morato; gonçalves. observar a prática... 2009
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C a p ítu lo 7
O B S E RV AR A P RÁ T IC A P ED AG Ó G IC O -M U SIC AL
É M A IS D O Q U E V E R
Cflllia Thais Morato
• Lili« Neves onç lves
A o b se rva çã o n a le gis la çã o
e a fo rm a çã o d e p ro fe sso re s
Acreditou-se por muito tempo que a formação da docência
deveria constituir-se de conhecimentos teóricos (métodos e con-
teúdos) que seriam aplicados no exercício da profissão. Atualmente,
quando se cuida de resgatar a importância que o conhecimento
adquirido na prática assume nessa formação, podemos dizer que
tem sido preocupação garantir que a fonnação da docência não
prescinda do conhecimento construído pelo próprio licenciando.
Na legislação sobre os cursos de formação de professores o
conhecimento prático aparece como um dos componentes da
formação que, por sua vez, se completa com o componente
conhecimento teórico . A associação entre teoria e prática é
colocada quando menciona-se que:
A formação de profissionais da educação, de modo a aten-
der aos objetivos dos diferentes níveis e modalidades de
ensino e às características de cada fase do desenvolvimen-
to do educando, terá como fundamentos: I - a associação
entre teorias e práticas, inclusive mediante a capacitação
em serviço; [...] (Brasil, 1996, art. 61, inc.
I .
A associação entre teoria e prática como forma d prinrivm
uma formação condizente com o qu l i profissão d e \ e I I I e d e I11 111
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cialmente dedicado à prática. O artigo 12 da Resolução CNE/ CP
n° 1 (Brasil, 2002) menciona que todas as disciplinas e compo-
nentes curriculares, e não apenas as disciplinas pedagógicas,
terão a sua dimensão prática (parágrafo 3°).
No que se refere à observação, o artigo 13 orienta para que
essa dimensão prát ica seja ainda desenvolvida com ênfase nos
procedimentos de observação e reflexão, visando à atuação em
situações contextualizadas, com o registro dessas observações
realizadas e a resolução de situações-problema (Brasil, 2002, art.
13, parágrafo 1°). Essa legislação sobre a formação do professor
apega-se à prática como solução para garantir que o professor seja
capaz de ressignificar o que lhe acontece em sua relação direta
com a instabilidade da realidade educativa.
O que faz a reflexão localizar-se na dimensão prática da
formação do professor? Pautando-nos em Pimenta (2002) e Ghedin
(2002), que procedem a uma reflexão crítica sobre epistemologia
do professor reflexivo de Donald Schõn, é possível entender que
a reflexão, quando localizada na dimensão prática da formação,
alinha-se ao conhecimento enquanto aplicação. A reflexão, ao ser
entendida como um procedimento de superação dos problemas
cotidianos vividos pela prática docente [...], dificulta o engajamento
de professores em práticas mais críticas, reduzindo-as a um fazer
técnico (Pimenta, 2002, p.23).
Se a reflexão sobre a prática constitui o questionamento dessa
mesma prática, de modo a despertar a problematicidade da situa-
ção a fim de operacionalizar soluções para uma atuação contex-
tualizada, também não podemos esquecer que a reflexão não existe
isolada, mas é resultado de um amplo processo d,eprocura que se
dá no constante questionamento entre o que se pensa (enquanto
teoria que orienta uma determinada prática) e o que se faz (Ghedin,
2002, p.132-133).
Ao reconhecer que a realidade educativa é complexa e
imprevisível e, como tal, o exercício profissional da docência
exige muito mais do que aplicação de conhecimentos teóricos
(o s
quais não oferecem respostas imediatas para os probl mas
li
que surgem no devir da situação pedagógica), a observação assu-
me uma função importante para o futuro professor poder se intei-
rar das situações instáveis e indeterminadas que a realidade da
sala de aula lhe reserva. Além disso, tendo consciência de que não
há uma situação educativa igual a outra, a reflexão também torna-
se necessária para que, dialogando com a sua própria atuação, se
possa construir soluções possíveis para os problemas qu se apre-
sentam no seu dia a dia.
Concordamos com a legislação quando esta explicita a ob-
servação como sendo um dos procedimentos (Brasil, 2002, p.4)
a serem utilizados na formação do professor. Contudo, questio-
na-se a sua classificação como conhecimento que se dá na prática
e/ou para a prática. Tal como aparece na legislação, a observação
inscrita na dimensão prática do conhecimento do professor deixa
de levar em conta outros aspectos envolvidos no processo de
observar.
A legislação parece considerar a observação como um ato
prático pelo fato de que, ao observar, o futuro professor está ven-
do algo acontecer. Mas, ao tomar a observação apenas na dimen-
são prática, o texto da resolução não salienta a sua dimensão
teórica. Para Carr e Kemmis (1988);
Uma prática [. .. ] não é um tipo qualquer de comporta-
m ento não m editado que exista sep aradam ente da teo-
ria e que pode aplicar -se a um a teor ia. Na realidade,
todas as prática s, c om o to das as o bse rvaçõe s, incorporam
algo de teor ia , e i ss o é tão certo para a prática de em-
pr ee ndirn .ru os teórico s como para a dos ernp rc md i
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teoria.
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Então, tanto existe uma dimensão teórica incidindo na ob-
servação, que se materializa na prática, quanto existe uma dimen-
são prática incidindo na reflexão, que se materializa na teoria.
Ambas são, portanto, indissociáveis e circunscrevem-se nos espa-
ços socioculturais em que vivemos e nos formamos e nos quais
aprendemos a discernir as perspectivas que nos interessam para a
nossa atuação no mundo. São essas perspectivas que orientam as
nossas reflexões sobre o que vemos. Por isso, observar não é só
ver, é também pensar sobre o que se vê - e aí a observação deixa
de ser somente da prática, instituindo-se também como dimensão
da teoria, pois
o
conhecimento é sempre uma relação que se estabele-
ce entre a prática e as nossas interpretações da mesma;
é a isso que chamamos teoria, isto é, um modo de ver
e interpretar nosso modo de agir no mundo (Ghedin,
2002, p.132).
Apesar de ser interessante a discussão sobre a concepção
implícita e/ou explícita na legislação no que se refere à formação
reflexiva do professor, nosso objetivo neste capítulo é discutir
sobre a observação nos cursos de formação de professores. Qual
seria realmente a sua Junção? Por que se defende o seu uso nos
cursos de formação de professores? Podemos dizer que existem
especificidades nos processos de observação envolvidos na for-
mação de professores de música?
Para responder essas questões utilizaremos, além da litera-
tura pesquisada e relatos de experiências próprias, depoimentos
de estudantes dos Cursos de Música da Universidade Federal de
incorporan algode teoria ,
y
eso es tan cierto para Iapráctica de Ias empresas
teóricas como para Ia de Ias empresas propiamente prácticas como Ia
ensefíanza. Ambas son actividades sociales concretas que se desarrollan
para fines concretos mediante destrezas y procedimientos concretos y a Ia
luz de unas creencias
y
unos valores concretos.
11 4
Uberlândia (UFU)2 e excertos de relatórios de estágio elaborados
por alunos na disciplina Prát ica de Ensino sob a Forma de Estágio
Supervisionado' na referida universidade.
A o bs erv aç ão n os cu rs os d e fo rm aç ão
d e p ro f es s o re s
o procedimento da observação tem sido muito uti lizado
nos cursos de formação de professores como parte da Prática de
Ensino e Estágio Supervisionado. Procurando entender a ut ili-
zação da observação nos cursos de formação de professores,
Estrela (1994) afirma que esse procedimento tem servido a dois
propósitos: a observação
sobre
o futuro professor e a observa-
ção feitapelo futuro professor.
A observação sobre o futuro professor consiste num proce-
dimento de formação que coloca as antas do professorando para
serem avaliadas pelos seus colegas e pelo professor orientador;
ou ainda, nas situações de estágio, pelo responsável da classe em
que o professorando estagia. Objetiva facultar ao professor em
formação a tomada de consciência de si próprio, proporcionando-
lhe um feedback, principalmente quando meios mais dispendiosos
de registro como a filmagem em vídeo não é possível. Tida como
uma Pedagogia Autocorretiva ou de Autoaperfeiçoamento , o
autor alerta para os riscos de empregar essa técnica sem o devido
preparo teórico e a referência de roteiros precisos, pautando-se a
avaliação em achisrnos subjetivos, quando não em arbitrariedades
provenientes da situação hi rárquica em que se encontram os par-
ticipantes dessa r laçao pcda i H (Estr Ia, 1994).
A observação
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10 futuro professor í uquclu que, rolo
cados em situações ducntivus, OhSí. IVIIIHlo oh :ts
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Os depoimentos foram colludus 111( IIII( VI~111 1\ 1111:ulu 1111 11111111111
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seus próprios professores,' os professorandos assistem a exern-
plificações de como ser professor. Assistir às aulas de outrem
significa que, exercitando a observação sobre condições con-
cretas do processo de ensinar, podemos aprender com eles a ser
professor. Estrela (1994) alerta, no entanto, que, se os modelos
constituem pólos de referência indispensáveis, é importante, con-
tudo, a possibilidade de eles serem analisados, 'desmontados',
assumidos ou rejeitados de forma consciente e crí tica (p.58).
Embora o que se focalize possa não ser a imitação de um
modelo tomado como único, verdadeiro, localizamos na obser-
vação sobre o futuro professor e pelo futuro professor uma pre-
ocupação para com a modificação do comportamento e da atitude
do professor em formação. Para Estrela (1994, p.56), esse tem
sido o principal sentido atribuído à observação nos diversos sis-
temas de formação de professores. Porém, para além da modi-
ficação do comportamento, perguntamos: O que o professor em
formação, mediante o uso da observação, tem aprendido sobre a
sua relação com a realidade educativa?
Podemos dizer que nos dois propósitos a que tem servido, a
observação tem sido utilizada para ver e avaliar o quê e como o
professor ensina. Quando se trata da observação sobre o futuro
professor, é o professor em formação quem será avaliado; em se
tratando da observação feitapelo futuro professor, o professorando
avaliará o professor que ele observa.
Com que critérios avaliamos o professor? Será que o que
vemos é realmente o que acontece? O que vemos é uma possibi-
lidade de certeza do que acontece, mas não a única, pois outras
pessoas observando a mesma cena podem ver uma realidade
muito diferente da que eu vejo. .
Trata-se, então, de uma avaliação externa e pontual. Exter-
na porque a observação fica no nível do aparente. Toma-se a
visual idade do que acontece de tal forma como verdadeira que se
acredita conhecer o que acontece só pelo que é possível de se ver
- pregnância da visualidade (Barros et aI., 2004). Não fomos
educados a pensar que o nosso modo de ver flui do nosso interior
orientando-nos o que enxergar daquilo que vemos. E o que flui de
dentro de nós depende de como fomos e somos instruídos social e
culturalmente a enxergar:
É
o olhar e não o olho que informa a existência mundana
das coisas. Isto quer dizer, o olho é natural, o olhar é
socialmente desenvolvido (Teves, 1992, p.9).
Vemos do mundo aquilo que queremos ver conforme as
perspectivas socioculturais em que somos formados. Se isso vale
para mim, vale também para as pessoas com quem interajo. Uma
vez colocados em situações educativas para observar outros
professores, não somos somente nós que os observamos, eles tam-
bém nos observam - e o fazem conforme suas perspectivas
socioculturais. Por isso, trata-se também de uma avaliação pon-
tual porque descontextualiza a relação de interação que se estabe-
lece no processo pedagógico centrando a observação apenas na
pessoa que observa. Tanto quem observa quanto quem é observa-
do estabelece uma interação mútua que deixa de ser considerada.
A o bs erv aç ão n os cu rs os d e fo rm a çã o
d e p ro fe ss or es d e M ú sica
Alguns estudos afim iam que aprendemos a ser professores
desde o tempo em que sentávamos nos bancos escolares, pois,
enquanto alunos, intrinsecamente envolvidos no processo peda-
gógico, fomos abstraindo os jeitos de
ser professor
daqueles que
nos ensinavam, isto é, em experiências vividas na sala de aula
durante a escolarização, encontram-se as raízes, ou vestígios, da
lógica de um habitus professoral (Silva, 2003, p.105).
I
5
Na Universidade Federal de Uberlândia, há casos em que, não havendo
aula de música nas escolas regulares onde são feitos osestágios, as próprias
professoras (orientadoras do estágio) assumem a direção da classe para que
os licenciandos possam vivenciar a aproximação com a realidade profissional
da docência em música.
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Segundo Tura (2003), a observação é a primeira forma de
aproximação do indivíduo com o mundo em que vive (p.184).
Portanto, entende-se que os nossos alunos aprendem a partir
dessas situações de aproximação primitiva com a docência de
seus próprios professores, como relata uma estudante: mesmo
sem você me ensinar [a ser professora], eu estava aprendendo
(Luciana, entrevista, 18/01/2006).
De qualquer forma, reparamos que o princípio que rege a
assunção de que a aprendizagem profissional também se dá a
partir da aproximação primitiva com a concretude da situação
pedagógica é o mesmo que rege a defesa da aproximação com a
realidade profissional como processo de preparação para a
docência, qual seja, o princípio da observação de situações
educativas.
Roberto, aluno do sétimo período do Curso de Licencia-
tura, bastante procurado para dar aulas de guitarra, se considerava
despreparado para dar aulas por não ter didát ica . No entanto,
diz que depois que entrou na universidade começou a observar
seus professores , porque não tinha [ ...] o modelo . Ele ainda
relata: E aí eu comecei: - Ah, é por aí que se começa, tal. Ah,
é dessa maneira que eu tenho que caminhar com meus alunos,
assim, assado (Roberto, entrevista, 18/01/2006).
Essa colocação, além de expor essa aprendizagem me-
diante aproximações primitivas com o mundo pedagógico,
ainda levanta a questão dos modelos. É possível destacar na fala
de Roberto que o aprender a ser professor observando seus pró-
prios professores
também passa pela aquisição de modelos. A
diferença está em como esses modelos são apreendidos nesse tipo
de relação com o aprender a ser professor. Roberto adquire esse
conhecimento na sua própria experiência como aluno e não tendo
como modelo outros professores a quem observa em situações de
estágio. Assim, como diria Larossa Bondiá (2002), um conheci-
mento que nos acontece .
A observação tem sido uti lizada nos cursos de formação de
professores pelo menos sob dois asp ctos: um, por estar associada
à concretude da ação pedagógica , e outro, para conhecer a
realidade na qual o ensino e aprendizagem de música estão
inseridos.
O questionamento está na forma reduzida e redutora em
que tais possibilidades de usos da observação têm sido adotadas.
Na primeira possibilidade, a da concretude da ação pedagógica ,
pensa-se a observação de uma situação educativo-rnusical como
uma das formas de garantir a inserção do professorando na reali-
dade profissional concreta, na qual se aprende a ser professor.
Porém, isso não passa de uma situação simulada, pois o conhe-
cimento relativo ao viver uma situação educativa é do outro ,
daquele que o estagiário observa.
Sobre a segunda possibilidade, a de conhecer a realidade
em que se vai atuar, há uma preocupação em valorizar a obser-
vação enquanto processo de abordagem do real: conhecer com
objetividade a realidade em que se pretende intervir (Estrela,
1994, p.21). O risco que se corre com essa possibilidade de uti-
lização da observação é o da limitação do nosso conhecimento
sobre a realidade na medida em que acreditamos conhecer apenas
pelo que vemos no nível aparente. Assim, costumamos avaliar as
situações somente com base naquilo que delas presenciamos.
Nesse sentido, a observação implica recortar aspectos do
que vemos acontecer e esse mecanismo de seleção opera em
relação à experiência anterior: o
já
visto' observa-se mais facil-
mente, mas o 'demasiadamente visto' corre o risco de passar des-
percebido (Ketele e Roegiers, 1993, p.23). Desse modo, o que se
observa vai depender de quem observa, de sua história e do olhar
lançado para a realidade .
Quando se fala em observação pensa-se, na maioria das
vezes, em algo ao alcance do olhar. Percebe-se que o ver e o olhar
têm função muito importante na apreensão e conhecimento do
mundo em que vivemos. Embora a visão seja, dentre os cinco
sentidos, aquela a que se recorre mais frequentemente num pro-
cesso de observação, os outros sentidos podem ser igualmente
utilizados: a audição, o olfato, o tato e o gosto. Para nos conven-
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cermos disso, basta pensar em disciplinas como a acústica (audi-
ção), a botânica (olfato), a enologia (gosto e olfato), a cinesiterapia
(tato), cujas técnicas de observação se apoiam noutros sentidos
(Ketele e Roegiers, 1993, p.23).
Essa reflexão sobre o processo da observação apoiando-
se nos vários sentidos é muito interessante já que se, realmente,
só olhássemos o mundo e para o mundo em que vivemos , como
os cegos observariam? Como nós músicos apreenderíamos os
mundos musicais que nos rodeiam?
Diante disso, como músicos, professores de música, no
processo de observação além de ver a realidade e olhar para
essa realidade, que outros sentidos exercitamos nesse processo?
Sem dúvida, como professores de música, o sentido da visão não
é bastante para nós. Os nossos ouvidos também devem estar bem
abertos para ouvir o mundo ao nosso redor . Não só ouvir o
outro no sentido de sua colocação no mundo em que os observa-
mos, mas ouvir sua música, seu som, suas produções musicais.
Mas, ainda, ouvir sua música, seu som não é o bastante. É preciso
prestar atenção na relação que os alunos estabelecem com a mú-
sica e, enquanto professor, inserir-se nessa relação, buscando
interagir com eles e com seus jeitos de fazer e de gostar de música.
era necessário responder a fim de se poder elaborar uma proposta
de ensino de música, a ser desenvolvida nos semestres de estágio
subsequentes, que não estivesse tão alienada da realidade social
desse possível espaço de atuação profissional. No entanto, foi di-
fícil desgarrar das condições presenciadas nesse espaço. O conhe-
cimento dessa realidade prendeu-se muito ao nível do aparente:
Como as crianças gostam do coral, este não é um traba-
lho descartado, mas precisa ser mais bem aproveitado.
As crianças gritam muito, não há nenhum direcionamento
das frases. O repertório tem muitas músicas religiosas e a
maioria
é
dividida em duas vozes, meninos e meninas,
mas não o tempo todo, apenas alguns trechos (Excerto do
relatório de estágio, 20/06/2001).
O b se rv an d o n a a u la d e M ú sica
A observação do mundo passa pelo filtro do nosso olhar ,
das nossas crenças, dos nossos preconceitos, enfim, pelo nosso
imaginário do que seja aprender música, do que seja uma aula de
música, do que seja um bom professor de música. Essas crenças,
que foram construídas nas histórias de vida individuais durante
todo o percurso da nossa formação musical, são importantes cons-
tituintes de nossas experiências anteriores e fazem com que veja-
mos o mundo pedagógico-musical que observamos a partir delas.
Foi o que aconteceu com nossos alunos na situação antes relatada.
Mesmo vendo e convivendo no ambiente da escola e de sua aula
de música, foi dificil despir-se das crenças e práticas musicais com
as quais conviveram em seus próprios trajetos de formação mu-
sical: não se deve gritar quando se canta num coral; o repertório a
ser trabalhado deve ser de boa qualidade - para levantar dois
dentre outros aspectos que emergem na citação anterior.
Não se questionou, entretanto, a relação que as crianças
observadas estabeleciam com a música quando cantavam no coral
da escola. Por que elas gritavam? Poderia ser por uma questão de
orientação musical, mas também poderia ser porque queriam se
projetar, serem reconhecidas pelas pessoas que as observavam. E
o repertório, se não era do gosto dos observadores, ou não fazia
,
Em 2001 orientamos uma turma de Prática de Ensino sob a
Forma de Estágio Supervisionado que queria atuar em espaços
educacionais alternativos. Inserimo-nos, então, numa instituição
que atendia crianças e jovens de 7 a 17 anos no contraturno esco-
lar, em Uberlândia, MG. Como o espaço era deséonhecido tanto
para os professorandos quanto para as professoras orientadoras, a
proposta consistiu em conhecer, por meio da observação, que
espaço de educação era esse que se apresentava como possibilida-
de para atuação profissional? Que música havia nesse espaço?
OI11 )
ra nsinada? Quais relações, comportamentos e expectati-
vas das Iiun 'as jov os quanto à música? A todas essas questões
120
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parte do acervo dito digno de se trabalhar numa aula de música,
proporcionava um prazer enorme às crianças que o cantavam -
considerando ainda que muitas frequentavam igrejas evangélicas,
onde também cantavam e escutavam aquele repertório.
Sem considerar outras perspectivas possíveis, senão as suas
próprias, os alunos propuseram:
Para o próximo semestre, pretendemos desenvolver al-
guns trabalhos como o de iniciação musical com crianças
de 7 a 10 anos, utilização de atividades lúdicas e práti-
cas corais que estejam de acordo com a realidade dos
alunos (Excerto do relatório de estágio, 20/0612001
Para os futuros professores, é importante desenvolver a cons-
ciência de que essas referências direcionam o nosso olhar e nos
fazem deter em determinados aspectos da realidade musical, ou
daquilo que se vê. Sem' dúvida, se não tentarmos nos despojar das
nossas certezas e exercitar nos colocar no lugar dos nossos obser-
vados, continuaremos a impor a nossa maneira de entender e
fazer música, desconsiderando as relações que nossos observados
estabelecem com ela.
Portanto, conhecer a realidade em que se vai atuar im-
plica desvendar nossos olhos, implica consciência sobre as refe-
rências do meu olhar, implica questionarmos: De onde estou
falando ?
Mas como trabalhar isso com os professorandos? Saber
de onde estou falando requer uma consciência mais interna do
que externa, mais da parte de quem é o agente da observação
( quem sou eu que estou observando ), do que de quem é esse
,
que eu observo? . Tendo consciência da própria perspectiva
sociocul tural em que fomos e somos formados, nos ajuda a deslo-
car de nós mesmos. Pois olhar o outro , ou os mundos musicais
que nos rodeiam, não é fotocopiá-Io , descrevê-lo em suas ações
visíveis, mas percebê-lo, compreendê-lo na sua intimidade .
As certezas precisam ser questionadas com nossos alunos:
por
qlll
consid ramos esse ou aquele repertório ideal? Por que a
I I
aprendizagem musical não pode prescindir da leitura e escritas
musicais? Questionar os usos que os estudantes fazem da música
é importante? Ou o foco do ensino deveria estar nas relações que
os estudantes estabelecem com a música?
Essas certezas construídas a partir de nossas referências e
que nos acompanham no ato de observar uma aula de música
selecionam o nosso olhar e direcionam as nossas ações, isto é,
apontam para o que queremos ver e fazer .
Enquanto professores de música, é essencial que se assuma
uma posição diante do mundo que esteja atenta para as muitas
músicas que se fazem presente, que ocupam os mais diversos
lugares, momentos e que provocam diferentes relações no mundo
em que vivemos. Assumir essa posição implica mudança de ati-
tude, implica exercitar uma visão que esteja atenta ao outro, ao
nosso aluno, nos vários aspectos envolvidos em sua relação com
a música. Então, para que haja esse deslocamento, é necessário
que os cursos de formação de professores de música desenvol-
vam instrumentos de observação que capacitem os futuros pro-
fessores a não só traduzir o visível , mas excitar o invisível
em suas aulas de músicas .
e f e r ê n c i a s
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8/19/2019 Morato; Gonçalves. Observar a Prática... 2009
9/9
(ç ) O s a u t o r e s , 2 0 0 6
C a p a : L e t í c i a L a m p e r t
P r o je t o G r á f ic o : F O S F O R O G R Á F I C O /C l o S b a r d e l o t t o
E d i t o r a ç ã o : C i o S b a r d e lo t t o
R e v i s ã o : P a t r í c i a A r a g ã o
E d i t o r : L u i s G o m e s
I a re impre ssão : 2 0 0 8
2
a
re im p re ssão 2 0 0 9
D a d o s In te rn a c io n a is d e C a ta lo g a ç ã o n a P u b l i c a ç ã o C I P
B i b l i o t e c á ri a r e s p o n s á v e l: D e n is e M a r i d e A n d r a d e S o u z a C R B 1 0 / 9 6 0
P 9 1 2 P r á t i c a s d e e n s in a r m ú s ic a : l e g i s l a ç ã o , p l a n e j a m e n t o , o b s e r v a ç ã o , r e g is t r o ,
o r i e n t a ç ã o , e s p a ç o s , f o rm a ç ã o / T e re s a M a t e ir o e J u s a m a r a S o u z a o rg s . .
- P o r to A l e g r e : S u l in a , 2 0 0 9 .
1 9 1 p .
I S B N : 9 7 8 - 8 5 - 2 0 5 - 0 4 6 2 - 8
l .M ú s i c a - E n s in o . 2 . E d u c a ç ã o . 3 . M ú s ic a - P r o f e s s o r e s - F o r m a ç ã o .
I . M a t e i r o , T e r e s a . l i . S o u z a , J u s a m a r a .
C O O : 7 8 1 .3 7 7 . 8
C O U : 7 8 1 . 3 0 7
7 8 0 .7
T o d o s o s d ir e it o s d e s ta e d iç ã o r e s e rv a d o s à
E D I T O R A M E R I D I O N A L L T D A .
A v . O s v a ld o A r a n h a , 4 4 0 - c o n j . 1 0 1
C E P : 9 0 0 3 5 - 1 9 0 - P o r t o A le g r e - R S
T e l . : 5 1 3 3 1 1 - 4 0 8 2 F a x : 5 1 3 2 6 4 - 4 1 9 4
s u l i n a @ e d i t o r a s u l i n a . c o m . b r
w w w .e d i t o r a s u l i n a . c o m .b r
D e z e m b r o / 2 0 0 9
Im p re s s o n o B ra s i l / P r i n te d in B r a z i l