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CÃes & Cia • 392 60 Mundo das Aves Salvando espécies A Nene, do Havaí, e Condor-da-Califórnia: depois de quase extintos, foram recuperados em cativeiro extinção é um fenômeno natural conhecido há séculos pelos biólogos. De certa maneira, podemos dizer que o destino de toda espé- cie, incluindo a nossa, é a extinção. Sob esse ponto de vista, a luta para salvar uma espécie pode parecer algo fútil. Então, por que tanto es- forço para salvar uma espécie? Ondas de extinção De acordo com o registro fóssil, são co- nhecidas cinco grandes “ondas” de extinção em massa. Cada qual durou alguns milênios e varreu grande parte da vida em nosso planeta. Há milhões de anos, a última delas exterminou entre outros animais grande parte dos dinos- sauros (sobreviveram as aves, que nada mais Por LUÍS FÁBIO SILVEIRA Em toda a história da humanidade, nunca tantas espécies animais estiveram ameaçadas de desaparecer. São centenas, tanto de aves quanto de outros animais, levadas a altos graus de ameaça por causa da atividade humana. Em muitos casos, a única solução pos- sível é a criação em cativeiro com posterior reintrodução. Isso vem sendo feito no Brasil, líder mundial em espécies ameaçadas de extinção, por meio de iniciativas pontuais que tentam salvar algumas das nossas aves mais raras são que um grupelho de dinossauros) e abriu caminho para a evolução dos mamíferos. E aqui estamos nós. O maior extermínio Em decorrência de várias ações huma- nas sobre o meio ambiente, passamos por uma situação sem precedentes na história. Milhares de espécies de animais e vegetais tiveram suas populações diminuídas a ponto de terem a sobrevivência grandemente com- prometida. Diz-se que estamos começando a pre- senciar a sexta grande onda de extinção em massa. E que, diferentemente das cin- co anteriores, essa não ocorre por causas naturais, mas, sim, exclu- sivamente pela atividade humana e em intervalo de tempo absurdamente cur- to em comparação com as precedentes. Elos perdidos Cada ser vivo desem- penha um papel muito bem definido em seu ecossiste- ma. Esse papel resulta de um processo evolutivo lento, dinâmico e contínuo, com milhares de anos de duração, envolvendo todas as espé- cies de cada hábitat. O raciocínio lógico per- mite deduzir que a perda de uma espécie, seja qual for, vem a causar efeito nega- tivo nas demais do mesmo ecossistema, forçando-as a se adaptar à perda do “elo” da corrente. A espécie que não se adapta às mudanças tende ao desaparecimento aos poucos, permitindo que as demais se ajustem gra- dativamente. Quanto mais repentinamente ocorrer a perda, mais acentuadas se- rão as consequências negativas para as demais espécies. Liderança na extinção O Brasil é o país líder em biodiversidade, com o maior número mundial de espécies de muitos grupos animais, incluindo aves. Por outro lado, o Brasil também é detentor de um recorde nada brilhante, com o título de país que mais abriga espécies de aves ameaçadas de extin- ção. É um cenário que cruza alta biodiversida- de com alto número de espécies ameaçadas, medida clara de como nos relacionamos com o nosso meio ambiente e da necessidade de nos dedicarmos ao salvamento de espécies, tema do ensaio deste mês. Oiseaux Hobby ZakVTA / Flickr

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CÃes & Cia • 39260

Mundo das Aves

Salvando espécies

ANene, do Havaí, e Condor-da-Califórnia: depois de quase extintos, foram recuperados em cativeiro

extinção é um fenômeno natural conhecido há séculos pelos biólogos. De certa maneira, podemos dizer que o destino de toda espé-

cie, incluindo a nossa, é a extinção. Sob esse ponto de vista, a luta para salvar uma espécie pode parecer algo fútil. Então, por que tanto es-forço para salvar uma espécie?

Ondas de extinçãoDe acordo com o registro fóssil, são co-

nhecidas cinco grandes “ondas” de extinção em massa. Cada qual durou alguns milênios e varreu grande parte da vida em nosso planeta. Há milhões de anos, a última delas exterminou entre outros animais grande parte dos dinos-sauros (sobreviveram as aves, que nada mais

Por LUÍS FÁBIO SILVEIRA

Em toda a história da humanidade, nunca tantas espécies animais estiveram ameaçadas de desaparecer. São centenas, tanto de aves quanto de outros animais, levadas a altos graus de ameaça por causa da atividade humana. Em muitos casos, a única solução pos-sível é a criação em cativeiro com posterior reintrodução. Isso vem sendo feito no Brasil, líder mundial em espécies ameaçadas de extinção, por meio de iniciativas pontuais que tentam salvar algumas das nossas aves mais raras

são que um grupelho de dinossauros) e abriu caminho para a evolução dos mamíferos. E aqui estamos nós.

O maior extermínioEm decorrência de várias ações huma-

nas sobre o meio ambiente, passamos por uma situação sem precedentes na história. Milhares de espécies de animais e vegetais tiveram suas populações diminuídas a ponto de terem a sobrevivência grandemente com-prometida.

Diz-se que estamos começando a pre-senciar a sexta grande onda de extinção em massa. E que, diferentemente das cin-co anteriores, essa não ocorre por causas

naturais, mas, sim, exclu-sivamente pela atividade humana e em intervalo de tempo absurdamente cur-to em comparação com as precedentes.

Elos perdidosCada ser vivo desem-

penha um papel muito bem definido em seu ecossiste-ma. Esse papel resulta de um processo evolutivo lento, dinâmico e contínuo, com milhares de anos de duração, envolvendo todas as espé-cies de cada hábitat.

O raciocínio lógico per-mite deduzir que a perda de uma espécie, seja qual for, vem a causar efeito nega-tivo nas demais do mesmo ecossistema, forçando-as a se adaptar à perda do “elo” da corrente. A espécie que não se adapta às mudanças tende ao desaparecimento aos poucos, permitindo que as demais se ajustem gra-dativamente. Quanto mais repentinamente ocorrer a perda, mais acentuadas se-

rão as consequências negativas para as demais espécies.

Liderança na extinçãoO Brasil é o país líder em biodiversidade,

com o maior número mundial de espécies de muitos grupos animais, incluindo aves. Por outro lado, o Brasil também é detentor de um recorde nada brilhante, com o título de país que mais abriga espécies de aves ameaçadas de extin-ção. É um cenário que cruza alta biodiversida-de com alto número de espécies ameaçadas, medida clara de como nos relacionamos com o nosso meio ambiente e da necessidade de nos dedicarmos ao salvamento de espécies, tema do ensaio deste mês.

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Luís Fábio Silveira é doutor em Zoologia e curador das coleções ornitológicas do Museu de Zoologia da USP; membro do Comitê Brasileiro de Registros Ornitológicos (CBRO); pesquisador associado da World Pheasant Associa-tion (UK); autor de doze livros sobre aves, com dezenas de artigos científicos publicados.

Unidades de conservaçãoA destruição e a descaracterização dos

hábitats e a caça predatória são os principais fatores de diminuição das populações e de ex-termínio de espécies inteiras em pouco tempo.

Unidades de conservação são criadas para frear a destruição, com a finalidade de dar rí-gida proteção aos animais remanescentes no ambiente natural. Mas, mesmo assim, algumas espécies acabam eventualmente entrando em risco iminente de extinção.

Ao deparar com situação tão grave, cabe à destruidora mão humana agir em sentido con-trário, ou seja, ajudar na recuperação e preser-vação de espécies altamente ameaçadas para que possam retornar ao ambiente delas quando os requisitos para tal tiverem sido cumpridos.

Sucesso na recuperaçãoHá vários exemplos de programas de recu-

peração que assumiram papel fundamental no salvamento de espécies. Populações inteiras

foram retiradas da Natureza e mantidas em cati-veiro. Nessas condições, foi possível reproduzi--las em quantidade suficiente para ser feita a reintrodução em seus hábitats.

Para ficar só nas aves, podemos citar os casos do Condor-da-Califórnia (Gymnogyps ca-lifornianus), em que todos os indivíduos foram retirados da Natureza e mantidos em zoológicos e com criadores, e do Nene (Branta sandvicen-sis), endêmico do Havaí, que, depois de chegar à beira da extinção (sobravam apenas 30 aves em 1952), hoje pode ser comprado em qual-quer bom pet shop, mesmo no Brasil.

Criadores: aliadosEntre as 160 aves consideradas oficialmen-

te ameaçadas de extinção no Brasil, muitas só poderão ser salvas se um programa de criação em cativeiro for implementado, visando à repro-dução em massa e à posterior reintrodução.

Exemplos desses casos são o Bicudo (Spo-rophila maximiliani), a Ararinha-Azul (Cyanopsit-ta spixii) e o Mutum-de-Alagoas (Pauxi mitu), sendo que os dois últimos estão extintos no am-biente natural - só há sobreviventes em cativeiro.

Em casos como esses, a criação em cati-veiro é a única esperança. Foram os criadores, e não os zoológicos, que tiveram papel fun-damental no salvamento das aves brasileiras citadas, cada qual especializado em apenas algumas espécies. São eles que, em qualquer das categorias que se enquadrem, têm ofe-recido mais condições de estrutura e de re-cursos financeiros, tornando-se aliados indis-sociáveis da conservação. Além de manter as espécies ameaçadas, desenvolveram técnicas para a sua reprodução e geraram excedentes que podem ser utilizados em programas de reintrodução.

Outro bom exemplo é o da brasileiríssima Ararajuba (Guaruba guarouba), encontrada hoje à venda em pet shops e salva da extinção em cativeiro, embora sua situação na Natureza ainda inspire cuidados. É um excelente caso em que os criadores comerciais, com possibilidade

de revender filhotes, contribuíram para salvar da extinção uma espécie ameaçada e encontrada somente no Brasil.

Combate à ação predatóriaConcomitantemente à criação em cativeiro,

com domínio do manejo e da reprodução, de pre-ferência em escala tal que o plantel aumente de forma exponencial, o salvamento passa pela vis-toria dos locais onde a espécie ocorria na Natu-reza. É preciso zelar pelo estado de conservação desses locais, pela sua proteção e, principalmen-te, pela neutralização dos fatores responsáveis pelo estado crítico da espécie a ser introduzida.

Nunca é tarde para lembrar que de nada adianta dispor de centenas de aves em cativei-ro, com toda a variabilidade genética possível, e ter encontrado áreas para a reintrodução, se não foram neutralizadas as causas da extinção local, sejam elas caçadores, traficantes ou de-gradação ambiental. E, claro, o investimento deve ser feito, em boa parte, no monitoramento pós-soltura das aves, para que a reintrodução atinja seus objetivos.

O caminho para o salvamento de uma es-pécie é longo e, frequentemente, muito caro. Envolve diferentes pessoas e instituições em projetos que podem durar décadas. Muito mais barato e efetivo é a criação de unidades de con-servação que realmente façam jus ao nome, em conjunto com a proteção das aves contra caça-dores e traficantes.

Essa proteção deve ser feita primariamente nas áreas de captura das aves, muito bem conhe-cidas por nossos agentes ambientais, embora a grande parte das apreensões ocorra só quando as aves chegam aos grandes centros e mui-to pouco pode ser feito, resultando em taxa de mortalidade altíssima nos centros de triagem de animais silvestres custeados pelo Estado.

Bicudo, Mutum-de-Alagoas e Ararinha-Azul: a salvação poderá vir com a ajuda dos criadores

Ararajuba: criadouros a salvaram da extinção e é até encontrada à venda em pet shops

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