis mais profundos (sociológicos, psicológicos, e, principalmente,

biológicos).

No lugar desse fatiamento iluminista, e dessa antropologia que se fazia buscando respostas

para determinações humanas não culturais, Geertz (op. cit.) irá propor uma “concepção sintética” do

homem, e nesta vemos triunfar uma ideia de cultura enquanto algo imprescindível para a natureza

humana, um elemento que não é acrescentado a uma espécie virtualmente pronta, mas sim algo que

contribuiu para a ‘evolução’ do Homo-sapiens (p.57) até as suas formas atuais. Sobredeterminando

os fatores, em um trabalho que é também arqueológico, o autor americano, em sua retórica criadora

Page 15: Monografia_EllenFernandaNAraujo(1)

15

e criativa, nos convence e fascina da importância crucial dos elementos culturais, e desde então, nos

vemos instigados a entender esses “mecanismos de controle” (p.56) que faz com que os homens

vivam singularmente, apesar do “equipamento natural para viver milhares de espécies de vida”

(p.57).

Assim, poderíamos dizer que desde o primeiro período estivemos intrigados com o conceito

de cultura. Os semestres chegaram com novos autores, textos, debates e propostas. O conceito de

cultura se estilhaçou em sua miríade de significados e vemos em torno dele, certa confusão se

implantar e se generalizar. A essa celeuma conceitual e antropológica, em que nos víamos

enredados, se acrescentou também os significados não antropológicos que passamos a nos dar conta

ao atuar como monitora de disciplinas introdutórias oferecidas aos cursos de Ciências Sociais e

Antropologia.

Quando a professora Alessandra Barreto propôs às turmas, em que eu atuava sob sua

orientação, no ano de 2012, uma atividade para lidar com o conceito de cultura através da

composição de um pequeno vídeo, pude perceber o desafio que é apreender a especificidade

antropológica dessa noção diante dos distintos usos contextuais e de suas muitas representações. Os

vídeos dos meus colegas abordavam enquanto cultura, as manifestações de Jongo ocorridas na

Lapa, as noites da Cantareira, as danças típicas das regiões brasileiras, os jogos de futebol entre

amigos nas quadras niteroienses, os espaços públicos como a biblioteca, a tradição familiar dos

sobrenomes, as composições de samba de seus avós, a Feira de São Cristóvão, a origem nordestina

de seus pais e tios e os imigrantes japoneses.

Construindo essa experiência com nossos colegas, pudemos nos dar conta de que não

aprendíamos o que era cultura, pela primeira vez, num texto de Geertz ou Lévi-Strauss. Aquele

mundo conceitual que habitávamos antes de percorrer os caminhos antropológicos possuía diversas

definições e manipulações dessa noção, e quando esse fato emergiu a consciência, tornou-se ainda

mais urgente e complicado destrinchar esse conceito, pelo qual, acredita-se, se faz antropologia.

No segundo semestre de 2011, um antes dessa experiência de monitoria, quando cursávamos

a disciplina ‘Antropologia IV’, o professor José Renato nos colocou diante dos debates que

apontavam para a crise contemporânea (três últimas décadas do século XX) que abalava o conceito

de cultura diante das críticas pós-colonialistas. Como avaliação, ele nos propôs escrever um texto,

de cinco laudas, que enfrentasse tal problemática e dialogasse com a bibliografia indicada, a qual

tinha autores como Sahlins, (1997) e Kuper (2002). Ao me dedicar àquela atividade, obtive a

primeira oportunidade de proceder a uma síntese possível da trajetória do conceito de cultura, pois

apesar de se tratar de uma questão do final do século, os autores (op.cit.) que a encaravam faziam

isso de maneira a remetê-lo às suas matrizes teóricas fundantes.

Page 16: Monografia_EllenFernandaNAraujo(1)

16

Já quando cursei “Teorias Antropológicas da Cultura”, no primeiro semestre de 2013, a

proposta da professora Tânia Stolze foi o de começar o debate pelos autores que privilegiam esse

conceito em suas investigações desde o início da disciplina, desviando-se dos evolucionistas e

começando já em Boas - autor que tínhamos conhecido em Antropologia II, com a professora

Renata Gonçalves, com quem também aprendemos, de forma mais detida, sobre Frazer, Tylor e

Morgan. Seguindo a proposta de Tânia, continuamos na trilha do culturalismo americano e

passamos pela escola de Cultura e Personalidade, lendo os trabalhos de R. Benedict. Depois,

saltamos em direção à C. Geertz, Lévi-Strauss e encerramos com M. Sahlins. Ao compor os

trabalhos avaliativos, em formato de pequenos papers, tivemos mais uma vez a oportunidade de

investir tempo e pensamento para compreender o conceito de cultura em seu desenvolvimento e

desdobramentos.

São a esses trabalhos que também retomamos e recorremos aqui para remontar a trajetória

do conceito de cultura. Essa espécie de retrospectiva conceitual serve-nos ao propósito de qualificar

nosso entendimento, dando a ver o que nos foi possível aprender até aqui. Tal exposição serve-nos

assim, em caráter pedagógico, mas serve também, para podermos lidar com o tema específico a que

nos propomos, que é a de pensar o conceito de cultura diante das experiências de nossas

interlocutoras.

.2 ~ as trajetórias do conceito ~

Se a tarefa deve ser aquela de remontar um passado, poderíamos nos dar conta de uma

continuidade nos desenvolvimentos do conceito e da constituição da especificidade disciplinar

antropológica. Diante da diversidade do Outro - que era um fato para o Ocidente desde pelo menos

Heródoto (LARAIA, 2003), o qual foi acentuado diante dos projetos de colonização, dos séculos

seguintes, que traziam à tona cada vez mais povos diferenciados dos europeus - foi preciso erigir

um entendimento capaz de articulá-la à ideia da unidade da natureza humana que era um princípio

teológico e a verdade científica do monogenismo. Ou seja, o Outro colocava um problema à

ontologia do homem moderno, fazendo emergir a questão do que era ser humano. Uma das

tentativas intelectuais de dar conta dessa problemática - não apenas filosófica, sobretudo política –

fez-se pelo empreendimento denominado antropológico. Um empreendimento, portanto, que

precisava articular a diversidade e a unidade humana e que fez isso primariamente pelo manuseio da

noção de cultura.

Os primeiros antropólogos do século XIX, ditos evolucionistas conceberam o conceito a

partir de um estofo filosófico e iluminado, a ideia de Civilização (Kupper, 2002; e Sahlins, 1997).

Page 17: Monografia_EllenFernandaNAraujo(1)

17

Nesse momento, o conceito de cultura era operado para afirmar uma unidade, tratando as diferenças

como aspectos apenas latentes: todos os homens possuíam uma natureza única, companheiros que

eram de uma grande Cultura, a humana. Essa Cultura viria a ser definida por um dos principais

autores evolucionistas, Tylor, em 1871, como um “todo complexo que inclui conhecimento, crença,

arte, leis, moral, costumes e quaisquer outras capacidades e hábitos adquiridos pelo homem

enquanto membro da sociedade” (Tylor, 2005)

Naquele tempo, o século XIX, o entendimento em voga era o de que diferenças culturais

resultariam de diferenças no desenvolvimento social dentro de uma escala evolutiva unilinear e

inexorável. Os primitivos eram aqueles que não eram ainda complexos. A crença era de que se a

gravidade fixava todos os pés no chão, haveria também um princípio (uma lei universal)

determinante da vida social, segundo o qual todos os homens, em qualquer espaço e tempo,

construíam coletivamente os sentidos para o mundo e as práticas sobre ele. Nunca seríamos

completamente iguais, porque alguns (por capacidades inatas, ficava implícito) já se encontravam

mais próximo do fim da história. Mas um dia todos atingiriam a meta: europeu havia de ser o

Homem.

Diferentemente dessa geração anterior, composta por humanistas e juristas, muitas vezes

ligados ao poder colonial, Franz Boas possuía uma formação nas ciências naturais. Antes de tomar

um caminho antropológico, estava ele às voltas com problemas relacionados à variação da

percepção humana diante das variações da luz. Desse lugar, de onde via o mundo, não cabia um

conhecimento à distância e indiferenciado, apoiado em conjecturas. Os fenômenos que se davam

entre os homens e entre estes e a cultura eram determinados por forças internas e externas - e sobre

os quais agiriam também poderes fortuitos - distintas daquelas que incidiam nos elementos

'naturais'. Se assim, a antropologia boasiana, pretendia estudá-los em suas complexidades

irredutíveis, propondo a substituição do método comparativo dos evolucionistas pelo método

histórico. Um método baseado no princípio do relativismo cultural pelo qual os fenômenos deviam

ser conhecidos em relação ao contexto em que são vividos e concebidos.

É dessa nova perspectiva que Boas irá atacar o entendimento evolucionista sobre o homem,

mostrando, sobretudo, o caráter arbitrário daquelas associações. Dizer que os povos não-europeus

são primitivos porque suas formas de vida são simples e indiferenciadas só é possível quando se

avalia essas formas de vida tomando como complexas aquelas sob as quais vive o avaliador.

Olhando a partir da dimensão do desenvolvimento tecnológico todos os grupamentos analisados

apareciam aos olhos evolucionistas como atrasados, e não apenas nessa seara da vida, mas em todas

as demais. O fato de que não havia fábricas movidas a carvão, não poderia indicar automaticamente

a inexistência de pensamento sofisticado, religiões e relações sociais complexas. Manter-se claro é

Page 18: Monografia_EllenFernandaNAraujo(1)

18

bom que ao relativizar o desenvolvimento, Boas não está afirmando a impossibilidade de proceder à

medida objetiva de valorização de uma cultura, e sim, marcando a condição do procedimento que só

pode ser feito pela deliberação de uma referência.

Esse ataque aos evolucionistas que a antropologia de Boas (1938; 1964) empreendeu pôs no

lugar outra solução para equação antropológica e revestiu o conceito de cultura de outras matizes.

Pode-se dizer que a acepção que dava ao conceito se aproximava da ideia de Kultur alemã, que se

ergueu frente à ideia de Civilização mundial, no final do século XVIII, colocando em seu lugar a

noção de que no mundo, havia culturas humanas, cada qual imbuída de espíritos singulares

(Sahlins, 1997). Tomando emprestada essa perspectiva, Boas, irá propor uma nova articulação às

ideias de unidade e diversidade humana. Articulação essa que irá passar pelo desenvolvimento do

conceito de homem e de cultura – formulados a partir da comparação da espécie humana com as

demais na natureza. Não será a evidência da variabilidade comportamental o critério definidor.

Afinal, entre os animais se pode perceber distintos modos de vida. A especificidade humana seria

constituída pelas suas capacidades de pensamento racional, causal e retrospectivo, e pelo

desenvolvimento da linguagem, características essas que, diferentemente dos outros animais,

libertariam os homens do comportamento responsivo às determinações do instinto biológico.

É nesta especificidade, definida pela via do pensamento e da linguagem, que Boas

estabelece as bases da unidade humana. Unidade sobre a qual está assentada, em última instância, a

diversidade – concebida como resultado das escolhas que o homem é capaz de fazer (porque pensa

e se comunica) no fluxo das experiências sobredeterminadas. Essas escolhas constituiriam as

culturas, as quais seguem definidas por Boas (1964) como ‘a totalidade das reações e atividades

mentais e físicas que caracterizam a conduta dos indivíduos componentes de um grupo social,

coletiva e individualmente(...) Também inclui os produtos dessas atividades e sua função na vida

desses grupos. A simples enumeração destes vários aspectos não constituem, porém, a cultura. É

mais do que tudo isto, pois seus elementos não são independentes, possuem uma estrutura.”

O que significa dizer que as culturas fazem escolhas, senão que a cultura se autodetermina e

opera por lógicas próprias? Mas como procedem essas escolhas? São inconscientes e aleatórias

como as escolhas operadas no âmbito da linguagem? Como essas escolhas são também

sobredeterminadas por outras dimensões como as ambientais, sociais, etc? É certo que a nova

perspectiva boasiana destitui velhas determinações de seus poderes explicativos, e abriu

possibilidades outras para pensar o homem. Mas as aberturas que faz no pensamento deixou às

gerações seguintes uma série de perguntas a responder.

Esse é um pouco o esforço de sua aluna Ruth Benedict (1948) para quem a principal questão

a ser respondida é aquela relacionada à lógica pela qual os elementos de uma cultura poderiam ser

Page 19: Monografia_EllenFernandaNAraujo(1)

19

entendidos em seu conjunto e não em sua sobreposição. Com este intento, aproximou os estudos

antropológicos dos psicológicos, e construiu uma teoria configuracionista da cultura. De acordo

com este postulado, as culturas configuram-se a partir da institucionalização de algumas das

potencialidades humanas que são selecionadas dentro de um 'background emocional' e infinito

composto por interesses, disposições psicológicas, limitações, etc. O nome cunhado para esses

processos de institucionalizações foi o de “padrões de cultura”. Assim, a seleção de uma

potencialidade que posteriormente é constituída em padrão dominante, seleção essa realizada na

constituição primária da história de um povo, era responsável por determinar todas as práticas

sociais e comportamentais entre os indivíduos e entre estes e as demais sociedades.

Ou seja, Benedict como Boas está admitindo que há um alicerce comum que assenta as

práticas e os sentidos sociais diversos, e que há uma seleção dentro dessa base acerca do que

constituirá a cultura, mesmo que possa haver distinções acerca da composição dessa. Mas dizer que

as configurações culturais determinam a conduta e o pensamento humano, como faz Benedict, é

criar para a cultura uma espécie de segunda natureza, é fazer do homem, outrora liberto pelo

pensamento boasino, prisioneiro a um instinto não mais biológico e sim cultural.

Esse tipo de entendimento orgânico foi predominante até a virada semiótica pela qual passou

o conceito. A concepção de Geertz,(1978) por exemplo, que toma a cultura enquanto estruturas

conceituais complexas sobrepostas e amarradas se colocava ao lado dessas outras concepções que

ora a reificavam em uma “realidade superorgânica, em si mesma, autocontida”; ora a reduziam ao

“padrão bruto de acontecimentos comportamentais observados em uma comunidade identificável”.

Ao afirmá-la pela imagem de redes e aglomerados, nega-se à cultura a forma de um todo

sistematizado e funcional. Ao defini-la enquanto pública, ataca-se a “falácia cognitivista” que a

constituía enquanto fenômeno mental. Mas diferente de outros antropólogos de sua geração e

tradição, como David Schneider, Geertz (op. cit.) recusa a ruptura dessas teias de significados

compostas de símbolos e significantes com as ações e comportamentos humanos. Para ele, essas

redes de significado deveriam ser entendidas do ponto de vista do ator (actor-oriented) que as

interpretam em um movimento (a vida social) sobre e através delas.

Se estudar a cultura é tudo que cabe a um antropólogo nos Estados Unidos de Geertz,

redefini-la é redefinir também a natureza, as possibilidades e as condições de seu conhecimento.

Uma vez que sua unidade básica passa a ser o significado (nesse movimento que atravessou as

antropologias, dos dois lados do oceano, de uma perspectiva semiótica, na segunda metade do

século XX) o entendimento da cultura só pode ser aquele erigido sob a forma de uma interpretação.

Ao antropólogo, portanto, não caberia reconstituir os contornos formais dessa realidade que

denominavam cultura, apresentando suas lógicas internas em um diagrama abstrato – aliás, quanto

Page 20: Monografia_EllenFernandaNAraujo(1)

20

mais impecáveis eram essas representações, argumentava Geertz (1978), mais elas desacreditavam

a análise cultural; já que em uma ordem tão lógica e tão formal “quase ninguém poderia acreditar”.

A pretensão não é a de acessar o repertório de conhecimentos e crenças que permitiriam aos nativos

viver da maneira como vivem elaborando suas regras sistemáticas (empreendimento esse que

proporcionaria ao antropólogo condições, pelo menos lógicas, de se passar por um nativo) como

prescrevia Ward Goodenough - a quem nosso autor acusava de ser o representante, em atuação à

época, da desordem teórica pelo qual ainda se debatia o conceito de cultura.

Portanto, trata-se menos disso, de se tornar um deles, e mais de situar-se entre eles. O

trabalho seria aquele, prossegue o argumento geertziano, de compreender e decifrar os sentidos que

estruturam o fluxo de acontecimentos ocorridos no cotidiano de um grupo – fluxo esse que a

perspectiva semiótica implicava tomar pela forma de um discurso, o discurso social (composto de

linguagem verbal e ações simbólicas). Se é através da elaboração desse discurso que os membros de

uma coletividade específica relacionavam-se entre si, caberia ao antropólogo acessar (compreender)

a gramática conceitual que o tornaria possível. Sem atalhos, só haveria um caminho para tal acesso:

a investigação das ações sociais pelas quais as “formas culturais encontram articulação”.

A etnografia (ou tudo aquilo que os antropólogos fazem) seria, portanto, a inscrição e

fixação de um discurso (o nativo) por meio da construção de outro discurso (o antropológico).

Postular que ‘fenômenos culturais’ são ‘fenômenos expressivos’ constituídos por uma relação de

natureza simbólica, implica compreender toda cultura como atravessada por uma ‘desorganização’,

uma ‘informalidade’, um ‘caos’; implica dizer que todos os significados são ambivalentes, pois sua

gênese é feita por uma transferência e um deslocamento de sentidos, em um movimento que sempre

deixa os rastros dos referentes nos signos e vice-versa. Se assim, textos etnográficos só podem ser

interpretações de “segunda ou terceira mão.” Ou seja, uma interpretação das interpretações que os

nativos produziam de seus significados diversos, compartilhados e arranjados uns por cima dos

outros. Pois interpretar é tudo o que se pode fazer, seja o antropólogo ou nativo, diante do

emaranhando de significados que estão ao infinito dispostos de tal maneira que impedem a

atribuição de um sentido único. Fundada está a impossibilidade de verificação de qualquer coisa.

O tal objeto, a cultura, se ergue contra o projeto científico do uno, do normativo, da lei.

Do episódio que inaugura as notas sobre a briga de galos balinesa e a sua entrada naquele

grupo – aquele em que narra a sua fuga (e de sua mulher) conjunta com os balineses, diante da

‘batida policial’ àquela prática proibida pelos colonizadores – pode-se derivar inúmeras

interpretações. Afinal, também o texto antropológico é um objeto expressivo da cultura não apenas

nativa, mas principalmente do antropólogo e se assim, pela sobrevivência do argumento, precisa

também estar aberto a infinitas compreensões. Assim, por um lado, a fuga conjunta (após a qual são

Page 21: Monografia_EllenFernandaNAraujo(1)

21

‘aceitos naquela sociedade’) pode ser entendida como a encenação do mito antropológico do

trabalho de campo cujas condições submetem o profissional à experiência-limite da

despersonalização; da perda de suas relações anteriores; ao se deslocar a um universo em que não

pode estar entre os seus, nem consigo. Em outra direção poderíamos arriscar também uma

interpretação que concebe a ‘fuga solidária e inclusiva’ como a afirmação daquela “continuidade

ontológica radical” entre o antropólogo e o nativo que Geertz contribuiu para fundar ao conceber no

mesmo plano, o da interpretação, o modo pelo qual os seres humanos podem obter alguma

compreensão do mundo seja este quem for, um ocidental iluminado ou o balinês pacífico.

Para além de postular em palavras bonitas, como bem sabia fazer, Geertz levou à campo seu

conceito, seu princípio e seu método etnográfico. A briga de galos balinesa, por exemplo, foi um

desses ‘objetos’ estudados como se fenômeno da cultura fosse. A leitura dessa prática social, ou

desse discurso, permitiria a composição de uma interpretação de como os balineses interpretam seus

distintos significados acerca dos atributos da humanidade e animalidade; dos valores da hierarquia

social, entre outros. Assim, o autor compreendia aquela prática enquanto uma estrutura simbólica

cujos efeitos não extrapolavam até a esfera das estruturas de posições sociais reais e, portanto, não

simbólicas. Ganhar ou perder em uma briga de galos não levava, por exemplo, à aquisição ou à

perda de um cargo político. Podemos dizer que o episódio permaneceria como um símbolo e

enquanto tal circularia em suas próprias esferas não extrapolando outras, como a do plano da

política, por exemplo. Assim, uma das conclusões da análise pode ser aquela que aponta que algum

plano do real se mantinha, em Geertz, não simbólico.

Não admitir essa descontinuidade simbólica é um dos princípios teóricos que separam Lévi-

Strauss não só de Geertz, mas de toda uma tradição antropológica que se escreveu buscando ‘a

origem sociológica dos símbolos’. Seu projeto, que numa aproximação ao do autor americano é

também semiótico, “busca a origem simbólica da sociedade” pela estratégia de ultrapassar algumas

dicotomias fundadoras, a exemplo dessas que se erguem entre a sociedade e a cultura. Seu interesse

é pela mediação das categorias sempre opostas e arraigadas no campo de nossos pensamentos,

erguendo o projeto diante de quase todas as antinomias ocidentais (sensível/inteligível;

material/ideal; mundo/pensamento; etc.).

Entre essas, uma que perpassa toda a sua obra é aquela entre a natureza e a cultura - esses

domínios que estavam separados ontologicamente desde, pelo menos, Boas. A intenção é

ultrapassar essa oposição, manejando-a, não como uma substância, mas como uma ‘ferramenta de

análise’. É o valor metodológico desta que vemos ‘aplicada’ em seu estudo clássico sobre as

estruturas elementares do parentesco (1982). A proibição do incesto, enquanto ato universal, se

constituía na evidência empírica, da passagem da natureza à cultura, que só havia ocorrido ao

Page 22: Monografia_EllenFernandaNAraujo(1)

22

homem, entre todos os demais animais. Mas essa passagem não é vista como uma ruptura

inconciliável. É preciso entender a articulação que há entre essas duas esferas para que se possa

compreender cada uma delas e aquele que está constituído entre elas, afinal, o homem.

A cultura para Lévi-Strauss é, assim, conceitualizada como ‘uma modalidade da natureza’. É

um fenômeno antropológico universal que pode ser conhecido pelos estudos etnográficos das

culturas particulares.

Assim, grafada no singular, a cultura, pode-se dizer que é um vocábulo a designar o espírito

humano: esse algo cujo atributo fundamental é o pensamento simbólico. A característica primordial

deste é conceber o homem do ponto de vista do eu e do outro. A troca, ou melhor, a reciprocidade é

assim a relação fundadora da vida social. Princípio que implica dizer que ‘toda significação repousa

sobre uma relação’ e que ‘todos os símbolos são mais reais do que aquilo que simbolizam’,

assertiva que pode ser entendida pelo exemplo da aliança enquanto um símbolo da relação de

casamento, a qual em si já é simbólica. Assim ‘o significante precede e determina o significado’,

pois os símbolos não são a representação de algo que não é simbólico. ‘Esse algo é mais real do que

o suposto real, ao qual alguns antropólogos tentaram reduzi-lo.’

Quando grafada no plural, as culturas são compreendidas como a atualização dessa estrutura

virtual que é a cultura. Em suas formas empíricas são compreendidas então enquanto uma

‘multiplicidade de códigos’, enquanto ‘conjunto de sistemas simbólicos’ que não formam uma

totalidade integrada, nem uma totalidade expressiva, cujas partes (qualquer delas) poderiam

explicar o todo. Mesmo sendo usado para empregar “um conjunto de afastamentos significativos”,

Lévi-Strauss defende o emprego dessa noção na antropologia, encarando-a pelo seu “valor

heurístico”. Afinal, era através dessas unidades mais arbitrárias (ou mais políticas) que ‘reais’ que

se podia ver as relações sociais que se articulam por meio dos símbolos e significados que erigidos

pelo pensamento simbólico proporcionam um acesso empírico e investigativo a este – o seu objeto

fundamental.

Nesse desmembramento, que revela as duas dimensões de seu conceito, Lévi-Strauss

esperava, enfim, conciliar a diversidade e a unidade humana, explicando a primeira pela última.

Se enquanto o projeto de Lévi-Strauss era o de ‘estudar a vida social do ponto de vista da

significação’, e Geertz se empenhava por estudar ‘as redes de significado do ponto de vista do ator’,

Marshall Sahlins pode ser visto como um autor – que após uma fase dedicada a teorias neo-

evolucionistas – se redime num movimento em direção a uma antropologia simbólica, a qual busca

se constituir no entre de duas tradições: a americana e a francesa. Um de seus estudos fundamentais

é aquele que se ergue enquanto uma defesa do conceito de cultura em um tempo, o fim do século

XX, em que este se via manchando pelas ligações que se reconstituíam dos estudos antropológicos

Page 23: Monografia_EllenFernandaNAraujo(1)

23

em contextos da colonização; e pela falácia universalista que apontava para o fim das culturas como

resultados do projeto moderno homogeneizante.

Desse conceito - ao qual Sahlins (1997) também imprime a percepção semiótica de seu

tempo, ao defini-lo enquanto fenômeno ligado à dimensão dos símbolos e significados que

caracterizam e distinguem a ‘experiência e a ação humanas’ – o autor busca traçar sua gênese para

refundar sua importância epistemológica diante do pessimismo sentimental. Esse conceito

proeminentemente antropológico (apesar de ubíquo e extrapolado enquanto categoria para diversas

outras áreas do conhecimento humano), a cultura, via-se diante de uma espécie de crise

contemporânea, em que os antropólogos figuravam contraditoriamente no papel de vítima e algoz:

culpabilizados por ajudar a engolfar culturas “locais” nas águas do ocidente; e infortunados por

estar seu objeto afogado nessas águas.

Menos do que endossar essa ‘teoria do desalento’, Sahlins (op. cit.) aponta para a

redescoberta das culturas nativas através da experiência etnográfica que revelam a capacidade de

auto-invenção que estas possuem. No lugar de uma ideia de aculturação, ergue-se a assertiva de que

os seres humanos – mesmo sob a égide da mais terrível dominação – não podem ser submetidos à

condições de existência que lhe são externas; a capacidade de criar essas próprias condições é que

está no cerne de suas ‘sobrevivências’. É essa capacidade também que permite colocar em dúvida a

validade daquele argumento segundo o qual a aproximação entre os povos levaria sempre a uma

homogeneização irreversível. Pelo contrário, como também já havia proposto Lévi-Strauss em Raça

e História (1976), a comunicação leva à diversidade, uma vez que relações humanas, são relações

entre diferenças.

.3~ a retomada de Roy Wagner ~

Se uma das motivações desse trabalho é enfrentar a confusão em que nos debatíamos diante

do conceito de cultura, em Roy Wagner (2010) tivemos a felicidade de encontrar um entendimento

dessa espécie de celeuma em que estamos enredados. A primeira vez que lemos tal autor, foi

quando cursávamos a disciplina de Antropologia IV, mas na oportunidade fomos capazes apenas de

uma incursão superficial, a qual não nos trouxe muito entendimento. Para fins desse trabalho, que se

realiza por meio do desenho de um percurso no conceito de cultura, retomamos a leitura de ‘A

invenção da cultura’.

Nesta obra, o autor torna objetivo o que denomina de a “ambiguidade do conceito”. Assim o

que outrora tomávamos aflitivamente enquanto uma impossibilidade denotativa é transformada na

condição do conceito de cultura. Ao tratar de suas “zonas de ambiguidade” e buscar demonstrar

Page 24: Monografia_EllenFernandaNAraujo(1)

24

como ocorrem uma série de “metaforizações” em suas definições; e, ao ressalvar que a cultura

enquanto algo monolítica é uma espécie de coisa necessária a esses processos de “metaforizações”,

que são atos de invenções, podemos entender as origens de nossa aflição e, assim, encontrar, uma

maneira de conviver com ela. No lugar de buscar refiná-lo para que ele se torne mais útil aos

antropólogos, como ambicionava Geertz (1978), Roy Wagner (op. cit.) lida com o conceito de

cultura a partir de sua condição ambígua, sem mais precisar ir atrás de uma substância para chamar

de sua.

Dedicaremos os parágrafos seguintes para demonstrar aquilo que foi possível entender das

proposições do autor e que nos permitiu chegar às conclusões que elencamos acima.

Podemos começar dizendo que um dos pressupostos de sua argumentação é que os

significados são contextuais e surgem a partir dos “empreendimentos humanos de comunicação”

(p.81). Logo, qualquer definição do que venha a ser a cultura precisa levar em conta esse aspecto

relativo. Tentando demonstrar como os seus significados foram criados, o autor procura as origens

léxicas e contextuais do vocábulo. Assim, afirma que o sentido tem origem no contexto agrícola: a

palavra cultura (culture) derivaria do verbo latino colere. Um de seus significados é portanto o ato

de cultivar a terra ou espécime natural.

Por um processo denominado por ‘extensão de significados’, esse sentido da cultivação

natural é recriado no contexto das relações humanas e passa a ser considerado “controle,

refinamento e domesticação do homem por ele mesmo” (p. 54) Em mais uma série de

metaforização, aquela que inventa o sentido antropológico do termo, a acepção é deslocada do

indivíduo ao coletivo, e cultura passa a ser “controle, refinamento e aperfeiçoamento gerais do

homem por ele mesmo” (p.54). (grifo nosso)

Prosseguindo em seu processo de reconstituir as ambiguidades, Roy Wagner (op.cit.) irá

dizer que o termo cultura é utilizado contemporaneamente em dois sentidos: um é mais marcado e

outro mais geral. O sentido mais marcado, o sentido “sala de ópera”, refere-se a um conjunto de

conhecimentos – “ideias, fatos, relíquias, segredos, técnicas, aplicações, fórmulas e documentos”

(p.55) acumulados pelos homens através do trabalho produtivo, que serve a incrementar,

criativamente ou não, esse corpus estabelecido. As instituições culturais podem ser vistas, portanto,

como aquelas que geram e preservam essas produções materiais e imateriais. Esse sentido mais

restrito “encarna um ideal de refinamento humano” (p.57) e figura como espécie de referência para

a “cultura” como um todo.

Essa cultura como um todo, ou o sentido não marcado do termo, que corresponde “ao

conceito mais universal do antropólogo” tem uma ligação com essa acepção mais restrita. A

‘Cultura’, nesse contexto, emerge como uma “acumulação, uma soma de invenções grandiosas e

Page 25: Monografia_EllenFernandaNAraujo(1)

25

conquistas notáveis”. Apesar de Roy Wagner (op.cit.) não afirmar pontualmente podemos dizer que

esse sentido guarda relação com aquele iluminista, o da Civilização.

Prosseguindo em seu argumento, o autor irá propor que em nossas sociedades “fazer a vida”

é fazer cultura, os homens ocidentais estão empenhados no trabalho de produção de cultura. Já que

“o trabalho adquire sentido em relação à soma cultural que é o seu contexto de significação.” (p.56)

É nesse sentido também que Roy Wagner (op.cit) pode afirmar que “o estudo da cultura é cultura”

(p.46), pois essa atividade constitui-se enquanto uma espécie de trabalho direcionada a “contribuir

para uma totalidade chamada a literatura antropológica” (p.56). Quando os antropólogos investigam

povos outros cujo sistema de produtividade não adquire sentido enquanto produção de artefatos e

ideias a somar em um corpus cultural (seja criativamente ou não) e sim na construção de relações

pessoais (como diz ser o caso dos Daribi, povo da Nova Guiné, entre os quais fez seu trabalho de

campo), Roy Wagner (op.cit) afirma que ele inventa uma cultura para esses povos, presumindo que

lá, como aqui, fazer a vida é trabalhar produtivamente para o incremento de conhecimentos, ideias,

artefatos, ferramentas, tecnologias, a algum corpus cultural. Assim, no estudo de outros povos,

diante de um novo “conjunto de observações ou experiências” denominado de cultura, o

antropólogo estende os sentidos do termo, ampliando “suas possibilidades tanto quanto sua

ambiguidade” (p.62). Em suma, a invenção é um “ato de extensão”, que leva, portanto, a uma

ampliação dos significados do termo cultura no seu sentido conceitual antropológico.

Em vistas dessas proposições de Roy Wagner (op. cit.) percebemos que nossos objetivos não

poderiam mais ser aqueles de chegar a um conceito final, a uma “denotação absoluta”, a um

refinamento da noção de cultura, com a esperança de tê-la resolvida em nossas cabeças ao proceder

aos trabalhos de campo antropológicos. Como diria o autor “as coisas que mais podemos definir são

aquelas que menos vale a pena definir.” (p.80) Em contraste, é antes mais útil/produtivo ter

consciência de que o conceito se forma a partir de uma série de metaforizações e ambiguidades e

que ao manuseá-los em nossos estudos estaremos contribuindo para ampliar essa série de

metaforizações e ambiguidades, já que o trabalho do antropólogo é aquele que amplia os

significados do que vem a ser a cultura, ao presumir que todos a possuem.

Page 26: Monografia_EllenFernandaNAraujo(1)

26

3. As experiências e as trajetórias de nossas interlocutoras

Nesta seção nos dedicaremos a apresentar a narrativa de cinco alunas estrangeiras com quem

estabelecemos relações no curso do projeto de pesquisa, ao qual estávamos integrados e que já

expomos na Introdução. Não é demais enfatizar que os dados aqui compilados foram obtidos

através da realização de entrevistas, no segundo semestre de 2013, cujas perguntas estavam

interessadas em descobrir como essas experiências de mobilidade internacional contribuíam para

provocar mudanças nas trajetórias e nas visões de mundo nos estudantes que a realizavam.

Como a proposta desse escrito-dito monográfico é pensar essas experiências de mobilidade

do ponto de vista, não das trajetórias individuais, mas do conceito de cultura, ou o de pensar o

conceito de cultura do ponto de vista de tais experiências, privilegiaremos trazer aqui elementos que

nos possibilitem dar conta desse novo objetivo. Certamente que não poderíamos trazer uma

transcrição literal das entrevistas no que segue escrito, mas algumas das palavras e frases, indicadas

entre aspas, estão citadas em sua íntegra para conservar suas especificidades interessantes.

.1 ~ Diane ~

A primeira com quem marcamos um dia para a entrevista foi Diane uma francesa de Lyon

que tinha 20 anos. Conhecemo-la quando éramos colegas de turma das disciplinas Antropologia V

(que cursavamos na condição de monitora) e Teorias Antropológicas do Consumo. Ela escolheu

marcar nossa conversa para 21 de novembro, 14h: era dia de Zumbi dos Palmares, e na praça da

Cantareira havia um evento comemorativo com a distribuição gratuita de feijoada. Apesar do

feriado estadual, a UFF não havia paralisado suas atividades, marcamos de nos encontrar, então, em

frente ao bandejão do Gragoatá. Pouco tempo depois do horário estabelecido ela chegou e nos disse

que ainda não havia almoçado, pois quando estava saindo de casa, no bairro Santa Rosa, havia se

acidentado com sua bicicleta. Então nos perguntou se poderíamos aguardá-la comer a feijoada que

estava servindo na praça. Sim, claro, respondemos. Quando retornou fomos em busca de um lugar

apropriado para realizar a entrevista já que também iríamos filmá-la.

Demoramos um pouco para ajustarmos tecnicamente a câmera e quando finalmente

conseguimos pedimos desculpas pelo inconveniente da demora. Ela nos respondeu que não estava

incomodada, pois “era bom saber como se fazia pesquisa” já que ela estava no terceiro e último ano

do curso de Antropologia da Universidade de Lyon e também precisava fazer seu trabalho final.

Começamos a conversa com ela nos dizendo que sempre tivera “a ideia de partir, mas que era muito

Page 27: Monografia_EllenFernandaNAraujo(1)

27

vaga”. Para as outras pessoas que viviam aquela experiência de mobilidade ela achava que essa

vontade era mais afirmada.

No início do seu curso universitário, ela havia hesitado porque tinha uma namorada e não

gostaria de deixá-la. Após terminar o relacionamento, ela conheceu um professor de pesquisa que

falava aos alunos sobre a importância da experiência de mobilidade e então ela decidiu se inscrever

no programa de intercâmbio. Apesar de não conhecer o Brasil, e na prova de geografia de “fim de

escola” não se lembrar “nem da capital, ou só da capital” ela decidiu vir ao país após ir a um

restaurante de músicas latinas nas férias de verão de 2012: e ao escutar a música nacional sentiu a

vontade de “partir ao Brasil um dia”.

Chegou em setembro de 2013 e encontrou uma amiga francesa que havia morado com ela

em Lyon no ano anterior e que já estava no Brasil desde agosto. Antes do início das aulas, viajou

para Belo Horizonte, Ouro Preto e ficou hospedada durante uma semana em um apartamento no Rio

de Janeiro, enquanto o proprietário do imóvel carioca ficou no seu, em Lyon. Ao chegar a Niterói

fez aulas de português e foi morar em um pensionato. Como era um lugar muito restritivo mudou-se

para uma república onde já morava outra ‘francesa’, a Julie. Para ela era muito agradável poder

morar com alguém de seu país, pois dizia que “estava sofrendo muito por não poder falar bem” com

os brasileiros. Dizia que era “muito feio” a maneira como ela falava português. A dificuldade em

falar também era a de entender, quase não compreendia o que os professores diziam nas aulas.

Mesmo assim, achava a “vida universitária brasileira bem mais dinâmica”, as pessoas “mais

motivadas” que na França onde a Antropologia tinha pouco peso em “relação a outras disciplinas”.

Achava a UFF “um lugar de encontro”, para onde podia ir mesmo que não fosse ter aulas, para

conversar e conhecer pessoas. Foi lá que conheceu sua atual namorada, na fila do Bandejão. Após

iniciar o relacionamento disse que não se sentia mais sozinha, “nem com muita saudades da

França”.

Quando indagamos se a viagem ao Brasil havia provocado nela alguma mudança, iniciou a

resposta afirmando que era “muito difícil dizer”. Prosseguiu afirmando que por estar com pessoas

tão diferentes, isso provocava uma “reflexão sobre ela mesma”. Disse que quando queria partir ao

Brasil “achava que ia descobrir o mundo, uma outra cultura”. Mas agora achava que “aquilo que

você poderia saber sobre a cultura de um país é muito superficial. Você tem que ler se você quer

saber sobre o país realmente. Você tem que saber a história do país.” Isso ela considerava que

poderia fazer na França, sem precisar viajar. Aqui ela dizia que não tinha muito tempo para ler

sobre a cultura brasileira, então achava que seu conhecimento sobre o país era “muito superficial.”

Então não pensava que “descobrir uma outra cultura e também ter outro ensinamento em aula” era o

mais importante, e sim a reflexão que você ela fazia sobre si mesma: “Eu acho que eu pensei sobre

Page 28: Monografia_EllenFernandaNAraujo(1)

28

a minha vida...sobre a minha vida de antes.. Que bizarro! Eu penso muito antes e penso muito

depois.. porque tenho dificuldade de pensar o que estou vivendo aqui”, finalizou, rindo.

.2 ~ Julie ~

Outra interlocutora que também conhecemos em sala de aula foi Julie a colega de turma e

de república de Diane. Filha de pais belgas, sua família tinha o costume de mudar-se de país

periodicamente, então, ela nasceu na Argentina, morou na Suíça, Brasil, África do Sul, Bélgica e há

cinco anos vivia na França onde estudava Comunicação e Ciência Política na Universidade de

Lyon.

Quando chegou, em setembro de 2013, era, portanto a segunda vez que viria residir no

Brasil. Da primeira, viveu na Amazônia, dos três aos sete anos, onde o pai trabalhava pela “proteção

da floresta amazônica”. As lembranças daqueles tempos são marcadas pelo contrastante calor com o

frio suíço, pela infância “sem televisão e jogos eletrônicos” e pelo contato com um grupo indígena

que vivia isolado - que “não costumavam conhecer gringos e nem brasileiros” - cujos integrantes

apertaram suas “bochechas bem vermelhas”. Do período que viveu na África do Sul, conta que era

um lugar onde era “muito difícil ser branca”: “a gente quase não podia sair de casa”. Esse fato era

muito ruim para ela, pois diz gostar de se “misturar com a população do país no qual vive.”

Escolheu retornar ao Brasil para realizar o intercâmbio, pois “falava a língua” e considerava

“meio difícil” ir para um país sem dominar o idioma, apesar de também admirar seus amigos

franceses que estão aprendendo o português por aqui. O fato de gostar “das pessoas brasileiras” e

considerar “o brasileiro muito aberto” também foi preponderante em sua escolha. Apesar de não

conhecer nem o estado nem a cidade do Rio de Janeiro, escolheu vir para cá, pois a “Universidade

era boa”, “a cidade maravilhosa”, “tinha o mar”, “era grande” e “muito cultural”.

Ao chegar ficou três dias na casa do seu “padrinho” - um aluno da UFF incumbido de

recepcionar os estrangeiros que veem para universidade pelo Programa de Mobilidade – na Ilha do

Governador, RJ, quando aproveitou para ver o show da banda O Rappa. Além de hospedá-la

inicialmente, ele a ajudou com as “coisas administrativas” necessárias ao chegar ao país, as quais

Julie considerava bem mais complicadas que na França.

Além de acompanhar as disciplinas, Julie também fazia aulas de capoeira desde que chegara.

O desejo de aprender essa “coisa entre arte e luta” surgiu na adolescência quando vinha passar as

férias na enseada de Coroa Vermelha, próximo a Porto Seguro, na Bahia e assistia as apresentações

de grupos locais. Diz que “gostava muito” de ver, mas tinha “medo e vergonha de fazer”. Então

começou a praticar na Europa, “porque era mais fácil, porque era todo mundo estrangeiro”. Antes

Page 29: Monografia_EllenFernandaNAraujo(1)

29

de viajar estava tendo aulas em sua universidade, em Lyon, com um professor brasileiro, de Niterói.

Ao chegar ao Brasil, matriculou-se em um curso oferecido por um ex-aluno do seu professor

anterior. Para ela, a capoeira é “uma coisa que simboliza muito o Brasil”, e por meio da qual está

podendo conhecer “pessoas bem diferentes daquelas da faculdade” que “não vamos mentir, são

muito poucas no Brasil. É uma elite, com certeza”. Julie considera que “o estrangeiro que fica só na

faculdade não conhece o país”, pois “o Brasil é quase como se fosse, assim, diferentes países”.

Também por isso ela acha “muito importante ter amizade com brasileiros” e “não ficar o

tempo todo com os estrangeiros”. Mas depois de um tempo diz ficar com “saudade de falar francês

e de algumas coisas de amizade”, pois considera as relações entre brasileiros diferentes daqueles

que viveu. “É meio difícil explicar, mas as relações de amizade são mais efêmeras que na Europa.

No Brasil tem uma expressão que as pessoas falam ‘Ah, depois a gente se vê’ e tipo, eu tenho a

impressão que quando as pessoas falam isso a gente não vai se ver, pois a pessoa não tem seu

número, não tem nada seu. Mas eu não to falando que é uma coisa ruim, é diferente, porque eu

também acho que é uma coisa que te deixa mais rica, porque você vai conhecendo várias pessoas o

tempo todo. Uma dessas amigas francesas, é Diane, com quem mora em uma república em Santa

Rosa.

Crescendo e vivendo em tantos países distintos, Julie diz que a nacionalidade é “uma coisa

que não tem muito sentido”, a qual ela “não sabe exatamente porque existe” já que, como ela, há

várias pessoas que não se consideram do seu próprio país. Ela acha que é “do mundo”, que “pegou

um pouquinho de cada cultura” que conheceu. Exatamente por isso diz que se sente perdida quando

tenta pensar “quem ela realmente é”. Narra que quando está com os franceses e eles falam de

alguma coisa, por exemplo, de um desenho animado da infância deles, ela não conhece porque,

afinal, não cresceu lá. O mesmo acontece no Brasil, onde também se sente estrangeira, apesar de

dizer que até “pensava que poderia ser brasileira”. Mas ao chegar ao país se deu conta de que “tem

uma diferença cultural muito forte, mesmo conhecendo a língua, morando aqui e estando aqui de

férias.” Na França, ela até se sentia “uma brasileira de coração”, e apesar das pessoas até a

confundirem com brasileira pelo fato de não possuir “sotaque” e também porque ela conhece alguns

aspectos da cultura nacional, “como o arroz e o feijão, a macaxeira”, ela conclui que o fato de vir

para cá a deixou ainda mais perdida, já que se deu conta de que “também não é daqui”.

.3 ~ Marcella ~

Marcella cursava a duas disciplinas que nós e Diane também estávamos inscritos. Alemã,

nascida em Ratisbona, na Bavária, estudava Antropologia Social e Cultural e Ciências Políticas na

Page 30: Monografia_EllenFernandaNAraujo(1)

30

Universidade de Tübingen. Contou-nos que sua mãe é alemã e seu pai italiano e que desde pequena

viajava à Itália. Antes de iniciar o curso universitário, foi para Guatemala, onde ficou por dois

meses. No começo de 2013 viajou para Armênia estabelecendo-se lá por quase noventa dias com o

objetivo de fazer o trabalho de campo obrigatório em sua universidade para a conclusão de seu

curso. Exatamente naquele dia que marcamos a entrevista completavam-se três meses que ela havia

chegado ao Brasil. Nunca tinha ficado tanto tempo fora da Alemanha, apesar de ter viajado para

muitos países do mundo nos continentes europeu, americano e africano. Porque tinha interesse na

América Latina e conhecera brasileiros que haviam feito intercâmbio em seu país, escolheu o Brasil

como destino desta vez. Sua vontade era de conhecer e morar no Rio de Janeiro.

Assim que chegou ao Aeroporto Internacional do Galeão, RJ voou direto à Recife e

permaneceu por lá cinco dias com os amigos brasileiros que havia conhecido na Alemanha, tempos

antes. Quando retornou ao estado do Rio de Janeiro foi direto para a casa onde sua amiga Nicolla –

que tem dupla nacionalidade: alemã e brasileira – já estava morando, em Niterói, localizada no

bairro São Francisco. Morou lá por dois meses e se mudou com a amiga para o apartamento de um

alemão no Flamengo, RJ, com o qual obtiveram contato por meio do site Facebook. Disse que

mesmo nunca querendo morar com outro alemão, uma vez que gostaria de aprender a língua

portuguesa, foram para lá porque ele foi “simpático” e escrevia em português. A decisão de ir

morar no Rio de Janeiro foi tomada, pois tinha o desejo de morar em uma cidade grande. Ela tinha a

impressão de que Niterói era bem parecida com a cidade de Tünbigen onde estudava, do mesmo

tamanho e com a “cultura bem similar”. Afirmou que “em dois meses já estava na rua e encontrava

alguém que conhecia para pelo menos dizer oi”.

Mesmo considerando que “talvez seja um clichê” afirma que os alemães acham o “Rio mais

aberto” já que em seu país havia “muitas situações em que não era acolhida”. Quando chegou ao

Brasil “nunca imaginava que seria capaz de fazer um caminho” da sua casa até a universidade, pois

“não sabia nada, não sabia a língua, não conhecia ninguém, não podia falar”. Mesmo achando que

ainda “não podia falar” disse que agora já estava tudo melhor, pois “rapidamente todo mundo queria

ajudá-la e logo ela aprendeu a como pegar um ônibus e perguntar algumas coisas”. Apesar dessa

dificuldade de expressão contou que se sente menos estrangeira no Brasil que na Armênia ou na

Guatemala, pois considera que a “cultura brasileira” é mais parecida com a sua, “mesmo sendo

muito diferente”.

Em sua reflexão, viajar sempre foi uma possibilidade e uma necessidade. Conta que foi

muito influenciada pelos pais: da mãe herdou o gosto pela viagem e do pai outro destino para

sempre ir. Disse que gosta de aprender outras línguas e que se sentia perdida na Itália, pois as

pessoas não compreendiam o que ela falava. “E era sempre uma crise de identidade, por isso sempre

Page 31: Monografia_EllenFernandaNAraujo(1)

31

queria aprender as línguas” para poder se sentir capaz de se comunicar com as pessoas. Para ela,

viajar era bom para acostumar-se a outras maneiras de pensar, “para ter mais paciência”.

.4 ~ Nicolla ~

Quando entrevistamos Marcella, ela nos sugeriu que também conversássemos com sua

amiga alemã Nicolla com quem estava morando. Por seu intermédio, então, marcamos um dia para

a entrevista. Logo no início de nossa conversa, ao se apresentar, Nicolla disse que sua situação era

“um pouco diferente dos outros intercambistas”, pois ela possuía dupla nacionalidade, já que o pai

era alemão e a mãe brasileira. A união de seus pais teve início quando ele veio ao Rio de Janeiro

trabalhar na empresa em que sua mãe era contratada como secretária. Tempos depois, resolveram se

casar e foram para Alemanha, onde as duas filhas nasceram, em uma cidade localizada ao norte do

território alemão.

Nicolla, a filha mais velha, narra que já nasceu “assim com a língua portuguesa, com a

cultura portuguesa...(sic) cultura brasileira.. a comida... de tudo um pouquinho”. Mas que na

verdade “nos primeiros anos de infância ela foi mais alemã que brasileira”, pois só vinha ao país a

cada dois anos para visitar seus parentes, e não falava tão bem o português, mesmo com “sua mãe

forçando”. Nas escolas que cursou na Alemanha, conta que nunca teve problemas por conta da

dupla nacionalidade, que sempre foi “tratada como uma alemã normal, mesmo que não se

parecesse” fisicamente com uma (tinha os cabelos negros e cacheados). Ela nos ressaltou esse fato

já que na Alemanha “muitos estrangeiros tem problemas de discriminação”.

Antes de ingressar no ensino superior, fez um intercâmbio nos Estados Unidos onde

realizou um “general stude” para descobrir “quais eram seus interesses”. Fez um curso de espanhol,

outro de piano, até gostar do de economia – especialidade que ela passou a estudar na Universidade

de Tübingen, quando retornou ao seu país natal. Porque já tinha essa experiência de estudo

internacional, ela já tinha cumprindo certa obrigatoriedade de realizar intercâmbio, que é sempre

“sugerido” aos estudantes de sua universidade. Mesmo assim, Nicolla conta que quis vir ao país,

“para conhecer suas raízes”, pois desde os quatorze anos passou a “se interessar mais pelo Brasil”,

pela música brasileira, e começou a ter mais contato com os amigos daqui.

Quando chegou ao Rio de Janeiro, sua avó e seu tio foram buscá-la no aeroporto e a levaram

à cidade onde moram, São João do Meriti, RJ. Conta que ‘já entrou direto na sua família” e se

sentiu “em casa muito rápido”. Ela pensou que fosse precisar de mais tempo para se acostumar, pois

a mãe sempre falava que apesar da aparência brasileira “ela era mais alemã”, enquanto a irmã “tinha

uma cara mais brasileira, ela era assim mais solta”, a despeito de suas características físicas se

Page 32: Monografia_EllenFernandaNAraujo(1)

32

assemelharem mais com as dos alemães.

Depois de ficar um tempo na casa de sua família brasileira, se mudou para Niterói, para uma

espécie de república, no bairro São Francisco, onde morou com Marcella por dois meses, até se

mudarem para o Flamengo, na cidade do Rio, onde dividem apartamento com outro alemão. Ela

narra que é muito bom estar em companhia dos amigos alemães, mas que é preciso “tomar cuidado

com isso” para não ficar só com os amigos que são intercambistas. Diz que sai muito com Marcella,

mas “o problema é que falam muito em alemão”, apesar de tentarem mudar, de tentarem conversar

em português, “no final elas sempre acabam terminando em alemão”.

Além dos amigos alemães, convive também com um grupo de franceses que são moradores

do bairro Santa Tereza. Já em relação ao convívio com os brasileiros, costuma estar com sua família

(que visita mais ou menos a cada três semanas em São João do Meriti), e com um grupo de alunos

do curso de Educação Física que conheceram por intermédio de outro amigo alemão. Juntos eles

participam de um Projeto de Extensão da UFF denominado “Extramuros”, cujo objetivo é reunir

pessoas distintas para conhecer e explorar lugares da cidade de Niterói. Os passeios são sempre aos

sábados, e Nicolla contou que já foram ao Parque da Cidade, à Fortaleza de Santa Cruz e que o

próximo destino seria o Costão de Itacoatiara.

Quando perguntamos como era sua rotina no Brasil, nos respondeu com a dúvida, “não sei,

o tempo passa tão rápido, na verdade eu nem sei o que eu estou fazendo”. Em relação às aulas que

acompanha na UFF considerava que são muito diferentes daquelas de sua universidade, porque aqui

“você conhece o professor e o professor te conhece”. Lá só “havia palestras que são em salas que

cabem trezentos alunos. O professor fala e a gente vai anotando e aqui você discute na sala de aula”.

Quando perguntamos como se ela se sentia diante da dupla nacionalidade, Nicolla nos

respondeu que sempre fazia essa pergunta para si mesma, procurando se reconhecer. Depois de

pensar um pouco, complementou que no Brasil se sente como sendo sempre a alemã e na Alemanha

como sendo sempre a brasileira. Porém, sente que se identifica mais com o povo brasileiro, “talvez

porque eles são um pouquinho mais abertos, mais acolhedores”. Mesmo tendendo a se reconhecer

como brasileira, disse que “é difícil” e que acha que “vai ser sempre assim: entre os dois”.

Contou-nos também que está pensando em ficar mais tempo no Brasil para fazer um estágio,

e que quando terminar a faculdade na Alemanha, que pretende voltar para cá, já que consegue se

“imaginar viver aqui, trabalhar aqui”. Para ela, as viagens – que fez durante toda a vida, pela

Europa, África e América – deixam “as pessoas mais abertas”. Afirma que seus amigos que nunca

saíram do lugar onde nasceram “são muito fechados e veem o estrangeiro de outra forma”. Em sua

reflexão, “pessoas que já viram outras coisas, que já falaram com outras pessoas, com outras

culturas tem, assim, a mente um pouquinho mais aberta.”

Page 33: Monografia_EllenFernandaNAraujo(1)

33

.5 ~Teodora ~

Conhecemos Teodora quando ela estava hospedada na casa de nossa vizinha e estreitamos

os laços quando ela foi morar em um quarto de uma república que frequentávamos. Com vinte

anos, ela tem a nacionalidade mexicana e pertence a um grupo indígena de origem asteca e língua

Nahuatl, onde é chamada de Yemi. Quando ela completou dezoito anos passou a estudar Gestão

Intercultural na Universidade VeraCruzana Intercultural, localizada no centro da cidade de

Ixhuatlán del Madero, deixando a pequena comunidade onde morava, Pahua Grande, que ficava

mais ao interior do mesmo município. Sua irmã já estava na universidade e se dedicava ao mesmo

curso. Ela é a mais nova de uma família de nove filhos, três dos quais moram nos Estados Unidos.

Seus pais se dedicam ao plantio de amendoim e milho – principal atividade da comunidade onde

nasceu.

A mobilidade acadêmica para o Brasil surgiu como oportunidade quando ela foi selecionada

por seus professores para ocupar a única vaga disponível, no convênio estabelecido entre sua

universidade e a UFF. Chegou ao país no final do mês de setembro de 2013. Atrasou-se duas

semanas por conta de greves e protestos que aconteciam no México e que retardaram os trâmites

necessários. Arrumou duas grandes malas para trazer ao Brasil, mas só pode despachar uma,

excedia o peso. Desembarcou em São Paulo achando que Niterói ficava há poucos quilômetros da

capital paulista. Pediu informação e disseram para ela ir para Rodoviária do Tiête, pegar um ônibus

para o Rio de Janeiro. Chegou as 21 horas na Rodoviária Novo Rio e pediu a um taxista para levá-la

a um hotel em Niterói. No dia seguinte precisou pegar outro táxi com destino ao Aeroporto

Internacional do Galeão para trocar a moeda mexicana pela brasileira. Dias depois, quando se

dirigiu à UFF para se apresentar, foi informada que a recepção aos alunos em mobilidade já havia

acontecido e que ela teria que aguardar o próximo mês para começar a ganhar a bolsa auxílio. Mas

antes disso, precisaría abrir uma conta bancária. Como o serviço estava em greve nacional, seu

dinheiro acabou e ela precisou recorrer aos seus professores no México.

Nesse período de privações, alternou sua morada entre as casas de alguns professores

brasileiros que eram conhecidos de seus docentes mexicanos. Também ficou hospedada junto de

sua amiga Joyce, que conheceu por intermédio de seu “padrinho” Adrian, no morro do Preventório,

na região de Charitas. Conta que gostou bastante da experiência de conhecer uma favela brasileira e

pode se aproximar de uma realidade que não via na universidade.

Somente um mês e meio depois de chegar ao país conseguiu receber as bolsas-auxílio da

UFF e de sua universidade e conseguiu alugar um quarto em uma república onde morava com dois

estudantes brasileiros. Antes de conseguir se estabelecer, sentia muita saudade de sua família e

Page 34: Monografia_EllenFernandaNAraujo(1)

34

tinha pensado em regressar diversas vezes. Porém na única oportunidade que conseguiu falar com

os pais nesse período (eles não possuíam internet, nem telefone e precisavam “viajar ao México”

para poderem se comunicar com a filha) eles disseram que ela deveria continuar aqui, sem adiantar

seu retorno – uma vez que tinha decidido viajar. Aos poucos, porém, foi se sentido em casa. O

costume de cozinhar todas as noites a uniu aos outros integrantes da república, os permanentes e

aqueles que estavam ali de passagem, como nós. Passou a conviver mais com eles do que com

outros brasileiros ou intercambistas. Quando retornava das aulas, dizia que ia aos supermercados

sempre com esperança de encontrar os ingredientes para cozinhar os pratos mexicanos, mas como

não os encontrava, precisava sempre improvisar.

Por intermédio de sua amiga Joyce visitou uma escola pública de Niterói, localizada no

bairro Santa Bárbara, para falar aos alunos sobre “a cultura mexicana” e da “tradição da festa do dia

dos mortos.” Nessa data, nos dia dos mortos, no Brasil, perguntou aos amigos como eram os

festejos e se surpreendeu quando a resposta foi a de que eles “não faziam nada”.

Na UFF, vinculou-se ao curso de Ciências Ambientais. Narrou que os conteúdos das aulas

eram bem distintos daqueles que aprendia em seu país. Aqui se ensinava a fazer licenças ambientais

para implementação de projetos empresariais, “um aprendizado para servir ao capitalismo”. Lá suas

disciplinas voltamva-se para a mediação das relações entre o Estado mexicano e os grupos

indígenas. Ainda que fosse de encontro aos seus interesses primeiros ou às suas posições políticas,

Teodora dizia que está sendo bom aprender como se fazia grandes projetos e que esse conhecimento

poderia ser útil para ajudar os grupos indígenas na elaboração de cooperativas para a venda dos

produtos alimentícios que produziam. Em seu discurso, destacava a possibilidade de devolver o

conhecimento aos grupos indígenas como a grande importância da experiência de mobilidade que

estava realizando.

Se no início contava os dias para regressar ao México, contou que chegou a pensar até em

estender sua permanência no país para poder fazer um estágio. Porém, a universidade em que

estuda, exigia que essa atividade fosse feita lá. De qualquer maneira, mesmo tendo retornado ao

final de janeiro, Teodora dizia que planejava voltar para fazer um curso de mestrado.

Page 35: Monografia_EllenFernandaNAraujo(1)

35

4. Elas e nós, antropólogas ou inventoras de cultura

Como mencionado nas descrições que fizemos acima sobre cada uma de nossas

interlocutoras, a relação que estabelecíamos com elas começava, acreditamos, pelo

compartilhamento de uma mesma identidade. Éramos, antes de tudo, nós e elas, estudantes de

graduação. Por isso talvez possamos arriscar a afirmativa de que a relação que estabelecíamos não

era marcada por uma descontinuidade entre pesquisador e seus objetos/sujeitos pesquisados. Ali nos

associávamos enquanto alunos e alunas, ainda que a nós coubesse fazer as perguntas de um

questionário. As conversas, apesar de marcadas pelos acanhamentos de uma câmera ou de um

gravador, corriam em tom descontraído, com desvios, risadas e contraperguntas. Assim,

acreditamos que elas não nos viam como pessoas cujo ofício fosse o de investigar suas culturas.

Buscávamos, sim, conhecer e entender suas experiências de mobilidade, e nesse propósito não

mencionamos, sequer uma vez, o termo. Porém, em todas as narrativas, nossas interlocutoras

pronunciaram a palavra aos nos contar sobre aquilo que estavam vivendo. Para podermos conduzir,

então, essa escrita até o seu ponto de chegada, qual seja, a reflexão do conceito de cultura a partir

das experiências de mobilidade, comecemos por pensar os sentidos desses usos do termo cultura por

nossas interlocutoras, em suas falas.

Como descrito no relato da seção anterior, Diane, Julie e Nicolla ao refletirem sobre como

os deslocamentos produziam mudanças em seus modos de conceber o mundo, enfatizaram a

importância de conhecer “outras culturas”. Nesse sentido, o termo parece significar alguma

totalidade espacial onde se vive de alguma maneira diferente daquela de seus países. Nessa

denotação também parece caber certa substancilização do conceito, tomando a cultura como algo

que poderia ser adquirido, aprendido, assimilado, carregado, acumulado.

A ênfase que Julie e Nicolla deram a importância de conviver com os brasileiros – os

supostos portadores dessa cultura – corrobora esse sentido do uso do termo. Para além disso,

poderíamos dizer também que essa necessidade da convivência aponta para a condição de conhecer

essa nova cultura através da experiência, da ação entre os seus portadores. Essa denotação, ou esse

modo de conceber a possibilidade do conhecimento da cultura, parece se aproximar da proposta de

Geertz (1978), que propunha os estudos orientados para o ator. Diane, por sua vez, após afirmar

essa possibilidade de conhecer outras culturas através da viagem, disse que isso era uma ilusão, pois

se quisesse de fato ter conhecimentos sobre o Brasil (essa totalidade cultural que aventava) teria que

ler sobre o país, e como poderia fazer isso estando na França, não precisaria viajar para obter tal

Page 36: Monografia_EllenFernandaNAraujo(1)

36

aprendizado. Essa ressalva, que tensiona o termo com uma nova acepção, parece ir ao encontro

daquela que o autor da antropologia francesa, Lévi-Strauss, seu quase conterrâneo, concebia para a

noção de cultura: algo que não precisava ser experimentado para ser conhecido.

O uso que Marcella fez do termo, ao justificar sua mudança de Niterói para o Rio de Janeiro,

alegando que a primeira possuía uma ‘cultura muito parecida’ com a da sua cidade de origem, na

Alemanha, e que gostaria de ter a experiência de viver em uma ‘cidade grande’ parece confluir com

o sentido que Julie o empregou ao justificar sua escolha por vir ao Rio de Janeiro: por considerá-lo

‘muito cultural’. Em ambos os casos, elas parecem se referir à cultura enquanto um conjunto de

ideias, artefatos, produções artísticas, conhecimentos que são constantemente produzidos e

preservados – aproximando-se daquele que Roy Wagner (2010) irá denominar como o “sentido

marcado” da noção de cultura ou de seu significado “sala de ópera”. Nessa direção, também parece

ser o discurso de Teodora quando ela falava que a função do seu curso era a de contribuir para

preservar a cultura dos povos indígenas diante das ações do Estado mexicano e de empresas

multinacionais para suprimi-las.

Ainda que todas as interlocutoras conferissem um certo sentido substancial à cultura,

algumas delas podiam perceber em suas experiências certas descontinuidades nessas totalidades que

presumiam, a princípio, existir. Julie, por exemplo, destacava o fato de praticar capoeira em um

bairro periférico da cidade de Niterói e conviver com pessoas que não eram universitárias. Teodora

enfatizava o tempo em que havia morado no morro do Preventório e onde pode conhecer condições

de existência diferentes daquela que tinha visto nos bairros de Icaraí e Ingá locais que também

morou. Roy Wagner (op. cit.) irá argumentar que tomar a cultura como 'entidade monolítica',

(enquanto algo que pode ser circunscrito e controlado) ainda que se trate de uma ficção

argumentativa, serve ao antropólogo como uma espécie de muleta necessária utilizada para poder

conhecer outros ‘fenômenos da vida humana’, ou outras ‘modalidades de pensamento e ação’. No

entendimento do autor, o “choque cultural” levaria a uma “objetificação da discrepância enquanto

uma entidade” (p.37); assim, ao conhecer outras culturas é preciso acreditar que ela seja monolítica;

é necessário que ela assuma uma proporção estabilizada, uma ordenação possível. É nesse sentido

que entendemos as falas de nossas interlocutoras quando indicavam a necessidade de afirmar e

circunscrever as características da cultura brasileira, um tipo de comida, de arte, de burocracia, de

relações pessoais, etc.

O pronome indefinido que quase sempre acompanhava o vocábulo nos discursos de nossas

interlocutoras, ‘outras culturas’, denota que um dos significados embutidos no termo é o de uma

diferença relativa àquelas ‘realidade’ que viviam. Ou seja, esse uso parece convergir com um dos

principais argumentos de Roy Wagner (op. cit.) quando afirma que o termo cultura, é a estratégia

Page 37: Monografia_EllenFernandaNAraujo(1)

37

que se usa no encontro com a diferença, é um termo que se aciona para mediar as experiências do

eu diante do outro. E esse acionamento ou uso é feito pelo antropólogo ou por qualquer outro

sujeito.

Se todos os seres humanos “necessitam de um conjunto de convenções compartilhadas de

certa forma similar à nossa Cultura coletiva para comunicar e compreender suas experiências”,

(p.76) como afirma o autor, e nesse diálogo com o outro faz-se uma extensão necessária desse

conjunto de referências, a que chamamos cultura, podemos dizer então, que nos termos de Roy

Wagner (op. cit.), nossas interlocutoras inventavam a cultura, uma vez que esse processo não é uma

técnica de um ofício exclusivo, o do antropólogo, mas é um modo de pensamento e ação humanos,

necessários quando do encontro com as diferenças. “Todo ser humano é um antropólogo, um

inventor de cultura”. (p.76)

Por meio do contraste cultural que esses deslocamentos provocam, e a partir de uma

invenção desse tipo é que o “sentido abstrato de cultura (e de muitos outros conceitos) pode ser

aprendido, e é apenas por meio do contraste experienciado que sua própria cultura se torna 'visível'”

(p.31). Essa afirmação de Roy Wagner (op. cit.) adquire sentido quando as nossas interlocutoras

falavam sobre as formas como as aulas eram ministradas na Alemanha, na França ou no México.

Nós que só estudamos em salas de aula do Brasil, em nosso caso particular, percebemos como

tomamos de forma auto-evidente aquela configuração pedagógica, e nos surpreendemos. No

processo de inventar a cultura brasileira, nossas interlocutoras inventavam as suas próprias. E no ato

de inventarmos as delas, nós inventámos a ‘cultura brasileira’. Elas e nós, “as antropólogas”, ou

inventoras de cultura.

A exemplo do conceito nossas interlocutoras viviam permanentemente a experiência do

trânsito entre contextos; com exceção de uma, todas as quatro estavam acostumadas a se

movimentar por entre as fronteiras dos vários países do mundo; a relação com o outro era uma

constante em suas vidas; inventar as culturas uma rotina. O caso de Julie, que cresceu e viveu em

pelos menos cinco países diferentes, e o seu sentimento de estar perdida nesses entres que cruza,

pode nos fazer pensar e confirmar a hipótese de Roy Wagner (op. cit.) quanto à necessidade humana

de estabelecer convenções fictícias, totalidades, entidades monolíticas, quadros de referências.

Mas talvez, um dos aprendizados mais proveitosos que possamos tirar dessa pesquisa junto a

nossas interlocutoras, as quais se caracterizam por moverem-se constantemente entre totalidades, é

que suas experiências podem nos servir para repensar os sentidos teóricos e pragmáticos dessas

noções substanciais, evidenciando cada vez mais seu caráter arbitrário, que ainda que necessário,

precisa ser tomado nessa condição de arbítrio, de ficção.

Enfim, mais do que ao nível de um problema conceitual, poderíamos pensar as

Page 38: Monografia_EllenFernandaNAraujo(1)

38

consequências sociais desses processos de desestabilização ocasionados pelos cruzamentos

permanentes de fronteiras territoriais. Sendo um fenômeno cada vez mais difuso, vivido por

indivíduos diversos e que ocupam diferentes posições nas sociedades, estes contribuem para deixar

cada vez mais acentuadas as possibilidades de cruzamento daquelas fronteiras mágicas, que nos

descreve Bourdieu (1998) por meio das quais os homens criam arbitrariamente lugares e

diferenciações sociais.

Page 39: Monografia_EllenFernandaNAraujo(1)

39

5. Ponto final e de partida

Dessa perspectiva do fluxo e do movimento, potencializados e irrenunciáveis nessas

sociedades ditas complexas que habitamos, Clifford (2000) colocou um problema na maneira de

proceder da antropologia que sempre estabeleceu um espaço e um tempo específico onde encerrava

seus nativos, nos termos de Appadurai (1988). Argumentando contra essa espécie de cronótopo da

cultura, ele propõe o termo culturas viajantes para que os nativos sejam encarados pela perspectiva

das relações que criam com outros espaços ao seu redor, e também com outros tempos. Nesse

mesmo sentido, também nos fala Barth (1995), ao propor que a cultura precisa ser tomada enquanto

algo desterritorializada.

Apesar dessas advertências dadas por nossos autores, um espectro sempre pairou os

objetivos desse trabalho. Parecia que nosso real problema fosse o de encontrar um tempo e um

espaço para circunscrever, descrever, interpretar e chamar de cultura. Mas que totalidades podiam

carregar nossas interlocutoras? Como poderíamos descrever a cultura delas nessa condição em que

a avistávamos? Diante de nós, só tínhamos indivíduos, cruzando espaços e tempos. Indivíduos

cruzando as fronteiras do mundo e desfixados. Nessa mesma direção substantiva, também nos

incomodava a ubiquidade do conceito de cultura. Nos percursos que traçávamos para a noção, nossa

esperança era sempre a de detê-la. Ou de estilhaçá-la, de vez, distribuindo vocábulos aos seus

múltiplos significados. Assim, um dos principais desafios desse estudo foi lidar com suas

impossibilidades. Tínhamos que nos conformar, ou aprender, já que não poderíamos insistir em

criar totalidades fictícias para chamar de cultura e paredes significativas onde prender o conceito de

cultura. Para além do conceito e da experiência, pode ser que a principal coisa que tenhamos

conseguido aprender com a escrita dessa monografia é que nossa tarefa deve ser a de entender os

diversos fenômenos humanos a partir das condições em que eles se apresentam, e não a partir das

condições que supomos para eles.

A saída que pensamos ter encontrado para tornar esse estudo, no mínimo possível, e enterrar

provisoriamente nossas fantasmas, foi a de manipular a noção de cultura em contextos

diferenciados. Buscamos, nesse intuito, refletir acerca da atribuição diversa de seus significados,

nas séries de metaforizações do conceito da qual nos adverte Roy Wagner (2010), a partir das

experiências de deslocamentos constates de nossas interlocutoras. Tal exercício de colocar em

perspectiva dois deslocamentos – o do conceito e o das nossas interlocutoras – nos permitiu ver

como a cultura se objetifica é nesses movimentos, pois se inventa, e nós da a ver, mediante as

diferenças.

Page 40: Monografia_EllenFernandaNAraujo(1)

40

Se nossos primeiros autores falavam que a noção de cultura é necessária mediante o

diferente, sendo acionada para articular a diversidade e a unidade humanas, ao fim desse percurso,

poderíamos nos perguntar: seria a cultura uma ideia que emerge como solução para o encontro com

o outro, ou aquilo que desse encontro brota?

É essa questão nosso arremate: ponto final e de partida.

Page 41: Monografia_EllenFernandaNAraujo(1)

41

6. Referências

APPADURAI. Putting Hierarchy in Its Place. In: Cultural Anthropology. Vol.3. No.1, Place and

Voice in Anthropological Theory. 1988. pp. 36-49

BARTH, F. Etnicidade e o conceito de cultura. In: Antropolítica: Revista Contemporânea de

Antropologia e CiênciaPolítica. — n. 1 (2. sem. 95). — Niterói : EdUFF, 1995.

BECKER, H. Italo Calvino,urbanologista. In: Falando da sociedade: ensaios sobre as diferentes

maneiras de representar o social. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009.

BENEDICT, R. Configurações de cultura. In: Donald Pierson (org). Estudos de Ecologia

Humana. Leituras de Sociologia e Antropologia Social. São Paulo: Martins Fontes Ed., 1948. pp.

312-347

BOAS, F. A Mente do Homem Primitivo e o Progresso da Cultura. In: The Mind of Primitive

Man. New York: The Free Press, 1938. Tradução de Kátia Maria Pereira de Almeida (Puc-RJ).

_________ Primeras manifestaciones culturales. In: Cuestiones fundamentales de antropología

cultural. Buenos Aires: Ediciones Solar, 1964. Titulo del original em inglês: The mind of primitive

man. New York: The Free Press, 1943. Traducion de Suzana W. de Ferdkin BOURDIEU, Pierre. A ilusão biográfica. In: AMADO, J.;FERREIRA, M.M. Usos e abusos da

história oral. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas Editora, 1996

__________ A economia das trocas lingüísticas: o que falar quer dizer. 2 ed. São Paulo: Editora

da Universidade de São Paulo, 1998. (Clássicos, 4).

CARDOSO DE OLIVEIRA, R. O trabalho do antropólogo: olhar, ouvir, escrever. Revista de

Antropologia (USP), vol. 39, nº 1, São Paulo, 1996

CLIFFORD, J. Sobre a autoridade etnográfica. In: A experiência etnográfica: antropologia e

literatura no século XX. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1998.

__________ Culturas Viajantes. In: O espaço da diferença./Antônio A Arantes.(org.) Campinas:

Papirus, 2000.

GEERTZ, C. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1978.

__________ Mistura de gêneros: a reconfiguração do pensamento social. In: O saber local:

novos ensaios em antropologia interpretativa. Tradução de Vera Mello Joscelyne. Petrópolis,

Vozes, 1997, 366 pp.

LARAIA, R.. Cultura, um conceito antropológico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.

KUPER, A. Cultura, a visão dos antropólogos. Bauru: EDUSC, 2002

Page 42: Monografia_EllenFernandaNAraujo(1)

42

LEVI-STRAUSS, C. Introdução à obra de Marcel Mauss[1950]. In Sociologia e Antropologia.

Marcel Mauss. Epu/Edusp.

_______________ O etnólogo perante a condição humana (1979)In: O olhar distanciado.

Lisboa: Edições 70, 2010.

_______________ As estruturas elementares do parentesco. Petrópolis: Vozes, 1982.

_______________ Raça e História. Col. Os Pensadores. Ed. Abril. S.Paulo. 1976.

MALINOWSKI, B. Argonautas do pacifico ocidental: Um relato do empreendimento e da

aventura dos nativos nos arquipélagos da Nova Guiné. São Paulo: Abril Cultural, 1976. 436 p.

(Pensadores(os); v.43)

MAPRIL, J. Passageiros de Scehngen: a dialéctica entre fluxo e encerramento no trabalho de

campo. In In: LIMA, Antónia P. de; SARRÓ, Ramon (Orgs.). Terrenos metropolitanos: ensaios

sobre produção etnográfica. Lisboa: ICS, Imprensa de Ciências Sociais, 2006.

MILLS, W. C. Do artesanato intelectual. In: A imaginação sociológica. Rio de Janeiro: Zahar

Editores, 1975.

MORGAN. A sociedade Antiga. (1877) In Castro, Celso (org.) (2005) Evolucionismo Cultural:

Textos de Morgan, Tylor e Frazer. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor

SAHLINS, Marshall. O "pessimismo sentimental" e a experiência etnográfica: por que a cultura

não é um "objeto" em via de extinção. In Maná, v. 3, n. 1, abr. 1997. Rio de Janeiro, 1997.

TAMBIAH, S. J. The magical power of words. In: Culture, Thought, and Social action.

Cambridge, Mass: Harvard University Press, 1985.

TYLOR, Edward. A ciência da cultura. In Castro, Celso (org.) (2005) Evolucionismo Cultural:

Textos de Morgan, Tylor e Frazer. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor

VELHO, Gilberto. Trajetória individual e campo de possibilidade. In: Projeto e metamorfose:

antropologia das sociedades complexas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994.

_____________.Metrópoles, mediação e cosmopolitismo. In: Horizontes Antropológicos. Vol.16

n.33. Porto Alegre, 2010.

VELHO, Gilberto e VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. O conceito de cultura e o estudo das

sociedades complexas. Cadernos de Cultura. Ano 2, nº 2. Rio de Janeiro: USU (Universidade Santa

Úrsula), 1980.

WAGNER, Roy. A invenção da cultura/ Roy Wagner tradução de Marcela Coelho de Souza e

Alexandre Morales. São Paulo: Cosac Naify, 2010.