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Fundação Getúlio Vargas Escola de Administração de Empresas de São Paulo ANNA CELINA FREITAS FABIANA DE SOUZA TURMA DA SOPA: o amor como um diferencial no trabalho social com moradores de rua SÃO PAULO 2007

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Fundação Getúlio Vargas Escola de Administração de Empresas de São Paulo

ANNA CELINA FREITAS

FABIANA DE SOUZA

TURMA DA SOPA: o amor como um diferencial no trabalho social com moradores de rua

SÃO PAULO

2007

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ANNA CELINA FREITAS

FABIANA DE SOUZA

TURMA DA SOPA: o amor como um diferencial no trabalho social com moradores de rua

Trabalho de conclusão de curso de

Especialização em Administração para

Organizações do Terceiro Setor

apresentado à Escola de Administração

de Empresas de São Paulo da

Fundação Getúlio Vargas.

Orientador: Prof. Luiz Rodovil Rossi Jr.

SÃO PAULO

2007

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Dedicamos este trabalho a todas as

pessoas que vivem em situação de rua.

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AGRADECIMENTOS

Agradecemos à Rosangela Valverde, Presidente da Associação Beneficente

Benedito Pacheco (Turma da Sopa), pelas informações sobre o trabalho da

Associação e extensivo treinamento em como abordar o morador de rua e na

importância que o amor tem nesta abordagem.

À Carla Cristina Nunes, diretora da Turma da Sopa coordenadora das noites de 3ª.

Feira, que nos ensinou como a disciplina, bom humor e a crença no ser humano são

fundamentais para desenvolvermos o trabalho de reintegração dos nossos amigos

da rua.

Ao Sr. Zé Ferreira e ao Roselmar da Costa, ex-moradores de rua, pelos

depoimentos dados.

A todos os voluntários da Turma da Sopa, que dedicam seu tempo e acreditam

naqueles que nada mais têm, além de seus nomes.

Ao nosso orientador, Prof. Luiz Rossi.

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“O único homem que está isento

de erros, é aquele que não

arrisca acertar”.

Albert Einstein

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RESUMO

Também conhecidos como sem-tetos, mendigos, pedintes, andarilhos, indigentes,

marginal, o morador de rua faz parte de um fenômeno das grandes cidades do

mundo. Encarado como um problema social, está presente em praticamente todos

os países como um indicador de desajuste ou reflexo das condições econômicas.

Ele faz parte de um grupo que, por vários motivos, está na rua, tornando-os assim

uma população heterogênea. Ele não se vê como cidadão, como alguém que tem

direitos. Ele é totalmente desprovido economicamente, socialmente e culturalmente.

O morador de rua acaba sendo assistido por entidades, na sua maioria religiosas, de

origem religiosa (católicas, protestantes e espíritas) ou entidades do Terceiro Setor.

A Turma da Sopa tornou-se nosso objeto de estudo por se tratar de uma

organização do Terceiro Setor que aborda a reintegração do morador de rua sob o

enfoque da recuperação do desejo de mudança que existe em todo ser humano que

se encontra em condições de extrema precariedade de vida. Morando nas ruas o

indivíduo se esquece do que foi e do ainda pode voltar a ser e guarda apenas seu

nome.

Este estudo buscou entender o porquê que o trabalho da Associação Beneficente

Benedito Pacheco – mais conhecida como Turma da Sopa – se sobressai no

trabalho de recuperação e reintegração do morador de rua. A afirmação que o índice

de recuperação e aproveitamento de pessoas retiradas da rua pela Associação

Beneficente Benedito Pacheco – Turma da Sopa – é maior que com indivíduos

provenientes de outras instituições, é decorrência da observação e

acompanhamento de seu trabalho ao longo de 6 meses, de diversas entrevistas com

moradores e ex-moradores de rua, além de conversas com assistentes sociais e

responsáveis por outras instituições da Sociedade Civil.

Palavras-chave: Assistência e desenvolvimento social; tecnologia social; morador

de rua; amor; terceiro setor

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SUMMARY

Also known as homeless, paupers, beggars, stray people, indigents or outcasts,

street dwellers are part of a phenomenon of big cities all over the world. Viewed as a

social problem, they are present in almost every country as an indicator of

maladjustment or a reflex of economic conditions. They are part of a large group of

people who, for numerous reasons, are out on the streets, thereby turning them into

a heterogeneous population. They are not treated as citizens, as people who have

rights. Instead, they are completely unprovided economically, socially and culturally.

Street dwellers end up receiving assistance mostly from religious institutions

(Catholics, Protestants and Spiritualists) or Third Sector organizations.

The “Turma da Sopa” or Soup Group was chosen as the subject of our study

because it is a Third Sector organization that approaches the reintegration of street

dwellers by focusing on recuperating that desire to change their lives that exists in

every human being having to face extremely precarious living conditions. Once they

live on the streets, people forget who they once were and who they can still be and

are left with only their names.

This study sought to understand why the work of the Associação Beneficente

Benedito Pacheco (Priest Pacheco Charity Association) – mostly known as “Turma

da Sopa” or Soup Group – stands out in this type of social recovery and reintegration

of street dwellers. The affirmation or claim that the recovery rate and reintegration of

people taken out of the streets by the Associação Beneficente Benedito Pacheco –

“Turma da Sopa” – is greater than those of people coming from other institutions is a

consequence of having observed and monitored their work over a six-month period,

in addition to several interviews with former street dwellers and conversations with

social workers and people in charge other Civilian institutions.

Key Words: Social welfare and development; social technology; street dwellers; love; third sector

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LISTA DE TABELAS

Tabela 1 Trabalho realizado segundos Bases Ideológicas

Tabela 2 Inserção no mundo da rua

Tabela 3 Distribuição da população moradora de rua por região

Tabela 4 Distribuição da população moradora de rua por sexo

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SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO.................................................................................................... 12

2. MORADOR DE RUA.......................................................................................... 16

2.1. Perfil.............................................................................................................. 16

2.2. Tipos............................................................................................................. 16

2.2.1. Os recém deslocados......................................................................... 17

2.2.2. Vacilantes........................................................................................... 17

2.2.3. Outsider.............................................................................................. 18

2.3. Onde e como vive......................................................................................... 20

2.4. Como é visto................................................................................................. 21

2.4.1. Como a sociedade o vê...................................................................... 22

2.4.2. Como ele se vê................................................................................... 22

2.5. O porquê de estar na rua.............................................................................. 24

2.5.1. Ficar na rua......................................................................................... 26

2.5.2. Estar na rua........................................................................................ 27

2.5.3. Ser da rua........................................................................................... 27

2.6. Problemas enfrentados................................................................................. 28

2.6.1. Álcool e drogas................................................................................... 28

2.6.2. Problemas mentais............................................................................. 30

2.6.3. Saúde ................................................................................................. 30

2.6.4. Segurança........................................................................................... 31

2.7. Poder Público x Organizações Não-Governamentais.................................. 32

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2.8. Padrões de funcionamento das ONG’s....................................................... 33

2.8.1. Resposta acomodadora...................................................................... 33

2.8.2. Resposta restauradora....................................................................... 34

2.8.3. Resposta exploradora......................................................................... 34

2.8.4. Resposta de exclusão/expulsão......................................................... 34

2.8.5. Resposta de contenção ..................................................................... 34

2.9. Estatísticas................................................................................................... 34

3. ASSOCIAÇÃO BENEFICENTE BENEDITO PACHECO – TURMA DA SOPA. 37

3.1. Histórico........................................................................................................ 37

3.2. Tecnologias Sociais da Turma da Sopa ...................................................... 41

3.3. Praticando o amor para a reintegração efetiva do indivíduo em situação

de rua............................................................................................................ 45

3.4. Estrutura organizacional e parceiros............................................................ 50

4. PESQUISA DE CAMPO..................................................................................... 53

4.1. Objetivo geral................................................................................................ 53

4.2. Objetivo específico....................................................................................... 53

4.3. Justificativa................................................................................................... 53

4.4. Metodologia: estudo de caso........................................................................ 55

4.4.1. A escolha do caso: Turma da Sopa.................................................... 55

4.4.2. Coleta e análise de depoimentos........................................................ 57

4.4.2.1 Depoimento de Rosangela Valverde, presidente da Turma

da Sopa............................................................................................... 58

4.4.2.2 Depoimento de Zé Ferreira, ex-morador de rua e hoje chefe

de cozinha da Comunidade Terapêutica Novo Dia em Atibaia.......... 62

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4.4.2.3Depoimento de Roselmar da Costa, ex-morador de rua e

hoje motorista da Comunidade Terapêutica Novo Dia em Atibaia..... 65

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS.............................................................................. 71

6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS................................................................. 75

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12

1 INTRODUÇÃO

Também conhecidos como sem-tetos, mendigos, pedintes, andarilhos, indigentes,

marginal, o morador de rua faz parte de um fenômeno das grandes cidades do

mundo. Encarado como um problema social, está presente em praticamente todos

os países como um indicador de desajuste ou reflexo das condições econômicas.

Ele faz parte de um grupo que, por vários motivos, está na rua, tornando-os assim

uma população heterogênea. Ele não se vê como cidadão, como alguém que tem

direitos. Ele é totalmente desprovido economicamente, socialmente e culturalmente.

Conforme Bauman (1997, p. 56), em uma sociedade centrada no consumo, como a

que estamos inseridos, existem “os jogadores”, “os jogadores aspirantes” e “os

jogadores incapacitados”, que não têm acesso à moeda legal. Estes devem lançar

mão dos recursos para eles disponíveis, sejam legalmente reconhecidos ou não, ou

optar por abandonar em definitivo o jogo.

É a opção que resta àqueles denominados por Castel (1997, p. 28-29) como

“sobrantes”, pessoas normais, mas inválidas pela conjuntura, como decorrência das

novas exigências da competitividade, da concorrência e da redução de

oportunidades e de emprego, fatores que constituem a situação atual, na qual não

há mais lugar para todos na sociedade. O refugo do jogo, antes de explicação e

responsibilidade coletiva, corporificada pelo estado de bem-estar, agora se define

como uma situação individual.

Para o autor, esses “sobrantes” são indivíduos “que foram invalidados pela

conjuntura econômica e social dos últimos vinte anos e que se encontram

completamente atomizados, rejeitados de circuitos que uma utilidade social poderia

atribuir-lhes (Castel, 1997, p. 181). Para sua sobrevivência, como todos na

sociedade de consumo, dependem do mercado. A diferença está em que este

mesmo mercado não mais precisa de sua força de trabalho, único valor de que

dispõem para o processo de troca. Como não participam do processo de circulação

de mercadorias, simplesmente sobram.

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Nesse contexto, insere- se a população em situação de rua, aquela parcela

da população geral que se caracteriza por não ocupar um imóvel como residência

em caráter prolongado ou permanente, tendo as ruas e espaços públicos como local

de residência e sobrevivência.

Ao olharmos o entorno dos viadutos e ruas próximas ao centro da cidade de São

Paulo, é muito comum vermos cidadãos comuns distribuindo alimentos e cobertores

aos moradores de rua, principalmente nas noites frias de inverno. É a maneira que a

sociedade parece encontrar para corrigir a apatia em relação ao enorme contingente

de pessoas que se encontra no abandono. São grupos de amigos, famílias,

organizações da sociedade civil e organizações religiosas e filantrópicas à procura

de minimizar os efeitos da ausência de políticas assistências claramente formuladas,

que acabam gerando ações de caráter pontual e emergencial. O enfrentamento da

questão do morador de rua parece operar no campo da filantropia, pois tem raízes

no sentimento religioso de que o pão é símbolo de solidariedade.

Mas não é um prato de comida ou um agasalho que serão capazes de reintegrar o

morador de rua à sociedade, devolvendo-lhe a identidade e auto-estima.

O morador de rua acaba sendo assistido por entidades, na sua maioria religiosas ou

de origem religiosa (católicas, protestantes e espíritas), pois as instituições de

assistência são uma peculiaridade das civilizações cristãs (ética dos princípios de

dignidade humana). O Estado acaba prestando uma assistência mínima, sendo seu

papel mais relevante nos centros de Triagem (CETREM) e Plantão (SEBES).

Diversos são os movimentos existentes em São Paulo, que se preocupam e

trabalham para que isso aconteça. Para citar alguns mais conhecidos: Ocas

(Organização Civil de Ação Social) , Reciclázaro, Associação Minha Rua, Minha

Casa (parceria entre PNBE e a Organização Auxílio Fraterno) Coopere, Projeto

Filadelfia (Zona Leste), Paróquia São Luis Gonzaga (Casa de Convivência), Pastoral

dos Moradores de Rua de São Paulo sob a reponsabilidade do Pe. Júlio Lancelloti,

entre outras inúmeras iniciativas.

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Em grande maioria, o que encontramos são iniciativas de um espaço para a acolhida

de pessoas em situação de rua com abrigo e facilitação de convivência, alimentação,

banho, assistência social, atividades sócio-educativas, culturais e oficinas de

geração de renda que teoricamente, facilitarão o desenvolvimento dos recursos

pesssoais, potencializando o crescimento de cada uma das pessoas atendidas. Com

isso, acredita-se que uma vez capazes de gerar seu próprio sustento, o homem em

situação de rua, encontre-se reintegrado à sociedade e queira retorna à sua família e

amigos.

O caminho para a reintegração é longo, depende da determinação de mudança por

parte do morador de rua, da existência de programas que proporcionem tratamentos

para a dependência, depende de organizações que promovam o surgimento de uma

relação de confiança e segurança entre seus funcionários ou voluntários e o morador

de rua. Isso sem mencionar a necessidade posterior de encaminhamento à serviços

odontológicos, oftalmológicos e capacitação profissional para que o homem em

situação de rua seja capaz de gerar renda para si e eventualmente, para sua família.

Mas, acima de qualquer coisa, é na criação de um elo de confiança entre o

representante da instituição social e do morador de rua, que se cria a condição

primordial para que o caminho para a reintegração trilhe seu primeiro passo, pois

fragilizado como está o individuo em situação de rua, ele precisa antes de qualquer

coisa perceber que alguém acredita que ele pode mudar e efetivamente se reintegrar

à sociedade. Sem a crença na capacidade de mudança do ser humano, não existe

reintegração de fato. A rua continuará muito próxima do indivíduo. É um conjunto de

ações e atitudes que fazem com a reintegração seja possível e concreta. E nenhuma

instituição sozinha, consegue trilhar todo esse caminho.

A Associação Beneficente Benedito Pacheco é mais uma instituição que está

trilhando o caminho deste árduo trabalho de recuperação e reinserção do morador

de rua. De uma forma inovadora e desafiante, podemos dizer: através do amor

dedicado de seus cooperadores para com os moradores de rua. A Associação foi

fundada em 1992 pelo Dr. Eduardo de Ferraz de Mendonça e seu amigo Zeca, com

a finalidade de distribuir cobertores e comida para moradores de rua durante o

inverno daquele ano. Rosangela Valverde, atual Presidente da Associação, define o

atual trabalho: "Nosso trabalho não é apenas alimentar. Através do alimento,

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conseguimos nos aproximar dessas pessoas e fazer um trabalho de reintegração à

sociedade. Nos catorze anos de existência da Turma da Sopa, cerca de 200

pessoas foram reintegradas. Antes, tiveram de enfrentar a própria dependência ao

álcool e às drogas, recuperar a coragem e a auto-estima”.

Este trabalho quer significar uma resposta. Todavia, não é preciso alimentar ilusões.

O trabalho que ora se desenha e se define como inédito e desafiador e, por isso

mesmo, angustiante e provocador, provavelmente virá a assumir um lugar igual

entre outros tantos trabalhos iguais, dissolvendo-se nas características gerais do

conhecimento que se produz nesta época. Que assim seja!

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2 MORADOR DE RUA 2.1 Perfil O perfil do morador de rua atual não é mais representado pela figura do imigrante,

geralmente negro, com pouca escolaridade e desempregado. Também deixou de

ser a do homem de menos de 45 anos, primeiro grau incompleto, catador de latinha

ou de papelão. Hoje em dia há um novo tipo de morador de rua, formado por

pessoas que já tiveram carteira de trabalho assinada, foram chefes de família e são

brancos. Não é difícil também encontrar pessoas que falam uma segunda língua ou

que têm diploma universitário.

Tratam-se de homens e mulheres que, por não se relacionarem mais com o

trabalho, como trabalhadores formais, também não se relacionam com o dinheiro

enquanto remuneração pela venda contratual de sua força de trabalho. Geralmente

não possuem mais existência legal, uma vez que não possuem documentos que os

identifiquem como cidadãos, não possuem local de moradia. São homens e

mulheres que romperam seus vínculos com a família, vizinhos e amigos, com o

bairro, a cidade ou o estado de origem, com os espaços institucionais e de lazer,

antes ocupados e via de regra com os referenciais simbólicos que norteavam seus

princípios morais e religiosos.

Porém a condição de morador de rua ainda é mais comum entre os homens do que

entre as mulheres. Isto é particularmente verdadeiros se for considerado apenas os

indivíduos solteiros. Mas esse não é o caso se considerarmos as famílias

moradoras de rua, as quais são constituídas, sobretudo, de mulheres com seus

filhos.

A média de idade das mulheres, em geral, é menos do que a dos homens. Elas têm

uma probabilidade maior de estarem empregadas, estudando, mantendo contatos

com a família, de serem casadas e de terem filhos.

2.2 Tipos De acordo com informações obtidas no site da Paróquia São Luiz Gonzaga, estão

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divididos em três os tipos de moradores de rua: de

2.2.1 Os recém-deslocados: quaisquer que sejam as causas do desabrigo, os

comportamentos de adaptação e a orientação psicológica daqueles indivíduos que

se encontram nas ruas pela primeira vez mostram semelhanças marcadas que os

distinguem dos moradores de rua que, com exceção de alguns doentes mentais,

estiveram na rua por mais tempo. Quando os indivíduos vão para as ruas pela

primeira vez, estão compreensivelmente amedrontados pelo mundo novo, estranho

e violento em que penetraram. Tem medo da companhia rude na qual se

descobrem. Não sabem em quem confiar ou se é possível confiar em alguém. E não

sabem como sobreviverão, se é que acreditam que isso seja possível. Em muitos

aspectos, acham-se num estado de apatia Consequentemente, os recém-

deslocados tendem a utilizar às instituições curadoras locais, particularmente

aquelas, tais como albergues e casas de convivência que fornecem alimentação e

abrigo.

O mundo incerto e estranho que inicialmente confronta os recém- deslocados tende

a induzi-los a pensar sobre suas experiências e identidades passadas, dando

origem a um forte desejo de voltar ao mundo de onde vieram. Não apenas a

conversa dos recém- deslocados é temperada com planos de sair das ruas, mas

seus comportamentos são direcionados de modo bastante coerente com esses

objetivo; por exemplo eles estão entre os que buscam de modo mais frequente tanto

emprego convencional quanto o informal. Além disso eles repudiam a identidade

social de pessoas de rua e rapidamente enfatizam para outros que não são como a

maioria dos moradores de rua em cuja companhia são encontrados. Os recém-

deslocados portanto se acham na situação desconcertante e estafante de estarem

psicologicamente fora das ruas, mas fisicamente atolados nela.

2.2.2 Vacilantes: Se os esforços que uma pessoa recém chegada à rua faz para

sair das ruas são continuamente mal-sucedidos, ela freqüentemente muda a auto-

orientação e o comportamento. O medo que uma pessoa tem do ambiente dos

moradores de rua tende a diminuir a medida que este ambiente se torna familiar. A

pessoa moradora de rua trava novas amizades e se torna mais versada em como

conseguir comida, abrigo e companhia. Por outro lado, modos planejados de sair da

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rua tendem a se tornar cada vez menos claros, e há uma tendência a cair em um

estado de lassidão, deixando os dias passarem sem se tomar qualquer atitude.

Freqüentemente nesse estágio, a fala e a ação são inconsistentes. Planos de ação

são altamente mutáveis, especialmente planos para procurar trabalho. Embora a

pessoa moradora de rua nesta altura não se identifique positivamente com os outros

nas ruas, há um reconhecimento de uma situação partilhada. Portanto os vacilantes

estão num momento de virada crítico de suas vidas, com um pé no mundo

domiciliado do passado, com o qual ainda se identificam e em relação ao

qual sentem alguma continuidade e um pé plantado na vida da rua.

2.2.3 Outsider - os moradores de rua recém- deslocados a medida que se

acostumam com a vida nas ruas podem, por sua vez, se deixar levar mais ainda

para a vida de rua, tanto na sua orientação psicológica quanto sua rotina cotidiana

mais concentrada na sobrevivência nas ruas do que sair delas. Estes indivíduos

moradores de rua se tornaram Outsider. O conceito de outsider se refere à condição

de estar permanentemente e por imputação colocado fora das disposições

estruturais de um dado sistema social, ou de estar situacional ou temporariamente

excluído, ou de voluntariamente se excluir do comportamento de membros que têm

status e função dentro daquele sistema.

São indivíduos em que a vida nas ruas se tornou um dado que não se questiona.

Frequentemente eles se vêem em termos de variadas identidades de rua e não

simplesmente como indivíduos que são desafortunados. Como consequência

raramente falam sobre sair das ruas. Os outsiders podem ser divididos em três

subtipos:

• Andarilhos: o andarilho é um trabalhador migrante, são altamente

migratórios com um raio de ação muito maior que os outros moradores de

rua. Suas viagens são tipicamente padronizadas e não aleatórias. Possuem

um forte senso de independência e autocontrole que os leva a desprezar

tanto os novatos de rua que ainda não aprenderam as regras do jogo e os

que vivem em grande parte das esmolas de entidades de caridade

organizadas ou que aceitam apoio substancial de serviços sociais. Os

andarilhos parecem ter se resignado à vida nas ruas. Sua aceitação da vida

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de rua frequentemente se reflete numa tendência a se desfazer de seus

nomes de batismo em favor de nomes de rua.

• Mendigos: o termo mendigo significa tradicionalmente um não-trabalhador,

não-migrante, cujo raio de ação está, em geral, limitado a uma zona marginal

e que é um alcoólatra crônico. Raramente se envolvem em trabalho

remunerado. Isso ocorre não tanto porque são preguiçosos mas porque se

tornaram indiferentes ou porque estão fisicamente debilitados devido a anos

de vida dura e muita bebida. Ao invés disso sobrevivem graças a uma

combinação de mendicância, comércio, catação de lixo, doações de

instituições de caridade e apoio de serviço social. Parecem resignados a

esse estilo de vida e vivem apenas o presente, raramente se preocupando

com o futuro, em grande parte porque sabem que o amanhã lhes reserva

pouco que seja diferente de hoje.

• Doentes Mentais: estão entre os mais imóveis raramente se movimentando

voluntariamente além de sua órbita cotidiana. Dentro desse circuito, eles

sobrevivem principalmente aceitando doações, catando comida no lixo e

mendigando. Na sua rotina de vida não incluem o uso de álcool e droga, são

os mais reclusos e socialmente isolados.

Os moradores de rua também são divididos em três grupos de acordo com o período

em que esses indivíduos vivem nas ruas:

1. Crônicos: são indivíduos que vivem um longo período de suas vidas nas ruas

ou em albergues públicos;

2. Episódicos: aqueles que alternam as suas estadias nas ruas ou em

residências;

3. Transitórios: aqueles que vivem temporariamente nas ruas em razão de uma

crise situacional aguda, como, por exemplo, os desabrigados por uma

catástrofe natural.

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Há também outra forma de classificação dos moradores de rua que se leva em conta

as características psicopatológicas dos mesmos:

1. Alcoólatras crônicos;

2. Doentes mentais crônicos;

3. Indivíduos vítimas de fatores estressantes intensos e situacionais.

2.3 Onde e como vive

Segundo dados de uma pesquisa da Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas-

Fipe, realizada em outubro de 2003, São Paulo tem 10.500 pessoas morando nas

ruas durante a noite. A área central da cidade concentra o maior número de pessoas

nessas condições. Ainda segundo a mesma pesquisa, predominam pessoas do sexo

masculino (83,60%), em idade ativa (18 a 55 anos, 70,06%) e residindo na rua há

até um ano. Esses dados aumentaram em torno de 30% desde a última pesquisa

feita em 2001 pelo mesmo instituto. Muitos desses moradores de rua não possuem

família e muitos consomem álcool e drogas. O mais interessante apontado por essa

pesquisa é que 20% desses moradores possuem nível superior. Isso mostra que

essas pessoas não são bandidos como pesam muitos paulistanos e possuem

potencial para voltar reabilitados para sociedade. O que falta é uma oportunidade e a

redução do preconceito que há contra essas pessoas.

As formas de moradia na rua são diferentes e acontecem em três tempos:

• Albergues: ele está na rua naquele momento, desempregado, ainda acredita

na sua reinserção

• Rua: já está desempregado há algum tempo, é dependente químico ou

alcoólico, já criou seu círculo social e já sabe sobreviver na rua. Tem

mobilidade.

• Centros de convivência: morador de rua há mais tempo que os outros, tem

lugar fixo de residência embaixo de viadutos, em caixas, construções

abandonadas, prédios vazios. Usam os centros para banhos.

A pessoa que vive na rua precisa ter a confiança conquistada até aceitar a idéia de ir

para um abrigo público. Além disso, experiências anteriores podem ter sido ruins. A

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rua é para essas pessoas como sua casa e o abrigo é uma casa estranha. Os

abrigos são locais de convivência, onde é necessário falar de suas vidas, o que traz

lembranças dolorosas. São locais onde há regras, daí a resistência dos moradores

de rua a permanecerem neles.

A escolha do lugar onde dormir parece estar ligado à proximidade dos locais

de produção da sobrevivência, ou seja, das oportunidades de trabalho e obtenção de

comida. A escolha também é determinada pela disponibilidade de espaços públicos,

de preferência cobertos, que representem alguma privacidade e proteção contra o

frio e a chuva, como viadutos , marquises, becos, árvores grandes, entre outros.

Imóveis privados abandonado como galpões e casarões também são logradouros

escolhidos para o pernoite. Os moradores de rua, em geral, improvisam algum tipo

de abrigo com caixas de papelão, jornais, folhas de madeira, lonas ou objetos

similares que, ainda que precariamente, representem um espaço protegido.

A população de rua sobrevive, no que se refere à alimentação, basicamente por

meio da ação filantrópica exercida pelas organizações sociais de caráter privado,

cunhada pela caridade. O campo da filantropia opera de maneira diversificada, não

se restringindo à distribuição da comida, mas ajudando tanto a indivíduos como a

famílias pobres, fornecendo-lhes outros auxílios, como roupas,calçados, remédios e

cestas-básicas. O trabalho dessas organizações junto à pobreza assume um

sentido de dupla ação, ora na consecução de seus princípios doutrinários, ora na

perspectiva de uma ação social.

2.4 Como é visto

De acordo com o workshop “A rua no Centro” apresentado pela Associação Viva

o Centro, de todos os estratos sociais mais empobrecidos das classes

trabalhadoras, a população de rua é a mais visível e exposta a juízos baseados nos

padrões de aceitação social – estabilidade no trabalho e na residência, aspecto

físico, comportamentos – e, obviamente a mais frágil às reações de condenação e

repulsa. A sua condição-limite de pobreza favorece a extrema rapidez com que se

formam clichês e esteriótipos de avaliação: o morador de rua bebe, promove

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baderna, agride, é sujo, é perigoso, é feio. A uma imagem externa, contudo,

corresponde uma auto-imagem que com frequência confirma os juízos exteriores.

2.4.1 Como a sociedade o vê Até pouco tempo, eles eram praticamente invisíveis aos olhos de quem não os

quisesse ver. Seus habitats eram mais ou menos escondidos, sua superexposição

nas ruas correspondia aos horários de menor movimento e o seu comportamento

era mais discreto. Não frequentavam as ruas de comércio elegante e os bairros de

classe-média, confirnando-se em setores degradados do Centro e em alguns bairros

de comércio popular.

Essa imagem do morador de rua passou a mudar junto com a própria transformação

ocorrida na sociedade. Morar na rua passa a representar uma violação das regras

sociais de uso do espaço.

A solidariedade, como uma das faces contraditórias da população em geral, também

pode ser observada fortemente quando se trata da garantia de necessidades

básicas das pessoas em situação de rua. São muitos os exemplos de famílias,

pessoas, ou mesmo trabalhadores de estabelecimentos prestadores de serviços,

que acabam por adotar pessoas que vivem nas ruas nas proximidades de suas

residências ou locais de trabalho, garantindo-lhes local para dormir, sobras de

comida e disponibilidade de água.

Outro exemplo são os inúmeros grupos de voluntários que saem à noite para

levar comida e agasalho para as pessoas que estão dormindo nas ruas.

2.4.2 Como ele se vê O indivíduo que vive na rua já não dispõe de referências que lhe permitam a

construção de uma identidade. Sem trabalho regular, sem casa, quase sempre sem

família, ele tem apenas em seu próprio corpo o necessário instrumento de mediação

entre o eu e o mundo. Teoricamente, ele não tem porque preocupar-se em ser um

cidadão, um indivíduo útil à sua família e à comunidade, sujeito às regras e

limitações do convívio social e dele beneficiário. Ele não existe senão em função de

seu corpo e de suas necessidade imediatas.

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O destino do morador de rua é socializar-se na rua, interiorizar os seus códigos e

normas de sobrevivência. Paga um alto preço em estigma social: é coitado e

vagabundo, com frequência bandido, que precisa ser reeducado, reintegrado ou

eliminado. Desamparado, sem outra auto-referência senão o corpo sacrificado e

frágil, destituído de recursos intelectuais básicos, indefeso diante do implacável juizo

que dele fazem os outros, o morador de rua termina por enxergar-se através do

mesmo esteriótipo: crê-se vagabundo, e de fato não trabalha por não querer

trabalhar; alcooliza-se para suavizar a dura mediação eu-mundo proporcionada pelo

corpo; não tem família porque não o deseja nem faz por onde constituir e manter

uma; não tem dinheiro, nem saúde, nem conforto porque gosta de estar na rua e é

por isso um decaído. Daí desenvolver um desmesurado sentimento de culpa que o

leva a uma inglória dissimulação: quer passar por desempregado que perdeu os

documentos, por chefe de família temporariamente afastado de casa pelo vício da

bebida, que abandonará tão logo recupere o emprego, etc. Contraditoriamente,

começa a enxergar o companheiro de rua como o maloqueiro que ele próprio finge

não ser. É a dupla solidão: diante de si mesmo e diante de seu próprio grupo social.

O uso desregrado de recursos compensatórios, como o álcool, permite que se

suporte a realidade. A pinga é a grande mediadora.

A palavra liberdade aparece com muita frequência em seu discurso, indicando

a indisposição de representar certos papéis exigidos pelo sistema ou a denúncia da

rigidez de padrões de comportamento social que não foram capazes de representar.

Todavia, imediatamente após a apologia da liberdade, expressam a mágoa de

serem rejeitados. Os discurso da liberdade se apresenta como forma de

compensação e sublimação frente ao fato de serem socialmente discriminados e, de

certa forma, culpam sua atual situação pela rejeição sofrida principalmente pelas

suas próprias famílias e pelo conjunto da sociedade. Transitam entre uma auto-

imagem de degenerados sem solução e o sonho de conseguirem novamente ser

aceitos.

Existe o discurso da vergonha, da humilhação e da estigmatização sofrida. A

necessidade de reintegração social tem o sentido frequente da higienização e da

recuperação da condição física degradada. A vergonha de estarem expostos pela

sujeira e doença de seus corpos leva à alienação pela embriaguez, sendo o

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alcoolismo um dos maiores problemas detectados pelos órgãos governamentais de

assistência e confirmado pelos próprios moradores de rua.

2.5 O porquê de estar na rua Vários fatores podem estar associados à condição de morador de rua, podendo-se

dividí-los em três níveis (Susser et al., 1993):

• O primeiro seria o de variáveis estruturais ou macro que compreenderia

a extrema pobreza, o desemprego, a falta de moradia, o aumento das

tendências migratórias, os desastres naturais e a desinstitucionalização de

hospitais psiquiátricos;

• O segundo nível incluiria a família e o suporte social;

• O terceiro nível, denominado de variáveis individuais ou micro, seria

representado pela faixa etária de 30 a 40 anos, sexo masculino, solteiro ou

separado, nível baixo de escolaridade, situações de violência na infância e

doenças debilitantes físicas e mentais.

Nosso atual modelo econômico neo-liberalista também é muito perverso quando o

assunto é exclusão social. A vítima da exclusão social, inclusive aquela que acaba

indo morar nas ruas, torna-se a culpada pelo seu desemprego. Para os padrões

atuais, a pessoa está nessa situação porque não preparou para o mercado, porque

não fez direito a lição de casa. Pior: para ele, esse mesmo modelo econômico

impede a inclusão social, principalmente pelo mercado de trabalho formal, que está

em crise.

Entretanto alguns estudos enfatizam os fatores micro como sendo os principais

responsáveis por conduzir um indivíduo a vir morar nas ruas, relegando para

segundo plano a óbvia origem socioeconômica dessa situação. É como se a doença

ou qualquer incapacidade do indivíduo fosse uma condição para predispô-lo a viver

em condições subumanas.

Essa concepção de culpar o próprio morador de rua pelo seu infortúnio não é uma

elaboração moderna. Segundo Hamid, a causa atual predominante atribuída pela

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sociedade é psiquiátrica, e o tratamento eficaz seria abrigar os moradores de rua em

asilos ou hospitais psiquiátricos.

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Tabela 1

Trabalho realizado segundos Bases Ideológicas

BASE IDEOLÓGICA DOMINANTE

DEFINIÇÃO DO PROBLEMA

PRINCIPAL ESTRATÉGIA DE CONTROLE

INSTITUIÇÕES DE TRATAMENTO

Moral/religiosa Fraqueza espiritual Salvação Missões

Penal Transgressão Correção Prisões

Médico-social Álcool e desajuste

social

Tratamento/

reabilitação

Programa para

alcoolismo e frentes

de trabalho

Psiquiátrica Doença mental Tratamento

institucional

Albergues e

hospitais

psiquiátricos

É possível identificar situações diferentes em relação à permanência na rua:

• Ficar na rua: circunstancialmente

• Estar na rua: recentemente

• Ser da rua: permanentemente

Essas situações podem ser dispostas num continuum, tendo como referência o

tempo de rua; à proporção que aumenta o tempo, se torna estável a condição de

morador. O que diferencia essas situações é o grau maior ou menor de inserção no

mundo da rua.

2.5.1 Ficar na rua: reflete um estado de precariedade de quem, além de estar sem

recursos para pagar pensão, não consegue vaga em albergues. Pode ser fruto de

desemprego, especialmente na construção civil, quando, junto com o trabalho, se

perde a moradia no alojamento da obra. Há também os que, recentes na cidade,

não conseguem emprego e não têm pra onde ir. Geralmente as pessoas que se

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encontram nessa situação sentem-se desvalorizadas e demonstram medo de dormir

na rua. Buscam rapidamente uma saída através de plantões de serviço social e

procuram emprego ou bicos que lhes permitam pagar uma pensão. Rejeitam

violentamente a identificação com o morador de rua, procurando distanciar-se dele.

2.5.2 Estar na rua: expressa a situação daqueles que, desalentados, adotam a rua

como local de pernoite e já não a consideram tão ameaçadora. Começam a

estabelecer relações com pessoas de rua e conhecer novas alternativas de

sobrevivência. Procuram emprego ou fazem bicos. Podem conseguir trabalho em

outras cidades ou estados, aliciados por empreiteiros. Quando conseguem obter

algum dinheiro, procuram pensões ou vagas em albergues. Começam a frequentar

lugares de distribuição de comida gratuita e instituições assistenciais. Tentam se

diferenciar dos moradores de rua apresentando-se como trabalhadores

desempregados.

2.5.3 Ser da rua: Nas situações anteriores é possível alternar a rua com outros

lugares de residência e com trabalhos diversos. Pode acontecer até mesmo que o

indivíduo saia definitivamente da rua, retorne ao lugar de origem, consiga emprego,

constitua família. Este processo torna-se mais difícil à proporção que aumento o

tempo de rua. De forma geral, o indivíduo vai sofrendo um processo de

depauperamento físico e mental em função de má alimentação, precárias condições

de higiene e pelo uso constante do álcool. Essa população está também exposta a

toda sorte de violências vindas da polícia, dos próprios companheiros e do trânsito.

Nessa situação torna-se extremamente difícil ser aceito em empresas da construção

civil ou de trabalho temporário, ainda que, muitas vezes, o indivíduo recorra ao

discurso do trabalhador desempregado que perdeu os documentos. Nesse contexto

a rua ganha cada vez mais importância. É o espaço de relações pessoais, de

trabalho, de obtenção de recursos de toda sorte. O cotidiano passa a ser pautado

por referências como as bocas de rango, instituições assistenciais, determinados

lugares da cidade onde se reúnem as pessoas na mesma situação. A rua torna-se

espaço de moradia de forma praticamente definitiva, ainda que ocasionalmente

possa haver alternância com outros lugares de alojamento, como pensões baratas,

albergues, depósitos de papelão e casas de parentes.

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A tabela a seguir permite visualizar as situações apresentadas:

Tabela 2

Inserção no mundo da rua

Inserção no Mundo da Rua

Ficar na rua Estar na rua Ser da rua

Moradia Pensões,

albergues,

alojamentos

(eventualmente

rua)

Rua, albergues,

pensões

(alternadamente)

Rua, mocós

(eventualmente

albergues e

pensões)

Trabalho Construção civil,

empresas de

conservação e

vigilância

Bicos na

construção civil,

ajudante geral,

encartador de

jornal, catador de

papel

Bicos,

especialmente de

catador de papel,

guardador de

carros, encartador

de jornal

Grupo de referência Companheiros

de trabalho,

parentes

Companheiros de

rua e de trabalho

Grupos de rua

Fonte: Giorgetti (2006) 2.6 Problemas enfrentados 2.6.1 Álcool e drogas

Uma vez que o indivíduo está só e vivendo num ambiente totalmente insalubre, o

consumo de álcool e drogas é frequente nesse meio.

A rua é a morte social e a pinga permite a convivência, liberando- os dos códigos,

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das amarras. É o analgésico que os libera das pressões sociais, fazendo-os

esquecer as dores e as decepções.

No referente ao álcool, pode existir um grupo de pessoas em que o alcoolismo

antecederam à condição delas morarem nas ruas, e as suas sintomatologias

agravaram em consequência deste evento. A grande prevalência do alcoolismo na

população de moradores de rua, em comparação a população em geral, torna-os

mais vulneráveis a acidentes, a problemas físicos e mentais relacionados ao

abuso/dependência de álcool. Esses fatores podem levar esses indivíduos a

negligenciarem com a sua saúde e não procurarem ajuda a tempo.

As taxas de abuso/dependência de álcool são bem maiores do que distúrbios

mentais nos moradores de rua. O abuso de drogas é, também, um problema

comum, particularmente entre os moradores de rua jovens. É estimado que as taxas

de usuários de drogas são menores do que a de álcool, e a maioria das drogas

usadas são: maconha, cocaína, heroína, metadona e crack. É relatado também que

as drogas são usadas intra-venosamente pela metade dos usários.

2.6.2 Problemas mentais

As condições adversas de sobrevivência dos moradores de rua podem, também,

desencadear problemas mentais orgânicos. Esses indivíduos podem manifestar

distúrbios psicóticos agudos e também outros sintomas como a apatia, retardo

psicomotor e déficit de memória, decorrentes de toda a adversidade que estão

submeticos.

As características dos moradores de rua que apresentam distúrbios mentais são:

• Uma maior proporção de homens;

• São mais idosos;

• Têm um maior período de vivência nas ruas;

• Têm uma menor probabilidade de estarem trabalhando.

2.6.3 Saúde

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Quando falamos de saúde não se trata apenas de ausência de doença. A saúde é

a presença do bem estar na vida do indivíduo. É ele se sentir integrado ao meio em

que vive, aceito, amado, enfim, feliz.

Os indivíduos que moram tanto nas ruas quanto nos albergues estão vulneráveis a

vários fatores que poderão desencadear doenças, tais como: a falta de alimentação

adequada, as exposições a condições precárias de higiene, a falta de segurança, a

falta de privacidade, a exposição ao frio e ao calor, etc.

Outra dificuldade é a da percepção do individuo em relação ao que sente. A pessoa

que tem problemas de saúde muitas vezes não prioriza tratar-se, por viver numa

lógica de sobrevivência. Quando não se sabe o que se vai comer ou onde se vai

dormir a noite, tosse, febre e mesmo dor, ficam em segundo plano.

Embora o acesso aos serviços públicos de saúde seja muitas vezes difícil para

qualquer cidadão, no caso da população em situação de rua, há agravantes. Para se

conseguir atendimento é preciso chegar muito cedo ao posto e esperar varias horas.

O morador de rua com freqüência precisa sair para pegar o almoço, senão, só vai

comer de noite. E a lógica da sobrevivência. Comida primeiro, médico depois. Em

segundo lugar, é comum que o morador de rua esteja com roupas sujas e/ou não

tenha tomado banho, o que faz com que ele seja mal recebido na sala de espera de

um posto de saúde ou mesmo de um hospital. Muitas vezes ele é discriminado e

sofre preconceitos de usuários e/ou funcionários dos serviços de saúde. A falta de

documentação também apresenta-se como problema freqüente para o acesso do

morador de rua aos serviços públicos. O resultado final de tantas dificuldades é a

busca por ajuda apenas em último caso. Assim, muitas questões de saúde tornam-

se crônicas e por isso mais difíceis de resolver.

De acordo com Maria Herminda Carbone (2000), os maiores problemas enfrentados

pelo morador de rua para cuidar da saúde são:

• Geralmente qualquer tratamento exige regularidade na ingestão do

medicamento, prevendo horários rigídos;

• O tratamento exige consultas médicas regulares e exames;

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• O tratamento supõe submissão à burocracia dos serviços (atendimento,

agendamento antecipado) em oposição às circunstâncias do viver nas ruas;

• Os efeitos colaterais do tratamento podem ser potencializados pela

problemática enfretada pelo morador de rua quanto ao retorno ao médico e

difícil comunicação com os profissionais;

• A cura é impossibilitada pelas condições de vida do morador de rua.

2.6.4 Segurança Viver nas ruas quase sempre significa estar em risco. Risco que se transforma em

medo cotidiano de ter os pertences roubados, de ser agredido por alguém entre os

iguais da rua em alguma briga por espaço ou em uma desavença, de ser vítima de

violência sexual, de ser alvo de agressões inesperadas vindas de setores

preconceituosos da sociedade para com esse público, ou mesmo dos órgãos oficiais

responsáveis pela segurança.

Embora os serviços de segurança sejam eventualmente buscados, eles são vistos

pela população de rua com desconfiança, o que pode significar uma condição de

conformidade ou “anestesia” em relação à violência.

Geralmente as políticas de segurança pública dirigidas a este público não são

voltadas para a sua proteção, mas sim para a criminalização de seus

comportamentos e para a tolerância zero em relação aos seus atos de transgressão,

não assegurando assim a esta população a condição de detentora de direitos

humanos.

Sendo assim, sobreviver nas ruas é uma façanha individual e cotidiana, em que

cada dia é mais um dia, em que a garantia da própria vida é lucro em relação ao que

se pode esperar do cotidiano. A violência é vista apenas como mais um

componente da luta pela sobrevivência.

A pessoa que usa o espaço público para pernoite sofre violência também de seus

iguais, dada a diversidade de segmentos que compõem o mundo da rua. Dormir em

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grupo, portanto, representa segurança, num certo sentido. Entretanto, quanto maior

o grupo de pernoite, maior é o risco de se tornar alvo da polícia ou de denúncias por

parte da vizinhança, provocadas por possíveis algazarras, bebedeiras, etc. O

agrupamento, apesar de representar a possibilidade de melhores condições de

subsistência e de proteção mútua, exerce, em determinados contextos, uma função

de sujeição e controle sobre cada um de seus elementos.

2.7 Poder Público x Organizações Não Governamentais

Sabe-se que as políticas sociais no Brasil têm funcionado ambiguamente na

perspectiva de acomodar relações entre o Estado e a sociedade civil. Essas

políticas, porém, vêm se caracterizando pela pouca efetividade social e por sua

subordinação a interesses econômicos, apenas permitindo acesso discriminado a

recursos e serviços sociais.

Na administração das desigualdades, o Estado, em todos os âmbitos (federal,

estadual e municipal), consagra políticas, ações e instituições para o enfrentamento

da questão social. Essa administração não se efetiva apenas através de instâncias

do aparato do Estado, mas se estende à rede de instituições assistenciais privadas.

Organismos públicos e privados complementam-se, combinam-se de formas

variadas, constitutindo-se em veículos de uma face humanizada do sistema. Por

outro lado, é importante ter presente que é pela mediação dessas políticas, ações e

instituições que as classes subalternas podem ter acesso a bens e serviços

necessários à sua manutenção.

De acordo com Costa (2005) , o desinteresse do Estado pelas pessoas em situação

de rua reflete a contradição com que o sociedade e a opinião pública tratam o tema,

ora com compaixão, preocupação e até assistencialismo, ora com repressão,

preconceito e indiferença. O fato é que, historicamente invisíveis aos olhos do

Estado, quando não se constituíam em alvo de repressão, as pessoas em situação

de rua eram simplesmente deixadas de lado.

Porém esse panorama começou a mudar com a Constituição Federal de 1988 e com

a Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS) que reconheceu a assistência social

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como política pública.

De acordo com a nova legislação, o Poder Público passou a ter a tarefa de manter

serviços e programas de atenção à população de rua, garantindo direitos de

cidadania a esse segmento social. Porém, nos últimos anos, concretizaram-se

poucas iniciativas públicas destinadas a essa população.

Vê-se que o financiamento da rede regular de serviços de assistência social é

insuficiente e muito precário. Não existe uma fonte de recuros federal destinada à

área, e os governos estaduais dificilmente tomam para si a tarefa de financiar

programas para a população de rua, restando apenas aos municípios a tarefa de

destinar recursos para as necessidades variadas de atendimento.

Para suprir suas necessidades básicas, as pessoas que vivem nas ruas se utilizam

de estratégias variadas, contando assim com os serviços de assistência social

oferecidos por diversas Organizações Não-Governamentais (ONGs). Consideram-

se como necessidades básicas a alimentação, a higiene e as necessidades

fisiológicas, o vestuário e o abrigo.

De acordo com Falcão (1989), a política social no Brasil se mantém opaca, sem

visibilidade, sem identidade, sem direção clara, germinando e proliferando numa

caótica rede de instituições públicas produtoras de assistência e serviços sociais,

que se apresentam marginais até mesmo para seus agentes técnicos.

2.8 Padrões de Funcionamento das ONG’s De acordo com Snow e Anderson (1998), as organizações distinguem cinco padrões

de funcionamento ou resposta:

2.8.1 Resposta acomodadora: abarcam as instituições que não apenas cuidam do

indivíduo, mas outros tipos de auxílio que se acredita que vão beneficiar o paciente e

que oferecem auxílio como um fim em si mesmo e não como um meio para um fim

mais importante. A resposta acomodadora atende às necessidades básicas de

subsistência dos moradores de rua, particularmente as necessidades de alimentação

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e abrigo. Facilita a sobrevivência deles enquanto pessoas moradoras de rua, mas

faz pouco para tirá-las de lá.

2.8.2 Resposta restauradora: abordam os moradores de rua principalmente a partir

de uma perspectiva orientada para seu tratamento e não orientada para sua

subsistência. Seu objetivo geral é cuidar de problemas fisiológicos, psicológicos ou

espirituais reais ou percebidos que são vistos como impeditivos do funcionamento

destes indivíduos. Nenhuma destas unidades está preocupada com o problema do

desabrigo. Funcionários das instituições reconhecem que muitos dos moradores de

rua estão lá devido a forças socioeconômicas, além de seu controle. Inspiram-se em

várias ideologias. Num extremo, está o modelo médico e, no outro, está a

orientação salvacionista ou conversionista. A primeira vê como sintomáticos de

doença ou pelo menos como tratáveis, dentro de um quadro de referência médico,

muitos dos problemas dos moradores de rua. Os salvacionistas, ao contrário,

identicam a questão como sendo de fraqueza moral ou degeneração espiritual.

2.8.3 Resposta exploradora: os moradores de rua são mercantilizados como fontes

de mão-de-obra barata.

2.8.4 Resposta de exclusão/expulsão: não importa a cidade em que os moradores

de rua se encontrem, suas rotinas cotidianas e opções de sobrevivência,

provavelmente, serão afetadas por um clima político que desliza num contínuo que

vai da generosidade à hostilidade. Numa ponta da escala, os moradores de rua são

objeto de compaixão, vistos como vítimas de forças sociais e do azar. Na outra, são

objeto de medo e desprezo, porque se considera terem escolhido esse modo de vida

e que, portanto, deveriam ser expulsos da cidade ou, pelo menos, restringidos,

ecologicamente, para que não contaminem os cidadões respeitáveis.

2.8.5 Resposta de contenção: é uma modalidade de resposta que busca minimizar

a ameaça que eles representam ao senso de ordem pública, restringindo sua

mobilidade ou âmbito ecológico e reduzindo sua visibilidade pública.

2.9 Estatísticas

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Segundo pesquisa elaborada pela FIPE em 2000, foram recenseados 8.706

moradores de rua na cidade de São Paulo, conforme abaixo:

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Tabela 3

Distribuição da população moradora de rua por região

Número de moradores Região

Logradouros Albergues Total

Norte 288 230 518

Oeste 758 88 846

Centro 2810 1866 4676

Leste 554 1313 1867

Sul 599 196 795

Sem informação 4 - 4

Total 5013 3693 8706

Tabela 4

Distribuição da população moradora de rua por sexo

Situação Sexo

Logradouro Albergues Total

Masculino 4060 3218 7278

Feminino 909 372 1281

Sem informação 44 103 147

Total 5013 3693 8706

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3 ASSOCIAÇÃO BENEFICENTE BENEDITO PACHECO – TURMA DA SOPA

3.1 Histórico

A Turma da Sopa, apelido carinhoso da Associação Beneficente Benedito Pacheco,

instituição sem fins lucrativos e sem vínculos religiosos, surgiu em 1992 fundada

pelo Dr. Eduardo de Ferraz de Mendonça e seu amigo Zeca. Ambos se reuniram

para distribuir cobertores e comida para moradores de rua durante o inverno daquele

ano, movidos pelas notícias sobre o frio e a conseqüente morte de moradores de

rua.

Nos primeiros anos de atuação, os voluntários utilizavam seus próprios veículos e

rodavam por diversas ruas do centro de São Paulo, fornecendo alimento e

cobertores onde houvesse algum desabrigado. Porém, o grupo de trabalhadores da

instituição percebeu que mais que pessoas que passam fome ou frio, os indivíduos

em situação de rua são dependentes químicos, alcoólicos e cruzados, vítimas de

total exclusão social e que precisam de alguém que os escutem, entendam seus

problemas e os dirijam para o tratamento da dependência, com o objetivo de

reintegração à família, à sociedade, ao resgate da cidadania. Essa mudança de

percepção acontece em 1993 e dá-se o início da busca de uma sede para abrigar a

Associação pois percebeu-se que era necessário superar a visão assistencialista e

se organizar em torno de processos de gestão e voluntariado organizado.

Em 1995 consegue-se a concessão de imóvel do DER (Departamento de Estradas e

Rodagem) que até hoje abriga a Associação na R. Bernardino de Campos, 1474 ,

Brooklin, São Paulo.

O primeiro carro da Turma da Sopa foi uma Kombi, emprestada por um voluntário,

em 1996, ano em que ocorreram algumas mudanças significativas para a

Associação. Deu-se o início de cestas básicas para famílias do entorno da casa da

Sopa, que se cadastrassem na instituição. O trabalho da Turma da Sopa ganhou

publicidade saindo no programa Globo repórter em 23 de outubro de 1997 e sendo

capa da revista Veja São Paulo, fatos estes que geraram doações e reconhecimento

por parte da população e governo municipal, porém que acabou provocando um

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problema curioso: a quantidade de ligações com oferecimento de voluntários foi

maior que a capacidade da Associação de receber os telefonemas e voluntários.

Este fato alertou a instituição que seus processos de gestão, inclusive de corpo de

voluntariado precisava mudar.

A busca por um trabalho mais estruturado mostrou a necessidade de se ter um carro

que pudesse ser adaptado às necessidades da distribuição da sopa, para um melhor

atendimento da população de rua. Em 1997, o primeiro carro foi comprado. Neste

ano também se iniciou o trabalho de internações para desintoxicação química e

alcoólica, pois se percebeu que a missão de reintegração não seria cumprida sem

esta etapa do processo no resgate da auto-estima. No início eram apenas duas

casas de tratamento: IFL (Instituto Fraternal de Laborterapia) e CAM (Comunidade

de Ajuda Mútua). As internações que podiam durar entre 6 e 9 meses, eram

gratuitas ou custavam apenas uma cesta básica por mês, além de outra cesta básica

e enxoval necessário (roupa de baixo, algumas camisas ou camisetas, artigos de

higiene) para o período da estadia do indivíduo.

Outro problema reportado pelos moradores de rua para os trabalhadores da

Associação foi a falta de documentos pessoais, o que materializa a falta de

identidade sentida pelo homem em situação de rua. A mobilidade, a violência a que

são submetidos, pela polícia em ações cata-tralha, pelos próprios companheiros ou

por cidadãos que não se conformam com a “vagabundagem” do morador de rua, faz

com os documentos sejam facilmente perdidos, roubados ou mesmo destruídos,

impossibilitando-os de um atendimento médico, de um possível abrigo ou, até

mesmo, de uma rara oportunidade de emprego. Percebendo isso, a Turma da Sopa

abriu nova frente de atuação, orientando e encaminhando o morador de rua para a

obtenção de novos documentos, mesmo que de fora de São Paulo.

Entre 2000 e 2001 a Associação saiu das ruas e passou a realizar seu trabalho num

espaço cedido pela prefeitura na Rua Pena Forte Mendes, onde fica por um ano.

A partir de 2002, a instituição fixou um local e periodicidade para a distribuição da

sopa e hoje atua no Viaduto Condessa de São Joaquim, de 2ª. à 5ª. feira às 20h30

atendendo mais de 300 pessoas por noite . Essa normatização na distribuição da

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sopa em local e horário fixos é o argumento que permite a construção de um

relacionamento entre o homem da rua e os voluntários. Relacionamento esse,

baseado em confiança que possibilita identificar o desejo de mudança, pontapé

inicial para a reintegração: trabalha-se a autoconfiança e a capacidade de

autotransformação para a recuperação da cidadania. Este trabalho é gradual e lento.

Em 2004 encontramos a seguinte definição para a atuação da Turma da Sopa no

site da ONG Canto Cidadão:

A ABBP Associação Beneficente Benedito Pacheco, ou A

Turma da Sopa, como são conhecidos acreditam que não

precisa muito esforço para colaborar com o próximo. // Esta

ONG exerce sua função de cidadania seguindo literalmente o

que diz o slogan “Lutar contra a fome é sopa!”. // É isso mesmo

que você imaginou, distribuindo sopa para moradores de rua,

mas com o objetivo maior de trazê-los de volta a sociedade. //

Por quatro dias da semana, segunda, terça quarta e quinta-feira

os voluntários passam, por exemplo, na região da Avenida

Paulista e levam a sopa que vai alimentar muitos amigos de

rua, como gostam de chamá-los. // É preciso entender que para

chegar a ponto de morar na rua, estas pessoas enfrentaram

muitos problemas familiares, com o álcool, e o desemprego. //

Nestas horas é preciso uma “mão amiga” para apóia-lo a voltar

a viver com dignidade e a Turma da Sopa vem dando o seu

máximo para que isto aconteça. // Um bom exemplo de

recuperação é que quem hoje cozinha a sopa é o Seu João,

que já morou na rua e é ex- alcoólatra. // Além da distribuição

da sopa, a Benedito Pacheco promove bazares da pechincha,

um grupo de empregos e inclusive acompanha aqueles que

saíram das ruas, mas que ainda estão se adaptando e

precisam de uma palavra que os incentive a seguir em frente.

Na revista do Emporium São Paulo (2007) encontramos o seguinte depoimento:

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"Nosso trabalho não é apenas alimentar", explica a presidente

da entidade, Rosângela Valverde. "Através do alimento,

conseguimos nos aproximar dessas pessoas e fazer um

trabalho de reintegração à sociedade." Nos catorze anos de

existência da Turma da Sopa, cerca de 200 pessoas foram

reintegradas. Antes, tiveram de enfrentar a própria dependência

ao álcool e às drogas, recuperar a coragem e a auto-estima”.

Adilson de Sousa, 36 anos, é uma dessas pessoas. Ele foi salvo, literalmente, por

voluntários da ONG que o impediram de pular de um viaduto e o encaminharam para

uma clínica de reabilitação. Hoje, sente-se preparado para o convívio em sociedade,

está casado e tornou-se voluntário na Turma da Sopa há quatro anos. "Sou uma

pessoa feliz e tenho condições de ajudar quem se encontra na mesma situação em

que eu estive um dia", afirma.

Nos últimos 3 anos, 185 indivíduos em situação de rua foram internados para

desintoxicação, 96 retornaram à terra natal, com aceitação plena dos familiares e

210 encaminhados para emprego.

Ao longo de todo esse processo de amadurecimento, a gestão da instituição se

aprimorou, organizando-se em torno da capacitação dos voluntários e diretoria.

Todos as titularidades de Utilidade Pública foram obtidas, assim como o CNAS

(Registro no Conselho Nacional de Assistência Social) e CEBAS (Certificado de

Entidade Beneficente de Assistência Social).

A cada ano mais indivíduos em condição de rua deixam de ser assim chamados e se

reintegram à sociedade, através do trabalho da Turma da Sopa. Os que voltam para

o reencontro de suas famílias, nos diversos estados brasileiros e mesmo no exterior,

fazem questão de manter contato com a Associação e mostrar seu progresso diário.

Os que recuperaram documentos, recuperaram assim a possibilidade de trabalhar,

voltam ao Viaduto para mostrar suas conquistas e aqueles que encontram-se livres

da dependência ou adicção, fazem questão, em sua maioria, de dar seu depoimento

e oferecer trabalho voluntário para outros que ainda estão nas ruas e na

dependência.

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Cada indivíduo que a Turma da Sopa reintegra à sociedade é uma semente para a

reintegração de outros que ainda se encontram nas ruas. Vários dos amigos da rua,

prestam hoje serviço para a Associação: Adilson de Souza que começou a beber

dos 7 para 8 anos de idade e morou nas ruas por 16 anos, serve a sopa todas as

noites, Washington oferece seus serviços de protético na hora da busca do

emprego, José Ferreira, 27 anos de adicção e Roselmar, mais de 13 como

dependente cruzado (álcool e drogas) trabalham hoje na casa de recuperação que

os acolheu, ajudando outros a se recuperarem de suas dependências.

3.2 Tecnologias Sociais da Turma da Sopa

A Turma da Sopa hoje pode dizer que desenvolveu algumas tecnologias sociais,

dignas de serem reaplicadas por outras instituições que cuidam da reintegração do

homem em situação de rua.

A primeira dela, é a confecção da sopa em si, que conta com a doação de alimentos

em base semanal, de parceiros como o Empório São Paulo. Os alimentos doados

ficam armazenados na Casa da Sopa, sob as mais rígidas condições de higiene,

contando orientação e parceria de um laboratório que inspeciona o local

mensalmente, treinando e capacitando o pessoal empregado na cozinha. Estas

pessoas que confeccionam a sopa são ex-pessoas em situações de rua hoje

reintegrados à sociedade, as quais a Associação ajudou em sua recuperação.

Atualmente trabalham na Turma da Sopa por acreditarem que também podem

ajudar pessoas que se encontram em situação semelhante a que um dia estiveram.

É o caso do Sr. Elpício, hoje com 86 anos, que acorda todas as manhãs às 5h30

para tomar o ônibus e trabalhar como “chefe de cozinha” da Turma da Sopa.

São feitos 48 litros de sopa por dia, dois enormes caldeirões, que ficam embalados

em plástico para não perder o calor até a hora de serem servidos, o que acontece às

20h30 das noites de 2ª à 5ª. Feira.

Esta sopa é então distribuída em embalagens de isopor, para não perder o calor,

junto com uma colher de plástico, pão e água; a repetição do prato é permitida. Os

amigos da rua também podem se servir de um pouco de sopa, desde que tragam

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recipientes devidamente lavados e higienizados, o que são vistoriados pelos

voluntários. Existe sempre o alerta ao homem em situação de rua, sobre a

segurança de sua alimentação.

Após o uso, os pratos, colheres e copos descartáveis, devem ser depositados nas

lixeiras disponíveis na área de distribuição da sopa, que são trazidas e recolhidas

pelo carro da Sopa. Os amigos da rua são orientados a jogá-los nestes latões e

dificilmente deixam de fazê-lo. Caso isso aconteça, um grupo de voluntários, está

encarregado em varrer o viaduto, para que nenhum detrito fique no chão, evitando

assim espalhar sujeira pela cidade. Esta limpeza é parte do acordo com a Regional

da Sé, para que a Associação possa fazer seu trabalho de reintegrar o homem em

situação de rua utilizando uma via pública.

Outra parte do acordo, este com a Vigilância Sanitária, é que os voluntários que

tenham contato com alimentos usem luvas e toucas higiênicas, no momento de

distribuição da sopa.

Outra tecnologia desenvolvida pela Associação Bendito Pacheco é a logística pela

qual a sopa é distribuída às pessoas em situação de rua. Uma van cargo com porta

lateral de correr e traseira (hoje uma Dobló da Fiat), sai da Casa da Sopa todas às

noites por volta de 20 horas e chega ao viaduto Condessa de São Joaquim, na

Liberdade antes das 20h30. Neste horário, tem início a distribuição da sopa, que

passa pelos seguintes passos: de dentro da van saem os cones e correntes de

plástico de sinalização da fila, na qual os amigos da rua devem ficar. As mesinhas

de apoio para a distribuição do pão e água (em garrafões esterilizados) são

colocadas logo após o término do van. Os 3 latões de lixo (100 litros) são colocados

estrategicamente para que nenhum amigo da rua tenha a desculpa de jogar seu

prato ou copo no chão. As mesinhas e cadeiras para as crianças são armadas ao

longo da calçada, logo após a distribuição da água, de forma a não interferir na

circulação da fila dos adultos.

As crianças chegam, sentam-se e aguardam os voluntários as servirem. Sempre

agradecem pelo prato recebido e pedem por favor, caso queiram mais alguma coisa.

A Associação acredita que estas pequenas cortesias possam servir de referência

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para a vida adulta destas crianças, para se criar um cidadão digno, que deverá

respeitar e ser respeitado. Outro cuidado é que as crianças, acompanhadas de suas

mães ou não, possam ficar isoladas e protegidas de algum tumulto que possa

acontecer.

Na parte traseira da van, forma-se outra fila, esta das pessoas com recipientes

limpos e higienizados, que levarão um pouco de sopa para sua moradia e seus

amigos que não puderam vir até o Viaduto naquela noite.

Ao final da distribuição dos alimentos, que dura por volta de 1 hora, o local é varrido

pela turma da limpeza, as mesas, cones e apetrechos são guardados de volta na

van, onde na manhã seguinte serão retirados para limpeza.

A terceira tecnologia social desenvolvida pela Associação Benedito Pacheco é talvez

a maior responsável pelo seu sucesso na reintegração do indivíduo em situação de

rua. Não que sem as outras tecnologias já mencionadas a Turma da Sopa não

pudesse trabalhar, mas esta terceira, que se desenvolveu no aprendizado do dia-a-

dia, com base na intuição, com ajuda e orientação dos responsáveis pelas

associações e clínicas de tratamento, dos estudos de casos de erros e acertos que

aconteceram com ex-indíviduos em situação de rua, com a enorme cooperação e

apoio que estes indivíduos dão à Associação é o que realmente diferencia a

Associação de outras organizações que também trabalham a reintegração do

indivíduo em situação de rua.

Quando o Sr. Guilherme Araujo, Presidente da OCAS afirma que o índice de

recuperação e aproveitamento de pessoas retiradas da rua pela Associação é maior

que com indivíduos provenientes de outras instituições, não podemos deixar de

esmiuçar o que é feito pela Associação para que isto aconteça. O mesmo é dito pelo

SAS (serviço de Assistência Social), onde muitas vezes, Rosangela Valverde,

presidente da Associação Benedito Pacheco, é chamada para dar orientação em

casos onde os assistentes sociais perderam a esperança. O que está por trás de

todas as ações e atitudes tomadas pelos voluntários, diretores e trabalhadores da

Turma da Sopa, é o amor. O amor em sua maior expressão. O ato incondicional de

acreditar na transformação do indivíduo, independente de sua condição atual.

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Esta terceira tecnologia social é a responsável pela qualidade da

reintegração proporcionada pelo trabalho da Associação Bendito Pacheco. A Turma

da Sopa, em seus voluntários, diretoria e trabalhadores perceberam que o grande

diferencial entre ter o discurso de reintegração e exercer este discurso, está no elo

de confiança criado entre os voluntários e os “amigos da rua”. Muitas outras

instituições também trabalham a reintegração através de fornecimento de alimento e

mesmo, de internações para tratamento de dependência seja esta química, alcoólica

ou cruzada (alcoólica e química simultaneamente), mas a tecnologia aplicada pela

Turma da Sopa, onde cuidar do interior, da alma do homem em situação de rua,

tanto quanto a importância de tratar seu exterior, é o que leva ao resgate da auto-

estima destes indivíduos. O fato dos voluntários acreditarem e mostrarem que

acreditam na capacidade de mudança destes indivíduos é que faz com eles voltem a

acreditar em si mesmos. A confiança demonstrada é que os resgata da rua.

Por que a confiança? Em entrevistas com ex-moradores de rua, resgatados pela

Turma da Sopa, uma afirmação é recorrente, “foi o amor que vocês demonstraram,

acreditando que eu podia mudar, que me levou a querer mudar”.

A palavra de ordem de Rosangela Valverde, presidente da Associação, é sempre

“acreditar no poder de transformação do mundo”. Este é o DNA que impregna todos

os que trabalham na Turma da Sopa.

Os voluntários, independentes de suas funções, em seu processo de treinamento e

capacitação para trabalhar com indivíduos em situação de rua, passam a perceber

claramente que mais que o pão que distribuem, a sopa que alimenta o estômago de

seres famintos e esquecidos pela sociedade, nenhum efeito concreto terão, a não

ser matar a fome daquele momento, caso não desempenhem suas funções com

amor.

O amor de um voluntário, nada mais é sua capacidade de escutar sem julgar. De

mostrar que acredita no poder de mudança. Mas para que este “amor” seja efetivo,

também existem regras de conduta que a experiência de 16 anos nas ruas mostrou

à diretoria da Associação.

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Conforme afirmou Konder (2007):

“Sabemos que os valores são criados pela comunidade. Os

indivíduos os interpretam e lhes dão vitalidade. Quando os

sentimentos mais intensamente vividos desafiam a reflexão, eles

interpelam as pessoas, exigindo que compreendam melhor o

que está se passando com elas e quais escolhas podem fazer.

... podemos reconhecer que o amor desempenha um papel sutil

ao incitar os seres humanos à busca de um mundo melhor e

mais justo”.

3.3 Praticando o amor para a reintegração efetiva do indivíduo em situação de rua

“O amor não é primacialmente, uma relação para com uma

pessoa específica; é uma atitude, uma orientação de caráter,

que determina a relação de alguém para com o mundo como um

todo, e não para com um “objeto” de amor. Se uma pessoa ama

apenas a uma outra pessoa e é indiferente ao resto de seus

semelhantes, seu amor não é amor, mas um afeto simbiótico, ou

um egoísmo ampliado

O amor genuíno é uma expressão da produtividade e implica

cuidado, respeito, responsabilidade e conhecimento. Não é um

“afeto”, no sentido de ser afetado por alguém, mais um esforço

ativo pelo crescimento e felicidade da pessoa amada, enraizado

na própria capacidade de amar que alguém tem.

Amar uma pessoa implica amar o homem como tal. A espécie da

“divisão de trabalho”, como a chama William James pela qual

alguém ama sua família mas não tem sentimentos pelo

“estranho”, é sinal de sua incapacidade básica de amor.

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O que importa em relação ao amor é a fé no amor que se tem,

em sua capacidade de produzir amor em outros e em

seu merecimento de confiança.

Ter fé requer coragem, a capacidade de correr um risco, a

disposição de aceitar mesmo a dor e a decepção”.

Erich Fromm em A Arte de Amar

O treinamento de um voluntário da turma da conversa, aqueles que têm como

função interagir com os homens da rua, baseia-se principalmente na sabedoria do

saber escutar e discernir se o que está sendo dito pelo amigo da rua é fruto de sua

necessidade de manipulação e conseqüente imaginação ou se é sua história real.

Um dos maiores aprendizados ao longo dos 16 anos de atividades da Associação,

foi com os próprios ex-moradores de rua, em seu regresso à cidade, depois do

período de internação, quando eles afirmam que o maior problema a ser enfrentado

pelos voluntários é a manipulação que o “amigo da rua” consegue exercer nas

pessoas que se propõe a ajudar.

Ao longo de todos os depoimentos tomados de ex-moradores de rua, a afirmação

constante sobre a manipulação baseia-se no princípio que por serem dependentes

químicos, alcoólicos e ou cruzados, têm o enorme domínio na capacidade da arte de

manipular. Todos os entrevistados, sem exceção, afirmam que são capazes de

manipular todos à sua volta, inclusive a eles mesmos. Que o fazem em relação aos

familiares, amigos, desconhecidos, trauseuntes, assistentes sociais e voluntários das

associações beneficentes com as quais têm contato.

A manipulação exercida pelos amigos da rua ocorre de forma muito simples e

sempre começa quando abordam o voluntário, pedindo uma roupa limpa e um

sapato para o trabalho que estão quase conseguindo, pois afinal só falta a roupa.

Pedindo um cobertor para aquecê-los na noite fria, ou mesmo 5 ou 10 reais para

comprar o remédio que precisam urgentemente. Estes pedidos deseperados fazem

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com que voluntários destreinados ou grupos de pessoas que apenas se preocupam

em distribuir alimentos aos indivíduos em situação de rua, se rendam e

proporcionam pequenos “presentes ou doações” a esses indivíduos. A declaração

de todos os que se encontram reintegrados é que este é talvez o maior erro que se

pode cometer em relação ao objetivo maior que é ajuda real e eficaz para a sua

recuperação. E qualquer sapato em razoável condição, qualquer blusa doada,

qualquer R$10 viram uma pedra de crack na primeira esquina. Todos afirmaram a

mesma coisa: ao doar qualquer coisa, doe o que não pode ser vendido, trocado pelo

crack. Doe dois sapatos diferentes, uma blusa rasgada, mas que ainda agasalhe, um

cobertor daqueles bem vagabundos que ninguém compra.

Por serem todos dependentes, precisam de um tipo ou outro de droga e para isso,

fazem qualquer coisa. Inclusive enganar a si mesmos, dizendo que param quando

quiserem. Que têm o total domínio sobre seus atos. Que estão naquela situação

porque aquele momento específico é um momento de azar. Ou ausência de sorte.

Mas que tudo vai mudar. Basta quererem. Foram mais de 10 depoimentos de

pessoas que hoje estão fora das ruas há pelo menos 3 anos. E nenhum disse nada

diferente disso.

Um detalhe a ser relatado ao enfocarmos a importância do amor na reintegração do

indivíduo em situação de rua é o fato da doença enfrentada pelo indivíduo em

situação de rua ser contagiante. Esta é uma afirmação das quatro irmandades que

aplicam a terapia chamada de 12 Passos, tratamento seguido pela pela AA

(Alcoólicos Anônimos) e NA (Narcóticos Anônimos), Al-Anon, entidade que cuida dos

familiares de dependente químico de álcool, Nar-Anon que destina-se aos familiares

ou co-dependentes , numa linguagem mais técnica, de quem usa abusivamente

álcool ou drogas e diversas casas de recuperação. Por ser contagiante, todos

aqueles que se envolvem com o dependente acabam adquirindo hábitos e

comportamentos de um dependente químico ou adicto. Duas dessas entidades se

destinam a ensinar os que convivem com dependentes como cuidar de si próprio

para não se deixar envolver e sofrer com a adicção. O amor pode levar as pessoas a

ser tornarem reféns de seus adictos e dependentes, quando na verdade o que é

necessário é ter a coragem de colocar limites e perceber a manipulação a que

estamos submetidos por nossos amigos da rua. Amar não significa ceder e ter pena

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e sim, ouvir atentamente e ativamente os nossos dependentes, aprendendo a

identificar o momento correto em que o amigo da rua está realmente em seu limite e

quer ajuda efetiva para ser internado em uma casa de recuperação ou irá aceitar

participar das sessões de ajuda mútua no AA, NA ou IFA. O voluntário precisa estar

preparado para escutar quando o amigo da rua consegue identificar em si, o

compromisso em se tratar, pois só se dá ajuda a quem quer ajuda. Caso contrário, o

prato quente de sopa e uma palavra amiga oferecidos por tantas entidades

beneficentes seriam suficientes para retirar milhares de pessoas das ruas.

Conforme diz Konder (2007), o amor leva as pessoas a compreenderem melhor o

que se passa com elas e as escolhas que podem fazer, passando a buscar um

mundo melhor e mais justo. E Erich Fromm (2006) vai além, afirmando que o amor e

a fé têm a capacidade de produzir amor e a confiança em outros.

Este amor que leva à confiança e tem a capacidade de fazer escolhas é o amor que

os voluntários da Turma da Sopa aprendem a exercer com os amigos da rua e

através dele, conseguem exprimir sua confiança nos amigos e em seu desejo de

mudar.

Todos os entrevistados foram muito claros em determinar o fator de diferença entre

a abordagem feita pela Tuma da Sopa e por outras entidades que trabalham a

recuperação do indivíduo em situação de rua e até mesmo, dos profissionais

envolvidos com a Saúde Pública e assistentes sociais com os quais têm contato. A

grande diferença está no amor incondicional que sentem por parte dos voluntários

da Turma da Sopa e quando perguntados como traduziriam este amor, a definição

foi a mesma: confiança.

Esta confiança não surge nascida do nada. O aprendizado sobre como sentir e

demonstrar confiança é baseado no aprendizado proveniente de palestras dadas por

médicos, profissionais da saúde e especialistas em tratamentos de dependências,

muitos destes, também dependentes químicos, alcoólicos ou cruzados, que hoje

estão livres da dependência, “limpos”, embora conheçam sua doença e o poder da

mesma. De acordo com Neliana Buzi Figlie descreve no site Álcool e Drogas sem

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Distorção (www.einstein.br/alcooledrogas) do Programa Álcool e Drogas (PAD) do

Hospital Israelita Albert Einstein, sobre a Programação dos 12 Passos:

“Na Programação dos 12 Passos, o dependente químico/adicto

assume consigo mesmo o compromisso de ficar sem drogas

apenas 24 horas de cada vez. Não existe passado ou futuro. Só

o hoje. Um dos slogans mais conhecidos é “só por hoje nunca

mais”.

A relação de confiança criada a partir da entrega de uma prato de sopa e construída

na disposição por parte dos voluntários em escutar o indivíduo em situação de rua,

que nada mais tem, a não ser seu nome pois não confia nem mesmo em si próprio é

que mostra a essess amigos da rua que suas vidas estão em suas próprias mãos.

Que só eles tem o poder de mudá-la e que a Turma da Sopa está noite após noite

no viaduto, esperando que ele manifeste vontade de sair das ruas.

A Turma da Sopa não faz caridade. A Turma da Sopa constrói o elo de confiança

que dá ao amigo da rua, a força para saber que ele tem com quem contar durante

seu tratamento da dependência. Os voluntários se tornam padrinhos daqueles que

internaram. Visitam-nos nas clínicas de tratamento, acompanham-nos em reuniões

do AA ou NA, estão lá quando saírem do período de internação, que é quando

realmente a prova de fogo tem início. É dessa maneira que se constrói auto-estima

do ex-indivíduo em situação de rua. É o fato de possibilitarmos a construção desta

auto-estima que leva aos índices de sucesso que a Associação Bendito Pacheco

obtém. Índices estes, reconhecidos pela Secretaria Municipal de Assistência e

Desenvolvimento Social, pela OCAS e por diversos prêmios com os quais foi

agraciada.

Conforme declaração do secretário de Assistência Social do Município de São

Paulo, em matéria veiculada no Estado de São Paulo de 28 de outubro de 2007, a

ONG Centro Social Nossa Senhora do Bom Parto, oferece um bom trabalho com

crianças abandonadas, famílias carentes e núcleos educativos com exceção do

trabalho feito com a população de rua, pois este trabalho é desenvolvido debaixo de

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um viaduto, em lugar inapropriado, não trabalhando a auto-estima, o que estimula as

pessoas a permanecerem nas ruas.

O depoimento da presidente da Associação Bendito Pacheco, Rosangela

Valverde, em um palestra de reciclagem ao corpo de voluntários, em setembro deste

ano, corrobora a importância da construção da auto-estima através do amor

demonstrado pelo corpo voluntário e sua fé na mudança do amigo da rua, fazendo

com esta “tecnologia social” seja o grande diferencial para o bom desempenho da

associação:

“Precisa existir confiança para que exista o encaminhamento. A abordagem é o

coração de nosso trabalho, para tirar pessoas que estavam na sarjeta, perdendo a

vida e que agora estão aí, trabalhando, vivendo como qualquer cidadão tem direito,

a viver sua própria cidadania”.

3.4 Estrutura organizacional e parceiros

A Instituição Beneficente Benedito Pacheco está sediada na Rua Bernardino

de Campos, 1474, Campo Belo, São Paulo em uma casa cedida através de

convênio público com o DER.

Dezesseis anos após sua fundação, possui todas as certificações possíveis a uma

entidade do Terceiro Setor em sua área de atuação, a da Assistência Social:

COMAS, Utilidade Pública Municipal e Federal e CNAS.

Conta com Conselho Fiscal e Deliberativo com 5 conselheiros cada, 5 Diretores

Executivos e Órgão Assemblar, todos antigos voluntários e a Presidente que atua

em outras OSCs, sendo palhaça profissional. O corpo de voluntários tem 150

pessoas cadastradas, porém cerca de apenas 20 por noite tem atuação freqüente.

Os profissionais contratados são apenas 5: 1 secretária, 2 cozinheiras, 1 auxiliar de

limpeza e 1 motorista.

Toda a parte contábil é feita pela empresa de uma das voluntárias, assim como a

assistência jurídica e de pessoal.

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Possui convênios e parcerias com entidades privadas, governamentais, do Terceiro

Setor e pessoas físicas.

Na área da saúde, as parcerias são:

1.Casas de Tratamento:

1.1. Remar em Jacareí.

1.2. Casa Novo Dia em Atibaia.

1.3. CAM, Comunidade Ajuda Mútua em Itapecerica da Serra.

2. Casas de Reunião:

2.1. AA (Alcoólicos Anônimos) – Casa Dom Orione e Casa Liberdade.

2.2. IFL – Instituto Fraternal de Laborterapia.

2.3. NA – Narcóticos Anônimos – Igreja São Judas

3. Apoio Psicológico a mulheres e crianças:

3.1.Igreja Santa Teresinha – Rua Maranhão.

4. Tratamento Odontológico:

4.1. UNIP – Universidade Paulista.

4.2. Washington – ex-morador de rua, que hoje retribui com seus serviços.

5. Tratamento Oftalmológico

5.1. UNIP – Universidade Paulista

Na área profissionalizante são:

1. Cursos:

1.1. SASECO: pintor, eletricista, pedreiro, artesanato e cabeleireiro.

1.2. Academia Braço Forte: reciclagem para porteiros.

1.3. COOPEL: reciclagem.

1.4. Arte de Rua: artesanato.

2. Empregos:

2.1. COOPERE: carroceiros (catadores de materiais recicláveis e

revendáveis).

2.2. OCAS: venda de revistas.

2.3. Kibon.

2.4. Reciclázaro.

2.5. Recifran.

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E as passagens de retorno à terra natal são cedidas pelo SAS – Serviço de

Assistência Social – Subcentro Sé e Santo Amaro.

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4 PESQUISA DE CAMPO

4.1 Objetivo Geral

Investigar a relação que a Associação Beneficente Benedito Pachedo – Turma da

Sopa – desenvolve com as pessoas atendidas pelos serviços prestados pela

Associação, que tem por objetivo reintegrá-los à sociedade.

4.2 Objetivo Específico

a) Investigar a relação de amor e confiança existente entre a Turma da

Sopa e os moradores de rua;

b) Reunir informações que ajudem a outras instituições a realizar

trabalhos que venham a ter o mesmo grau de aceitação e melhoria de

seus trabalhos junto à moradores de rua;

c) Desenvolver um modelo de acreditação do resultado de trabalho da

Turma da Sopa.

4.3 Justificativa Para que se compreenda melhor a escolha do tema e do objetivo do trabalho,

interessa em primeiro lugar lembrar que as vítimas de total exclusão social e que

precisam de alguém que os escutem, entendam seus problemas e os dirijam para o

tratamento da dependência, com o objetivo de reintegração à família, à sociedade,

ao resgate da cidadania, têm várias opções de instituições que se interessam e

trabalham para melhorar sua qualidade de vida.

O que a maioria das instituições filantrópicas que se ocupam com o homem em

situação de rua no entanto parece esquecer é que, em sua grande maioria, essas

pessoas são dependentes químicos, alcoólicos ou ambos e para que realmente

sintam o desejo de mudar, é necessário desertar para a necessidade de mudança

em seu comportamento, precisam querer passar pelo tratamento da dependência, o

que requer extrema determinação por parte do indivíduo.

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Não devemos nos esquecer que a principal causa para que ele esteja na rua, é a

adicção (denominação preferida pela instituição Narcóticos Anônimos). Se esta não

foi a razão pela qual foi para a rua, com certeza para sua sobrevivência nela, tornou-

se um adicto. A rua é a ‘’morte social’’: a pinga permite a convivência, libera o

indivíduo dos códigos, das amarras. É o analgésico. É nesse momento em que o

indivíduo que se libera das pressões sociais. A cachaça faz esquecer as dores, as

decepções. O desemprego e a ruptura familiar levaram à perda de identidade e

conseqüente dependência química e ou alcoólica. Mas o morador de rua não quer

se identificar com o grupo da rua: sente dupla solidão – com relação ao passado e

com relação ao presente, pois “não se encaixa” até porque nunca perde a crença

que voltará a ter emprego e conseqüentemente, voltará ao seu meio.

Quando afirmamos que o índice de recuperação e aproveitamento de pessoas

retiradas da rua pela Associação Beneficente Benedito Pacheco – Turma da Sopa –

é maior que com indivíduos provenientes de outras instituições, não podemos deixar

de esmiuçar o que é feito pela Associação para que isto aconteça. O que está por

trás de todas as ações e atitudes tomadas pelos voluntários, diretores e

trabalhadores da Turma da Sopa, é o amor. O amor em sua maior expressão. O ato

incondicional de acreditar na transformação do indivíduo, independente de sua

condição atual.

4.4 Metodologia: estudo de caso Considerando os interesses particulares desta pesquisa, o estudo de caso foi

realizado com o propósito de investigação da realidade de uma associação. Para

melhor compreender a opção por este caso e as razões teóricas que levaram a sua

escolha, algumas considerações são necessárias. Em linhas gerais, é preciso

destacar que o caso possui limites específicos, sejam organizacionais, geográficos

ou inerentes à sua natureza.

Três diferentes agrupamentos de estudos de caso são importantes para se escolher

os instrumentos de investigação e análise a serem utilizados:

a) os estudos de caso intrínsecos, em que existe um interesse genuíno do

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pesquisados por conhecer em profundidade um caso específico;

b) os estudos de caso instrumentais, em que existe uma pergunta ou problema

geral motivador do etudo, que é tomado como elemento particular de análise

do problema;

c) os estudos de caso coletivos, que em certa medida compartilham as duas

naturezas de maneira conjugada.

No caso do presente trabalho, a identificação se dá com um estudo de caso

intrínseco, em que a pergunta essencial reside no mérito de conhecer em

profundidade o caso em questão.

4.4.1 A escolha do caso: a Turma da Sopa A Turma da Sopa tornou-se nosso objeto de estudo por se tratar de uma

organização do Terceiro Setor que aborda a reintegração do morador de rua sob o

enfoque da recuperação do desejo de mudança que existe em todo ser humano que

se encontra em condições de extrema precariedade de vida. Morando nas ruas o

indivíduo se esquece do que foi e do ainda pode voltar a ser e guarda apenas seu

nome.

Diferente de outras instituições que trabalham com a reintegração de moradores de

rua, a Turma da Sopa não oferece cursos de capacitação profissional, não oferece

abrigo temporário, banho, cobertor ou serviços médicos emergenciais.

O que a Turma da Sopa faz é, através da oferta de uma prato de sopa nas noites de

2ª à 5ª feira no Centro de São Paulo, abrir um espaço onde os voluntários se

mostram disponíveis para escutar as diversas histórias de vida destas pessoas que

vivem em situação de rua. Desde o primeiro contato, o voluntário ouvinte busca

saber o nome daquele homem da rua para poder tratá-lo como um amigo, como um

ser humano e não como uma estatística de desempregado ou desabrigado.

Entretanto todos os integrantes da Turma da Sopa sabem com clareza que não deve

se deixar envolver pela chantagem dos dependentes. Todos os voluntários são

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capacitados para não se envolver com a emoção causada em ver alguém com frio e

sem ter com o que se proteger. Nesta hora seria fácil entregar uma nota de R$5,00

ou R$10,00 para estas pessoas “comprarem” alguma coisa para se proteger do frio,

seria fácil entregar alguma roupa ou sapato que já não são mais úteis, porém a

Turma da Sopa aprendeu, com os próprios homens da rua, que o dinheiro ou a

doação entregue a eles se transformam em pedras de crack ou copos de pinga na

primeira esquina.

O homem em situação de rua não tem condições de conduzir um emprego de forma

efetiva, mesmo tendo conhecimentos sobre a função a ser desempenhada. Antes de

qualquer coisa, o homem de rua precisa querer mudar sua vida. Ele precisa acreditar

que está em suas mãos essa mudança, que só ele poderá proporcioná-la. Nestes

casos a Turma da Sopa é apenas um facilitador para o encaminhamento à uma

internação, onde o morador de rua irá se conscientizar da necessidade de aceitar

sua doença, pois ser dependente químico ou alcoólico é ser doente e para ficar bom,

precisa de tratamento.

Não parte da Turma da Sopa a escolha de quem deve ser internado. São os homens

de rua que, chegando ao limite de suas forças, pedem para sair “desta vida”. Nos

centros de tratamento, onde eles ficam em média de 6 a 9 meses, eles aprendem a

conviver consigo mesmos e com suas limitações e dependências. Aprendem que

ficar sóbrio só depende deles e que esta luta é eterna.

Os voluntários da Sopa nada mais fazem que escutar e encaminhar o individuo para

o local adequado. Em muitos casos, os moradores de rua sairam de suas cidades

natal e não conseguiram uma chance melhor na cidade grande. A Sopa, desde que

haja aceitação por parte da família, manda este cidadão de volta para casa. Os que

estão há pouco tempo desempregados e que não tem onde ficar são encaminhados

para albergues e possíveis empregos.

Mas o foco da reintegração proposta pela Turma da Sopa é para aqueles individuos

que, dependentes do álcool ou da droga, não conseguem mais reconhecer quem

são. É para este público que estão concentrados os trabalhos da Turma da Sopa. É

essa a expertise desta organização da sociedade civil. Construir um elo de confiança

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entre o morador de rua e o voluntário para que o primeiro se abra e assuma seu

desejo de mudança.

Uma vez internado, o morador de rua é apadrinhado pelo voluntário com quem

ele estabeleceu o elo de confiança, sendo que este lhe visita mensalmente na casa

de recuperação. É desta forma que a confiança se torna cada vez maior e que a

auto-estima deste individuo pode ser resgatada.

Na saída de um período de internação, ou mesmo nas “formaturas” dos tratamentos

em entidades como Alcoólicos ou Narcóticos Anônimos, haverá sempre um

voluntário a espera de seu amigo da rua. É esta conduta ou, como academicamente

denominamos, esta tecnologia social que traz os resultados de sucesso para a

Turma da Sopa.

E crença, convicção íntima ou fé que alguém pode ser capaz de causar sua própria

transformação, só pode acontecer quando existe amor.

“Considerem bem o que aqui queremos ensinar: que as atitudes

humanas não se diferenciam a não ser a partir da raiz da caridade.

Com efeito,, muitas coisas podem acontecer mostrando boa aparência

mas não procedem da raiz da caridade: também os espinhos têm flores

flores; algumas coisas ásperas e duras; mas são feitas visando a

instaurar uma disciplina por ordem da caridade. Uma vez por todas,

então,impõe-se a você um breve preceito: ame e faça o que quiser;

quer você se cale, cale-se por amor; quer fale, fale por amor; quer

corrija, corrija por amor; quer perdoe, perdoe por amor; esteja em você

a raiz do amor, porque desta raiz não pode proceder outra coisa a não

ser o bem”.

Santo Agostinho 4.4.2 Coleta e análise de depoimentos

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Uma técnica foi utilizada para a coleta de informações junto às pessoas chaves:

depoimento. O motivo central da escolha dos depoimentos para o trabalho

encontra-se no lugar de destaque que a comunicação ocupa na pesquisa qualitativa.

A análise das informações recolhidas através dos depoimentos individuais se

deu através da técnica e análise temática. Considerando as diferentes

interpretações possíveis para as diversas correntes que trabalham com a análise

das falas dos indivíduos, o caminho adotado neste trabalho foi a valorização

qualitativa de determinados aspectos presentes nas falas dos entrevistados, sem

qualquer pretensão de considerar a dimensão quantitativa da frequência dos temas.

O percurso percorrido na análise temática foi classificado em três fases:

a) a fase de pré-análise;

b) a fase de exploração do material;

c) a fase de interpretação.

4.4.2.1 Depoimento de Rosangela Valverde, Presidente da Turma da Sopa

(Pessoa em condição de rua)

Confiança para que exista o encaminhamento

Tipo de abordagem é a citação de nosso trabalho, ir até a pessoa que está na

sarjeta, perdendo a vida e que agora estão aí, trabalhando, vivendo como

qualquer cidadão tem direito, a viver sua própria cidadania.

O IFL (Instituto Fraternal de Laborterapia) nos ajudou muito, tirou muita gente da rua,

problema com alcoolismo, encaminham para a CAM, onde ficam 3 meses.

Dependente de droga, não funciona.

NA da São Judas e Igreja do Carmo, são muito bons.

Atibaia, que é melhor tratamento que temos para os dependentes de crack. Eles são

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referência no Brasil.

Ocas como primeira emergência em emprego.

Grupo de conversa: quem dá o pão é tão importante quanto quem conversa.

Quem conversa é quem abre a porta para a reintegração. È com essa turma que se

cria a confiança.

85% de quem está na rua sofre de alcoolismo e dependência química. 85% homens

entre adolescência e 60 anos. O restante é mulher, mas nunca está sozinha.

Sempre tem um companheiro.

Mudou muito o perfil do morador de rua nos últimos 10 anos. Já estão na rua o

catador de papel, é trabalhador. Morador de rua, é pra sempre.

Estudo da FIPE 60% estão em condição de trabalhar e tem algum nível de

escolaridade.

A cada ano 1000 pessoas vão para a rua, em grandes cidades, ou vindas de algum

outro lugar ou por dependência química/alcoólica.

ABORGAGEM: O importante na turma da conversa é ter fé que estamos

conversando com alguém que pode sair daquela situação, nos damos as condições,

as ferramentas para que ela possa rever e voltar a ter auto-estima e voltar ao que

era. A pessoa que está na rua sofreu uma série de perdas, uma sucessão de

perdas, a família, o emprego, tudo. Ela só não perdeu o nome. Ela não tem mais

nada, a não ser a certidão. É a isso que ela se agarra para senti que ainda é um

cidadão (que ainda existe).

O mais importante quando alguém chega e quer conversar, é perguntar o nome.

Eles sempre se apresenta. Ele diz, meu nome é Roselmar, eu preciso demais de

ajuda, eu preciso sair dessa situação. Lembrar o nome dele, mesmo que ele só

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volte dali um tempo, é mostrar para le que ele é importante, nós só estamos ali, não

invadindo, mas ali, para eles.

Outro caminho que tb. é bastante produtivo é tentar entender o que eles estão

falando. O que é manipulação, o que é verdade. Nós já sabemos que eles são

doentes, que vão tentar nos manipular para comprar a droga. E a gente vai dizer,

aqui você não tem sapato, mas tem tratamento onde mais tarde você vai poder

comprar sapato. Você vai poder entrar na loja e ter a dignidade para comprar um

sapato. Sapato vira pó, bebida. E todos que saíram da rua falam a mesma coisa,

Não podemos prometer nada, é primordial.

Eles sempre falam que param quando querem. Não é assim. A gente sabe. E a

gente tem que dizer não, não é assim. Com muito amor, firme, mas com muito

amor.Você quer ajudar. Precisamos mostrar que sabemos, como eles, que não é

assim, podemos ajudá-lo internando-o. Eles precisam mostrar que estão

interessados no tratamento, podem ir ao AA ao NA, enquanto não vem a internação.

E às vezes, resolve assim mesmo. A gente não tem casa de tratamento, Então,

temos que internar quem quer, quem mostra que está querendo. Ele tb. tem

responsabilidade. E quem quer ir para casa, tb. tem que mostrar que quer e a família

tem que aceitar. A gente liga pra família, manda carta. Se a família aceitar,a gente

manda. Sempre ficam melhor do que quando estão na rua. Eles ficam na porta do

albergue, pra proteger os filhos dos traficantes. Quando o SAS não tem mais

passagem, a gente compra. Os que colocamos no ônibus na semana passada, já

estão em casa. Ele está trabalhando na lavoura de café com o pai e já está

construindo uma casinha no terreno da mãe. A menina já está na escolinha.

O Zé Ferreira está aqui pra dar seu depoimento. Ele foi internado duas vezes, com

recaída. Foi pra CAM e não adiantou, aí foi pra Atibaia e eu falei: Zé essa é sua

última chance. Um dia ele foi lá na Sopa e jogou sopa em mim. Tava quente, viu Zé?

A gente tem que mostrar que não gostou, que não está certo. Mas nunca ficar com

raiva, brigar, não revidar nunca. O Zé pediu desculpa logo na outra semana.

O Adilson, um dia estava pendurado no viaduto querendo se matar, tivemos que

chamar o corpo de bombeiros e agora está aí, trabalhando. Ficou 17 anos na rua.

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A gente tira muito pouca gente comparado com quem vai pra rua.

Quando me pergunta se é difícil ver alguém na rua, é. É muito difícil essa exclusão.

A exclusão é total. Tem gente que tem medo, tem gente que tem nojo. Eu falo que é

quem nem uma planta, que a gente tem que plantar, regar e ficar olhando, cuidando.

Já tiramos uns 600 da rua, mas pode colocar o dobro, pois quando eles saem da

rua eles mesmos se encarregam de tirar um outro. O Marcão ta trabalhando no NA e

ajudou um monte de gente a sair da rua.

Eles tem que fazer o tratamento correto para poderem ir trabalhar.A gente não quer

varrer as ruas. Nós queremos tirar 50, 60 por ano, mas queremos tirar de verdade.

Tem que fazer o tratamento certo. Não podemos nos deixar eles nos manipularem.

Eles precisam perceber isso. Com muito amor no coração. Eles são iguaizinhos a

gente. A gente só está numa situação mais confortável. Eles precisam perceber isso.

Eles são um ser igualzinho. Sempre com muito amor. Se eles não querem aproveitar

a oportunidade, tem um outro que quer.

Nunca encaminhem ninguém sem saber se é um dependente. Vocês tem que

mostrar que eles podem confiar em vocês. Precisa perguntar há quanto tempo estão

na rua, se são da rua. Se vão ficar na rua. Tem os que ficam na rua e de noite vão

por Albergue. Quando eles fazem amigos na rua, eles ficam na rua. Aquele que

permanece na rua há muito tempo e ta no crack, esse é difícil!

Outro caminho que também é bastante produtivo é tentar entender o que eles estão

falando. O que é manipulação, o que é verdade. Nós já sabemos que eles são

doentes, que vão tentar nos manipular para comprar a droga. E a gente vai dizer,

aqui você não tem sapato, mas tem tratamento onde mais tarde você vai poder

comprar sapato. Você vai poder entrar na loja e ter a dignidade para comprar um

sapato. Sapato vira pó, bebida. E todos que saíram da rua falam a mesma coisa,

Não podemos prometer nada, é primordial.

Eles sempre falam que param quando querem. Não é assim. A gente sabe. E a

gente tem que dizer não, não é assim. Com muito amor, firme, mas com muito

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amor.Você quer ajudar. Precisamos mostrar que sabemos, como eles, que não é

assim, podemos ajudá-lo internando-o. Eles precisam mostrar que estão

interessados no tratamento, podem ir ao AA ao NA, enquanto não vem a internação.

E às vezes, resolve assim mesmo. A gente não tem casa de tratamento, Então,

temos que internar quem quer, quem mostra que está querendo. Ele também tem

responsabilidade. E quem quer ir para casa, também tem que mostrar que quer e a

família tem que aceitar. A gente liga pra família, manda carta. Se a família aceitar,a

gente manda. Sempre ficam melhor do que quando estão na rua. Eles ficam na porta

do albergue, pra proteger os filhos dos traficantes.

A gente vê um monte de gente na rua e sente desconforto. Vê esse monte de gente

cheirando mal e tem nojo. Mas tem que encarar de frente, não pode esconder o

desconforto. O desconforto tem que se tratado. Acreditando e tendo fé no ser

humano. Isso é amor. Tem que falar, que abordar esse assunto com eles. Tem que

dizer que precisam começar a se cuidar se querem ser atendidos. Abordar a

realidade. Foi isso que eu falei para o pessoal da Prefeitura quando fomos

chamados para explicar porque nós tiramos caso grave e eles não. A gente trata

com amor.

A gente tira muito pouca gente comparado com quem vai pra rua. Quando

me perguntam se é difícil ver alguém na rua, é. É muito difícil essa exclusão. A

exclusão é total. Tem gente que tem medo, tem gente que tem nojo. Eu falo que é

quem nem uma planta, que a gente tem que plantar, regar e ficar olhando, cuidando.

Já tiramos uns 600 da rua, mas pode colocar o dobro, pois quando eles saem da

rua, eles mesmos se encarregam de tirar um outro. O Marcão está trabalhando no

NA e ajudou um monte de gente a sair da rua.

4.4.2.2 Depoimento de Zé Ferreira, ex-morador de rua e hoje chefe de cozinha da Comunidade Terapêutica Novo Dia em Atibaia

Eu sou um adicto. Eu vou contar minha vida. A vida do crack.Tenho 27 anos de

drogas. A droga é o maior agiota que existe, cada copo de pinga que eu tomei, isso

vem me cobrar depois, cada pedra de crack que eu fumo, ela vai me cobrar depois,

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cada barrinha de cocaína que eu cheio, ela vai me cobrar depois. Todo o que eu

cheirei, tudo o que eu fumei, tudo o que bebi, veio de volta me cobrar. Eu não nasci

na rua. Eu tinha casa. Eu fui pra escola. Eu trabalhava, ei tive minha esposa, eu tive

meu filho. Primeiro eu perdi o emprego. Depois a casa. Depois meu outro filho.

Depois eu perdi eu mesmo. Por que a rua? A rua é um ciclo vicioso. Eu na rua não

tenho que cumprir horário, pego uma lata, faço uma roda, tenho amigos. No

albergue tem que cumprir horário.

E eu fui ficando na rua. Primeiro, eu não pedia dinheiro, mas daí percebi que era

fácil, que todo mundo dá um trocadinho pra quem tá rua. E fui comprando droga.

Um dia, resolvi que tava cansado. A rua cansa. E fui procurar ajuda, lá na Sopa e me

mandaram pro CAM. Mas eu não fui pra me curar. Eu fui pra engordar, pra

descansar. Só porque eu tava cansado da rua. E cada minuto que eu passei lá, eu

ficava pensando no dia que ia voltar e comprar uma pedrinha de crack...Quando eu

saí pra ressocialização eu já fiquei no viaduto comprando meu pedrinha. Mas eu

acabei voltando e continuei minha internação. Porque eu sou nego vaidoso, sou um

nego cheiroso.

Quando eu saí do CAM, me deram casa, pagaram 6 meses de aluguel pra mim, eu

tava com a minha companheira. E aí, voltei pro crack. Aí minha companheira

engravidou. E foi bem fácil, Por onde a gente passava a gente arrumava um

dinheirinho. Foi o jeito mais fácil de arrumar droga. Primeiro, foi por causa da

barriga, quem não dá dinheiro na esquina pra grávida que mora na rua?E a gente

comprando crack. Aí meu filho nasceu. José César, bem bonitinho...Um dia, a

mulher dormiu com o moleque no peito e eu ali do lado, chapadão, nem vi. Uma hora

ela me cutucou e falou: “Zé, acorda e vem ver que o menino ta roxo e não acorda!”

Aì eu vi que ele não respira, que tava morto. E vocês acham que eu chorei, né?

É, mas eu não chorei. Num derramei uma lágrima. Porque o drogado não chora. A

droga leva todo o sentimento embora. A gente fica duro. Não sente nada. Hoje era

pra ele estar com 4 anos.

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Então eu levantei e saí pra levar o menino pro hospital. O pessoal da redondeza já

me ajudou. Me deram 50 conto e o que eu fiz, comprei tudo em pedra de crack pra

dividir com a mulher. E a criança no braço. Aí passei na delegacia pra pegar o BO. E

sabe o que e consegui com o BO na mão? Mais dinheiro. Foram 30 conto na

esquina. Afinal, um homem na rua, com um BO de criança morta consegue mais um

monte de pedra de crack. E eu fazendo as contas de quantas pedras ia dividir com a

mulher. Com o papel do IML ficou mais fácil ainda.

Todo dia, lá pelas 5 horas da tarde é a hora mais difícil. Precisa um copo de pinga,

uma pedra (de crack). A gente não sabe lidar com a dor, mas tem que aprender. Não

com um copo de pinga, com uma carreira, mas com o coração. Mas graças a Deus

eu tenho meu filho que me ajudou tanto (José Ferreira tem um filho de 20 anos, que

está na faculdade e mesmo na época em que ele estava na pior, este filho sempre o

procurava e tentava, junto ao pessoal da Sopa, aprender o que devia fazer com seu

pai, para tirá-lo daquela vida. E a esse gesto de insistência de seu filho, Zé chamou

de amor e um dia cedeu aos apelos).

Aí um dia eu entrei na Casa da Sopa (Zé morava ali por perto, no fim da rua, um

ponto de crack que vai de ponta a ponta). Eu tava acabado, eu pesava 38 kg. Nem

sei como parava em pé. Já faz 2 anos. Aí Dona Regina (uma das voluntárias mais

antigas da Sopa, hoje coordenadora da distribuição de sopa às 2as feiras) me

atendeu eu fui fundo. Chegou minha hora. Foi o carinho. O carinho que eu sempre

encontrei nas pessoas da Sopa. Agora já faz 2 anos. Eu tenho emprego. Eu

recuperei minha vida. Eu tou aqui por causa do amor. Do amor. Porque vocês me

aceitaram do jeito que eu sou. Por o que eu queria é que um de vocês me

chamassem de negão. Aí cês iam ver. Eu ia acabar com tudo. Eu lembro quando eu

tava na ressocialização, eu fui visitar a Sopa e uma das moças que tava servindo

sopa, bateu a colher em algum lugar e derramou sopa em mim. Ai, eu fiquei tão

bravo. Mas eu sabia que vocês confiavam em mim e sosseguei. Porque vocês

acreditavam em mim. Eu tinha tudo, tinha até direito de usar droga e a polícia não

me prender. Um dia eu tava jogado na rua e o policial parou e me falou: “Sai daqui

lixo, você não vale nada, vai acabar morto mesmo”. E foi assim mesmo, da minha

turma da rua, só sobrou eu. O resto morreu tudo.

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O que eu encontrei na Sopa foi mais que um prato de sopa, porque comida a gente

encontra em muito lugar, uma roupa, um sapato, mas o carinho, o amor que a gente

encontra aqui, não tem em nenhum lugar. Eu queria um colo, um canto pra chorar,

alguém pra me escutar. E na assistência social, na recuperação não tem isso, não.

O que tem aqui é amor. E esse amor, não tem em outro lugar. Olha que eu já passei

por muito lugar. Hoje se eu tenho que sair, eu volto. Hoje eu tenho um endereço, um

nome, eu tenho uma identidade, documento, uma cama pra dormir. Hoje eu tenho

responsabilidade. Eu tenho uma relação muito boa com meu filho. Vocês me

ajudaram a ter tudo isso de novo, só com amor. Uma coisa eu vou falar prá vocês.

Se tiver cem mil pessoas e você conseguirem limpar uma, já valeu.

Perguntado sobre alguma diferença marcante prestada pelo serviço social público e

a Turma da Sopa, José Ferreira responde prontamente que é o tempo. O tempo que

eles tinham pra mim. Não tinha tempo e vocês têm tempo. Vocês me deram

atenção. Me escutaram. Isso é amor, não é? É uma coisa que a gente sente.

4.4.2.3 Depoimento de Roselmar da Costa, ex-morador de rua e hoje motorista da Comunidade Terapêutica Novo Dia em Atibaia.

Minha história começa em Porto Alegre no Rio Grande do Sul, sou de uma família

humilde, pai, mãe, um irmão. Desde que eu me lembro meu pai e minha mãe

sempre foram batalhadores. E minha história com o álcool começou aos 12 anos. Eu

sou filho de alcoólatra. Meu pai sempre bebeu. Agora ele está limpo há uns 4 anos,

lá no sul. Graças a Deus, não ta bebendo, ta vivendo e agora ele é feliz. E desde

meus 12 anos, a vida foi uma festa pra mim. Dos 12 aos 18 sempre muita bebida,

nunca consegui concluir nada: escola, bons empregos. As oportunidades iam

aparecendo, mas eu nunca conseguia levar nada adiante. Ficava pouco tempo nos

empregos, porque geralmente na 2ª feira e já não aparecia. E eu em lembro como

se fosse hoje, a gravidade desta doença, porque hoje eu sei que eu sofro dessa

doença progressiva, incurável e fatal, mas na naquela época eu não sabia. Muita

gente não sabe. A maior parte não sabe. Principalmente a família não sabe. Eu

lembro que minha casa era um inferno por causa das brigas, principalmente com

meu pai, que era um vagabundo, mal caráter, mas nunca ouvi dizer que ele era

doente, nem eu.

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Eu nunca parava em lugar nenhum, em emprego nenhum e a minha casa pra mim

se tornou um inferno, porque eu culpava o outro de nada estar bom pra mim, eu

nunca tinha responsabilidade por nada e a desculpa que eu arrumava era beber

mais pra me vingar dessas pessoas que eu achava que fazia da minha vida um

inferno era usando e bebendo cada vez mais, até que um dia eu sai de casa. Saí de

casa com 18 anos, peguei um caminhão e fui pra estrada trabalhar de motorista de

caminhão. Eu nunca voltei mais pra casa dos meus pais. Nunca mais. Desde os 18

anos que eu tou na rua, tou no mundo. Minha irmã, meu irmão ficaram lá com eles e

tal e eu sai fora.

Eu pensei que meus problemas iam ficar prá trás, que ia ficar tudo bem. Só que na

verdade eu trouxe todos os problemas mal resolvidos e eu consegui resolver eles

exatamente há 2 anos atrás né. Eu conheci o AA em 98, o Grupo Liberdade na 13

de Maio ao lado da Igreja da Achiropita eu já tava numa situação difícil, eu já tava

naquele processo de que hoje é domingo eu bebia todas, enchia a cara, meu Deus

do Céu, Papa, eu prometo pro Senhor que a partir de amanhã eu não bebo mais.

Eu juro, é só hoje. E aí na 2ª feira eu tava muito mal, de ressaca. Eu não agüentava

mais e aí eu conheci no ano em 98 uma irmandade maravilhosa, que salva vidas

porque dá uma qualidade de vida pro ser humano independente de homens e

mulheres. E eu fiquei até o ano 2000 freqüentando as reuniões, a temática, enfim

com envolvimento.

Consegui um bom emprego só com as reuniões, sem beber um pingo, com gente

que tava há 20 anos sem tomar um gole, nas temáticas, com uma galera, que meu

Deus do Céu, me conhecia, me entendia, que me deu amor. Foi no AA que eu

encontrei amor e eu não tava mais sozinho no meu naquele meu problema, na

minha doença e eu fiquei até o ano 2000. No ano 2000 eu consegui um emprego, na

Rua Conselheiro Ramalho 849 ao lado do Madame Satã, num estacionamento, onde

precisava de uma pessoa de confiança pra trabalhar. Como eu não bebia, eu era

uma pessoa de confiança e tal, tal, tal, eu comecei a trabalhar lá onde eu fiquei 3

anos, e cheguei a gerente.

Só que do ano 2000 em diante, eu pensei que eu já tava curado e eu comecei a dar

as costas pro que eu tinha aprendido, pro AA, achei que dava pra fazer as coisas do

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meu jeito de novo que eu achava, eu já tava estabilizado, eu já tava indo pro Sul

uma vez por mês de avião, vendo a minha família, etc, etc. Não demorou muito, no

ambiente em que eu tava, que não é aconselhável, enfim, na sociedade. “evite

pessoas, lugares”, só que o Roselmar achava que ele podia fazer, que tava curado,

sabia que ele tinha uma doença, o problema dele era a bebida e não o

comportamento dele. Na verdade o meu problema era o comportamento. O último

estágio é a droga, não é a bebida. E eu não sabia de nada disso. Ai eu, no ano 2000

me oferecem um papel de cocaína eu falei que não. Eu não quero, eu não posso.

Mas daí eu pensei, o meu problema é a bebida, cara, com a cocaína não vai ter

problema nenhum. Aí eu comecei a usar um papel por noite e quando eu vi eu tava

usando 20, 25. Quase tive uma overdose. E eu não bebia, porque meu problema era

a bebida. E eu saía todo dia, ia pro trabalho, eu ganhava bem. Só que não demorou

muito, o meu patrão só de vir no estacionamento, notava o meu comportamento

como mudou. Eu mudei. Eu vivia trancado dentro do quarto. Se a minha mãe me

ligasse do Sul, eu falava “Mãe dá um tempo que agora eu não posso, eu tou muito

ocupado”. E foi assim.

Pra usar droga e pra beber, eu abri mão de tudo. Abri mão da minha família. Foi a

vida que eu escolhi, vou morrer usando droga e bebendo. Só que acabou não

demorando muito eu acabei perdendo esse emprego. Meu patrão chegou pra mim,

ele já sabia que eu ia começar a roubar ele. Eu não dava mais conta de pagar o

traficante, com o meu dinheiro que eu ganhava. Era muita droga que eu consumia.

Era todo dia. Não era só no final de semana. A minha vida se tornou incontrolável. E

eu comecei a roubar ele e ele chegou e disse: “Você tem duas alternativas: uma, eu

te mando embora. Você some daqui, desaparece ou eu vou mandar te prender e eu

não quero isso. Eu sei de tudo o que aconteceu aqui, me contaram”. Porque

chegava cliente e contava pra ele como eu me comportava, o que eu roubava. E ele

me deu um cheque de R$ 200 prá eu não ir pra rua, porque ele disse que era lá que

eu ia parar se eu não parasse com o uso de drogas, se eu não procurasse uma

ajuda. Esse era um dinheiro pra eu encontrar um lugar para morar. Eu aluguei um

lugar na Brigadeiro Luis Antonio esquina com a São Joaquim e não demorou muito

tempo a minha casa já tava vazia: eu tinha bebido tudo, não pagava mais aluguel,

não tinha mais contato com a minha família lá no sul, por vergonha, por orgulho,

enfim eu tava totalmente doente, totalmente desequilibrado.

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E eu fiquei 5 anos sem ter contato com a minha família e aí eu conheci um rapaz da

época que eu tava trabalhando, quando eu conseguia produzir alguma coisa e ele

tinha uma transportadora ali na Bela Vista e ele viu um dia quando eu tava

passando, a situação em que eu me encontrava, totalmente na degradação e ele

falou: “Roselmar, eu não posso dar um carro pra você trabalhar, uma caminhão que

vale 40, 50 mil se você muda que nem vento, eu não posso contar com você, não

posso confiar em você, mas eu vou te dar uma ajuda. Você vem aqui a gente vai te

dar um servicinho pra você fazer, pagar uma conta de luz, uma conta de água, ir no

supermercado comprar alguma coisa, assim pelo menos o seu almoço do meio-dia

eu garanto. Eu já sabia da Sopa. De dia eu almoçava com ele e de noite eu ia pra

Sopa, eu já tava na rua. Um dia eu já não comia mais, tava muito fraquinho, eu não

comia mais, um dia ele me deu dinheiro pra almoçar eu ia pro bar beber, só que todo

dia de manhã cedo eu pedia a Deus, “Meu Deus é a última coisa que eu tou

pedindo pro senhor, meu Deus, me dê mais uma oportunidade, o senhor já me deu

várias e eu desperdicei todas, mas se eu continuar na rua, eu vou morrer e o Senhor

não me colocou no mundo pra isso. Por favor, o Senhor me dá uma chance, eu

preciso me internar, me ajuda meu Deus a conseguir uma internação”. Eu não sabia

que tinha clínica, eu não sabia nada. Eu lembro que quando eu tinha 18 anos, meu

pai falou pra mim: “Eu vou te internar” . E eu falei pra ele: “Louco ta você. Que

internar??? Internar é pra louco e eu não era louco”. Quanta coisa... Dos 18, pra

internar com 40 anos! Eu pedia todo dia de manhã, eu podia ter tomado o que eu

tivesse tomado, eu podia ter usado o que eu tivesse usado, eu pedia: “Meu Deus me

ajuda hoje a conseguir vaga que eu vou morrer na rua e eu não quero morrer na

rua”. E naquele dia, ao meio-dia, eu fui beber, almoçar e eu bati em cima do balcão

e disse: “Eu quero tomar uma cerveja e uma pinga”. E comecei a falar com ele

(balconista): “ Eu sou assim, eu tenho meus compromissos, eu bebo uma cerveja,

uma pinga, eu não consigo, eu já freqüentei o AA mas não adiantou’. O AA tinha que

mudar e não eu. E aí ele falou pra: “É interessante, porque pra mim eu também sou

um alcoólatra e eu tou saindo de uma internação “. Aí eu falei pra ele: “ A coisa que

eu mais peço a Deus é pra me internar”. Aí ele falou pra mim: “Você quer mesmo se

internar? Eu falei: “ A coisa que eu mais quero é me internar. Eu vou morrer na rua,

bebendo e eu não quero. Quero mudar de vida. Quero uma oportunidade. Eu não

quero mais saber de bebida. Não dá mais. Ta virando um inferno”. Aí ele falou pra

mim: “Então ta. Eu vou te apresentar uma pessoa que vai te ajudar a te internar”.

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Essa pessoa é o Guido, não sei se você conhece (Guido é um assistidos mais

antigos pela Turma da Sopa, tendo sido internado 3 vezes, sempre recaindo). E aí é

a prova da existência de um Deus amoroso, que se manifesta através de uma outra

pessoa, pois Guido por orgulho não consegue se manter sóbrio, mas me tirou da

rua, me salvou, me levou pra Turma da Sopa, onde eu consegui ser internado. Deus

ma mandou o Guido. Era uma 4ª. Feira, eu tava muito debilitado por causa da

diabetes causada pelo uso de álcool.. Eu tava largado lá no Albergue, embaixo do

Viaduto Pedroso, mas eu encontrei força pra ir numa 4ª feira conversar com a

Rosangela (Rosangela Valverde,Presidente da Turma da Sopa) a lá no Viaduto

Condessa de São Joaquim. E eu lembro que ela falou pra mim: “Eu não vou te dar

dinheiro que você vai beber, mas eu vou te ajudar”.

E era verdade. Ela tinha razão.

Eu tenho uma doença que me faz manipular qualquer pessoa. Eu manipulo qualquer

um pra conseguir um jeito de beber. Antes de eu conseguir parar de beber e de usar,

eu tenho que controlar aquele ladrão que existe em mim. Eu sou um adicto, um

alcoólatra e um ladrão em recuperação. Aí eu disse pra Rosangela que eu precisava

de tal remédio, que eu tinha passado pelo Servidor e eles tinham me mandado tomar

tal remédio, e ela disse: “Você vem aqui tal dia e procura tal pessoa, que o remédio

vai estar aqui”. Só que o que aconteceu quando eu confeci a Rosangela, de lá pra cá

eu recebi amor, carinho. Eu acreditei nela, porque ela fala comigo de igual pra igual.

Ela fala: “Roselmar, você quer mesmo se internar?”. Eu digo que é a coisa que eu

mais peço a Deus. Aí, ela, é carinho, é amor, eu sempre falo uma coisa em qualquer

lugar que eu vá hoje, que de 2 anos pra cá, eu sinto medo, mas eu sou normal como

qualquer outro, eu sinto raiva, eu sinto um pouquinho de inveja, mas tem uma coisa

que eu nunca mais senti. Eu nunca mais, de 2 anos pra cá, eu me senti sozinho.

Isso eu nunca mais senti. Graças a vocês da Turma da Sopa e aí tava com

dificuldade de vaga em Atibaia e ela falou: “Você toma o remédio enquanto eu

procuro vaga, mas para um pouco de beber. Para de beber. Para. Dá um tempo”. E

eu aceitei a ajuda dela, porque foi de igual pra igual, com carinho, com um sorriso no

rosto”.

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A primeira coisa que eu gravei da Rosangela foi o sorriso quando ela me viu. Ela

sorriu de uma forma maternal, um carinho que só mãe tem. Eu confiei. Ela me disse:

“pode ligar tal dia, pode ligar a cobrar”. Aí eu fiquei no Albergue, eu não podia sair,

eu tava muito mal, não conseguia andar, eu ia morrer, eu não durava mais 6 meses

na rua. Eu só saía pra ligar pra Rosangela e ir na Assistente Social. E aí numa 2ª.

Feira ela me falou que tava com a internação na mão. Que precisava me dar o

dinheiro da passagem e o enxoval. Eu não tinha mais nada. Aí eu pedi desligamento

numa boa do albergue, eu não saí por sair, eu dei uma explicação, que eu tava

sendo internado, eu fiz tudo direitinho porque eu tava sóbrio. Até quando eu vou

viver nessa dependência, desse jeito? Aí eu encontrei a Rosangela e ele me deu o

dinheiro, o enxoval e eu pensei: “Essa mulher é mais louca do que eu pensava. Ela

mal me conhece, me deu o dinheiro da passagem e pediu pro Sr. José me por no

ônibus (O Sr. José foi o primeiro morador de rua a ser reintegrado pela Sopa, depois

de mais de 25 anos de rua. Em 2003 o Sr. José faleceu depois de ter trabalhado

como voluntário por mais de 12 anos). Mas eu cheguei em Atibaia, liguei pra

Rosangela e prá minha mãe e disse que dessa vez que ia conseguir. Porque dessa

vez eu acreditava em alguma coisa, em alguém.

E eu fui ficando em Atibaia, onde hoje eu trabalho como motorista da Casa. Eu já até

tirei férias e voltei pro Sul, onde eu passei 15 dias na casa dos meus pais e eu fiz

uma coisa que eu nunca tinha feito: fui com a minha mãe no médico!. E meus pais

que hoje estão com 70 anos disseram que hoje eles estão felizes pelo aquilo que a

gente está vivendo. Porque o que eu vivo acaba desestruturando uma família.

Porque o alcoólatra, o drogado não sente, mas a família continua vivendo e tem

sentimentos. Hoje meu pai também está bem, ele e minha mãe estão como dois

namorados, não brigaram mais. Eu hoje estou trabalhando na clínica, na abertura da

unidade feminina, é tudo novo. Eu cheguei na clínica super desmotivado, só com a

Rosangela acreditando em mim e hoje é tudo diferente.

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5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

“Os seres humanos precisam de Amor. Sem eles morrem. Amar

significa muito mais que gostar muito. O Amor é um sentimento

profundo de vínculo. O Amor leva tempo. O Amor tem uma

história. O Amor nos dá direção e faz de nós o que somos. O

Amor não pode se comandado ou exigido. Só pode ser doado”.

Kevin Roberts em Lovemarks

A população da rua vem mudando nos últimos anos. Hoje já não é mais formada

apenas por aqueles que perderam empregos, família, laços afetivos, etc. A maioria

dos indivíduos em situação de rua tem história, tem casa, tem família e até recursos

financeiros, mas optou por romper com estes vínculos, ou foi expulso de seu

convívio, para viver na rua por causa da pretensa liberdade nesta encontrada. A

liberdade para se viver o vício, para se acabar na droga.

Entretanto a vida nas ruas não é fácil, conforme afirmam nossos entrevistados e

muitos outros a quem a Turma da Sopa atende e ajuda. Se a rua permite uma

pretensa liberdade, a droga se torna uma prisão. O vício é cruel, é um agiota

conforme afirma José Ferreira em seu depoimento: ele volta para cobrar e cobra a

dignidade, o respeito e a auto-estima. O vício destrói a possibilidade de sentir: sentir

dor, sentir amor, sentir-se parte. O vício isola e faz com que se deixe de acreditar em

qualquer coisa que seja.

Conforme relato de todos os entrevistados, percebemos que o vício faz com que

o indivíduo deixe de acreditar que pode mudar a situação em que se encontra,

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sendo esta desesperadora. Os que não morrem de overdose ou assassinados,

tentam fazê -lo de alguma forma e, quando não conseguem, de tão drogados que

estão, acabam percebendo que precisam pedir ajuda para saírem da situação em

que se encontram.

Devemos lembrar que todos os individuos que se encontram na rua não nasceram

ali. Porque os que nascem na rua, dificilmente conseguem sair da infância vivos. Os

indivíduos em situação de rua têm, mesmo que seja no fundo de sua memória,

recordações de afeto e amor, pois anteriormente viveram vidas familiares onde

desenvolveram laços afetivos. E são exatamente essas recordações que os levam a

pedir e aceitar ajuda.

A memória do amor, de seu poder de transformação, é o que faz com que o trabalho

executado pela Turma da Sopa tenha os índices de aproveitamento que

apresentamos: em 16 anos de trabalho são mais de 600 pessoas que saíram das

ruas através do trabalho direto da Sopa.

Esse número se multiplica quando contabilizamos que dentre os indivíduos que

saíram das ruas pelas mãos da Sopa, muitos iniciaram suas próprias iniciativas no

sentido de reintegrar outros moradores de rua. A reintegração só é possível quando

se constrói o elo de confiança entre o morador de rua e as pessoas dispostas a

prestarem assistência e auxílio a este público. Sem a confiança não existe espaço

para que o desejo de mudança se instale e possa ser verbalizado.

Muitos dos trabalhos desenvolvidos com e/ou para moradores de rua focam em

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etapas importantíssimas do processo de reintegração, mas poucos abordam

diretamente o tratamento contra a adicção, seja ela química, alcoólica ou cruzada e,

sabemos pelos depoimentos concedidos, que sem a conscientização da

necessidade de tratamento e conseqüente desejo de mudança, o morador de rua

dificilmente conseguirá verdadeiramente sair das ruas. Ele pode, como em muitos

casos, arrumar um emprego temporário ou voltar à sua casa ou cidade de origem,

mas em breve estará de novo nas ruas, pois acredita que esta pode lhe proporcionar

a liberdade de exercer seu direito ao vício.

Como vimos anteriormente, diversos são os motivos que levam o homem à situação

de rua mas, o principal deles hoje em dia, é a dependência química, alcoólica ou

cruzada. As poucas políticas públicas existentes não tratam a reintegração de

indivíduos em situação de rua sob este aspecto. As iniciativas para a recuperação

efetiva de auto-estima não podem passar apenas pela geração de renda tão visada

pelos governos ou tantas instituições da Sociedade Civil pois a auto-estima só é

permanente se houver a recuperação do indivíduo na sua integralidade, com seus

valores de amor, de respeito por si mesmo e por aqueles que o cercam. São valores

humanistas que permeiam e constroem uma sociedade de melhor qualidade,

conforme podemos verificar olhando o trabalho atualmente desenvolvido por ex-

moradores de rua que hoje são responsáveis pela reintegração de tantos outros

indivíduos em situação de rua.

Ao final da investigação a que este trabalho se propôs, podemos afirmar que a

capacidade de reintegração exercida pela Turma da Sopa é seu enfoque, ou

tecnologia social, onde todos os trabalhadores da instituição são treinados para

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respeitar, escutar e aceitar as limitações do morador de rua. O prato de comida

oferecido a cada noite nada mais é do que uma maneira para se criar, no morador

de rua, um hábito de freqüência no local de distribuição da mesma. São nesses

momentos que passa a se criar um elo de confiança, de amizade, de carinho e

respeito entre o morador de rua e o voluntário. A partir deste elo de confiança, o

morador de rua percebe que ele é alguém para o voluntário, que o mesmo sabe seu

nome, que se interessa em saber o que ele fez durante o dia, se ele esteve ausente

na semana ou no dia anterior, quer saber o porquê, etc. Quando esta “amizade” se

estabelece, surge espaço para que o morador de rua assuma seu desejo de sair da

situação em que se encontra e dá liberdade para que o voluntário manifeste a

necessidade do morador de rua seguir um determinado padrão de comportamento:

cuidar-se melhor, o que inclui freqüentar os banhos públicos, cuidar da aparência e

freqüentar o AA (Alcoólicos Anônimos) e NA (Narcóticos Anônimos) de maneira

comprovada, até a hora em que se encontre uma casa de recuperação onde ele

será internado. Esta é a manifestação de amor que influencia diretamente na

reintegração do indivíduo à sociedade.

Um gesto pequeno como a manifestesção de atenção do voluntário pelo morador de

rua, é o que traz o resgate do ser humano adormecido no morador de rua. E é este

ser humano que pede ajuda, que quer sair da situação em que se encontra. Mas

acima de tudo, é saber que pode ser amado pelo que é, que faz com que ele tenha

força para se transformar e voltar para casa, para a família, para a sociedade.

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