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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ JORGE PAULO LAMUR ENTRE A VANGUARDA E A TRADIÇÃO: CONSIDERAÇÕES SOBRE DOIS MOMENTOS DISTINTOS NA OBRA MUSICAL DE CLAUDE DEBUSSY (1894-1915) CURITIBA 2010

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ

JORGE PAULO LAMUR

ENTRE A VANGUARDA E A TRADIÇÃO:

CONSIDERAÇÕES SOBRE DOIS MOMENTOS DISTINTOS NA OBRA MUSICAL

DE CLAUDE DEBUSSY (1894-1915)

CURITIBA

2010

JORGE PAULO LAMUR

ENTRE A VANGUARDA E A TRADIÇÃO:

CONSIDERAÇÕES SOBRE DOIS MOMENTOS DISTINTOS NA OBRA MUSICAL

DE CLAUDE DEBUSSY (1894-1915)

Monografia apresentada à disciplina Estágio Supervisionado em Pesquisa Histórica como requisito parcial à conclusão do Curso de Licenciatura e Bacharelado em História, Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Paraná. Orientador: Prof. Dr. José Roberto Braga Portella

CURITIBA

2010

RESUMO

A presente monografia buscou analisar em uma perspectiva historiográfica as mudanças ocorridas no pensamento e na estética musical de dois momentos distintos da obra do compositor Claude Debussy (1862-1918), apresentadas nos anos de transição do final do século XIX até o desenrolar da Primeira Guerra Mundial. A obra de Claude Debussy foi escolhida para figurar a pesquisa por ser este um compositor tido por muitos pesquisadores como uma das peças-chave na transição estética que viria a consolidar a música moderna desenvolvida ao longo do século XX. Entretanto, observando a produção musical de Debussy nos anos em torno da Guerra, podemos perceber o afloramento de uma posição conservadora em prol do nacionalismo francês – algo que vai de encontro à perspectiva artisticamente inovadora apresentada anteriormente pelo compositor. Assim, por meio desta análise se fez possível perceber a importância que o contexto histórico e social adquiriu na obra deste compositor, ao mesmo tempo em que observamos a criação artística como a veiculação de um discurso que intenta intervir nos conflitos do meio e do tempo em que foi elaborada, discutindo o estatuto da arte, e neste caso, da música, enquanto fonte histórica. Palavras-chave: História cultural. Música moderna. Claude Debussy.

ABSTRACT

This paper aims to analyze, according to a historiographic perspective, the changes occurred in musical thoughts and aesthetics in two distinctive moments in work of composer Claude Debussy (1862-1918), stated in the years of transition from the end of nineteenth century until the development of the First Great War. Claude Debussy's work was chosen because he is considered by many researchers as one of the keystones in the aesthetic transition that would came to consolidate the modern music developed through the twentieth century. However, looking at Debussy's musical production during the years of the War, an outbreak of a conservative position for french nationalism - which goes to encounter to the perspective artistically innovator showed before by the composer - can be observed. Therefore, through this analisys it is possible to see the importance that historic and social context acquired in work of the composer and, simultaneosly, observe the artistic creation as medium of a discourse that aims to interfere in the conflicts of the time period and the surroundings in which it was made, discussing the statute of art, and, in this case, of music, as historic source. Keywords: Cultural History. Modern music. Claude Debussy.

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................... 06 2 DO FIN-DE-SIÈCLE À GRANDE GUERRA 09 2.1 A construção do cenário ....................................................................................... 09 2.2 A arte e a força da tradição .................................................................................. 13 2.3 Sociedade e indivíduo .......................................................................................... 18 3 MÚSICA, HISTÓRIA E ARTE 23 3.1 A música e a expressão dos sentimentos ............................................................. 23 3.2 As sensações e o conteúdo musical ..................................................................... 25 3.3 Claude Debussy e a música moderna ................................................................... 28 3.4 O nacionalismo e o retorno à tradição .................................................................. 32 4 VANGUARDA E TRADIÇÃO: ANÁLISE DAS OBRAS MUSICAIS DE DEBUSSY

38

4.1 Prélude à l’Après-midi d’un Faune ...................................................................... 41 4.2 Berceuse Heróïque e En Blanc Et Noir ................................................................ 48 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS 54 FONTES 56 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 57 ANEXO 59

6

1 INTRODUÇÃO

“Se a música moderna teve um ponto de partida preciso, podemos identificá-lo na

melodia para flauta que abre o Prélude à l’Aprés-Midi d’un Faune de Claude Debussy (1862-

1918)”1. Esta afirmação de Paul Griffiths, crítico musical contemporâneo, sintetiza uma das

vertentes de análise da música do século XX, que em contraposição a todo o sistema musical

ocidental em vigor desde o século XVII, apresentou características inegavelmente distintas e

inovadoras.

O contato ainda no ano de 2008 com esta frase de abertura da obra A Música Moderna

foi o primeiro passo dos questionamentos que deram origem a esta pesquisa. A importância

que uma peça escrita há mais de um século adquiriu em um contexto que a qualificou

enquanto música moderna, somada ao interesse em direcionar meus estudos da graduação

para um tema que abrangesse um conteúdo musical, e o gosto pessoal pelas obras do

compositor Claude Debussy levaram-me a investigações acerca das características do Prélude

à l’Aprés-Midi d’un Faune e, posteriormente, de outras obras do compositor, dando origem a

dois projetos de pesquisa realizados durante minha participação no grupo PET-História entre

2007 e 2009.

Destes projetos, sobressaiu-se a conclusão de que a libertação do sistema diatônico

maior e menor de tonalidades, uma das características principais do mencionado Prélude,

seria o elemento de maior importância em sua definição enquanto o início do modernismo

musical, legando ao seu compositor um papel central no que se poderia chamar de uma

transição entre a estética romântica e a estética moderna, que se construiu e desenvolveu-se no

campo musical ao longo de todo o século XX – ainda que a revolução musical proposta pos

Debussy em seu Prélude tenha ocorrido de maneira furtiva, desencadeando mudanças que

somente tomariam forma e seriam plenamente reconhecidas décadas à frente2.

Entretanto, observando a produção musical de Claude Debussy ao longo de sua vida,

não se pode deixar de perceber com curiosidade as transformações ocorridas em sua estética,

e também nas opiniões presentes em críticas e artigos jornalísticos escritos por ele para

revistas especializadas em música, bem como em entrevistas dadas à imprensa da época. Em

especial, nota-se um contraste bastante grande entre a perspectiva contestadora presente em

suas idéias e criações da juventude, e os aspectos que sobressaem de seus escritos e de suas

1 GRIFFITHS, Paul. A música moderna. Uma história concisa e ilustrada de Debussy a Boulez. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 1998. p. 7 2 Ibid., p. 13.

7

composições nos últimos anos de vida. Nos anos precedentes à conjuntura de tensão ocorrida

na Europa com a Primeira Guerra Mundial, a produção artística de Debussy passou a

apresentar cada vez mais características que podem enquadrá-lo enquanto um defensor do

nacionalismo da França, em contraposição a muitas de suas afirmações em favor da busca por

uma liberdade de criação artística que tivesse lugar independentemente de raízes culturais ou

nacionais.

Partindo desta problemática, almejou-se construir neste trabalho monográfico uma

análise historiográfica e musical a respeito de determinadas características estéticas de obras

selecionadas de Claude Debussy, entrecruzando as idéias expostas pelo compositor nestas

peças com o conteúdo de seus escritos e entrevistas, ao mesmo tempo em que se fez presente

uma reflexão sobre a importância do contexto histórico e social na concepção destas obras.

Assim, em uma perspectiva que se embasa em modelos teórico-metodológicos da

história cultural – quando a utilização dos mais diversificados traços e elementos produzidos

culturalmente pelo homem podem fornecer vestígios de um passado, e estes podem ser

analisados e interpretados à luz de um olhar historiográfico que dialoga com o conhecimento

construído pelas mais variadas ciências e disciplinas, como as ciências sociais, a música ou a

filosofia, por exemplo3 –, esta pesquisa procurou identificar primeiramente o papel do

compositor Claude Debussy na transição do Romantismo para o Modernismo na música a

partir de concepções inovadoras presentes na estética de sua obra. Em contrapartida, a análise

desenvolvida nesta monografia intentou também compreender o fortalecimento de uma

posição nacionalista que marcou o trabalho de seus últimos anos de vida, e que pode ser

identificada por meio de um retorno estilístico ao conservadorismo e à tradição musical

francesa do século XVII e XVIII, em um direcionamento musical contrário ao início de sua

carreira.

Para tanto, foram utilizados como fontes para o estudo historiográfico textos do

próprio Claude Debussy, redigidos entre os anos de 1901 e 1911 como ensaios e críticas

musicais para publicações francesas, e entrevistas dadas à imprensa pelo compositor entre os

anos de 1902 e 1914, compiladas para publicação em 1989 sob o título Monsieur Croche e

outros ensaios sobre música; e as partituras das composições Prélude à l’Après-midi d’un

Faune (1894), Berceuse Heróïque (1914) e En Blanc et Noir (1915), abrangendo exemplos de

sua estética musical através da peça tida por muitos estudiosos como o início do modernismo,

e de duas obras dos anos em que a influência marcada da Primeira Guerra Mundial alterou seu

3 BURKE, Peter. O que é história cultural? Tradução de Sérgio Goes de Paula. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008. p. 170.

8

posicionamento em relação às idéias propagadas nos anos anteriores.

O trabalho monográfico desenvolveu-se ao longo de três capítulos. O primeiro deles

apresenta o contexto social e histórico da Europa e, sobretudo, da França no período em que

viveu Claude Debussy, compreendendo os anos que vão da segunda metade do século XIX às

primeiras décadas do século XX, e encerrando-se em meio à conjuntura da Primeira Guerra

Mundial. No segundo capítulo da pesquisa toma forma uma discussão que apresenta o debate

acadêmico do período a respeito da música e do que configuraria seu conteúdo, em um

diálogo envolvendo as áreas da história cultural, música e filosofia. O terceiro capítulo, por

fim, contém a análise das fontes musicais, quando são verificados através das composições

selecionadas os recursos de escrita que posicionaram a obra de Debussy ora como um

referencial de inovações que lançaram a música moderna do século XX, ora como um retorno

à tradição por meio de aspectos conservadores e nacionalistas.

Obras de diversos autores ofereceram os embasamentos teóricos e metodológicos para

o estudo proposto neste trabalho, intentando com isto produzir um diálogo envolvendo

campos como a história, a sociologia e a música: aspectos da vida de Claude Debussy e de sua

obra, por exemplo, foram coletados em trabalhos de Daniel Chenneviére, Arthur Rosenblat

Nestrovski e Pierre Boulez; nomes como Paul Griffiths, Henry Barraud, Matthew Brown,

Danieli Benedetti e Eduard Hanslick, dentre outros autores, forneceram os alicerces para a

análise estética e musicológica das peças observadas, adquirindo grande importância na

elaboração da pesquisa; por sua vez, os fundamentos da contextualização social e histórica do

recorte que abriga o objeto de estudo, bem como a reflexão sobre o caráter historiográfico

presente na proposta de analisar as partituras selecionadas foram fornecidos por autores como

Arno Mayer, René Rémond, Keith Jenkins, Raymond Williams, Marshal Berman, Eric

Hobsbawm e Peter Burke, entre outros.

A partir da análise elaborada com base nesta gama de referências, a intenção buscada

ao final deste trabalho é de que o leitor possa direcionar um novo olhar para a obra de Claude

Debussy, e com isto tenha condições de identificar e refletir sobre as diferenças estéticas e

ideológicas presentes em composições de dois momentos distintos da carreira do compositor,

encarando-a não mais como uma mera ilustração do período em que Debussy viveu, mas

como uma produção marcada por um discurso passível de ser analisado e interpretado a partir

do contexto e do cenário de sua produção4.

4 Ibid., p. 32.

9

2 DO FIN-DE-SIÈCLE À GRANDE GUERRA

2.1 A CONSTRUÇÃO DO CENÁRIO

Alguns autores da historiografia, como Eric Hobsbawm, por exemplo, delimitam o

século XIX entre os anos de 1815 e 1914, no período que se dá entre as guerras napoleônicas

e o início da Primeira Guerra Mundial, diferindo da denominação cronológica usualmente

adotada para a classificação dos séculos5.

O historiador René Rémond, em sua obra O Século XIX, aponta estes anos como

fortemente marcados por levantes revolucionários em favor da liberdade, da democracia, da

independência e das nacionalidades – questões que surgiram como uma herança das idéias

propagadas pela Revolução Francesa de 1789. Entretanto, estes foram além da Revolução,

não se encerrando apenas como seu legado: os novos problemas surgidos nas diferentes

sociedades passaram a suscitar novas revoluções, dando assim um caráter de novidade aos

movimentos deste século, que se chocaram contra o Antigo Regime – a ordem política,

econômica e social estabelecida ao longo de séculos anteriores, e determinante das principais

características que moldavam a sociedade européia de então6.

A importância e a influência da Europa sobre o resto do mundo neste período eram

extremamente acentuadas, e esta conjuntura de dominação política, econômica e intelectual

somente começou a sofrer mudanças significativas a partir das alterações trazidas com o final

da Primeira Guerra Mundial em 1918, quando a hegemonia européia e o racionalismo

característico do pensamento que se formara ao longo do século XIX passaram a ser alvo de

críticas7.

Este fora um século que se mostrara bastante prolífico ao apresentar questões e

inovações no campo político, econômico, social e cultural, gerando novas maneiras de se

interpretar a sociedade e o próprio homem. Algumas destas mudanças, principalmente no que

se refere à esfera política e social, acabaram por adquirir novas formas de expressão ao longo

dos anos e a tornarem-se novos conjuntos de idéias, gerando um conflito latente entre

conservação e contestação que permeou todo o século: este foi o caso, por exemplo, das idéias

liberais e democráticas que se fortaleceram essencialmente no XIX8. O mesmo ocorrera com

alguns movimentos sociais que nasceram a partir de situações específicas, como o movimento

5 HOBSBAWM, Eric J. A era dos impérios. 1875 – 1914. São Paulo: Paz e Terra, 2005. p. 19. 6 RÉMOND, René. O século XIX. 1815 a 1914. São Paulo: Cultrix, 1976. p. 13. 7 Ibid., p. 192. 8 Ibid., p. 25.

10

operário. Na medida em que estes movimentos ganhavam espaço dentro de novos contextos

sociais, alteravam-se e influenciavam as sociedades em que estavam inseridos.

Avançando um pouco dentro do recorte adotado para a pesquisa e focando a

conjuntura dos primeiros anos do século XX, alguns autores da historiografia nos afirmam

que o começo desta época histórica se estabelece no ano de 1914, tendo como um marco

importante o início da Primeira Guerra Mundial9.

Tomando esta perspectiva como referência, o começo deste período se dá a partir de

uma fase de grande prosperidade vivenciada pela Europa desde cerca de 1870, quando a

chamada belle époque e o desenvolvimento do capitalismo trouxeram para as elites de

grandes cidades como Paris, Viena e Londres, nestes anos já tidas como verdadeiras

metrópoles, uma situação de conforto até então ainda não experimentada nas últimas décadas

do século anterior.

Como uma continuidade do que começara a ser desenvolvido ao longo do século XIX,

a ciência e a técnica exacerbaram inovações sobre as comunicações, o entretenimento e o

transporte, com o advento de máquinas e dispositivos que, cada vez mais, contribuíram para

diminuir as distâncias e as dificuldades de comunicação características de séculos passados.

Ao mesmo tempo, nesta virada de século, as disputas territoriais imperialistas entre as

potências econômicas e políticas que se destacaram no século XIX, e a distribuição desigual

entre colônias e metrópoles dos aspectos associados ao progresso criaram um clima de

instabilidade constante, que aumentava as discordâncias entre as diferentes nações, que nestes

anos se fortaleciam10.

Esta conjuntura permeada por tensões e divergências políticas e ideológicas

proporcionava desde os últimos anos do XIX a sensação de um conflito iminente, que crescia

entre os países europeus alimentando-se da insatisfação gerada por questões delicadas como a

partilha dos territórios da África e Ásia, a busca capitalista acirrada por novos mercados e

novas fontes de matérias-primas, e pelas iniciativas imperialistas e nacionalistas que

embasavam muitas das conquistas feitas pela Europa. Assim, a escolha de 1914 como a

inauguração de um novo século se deu em função de ser este o momento em que todo o

conflito latente explodiu em uma conjuntura de guerra que, por toda a proporção assumida,

passou a ser denominada como a Grande Guerra11.

Direta ou indiretamente, esta guerra atingiu inúmeras nações e modificou seus

9 HOBSBAWM, E. Op. cit., p. 20. 10 RÉMOND, R. Op. cit., p. 180. 11 RÉMOND, René. O século XX. 1914 aos nossos dias. São Paulo: Cultrix, 1986. p. 15.

11

territórios, alterou regimes de governo, colocou costumes e tradições em xeque e, até mesmo,

quebrantou estados de espírito devido à violência empregada e ao uso da tecnologia e da

indústria deliberadamente para fins destrutivos12. Desde meados de 1900, as relações entre os

países europeus eram caracterizadas pelo que pode ser denominado como um estado de “paz

armada”, uma espécie de corrida armamentista que se fundamentava em uma legislação cada

vez mais pautada na militarização de determinadas sociedades.

Assim, o direcionamento crescente de verbas estatais para questões bélicas ou o

aumento do tempo de serviço militar, em associação com os sentimentos suscitados pelos

nacionalismos que se fortaleciam e pelas inovações da indústria da guerra, permeavam de

tensões uma situação já marcada por grandes rivalidades. O século XIX foi palco de

revoluções e conflitos de grandes proporções, mas de certa maneira o alcance das guerras

ocorridas até então era algo limitado a poucos territórios; na guerra iniciada em agosto de

1914, as cinco maiores potências da Europa na época – a saber: Alemanha, Áustria, Rússia,

França e Grã-Bretanha – se encontravam em situação de conflito13.

Em relação aos séculos anteriores, os acontecimentos da Primeira Guerra revelaram

aspectos que a singularizaram e, mesmo durante o seu desenrolar, classificaram-na como um

evento sem precedentes. Sua duração, extensão geográfica, e principalmente, a mobilização

de recursos, contingentes e as formas de combate empregadas neste conflito promoveram um

rompimento com aquilo que se pode chamar de uma cultura bélica forjada em guerras

anteriores14.

No que diz respeito à maneira de combater, por exemplo, a Primeira Guerra Mundial

mostrou-se como uma guerra de posições, priorizando a tomada de territórios, e isto levou a

uma mobilização de efetivos que atingiu rapidamente a cifra dos milhões de combatentes,

apresentando-se sem comparações anteriores. Todo este contingente humano necessitava de

materiais e equipamentos para combater, principalmente se levarmos em conta a duração que

a Guerra assumiu – o que, por sua vez, gerava a necessidade de mobilizar uma indústria bélica

que se apresentou como algo novo se comparado aos combates anteriores. O emprego de uma

mão-de-obra que não fosse composta por homens capazes de combater levou aos bastidores

do conflito a presença feminina, com a utilização em larga escala de trabalhadoras em fábricas

que produziam armas, veículos e munições15.

Toda esta estrutura que se formava obrigou os Estados nacionais a adotarem um novo

12 Ibid., p. 47. 13 Ibid., p. 19-22. 14 Ibid., p. 19. 15 Ibid., p. 39.

12

direcionamento de suas receitas, investindo em pesquisas e remodelando as atividades

econômicas e sociais dos países envolvidos no front. Em decorrência disto, a produção

industrial possibilitou o uso de novas tecnologias para o combate, e vinculou definitivamente

o aspecto econômico ao conflito mundial, gerando estratégias que visavam minar as

economias adversárias, paralisar suas atividades de produção, ou mesmo impedir seu acesso

às matérias-primas16.

Como um aspecto derivado disto, a maior conseqüência do envolvimento econômico

na estratégia de guerra foi a inserção da vida civil no dia-a-dia dos combates, fosse por meio

da propaganda que intentava ao mesmo tempo informar sobre os fatos e reforçar

posicionamentos ideológicos, fosse através da participação direta da população no front,

quando as batalhas chegavam até cidades com os ataques e bombardeios às capitais e vilarejos

abertos17. Novamente, o afastamento da vida civil, mantida em um ambiente quase totalmente

separado do local em que ocorriam os combates se mostrou como mais um ponto de

divergências em relação às guerras do século XIX e às mudanças trazidas com a Primeira

Guerra Mundial.

Desta forma, apresentando um quadro tão diferenciado em relação aos grandes

conflitos ocorridos nos séculos anteriores, a Primeira Guerra Mundial trouxe conseqüências

múltiplas e definitivas na constituição da Europa após os quatro anos em que ocorreu. As

alterações no mapa, provocadas pelas novas organizações territoriais após a mobilização

militar, talvez sejam o ponto mais aparente, mas nem de longe se mostram como o único sinal

da importância que este acontecimento adquiriu.

No que se refere à constituição humana presente nestes territórios atingidos pelos

combates, as perdas se mostraram significativas, e alteraram o andamento das sociedades nos

anos posteriores ao conflito, mudando o ritmo da natalidade, desorganizando as estruturas

familiares tradicionais – que, em muitos casos, não poderiam mais contar com a figura

paterna, e até mesmo com a presença de filhos mais velhos capazes de trabalhar e auxiliar nas

despesas –, alterando a densidade demográfica das cidades européias, influenciando sua

produção econômica, sua capacidade de defesa nacional, e a produção intelectual e artística da

época18.

A destruição atingiu também as cidades e devastou construções e lugares com séculos

de tradição, endividando governos comprometidos com a reparação dos danos e com a

16 Ibid., p. 26. 17 Ibid., p. 27. 18 Ibid., p. 35-36.

13

reconstrução de alguns locais. As transformações políticas, denunciando a queda dos

governos pautados em dinastias e tradições históricas e substituindo-os por discursos pautados

em ideais democráticos, apontava para um notável desmoronamento do Antigo Regime, ainda

tão presente e central nas relações políticas da Europa do século XIX19.

Todas estas transformações trazidas com a Primeira Guerra evidenciaram que o

racionalismo propagado pela cultura essencialmente européia do século XIX, que tomava por

base uma busca incessante pelo progresso e pelo desenvolvimento do homem em todas as

esferas, abrangendo, em uma projeção positiva, do aprimoramento da técnica ao refinamento

do gosto artístico e do desenvolvimento intelectual, não necessariamente promoveria o

aperfeiçoamento do ser humano; ao contrário, o choque sofrido pela racionalidade – e com

isto, pelas bases culturais, políticas e econômicas características das potências européias no

contexto anterior aos anos de guerra, e que eram tidas como o ápice do desenvolvimento

humano – deixou claro que o emprego da ciência e do conhecimento especializado em favor

da destruição poderia ser algo extremamente nocivo, derrubando ideais e devastando muito

mais do que contribuindo para a melhoria da vida do homem20.

2.2 A ARTE E A FORÇA DA TRADIÇÃO

O próprio ritmo da vida nesta virada de século apresentou uma mudança notável de

andamento com todas as inovações da técnica trazidas pela modernidade, industrialização, e

pelo crescente processo de urbanização em centros como Paris ou Londres. Essencialmente a

partir da segunda metade do XIX, por meio de uma estimulação sensorial, intelectual e física

mais rápida e intensa, o ambiente urbano passou a exercer influências diretas e operar

alterações sobre a percepção e a forma de encarar o mundo para indivíduos deste tempo. Isto,

muitas vezes, foi traduzido através das formas de arte e entretenimento que são frutos destes

anos, como a fotografia e o cinema21.

Estas características não se manifestaram, contudo, apenas nas formas de expressão

até então recentes, mas se mostraram presentes também na linguagem artística

tradicionalmente aceita como tal: questionamentos e inovações estéticas podem ser

observados nos mais diferentes campos, como a pintura, a arquitetura, a produção escultural e

19 Ibid., p. 19. 20 HOBSBAWM, E. Op. cit., p. 316. 21 BERMAN, Marshal. Tudo que é sólida desmancha no ar: A aventura da modernidade. São Paulo: Companhia das Letras, 1986. p. 141.

14

literária, e a música, dentre outros. Paralelamente a isto, influências provindas do pensamento

político e ideológico característicos deste século forneceram motivos recorrentes na expressão

da arte e assumiram grande importância neste contexto histórico, como pode ser notado em

diversas produções artísticas e arquitetônicas evidenciando a consolidação dos sentimentos

nacionais22.

Entretanto, ainda que muitas destas mudanças na arte sejam associadas aos

movimentos e escolas vanguardistas que se formavam nas últimas décadas do século XIX e

que, no início do século seguinte, caracterizariam diversas correntes estéticas denominadas

modernismo, a resistência das antigas convenções da linguagem da arte considerada cultura

oficial era algo ainda muito presente, evidenciando o valor de um passado glorioso que se

mantinha enraizado no Antigo Regime, e censurando as manifestações artísticas do presente.

Arno Mayer, em sua obra A Força da Tradição, nos demonstra o modo como a

valorização desta forma de arte embasada na estética de séculos anteriores agia como um

símbolo de poder e status das classes políticas dominantes, que utilizavam-na enquanto um

instrumento ideológico de exaltação e legitimação da lógica do regime de outrora e dos

privilégios obtidos por poucos com isto.

Segundo Mayer, a forma, conteúdo e estilo das mais diversas formas de arte deste

período eram ainda enraizados em convenções que remontavam e reforçavam a perseverança

de tradições presentes em sociedades civis e políticas pré-industriais. Entre os anos de 1848 e

1914, ainda que as culturas oficiais da Europa tenham presenciado a ascensão de diferentes

movimentos artísticos de vanguarda que marcariam o “triunfo” do modernismo no início do

século XX, a resistência imposta pela cultura que se embasava no período clássico era

extremamente sólida23.

Nesta lógica, os estilos historicamente encarados como referência nas artes – clássico,

medieval, renascentista, barroco, rococó – tornavam-se símbolos que agiam de forma a

valorizar e dignificar um passado glorioso, ao mesmo tempo em que ocultavam e censuravam

as manifestações artísticas do presente, servindo como uma espécie de “manto histórico

protetor” da hegemonia e do status das elites que produziam e consumiam a arte pautada

nestes paradigmas estéticos. Assim, as manifestações artísticas que buscavam uma postura

inovadora em face deste tradicionalismo encontravam inúmeras barreiras para se estabelecer,

posto que, muitas vezes, o cerne do discurso veiculado por meio de sua expressão calcava-se

22 RÉMOND, René. O século XIX..., p. 150. 23 MAYER, Arno J. A Força da Tradição. A persistência do Antigo Regime (1848 – 1914). Trad. de Denise Bottmann. São Paulo: Schwarcz, 1981. p. 187.

15

no questionamento e na crítica contra as instituições hegemônicas e contra as elites da

sociedade européia24.

Este cenário característico de resistência muitas vezes obrigou os artistas presentes

nestes movimentos de vanguarda a procurarem por um público consumidor específico – o que

nem sempre se mostrava fácil, posto que a maior parte da burguesia ainda consumia e buscava

referências culturais nas formas de expressão convencionais. Entretanto, mais do que investir

contra as antigas instituições hegemônicas que estavam fortemente incrustadas na sociedade

européia, estes novos artistas buscavam maneiras de se libertar do torniquete causado pela

postura histórica enrijecida no que se referia aos ramos da alta cultura na Europa, objetivando

criar um novo espaço no qual a experimentação técnica, estilística e temática fosse vista e

consumida enquanto arte pela burguesia25.

O tradicionalismo artístico que se fazia presente neste contexto explica-se, em partes,

pelo fato de que diversas academias e conservatórios renomados ainda obrigavam estes novos

artistas, na segunda metade do século XIX, a sustentarem o paradigma artístico convencional,

possuindo currículos engessados que limitavam a liberdade criativa dos estudantes em prol da

permanência dos gêneros tradicionais da arte. Assim sendo, os círculos de artistas de

vanguarda se viam cada vez mais alienados em relação à burguesia e à sociedade como um

todo, formando uma espécie de subcultura estética que valorizava a arte pela arte,

respondendo apenas aos seus próprios anseios criativos, muitas vezes desconectada da vida

cotidiana e inserida em redes alternativas que possibilitavam o reconhecimento de suas obras

modernistas – geralmente expostas e apresentadas em círculos amadores de artistas e em

cabarés fora do circuito da alta sociedade26.

Esta persistência de um ideal estético característico do Antigo Regime se fazia

presente mesmo nas formas de arte menos declaradas enquanto produções voltadas para o

deleite intelectual e cultural. A arquitetura do século XIX, por exemplo, ainda se manteve

presa aos estilos do passado na grande maioria das construções como igrejas, prédios

públicos, palácios e mansões, e mesmo nas construções necessariamente surgidas a partir dos

avanços tecnológicos do período, como as estações ferroviárias de Milão ou Colônia, os

traços arquitetônicos modernos em fachadas de concreto, ferro e vidro eram dissimulados por

meio de recursos estilísticos como arcos e colunas, que remontavam às estéticas anteriores27.

24 Ibid., p. 188. 25 Ibid., p. 189-190. 26 Ibid., p. 191-193. 27 Ibid., p. 197.

16

Talvez o melhor exemplo disto a ser lembrado seja a Ringstrasse: construída em Viena

na segunda metade do XIX e tida como um símbolo de toda a efervescência cultural e artística

da época, esta rua apresenta diversas construções públicas em estilo gótico, barroco e

renascentista, e é definida por Arno Mayer como “um reflexo microscópico da paixão da

burguesia pelo empréstimo histórico que incessantemente ajudava a relegitimar a antiga

ordem a que estava subordinada” 28.

A respeito da música no período, entre os anos de 1848 e 1914 o gênero operístico

tornou-se cada vez mais imponente e difundido fora dos círculos cortesãos. Neste âmbito, o

compositor Richard Wagner encontrou lugar enquanto um dos nomes mais representativos do

romantismo alemão, integrando as chamadas grandes artes – arquitetura, pintura, teatro,

poesia, música e dança – em uma totalidade harmônica “qualitativamente mais grandiosa e

diversa de seus elementos constitutivos”29.

Sua criação artística apresentou grandes inovações em relação às obras de tempos

anteriores, lançando bases que influenciaram diretamente compositores importantes que

vieram a surgir. Em contrapartida, a obra wagneriana pode ser vista como um instrumento da

persistência da antiga ordem social não somente na Alemanha, mas em toda a Europa: ao

mesmo tempo em que reforçava a idéia da nacionalidade alemã que se consolidava, sua

estética prezava também pelos valores arraigados do Antigo Regime, tornando-se uma espécie

de ideal musical a ser seguido dentro da alta cultura aceita pelos círculos aristocráticos

europeus do século XIX. Neste mesmo contexto, obras que marcaram rupturas estilísticas em

relação aos conceitos musicais anteriores, como A Sagração da Primavera de Igor Stravinsky,

ou o Prélude à l’Aprés-midi d’un Faune de Debussy, acabaram sendo friamente recebidos

pela maioria da audiência européia30.

Um outro ponto fundamental de apoio à antiga ordem era encontrado na Igreja. Ainda

que a Europa viesse sofrendo um longo processo de descristianização e secularização em sua

sociedade, entre as camadas mais populares das vilas e cidades e entre os camponeses das

aldeias esta descristianização não tomara tão rapidamente proporções de longo alcance. O

mesmo ocorria em relação às camadas da aristocracia, que não abandonaram por completo a

Igreja, e também podia ser verificado em relação aos trabalhadores que estavam inscritos em

28 Ibid., p. 195. 29 Ibid., p. 208. 30 Ibid., p. 211.

17

partidos e sindicatos socialistas: em sua maioria, estes indivíduos ainda buscavam receber os

sacramentos, casar-se e serem sepultados sob a fé de seus pais31.

Por conta disto, as igrejas ainda mantinham papéis importantes em relação ao

cumprimento de funções burocráticas cotidianas à sociedade, não somente no que se referia

essencialmente à esfera religiosa e sacramental, como batismos, matrimônios e funerais, mas

também relacionadas ao trabalho e educação destas comunidades, administrando e dirigindo

orfanatos, escolas, asilos e demais instituições desta natureza. Em partes por conta deste

processo de secularização mencionado, a postura adotada pela Igreja passara a mostrar um

interesse particular em expandir e proteger seu papel educacional nestas sociedades em

crescimento, buscando junto aos governos a manutenção de seus antigos privilégios e funções

em troca de subsídios e créditos adicionais32.

Com a virada do século e a crescente preocupação das forças conservadoras em

relação ao socialismo e aos novos movimentos políticos que tomavam forma, passou a ocorrer

um aumento do apoio público às igrejas, e esta espécie de cumplicidade entre as forças do

Antigo Regime e a Igreja acentuara a intolerância em relação às expressões artísticas

modernistas em ambas as esferas. É neste sentido que iniciativas religiosas passaram a

estabelecer o modernismo como uma forma de heresia a ser suprimida, e ações do pontificado

foram levadas a cabo na intenção de ressacralizar valores cristãos e reafirmar a verdade literal

contida nas Escrituras, posto que mesmo entre clérigos e teólogos crescia o advento de uma

nova visão crítica objetivando conciliar a doutrina e prática católica com o pensamento

científico que pouco a pouco aflorava33.

As instituições de ensino superior, em relação ao desenvolvimento deste pensamento

científico e ao contrário do que se costuma supor, atuavam muitas vezes enquanto defensoras

dos valores já estabelecidos do Antigo Regime. Enquanto representantes da alta cultura, estas

instituições assumiam para si o papel de mediadoras da sociedade tradicional em sua

adaptação ao futuro e à modernidade, sendo veículos encarregados da reprodução da

concepção de mundo e do pensamento erudito por meio do ensino clássico. Ao longo do

século XIX as disciplinas como o conhecimento do latim e o estudo de textos clássicos

assumiram um espaço cada vez maior no curriculum de ensino das escolas, na intenção de

31 Ibid., p. 238. 32 Ibid., p. 239. 33 Ibid., p. 240-242.

18

fornecer às elites o substrato cultural necessário para a participação em uma classe superior

que dirigiria a cultura oficial e estatal34.

Por conta disto, a incorporação de novas disciplinas neste curriculum educacional,

bem como a integração de novos elementos sociais no grupo discente destas instituições era

algo muitas vezes evitado, mantendo as escolas superiores fechadas a estas iniciativas. Ao

mesmo tempo, a necessidade de um grau universitário formava uma espécie de pré-requisito

absoluto para o ingresso ou o avanço nos estratos sociais superiores, o que garantia o

estabelecimento de idéias e valores conservadores e hierárquicos legados do Antigo Regime à

sociedade européia na transição do século XIX ao século XX35.

2.3 SOCIEDADE E INDIVÍDUO

Este fin-de-siècle também pode ser identificado como o período do surgimento de

novos tipos sociais próprios da vida moderna: figuras como o flâneur, os nômades e

vagabundos que habitavam os grandes centros urbanos, o patronato ligado às atividades

bancárias ou os trabalhadores operários vindos do campo para as indústrias, dentre outros

exemplos, são elementos típicos deste contexto. Isto se deu, em partes, devido a consolidação

dos novos espaços e das novas sociabilidades que o crescimento notável das cidades e dos

espaços urbanos proporcionou nas últimas décadas do XIX, reforçando a oposição existente

entre o ambiente urbano e rural36.

A classe média que se formou neste espaço citadino perpassado por mudanças sociais

e políticas consolidou aos poucos uma pequena burguesia, na medida em que as funções e

cargos públicos se tornaram mais numerosos. Em contrapartida, os atores sociais de épocas

anteriores que ainda relacionavam-se à conjuntura característica das sociedades do Antigo

Regime não desapareceram de imediato: em nenhum local da Europa a Revolução Francesa

conseguiu retirar completamente o controle das mãos da aristocracia, que se mantivera

detentora de posses, nomes e da legitimidade de seu poder e de suas ações sobre as camadas

populares. Citando o caso da França, por exemplo, é principalmente a partir da segunda

metade de 1800 que sua fisionomia se alterou profundamente por meio da industrialização, da

modernidade, da urbanização e do crescimento vertiginoso de seus centros. Assim, a

34 Ibid., p. 246-248. 35 Ibid., p. 249-251. 36 WILLIAMS, Raymond. O campo e a cidade: na história e na literatura. Trad. de Paulo Henriques Britto. São Paulo: Cia. das Letras, 1989. p. 71.

19

sociedade que se formou ao longo do século XIX na Europa assumiu frequentemente a

imagem de uma justaposição de diversas sociedades e culturas muito heterogêneas entre si37.

O fortalecimento da concepção do homem enquanto um “indivíduo” e não mais como

um elemento indissociável de sua coletividade é algo característico deste período, como pode

ser visto através de obras literárias como a de Charles Baudelaire, que retratam diferentes

aspectos da convivência humana nestes grandes centros38. Na visão própria do liberalismo da

época, o indivíduo seria o agente capaz de construir a história, e por meio de sua razão

individual alcançaria a verdade.

Esta perspectiva liberal prezava pela racionalidade em oposição e questionamento à

tradição, ao dogma e às doutrinas que defendiam a aceitação dos costumes pela sua

importância ao longo do tempo: de seu lado, o liberalismo afirmava a relatividade de idéias e

a tolerância individual em relação a pontos de vista distintos pautados na racionalidade39.

A contraposição entre o espaço público e privado tornou-se algo mais demarcado e

racional, e instituições tradicionais e icônicas do Antigo Regime, como a família, por

exemplo, assumiram pouco a pouco novas formas e organizações, firmando-se como um

elemento mantenedor do senso de moralidade e adquirindo cada vez mais aspectos simbólicos

de status e de afirmação nos meios políticos e culturais40.

Simultaneamente, a cultura e a fortuna fortaleceram-se cada vez mais como fatores de

diferenciação social, e os laços do Antigo Regime que possibilitavam o convívio entre ricos e

pobres nas sociedades de outrora foram gradativamente desfeitos com a lógica do capital que

ganhava força. Isto, ao mesmo tempo em que aumentou a mobilidade social dos indivíduos

dentro das sociedades européias tradicionais e conservadoras, afirmou em alto e bom tom a

desigualdade latente do meio urbano, pois com a lógica do lucro aqueles que não possuíam

posses encontraram-se cada vez mais marginalizados, obrigando-se a buscar alternativas de

sobrevivência nas grandes cidades e aumentando os índices de indigência41.

As mudanças trazidas com o advento da modernidade acarretaram alterações

definitivas sobre a experiência individual das pessoas, proporcionando situações que, muitas

vezes, resultavam em choques físicos e perceptivos no ambiente urbano moderno42. Atrelada

às conseqüências da Revolução Industrial, esta época proporcionou, por um lado, uma 37 RÉMOND, René. O século XIX…, p. 56-59. 38 BERMAN, M. Op. cit., p. 143-159. 39 RÉMOND, René. O século XIX..., p. 27. 40 HISTÓRIA DA VIDA PRIVADA, 4: da Revolução Francesa à Primeira Guerra. Sob a direção de Michelle Perrot ... [et al]. Tradução de Bernardo Joffily. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. p. 93-97. 41 RÉMOND, René. O século XIX..., p. 47. 42 SINGER, Ben. Modernidade, hiperestímulo e o início do sensacionalismo popular. In: CHARNEY, Leo & SCHWARTZ, Vanessa. O cinema e a invenção da vida moderna. São Paulo: Cosac & Naify. 2001. p. 116.

20

especialização do homem e a segmentação crescente de seu trabalho e, por outro, o tornou

mais dependente da rede social da qual fazia parte43.

Assim, o “instinto” que agia sobre a pessoa para se preservar enquanto indivíduo era

algo cada vez mais latente, exigindo o resguardo de sua autonomia e da individualidade de

sua existência em face das esmagadoras forças sociais que tendiam a uniformizá-lo. Estes

mesmos fatores que tornaram mais precisa a vida do indivíduo moderno, promoveram o

nascimento de uma subjetividade altamente pessoal caracterizada por um fenômeno intrínseco

à metrópole, possibilitando o nascimento do indivíduo blasé: a constante exposição a este

dinamismo de informações característico dos grandes centros urbanos estimulava o

inconsciente dos indivíduos a tal extremo que, a partir de certo tempo, este deixava de

responder com tanta sensibilidade aos fatos cotidianos44.

Surgia, assim, uma incapacidade urbana de reagir a novos estímulos físicos e

sensoriais com a intensidade apropriada, ou ao menos esperada, constituindo uma atitude

indiferente que passou a caracterizar o morador da metrópole se comparado com o habitante

do campo, por exemplo, ou de qualquer ambiente menos intenso e sujeito a constantes

transformações45.

Esta grande carga de informações sobre a sensibilidade do indivíduo, definida como

hiperstímulo, pode ser observada através dos textos de revistas e jornais sensacionalistas do

final do século XIX e princípio do século XX, e nas imagens impressas nestes jornais: em sua

maioria, estas visavam reproduzir o ambiente caótico formado nesta nova paisagem urbana,

apresentando estímulos agressivos mostrados simultaneamente em um mesmo quadro – o que

traduzia, em partes, o sentimento de uma atmosfera caótica, intensa e repleta de riscos

envolvendo situações do trânsito ou dos novos meios de transporte das cidades, por

exemplo46.

O comércio de entretenimentos destes anos mostrou-se como algo extremamente

característico da modernidade e do processo de adaptação social dos indivíduos inseridos em

um ambiente urbano repleto de estímulos e novidades, por vezes, difíceis de serem

acompanhadas. A idéia de espetáculo e surpresa e, desta maneira, a narração sensacionalista,

auxiliada em seu discurso realístico por ferramentas como a fotografia e o cinema, tornou-se

uma peça-chave na veiculação de notícias que buscavam retratar o cotidiano destes grandes

43 WILLIAMS, R. Op. cit., p. 215. 44 SIMMEL, Georg. A metrópole e a vida mental. In: VELHO, Otávio Guilherme (Org.). O fenômeno urbano. Rio de Janeiro: Zahar, 1976. p. 13-15. 45 WILLIAMS, R. Op. cit., p. 215. 46 SINGER, B. Op. cit., p. 121-127.

21

centros urbanos. Os próprios melodramas teatrais do período passaram a procurar cada vez

mais o sentimento de choque sensorial sobre os espectadores, seja por meio do suspense em

seus roteiros, seja através de cenas que evocavam grandes reviravoltas e tragédias no enredo,

como incêndios, naufrágios ou explosões47.

Por mais exagerado que isto nos pareça, a intensidade buscada nestas formas de

entretenimento correspondia à nova estrutura apresentada na vida diária das pessoas,

fragmentada em pequenas impressões justapostas em seqüência, caracterizando a atmosfera

das metrópoles que se formavam. Nas palavras de Ben Singer, “o organismo mudou de

marcha, sincronizando-se ao mundo acelerado”, e ocasionando uma necessidade cada vez

maior de novos estímulos que refletissem as tensões da vida moderna48.

O século XIX se mostrou por excelência o período de fortalecimento do sentimento de

nacionalidade e da formação dos Estados nacionais como os conhecemos hoje. As ideologias

nacionalistas, que mobilizaram diversas lutas pela unidade territorial na Europa e pela

afirmação de valores e tradições, constituíram, assim, um dos pilares do conflito levado a

cabo com a Primeira Guerra Mundial em 1914.

Ernest Renan, escrevendo no último quartel do XIX a respeito das nações e do

nacionalismo, afirmava que a existência de um passado em comum, repleto de

acontecimentos associados à origem do povo e de sofrimentos que fortaleceriam uma ação em

prol do bem comum, se fazia como elemento mais importante na constituição do sentimento

nacional – superando, inclusive, os aspectos legais que organizavam uma sociedade, sua

identidade lingüística, ou suas delimitações de fronteiras49.

Da mesma maneira, Josef Stalin, escrevendo sobre este mesmo tema já no turbilhão do

início do século XX, reforçava neste processo de formação do sentimento nacional a

necessidade de uma identificação que se daria principalmente pela diferenciação de uma certa

cultura em relação a culturas adjacentes50. Esta identificação ocorria pela história de um povo,

pelas suas conquistas em prol de uma coletividade, e pelas tradições que se formavam em

torno dele – o que, cabe dizer, é construído posteriormente nos registros da história,

legitimando e justificando práticas e unidades culturais51.

As artes agiriam como um elemento de extrema importância nesta construção e,

principalmente, na propagação deste conhecimento a respeito de um passado em comum para

47 Ibid., p. 137. 48 Ibid., p. 139. 49 RENAN, Ernest. Qu’est-ce qu’une nation? Paris: Calmann-Levy, 1882. p. 28. 50 STALIN, Josef. The Nation. In: Marxism and the Natural Question, de The Essential Stalin: Major Theorical Writings 1905 – 1952. Londres: Croom Helm, 1973. p. 57-61. 51 JENKINS, Keith. A história repensada. São Paulo: Contexto, 2009. p. 25.

22

a sociedade. A música, tal como a literatura, talvez seja uma das manifestações artísticas que

mais pode contribuir para a formação de uma herança de identidade cultural: é bastante

conhecida a atuação de compositores que, ao longo do século XIX, escreveram peças

musicais, concertos e óperas sobre temas mitológicos ou sobre um passado glorioso que deu

origem a determinado povo. Destes, talvez o exemplo mais caro seja a já citada figura de

Richard Wagner, compositor alemão que compôs diversas obras tratando sobre a formação da

nacionalidade alemã, e que além de seu valor artístico, carregavam em si um poderoso

elemento de formação da identidade e da unidade cultural da Alemanha.

É neste contexto histórico e social das últimas décadas do século XIX e dos primeiros

anos do século XX que se enquadra o objeto de análise desta pesquisa. Nascido na França do

ano de 1862, o compositor Claude-Achille Debussy tornou-se um dos principais nomes da

produção musical francesa, lançando bases que revolucionariam a maneira de compor e, até

mesmo, de apreciar a música de seu tempo.

Sendo muitas vezes associado a um dos pilares do modernismo na estética musical, a

produção artística de Debussy que toma forma nos anos imediatamente anteriores à

conjuntura de tensão que ocorre na Europa com a Primeira Guerra Mundial apresenta

características que podem enquadrá-lo enquanto um defensor da perspectiva nacionalista da

França, em contraposição a muitos elementos defendidos por ele, presentes em suas

composições do século XIX, e que afirmam a importância da busca por uma liberdade na

criação artística que independa de raízes culturais ou nacionais.

Assim, a intenção presente nos próximos capítulos desta pesquisa é direcionar o olhar

a estes diferentes momentos e à obra elaborada por Debussy em duas etapas distintas de sua

vida, identificando suas características e analisando-as de acordo com o contexto histórico e

social de sua época.

23

3 MÚSICA, HISTÓRIA E ARTE

3.1 A MÚSICA E A EXPRESSÃO DOS SENTIMENTOS

Muitas vezes, em conversas despretensiosas sobre música, podemos já ter ouvido dizer

que esta exprime os sentimentos através de notas organizadas em ritmo, melodia e harmonia.

Este ponto de vista, que ainda nos dias de hoje se manifesta no senso comum, é algo que foi

lapidado ao longo da história de uma tradição musical e formou, outrora, a principal base

teórica de toda uma corrente de pensamento sobre o conteúdo e a estética da música. Esta

associação entre a música e a expressão dos sentimentos é algo que pode ser encontrado em

tratados sobre arte escritos desde o século XV, e possivelmente chegou até os autores destas

obras por meio de tradições e heranças culturais ainda mais antigas, que podem ter circulado

ao longo dos séculos, sofrido mudanças e cristalizado opiniões dentro e fora das academias.

A literatura de séculos passados, como nos aponta Mário Videira em sua obra O

Romantismo e o belo musical, já estabeleceu como o papel das artes a representação e a

imitação da natureza52. A música, que neste contexto era considerada uma forma menor de

arte se comparada à poesia, pintura ou ao teatro, por exemplo, tinha como seu objetivo a

imitação dos sentimentos e das paixões do homem, e era geralmente classificada em duas

categorias distintas: as formas musicais que exprimiam os sons animados e que continham em

si os próprios sentimentos – nesta categoria enquadrava-se a música vocal, executada e

relacionada aos cultos religiosos e à ópera e associada à expressão de um texto ou poesia

musicados; e as formas musicais que imitavam os sons da natureza, de execução puramente

instrumental e desligada dos sentimentos, muitas vezes vistas somente como “ruídos

agradáveis” destinados ao divertimento ou ao exercício dos instrumentistas, e inferiores

artística e hierarquicamente à música vocal. Nesta lógica, a música instrumental adquiria

legitimidade enquanto arte na medida em que atuava como um apoio à ação dramática,

apresentando-se como uma pintura dos sentimentos expressos em uma ópera ou em um culto

religioso, e seu objetivo maior tornava-se o ato de levar o espectador à emoção53.

Ao longo do século XVIII, as idéias florescidas no âmbito da filosofia da arte e da

estética relacionaram pouco a pouco as formas de arte – e dentre estas, a música – à esfera da

razão, baseadas em concepções cartesianas que valorizavam a expressão artística por meio de

52 VIDEIRA, Mário. O Romantismo e o belo musical. São Paulo: Unesp, 2006. p. 27. 53 Ibid., p. 31.

24

princípios racionais e aproximavam os domínios da natureza, da arte e da ciência54. Esta

concepção, entretanto, não excluiu a associação existente entre música e sentimento, e

manteve-se a afirmação de que a música podia excitar as mais diferentes paixões sobre o

ouvinte.

Esta associação entre a música e os sentimentos, também denominada nos tratados

musicais do século XVIII como “doutrina dos afetos”, fundamentou uma das principais teses

da estética e da teoria musical do período barroco, tornando-se o objetivo central buscado por

muitos compositores na concepção de suas obras e figurando diversos tratados que

orientavam o artista a respeito de fórmulas distintas de composição capazes de suscitar a

tristeza, o amor, o ódio e os mais diversos sentimentos sobre sua audiência. Neste período, é

sobretudo na Alemanha que a doutrina dos afetos alcançou seu maior desenvolvimento, por

meio de obras como Das neu-eröffnete Orchestre e Das vollkommene Capellmeister: estes

escritos de Johann Mattheson55, muito populares entre músicos e compositores da época,

propunham distinções e categorizações de escalas musicais em relação aos sentimentos que

estas suscitariam, afirmando, por exemplo, que a escala de Sol menor

“(...) é quase o tom mais belo de todos, porque ele não somente (...) mistura uma considerável seriedade com uma graça animada, mas conduz consigo uma extraordinária formosura e cortesia; Dó maior possui uma qualidade consideravelmente rude e audaciosa; Fá maior é capaz de exprimir os mais belos sentimentos do mundo, seja a generosidade, a constância, o amor ou o que mais esteja nesse registro de virtude.”

56.

Em meados do século XIX, a circulação destas idéias e teorias sobre estética musical

determinava que o objetivo principal da música enquanto arte não era mais a imitação das

paixões do homem, mas sim o efeito real que esta causava sobre os sentimentos dos ouvintes;

desta maneira, o próprio conteúdo da música, sua essência e matéria-prima, passou a ser visto

como a representação dos próprios sentimentos humanos através dos sons57. Durante quase

todo o século XIX a opinião de críticos, apreciadores e músicos tomou esta perspectiva como

o alicerce de novos tratados científicos e filosóficos, consolidando grande parte do

conhecimento a respeito do campo musical que chegou até o século XX, e pode ser

encontrado no senso comum ainda hoje.

54 Ibid., p. 26. 55 Johann Mattheson foi um importante teórico musical do século XVIII, autor de obras que fundamentaram algumas das principais idéias do barroco musical na Alemanha. 56 MATTHESON, J. Apud VIDEIRA, M. Op. cit., p 59. 57 Ibid., p. 63.

25

Este ponto de vista a respeito de expressão dos sentimentos na música, contudo, sofreu

ao longo do tempo diversas reinterpretações e adquiriu diferentes significados, de acordo com

a proposição e aceitação de novas idéias e paradigmas no campo da filosofia da arte e da

estética. A partir da estética própria do Romantismo, estabelecida no final do século XVIII e

consolidada como uma forte influência na obra de diversos compositores do século XIX, por

exemplo, começou a ganhar espaço a opinião de que a representação dos afetos não se daria

mais de maneira objetiva e racional sobre a audiência, mediante o estímulo dos ouvintes a

estados emocionais premeditados, mas traduziria emoções subjetivas, pessoais, originadas no

compositor e levadas ao público por meio de sua própria comoção ao criar uma obra musical,

como se pode perceber nos escritos de Carl Phillipe Emmanuel Bach58:

“Um músico comove aos outros somente se ele mesmo está comovido. É indispensável que ele prove todos os estados de ânimo que ele quer suscitar nos seus ouvintes, porque de tal modo os fará compreender os seus sentimentos e os fará participar de suas emoções”59.

Aprofundando-nos neste debate a respeito da capacidade inerente à música de

provocar ou traduzir sentimentos, talvez um dos maiores expoentes tenha sido Eduard

Hanslick: contemporâneo de Claude Debussy e influente crítico musical vienense do século

XIX, este autor escreveu no ano de 1854 a obra intitulada Do Belo Musical, que buscava

desconstruir a idéia corrente de que a música seria a pura expressão dos sentimentos, e o seu

conteúdo, a representação destes.

3.2 AS SENSAÇÕES E O CONTEÚDO MUSICAL

Em sua obra, Eduard Hanslick defende a necessidade de uma revisão nos conceitos da

estética musical de seu tempo, que estabeleciam a existência de uma “essência poética”

comum a todas as artes, lado a lado com a importância do efeito de uma obra de arte sobre o

sujeito que a aprecia. No ponto de vista de Hanslick, a importância maior da investigação

58 Carl Phillipe Emmanuel Bach, filho de Johann Sebastian Bach, foi um importante músico e compositor alemão do final do século XVIII, tendo sua obra classificada no período transitório entre a estética barroca e o classicismo. 59 BACH, C. P. E. Apud VIDEIRA, M. Op. cit., p. 63.

26

sobre o belo, a essência existente em uma obra de arte, deve recair diretamente sobre o objeto

artístico, e não sobre o observador que o contempla60.

Este argumento conceitual característico do século XIX combatido por Hanslick

mostrava-se como arbitrário na associação entre música e sentimento, posto que esta

concepção identificava na finalidade da música a necessidade de suscitar sentimentos, e mais

ainda, sentimentos belos. Na perspectiva de Hanslick, há uma clara distinção entre o que se

define enquanto sentimento nas artes e o que se deve entender por sensação: esta age

enquanto a percepção de uma qualidade sensível, como um som ou uma cor; o sentimento,

por outro lado, é definido por ele como a conscientização de uma incitação ou inibição do

estado anímico, um bem-estar ou mal-estar61.

A crítica musical e os escritos a respeito da filosofia das artes e da música do século

XIX afirmavam que as verdadeiras idéias a serem representadas por uma obra musical eram

sentimentos, e neste processo os sons e sua relação por meio do ritmo, melodia e harmonia

seriam somente o material ou o meio pelo qual o compositor representaria o amor, a tristeza, a

coragem ou a devoção, por exemplo.

Nesta discussão sobre a apreciação de uma obra de arte, Hanslick defende que o

conteúdo representado em uma obra atinge antes de tudo os sentidos do observador,

proporcionando, assim, sensações ao espectador que ouve uma sinfonia, por exemplo – mas

estas não necessariamente relacionam-se imediatamente com os sentimentos deste ouvinte. Os

sentimentos, em seu ponto de vista, dependem necessariamente de pressupostos físicos e

mentais, sendo condicionados por representações e juízos particulares e relacionam-se,

portanto, às faculdades intelectuais e racionais do ser humano. A música, desta maneira, teria

apenas o poder de evocar sensações, atribuídas subjetivamente aos sentimentos pelo ouvinte,

baseando-se em suas próprias lembranças ou em sua interpretação do conteúdo musical ao

qual está em contato62.

Assim, estabelecendo que não são os sentimentos o conteúdo representado pela

música, mas sim idéias puramente musicais que partem do compositor através de melodias,

Hanslick nos aponta que em relação aos sentimentos a música poderia representar apenas sua

dinâmica, seu movimento ou sua intensidade – porém, a definição de quais seriam estes

sentimentos se daria exclusivamente por meio de elementos simbólicos que formariam

60 HANSLICK, Eduard. Do belo musical. Um contributo para a revisão da estética dos sons. Tradução de Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 1994. p. 14. 61 Ibid., p. 15. 62 Ibid., p. 24.

27

conjuntos de significados próprios, relacionados à interpretação pessoal daquele que ouve

determinada obra musical. Nas palavras de Hanslick, esta relação se dá de forma simbólica

“(...) porque não representa de modo algum imediatamente o conteúdo [do

sentimento], mas continua a ser uma forma essencialmente distinta daquele. Se no amarelo vemos o ciúme, no Sol maior, alegria, no cipreste, a tristeza, tal interpretação tem uma relação fisiológico-psicológica com peculiaridades desses sentimentos, mas só a tem a nossa interpretação, e não a cor, a planta, o tom em si e por si. Não pode, pois, dizer-se de um acorde em si que representa um sentimento determinado, e menos ainda que o faz na conexão com a obra de arte. (...) Assim como num grande quadro histórico nem todo o vermelho nos sugere alegria, nem todo o branco inocência, assim também numa sinfonia nem todo Lá bemol maior nos despertará um estado de ânimo exaltado, nem todo Si menor uma disposição misantrópica, nem cada acorde perfeito satisfação, nem todo acorde de sétima diminuta, desespero.”63.

Em síntese, Eduard Hanslick discorda de críticos de seu tempo que afirmavam a

existência de passagens musicais nas quais o ouvinte agradava-se ao sentir “sussurros de

ternura” ou “ímpetos de combatividade” através de melodias e harmonias engenhosas; em

suas palavras, “a música possui um sem o outro; pode sussurrar, trovejar, precipitar-se –

mas só o nosso coração é que nela introduz o amor e o ódio. A representação de um

sentimento ou afeto não reside na capacidade peculiar à arte dos sons”64. A dinâmica

executada em determinadas obras, suas variações quanto à coloração e timbres, o ritmo e a

forma dos sons, para Hanslick, seriam os principais elementos capazes de evocar estas

sensações.

Indo além em sua análise, Hanslick nos afirma que o conteúdo da música nada mais é

além das formas sonoras ouvidas, posto que “a música não se manifesta só por meio de sons,

[mas] expressa apenas sons”65. A melodia e a harmonia musicais, continua Hanslick, são

criações exclusivas do espírito humano e não podem ser encontradas puramente na natureza;

na visão do autor, esta fornece ao homem somente os materiais necessários, como a madeira,

o metal ou a pele dos animais, por exemplo, para formar aquilo que há de material na música,

sua matéria-prima e conteúdo: os sons brutos, lapidados pelo compositor em harmonia e

melodia por meio de seu espírito.

Defendendo este ponto de vista que dissocia a expressão sentimental do conteúdo da

música e o relaciona apenas à expressão sonora, Hanslick afirma que a criação de uma obra

musical não é o resultado direto dos sentimentos pessoais do compositor, mas uma

conseqüência de fatores sonoros escolhidos por este baseado somente em seu conhecimento a

63 Ibid., p. 28. 64 Ibid., p. 24. 65 Ibid., p. 100.

28

respeito da arte dos sons, em uma perspectiva que tenta sugerir uma certa objetividade ao ato

de compor e retira de suas influências aspectos sociais, históricos e pessoais, que ficam

alheios à obra de arte. Estas influências, por sua vez, podem manifestar-se no intérprete de

uma peça musical, que a vivencia e transmite o sentimento presente em sua execução ao

coração dos ouvintes, mas se faz ausente da obra de arte em si ou de todo seu processo de

criação66.

Entretanto, é justamente nestes aspectos citados por Hanslick que residem muitas das

inovações presentes na estética musical de algumas obras de Claude Debussy, e que abrem

caminho para uma linguagem musical que caracterizaria aquilo que viria a ser chamado de

“música moderna” ao longo do século XX.

3.3 CLAUDE DEBUSSY E A MÚSICA MODERNA

Trilhando um caminho contrário ao que era proposto pela estética romântica da música

do século XIX – que tem como seu maior referencial a figura e as composições de Richard

Wagner67, a busca pela construção de uma identidade nacional e o zelo pelos valores

cultivados ao longo do Antigo Regime –, Claude Debussy adotou uma linha pessoal na

concepção de suas obras que, muitas vezes, chocou-se com o padrão das formas de

composição até então consagradas.

Paul Griffiths, estudioso e crítico musical contemporâneo, estabelece em uma de suas

análises a frase inicial escrita para flauta na obra Prélude à l’Après-midi d’un Faune como o

primeiro passo do que viria a dar origem à música moderna do século XX, quando a quebra

da estrutura tonal inauguraria possibilidades inimagináveis dentro dos padrões tradicionais de

composição que vigoravam desde o século XVII e davam coerência a quase todas as formas

de música ocidental68.

Esta obra de Debussy, embora ainda não apresente características que possam

enquadrá-la como uma composição atonal, lançou mão de modelos estéticos e criativos que

exerceram forte influência em compositores contemporâneos de seu autor, libertando-se do

sistema de tonalidades diatônicas maiores e menores: nos dois compassos iniciais da

66 Ibid., pp. 62 e 63. 67 A estética inaugurada pelas obras de Wagner foi um dos principais elementos a consolidar a perspectiva de que o conteúdo da música seria a expressão direta dos sentimentos. A obra Do belo musical, de Eduard Hanslick, foi escrita em oposição à própria figura de Richard Wagner, que defendia a associação mencionada entre sentimentos e música. 68 GRIFFITHS, P. Op. cit., p. 7.

29

composição, por exemplo, Debussy criou uma sensação de dúvida a respeito da tonalidade em

que a melodia estaria sendo executada ao utilizar-se de notas localizadas fora da gama de sons

que permitiria identificar com precisão uma determinada escala ou tonalidade69.

Da mesma maneira, a lógica tradicional da composição musical estabelecida nos

modelos anteriores apresentou algumas inovações nesta obra de Debussy: ao invés de propor

um tema bem delimitado que seria desenvolvido ao longo da peça, o que constitui uma

característica marcada da estética romântica e mesmo das formas musicais clássicas de

séculos anteriores, o compositor lançou algumas idéias musicais que, por vezes, aparecem

vacilantes e incertas até o momento em que se afirmam como um motivo característico,

desdobrando-se dentro da composição. Esta forma de escrita utilizada por Debussy em seu

Prélude, ao invés de proporcionar o desenvolvimento progressivo de uma idéia principal

dentro da obra, suscita antes uma forte sensação de improviso e espontaneidade musical que

em tudo se diferenciou das características do chamado Romantismo tardio na música70.

Paul Griffiths acrescenta que esta espontaneidade sugerida pela forma musical do

Prélude decorre muito das mudanças de andamento e das formas rítmicas irregulares

utilizadas por Debussy nesta obra, tornando-a mais livre em sua medida de tempo e

distanciando-se do modelo tradicional de regularidade e homogeneidade do ritmo, onde a

atenção do ouvinte concentrava-se principalmente na harmonia e na forma melódica, e os

andamentos eram apresentados de modo a caracterizar o ímpeto da composição em direção ao

seu clímax e conclusão71.

Um outro ponto característico das composições de Claude Debussy que pode ser

exemplificado através do Prélude diz respeito à orquestração utilizada: seus temas para

determinados instrumentos dentro das peças foram construídos de maneira a realçar nuances

particulares daquele registro sonoro, dando à sua música um aspecto de delicadeza e

personalidade que, segundo Griffiths, era algo raro de ser encontrado nas formas de

composição anteriores. Ao ouvirmos uma transposição das composições de Debussy para

outras formações ou instrumentos, é possível notarmos que determinadas frases musicais,

como o citado motivo da flauta escrito para o início do Prélude à l’Après-midi d’un Faune,

perdem parte de sua substância em relação à idéia original. Esta característica faz com que a

orquestração de suas peças demarque de maneira peculiar tanto as idéias a serem apresentadas

melódica e harmonicamente, quanto a estrutura musical construída ao longo do

69 Idem. 70 Ibid., p. 9. 71 Idem.

30

desenvolvimento da composição, deixando de ser apenas um elemento ornamental ou de

realce sonoro72.

Esta diferenciação na maneira de Debussy orquestrar suas criações veio de uma

formação que se distanciou da tradição austro-germânica e de seu desenvolvimento

musicalmente “lógico”, que buscava assemelhar-se à construção de uma narrativa. Somado a

isto, a própria visão pessoal de Debussy a respeito da música garantiu esta diferenciação:

abandonando este modo narrativo de compor, abandonava-se também a estrutura coerente e

encadeada de acordo com a projeção da consciência ao se contar determinado fato, e

proporcionava-se a construção de imagens evocativas e movimentos elípticos que sugeriam

muito mais a esfera da imaginação e do sonho, buscando uma livre associação de idéias de

maneira espontânea – o que ausentava da música a responsabilidade de tornar-se um veículo

de emoções pessoais da parte do compositor e permitia ao ouvinte criar referências mentais

subjetivas ao apreciar suas obras. Nas palavras de Debussy, em uma clara referência

imagética ao sonho,

“(...) somente a música tem o poder de evocar livremente os lugares inverossímeis, o mundo indubitável e quimérico que opera secretamente na misteriosa poesia da noite, nos milhares de ruídos anônimos que emanam das folhas acariciadas pelos raios da lua.” 73.

Talvez decorra disto a aproximação comumente feita entre a obra de Debussy e a

pintura impressionista, posto que muitas de suas composições tratam de temas comuns a este

movimento artístico, evocando uma certa correspondência entre a natureza e a imaginação:

referências imagéticas a cenários ou paisagens, por exemplo, podem ser encontradas em seu

Prélude na sugestão de um bosque em meio ao calor da tarde e na correlação entre a

languidez proporcionada por este ambiente e a projeção dos pensamentos e desejos

libidinosos do fauno que ali se encontra, como podemos ver na obra de Stéphane Mallarmé

que serviu de inspiração a Debussy para este prelúdio.

Entretanto, como nos apresenta Griffiths, a principal diferenciação entre ambas as

formas de arte reside no fato de que, diferentemente da pintura, a música projeta-se no tempo,

e dentro da estética utilizada por Debussy esta característica valoriza a idéia do movimento

em detrimento das técnicas formais e rítmicas geralmente buscadas por compositores de

épocas anteriores. Em sua concepção, estas formas musicais consagradas poderiam constituir-

se em um obstáculo para a livre expressão das imagens buscadas nas obras de Debussy, tendo

72 Idem. 73 DEBUSSY, C. Apud GRIFFITHS, P. Op. cit., p. 10.

31

sido originalmente desenvolvidas com a finalidade de expressar e estimular reações

emocionais74. O fluxo musical mais livre almejado por Debussy apresentava uma capacidade

maior de representar as concatenações alusivas e esquivas da mente, servindo de estímulo

para impressões pautadas em lembranças pessoais, como ele mesmo nos diz:

“O ruído do mar, a curva de um horizonte, o vento nas folhas, o grito de um pássaro depositam em nós múltiplas impressões. E repentinamente, sem que a gente consinta nem um pouquinho nisso, uma dessas lembranças se projeta para fora de nós e se exprime em linguagem musical.”75

Um tema recorrente nas opiniões declaradas por Debussy em suas publicações sobre

música dizia respeito à influência da tradição austro-germânica sobre as composições

francesas. Este modelo estético, segundo Claude Debussy, pautava-se em uma escrita

repetitiva e excessivamente atada às regras estabelecidas ao longo do tempo, inovando pouco

e, de certa maneira, homogeneizando as criações musicais da época, desfavorecendo

justamente a postura criativa mais livre e sonoramente fluida que se pode observar em

algumas de suas composições. Em seus termos, Debussy afirma que

“o que de melhor se poderia desejar para a música francesa seria a supressão do estudo de harmonia tal como é praticado na escola, de fato a maneira mais solenemente ridícula de reunir sons. (...) Os músicos, com algumas exceções, harmonizam do mesmo modo.”76.

Debussy via uma necessidade de desvencilhar a música de um estatuto científico, de

buscá-la em ambientes distintos da academia, longe dos tratados e livros que, por mais

indispensáveis que fossem, afastavam a arte de uma esfera criativa e inovadora:

“Para quem sabe ver com emoção, é a mais bela lição de desenvolvimento escrita nesse livro que os músicos não visitam o suficiente, quero dizer: a Natureza... eles olham nos livros através dos mestres, remexendo piedosamente naquela velha poeira sonora; é bom, mas talvez a arte esteja mais adiante!”77.

A crítica ao culto que se formara ao redor da obra de Richard Wagner, um dos maiores

expoentes da tradição germânica do romantismo na música, também se mostrou um assunto

comumente abordado por Claude Debussy em suas declarações. Mesmo assumindo ser, nos

anos de sua mocidade, um grande apreciador de Wagner e um defensor de sua genialidade 74 GRIFFITHS, P. Op. cit., p. 11-12. 75 DEBUSSY, Claude. Monsieur Croche e outros ensaios sobre música. Tradução de Raquel Ramalhete. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989. p. 282. 76 DEBUSSY, C. Op. cit., p. 62. 77 Ibid., p. 153-154.

32

musical, Debussy aponta justamente esta admiração quase religiosa que se formara sobre a

obra wagneriana como um grande problema criativo para os compositores franceses de então.

Para ele, esta “Arte-Religião” contribuía principalmente para alienar e reter a imaginação do

público, afastando a música das grandes multidões e mantendo-a restrita a pequenos círculos

aristocráticos que rejeitavam inovações e negavam o incentivo ao repertório moderno que

surgia timidamente. Sua iconoclastia wagneriana assumiu a constatação de que a criação de

uma nova linguagem musical freqüentemente significava postar-se diante de críticas acirradas

que não se dirigiam somente às obras, mas também a seus compositores:

“(...) é preciso confessar que esse gênero de música exige uma alquimia particular à qual tem-se que oferecer em holocausto nossa cara tranqüilidade!... É duro de manter e absolutamente improdutivo. Adeus! os bons direitos autorais, o tão lisonjeiro aperto de mão diretorial. Já não se é senão uma espécie de sábio particular e nossos confrades nos olham com aquela condescendência que o sucesso torna cheia de desprezo.”78

3.4 O NACIONALISMO E O RETORNO À TRADIÇÃO

Como visto, muitas das idéias e inovações estéticas presentes nas obras de Debussy se

mostram em grande consonância com a crítica à escola wagneriana e com as teorias propostas

por Eduard Hanslick em sua obra Do belo musical. Ainda assim, ao definir o conteúdo da

música de maneira objetiva apenas como a expressão sonora, desvinculando da criação de

uma obra musical os sentimentos pessoais do compositor e as influências sociais e históricas

sobre o ambiente que este se encontra e sobre o curso de sua vida, Hanslick deixou de fora de

sua análise aspectos importantíssimos: como visto, a criação de uma obra de arte constitui, de

forma consciente ou mesmo inconscientemente, a elaboração e veiculação de um discurso a

respeito de um tema.

Com a música isto não se dá de forma diferente: estes discursos veiculados pela arte,

embora não criem o tema sobre o qual estão discorrendo, apropriam-se deste e lhe dão todos

os significados que tem, que são interpretados pelo sujeito que os observa de acordo com o

contexto em que está inserido. Um conhecido exemplo a respeito disto pode ser encontrado

nas óperas de Richard Wagner e na proposta que se enxerga por trás do roteiro e da história

78 Ibid., p. 155.

33

ali presente, que buscam fixar um ideal nacionalista ao narrar as origens míticas da formação

do povo alemão79.

Podemos tomar como outro exemplo da importância destes fatores sociais e históricos

na criação de uma obra de arte algumas das composições elaboradas por Claude Debussy nos

últimos anos de sua vida, quando a França, envolvida no contexto da Primeira Guerra

Mundial, encontrava-se em uma situação de conflito que alimentava ainda mais a rivalidade já

existente entre franceses e alemães.

O primeiro capítulo desta dissertação, ao expor a formação dos sentimentos nacionais

como um elemento constituinte da história do século XIX europeu, menciona o importante

papel das artes e da música na construção e na propagação de um passado em comum na

história de determinada sociedade80; neste contexto, Claude Debussy, durante a primeira

década do século XX e, principalmente, nos anos que antecederam a Primeira Guerra

Mundial, dedicou à parte de suas obras uma perspectiva de cunho nacionalista, valorizando

aspectos da tradição francesa e reforçando valores de sua nacionalidade em contraposição a

traços de outras culturas – e, sobretudo, da cultura alemã.

A relação turbulenta que existia nesta época entre a França e a Alemanha é algo

bastante conhecido, e já foi tema de diversos estudos historiográficos que remontam a

importância que conflitos e acontecimentos do passado, como a guerra franco-prussiana e a

querela em torno do território da Alsácia e Lorena, por exemplo, legaram para a formação de

um sentimento de rivalidade entre estes dois povos. Este sentimento, por outro lado,

extrapolava os limites da política e economia, e se fazia presente também em aspectos

culturais e em manifestações artísticas, tendo espaço na literatura, nas artes plásticas e

também na música: tomando como exemplo a obra de Debussy, encontramos em seus escritos

destes anos diversas críticas à musicalidade alemã, sua maneira de composição, suas técnicas

e as formas usualmente adotadas por seus compositores, que em sua visão apresentavam-se

antiquadas e engessadas em relação ao que a música de sua época deveria significar. Da

mesma forma, muitas destas críticas são direcionadas especificamente à figura de Richard

Wagner, à tradição criada com sua obra, e principalmente, ao culto que se formou em torno de

sua estética e de sua música81.

A situação de Claude Debussy no ano de 1914, pouco antes do decreto de guerra da

Alemanha à França, como se pode observar através do que está registrado em sua

79 MAYER, A. J. Op. cit., p. 216. 80 Ibid., p. 197. 81 DEBUSSY, C. Op. cit., p. 62.

34

correspondência pessoal e nas crônicas e entrevistas dadas por ele na época, era marcada por

um crescente esgotamento físico e emocional: desde o ano de 1909 que Debussy lutava contra

um câncer intestinal que o debilitava, e após cerca de 5 anos nesta situação sua saúde já se

mostrava bastante minada. Somado a isto, sua situação financeira não apresentava um bom

quadro, e suas obras, muitas vezes, enfrentavam a rejeição por parte da crítica e do público.

Assim, estes anos da carreira musical do compositor foram marcados por situações de altos e

baixos em relação à sua vontade de compor, oscilando entre ímpetos de criatividade e

momentos de extremo desânimo82.

Parte deste sentimento, talvez, possa ter sua raiz na forma como as obras de Debussy

foram tratadas na França no começo da década de 1910: nestes anos, a maioria dos críticos de

renome e apreciadores de arte franceses passava por uma fase de grande valorização da arte

feita em países estrangeiros – o que desencadeava uma postura de rejeição à produção cultural

francesa83.

A imprensa da época, que contava com a participação de Claude Debussy desde o ano

de 1901 por meio de suas publicações em periódicos especializados em música, não hesitava

em atribuir aos pontos de vista do compositor um sentido de oposição pessoal à criação de

Wagner, e uma busca por diferenciação e identidade próprios, que muitas vezes eram

respondidos por Debussy com críticas em relação à importância excessiva dada na França

para as culturas estrangeiras. Em resposta, por exemplo, a uma pergunta sobre a influência de

Wagner na cultura francesa e a necessidade de desvencilhamento disto, feita em entrevista ao

compositor no ano de 1909, Debussy afirma que procurou tornar-se

“(...) novamente francês. Os franceses esquecem com muita facilidade as qualidades de clareza e elegância que lhes são próprias para se deixarem influenciar pelas dimensões e falta de leveza germânicas. O gênio de Wagner, certamente, é incontestável, mas ele é antes de tudo alemão.”84.

Danieli Benedetti, em sua tese de mestrado intitulada A produção pianística de Claude

Debussy durante a Primeira Guerra Mundial, nos mostra que a influência estrangeira nos

anos imediatamente anteriores à Guerra era algo extremamente marcado na França: somente

no ano de 1911 aconteceram em Paris quatro mostras de arte dedicadas a culturas européias

de países vizinhos, e dois anos depois, óperas e peças orquestrais de Wagner eram executadas

em comemoração ao centenário deste compositor, ao mesmo tempo em que obras de Strauss, 82 BENEDETTI, Danieli V. L. A produção pianística de Claude Debussy durante a Primeira Guerra Mundial. Dissertação de Mestrado. São Paulo: texto inédito, 2002. p. 16. 83 Ibid., p. 22. 84 DEBUSSY, C. Op. cit., p. 255.

35

Moussorgsky e Stravinsky lotavam salas de concerto e causavam espanto e comoção no

público francês85.

Assim, embora desde os primeiros anos do século XX fosse possível encontrar

registros de opiniões de Debussy reforçando a necessidade da música francesa se libertar das

convenções acadêmicas que a mantinham imóvel praticamente desde o século XVIII, e

associando este entravamento acadêmico principalmente à escola surgida com a estética

wagneriana na música, talvez se possa afirmar que este nacionalismo que pouco a pouco se

revela na obra de Debussy deste período se acentuava com a proximidade do conflito armado

anunciado em 1914, em uma clara relação histórica e social entre o indivíduo, sua produção e

o contexto em que este estava inserido.

Com o início da Guerra, em oposição ao sentimento que tomava forma nos anos

anteriores, a França limitou cada vez mais o acesso à arte produzida por países estrangeiros e,

sobretudo, por países inimigos. Na música esta situação não se mostrou diferente: em uma

medida enérgica de protecionismo, o governo francês retirou de circulação todas as edições de

partituras alemãs, que passaram por revisões feitas por diversos compositores franceses, como

Saint-Saëns, Fauré e o próprio Debussy. Na perspectiva de Claude Debussy, era preciso barrar

a invasão cultural estrangeira que atacava a arte francesa, e neste sentido, a Guerra se

mostrava também como uma representação no mundo artístico dos antagonismos estéticos e

espirituais que se davam entre França e Alemanha86.

Como uma característica deste sentimento de valorização da nacionalidade francesa

em sua música, Debussy passou nesta época a buscar inspiração na estética musical do século

XVIII, quando compositores como François Couperin e Jean Phillipe Rameau estabeleceram

as bases de uma tradição tida como marcadamente francesa. Com o predomínio da estética

romântica na música do século XIX, a forma de composição alemã ganhou destaque e acabou

por ofuscar a tradição francesa, legando uma grande influência aos compositores das mais

diferentes regiões e limitando, por assim dizer, a produção de uma arte nacional na França.

Com o citado trabalho francês de reedição das partituras estrangeiras que se deu com o início

da Guerra, passou a ter lugar na produção musical francesa um retorno ao passado e aos

compositores de tradições anteriores ao Romantismo, reforçando ainda mais o sentimento de

nacionalismo presente na música da época87.

Max Weber, escrevendo a respeito dos nacionalismos, nos aponta este retorno a uma

85 BENEDETTI, D. V. L. Op. cit., p. 23. 86 DEBUSSY, Op. cit., p. 265. 87 BENEDETTI, D. V. L. Op. cit., p. 25.

36

tradição por vezes esquecida como uma forma de sentimento de prestígio que, em muitos

casos, se associa a uma idéia de "missão" específica de um povo. Citando suas palavras,

“O significado de ‘nação’ é geralmente ancorado na superioridade, ou no caráter insubstituível de valores culturais que devem ser preservados e desenvolvidos através do cultivo destas peculiaridades do grupo” 88.

Nesta conjuntura, o estrato intelectual de uma sociedade, como escritores, artistas e

compositores, assumiria o papel de propagar esta “idéia nacional” para o restante do povo,

algo que pode ser interpretado na postura assumida por Debussy, dentre vários outros artistas

franceses, nos anos marcados pelo conflito mundial.

Nos textos e entrevistas de Claude Debussy que datam da época do conflito, é possível

identificar diversas passagens em que o compositor enaltece as obras puramente francesas,

sobretudo dos anos anteriores ao período classificado como romântico na música, de finais do

século XVIII até uma grande parte do século XIX. Isto pode se tornar um elemento

importante para reflexão se prestarmos atenção ao fato de que durante vários anos de sua vida,

Debussy defendera veementemente a necessidade de um rompimento musical com o passado,

respeitando os grandes mestres de outrora, mas afirmando ser imprescindível para o

enriquecimento da música a quebra do vínculo com o estatuto científico que cercava a arte de

seu tempo, e que vinha de uma tradição musical com regras e delimitações bastante claras

desde o século XVIII.

Para tanto, o compositor buscava inspiração nas manifestações da natureza e nas

sensações que isto, transposto para a música, poderia causar nos ouvintes, em uma perspectiva

inovadora em relação ao que era feito em sua época, e principalmente, em relação às

composições de períodos anteriores, como exposto anteriormente neste capítulo da presente

pesquisa. A busca nacionalista por um retorno à tradição, por outro lado, é uma iniciativa

claramente conservadora. Assim, uma valorização do passado feita desta forma, nos revela a

importância que esta situação de conflito mundial trouxe sobre a concepção da arte no

período, e sobre a forma do artista se posicionar no contexto do começo do século XX, ao

mesmo tempo em que nos reforça a perspectiva de que as conjunturas históricas e sociais

influenciam diretamente a concepção de uma obra de arte, ao contrário do que afirmava

Eduard Hanslick.

Por outro lado, esta busca de Debussy por uma estética genuinamente francesa

88 WEBER, Max. The Nation. In: From Max Weber: essays in sociology. Routledge & Kegan Paul: Londres, 1948. p. 175.

37

existente nos compositores do século XVIII promoveu uma recuperação de um patrimônio

cultural que estava se perdendo, e longe deste material ser apenas tomado de maneira estática

e pouco crítica pelo compositor, seu estudo e execução proporcionaram mudanças estéticas

em sua obra, introduzindo novas características que tornariam sua música marcadamente

inovadora. Muitas das peças escritas por Debussy após este contato adotam uma formatação

tradicional, ao mesmo tempo em que apresentam elementos característicos de uma estética

própria e moderna, com formações instrumentais pouco usuais e, muitas vezes, apresentando

passagens que se afastam do tonalismo.

A influência da Grande Guerra sobre os ânimos de Debussy, que muitas vezes pode

ser identificada em seus escritos, possibilita uma associação entre suas idéias e sua produção

musical nestes anos: no período em que se deu o conflito vemos afirmações constantes por

parte de Debussy sobre sua vontade de fazer algo pela França – não se envolvendo

diretamente nos combates, devido principalmente aos seus problemas de saúde, mas ao menos

criando algo que possuísse um significado e que inspirasse heroísmo aos franceses, apesar de

sua consciência de que a arte, em um momento crítico como aquele, poderia ficar em segundo

plano, como se nota nesta afirmação: “(...) fazer heroísmo, tranquilamente, ao abrigo das

balas, me parece ridículo” 89.

Assim, como capítulo final desta dissertação, serão apresentadas análises musicais

sobre as obras Prélude à l’Après-midi d’un Faune, La Berceuse Heróïque e En Blanc et Noir,

utilizando-as como fontes para o estudo historiográfico do recorte espaço-temporal adotado, e

das idéias propagadas por Claude Debussy nos dois momentos abordados nesta pesquisa: a

perspectiva criativa e inovadora que lançou as bases da música do século seguinte, e seu viés

conservador que atuou em prol do sentimento nacional francês em uma conjuntura crítica de

guerra.

89 DEBUSSY, C. Apud BENEDETTI, D. V. L. Op. cit., 56.

38

4 VANGUARDA E TRADIÇÃO: ANÁLISE DAS OBRAS MUSICAIS DE DEBUSSY

Da mesma maneira que todos já ouvimos dizer de forma despretensiosa que a

qualidade da música enquanto forma de arte é a expressão dos sentimentos, como exposto no

início do capítulo anterior, é comum ouvirmos a afirmação de que a música é feita de sons.

Esta sentença, embora não esteja totalmente incorreta, mostra-se um tanto restritiva em

relação à definição de tudo aquilo que a música é e, sobretudo, aquilo que se tornou a partir

do século XX, com as inovações propostas por meio de mudanças na concepção musical

levadas a cabo nas obras de diversos compositores. Henry Barraud, em seu estudo intitulado

Para compreender as músicas de hoje, nos afirma que seria mais correto dizermos que “a

música é feita de ruídos – ruídos organizados, já que todo som é ruído, mas nem todo ruído é,

necessariamente, um som”90. Esta organização, ao menos no que se refere à conjuntura

musical abordada nesta pesquisa que diz respeito à música ocidental, produzida na virada do

século XIX ao XX, estabelece como critérios de classificação a distribuição da duração e da

altura destes ruídos no tempo e no espaço, delimitando o conteúdo musicalmente aceito como

tal.

Entretanto, nos afirma Barraud, estabelecer uma visão completa e objetiva do

conteúdo, no caso da música, talvez seja uma tarefa mais difícil de executar do que para

qualquer outra forma de arte: ao longo do tempo, a música alterou-se não apenas em suas

formas, técnicas, estilos e maneiras de expressão, mas também o fez em sua própria

linguagem91. Esta linguagem característica da música ocidental, com suas escalas, tons,

formas rítmicas e harmônicas, como bem sabemos, não é algo que foi dado a nós pela

natureza, mas é o resultado de muitos séculos de experimentação e conhecimento que

consolidaram convenções e estabeleceram códigos próprios, dotados de historicidade, e que

sofreram diversas mudanças na medida em que a sociedade e a própria cultura ocidental se

consolidavam.

Neste processo, a linguagem musical tornou-se detentora de uma grande coerência e

riqueza de expressividade, caracterizada pela sobreposição de múltiplas linhas melódicas

simultâneas e independentes, por agregações privilegiadas de sons formadores de acordes e

cadências hierarquizadas, e por uma complexidade cada vez maior no que se refere à

harmonia e às intermináveis combinações melódicas de notas. O estudo de todos estes

elementos levou à constituição de um sistema rigorosamente lógico, estabelecido por volta do

90 BARRAUD, Henry. Para compreender as músicas de hoje. São Paulo: Perspectiva, 1975. p. 15. 91 Ibid., p. 11.

39

século XVII e denominado sistema tonal. A aurora do século XX, entretanto, juntamente com

o alvorecer de um novo século trouxe também a perspectiva de uma nova música, que em seu

cerne contém a desagregação do próprio sistema tonal92.

Como já mencionado no capítulo anterior, o conteúdo de uma obra de arte constitui a

veiculação de um discurso a respeito de um tema. Com a música isto não se dá de forma

diferente, posto que além dos elementos sonoros presentes, se encontram também em uma

obra conceitos e idéias veiculados pelo compositor e que expressam suas opiniões e sua visão

particular sobre determinado assunto. A música, enquanto forma de arte, constitui apenas um

dentre uma grande série de discursos a respeito do tema abordado em seu conteúdo, e

configura com isto uma dentre várias visões de mundo que dão a este tema os significados

que tem93. Um bom exemplo a respeito desta veiculação de discursos e que será exposto ao

longo deste capítulo é a posição nacionalista assumida por Claude Debussy, difundida em

suas obras musicais quando o cenário da Primeira Guerra Mundial tomou forma e acirrou as

rivalidades entre França e Alemanha.

A criação de uma obra de arte nunca se dá de maneira aleatória; ao contrário, esta se

faz enquanto produto de uma determinada época e cultura, e se embasa em escolhas

particulares e intervenções pessoais que necessariamente carregam as marcas do sujeito e do

meio que a produziu. Citando as palavras de Henry Barraud,

“(...) A vida e o movimento se confundem. Na Arte, mais que em qualquer outra parte. Na Música, mais do que em qualquer outra arte. (...) Assim, toda obra comporta um plano de fundo e uma abertura para diante que não poderiam ser ignorados por quem quer compreendê-la, sem que ela fosse esvaziada, por isso mesmo, de uma parte da realidade dinâmica de que é feita. (...) Por mais insólita que seja, uma obra de arte jamais sai do nada.”94.

Toda forma de arte, e consequentemente toda música, nesta perspectiva, possui um

grau elevado de subjetividade e traz consigo elementos próprios do contexto em que foi

elaborada, juntamente com características pessoais de seu criador moldadas por sua história

particular, seus pontos de vista a respeito do passado e de sua contemporaneidade, e sua

própria visão do mundo ao seu redor – o que nos faz refletir que, muitas vezes, o discurso

contido em uma imagem pictórica ou expresso através de uma sinfonia, por exemplo, mais do

que relatar sobre o tema que está sendo exposto, fala de seu próprio tempo por meio de

questões inerentes ao meio em que foi elaborado.

92 Ibid., p. 12. 93 JENKINS, K. Op. cit., p. 23. 94 BARRAUD, H. Op. cit., p. 11.

40

É partindo deste ponto de vista que serão apresentadas neste capítulo final da pesquisa

breves análises sobre algumas composições musicais de Claude Debussy. Mais do que

servirem como uma mera ilustração de sua obra, a intenção ao abordar de maneira reflexiva

estas composições é utilizá-las como fontes para o estudo historiográfico do recorte espaço-

temporal adotado na pesquisa, do debate que se propagava no meio artístico e musical na

virada do século XIX até as primeiras décadas do século XX, e das idéias propagadas por

Debussy em dois momentos distintos de sua vida: a perspectiva iconoclasta presente em

grande parte das obras de sua juventude, que lançaram as bases da música do século seguinte

ao atacarem algumas das estruturas tradicionais da criação e composição musical; e seu viés

conservador que atuou em prol do fortalecimento do sentimento nacional francês, em uma

conjuntura de crise própria dos anos da Primeira Guerra Mundial, presente nas obras criadas

no final de sua vida.

A análise que terá lugar aqui será elaborada por meio de duas propostas diferentes: a

primeira delas abordará a obra Prélude à l’Après-midi d’un Faune, preocupando-se

principalmente com sua estrutura musical e com as idéias apresentadas pelo compositor em

relação ao conteúdo sonoro da obra, em contraposição aos cânones da composição vigentes

desde o século XVII que estabeleciam regras rígidas sobre as relações tonais, rítmicas e

harmônicas, bem como em relação à orquestração, coloração e timbres dos instrumentos,

dentre outros aspectos. Nesta direção, a primeira proposta de análise enfatizará o viés

inovador atribuído a Debussy por meio das mudanças musicais existentes nesta peça, tomadas

por muitos estudiosos como o primeiro passo da música moderna própria do século XX em

contraste com os elementos da estética romântica que dominou grande parte da produção

musical do século XIX.

A segunda proposta de análise, por sua vez, dará atenção às obras Berceuse Heróïque

e En Blanc et Noir, duas composições elaboradas por Debussy nos últimos anos de sua vida,

quando o quadro de conflito enfrentado pela França no contexto da Primeira Guerra Mundial

fez com que aflorassem em sua estética elementos de exaltação da nacionalidade francesa. Na

perspectiva de Debussy, este engrandecimento da cultura da França se daria exclusivamente

por meio de uma produção nacional embasada na obra de compositores do século XVII e

XVIII, consolidada em um contexto anterior ao predomínio da estética romântica na música.

Assim, esta proposta irá observar o retorno a alguns elementos tradicionais da composição

através das obras de Debussy, não se preocupando tanto com a estrutura musical das peças

analisadas, como feito na primeira análise, mas sim com as intenções ideológicas nelas

contidas.

41

4.1 PRÉLUDE À L’APRÈS-MIDI D’UN FAUNE

A primeira apresentação da peça intitulada Prélude à l’Après-midi d’un Faune ocorreu

no dia 23 de dezembro de 1894, na Sociedade Nacional de Paris. Baseada no poema L’Après-

midi d’un Faune, de Stéphanne Mallarmé, foi composta durante dois anos e é um dos

trabalhos para orquestra mais conhecidos de Claude Debussy. Sua formação instrumental

consiste em três flautas, dois oboés, duas clarinetas, dois fagotes, quatro trompas, um corne

inglês, duas harpas e um quinteto de cordas formado por dois violinos, uma viola, um

violoncelo e um contrabaixo.

Uma nota do compositor quando da publicação da peça afirma que “a obra não

pretendeu ser uma síntese do poema de Mallarmé, mas é antes disso uma ilustração bastante

livre dos desejos e sonhos do fauno que tomam forma no calor de uma tarde”95. Este mesmo

poema serviu de inspiração a diversas pinturas impressionistas, dentre as quais se encontram

obras de nomes como Edóuard Manet e Lucien Levy-Dhurmer.

Com o sucesso alcançado em sua estréia, a peça revelou muitos traços marcantes da

estética de Claude Debussy e expôs de maneira notável sua personalidade musical. Porém,

levando-se em conta os anos que se passaram até que a obra de Claude Debussy fosse

reconhecida em sua linguagem e método musical, as inovações estilísticas presentes no

Prélude podem não ter sido percebidas de imediato96. Nesta época, anterior ao grande sucesso

alcançado pelo compositor nos primeiros anos do século XX com a ópera Pelléas et

Mélisande, a crítica musical afirmava que a música de Debussy era de inclinação

impressionista e se destacava enquanto uma espécie de fenômeno acústico, mas não constituía

algo que podia ser verdadeiramente classificado como arte. Por conta disto, Matthew Brown,

em seu artigo Tonalidade e forma no Prélude à l’Après-midi d’un Faune de Debussy, nos

afirma que o compositor foi uma espécie de “revolucionário silencioso”, soprando

discretamente vida na música de seu tempo e despertando suavemente a música moderna a

partir desta obra97.

Algumas questões da estética inovadora que perpassa a obra de Debussy podem ser

respondidas por meio de uma análise do Prélude. A peça foi elaborada pelo compositor

95 MARTÍNEZ GIRÓN, Maria José. Debussy: influencias plásticas y literarias en Prélude à l’Aprés-midi d’um Faune. REVISTA GAROZA, n. 9, p. 106, setembro de 2009. Disponível em: <http://webs.ono.com/garoza/G9-MartinezGiron.pdf>. 96 CALVOCORESSI, M. D. Claude Debussy. THE MUSICAL TIMES, vol. 49, n. 780, p. 81, 01 de fevereiro de 1908. Disponível em <http://www.jstor.org/stable/904900>. 97 BROWN, Matthew. Tonality and form in Debussy’s “Prélude à l’Aprés-midi d’un Faune”. MUSIC THEORY SPECTRUM, vol. 15, n. 2, p. 127, 1993. Disponível em: <http://www.jstor.org/stable/745811>.

42

através de técnicas de composição que voltaram a aparecer em obras posteriores: as peças La

Mer, Nocturnes e Images, por exemplo, apresentam elementos estruturais semelhantes ao

Prélude à l’Après-midi d’un Faune, e se tornaram igualmente renomadas, levando Debussy a

um patamar de composição diferenciado dos modelos formais da música característica do

século XIX. O Prélude, contudo, é talvez o trabalho que melhor capte o espírito iconoclasta

próprio dos anos de sua juventude98.

O Prélude à l’Après-Midi d’un Faune foi escrito em quatro seções, seguindo um

modelo de composição tradicional que deriva da estética barroca e é denominado sonata. As

partes que o constituem serão classificadas nesta análise da seguinte maneira: trecho A ou

exposição, que contém o motivo99 principal da peça, apresentado já nos primeiros compassos

por meio da melodia da flauta; trecho B ou desenvolvimento, que é composto na intenção de

oferecer um contraste musical ao primeiro trecho da composição; trecho A’, também

chamado de re-exposição, que pode ser denominado como uma variação sobre alguns dos

elementos principais da obra, retomados e re-trabalhados pelo compositor; e o Coda, que

constitui uma breve síntese da peça, uma espécie de resumo musical que reapresenta o

material trabalhado e conclui a composição.

98 Ibid., p. 130. 99 A nomenclatura técnica oferece diversas definições do que configura um “motivo” dentro de uma estrutura musical. Para as pretensões analíticas deste trabalho, o termo motivo será entendido como um fragmento musical que fornece material para construir trechos de uma melodia, frases completas, ou mesmo o tema que perpassa toda a composição. Por conta disto, um motivo pode se apresentar de forma harmônica, melódica e rítmica, ou abrangendo-as simultaneamente.

43

Em sua obra A música moderna, Paul Griffiths nos afirma que o Prélude ainda não

pode ser classificado como uma composição atonal; porém, um dos traços que renderam a

esta peça a fama de ter sido o ponto de partida da música moderna é a liberdade apresentada

em relação ao sistema de tonalidades maiores e menores que fundamentava a tradição da

música desde o século XVII100.

Partindo desta perspectiva analítica, um primeiro ponto que destacamos é a

impossibilidade de buscar uma explicação tonal que englobe as quatro seções da peça como

um todo; de igual forma, buscar esta explicação tonal direcionando o olhar para cada uma das

partes da peça separadamente também não se faz possível: Debussy escreveu cada trecho

exposto acima de maneira que este não se desenvolva sobre uma única tonalidade, mas

apresente elementos que descaracterizam a convenção tonal dos modos maior ou menor101.

O trecho A, por exemplo, apresenta uma armadura de clave com quatro acidentes

sustenidos, definindo que a música será executada na tonalidade de Dó sustenido menor. As

frases dos quatro compassos iniciais escritas para a flauta, que apresentam o motivo principal

da peça, entretanto, não se enquadram nesta tonalidade e em nenhuma outra que possa ser

previamente determinada, causando já de início uma sensação de ambigüidade e incerteza.

A imagem da pauta nos mostra a razão pela qual a tonalidade nos quatro primeiros

compassos está indeterminada: a presença da nota Sol implica em uma mudança harmônica

neste trecho, posto que esta nota não pertence à tonalidade de Dó sustenido menor indicada

pela armadura102. Além disto, a tercina imediatamente anterior ao aparecimento da nota Sol,

destacada por meio de um ponto de aumento, age suspendendo o som de forma etérea ao

mesmo tempo em que coloca um dos tempos fortes do compasso sobre a nota fora da

tonalidade do trecho. A duração maior da nota Sol em relação às demais notas que compõem

a frase, portanto, reforça a importância que este elemento estranho à tonalidade adquire na

composição, enfatizando a quebra de um paradigma musical.

Da mesma forma, as relações harmônicas entre tensão e repouso estabelecidas com o

modelo tradicional de composição impulsionam a conclusão desta frase inicial para a nota Lá

100 GRIFFITHS, P. Op. cit., p. 7. 101 BROWN, M. Op. cit., p. 131. 102 Ibid., p. 134.

44

sustenido, que de acordo com a armadura de clave, também não pertence à tonalidade em que

a música deveria ser executada103.

O recurso que permite valorizar em determinado trecho uma nota que se encontra fora

da escala utilizada denomina-se hipercromatismo, e deriva em muito da estética romântica na

música e da obra de Richard Wagner, criticada por Claude Debussy. A inovação apresentada

por Debussy em relação a esta técnica se encontra no modo como o hipercromatismo é usado:

em Wagner, a presença de notas cromáticas ocorria principalmente em passagens de trechos e

sempre procurava maneiras de resolver a tensão sonora ocasionada com isto, configurando a

busca por uma sensação de repouso própria da música tonal; Debussy, por sua vez, se utiliza

do cromatismo para evidenciar a tensão e a fuga de uma perspectiva tonal nestes trechos,

distanciando-se de uma solução que busca o repouso.

O trecho que vai do compasso nº. 4 ao nº. 13 também deriva de um modelo ortodoxo

de composição, e se baseia na progressão harmônica passando de uma tensão menor para uma

tensão maior, típica da escrita musical tonal. Assim, a intersecção de frases melódicas dotadas

de um hipercromatismo sobre uma base harmônica tonal faz com que a sensação de

reconhecimento de uma tonalidade maior ou menor não seja alcançada pelo ouvinte, gerando

uma atmosfera etérea sobre a música que está sendo executada104.

Como evidenciado por Griffiths, a orquestração utilizada por Debussy nesta peça se

constitui em mais um elemento que define uma ruptura em relação à estética romântica na

música105. A tradição musical barroca estabelecia para a grande maioria das obras a forma

instrumental denominada “concerto grosso”, quando um solista ou um pequeno grupo de

instrumentos, em geral formado por violinos e violoncelo, dialogava com o restante da

orquestra por meio de temas musicais de pergunta e resposta que davam corpo à composição.

Esta formação legou uma grande importância aos instrumentos de corda, que passaram a

ganhar destaque e figurar os trechos mais importantes das obras orquestrais.

A presença dos instrumentos de sopro da família das madeiras, no contexto romântico

ainda relegada a participações pouco importantes em relação ao predomínio das cordas,

ganhou destaque na estética de Debussy: o trecho compreendido entre os compassos de nº. 30

e 54 apresenta um desenvolvimento das idéias contidas na frase inicial por meio de uma re-

103 Idem. 104 Idem. 105 GRIFFITHS, P. Op. cit., p. 9.

45

exposição do tema principal para flauta, e da introdução de um segundo tema na peça, agora

desenvolvido para o oboé106.

(apresentação do tema para oboé, cp. 35-39)

Este tema apresentado é de importância central na obra, e tendo sido escrito para

instrumentos de sopro, intenta evocar uma atmosfera misteriosa e onírica que em tudo se

relaciona à obra de Mallarmé e à indistinção que se dá entre sonho e realidade para o fauno do

poema.

Diversos motivos menores se desdobram simultaneamente e apresentam-se

perpassando estes temas, ora sobrepondo-se, ora completando um ao outro. Esta técnica

denomina-se compressão motívica e se faz característica nas composições de Debussy. No

Prélude, a compressão se dá notadamente sobre o motivo principal, apresentado pela flauta já

nos primeiros compassos da obra, e pode ser verificada em todas as quatro seções da obra.

106 BROWN, M. Op. cit., p. 134.

46

O clímax do Prélude acontece entre os compassos de nº. 94 e 99, quando todos estes

motivos flutuantes retornam gradativamente ao tema inicial para a flauta. Este é o trecho da

obra que apresenta a textura sonora mais densa, caracterizada por uma polifonia bastante

complexa107. A polifonia é uma das características principais da estética barroca e foi alvo de

inúmeros tratados e obras desde o século XVII, como o famoso O Cravo Bem Temperado de

Johann Sebastian Bach, que apresenta lições sobre contraponto por meio de diferentes vozes

musicais que se apóiam e se desenvolvem ao mesmo tempo, completando-se. Debussy, por

outro lado, utiliza a polifonia de maneira a apresentar diversas vozes com linhas melódicas

distintas e importantes simultaneamente, caracterizando um traço que seria explorado pela

música moderna a partir do século XX.

De certa maneira, as relações existentes entre alguns motivos musicais encontrados em

seções distintas da obra contradizem a afirmação de Debussy de que a música deveria se ver

107 Ibid., p. 136.

47

livre de regras e tradições intrincadas108. A própria forma sonata utilizada por Debussy na

escrita desta peça evidencia que os paradigmas tradicionais da música tonal não foram

completamente abandonados pelo compositor; porém, inegavelmente o Prélude se constitui

em um modelo de composição pouco usual para seu tempo, principalmente se levarmos em

conta os padrões da teoria musical e do tonalismo próprios do século XIX, ainda de inclinação

fortemente romântica109.

Obras posteriores de Claude Debussy e que se tornaram igualmente notáveis

apresentam elementos estéticos que foram inaugurados no Prélude à l’Après-midi d’un

Faune. Algumas destas peças, como La Mer (1903) e Images (1904), revelam graus maiores

de complexidade, retratando um amadurecimento do compositor. Assim, Matthew Brown nos

afirma que a trajetória de distanciamento de Claude Debussy em relação aos cânones da

composição tradicional que vigoravam há séculos se deu de forma lenta e gradual110.

Arnold Schoenberg, um dos maiores nomes da música do século XX, ao escrever

sobre a estética de Debussy em sua obra Harmonia, mencionou que “se a tonalidade deve

flutuar, terá, em algum ponto, de estar firme”111. Esta solidez foi encontrada por Debussy

através de um novo olhar em relação à tradição musical de seus antepassados: algumas das

técnicas presentes no Prélude, como a utilização do hipercromatismo, por exemplo,

encontraram precedentes na prática e na escrita da música tonal própria do século XIX e da

estética wagneriana. A inovação proposta por Debussy em relação à tradição, portanto, residiu

muito mais na maneira de se explorar técnicas usuais de maneiras inusitadas, não

necessariamente criando novos princípios de forma e harmonia, mas reformulando-os de

acordo com a sua época112.

Assim, é possível afirmar que o que trouxe a dramaticidade e proporcionou tensão e

dinamismo à obra de Debussy foi esta trama habilmente construída entre um ponto de vista

cromático que assumiu ares atonais e, por isto mesmo, modernos, e uma estrutura tradicional

ainda pautada no tonalismo. Esta contraposição de características gerou uma linguagem e uma

prática musical que deu origem a perspectivas diferenciadas para a música do século XIX e,

principalmente, forneceu embasamentos muito importantes para a construção da música

moderna do século XX.

108 DEBUSSY, C. Op. cit., p. 214. 109 BROWN, M. Op. cit., p. 141. 110 Ibid., 143. 111 SCHOENBERG, Arnold. Harmonia. São Paulo: Editora da UNESP, 2001. p. 528 112 BROWN, M. Op. cit., p. 143.

48

4.2 BERCEUSE HERÓÏQUE E EN BLANC ET NOIR

Após termos dedicado atenção aos aspectos que classificaram a obra de Claude

Debussy como o princípio de uma vanguarda iniciada no final do século XIX, quando os

elementos que formariam a música moderna estavam sendo elaborados, esta segunda etapa da

análise busca delimitar na produção dos anos finais da vida do compositor características que

evidenciam um retorno estético às tradições dos séculos XVII e XVIII, anteriores ao contexto

em que o romantismo e, consequentemente, a influência alemã ganhou força sobre a produção

musical francesa.

Assim, se faz necessário identificar a importância que a conjuntura de um conflito em

proporções mundiais trouxe sobre a concepção artística do período, e sobre a forma em que

Claude Debussy posicionou-se no contexto histórico e social do começo do século XX.

Debussy considerava a influência romântica alemã um dos principais motivos pelos

quais a música de seu tempo se mostrava pouco criativa. Em seu ponto de vista, a produção

contemporânea se baseava ainda em formas de arte e escolas do passado que enrijeciam

demais a liberdade criativa e que deveriam ser superadas. Mesmo os grandes nomes do

passado buscavam não se ater tanto às regras da composição quando isto nublava seu senso

criativo, como nos afirma:

“O velho Bach, que engloba toda a música, não ligava, podem acreditar, para as fórmulas harmônicas. Preferia a elas o jogo livre das sonoridades, cujas curvas, paralelas ou opostas, preparavam o desabrochar inesperado que orna com imperecível beleza o menor de seus inúmeros cadernos.”113

A proximidade da eclosão de um conflito armado contra a Alemanha nos anos

anteriores a 1914, contudo, fez com que ganhasse força nas opiniões de Claude Debussy o

acirramento de uma postura nacionalista e protecionista sobre a cultura e a produção artística

francesa que, de certa maneira, foi contrária aos seus ideais libertários e inovadores na

música. Podemos identificar este ponto de vista de valorização da nacionalidade francesa em

diversas declarações dadas pelo compositor à imprensa, seja em suas crônicas literárias, seja

em entrevistas para jornais da época:

“É bem evidente que temos sido mais do que acolhedores com os músicos alemães. Daqui a cinqüenta anos, saberemos o que deve restar de nossos fanatismos atuais. Gostamos de tudo o que vem de fora. Como crianças, batemos palmas diante de uma obra que vem de longe: da Escandinávia, da Germânia ou dos países latinos,

113 DEBUSSY, C. Op. cit., p. 62.

49

sem nos darmos conta do valor real e da solidez dessa obra, sem nos perguntarmos se vamos sentir um entusiasmo sincero por emoções de almas estranhas às nossas. (...) Ainda considero muito bom quando não imitamos, gaguejando, o que essa gente diz na sua língua. (...) Os alemães não têm que nos compreender, assim como nós não devemos nos esforçar para penetrar nas emoções deles.”114

Faz-se impossível deixar de perceber esta força e intensidade de sentimentos presentes

em algumas de suas criações deste período, em contraposição a toda uma busca por uma

espécie de serenidade musical que marcou sua vida e sua produção inicial.

Nestes anos próximos da eclosão da Guerra, Debussy passou a procurar inspiração nas

obras dos compositores François Couperin e Jean Phillipe Rameau115, tidos como as

principais bases de uma tradição musical autenticamente francesa. O retorno a uma identidade

esquecida nas composições clássicas dos séculos XVII e XVIII, assim, pode ter se constituído

em uma forma de Debussy defender e valorizar uma perspectiva da tradição de seu país que

se mostrava ainda, de certa maneira, livre da influência germânica do romantismo116.

Assim, em face de todo o panorama do conflito e a busca pelas verdadeiras raízes da

música de sua nação, a postura inovadora do Claude Debussy de finais do século XIX cedeu

espaço pouco a pouco às opiniões de um compositor tradicionalista e conservador, alterando

sua estética particular com a inserção e o retorno a elementos musicais tradicionais, que foram

re-significados em suas obras. Da mesma forma, suas declarações e ataques pessoais contra a

obra e o culto que se formou ao redor de Richard Wagner nestes anos em torno da Guerra,

mais do que revelarem uma discordância musical, podem ser interpretados como uma postura

de proteção em relação ao avanço inimigo sobre o território francês – ainda que este território

tenha lugar em um campo simbólico e cultural como a arte.

Em novembro de 1914, por exemplo, Debussy concluiu a obra Berceuse Heróïque,

uma peça declaradamente patriótica escrita nos moldes das composições clássicas às quais

dedicava atenção recentemente. Escrita para fazer parte de um livro lançado pelo periódico

londrino Daily Telegraph em homenagem ao rei Alberto I da Bélgica, aliado dos franceses no

conflito mundial, esta peça apresenta trechos no formato de uma marcha militar e sua

estrutura foi pensada de forma a causar uma impressão de espaço e distância, identificada por

meio das marcações de expressividade na partitura que enfatizam os termos un peu en dehors

114 Ibid., p. 265. 115 Jean Phillipe Rameau é o autor da obra Tratado de Harmonia Reduzida aos seus Princípios Naturais, publicada no ano de 1722 e que fundamenta e introduz na teoria musical a idéia da tonalidade como a expressão musical perfeita. 116 BENEDETTI, D. V. L. Op. cit., p. 13.

50

(um pouco distante) e écho (eco), e que se relaciona aos instrumentos utilizados pela orquestra

em sua execução117:

A linha melódica destacada acima reproduz toques utilizados em contextos militares,

que são musicalmente construídos por meio do uso de intervalos diretos da série harmônica

tonal e absolutamente embasados em elementos conservadores da teoria musical. Da mesma

maneira, a armadura de clave utilizada nesta composição nos revela a tonalidade de Mi bemol

menor, amplamente utilizada pelos compositores Couperin e Rameau no contexto das

composições clássicas que serviram de inspiração a Debussy neste período. A tonalidade

indicada, ao contrário do que acontece no Prélude à l’Après-midi d’un Faune, mostra-se bem

definida ao longo da composição.

O sentimento de pertencimento a uma nação em combate transparece na partitura desta

obra: algumas indicações de interpretação em trechos da peça, por exemplo, estão anotadas

com a marcação fièrement (orgulhosamente). Uma citação na parte central da peça permite

identificar um ponto importante em relação ao conteúdo ideológico que a Berceuse carrega:

entre os compassos de nº. 38 e nº. 42 surge o tema do hino nacional da Bélgica, conhecido

como La Brabançonne. Este motivo reaparece mais duas vezes ao longo da peça, afirmando a

homenagem aos aliados belgas no contexto da guerra118.

117 Ibid., p. 57. 118 Idem.

51

(tema do hino nacional da Bélgica, cp. 38-42)

O ano seguinte ao início da Guerra foi marcado por uma intensa série de ataques

alemães ao território francês. Neste ano foi publicada a composição En Blanc et Noir, uma

das últimas obras de Claude Debussy. Escrita para dois pianos e formada por três

movimentos, esta composição também pode ser objeto de reflexão sobre as crescentes

inclinações nacionalistas que fizeram parte dos últimos momentos da vida do compositor. Nas

palavras de Danieli Benedetti, estas peças “pertencem, à sua maneira, à fase em que o

compositor, reivindicando o título de ‘musicien français’, retorna às fontes do espírito

clássico”119.

A dedicatória desta obra ao tenente Jacques Charlot, amigo de Debussy e morto em

combate em março de 1915, nos revela um Claude Debussy patriótico e desejoso de fazer

parte das batalhas do conflito mundial, não fosse a doença que o acometia e a assumida falta

de espírito militar120 – mas também, esta obra expressa um compositor ressentido e

desgastado pela tortura ocasionada com a guerra, como pode ser visto nas indicações de

interpretação do segundo movimento da obra: Lent-Sombre (lento e sombrio)121.

119 Ibid., p. 64. 120 Ibid., p. 54. 121 Ibid., p. 68.

52

A peça contém na abertura de seu segundo movimento uma citação da poesia Balada

contra os inimigos da França, de François Villon, e apresenta um contraste impossível de

passar despercebido entre passagens pianísticas que simulam a estrutura tonal e harmônica de

um coral luterano, simbolizando o inimigo alemão, e trechos onde surge claramente a melodia

da Marselhesa, o hino nacional francês. Em cartas a Jacques Durand, Debussy comenta sobre

a introdução do trecho de um coral luterano e da presença da Marselhesa nesta obra:

“Você verá o que pode acontecer ao hino de Lutero por ter imprudentemente penetrado num Caprice à francesa. Quase no fim, um modesto carrilhão faz soar uma pré-Marselhesa. Mesmo desculpando-se deste anacronismo, isto é admissível numa época em que os pavimentos das ruas e as árvores das florestas estão vibrantes deste canto onipresente.”122

Uma atmosfera sombria e militar perpassa a composição, e trechos de piano que

reproduzem toques de clarim surgem em determinados momentos apresentando melodias que

lembram chamados para a guerra.

122 DEBUSSY, C. Apud BENEDETTI, D. V. L. Op. cit., p. 69.

53

(trechos de clarim escritos para piano, cp. 7-10)

Esta obra, sobretudo, evoca uma sensação de tensão e esgotamento proporcionada para

todos aqueles que enfrentavam, direta ou indiretamente, as conseqüências trazidas pela guerra

diante de todas as perdas, destruição e tristeza ocasionadas com ela – dentre os quais também

se encontrava o próprio compositor123.

Em vias de conclusão, esta perspectiva estruturada em duas formas distintas de análise

apresentada neste capítulo possibilita ir além da compreensão e classificação das principais

características musicais do compositor. A partir disto, a utilização de algumas das

composições de Claude Debussy em cruzamento com seus escritos literários e entrevistas

proporciona o direcionamento do olhar para uma interpretação que não se prende apenas na

caracterização de Debussy como um compositor essencialmente moderno, autor de mudanças

estéticas que trouxeram à música do século XIX e do começo do século XX aspectos

inovadores, mas identificando e associando também à sua obra e sua visão de mundo

características importantes que se relacionam diretamente com o contexto histórico e social da

Primeira Guerra Mundial.

123 BENEDETTI, D. V. L. Op. cit., p. 72.

54

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Algumas afirmações de Claude Debussy ao longo de sua vida se tornaram bastante

conhecidas e, até mesmo, emblemáticas a respeito de sua personalidade. Um bom exemplo

destas diz respeito à frase que rendeu ao compositor a associação a uma postura contrária ao

germanismo na arte, por conta de uma crítica a respeito da supervalorização da obra de

Richard Wagner em seu tempo:

“Wagner, se podemos nos exprimir com um pouco da grandiloqüência que lhe convém, foi um belo pôr-do-sol que confundiram com uma aurora... haverá sempre períodos de imitação ou de influência de que não se pode prever a duração, e ainda menos a nacionalidade”124.

Entretanto, ao interpretarmos estas afirmações quanto à obra wagneriana como apenas

uma crítica à sua estética musical, sem levarmos em conta o arcabouço histórico e social que

se formava no cenário neste período, perdemos de vista elementos importantes que poderiam

nos fornecer novas perspectivas sobre o objeto de reflexão. Pouco se comenta, por exemplo, a

respeito desta face nacionalista de Claude Debussy que reforçou um posicionamento

protecionista sobre a França no contexto da Primeira Guerra Mundial, expandindo também

para a esfera da arte as rivalidades históricas existentes entre França e Alemanha.

Adotando um posicionamento analítico que não privilegiasse apenas as características

musicais das composições de Claude Debussy, mas as utilizasse de maneira a servirem como

fontes para o estudo historiográfico, foi possível perceber a importância que estas obras

adquiriram dentro do ambiente em que foram criadas, propondo mudanças na forma e no

conteúdo da escrita musical do século XIX e, até mesmo, na própria maneira de se conceber e

apreciar a música a partir de então.

O entrecruzamento das fontes musicais com os depoimentos escritos deixados pelo

compositor em suas crônicas e entrevistas nos permitiu ir além da interpretação amplamente

adotada, que apenas caracteriza Claude Debussy como um compositor essencialmente

moderno, autor de mudanças estéticas que trouxeram à música do século XIX e do começo do

século XX aspectos inovadores – ainda que estes traços não possam ser negados de maneira

alguma.

Neste aspecto, a utilização das partituras escritas pelo compositor, quando encaradas

como material primário para o estudo historiográfico por meio de um diálogo interdisciplinar,

124 DEBUSSY, C. Op. cit., p. 64.

55

permite ao pesquisador identificar idéias e pontos de vista que se encontram gravados em uma

linguagem não-verbal, mas que nem por isto se mostram menos importantes do que aquilo

que se manteve registrado em palavras. Nisto se destaca a importância de um olhar atento

para a utilização dos mais diferentes meios para a escrita e o estudo da história, como nos

aponta o caminho metodológico oferecido por diferentes suportes teóricos.

Desta forma, a conjunção no uso de fontes de diferentes origens e o diálogo

envolvendo diversas áreas do conhecimento possibilitaram identificar e associar também à

obra de Claude Debussy características importantes que se relacionam diretamente com o

contexto histórico e social no qual o compositor esteve inserido, e que se mostrou marcado

pela presença de um conflito tão impactante como a Primeira Guerra Mundial.

Por fim, em vias de conclusão, ao elaborar esta pesquisa a proposta de análise de

elementos culturais produzidos no recorte espaço-temporal estudado procurou também

demonstrar uma forma de utilização das fontes historiográficas não como simples ilustrações

do passado ou confirmações dos fatos que a História nos conta; em contraste a isto, foi

defendida a idéia de que o uso da produção artística de um determinado período pode e deve

ser encarado pelo pesquisador como mais uma possibilidade de refletir sobre a maneira pela

qual o contexto histórico e social do ambiente a que o artista pertenceu o influenciou

diretamente. Em conseqüência disto, se faz igualmente importante termos em mente que o

artista, ao produzir uma obra de arte, veicula através dela um discurso que intenta também

gerar mudanças no meio ao qual esta obra foi direcionada, em uma constante troca de

referências que configura uma dentre as variadas visões de mundo que uma época possui a

respeito de si mesma. Tratar estas partituras musicais como documentos, portanto, nos

possibilita pensar nestas composições como “(...) estratégias de intervenção no mundo, como

tentativa de incitação e choque, como discurso participante das polêmicas de um certo

tempo.” 125.

125 FARIA, Daniel. Quando os poetas se despediram da felicidade: Baudelaire e Dostoievski criticam as utopias. HISTÓRIA: QUESTÕES E DEBATES, Curitiba, n. n. 44, p. 71, 2005. Editora UFPR.

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ANEXO

INFORMAÇÕES BIOGRÁFICAS SOBRE CLAUDE DEBUSSY

Claude-Achille Debussy, o mais velho dos cinco filhos de Manuel-Achille Debussy e

Victorine Manoury Debussy, nasceu no dia 22 de agosto do ano de 1862 na cidade francesa

de Saint-Germain-en-Laye. Começou seus estudos musicais ainda na infância, após sua

família mudar-se para Cannes, no ano de 1870, procurando distanciar-se da Guerra Franco-

Prussiana. Esta guerra, ocorrida entre os anos de 1870 e 1871, concretizou-se como um evento

importante para ambas as nações envolvidas, pois marcou ao mesmo tempo o processo de

unificação da Alemanha e o final da monarquia na França. A derrota dos franceses no conflito

e a conseqüente perda do território francês da Alsácia e Lorena para os alemães acentuou um

sentimento de revolta e antagonismo já existente entre ambos os povos, que transpareceu

muitas vezes na produção artística e literária da geração a qual Claude Debussy pertenceu.

Aos 10 anos de idade, Debussy ingressou no Conservatório de Música parisiense. A

partir de então, dedicou-se aos estudos de solfejo e piano, e posteriormente, às aulas de

harmonia e composição com grandes nomes da época, como Albert Lavignac, Antoine

Marmontel, Emile Durand, César Franck e Ernest Guirard. Entre os anos de 1880 e 1882

Debussy morou na Rússia, atuando como professor de música e como músico acompanhante

de artistas locais. Ao longo de seus estudos Debussy ganhou diversos prêmios de composição

e de execução de obras ao piano, como o Prêmio de Roma, conquistado em 1884 com sua

composição L'Enfant Prodigue, que lhe valera o ingresso na Academia de Belas Artes e uma

estadia de quatro anos de estudo em Villa Médici, na Itália. Neste período, Debussy

aproximou-se de artistas, poetas e pintores locais, e teve algumas experiências com a

musicalização de obras literárias de autores como Dante Gabriel Rossetti e Heinrich Heine,

que inspirou sua composição intitulada Zuleima.

O contato que Debussy teve por volta dos anos 1888 e 1889 com a obra wagneriana,

ao visitar a cidade de Bayreuth, na Alemanha, causou-lhe um grande fascínio e trouxe

marcada influência à sua criação durante certo período de tempo: Wagner havia falecido no

ano de 1883, e nestes anos em que Debussy esteve na Alemanha o culto sobre a obra

wagneriana apresentava grande força entre os jovens músicos. Peças como La damoiselle

élue, datada de 1888, e Cinq poèmes de Baudelaire, de 1889, retratam a influência da estética

romântica de Richard Wagner sobre a obra de Claude Debussy. Entretanto, isto veio a se

alterar após Debussy tomar conhecimento de algumas obras de compositores distantes da

60

tradição romântica austro-germânica, como Modest Mussorgsky, ainda quase desconhecidas

na época126. Em seu retorno a Paris e como assíduo freqüentador dos locais onde diversos

músicos e artistas se reuniam, Debussy acabou por conhecer Stéphanne Mallarmé, autor do

poema que serviria de inspiração à obra Prélude à l’Après-midi d’un Faune, composta entre

os anos de 1892 e 1894 e uma de suas mais famosas criações, tida como ponto de referência

quanto às inovações estéticas que se desenvolveriam musicalmente nas próximas décadas.

No ano de 1901 foi apresentada pela primeira vez a peça Pelléas et Mélisande, a única

ópera completa composta por Claude Debussy, baseada na obra de Maurice Maeterlinck. Sua

ópera mostrou-se um enorme sucesso, e suas inovações quanto à fluidez rítmica e à coloração

dos sons influenciaram diversos compositores desta época, como Maurice Ravel e Igor

Stravinsky. Neste período, Debussy passou a se dedicar também à crítica musical em diversas

publicações francesas sobre música, como as revistas La Revue Blanche e Gil Blas. Estes

escritos do compositor costumavam expor suas opiniões e concepções sobre a música fruto de

seu tempo, e para isto Debussy redigiu inicialmente sob o pseudônimo de Monsieur Croche.

Sua publicação debaixo da figura de Croche durou pouco tempo, encerrando-se após a oitava

crônica, mas possibilitou a nós conhecermos parte de seu pensamento em relação ao contexto

em que se dava esta profunda transformação estética no campo das artes e, essencialmente, da

música na virada do século XIX. Datam também dos primeiros anos do século XX as

composições La Mer (1905), Le martyre de St. Sébastien (1911), os famosos Preludes para

piano (1910), e as peças orquestrais Iberia (1907) e Jeux (1912), um balé escrito para Serge

Diaghilev, dentre outras.

Todas as inovações propostas por Debussy em relação à música somente foram aceitas

após o término da Segunda Guerra Mundial, décadas depois de sua concepção: até então, em

sua contemporaneidade, Debussy exerceu inegavelmente uma grande influência sobre

diversos músicos e compositores, mas suas idéias em relação à harmonia e à leveza dos sons,

às inovações orquestrais e ao movimento de suas obras ainda se mantinham intrincadas e, de

certa maneira, inacessíveis ou, até mesmo, incompreensíveis para o grande público. Seus

contemporâneos, sobretudo na Áustria e Alemanha, ainda na metade do século XX

preservavam um forte gosto pelo modelo novecentista de composição, embasados na tradição

musical fundamentada principalmente com a obra de Richard Wagner127.

126 CHENNEVIÉRE, Daniel. Debussy e sua obra. Tradução de Heitor Ferreira Lima. São Paulo: Edições Cultura, 1943. p. 10. 127 GRIFFITHS, P. Op. cit., p. 13.

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Em contrapartida, o estilo pessoal de composição de Claude Debussy foi tido muitas

vezes como definidor das mudanças da estética romântica própria do século XIX para o

Modernismo característico do século XX na música. Nestes anos de transição sobre o gosto e

os modelos artísticos, ocorria em paralelo às inovações musicais o movimento literário

francês denominado Simbolismo, que inspirou e influenciou muito da obra de Claude

Debussy. Ao mesmo tempo, ao longo de sua vida, suas composições foram frequentemente

classificadas como uma representação musical do Impressionismo nas artes – o que nem

sempre estava de acordo com a opinião do próprio compositor128.

Desde o ano de 1902 até sua morte, em 1918, Claude Debussy esteve envolvido em

um projeto particular de composição de duas óperas baseadas em obras literárias de Edgar

Allan Poe: O Diabo no Campanário e A Queda da Casa de Usher. A criação destas óperas,

conforme podemos perceber ao longo dos escritos de Debussy em cartas endereçadas a

amigos, representava para ele um ideal de trabalho que traduziria toda sua criação, uma

espécie de obra-prima que contivesse a totalidade de suas idéias sobre música e composição,

fechando o trabalho de sua vida. Como nos demonstra Arthur Nestrovski em sua obra

Debussy e Poe, este projeto foi pensado como algo privado na vida de Debussy, em oposição

a todas as suas composições voltadas ao público, muitas vezes criadas sob encomenda e, por

conta disto, submetidas a modelos ou tradições pré-estabelecidas129.

Estas óperas, no entanto, não puderam ser concluídas e deixaram apenas vestígios e

esboços de materiais escritos pelo compositor. Alguns estudiosos da vida e obra de Claude

Debussy apontam como uma possível causa deste projeto ter ficado inacabado a necessidade

constante de renovação que Debussy tinha sobre sua maneira de compor, que em seu ponto de

vista ainda se mantinha influenciada pela grande aceitação que sua ópera Pelléas et Mélisande

teve junto ao público a partir de 1901.

Outros pesquisadores afirmam que ambas as óperas, em construção por tantos anos

debaixo da inspiração de Debussy, serviram como uma forma de laboratório musical que deu

origem a diversas inovações apresentadas em suas obras mais conhecidas – o que faria com

que estas óperas inacabadas se completassem por meio do conjunto de todas as obras de

Claude Debussy, em uma perspectiva ampla de todo o trabalho de sua vida130.

A necessidade de auto superação identificada como um dos possíveis motivos que

levaram Debussy a deixar inacabado este projeto que tanto o animava relaciona-se à formação

128 DEBUSSY, C. Op. cit., p. 254. 129 NESTROVSKI, Arthur Rosenblat. Debussy e Poe. Porto Alegre: L&PM Editores, 1986. p. 9. 130 Ibid., p. 10.

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de um idioma pessoal do compositor, que se firmou com a escrita e o sucesso obtido em

Pelléas mas se manteve em constante lapidação ao longo de sua vida, impedindo a adoção de

uma espécie de “fórmula de sucesso” que garantisse a aceitação do público131. Este aspecto da

postura pessoal de Debussy ao buscar a criação de uma forma musical nova e independente

para cada obra composta enquadra-se nos elementos caracterizadores da musicalidade

moderna do século XX, segundo nos afirma Paul Griffiths132.

Claude Debussy faleceu no dia 25 de março de 1918, durante o bombardeio alemão

sobre a cidade de Paris, pouco antes do término da Primeira Guerra Mundial. A causa de sua

morte se deu em virtude da debilitação causada pela existência de um câncer intestinal que

vinha sendo tratado há quase uma década. Seu túmulo encontra-se no Cemitério de Passy,

onde foram enterradas também sua esposa e sua filha.

131 Ibid., p. 92. 132 GRIFFITHS, P. Op. cit., p. 12.