n. georgescu-roegen - energia e mitos econômicos (1975)

Upload: guilmoura

Post on 30-Oct-2015

57 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

  • 7Economia-Ensaios, Uberlndia, 19(2): 7-51, jul./2005

    Energia e Mitos Econmicos*

    Georgescu-Roegen, Nicholas

    Agora, todos podem voltar para casa e dormir tranqilamente, con-vencidos de que consoante a sbria e ponderada opinio do ltimocatedrtico da segunda mais antiga das Cadeiras de Economia Polticadeste pas embora a vida na Terra esteja muito longe da perfeio,inexiste motivo para supor que o contnuo crescimento econmicopossa torn-la pior.

    Wilfredo Beckerman

    I - Introduo

    H uma aprecivel dose de verdade na observao de Percy Bridgman, quandoassevera que a profisso do economista a mais oportunista de todas. Com efeito,a ateno dos economistas desviou-se continuadamente de um problema para outro,embora esses problemas como aconteceu com freqncia deixassem de estarrelacionados. Revendo, por exemplo, os artigos publicados em revistas editadas nomundo de fala inglesa, divulgados antes de 1950, dificilmente se encontrar qualqueraluso a desenvolvimento econmico. Por isso mesmo, curioso que os economistasse hajam teimosamente apegado, nos ltimos cem anos, a uma orientao especfi-ca, a saber a da epistemologia mecanicista, que dominou as idias dos fundadores

    * O presente artigo encerra, em suma, o que foi dito em uma conferncia pronunciada no dia 8 de novem-bro de 1972, na School of Forestry and Enviromental Studies, da Yale University parte da srie de pales-tras subordinadas ao ttulo Os limites do crescimento: o estado de equilbrio e a sociedade humana.Essa conferncia foi repetida, posteriormente, em diversos outros locais. Dela se preparou, em julho de1973, uma verso que seria includa em livro planejado para divulgar aquele ciclo de palestras. Essaverso foi distribuda, na condio de documento de trabalho, aos membros da Comission on NaturalResources e do Committee on Mineral Resources and the Environment (National Research Council). A pre-sente verso difere da anterior por conter alguns adendos recentes.

    N.E. Traduzido, por Leonidas Hegenberg e Octanny Silveira da Motta, do original, Energy and EconomicMyths, Southern Economic Journal 41 (January 1975), pp. 347-81 Reprinted by courtesy of the SouthernEconomic Association and the University of North Carolina. Publicado em portugus como captulo seis deAlguns Problemas de Orientao em Economia, Edies Multiplic I (Agosto 1981): 337-89, editado porAntonio Maria da Silveira e por ele agora revisto em homenagem Turma do Milnio, julho de 2001, doCurso de Cincias Econmicas do Instituto de Economia da Universidade Federal de Uberlndia.

  • 8 Nicholas Georgescu-Roegen - Energia e mitos econmicos

    da Escola Neoclssica. Segundo os prprios pioneiros admitem e orgulhosamenteproclamam a sua maior ambio era a de construir uma cincia econmica nosmoldes da mecnica ou (nas palavras de W. Stanley Jevons) uma cincia econmicavista como a mecnica da utilidade e do auto-interesse [48, 23]. Esses fundadores,como, de resto, quase todos os filsofos e estudiosos da primeira metade do sculodezenove, estavam fascinados pelos espetaculares xitos daquela cincia no campoda astronomia, aceitando a famosa divinizao que Laplace fazia da mecnica [53,4], vista como o evangelho do mais alto saber cientfico. Os pioneiros da EscolaNeoclssica podem, pois, ver perdoados os seus exageros, dadas as condies emque suas idias germinaram. As circunstncias atenuantes, todavia, no se estendemaos economistas de tempos subsequentes, cujas teses surgiram muito depois de odogma mecanicista ver-se banido at mesmo da fsica [23, 69-122; 5].

    Os economistas de pocas recentes, deixando de dar ao problema a devidaateno, mostraram-se aparentemente satisfeitos com a idia de desenvolver a suadisciplina ao longo das trilhas mecanicistas estabelecidas pelos seus predecessores,combatendo sem trguas quaisquer sugestes no sentido de que a economia poderiaser concebida de outra forma que no como a cincia irm da mecnica. O encantode tal posio bvio. No esprito de quase todos os economistas que defendem asteorias comuns est a lembrana do extraordinrio feito de Urbain Leverrier e JohnCouch Adams que descobriram o planeta Netuno sem investigar o firmamento,mas na ponta do lpis, correndo sobre o papel. Sonho maravilhoso: estar em con-dies de prever, usando apenas as operaes de lpis-e-papel, onde, no cu daBolsa de Valores, h de situar-se uma particular ao no dia de amanh ou melhorainda, no ano vindouro!

    Em decorrncia dessa indiscriminada adeso ao dogma do mecanicismo,explcita ou tacitamente acolhido, o processo econmico passa a ser encarado emtermos analgicos e entendido o que, alis, acontece com todos os anlogosmecnicos como algo que consiste de um princpio de conservao (transformao)e de uma regra de maximizao. A prpria cincia da economia se reduz, dessa ma-neira, a uma cinemtica atemporal. Esse enfoque permitiu a proliferao de exercciosde lpis-e-papel, conduzindo a modelos economtricos de crescente complexidade que muitas vezes s se prestam para ocultar as questes econmicas fundamentais.Tudo, agora, se transforma em simples movimento pendular. Um ciclo econmicosucede a outro. O ponto de apoio da teoria do equilbrio se resume nisto: se oseventos alteram as propenses de demanda e de oferta, o mundo econmico sempreretorna s condies anteriores no momento em que tais eventos se esvaecem.Uma inflao, uma estiagem catastrfica ou uma crise da Bolsa de Valores nodeixam qualquer marca na economia. Tal como acontece na mecnica, a regra geral a da completa reversibilidade.1

    Nada ilustra melhor a epistemologia bsica da economia comum do que ocostumeiro grfico (presente em quase todos os manuais elementares) utilizadopara retratar o processo econmico, visto como fluxo circular, que se auto-preserva,

    1 Alguns economistas tm insistido em que, ao contrrio, a irreversibilidade caracteriza o mundo econ-mico [p. ex., 60, 461, 808; e 25]. A idia, porm, ainda no refutada, foi simplesmente arquivada. Parecev a tentativa de alguns, tentando afirmar, agora, que a anlise padronizada do equilbrio sempre teveem conta as realimentaes negativas [4, 334]. As nicas realimentaes, na teoria comum, so as res-ponsveis pela manuteno do equilbrio no as responsveis por alteraes evolucionrias.

  • 9Economia-Ensaios, Uberlndia, 19(2): 7-51, jul./2005

    entre a produo e o consumo.2 Todavia, nem mesmo o dinheiro circula nessevai-e-vem, no seio do processo econmico, pois moedas e papel se gastam, tornando-se necessria a sua substituio, a partir de fontes externas [31]. Eis o ponto rele-vante: o processo econmico no um processo que se auto-preserva. O processono tem seguimento sem continuadas trocas que alteram, cumulativamente, o meioe sem que ele prprio, por seu turno, deixe de sofrer a influncia de tais alteraes.Economistas clssicos e Malthus, em particular ressaltaram a relevncia econmicadesse fato. Todavia, os economistas que acolheram as teorias comuns e as teoriasmarxistas desejam ignorar por completo o problema dos recursos naturais; ignoram-no to acentuadamente que um famoso e verstil economista chegou a confessar,recentemente, haver decidido que precisava verificar o que a teoria econmicatem a dizer acerca daquele problema [75, 1 e s.].

    Uma idia bsica dominou a orientao das duas citadas escolas. A. C. Pigouformulou-a de maneira explcita: Em um estado estacionrio, os fatores de produoso estoques, em quantidade invarivel, de que brota um contnuo fluxo de rendareal, igualmente invarivel, no que concerne quantidade [68, 19]. A mesma idia ou seja, a de que um fluxo contnuo pode ser decorrncia de uma estruturaimutvel est nos alicerces do diagrama da reproduo simples, devido a Marx[61, II, cap. XX]. Com o seu diagrama da reproduo ampliada [61, II, cap. XXI],Marx antecipa, em verdade, os modelos modernos (entre os quais, digamos, o deW. W. Leontief, a eliminar os fundamentos da profisso), que ignoram o problemada fonte primria do fluxo, at mesmo no caso de uma economia em crescimento.A nica diferena esta: Marx dizia, de modo explcito, que a natureza tudo nos d,gratuitamente, ao passo que os economistas da escola comum aceitavam essa tesede maneira tcita. As duas escolas de pensamento acolhiam, pois, a idia de Pigou de um estado estacionrio em que um fluxo material emerge de fonte invarivel.H, nessa idia, o embrio de um mito econmico um mito que, v-lo-emos naseo VIII, hoje pregado por muitos ecologistas e por alguns economistas. O mito o de que em um mundo estacionrio, uma populao de crescimento-zero acabarpondo fim no conflito ecolgico da humanidade. Os homens no mais precisampreocupar-se com a escassez ou com a poluio, pois surgir um miraculoso programacapaz de trazer a Nova Jerusalm terrena vida humana.

    Os mitos sempre ocuparam um posto de relevo na vida dos homens. Agir emconsonncia com um mito , por certo, caracterstica marcante, a distinguir o homemdos demais seres vivos. Vrios mitos permitem entrever a maior loucura do homem:a sua obsesso interior em crer que ele est acima de tudo, neste mundo real, e deque suas capacidades no tm limites. No Gnesis se proclama que o homem foifeito imagem de Deus. Houve poca em que o homem sustentou girar todo ouniverso em volta de sua pequena moradia; e houve tempo em que sustentou estarapenas o Sol a girar em torno da Terra. Os homens acreditaram poder movimentaras coisas sem dispndio de energia o mito do movimento perptuo de primeiraespcie, que , por certo, um mito essencialmente econmico. O mito do movimentoperptuo de segunda espcie o de que podemos empregar, repetidamente, amesma energia ainda vive conosco, sob veladas formas.

    2 Exemplo muito significativo acha-se em G. L. Bach, Economics, 2a. ed., Englewood Cliffs, N. J., Prentice-Hall, 1957, p. 60; em A. Samuelson, Economics, 8a. ed., Nova York, McGraw-Hill, 1970, p. 72; e em RobertHeilbroner, The Economic Problem, 3a. ed., Englewood Cliffs, N.J., Prentice-Hall, 1972, p. 177.

  • 10 Nicholas Georgescu-Roegen - Energia e mitos econmicos

    Outro mito econmico de que o homem sempre estar em condies deencontrar novas fontes de energia e de inventar novas maneiras de domin-las,para seu benefcio vem sendo apregoado por vrios cientistas, mas particularmentepor economistas das duas correntes lembradas, isto , marxistas e adeptos da teo-ria comum (ver seo VI). Haja o que houver, ns [sempre] encontraremos umasada [4, 338]. Eis a idia dominante: embora o indivduo seja mortal, pelo menosa espcie imortal. Aparentemente, no h dignidade em aceitar o veredicto deuma autoridade em biologia como J. B. S. Haldane, para quem o destino mais certoda humanidade o mesmo destino de todas as demais espcies a extino.Apenas ignoramos quando e como ocorrer o aniquilamento da espcie. Esse desa-parecimento poder dar-se mais cedo do que os otimistas admitem ou muito maistarde do que os pessimistas temem. As conseqncias da acumulao da deterioraoambiental podem provocar a extino; mas esta tambm pode sobrevir em decorrn-cia da ao de algum vrus ou de algum mutante do gene da infertilidade.

    A verdade que pouco sabemos a respeito das razes que conduziram, nopassado, ao desaparecimento de algumas espcies e pouco sabemos a respeito dascausas que parecem provocar, na atualidade, diante de nossos olhos, a extino deoutras. Se estamos em condies de prever, aproximadamente, quanto tempo umco poder viver e o que, provavelmente, provocar o seu passamento, isso sedeve apenas ao fato de termos tido repetidas ocasies de observar que a vida dosces, do nascimento at a morte. A dificuldade do biologista a de que jamais pdeobservar outra espcie humana, contemplando nascimento, envelhecimento e ex-tino [29, 91; 32, 208-210]. Entretanto, uma espcie atinge o final de sua existnciapor um processo que se assemelha ao do envelhecimento de qualquer organismoindividual. Embora o envelhecimento ainda esteja cercado por mistrios [32, 205],sabemos que as causas determinantes do desaparecimento de uma espcie atuamvagarosamente, mas persistente e cumulativamente, desde o primeiro dia de suavida. O ponto a enfatizar: envelhecemos a cada minuto, ou antes, a cada instante,embora no sejamos capazes de perceber as diferenas que se manifestam de umpara o outro desses instantes.

    No tem o menor cabimento afirmar como alguns economistas afirmam,implicitamente que a humanidade, por no ter enfrentado quaisquer dificuldadesecolgicas desde o tempo de Pricles, jamais enfrentar essas dificuldades [seoVI]. Mantendo-nos alertas, porm, estaremos aptos, com o passar do tempo, aidentificar sintomas suficientemente claros que nos permitam formular idias geraisa propsito das provveis causas do envelhecimento e, talvez, da morte. verdadeque as necessidades do homem (e os tipos de recursos exigidos para a sua satisfao)tm muito maior grau de complexidade do que as necessidades (e correspondentesrecursos) de indivduos de quaisquer outras espcies. Em compensao, nosso conhe-cimento de tais fatores e de suas interligaes, naturalmente, muito mais amplo.Em resumo: uma anlise, ainda que superficial, dos aspectos da vida humana quedizem respeito energia ser capaz de ajudar-nos a traar um quadro geral dosproblemas ecolgicos e a atingir algumas poucas, mas relevantes concluses. Isso e nada mais foi o que procurei registrar no presente comentrio.

  • 11Economia-Ensaios, Uberlndia, 19(2): 7-51, jul./2005

    II Mecnica versus Termodinmica

    Nenhuma anlise de certo processo material, seja nas cincias naturais, sejana economia, tem possibilidade de mostrar-se judiciosa na ausncia de claro eamplo retrato analtico desse processo. Esse retrato precisa incluir, antes de maisnada, a fronteira (elemento vazio e abstrato, capaz de separar o processo do seuambiente) e a durao do processo. Descreve-se, em seguida, analiticamente,aquilo de que o processo necessita e aquilo que faz, utilizando completa programaotemporal de todos os inputs e outputs ou seja, indicando os instantes exatos emque os elementos em tela cruzam a fronteira, de fora para dentro ou de dentro parafora. Todavia, dependem, de modo especfico, dos propsitos do estudioso e, demodo genrico, da cincia considerada, a fixao da abstrata fronteira, a determinaoda durao e a escolha do espectro qualitativo que ser utilizado para efetuar aclassificao dos elementos do processo.3

    A mecnica vale-se to-somente da massa, da velocidade e da posio, intro-duzindo, a partir desses elementos, os conceitos de energia potencial e de energiacintica. Resulta que a mecnica reduz qualquer processo locomoo e variaonas distribuies de energia. A constncia da energia mecnica total (cintica maispotencial) e a constncia da massa figuram entre os mais antigos princpios de con-servao acolhidos pela cincia. Alguns economistas meticulosos, como, digamos,Marshall [60, 63], observaram, de fato, que o homem no cria matria nem energia.Assim procedendo, contudo, s levaram em conta, aparentemente, os princpiosmecnicos de conservao pois insistiram em acrescentar, de imediato, que o ho-mem est em condies de produzir utilidades movimentando e reagrupando a ma-tria. Esse modo de ver despreza uma questo fundamental: de que modo poderiao homem efetuar a movimentao? Quem permanece no domnio dos fenmenosmecnicos deve admitir que cada poro de matria e cada poro de energia me-cnica, entrando em um processo, dele devem sair em pores exatamente iguais,quantitativa e qualitativamente. A locomoo no pode alterar quantidade e qualidade.

    Equiparar o processo econmico a um anlogo mecnico implica, pois, em ummito o mito de que o processo econmico um carrossel, um processo circular queno est em condies de afetar, seja como for, o ambiente de matria e ener-gia emque se acha imerso. A concluso bvia foi a de que se tornava desnecessrio consideraro ambiente ao traar o quadro analtico do processo.4 A velha tese de Sir Willian Petty o sagaz investigador das aes humanas que insistia ter a riqueza o trabalho porpai e a natureza por me foi, h muito, relegada ao status de pea de museu [29,96; 31, 280]. Nem mesmo a acumulao de provas claras, atestando o papel prepon-derante dos recursos naturais na histria da humanidade, chegou a impressionar oseconomistas da escola comum. Recordemos, por exemplo, a Grande Migrao, noprimeiro milnio, que foi a reao final exausto do solo da sia Cen-tral, provocadapor longo perodo de persistente pastagem. Civilizaes notveis (a dos Maias apenas um exemplo) desapareceram do cenrio da histria porque seus elementos

    3 Discusso pormenorizada da representao analtica de um processo acha-se em Georgescu-Roegen [32,cap. ix].4 Se terra aparece como varivel, em algumas funes como de produo, representa terra ricardiana,isto , mero espao. No dar ateno real natureza do processo econmico o que torna inadequada,por outros prismas, igualmente relevantes, a funo comum de produo. Ver, a propsito, Georgescu-Roegen [27; 30; 33].

  • 12 Nicholas Georgescu-Roegen - Energia e mitos econmicos

    no tinham condies de migrar ou de combater, usando adequados procedimentostcnicos, a deteriorao do ambiente em que viviam. Acima de tudo, entretanto, esto fato irretorquvel de que todas as lutas entre as Grandes Potncias no se travaramem virtude de fteis motivos ideolgicos ou de prestgio, mas em decorrncia dodesejo de controlar os recursos naturais. O que, alis, ainda hoje se constata.

    Uma vez que a mecnica no admite alteraes qualitativas, reconhecendoapenas a alterao de lugar, qualquer processo mecnico pode ser invertido exatamen-te como acontece, por exemplo, no caso do pndulo. Nenhuma lei da mecnica estariaviolada se a Terra tivesse sido posta em movimento descrevendo sua rbita em senti-do contrrio. Um espectador, contemplando um filme em que se registra o movimentomecnico de um pndulo, no dispe de qualquer meio para saber se o filme estsendo projetado no sentido em que as tomadas foram feitas ou no sentido oposto. Osfenmenos reais, porm, no acompanham, em todos os seus aspectos, a historietados famosos vizinhos de Mame Gansa, em que o bravo Duque de York mantinhasuas tropas em marcha, colina acima e colina abaixo, evitando a batalha. Fenmenosreais movimentam-se em um sentido definido e envolvem alteraes qualitativas.Essa a lio que nos deixou a termodinmica, um ramo peculiar da fsica topeculiar, alis, que os puristas preferem destac-lo da fsica, dada a sua tessituraantropomrfica. Ainda que seja difcil imaginar como a tessitura bsica de qualquercincia poderia deixar de ser antropomrfica, o caso da termodinmica singular.

    A termodinmica nasceu de um trabalho escrito pelo engenheiro francsNicolas Sadi Carnot, em que estudava a eficincia das mquinas a vapor (1824).Entre os fatos que o artigo de Carnot trouxe baila estava o de que o homem stem condies de utilizar uma forma particular de energia. A energia foi dividida,ento, em disponvel, ou livre, que se pode transformar em trabalho e no-dis-ponvel, ou ligada que no se transforma em trabalho.5 A diviso, nesses moldes,reflete uma distino antropomrfica distino que no encontra paralelo na cincia.

    A distino est intimamente associada ao conceito de entropia, conceitoespecfico da termodinmica. Esse conceito envolve tantas complexidades que umespecialista chegou a afirmar no ser ele facilmente entendido nem mesmo pelosfsicos [40, 37].6 Todavia, para os nossos propsitos imediatos podemos contentar-nos com uma caracterizao simples: a entropia indicador da quantidade de energiano-disponvel existente em um dado sistema termodinmico, num particular instantede sua evoluo.

    A energia, independentemente de sua qualidade,7 est sujeita a uma lei estri-ta de conservao, a Primeira Lei da Termodinmica formalmente idntica ao princpio

    5 A definio de energia disponvel (ou no-disponvel) no coincide com a definio de energia livre (ouligada). Todavia, a diferena pode ser ignorada, na presente discusso.6 Essa afirmao justificada pela discusso da Lei da Entropia, tal como em [44, 17]. A prpria noousual de calor levanta algumas questes delicadas, provocando enganos, cometidos at mesmo por fsi-cos. Ver Journal of Economic Literature, X (Dezembro, 1972), p. 1.268.7 Notemos que at mesmo a noo de energia no se condensa em uma definio formal simples. A noohabitual de que energia a capacidade de um sistema produzir trabalho conflita com a definio deenergia no-disponvel. preciso, ento, explicar que qualquer energia pode, em tese, transformar-seem trabalho desde que o correspondente sistema se ponha em contato com outro, cuja temperaturaesteja no zero absoluto. A explicao, porm, s tem valor de mera extrapolao, j que, segundo aTerceira-Lei da Termodinmica, o zero absoluto temperatura jamais alcanada.

  • 13Economia-Ensaios, Uberlndia, 19(2): 7-51, jul./2005

    de conservao da energia mecnica, j mencionado acima. Recordando que trabalho uma das mltiplas formas de energia, a lei expe o mito do movimento perptuo deprimeira espcie. No leva em conta, porm, a distino entre energia disponvel eenergia no-disponvel; por si mesma, a lei no impede a possibilidade de que umaquantidade de trabalho se veja transformada em calor e que esse calor volte a con-verter-se na quantidade original de trabalho. A Primeira Lei da Termodinmica abremargem, pois, para que qualquer processo se desenvolva num sentido e no sentidooposto, para frente e para trs, de modo que tudo volte a ser o que era de incio, semque o acontecimento deixe indcios das transformaes ocorridas. Dispondo apenasdessa Primeira Lei, ainda nos movemos no mbito da mecnica e no no mbito dosfenmenos reais em que, por certo, ho de situar-se os processos econmicos.

    A irreduzvel oposio entre mecnica e termodinmica deriva da SegundaLei, ou seja, da lei da Entropia. A mais antiga de suas formulaes , ainda, a maisinteligvel, para os leigos: O calor s flui do corpo mais quente para o mais frio nunca do mais frio para o mais quente. Formulao equivalente, embora mais com-plexa, afirmaria que a entropia de um sistema fechado cresce continuadamente (eirrevocavelmente), tendendo para um mximo; dito de outro modo, a energia dispo-nvel se transforma, continuadamente, em energia no-disponvel, at desaparecerpor completo.8

    Em suas linhas genricas, a histria relativamente simples: todos os tiposde energia se transformam, gradualmente, em calor e este se dissipa de tal modoque, afinal, o homem no est em condies de utiliz-lo. Em verdade ponto queo prprio Carnot j havia frisado a mquina a vapor no produz trabalho se acaldeira e o radiador se mantm com a mesma temperatura, por mais elevada queseja.9 Para tornar-se disponvel, a energia precisa estar distribuda de modo nouniforme; a energia completamente dissipada no est mais disponvel. Exemploclssico o do imenso calor dissipado nas guas dos mares, que nenhum naviopode utilizar. Embora as embarcaes naveguem sobre o mar, elas necessitam deenergia disponvel, a energia cintica reunida no vento ou a energia energia qumicae nuclear, concentrada em algum tipo de combustvel. Percebe-se porque a entropiapassou a ser encarada como um indicador de desordem (de dissipao), no s daenergia, mas da matria; e porque a Lei da Entropia, em sua formulao atual, as-severa que tambm a matria est sujeita a uma irrevocvel dissipao. Conseqente-mente, o destino ltimo do universo no a Morte pelo Calor, como se acreditava,mas algo ainda mais sombrio: o Caos. No h dvida de que esse pensamento no intelectualmente satisfatrio.10 O que nos importa, contudo, isto: de acordo com

    8 Um sistema se diz fechado quando no troca energia ou matria com o seu ambiente. Em tal sistema,naturalmente, a quantidade de energia-matria permanece constante. Todavia, a constncia dessa quan-tidade no assegura, por si s, o aumento da entropia. Se h trocas, a entropia pode at diminuir.9 No correta, portanto, a idia de Holdren [44, 17], segundo a qual a temperatura mediria a utilidadedo calor. O mximo que se poderia afirmar que a diferena de temperaturas nos d um ndice aproxima-do da utilidade do calor maior.10 Uma alternativa, com apoio na termodinmica estatstica (seo VI), a de que a entropia pode diminuirem certas partes do universo, de modo que este envelhece e, ao mesmo tempo, rejuvenesce. No h, porm,evidncia digna de nota para sustentar essa possibilidade. Outra hiptese, apresentada por um grupo deastrnomos ingleses, seria a de que o universo um estado de equilbrio permanente, onde as galxiasindividuais nascem e perecem continuamente. Os fatos, contudo, tambm no se ajustam a esta hiptese. Aquesto da verdadeira natureza do universo est longe de ter encontrado soluo [32, 201 e ss, 210].

  • 14 Nicholas Georgescu-Roegen - Energia e mitos econmicos

    a evidncia, a nossa vizinhana imediata, o sistema solar, caminha para o perecimentotermodinmico11 pelo menos no que diz respeito s estruturas portadoras de vida.

    III A Lei da Entropia e a Economia

    Nenhuma outra lei ocupa, talvez, posio to singular, na cincia, quanto aLei da Entropia. Trata-se da nica lei natural a reconhecer que at o universo materialest sujeito a uma alterao qualitativa irreversvel, ou seja, a um processo evolu-cionrio.12 Esse fato levou alguns cientistas e filsofos, preocupados com a cincianatural, a perceber que existe certa afinidade entre essa lei e os fenmenos vitais.Atualmente, poucos negariam que a economia de qualquer processo vital est gover-nada no por leis da mecnica, mas pela Lei da Entropia [32, xiii, 191-194]. Esseponto, como agora veremos, pe-se claro no caso do processo econmico.

    Notando que vrios cientistas invadem os terrenos da economia embora poucosaibam da matria, os economistas sustentaram, ocasionalmente, que tambm lhesseria lcito falar da cincia, a despeito de sua ignorncia em tais domnios [4, 328 es.]. O pensamento reflete um erro que, infelizmente, muito comum entre economis-tas. Seja qual for a percia que outros cientistas revelem, em seus conhecimentoseconmicos, cumpre notar que os economistas no podero atuar adequadamenteem seus prprios campos se no dispuserem de slida compreenso da Lei da En-tropia e de suas conseqncias.13 De acordo com o que afirmei h alguns anos, atermodinmica tal como Carnot, inadvertidamente, a colocou , fundamentalmen-te, uma fsica do valor econmico; e a Lei da Entropia, por natureza, , de todas asleis naturais, a que apresenta maior carter econmico [29, 92-94; 32, 276-283].

    O processo econmico, assim como qualquer outro processo vital, irreversvel(e irrevocavelmente irreversvel). Por conseguinte, no passvel de ver-se explana-do em termos exclusivamente mecnicos. Atravs da lei da Entropia, a termodinmica,precisamente, que reconhece a distino qualitativa cuja presena deveria ter sidoasseverada, desde o incio, pelos economistas entre os inputs de recursos valiosos(baixa entropia) e os outputs finais de resduos sem valor (alta entropia). O paradoxoque o pensamento coloca o de que os processos econmicos se limitam a transfor-mar a matria valiosa e a energia valiosa em resduos, ou detritos um paradoxoque se resolve de modo simples e esclarecedor. Compele-nos a reconhecer que ooutput real do processo econmico (ou, na verdade, de qualquer processo vital) no o fluxo material de resduos, mas um ainda misterioso fluxo imaterial de prazer deviver.14 Sem compreender esse fato, no estamos no mbito dos fenmenos vitais.

    11 A fim de evitar algum erro, cabe enfatizar o seguinte ponto: reverso dessa tendncia mostrar-se-iaigualmente perigosa para a preservao da vida na Terra.12 Rudolf Clausius criou a palavra entropia a partir de uma palavra grega que significa transformao,ou evoluo. Ver [32, 130].13 Como veremos adiante, alguns interessantes exemplos so dados por Harry G. Johnson [49] e, demaneira categrica e pouco cerimoniosa, por Robert A. Solow [73]. Quanto a Robert M. Solow, que sehavia recusado, anteriormente, a afastar-se um milmetro da posio comum [74], ele achou oportuno,recentemente, admitir que a economia e a lei da entropia so necessrias para focalizar o problemados recursos [75, 11]. Em ltima anlise, no entanto, Solow continuou preso ao antigo credo.14 Parece intil, portanto, indagar, como o fez Boulding [8, 10], se bem-estar um fluxo ou um estoque.

  • 15Economia-Ensaios, Uberlndia, 19(2): 7-51, jul./2005

    As atuais leis da fsica e da qumica no explicam, inteiramente, a vida.Entretanto, no tem lugar na cincia a idia de que a vida poderia violar algumasleis naturais. Ainda assim, como j se observou h muito e mais recentemente, naadmirvel exposio de Erwin Schrdinger [71, 69-72] a vida parece escapar degradao entrpica a que se submete a matria inerte. Em verdade, qualquerorganismo vivo luta, simplesmente, a cada instante, para compensar a sua prpriadegradao entrpica absorvendo baixa entropia (negentropia) e eliminando altaentropia. A Lei da Entropia, como claro, no impede a manifestao desse fenmeno,pois requer, apenas, que a entropia de todo o sistema (o ambiente e o organismo)seja crescente. Tudo est em ordem se a entropia do ambiente aumenta, compensan-do a diminuio da entropia do organismo.

    Igualmente importante o fato de a Lei da Entropia ser a nica lei naturalque no faz previses quantitativas. Deixa de especificar quo grande h de ser,num instante futuro, o aumento da entropia e qual h de ser o padro entrpicoresultante. Em vista desse fato, h uma indeterminao entrpica no mundo real,abrindo margem no apenas para que a vida adquira incontveis formas, mas ainda,para que a maior parte das aes dos organismos vivos disponham de certo grau deliberdade [32, 12]. Sem essa liberdade, no teramos como escolher entre carne oufeijo, entre comer agora ou mais tarde; e no poderamos tentar implementar (emquaisquer nveis) planos econmicos de nossa prpria escolha.

    Em vista desta indeterminao, a vida adquire relevo no processo entrpico.No se trata de vitalismo de cunho mstico; trata-se de uma questo de fatos elemen-tares. Alguns organismos retardam a degradao entrpica. Plantas verdes arma-zenam parte da radiao solar que se dissiparia, de imediato, transformada emcalor, em alta entropia, se faltassem aquelas plantas. Essa a razo pela qualestamos em condies, hoje, de queimar a energia solar resguardada da degradao,h milhes de anos, na forma de carvo, ou h alguns anos, na forma de uma r-vore. Todos os demais organismos, ao contrrio, aceleram a marcha da entropia. Ohomem ocupa o mais elevado posto, numa escala de acelerao da entropia eesse o ponto que se debate, ao discutir questes relativas ao ambiente.

    De importncia, para o estudioso de economia, o fato de que a Lei daEntropia se transforma no cerne da escassez econmica. Se essa lei no vigisse,poder-se-ia utilizar, repetidas vezes, a energia de um pedao de carvo transfor-mando-a em calor, transformando esse calor em trabalho e, de novo, o trabalho emcalor. Da mesma forma, as mquinas, as casas e at os organismos vivos (se pudes-sem existir) jamais se desgastariam. Inexistiria diferena econmica entre bensmateriais e terras ricardianas. Em um mundo imaginrio desse gnero, inteiramentemecnico, no haveria escassez de energia e de materiais. Uma populao togrande quanto a permitida pelo espao existente em nosso globo estaria em condiesde a viver eternamente. Um aumento na renda real per capita seria suportada, emparte, por maior velocidade de uso (tal qual se d no caso da circulao da moeda)e, em parte, por minerao renovada. No haveria, porm, motivos para que confli-tos reais se manifestassem, intra-espcies ou entre as espcies.

    Os economistas tm afirmado que no h refeio gratuita, insistindo, assim,que o preo de qualquer coisa deve ser igual ao seu custo. Se assim no fosse, po-deramos ganhar algo em troca de nada. Acreditar, no entanto, que essa igualdadetambm se manifesta em termos de entropia um dos mais perigosos mitos econmi-cos. No contexto da entropia, cada ao, do homem ou de qualquer organismo e,

  • 16 Nicholas Georgescu-Roegen - Energia e mitos econmicos

    em verdade, qualquer processo da natureza redunda em dficit do sistema global.No s a entropia do ambiente aumenta um pouco, sempre que se coloca um litro degasolina no tanque do carro, mas, a par disso, uma parte significativa da energia livrecontida naquela poro de combustvel deixa de mover o automvel, contribuindo,diretamente, para que haja novo aumento da entropia. Enquanto existem recursosabundantes, de fcil acesso, no precisamos, na realidade, nos importar com a magni-tude dessa perda adicional. Quando produzimos uma barra de cobre, a partir de umpedao de minrio, diminuimos a entropia (a desordem) do minrio, mas custa deum muito maior aumentado da entropia do resto do universo. Inexistisse um taldficit entrpico, seria vivel transformar trabalho em calor e, invertendo o processo,recuperar toda a quantidade inicial de trabalho exatamente como no mundo imagin-rio de que falvamos no pargrafo anterior. Em um mundo desse tipo, justamentepor no valer a lei da Entropia, a economia comum poderia reinar suprema.

    IV Energia Acessvel e Matria Acessvel

    Como vimos, a distino entre energia disponvel e no-disponvel (que gene-ralizada, nos d a distino entre entropia alta e baixa) foi introduzida com o propsitode fazer com que a termodinmica levasse em conta o fato de o homem s estar emcondies de utilizar um particular estado de energia. A distino, no entanto, noestabelece que o homem possa, realmente, utilizar qualquer energia disponvel,independente do local e da forma em que se encontre. A fim de que a energia dis-ponvel tenha algum valor para a humanidade, ela tambm deve ser acessvel. Aenergia solar e seus sub-produtos so acessveis, praticamente sem esforo e semque haja consumo adicional de energia disponvel. Em todos os demais casos, porm, preciso realizar um trabalho e utilizar materiais, se pretendemos ter mo certareserva de energia disponvel. Eis o ponto a destacar: embora possamos chegar aMarte e ali encontrar alguns depsitos de gs, a energia disponvel correspondenteno nos ser acessvel se, para trazer at ns um metro cbico de gs daquele pla-neta, for preciso empregar energia que supere a de um metro cbico de gs acess-vel na Terra. Existem, por certo, vrios lenis de onde se tornaria vivel extrairuma tonelada de leo, utilizando, porm, mais de uma tonelada de leo. O leodesse lenol ainda representaria energia disponvel mas no-acessvel. Tem-serepetido, ad nauseam, que as reservas reais de combustvel fssil so, sem dvida,maiores do que o conhecido ou o previsto [p. ex., 58, 331]. Mas igualmente certoque uma parte substancial das reservas reais no constitui energia acessvel.

    A citada distino diz respeito eficincia em termos de energia, mas noem termos de economia. A eficincia econmica implica em eficincia energtica,mas a recproca no verdadeira. O uso de gs, por exemplo, mais eficaz, peloprisma da energia, do que o emprego da eletricidade; entretanto, a eletricidade ,de fato, mais barata em vrias situaes [79, 152]. Analogamente, embora possamosfabricar o gs a partir do carvo, menos dispendioso obt-lo em depsitos naturais.Caso as fontes naturais de gs venham a desaparecer antes de se extinguirem asfontes de carvo, passaremos, naturalmente, a valer-nos do mtodo que hoje seconsidera economicamente ineficaz. A mesma idia deve estar em nosso esprito aodiscutirmos o futuro dos empregos diretos da radiao solar.

    Os economistas, contudo, insistem em que os recursos so medidos adequa-damente em termos econmicos, no em termos fsicos [51, 663; tambm 3,

  • 17Economia-Ensaios, Uberlndia, 19(2): 7-51, jul./2005

    247]. A frase reflete um dos mais duradouros mitos defendidos por aqueles profissio-nais e por outros tambm. Trata-se do mito de que o mecanismo de preos estem condies de contornar quaisquer dificuldades, estejam elas associadas Terra, energia ou aos materiais.15 Esse mito ser devidamente analisado em seo poste-rior. Neste momento, bastar enfatizar o seguinte: a fim de estabelecer a acessibili-dade, pelo prisma do que acontece a longos prazos, importa apenas a eficincia emtermos de energia. No se poder negar que a eficincia real, em qualquer instanteespecificado, depende do estado geral das artes, ou seja, das circunstncias emque vivamos. Todavia, como sabemos desde Carnot, existe, em qualquer situaoparticular, um limite natureza terica, independentemente do estado das artes que jamais se atinge efetivamente. Na verdade, ficamos, via de regra, bem abaixodesse limite.

    A acessibilidade, como aqui entendida, diz respeito ao fato de que embora anave da humanidade flutue em um reservatrio fantstico de energia disponvel,to-somente uma parte infinitesimal desse reservatrio acessvel ao homem. Mesmoque atravessssemos o espao com a maior velocidade a da luz no deixaramosde estar confinados a um ponto do cosmos. Nessa velocidade, uma jornada explo-ratria at o sol mais prximo, fora do sistema em que vivemos, em busca de pos-sveis mas incertos satlites semelhantes Terra, levaria nove anos! Se o pouso daLua nos deixou uma lio, foi a de que no h promessa de recursos nas viagensinterplanetrias, e muito menos, nas viagens intersiderais.

    Restries ainda mais drsticas, no que concerne energia acessvel, soimpostas pela nossa prpria natureza biolgica a impedir a sobrevivncia quandoas temperaturas so demasiado altas, ou demasiado baixas, ou quando ficamosexpostos a radiaes de certos tipos. Essa a razo pela qual a busca e o empregode combustvel nuclear, em larga escala, dividem, na atualidade, os leigos e as au-toridades que se debruam sobre o tema (Seo IX). Existem, a par disso, restriescolocadas por alguns obstculos puramente fsicos. O Sol, por exemplo, no podeser vasculhado, nem mesmo por um rob. A rigor, de toda a imensa energia radiantedo Sol, apenas conta a pequena poro que atinge a Terra (Seo IX). Tambm noestamos em condies de dominar toda a imensa energia das tempestades queaqui ocorrem. Obstculos fsicos peculiares tambm se colocam, inevitavelmente,diante de quem cogita do uso pacfico da energia termonuclear. A fuso do deutrioexige a incrvel temperatura de 0,2 bilhes de graus Farenheit uma ordem demagnitude maior do que a da temperatura do interior do Sol. A dificuldade em tela a de obter um recipiente material em que realizar tal reao. Como j foi explicado,em termos no tcnicos, a soluo agora procurada assemelha-se do problema demanter a gua no interior de uma rede formada por elsticos de borracha. A propsito,cabe lembrar que a energia qumica obtida com a dinamite e a plvora, emboraestejam em uso h muitos anos, no pode ser controlada para ver-se utilizada emuma turbina ou em um motor. possvel que a utilizao da energia termonucleartambm se limite s bombas.16 Seja como for, com ou sem a energia termonuclear,a quantidade de baixa entropia energtica finita (Seo IV).

    15 A evidncia ampla: [3, 240 e s.; 4, 337 e s.; 49; 51, 663, 665; 74, 46 e s.; 80, 69, 9 e s., 14 e s]. Oencanto desse mito se torna claro ao notar-se que autores com idias opostas tambm o acolhem [58; 62,65; 6, 10, 12; e Frank Notestein, citado em 62, 130].16 As dificuldades tcnicas, hoje existentes, so examinadas em [63]. De outro lado, cabe lembrar queErnest Rutherford, em 1933, duvidava da possibilidade de controlar-se a energia atmica [82, 27].

  • 18 Nicholas Georgescu-Roegen - Energia e mitos econmicos

    Consideraes similares permitem concluir que tambm finita a quantidadede baixa entropia material acessvel. Embora o que importe, nos dois casos, sejaapenas a quantidade de baixa entropia, convm deixar separadas as duas explanaesao discutir-se o problema do ambiente. Como sabemos, a energia disponvel e asestruturas materiais ordenadas desempenham papis diversos na vida humana.Entretanto, essa distino, de carter antropomrfico, no , a rigor, compulsria.

    H, em primeiro lugar, o fato fsico de que apesar da equivalncia entremassa e energia, estabelecida por Einstein no h razes para supor vivel a con-verso de energia em matria, salvo numa escala atmica, em laboratrios e to-somente com respeito a certos elementos especiais.17 No podemos produzir umalmina de cobre, digamos, partindo apenas da energia. O cobre da lmina j deveexistir, previamente, como cobre (em forma pura ou em algum composto qumico).Sem, portanto, as devidas restries, tende a ser desorientadora a afirmao de queA energia conversvel, transformando-se na maior parte dos demais requisitos davida [83, 412]. Em segundo lugar, no h macroestrutura material (seja um prego,seja um avio a jato) capaz de manter para sempre a sua forma original, se a suaentropia menor do que a entropia do ambiente em que se encontre. Tambm nopode perdurar a singular organizao tpica das estruturas portadoras de vida caracterizada pela tendncia de escapar degradao entrpica. Assim, os artefatos,que so, hoje, parte essencial de nossas vidas, precisam ver-se renovados conti-nuadamente, a partir de algumas fontes. O ltimo ponto a ressaltar seria o de que aTerra um sistema termodinmico, aberto apenas com respeito energia. A quanti-dade de matria dos meteoritos, ainda que no desprezvel, j aparece dissipada.

    Conseqentemente, s podemos contar com os recursos minerais que, noentanto, so insubstituveis e exaurveis. Alis, alguns tipos especficos de mineraisj se esgotaram em certos pases [56, 120 e s].18 Presentemente, alguns mineraisimportantes (mercrio, zinco, estanho, chumbo, metais preciosos) escasseiam emtodo o mundo [17, 72-77; 56]. Peritos em geologia [17, 85-87] tm afirmado queno passa de hiprbole a disseminada idia de que os oceanos seriam fonte quaseinesgotvel de minerais e poderiam transformar-se em elo de um sistema natural eperptuo de reciclagem [3, 239; 69, 7 e s].19

    O nico modo de substituir baixa entropia material por energia a manipula-o fsico-qumica. Empregando quantidades cada vez maiores de energia disponvel, vivel extrair cobre de minas sucessivamente mais pobre e progressivamentemais profundas. Todavia, o custo de minerao de minas pobres cresce muito rapida-mente [56, 122 e s]. Tambm possvel reciclar o refugo. H, porm, alguns ele-mentos que se mostram altamente dissipativos, em virtude de sua natureza e domodo pelo qual participam nos processos naturais e nos processos conduzidos pelohomem. A reciclagem, em tais casos, pouco ajuda. A situao particularmente de-salentadora nos casos de elementos que, paralelamente, s se encontram em pores

    17 Eis o ponto de interesse: at a formao de um tomo de carbono, a partir de trs tomos de hlio, porexemplo, requer fixao minuciosssima de intervalos de tempo, tornando-se astronomicamente diminu-ta a probabilidade de que se venha a formar aquele tomo; assim, o evento poder ocorrer, em largaescala, apenas na presena de massas extraordinariamente grandes.18 Ver a interessante histria de Mesabi Range, em [14, 11 e s.].19 Tambm se mostra ilusria a idia de que os oceanos podero transformar-se em ricos mananciais dealimentos.

  • 19Economia-Ensaios, Uberlndia, 19(2): 7-51, jul./2005

    muito reduzidas no ambiente. O fsforo, elemento crtico em processos biolgicos,parece colocar-se nessa categoria. O mesmo acontece com o hlio, outro elementoque tem um papel estritamente especfico [17, 81; 38].

    Ponto importante aparentemente ignorado pelos economistas [49, 8; 69,16, 42] o de que a reciclagem no pode ser completa.20 Embora estejamos emcondies de recolher todas as prolas que hajam cado ao solo, reconstruindo ocolar partido, nenhum processo real torna vivel a coleta de todas as molculas deuma dada moeda, aps o seu desgaste.

    Essa impossibilidade no decorrncia direta da Lei da Entropia, como Solowadmite [75, 2]. Tambm no inteiramente correto afirmar, com Boulding [8, 7],que felizmente, inexiste lei de entropia material crescente. A Lei da Entropia noestabelece distino entre matria e energia. A lei no exclui (pelo menos em tese)a possibilidade de um cabal desembaralhar de uma estrutura material parcial,contando que haja quantidade suficiente de energia livre para executar a tarefa. Ese dispusermos de energia bastante, estaremos habilitados a isolar as molculasfrias existentes em um copo de gua, para reuni-las em blocos de gelo. Se, todavia,operaes desse gnero so impossveis, no dia-a-dia, isso acontece apenas por-que elas demandariam tempo que, para efeitos prticos, seria infinito.21

    V Resduos Alienveis

    Uma vez que Malthus no percebeu que os resduos tambm colocam algunsproblemas econmicos, normal foi que as escolas de economia, ignorando o inputdos recursos naturais, deixassem de dar ateno ao output dos resduos. Em decor-rncia disso, o resduo exatamente como as fontes naturais de recursos noaparece representado, sob qualquer forma, nas funes comuns de produo. Anica vez em que se menciona a poluio para referir, em ocasional exemplo, for-necido em livro-texto, o caso da lavanderia que enfrentava perdas em virtude dapresena, nas vizinhanas, de uma chamin. Os economistas devem ter ficado surpre-sos, por conseguinte, quando a poluio passou a ser um tema obrigatrio. Entretanto,a surpresa no tem fundamento. Dada a natureza entrpica do processo econmico,o resduo um output e to inevitvel quanto o input dos recursos naturais [27,514 e s., 519, 523 e s]. Automveis, motocicletas, avies a jato, maiores e melhores,provocam, obrigatoriamente, no apenas maiores e melhores esvaziamentos derecursos naturais, como ainda, maior e melhor poluio [31; 32, 19 e s., 305 e s].Presentemente, os economistas no podem mais ignorar a existncia da poluio.Descobriram, inclusive, de sbito, que tm, na verdade, algo importante a dizer aomundo, a saber, que mantendo corretos os preos, desaparece a poluio [74, 49e s.; ver, tambm, 10, 12, 17; 49, 11 e s; 80, 120 e s]22 que outra face do mitoem torno dos preos, acolhido pelos economistas (Sees IV e XI).

    20 Dados acerca da reciclagem so poucos e inadequados; alguns desses dados acham-se em [12, 205; 16,14]. Com respeito ao ao, ver [14].21 Tudo isso comprova que a Lei da Entropia, embora parea extremamente simples, exige muita atenopara ver-se adequadamente interpretada.22 A par disso, Harry Johnson acabou concluindo que uma representao completa de um processo deproduo deve incluir, obrigatoriamente, o output dos detritos [49, 10].

  • 20 Nicholas Georgescu-Roegen - Energia e mitos econmicos

    O resduo um fenmeno fsico, geralmente pernicioso para esta ou aquelaforma de vida e, direta ou indiretamente, prejudicial para a vida humana. O resduocontribui para que, sob muitos aspectos, o ambiente se deteriore. Quimicamente,como ocorre no caso da poluio pelo mercrio ou pelos cidos; nuclearmente,como ocorre no caso do lixo radioativo; fisicamente, como acontece no caso da acu-mulao do dixido de carbono na atmosfera ou no caso da minerao despojante.H umas poucas instncias em que substancial parte do resduo e o dixido decarbono apresenta-se como exemplo de maior destaque se v reciclado por algumprocesso natural do ambiente. A maior parte do resduo possivelmente nefasto o lixo, os cadveres, os excrementos tambm se reduz, gradualmente, por aode processos naturais. Esses resduos requerem apenas um local em que possampermanecer isolados, at que a reduo se complete. H, por certo, perturbadoresproblemas de higiene a debater, mas o importante ponto a sublinhar o de que taisresduos no causam danos permanentes e irreparveis ao ambiente.

    Alguns resduos so alienveis to-somente no sentido de que so conversveisem outros resduos menos nocivos, na dependncia de aes que tomemos. Issoacontece, p. ex., no caso do monxido de carbono que se transforma em dixido decarbono e calor, graas a uma combusto aperfeioada. Grande parte da poluioprovocada pelo dixido de enxofre, para citar novo exemplo, ser evitada empregandocertos equipamentos especiais. Entretanto, h resduos que no so atenuados dessamaneira. Exemplo especfico o lixo nuclear, cuja muito perigosa radioatividadeno estamos em condies de reduzir [46, 233]. A atividade radioativa do lixo nu-clear diminui com o tempo, mas de modo lento. No caso do plutnio-239, a reduoa 50 por cento leva aproximadamente 25 mil anos! Contudo, os malefcios provocadospela concentrao radioativa podem afetar a vida de maneira irreparvel.

    A dificuldade que se apresenta no exemplo do plutnio e que se estende aoscasos de acumulao de quaisquer tipos de resduos desde os mais variados refu-gos at o calor decorrncia da finitude do espao acessvel. A humanidade com-para-se a uma dona de casa que consome limitado nmero de artigos da despensa,atirando as sobras inevitveis em uma finita lata-de-lixo o espao que nos cerca.O prprio lixo ordinrio constitui ameaa; nos tempos antigos, quando a sua remooera difcil, algumas cidades magnficas ficaram soterradas pelos detritos acumulados.Possumos, hoje, meios adequados para dispor dos detritos, mas a sua continuadaproduo requer, uma aps outra, vrias novas reas em que deposit-lo. Nos Esta-dos Unidos da Amrica, a quantia global de lixo quase atinge a casa das duas tone-ladas por habitante e tende a crescer [14, 11n]. No podemos olvidar, alm disso,que a cada barril de leo de xisto se associa mais de uma tonelada de cinzas; ouque a obteno de alguns gramas de urnio requer um metro cbico de pedra bri-tada. O problema do destino a dar a tais resduos neutros vivamente ilustradopelas conseqncias da minerao despojante. Em escalas amplas e contnuas, noseria compensatria a remessa de resduos para o espao exterior.23

    23 Muito instrutivas so a fotografia da capa da revista Science de 12 de abril de 1968 e as fotos que seencontram no National Geographic de dezembro de 1970. possvel (como Weinberg e Hammond [83,415] sustentam) que s teramos de britar pedras com o dobro da velocidade com a qual hoje se efetua aminerao do carvo, se a quantidade de energia necessria para 20 bilhes de pessoas atingisse, anual-mente, o nvel dos 600 milhes de BTU per capita (Unidade Trmica Britnica). Mesmo assim, o problemade saber o que fazer com as pedras britadas no desapareceria.

  • 21Economia-Ensaios, Uberlndia, 19(2): 7-51, jul./2005

    A finitude de nosso espao torna mais perigosos os resduos que tm vidalonga, e, especialmente, aqueles que se mostram inteiramente irreduzveis. Exemplotpico dessa ltima categoria o da poluio trmica de cujas conseqncias peri-gosas ainda no temos ntida imagem. O calor adicional em que toda a energia deorigem terrestre se transforma, em ltima anlise, ao ser utilizada pelo homem24,pode afetar, de duas maneiras, o delicado equilbrio termodinmico do globo. Emprimeiro lugar, as ilhas de calor, geradas pelas centrais eltricas, no s perturbam(como bem se sabe) a fauna e a flora dos rios, dos lagos e at mesmo das costasmartimas, como ainda, alteram os padres climticos das regies em que foraminstaladas. Uma nica usina nuclear est em condies de alterar a temperatura dorio Hudson, elevando-a de quase 4 graus centgrados. Assim, torna-se assustador oproblema de determinar os locais em que sero construdas as novas usinas, umaaps outra. Em segundo lugar, o calor adicional total, nas regies em que se implantamas usinas e nos locais em que a energia utilizada, pode elevar a temperatura daTerra a ponto de fazer com que se derretam as calotas geladas dos plos provocandoconseqncias cataclsmicas. Uma vez que a Lei da Entropia no d margem para oresfriamento de um planeta que continuadamente se aquece, a poluio trmicatalvez se apresente como obstculo mais srio, para o crescimento, do que a finitudedos recursos acessveis [79, 160].25

    Segundo parece, imaginamos que, para contornar a poluio, preciso agirdiferentemente de como temos agido. Em verdade, porm, tal qual na situao dareciclagem, dispor da poluio algo que no se faz sem enfrentar custos, em ter-mos de energia. Alm disso, na medida em que aumenta a porcentagem de reduoda poluio, o custo aumenta ainda mais rapidamente do que no caso da reciclagem[62, 134 e s]. preciso, pois, agir com cautela segundo j se tem insistido [6, 9] de modo a no substituir uma atual poluio localizada por uma futura poluiomaior. Em princpio, pelo menos, um lago morto poder ver-se revitalizado mediantebombeamento de oxignio, de acordo com sugesto de Harry Johnson [49, 8 e s]. certo, entretanto, que as operaes adicionais, decorrentes de tal bombeamento,no apenas requerem apreciveis novas quantidades de baixa entropia, mas ainda,geram poluies de outra ordem. Na prtica, no se tm mostrado muito produtivosos esforos dos que objetivam a recuperao de solos e de leitos de gua degradadospela minerao despojante [14, 12]. O pensamento linear usando expresso queBormann consagrou [7, 706] est, possivelmente, na moda; ainda assim, nacondio de economistas, precisamos recordar esta verdade: o que vale para umlago morto no precisa, obrigatoriamente, valer para todos os lagos mortos, particu-larmente se o nmero deles ultrapassa um dado limite. Sugerir, a par disso, que ohomem dispe de meios para construir, a certo preo, um ambiente novo, acomodadoaos seus desejos, ignorar por completo que o preo no se fixa em termos demoeda, mas essencialmente, em termos de baixa entropia e que ele est sujeito,

    24 A nica exceo digna de nota (Seo IX) a energia solar, em todas as mltiplas formas.25 A constante acumulao de dixido de carbono na atmosfera tem um efeito-de-estufa que deveragravar o aquecimento do globo. H, no entanto, outros efeitos divergentes do aumento de partculasespalhadas na atmosfera: alteraes da vegetao orientadas pela agricultura; a interferncia sobre adistribuio normal da gua, na superfcie e em camadas subterrneas; etc. [24; 57]. Embora os peritosno sejam capazes de determinar a tendncia resultante, associada a esse complexo sistema, onde pe-quenas perturbaes podem admitir efeitos considerveis, o problema no uma velha ameaa comodiz Beckerman [4, 340], para simplesmente ignor-lo.

  • 22 Nicholas Georgescu-Roegen - Energia e mitos econmicos

    alm disso, s limitaes impostas por leis naturais.26

    Muitas vezes, os nossos argumentos brotam de crena em uma atividadeindustrial livre de poluio. Trata-se de mito crena to acalentadora quanto a dadurabilidade eterna. A verdade crua esta: apesar de nossos esforos, o acmuloda poluio poder deflagrar, sob certas circunstncias, a primeira sria crise ecol-gica [62, 126 e s]. O que percebemos hoje no passa de clara premonio de umatendncia que, num futuro mais distante, poder tornar-se ainda mais conspicua-mente vivenciada.

    VI Mitos em torno do Problema Entrpico da Humanidade

    Dificilmente, na atualidade, algum se animaria a confessar, publicamente,uma crena na imortalidade da espcie humana. Apesar disso, muitos preferem noexcluir essa possibilidade e, com tal objetivo em mente, tratam de impugnar qualquerfator capaz de limitar a vida humana. A mais natural das idias confortantes seria ade que a humanidade dispe de dotaes entrpicas virtualmente inesgotveis,podendo o homem vencer, desta ou daquela maneira, a Lei da Entropia.

    De incio, h um argumento simples: assim como j aconteceu com numerosasoutras leis naturais, tambm as leis em que se apoia a finitude dos recursos acessveisver-se- refutada um dia. Esse argumento de ordem histrica enfrenta, no entanto,um srio obstculo, pois a histria mostra, com fora ainda maior, em primeirolugar, que um espao finito s pode conter uma quantidade finita de baixa entropiae, em segundo lugar, que a baixa entropia tende a desaparecer contnua eirrevocavelmente. A impossibilidade do movimento perptuo (das duas espcies)est confirmada, na histria, to firmemente quanto a lei da gravitao.

    Armas bem mais sofisticadas foram elaboradas pela interpretao estatsticados fenmenos termodinmicos tentativa de restabelecer a supremacia da mecni-ca, apoiada, agora, em uma sui generis noo de probabilidade. De acordo comessa interpretao, a reversibilidade de alta em baixa entropia no um eventocompletamente impossvel, mas to somente um acontecimento altamente improv-vel. E como o evento possvel, deveramos estar em condies (usando um artifcioqualquer, engenhosamente concebido) de provocar o evento sempre o que desejsse-mos exatamente como um exmio jogador de cartas est em condies de retirarum s de ouros do baralho, sempre que isso lhe apraz. O argumento limita-se atrazer tona as irreduzveis falcias e contradies que os apreciadores da mecnicalanaram nos fundamentos da interpretao estatstica [32, cap. VI]. As esperanasgeradas por essa interpretao foram to ardentes, em certo momento, que P. W.Bridgman, como autoridade em termodinmica, se viu na obrigao de redigir um

    26 Solo [73, 517] afirma: em virtude do desenvolvimento da tecnologia, a sociedade de nossos dias esthabilitada, enfrentando custos tolerveis, a eliminar todos os tipos de poluio (excetuando, talvez, aprovocada pelo refugo das radiaes). Se no eliminarmos a poluio, isto se deve a alguma inverso devalores. Estamos, inegavelmente, capacitados a dedicar maior ateno ao problema de como evitar apoluio. Acreditar, porm, que a adoo de apropriados valores nos dar condies de contornar as leisnaturais ter uma viso imprpria da realidade.

  • 23Economia-Ensaios, Uberlndia, 19(2): 7-51, jul./2005

    artigo para combater a idia da possibilidade de encher os bolsos de dinheirocontrabandeando entropia [11].

    De maneira ocasional e sotto vocce, algumas pessoas expressam a esperana enunciada, certa vez, por uma figura como John von Neumann de que o homemacabar descobrindo uma forma de tornar a energia um bem gratuito, exatamentecomo o ar que respiramos [3, 32]. Outras pessoas imaginam um catalisador como qual se decomporia a gua do mar, separando oxignio e hidrognio, cuja combustonos daria a quantidade de energia disponvel que pudssemos desejar. Mas a analo-gia, em termos de uma brasa que ateia fogo `a pilha de troncos, no se aplica aocaso. A entropia da madeira e do oxignio usado na combusto mais baixa do quea entropia da fumaa e das cinzas resultantes, ao passo que a entropia da gua mais elevada do que a entropia do oxignio e do hidrognio produzidos pela decompo-sio. Assim sendo, o catalisador miraculoso tambm contrabandeia entropia.27

    Apoiada na idia de que o reator criador (breeder reactor) produz maisenergia do que consome uma idia hoje muito disseminada a falcia do contraban-do de entropia atingiu, ao que parece, a mxima aceitao, vendo-se acolhida emlargos crculos de pessoas cultas, a includos os economistas. Infelizmente, a ilusose alimenta em errneas concepes de conversa de vendedor, entre peritos emfsica nuclear, que exaltam os reatores capazes de transformar o material frtil, masno desintegrvel, em combustvel fssil, imaginando que tais reatores produzemmais energia do que a consumida [81, 82]. A verdade, pura e simples, esta: oreator no difere das fbricas que produzem martelos com a ajuda de outros martelos.Em consonncia com o princpio de dficit da lei da Entropia (Seo III), at na cria-o de galinhas se consome uma quantidade de baixa entropia que mais elevadado que a contida no produto.28

    Aparentemente, os economistas, defendendo concepes usuais relativas aoprocesso econmico, trouxeram baila temas de seu interesse. Cabe lembrar, exem-plificativamente, o argumento segundo o qual a noo de um limite absoluto paraa disponibilidade de recursos naturais indefensvel quando a definio de recursosse altera de maneira drstica e imprevisvel ao longo do tempo... O limite pode exis-tir, mas no ser definido ou especificado em termos econmicos [3, 7, 11]. Tambmlemos que no h limite para as terras cultivveis, pois cultivvel infinitamenteindefinvel [ 55, 22]. Patentemente, esses argumentos no passam de sofismas.Ningum nega, p. ex., que no podemos dizer, de modo exato, quanto carvo nosser acessvel. Estimativas a propsito de recursos naturais tm-se mostrado, fre-qentemente, muito baixas. A afirmao de que a quantidade de metais existenteno primeiro quilmetro da crosta terrestre pode perfeitamente ser um milho devezes maior do que a quantidade de metais j estimada, nas reservas conhecidas[4, 338; 58, 331], no prova que os recursos sejam inexaurveis; ao contrrio, aafirmao ignora, de maneira tpica, tanto a questo da acessibilidade quanto a da

    27 Sugesto tpica, em que se faz presente o contrabando de entropia, foi a de Harry Johnson: contemplaa possibilidade de recompor as reservas de carvo e leo com suficiente inventividade [49, 8]. SeJohnson tambm quer dizer com suficiente energia, por que se perderia uma boa parte dessa energiana transformao?28 A exuberncia do mito da gerao de energia est claramente evidenciada em uma recente declaraode Roger Revelle [70, 169], a lavoura pode ser vista como espcie de reator criador, em que mais energia produzida do que consumida. Em verdade, o desconhecimento das leis naturais muito amplo...

  • 24 Nicholas Georgescu-Roegen - Energia e mitos econmicos

    disponibilidade.29 Seja qual for a necessidade que possamos ter de recursos ou deterras cultivveis, em certas pocas fixadas, ela consistir de baixa entropia acess-vel e de terras acessveis. Recordando que todas as reservas, juntas, nos do umaquantidade finita, nenhum artifcio taxonmico eliminar essa finitude.

    A tese favorita da economia comum e da marxista, entretanto, a de que atecnologia no conhece limites [3; 4; 10; 49; 51; 74; 69]. Sempre estaremos emcondies no s de encontrar um substituto para um recurso tornado escasso,como, ainda, de aumentar a produtividade, relativamente a qualquer tipo de materialou de energia. Se faltarem recursos, sempre haver uma sada como se constatadesde os tempos de Pricles [4, 332-334]. Nada, portanto, h de impedir o acessodo homem a uma vida crescentemente mais feliz. difcil imaginar outro modo deraciocnio to linear quanto esse. Adotando a mesma lgica, nenhum jovem seracometido pelo reumatismo, ou por outros males da velhice, e nenhum jovem sadioperecer. Os dinossauros, pouco antes de seu desaparecimento, neste mesmo plane-ta, haviam experimentado um prspera existncia que durou no menos de cento ecinqenta milhes de anos (E eles no poluram o ambiente com o lixo industrial!).Mas a lgica a ser saboreada , na verdade, a de Solo [73, 516]. Se a degradaoentrpica pode dobrar a humanidade em algum momento futuro, isso j deveria teracontecido logo aps o ano 1.000 da Era Crist. A velha verdade do Senhor de LaPalice nunca foi to deliciosamente invertida.30

    Outros argumentos apoiam a mesma tese, ligando-se, porm, ao contedo.Em primeiro lugar, existe a asseverao de que apenas alguns poucos tipos derecursos so impermeveis ao avano tecnolgico a ponto de, ao cabo, no nosfornecerem produtos extrativos a custo constante ou decrescente [3, 10].31 Recen-temente, alguns estudiosos formularam uma lei especfica lei que, de certo modo,se apresenta como a contrria da lei de Malthus, relativa aos recursos. A idia ade que a tecnologia progride exponencialmente [4, 236; 51, 664; 74, 45]. A justifi-cativa superficial est em que um avano da tecnologia induz outros avanos. Isso verdade, mas acontece que o avano no cumulativo, como se d no caso docrescimento da populao. E completamente errado argir, acompanhando Maddox[59, 21], que afirmar a existncia de um limite para tecnologia significa negar acapacidade do homem de influenciar o progresso. Mesmo que a tecnologia continuea progredir, no necessrio que ultrapasse quaisquer limites: uma seqncia cres-cente pode admitir um limitante superior. No caso da tecnologia, esse limitante fixado pelo coeficiente terico de eficincia (Seo IV). Se o progresso fosse, defato, exponencial, ento o input i por unidade de output obedeceria, no tempo, leii = i0(1+r)

    -t, tendendo, pois, para o valor zero. A produo tornar-se-ia etrea e aTerra transformar-se-ia em um novo Jardim do den.

    29 Economistas da linha marxista participam desse coro. Uma resenha de [32], escrita na Rumnia, p. ex.,afirma que apenas comeamos a arranhar a crosta da Terra.30 Lembremos, a propsito, uma famosa quadrinha francesa, Senhor de La Palice / tombou na guerra porPavia. / Um quarto de hora antes de sua morte / ele ainda estava bem vivo. Ver Grand DictionaireUniversal du XIX-e Sicle, Vol. X, p. 179.31 Alguns cientistas que estudam fenmenos naturais, p. ex., [1], adotaram essa posio. Curiosamente,despreza-se o fato de que algumas civilizaes no foram capazes de inventar algo, observando queestavam relativamente isoladas [3, 6]. Entretanto, a prpria humanidade no seria, tambm, umacomunidade inteiramente isolada apartada de influncias culturais externas incapaz de migrar?

  • 25Economia-Ensaios, Uberlndia, 19(2): 7-51, jul./2005

    Enfim, cumpre citar a tese que poderia ser chamada de tese da falcia dasubstituio interminvel. Ei-la: Raros componentes da crosta terrestre se mostramto especficos a ponto de desafiar a substituio econmica... a natureza nos impeparcimnias especficas, mas no uma escassez generalizada e incontornvel [ 3,10 e s].32 Em que pese o protesto de Bray [10, 8], a est, efetivamente, umartifcio exorcizante dos economistas. verdade que apenas uns poucos elementosvitamnicos desempenham papis especficos tal como o do fsforo nos organis-mos vivos. Por outro lado, o alumnio substituiu o ferro e o cobre em muitas circuns-tncias, ainda que no em todas.33 Contudo, esta substituio no pode prolongar-se indefinidamente, dispondo-se de um estoque finito de baixa entropia acessvel,cuja degradao irrevocvel se acelera com o uso.

    Nos trabalhos de Solow, a substituio transforma-se no fator-chave queapoia o progresso tecnolgico, mesmo que os recursos venham a tornar-se cres-centemente escassos. Haver, em primeiro lugar, uma substituio dentre da gamade bens de consumo. Com os preos reagindo escassez crescente, os consumidoresadquirem menor quantidade de bens intensivos em recursos e maior quantidadede produtos de outra ordem [74, 47].34 Recentemente, a mesma idia tambm foiaplicada por Solow produo. Podemos, diz ele, substituir recursos naturais poroutros fatores [75, 11]. Adotamos, em verdade, uma errnea concepo do processoeconmico, visto como um todo, se no percebemos que inexistem fatores materiaisdiversos dos recursos naturais. Sustentar, alm disso, que o mundo pode, efetiva-mente, sobreviver sem recursos naturais ignorar a diferena entre o mundo reale o Jardim do den.

    So impressionantes os dados estatsticos apresentados em favor de algumasdas teses precedentes. Os dados coligidos por Solow [74, 44 e s] mostram quediminuiu apreciavelmente, nos EUA, no perodo de 1950 a 1970, o consumo de umasrie de elementos minerais, por unidade do Produto Nacional Bruto. As exceesforam atribudas substituio, esperando-se, contudo, que se ajustassem ao quadrogeral, mais cedo ou mais tarde. Em termos de lgica estrita, os dados no comprovamque, nesse mesmo perodo, a tecnologia tenha obrigatoriamente progredido, paraprovocar maior economia de recursos. O PNB pode, perfeitamente, aumentar maisdo que qualquer input de minerais, mesmo que a tecnologia permanea constanteou se deteriore. Tambm sabemos, porm, que nesse mesmo perodo, ou seja,aproximadamente de 1947 a 1967, aumentou, nos EUA, o consumo per capita demateriais bsicos. Em todo mundo, em apenas uma dcada, de 1957 a 1967, o con-sumo per capita de ao aumentou de 44 por cento [12, 198-200]. O que importa,afinal, no apenas o impacto do progresso da tecnologia sobre o consumo derecursos por unidade de PNB, mas, especialmente, o aumento da taxa de depleodos recursos, que se apresenta como efeito colateral daquele progresso.

    32 Argumentos similares encontram-se em [4, 338 e s; 59, 102; 74, 45]. interessante notar que Kaysen[51, 661] e Solow [74,43], embora reconheam a finitude das dotaes entrpicas da humanidade, negli-genciam o fato porque no leva a quaisquer concluses interessantes. Economistas, em especial, deve-riam saber que o criador de problemas extremamente interessantes justamente o finito (e no o infini-to). O presente artigo espera ter apresentado uma prova disso.33 Mesmo neste muito citado caso, a substituio ainda no obteve o xito cabal que se imaginou. Desco-briu-se, recentemente, que os cabos eltricos de alumnio apresentam o risco de incndio.34 A prola, porm, relativa a essa questo, nos dada por Maddox [59, 104]: Assim como a prosperida-de, nos pases hoje desenvolvidos, se fez acompanhar por um real decrscimo no consumo de po, assimtambm cabe esperar que a afluncia tornar as sociedades menos dependentes de metais como o ao.

  • 26 Nicholas Georgescu-Roegen - Energia e mitos econmicos

    Mais impressionante, ainda, como se comprovou, so os dados utilizados porBarnett e Morse para mostrar que, de 1870 a 1957, decresceram apreciavelmente,na agricultura e na minerao dois setores crticos no que concerne depleo derecursos [3, 8 e s., 167-178] , as relaes de custos de trabalho e de capital porproduto lquido. Apesar de algumas incongruncias aritmticas35, o quadro queemerge desses dados no pode ser repudiado. A sua interpretao que precisaver-se corrida.

    Quanto ao problema ambiental, indispensvel compreender as formas tpicasem que ocorre o progresso tecnolgico. Um primeiro grupo incluiria as inovaes-econmicas, que alcanam uma economia lquida de baixa entropia seja atravsde combusto mais adequada, de atrito atenuado, de obteno de luz mais intensapor meio de gs ou de eletricidade, seja atravs de substituio de materiais maiscaros por outros mais baratos, em termos de energia, e assim por diante. Sob essettulo, cabe incluir, ainda, a descoberta de como utilizar novos tipos de baixa entropiaacessvel. Um segundo grupo consiste de inovaes-por-substituio, que simples-mente substituem a energia humana por energia fsico-qumica. Bom exemplo ainveno da plvora que possibilitou a eliminao da catapulta. Tais inovaespermitem, em geral, no apenas que faamos melhor certas coisas, mas tambm (eespecialmente), que executemos algo que antes no era possvel executar como,digamos, voar em avies. Enfim, existem as inovaes-de-espectro, que trazemnovos bens de consumo, como o chapu, a meia de nilon, etc. As inovaes desseterceiro grupo so, tambm, quase sempre, inovaes-por-substituio. De fato,quase todas as inovaes pertencem a mais de uma das citadas categorias. Mas aclassificao til para fins analticos.

    Ora, a histria da economia corrobora um fato elementar: o fato de quegrandes progressos tecnolgicos foram em geral disparados pela descoberta decomo usar um novo tipo de energia acessvel. De outro lado, um aprecivel avano,no progresso tecnolgico, no se materializa a menos que a correspondente inovaoseja seguida por uma vasta expanso da minerao. Mesmo um substancial aumentoda eficincia no uso da gasolina, como combustvel, empalideceria diante da ampliaomultiforme dos conhecidos e ricos leitos de leo.

    Esse tipo de expanso ocorreu durante os ltimos cem anos. Descobrimosleo e novos depsitos de carvo e de gs, com muito maior quantidade dessassubstncias do que a necessria para o uso, no mesmo perodo (A propsito, vernota 38, abaixo). Ainda mais importante: todas as descobertas mineralgicas inclu-ram substancial proporo de recursos facilmente acessveis. Essa invulgar riquezabastou para reduzir o custo real da extrao dos recursos minerais, com o objetivode retir-los das jazidas e coloc-los na superfcie da terra. Tornando-se mais barata,dessa maneira, a energia da fonte mineral, as inovaes por substituio provocaramdeclnio da relao entre o trabalho e o produto lquido. O capital, por sua vez,tambm, evolveu, para adquirir formas que custam menos, empregando, porm,mais energia para alcanar o mesmo resultado. O que aconteceu nesse perodo foia alterao da estrutura de custo, crescendo os fatores de fluxo e diminuindo os fa-

    35 A aluso se faz adio de capital (medido em termos de moeda) e trabalho (medido em termos detrabalhadores empregados), assim como computao do produto lquido (por subtrao) a partir doproduto fsico bruto [3, 167 e s.].

  • 27Economia-Ensaios, Uberlndia, 19(2): 7-51, jul./2005

    tores de estoque.36 Examinando, pois, apenas as variaes relativas dos fatores deestoque, no perodo de excepcional fartura mineral, no possvel provar que ocusto unitrio total manter tendncia decrescente, nem que o progresso contnuode tecnologia tornar quase inexaurveis os recursos acessveis segundo afirmamBarnett e Morse [3, 239].

    Poucas so as dvidas quanto ao fato de que as teses discutidas nesta seose prendem a uma crena, profundamente enraizada, na imortalidade da espciehumana. Alguns advogados de tais teses nos convidam a ter f na humanidade:essa f superar todas as dificuldades.37 Todavia, nem a f nem a segurana comque se manifesta um catedrtico [4] esto em condies de alterar o fato de que,segundo a lei bsica da termodinmica, as dotaes dos homens so finitas. Aindaque nos inclinemos a crer na possvel refutao futura desses princpios, no cabe,agora, agir em funo da f. preciso ter em conta que a evoluo no consiste demera repeties, em seqncia linear, ainda que o exame do que acontece empequenos intervalos nos possa fazer supor o contrrio.

    Muita confuso existe, no que diz respeito ao problema do ambiente, noapenas entre economistas (o que, alis, ficou evidenciado pelas observaes anterio-res), mas tambm entre pessoas de altos crculos intelectuais; a confuso decorredo fato de ignorar-se, ou no se procurar entender, a mera natureza entrpica detodos os acontecimentos. Sir Macfarlane Burnet, vencedor de Prmio Nobel, dizia,em uma conferncia, que compulsrio impedir a progressiva destruio dos insubs-tituveis recursos da terra [citado em 15, 1]. Uma instituio de prestgio como aONU, em sua Declarao acerca do Ambiente (Estocolmo, 1972), insistiu, repetidasvezes, em que cabe, a cada um de ns, melhorar o ambiente. As duas exortaesrefletem a falcia de que o homem teria condies de inverter a marcha da entropia.A verdade, porm, no importa quo desagradvel, que ns podemos, no mximo,tentar evitar desnecessrios esgotamentos de recursos e qualquer desnecessriadeteriorao do ambiente sem, no entanto, pretender conhecer o significado precisode desnecessrio, nesse contexto.

    VII Crescimento: Mitos, Polmicas e Falcias

    Grande confuso rodeia os acalorados debates a propsito do crescimento,simplesmente porque o vocbulo utilizado com vrios significados. Uma das confu-ses, objeto de constantes advertncias que Joseph Schumpeter dirigiu aos econo-mistas, deve-se s diferenas entre crescimento e desenvolvimento. H crescimentoquando aumenta apenas a produo per capita de mercadorias o que acarreta,naturalmente, esgotamento cada vez maior de recursos igualmente acessveis.Desenvolvimento significa, porm, o surgimento de qualquer das inovaes descritasna seo anterior. No passado, o desenvolvimento induziu, via de regra, o crescimentoe este ocorria to-somente associado quele. O resultado foi uma peculiar combinao

    36 Com respeito a essa distines, ver [27, 512-519; 30, 4; 32, 223-225].37 Examinar o dilogo entre Preston Cloud e Roger Revelle, citado em [66, 416]. O mesmo refro apareceem trabalhos de Maddox [59, vi, 138, 280], quando se queixa dos que aludem s limitaes da humanida-de. Com respeito ao captulo de Maddox, Man-made Men, ver [32, 348-359].

  • 28 Nicholas Georgescu-Roegen - Energia e mitos econmicos

    dialtica a que se denominou crescimento, mas a que caberia dar outro nome,hoje comumente empregado, crescimento econmico. Os economistas medem onvel desse crescimento econmico em termos do PNB per capita, a preos constantes.

    O crescimento econmico til que se frise associa-se a um estado din-mico, anlogo ao de um carro que se desloca numa curva. Para esse carro, no possvel que esteja na curva, num dado instante, e que no esteja na curva, no ins-tante seguinte. No tm fundamento os ensinamentos da economia comum, segundoos quais o crescimento econmico depende apenas da deciso, tomada em dadomomento, de consumir quantidades maiores ou menores da produo [4, 342 e s.;74, 41]. Em que pesem os soberbos modelos matemticos elaborados por Arrow-Debreu-Hahn e os modelos pragmticos de Leontief, nem todos os fatores de produ-o (a includos os bens em processamento) esto em condies de servir diretamen-te como bens de consumo. Apenas em uma sociedade agrcola primitiva, destitudade bens de capital, que se poderia considerar verdadeira a afirmao de que adeciso de economizar gros de uma safra produzir aumento da colheita mdia doano subseqente. Outras economia crescem hoje porque j cresceram ontem; ecrescero amanh porque crescem hoje.

    As razes do crescimento econmico mergulham fundo no terreno da naturezahumana. A curiosidade ociosa do homem e seus instintos veblenianos, que o levamao trabalho, eis as razes pelas quais uma inovao leva a outras o que constituio desenvolvimento. Em virtude dos anelos do homem, que tambm anseia por con-forto e se delicia com aparelhos e equipamentos, cada inovao produz crescimento.O desenvolvimento no , por certo, um aspecto inevitvel da histria; depende demltiplos fatores e, ainda, de acontecimentos acidentais. Isso explica porque o pas-sado da humanidade consiste sobretudo de longos estados quase-estacionrios eporque a era atual, efervescente, no passa de pequena exceo nesse quadro.38

    Em bases puramente lgicas, entretanto, no h ligao necessria entredesenvolvimento e crescimento. Pelo menos em tese, o desenvolvimento poderiamanifestar-se na ausncia de crescimento. A acusao dirigida contra os estudiososdo ambiente acoimados de pessoas que se opem ao desenvolvimento s se ex-plica em funo de ignorar-se, de maneira sistemtica, as distines acima traadas.39Na realidade, a verdadeira posio ambientalista precisa focalizar o ndice total deesgotamento de recursos (e o conseqente ndice de poluio). To-somente porque,no passado, o crescimento econmico redundou no s em maior ndice de depleo,mas, ainda, em aumento de consumo per capita de recursos, que o raciocnio seviu modificado, provocando inverso da diretriz dos economistas o PNB per capita.Em conseqncia, a questo real acabou desaparecendo sob o manto dos sofismasrelatados na seo anterior. Com efeito, mesmo que o crescimento econmico possa,em tese, manifestar-se na presena de uma reduo do ndice de depleo de re-

    38 Aqueles que no compreenderam quo excepcional (talvez anormal) o presente interldio (Journal ofEconomic Literature, junho, 1972, pp. 459 e ss.), ignoram certos fatos: o de que a minerao do carvoteve incio h 800 anos e o de que, por incrvel que isso possa parecer, metade da quantidade total athoje minerada foi extrada nos derradeiros 30 anos. Sublinhe-se, tambm, que a metade da produototal de leo cru foi obtida nos ltimos dez anos! [46, 166, 238; 56, 119 e s.; ver, ainda, 32, 228].39 Solow afirma que combater a poluio combater o crescimento econmico [74, 49]. Entretanto, umapoluio prejudicial poder ser mantida a baixos nveis se medidas apropriadas forem tomadas e o purocrescimento for desacelerado.

  • 29Economia-Ensaios, Uberlndia, 19(2): 7-51, jul./2005

    cursos, a verdade que o crescimento no est em condies de superar um dadolimite, embora desconhecido, sem que haja aumento daquele ndice a menos quehaja diminuio da populao.

    Foi natural, para os economistas que se apegaram, sem vacilaes, aosseus quadros mecanicistas de referncias permanecerem indiferentes quando,em vrias oportunidades, o Movimento Conservador, ou alguns escritores isolados,como Fairfield Osborn e Rachel Carson, chamaram a ateno para os danos ecolgi-cos do crescimento e insistiram em sua desacelerao. H alguns anos, porm, omovimento ambientalista ganhou fora, sobretudo ao discutir-se o problema dapopulao A bomba da populao, como Paul Ehrlich o denominou. Nessa ocasio,alguns economistas no-ordodoxos passaram a adotar uma posio fisiocrticaembora lhe dessem formas variadas, ou tentaram incluir a ecologia na economia [p.ex., 8; 9; 19; 29; 32]. Alguns passaram a preocupar-se com a boa vida, e noapenas com a vida comum [8; 65]. Alm disso, uma longa seqncia de incidentesprovou que a poluio no era mero brinquedo de ecologistas. Conquanto o esgota-mento de recursos caminhasse com velocidade crescente, ao longo dos tempos,cabe lembrar que se trata, ordinariamente, de um fenmeno de volume que ocorresob a superfcie da terra, onde ningum verdadeiramente o percebe. A poluio, deoutro lado, um fenmeno de superfcie, cuja existncia no pode ser ignorada,muito menos negada. Os economistas que reagiram a tais incidentes procuraram,via de regra, reforar a idia de que a racionalidade econmica e um apropriadomecanismo de fixao de preos estariam em condies de resolver todos os pro-blemas ecolgicos.

    Curiosamente, no entanto, a publicao da obra The limits to growth [62],relatrio do clube de Roma, provocou inusitada reao entre os economistas profissio-nais. Com efeito, as crticas dirigidas contra o relatrio foram elaboradas, na maioriadas vezes, por economistas. Outro manifesto, A blueprint for survival [6], de teorsemelhante, no teve a mesma glria e isso no se deve, aparentemente, ao fatode ter sido elaborado por um grupo de eruditos de grande reputao. A diferenaprende-se ao fato de que The limits to growth valeu-se dos modelos analticos cos-tumeiramente utilizados em econometria e em trabalhos de simulao. At onde setorna possvel ajuizar, foi o uso de tais modelos que irritou os economistas a pontode encoraj-los a insultar, clara ou veladamente, o Cavalo de Tria. At mesmo oThe Economist [55], esquecendo as proverbiais boas maneiras britnicas, publicouum editorial, Limits to Misconception, para dizer que o relatrio do Clube de Romano passava de marca dgua de antiquados disparates. Beckerman, abandonandoos ares solenes que cercam as aulas magnas, atacou o relatrio, afirmando queera, simplesmente, atrevido e petulante absurdo (escrito por) uma equipe de jovensbarulhentos do MIT [4, 327].40

    Recordemos, em primeiro lugar, que os economistas, particularmente nosltimos trinta anos, propagaram, por todos os cantos, o pensamento de que apenasos modelos matemticos estariam em condies de servir aos mais elevados obje-

    40 Posteriormente, ele indaga: Quo tola deve ser uma pessoa, a fim de ver-se admitida no Clube deRoma? [4, 339]. Kaysen [51] tambm se revela custico em algumas passagens. Solow [75, 1] apenas dizque, tal como os outros, foi compelido a engolir The Limits to Growth; Johnson, por seu turno [49, 1],considera, de sada, intelectualmente incapazes todos os ecologistas. Fora dos crculos econmicos, JohnMaddox quem se destaca por desejar impressionar os leitores com argumentos similares.

  • 30 Nicholas Georgescu-Roegen - Energia e mitos econmicos

    tivos de sua cincia. Com o advento do computador, tornou-se rotineiro o uso demodelos economtricos e de simulao. A falcia da confiana nos modelos aritmo-mrficos, usados para predizer a marcha da histria, foi ocasionalmente denunciada uma denncia que se assentou em argumentos de carter tcnico.41 Tudo isso,porm, foi em vo. Os economistas criticam The limits to growth por cometer aquelemesmo pecado, buscando uma aura de autoridade cientfica atravs do empregode computadores; alguns chegaram a impugnar a utilizao da matemtica na econo-mia [4, 331-334; 10, 22 e s.; 51, 660; 52; 69, 15-17]. Observemos, em segundolugar, que a agregao sempre foi encarada como procedimento mutilador, masinevitvel, na macroeconomia que, por isso, ignora, de maneira ampla, a estrutura.Sem embargo, os economistas criticam, agora, o relatrio, justamente porque sevale de um modelo agregativo [4, 338 e s.; 52; 69, 61 e s., 74]. Em terceiro lugar,notemos que um elemento da f econmica, disseminado com o nome de princpioda acelerao, a tese de que o produto proporcional ao estoque de capital. E noentanto, alguns economistas condenaram os autores de The limits to growth pelasimples razo de que admitiram (implicitamente) a legitimidade do mesmo princpiopara a poluio que no deixa de ser um produto![4, 399 e s.; 52; 69, 47 e s.].42Em quarto lugar, sublinhemos que o complexo de preos no impediu os economistasde elaborar e utilizar modelos cujos esquemas no aludem, explicitamente, a preos figurando entre eles, para lembrar alguns dos mais famosos, os modelos estticoe dinmico de Leontief, o modelo de Harrod-Domar e o modelo de Solow. Apesardisso, alguns crticos (inclusive o prprio Solow) atacaram The limits porque o modeloa esboado no envolve preos [4, 337; 51, 665; 74, 46 e s; 69, 14].

    O derradeiro ponto e o mais importante o fato irretorquvel de que oseconomistas, com algumas raras excees, nestes ltimos anos, sempre sofreramde crescimentomania [65, cap. 1]. Sistemas econmicos e planos econmicossempre foram avaliados apenas com respeito capacidade que pudessem ter de fo-mentar um elevado ndice de crescimento econmico. Os planos econmicos, semuma nica exceo, sempre se orientaram para o alvo do maior ndice possvel decrescimento econmico. A prpria teoria do desenvolvimento econmico est solida-mente ancorada nos modelos de crescimento exponencial. Todavia, quando os autoresde The limits to growth tambm adotaram o pressuposto do crescimento exponencial,o coro dos economistas bradou Abominvel! [4, 332 e s.; 10, 13; 51, 661; 52; 74,42 e s; 69, 58 e s.]. Isso no deixa de ser deveras curioso, particularmente serecordarmos que alguns desses mesmos crticos sustentaram, concomitantemente,que o crescimento da tecnologia tambm exponencial (seo VI). Alguns dessescrticos admitiram enfim! que o crescimento econmico no poder manter,para sempre, o ndice atual; sugeriram, porm, que prosseguiria, embora a ndicesmais baixos [74, 666].

    Analisando essas crticas peculiares, tem-se a impresso de que os comenta-ristas da rea econmica agiram em consonncia com um adgio latino, quod licetJovi non licet bovi o que se permite a Zeus no se permite ao bovino. Seja como

    41 Ver em especial, [26] e [28]; tambm [32, 339-341]. Mais recentemente e por outro prisma W.Leontief debateu a questo em sua Conferncia Presidencial, na AEA [54]. sintomtico o fato de queo veredicto franco de Ragnar Frisch, formulado em sua comunicao para o Primeiro Congresso Mundialda Sociedade de Econometria (1965), ainda aguarde publicao.42 Algumas dessas objees tambm receberam endosso de profissionais que no atuam na rea da economia;p. ex., [1; 59, 284 e s].

  • 31Economia-Ensaios, Uberlndia, 19(2): 7-51, jul./2005

    for, a economia comum enfrentar srias dificuldades para recuperar-se, depois deter exibido as suas fraquezas, nesses esforos de auto-defesa.

    Fora dos crculos econmicos, o relatrio do Clube de Roma foi recebido comateno e, por certo, sem vituprios.43 Segundo um veredicto equilibrado, a obra,apesar de suas imperfeies, no frvola.44 A apresentao deixa em ns, certo, a impresso de que as idias no esto suficientemente amadurecidas e deque houve certa pressa em divulg-las [34]. Mas at alguns economistas reconhece-ram os seus mritos, dando ateno s variadas conseqncias da poluio [69, 58e s.]. O estudo contribuiu, ainda, para trazer tona a importncia da durao, naseqncia real dos acontecimentos [62, 183] um ponto freqentemente enfatizadopelos cientistas que se ocupam de cincias naturais [43, 144; 56, 131], mas geralmen-te negligenciado pelos economistas [32, 273 e s.]. H necessidade de um intervalode tempo, no s para atingir um mais elevado nvel de crescimento econmico,mas tambm para atingir um nvel inferior.

    Carece de base cientfica, no entanto, a muito propalada concluso de queno mximo uma centena de anos separa a humanidade de um desastre ecolgico[62, 23 e passim].

    No h espao para discutir o padro geral das relaes aceitas em diversassimulaes discutidas no relatrio. Entretanto, as formas quantitativas dessas relaesno foram submetidas a qualquer verificao fatual. A par disso, em virtude de suanatureza rgida, os modelos aritmomrficos empregados no esto em condiesde prever as alteraes evolucionrias que aquelas relaes podem sofrer ao longodo tempo. A previso que se assemelha de que o mundo atingiria seu fim no ano1.000 da era crist conflita com tudo que sabemos acerca da evoluo biolgica.A espcie humana, entre as muitas espcies, no entrar, provavelmente, de sbito,em estado de coma. Seu fim nem sequer se vislumbra no futuro distante. E esse fimaparecer depois de uma longa seqncia de crises, sub-reptcias e prolongadas.Apesar disso como Silk ressaltou [72] seria uma loucura ignorar as advertnciasgerais do relatrio, relativas ao crescimento da populao, poluio e ao esgotamen-to dos recursos. Em verdade, qualquer desses fatores poder provocar, na economiamundial, um estado de tenso.

    Alguns crticos menosprezam The limits porque o livro emprega, um equipa-mento analtico simplesmente para enfatizar uma tautologia destituda de interesse:o fato claro de que, num ambiente finito, impossvel o crescimento exponencialcontnuo [4, 333 e s.; 51, 661; 74, 42 e s.; 69, 55]. A crtica tem fundamento pelomenos a um primeiro olhar. Todavia, cumpre recordar que a tautologia foi enunciadanuma daquelas ocasies em que se torna preciso ressaltar o bvio, de h muitoolvidado. O maior pecado cometido pelos autores de The limits, porm, foi o deterem ocultado a parte mais importante da tautologia, dando realce apenas ao

    43 Exceo digna de nota Maddox [59]. Sua incisiva resenha crtica de A Blueprint for Survival (TheCase Against Hysteria, Nature, 14 de janeiro de 1972, pp. 63-65) provocou numerosos protestos; Nature,21 de janeiro de 1972, p. 179, 18 de fevereiro de 1972, pp. 405 e s. Dada, porm, a posio dos economistas,nessa controvrsia, entende-se porque Beckerman [4, 341 e s] incapaz de imaginar que razo levaria osestudiosos de cincias naturais a no atacar o relatrio e at, aparentemente, a aceitar as suas teses.44 Financial Times, 3 de maro de 1972, citado em [4, 337n.]. Denis Gabor, vencedor do prmio Nobel, as-severou que ignorando os pormenores, as concluses principais so incontroversas (citado em [4, 342]).