nao somos racistas - ali kamel

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  • No somos racistas um livro nascido do espanto. Movido pelo instinto de reprter, Ali Kamel, diretor de jornalismo da Rede Globo, comeou a perceber que os diversos projetos instituindo cotas raciais, em tramitao no Congresso, dividem o Brasil em duas cores, eliminando todas as nuances caractersticas da nossa miscigenao. Ali Kamel constata que, nesta diviso entre brancos e no-brancos, os no-brancos so considerados todos negros: Certo dia, caiu a ficha: para as estatsticas, negros eram todos aqueles que no eram brancos. Cafuzo, mulato, mameluco, caboclo, escurinho, moreno, marrom-bom- bom? Nada disso, agora ou eram brancos ou eram negros. (...) Pior: uma nao de brancos e negros onde os brancos oprimem os negros. Outro susto: aquele pas no era o meu.

    A tentativa de entender e reconhecer este novo pas fez com que o jornalista, ex-aluno do Instituto de Filosofia e Cincias Sociais da UFRJ, revisse antigas leituras e pesquisasse documentos, livros e teses. 0 primeiro captulo de No somos racistas mostra como a poltica de cotas comeou a ser construda no governo Fernando Flenrique Cardoso em grande sintonia com o que pensava, nos anos de 1950, o ento jovem socilogo Fernando Henrique Cardoso.

  • Com prefcio da sociloga Yvonne Maggie, uma das maiores estudiosas do assunto no pas, o livro de Ali Kamel comeou a se desenhar em 2003, quando ele passou a publicar, quinzenalmente, uma srie de artigos sobre as cotas no jornal 0 Globo. Neles, constatava o sumio dos pardos e dos mis- cigenados nas estatsticas raciais brasileiras. Apontava, tambm, para o fato de que o branco pobre tem a mesma dificuldade de acesso educao que um negro pobre, levantando a hiptese de que o maior problema do pas talvez no seja a segregao pela cor da pele e sim pela quantidade de dinheiro que se carrega no bolso.

    No somos racistas aprofunda e sistematiza as idias apresentadas pelo jornalista naqueles artigos: a negao da miscigenao; o olho torto das estatsticas que escamoteiam problemas sociais na diviso da populao por cores; a situao de negros e brancos no mercado de trabalho; o medo de que uma poltica de cotas, posta em prtica, construa uma separao entre cores que nunca existiu, de fato, no Brasil, promovendo o dio racial; os estudos cientficos que provam que raas no existem e, portanto, no pode haver tratamento desigual para seres humanos iguais.

    CAPA VtCTOR BURTON

  • (DE03RACISTAS

    TRANSFORMAR NUMA NAO B1C0L0R

    6a impresso

    EDITORA

    NOVAFRONTEIRA

  • by Ali Kamel

    Direitos de edio da obra em lngua portuguesa adquiridos pela E d it o r a N ov a F r o n t e ir a S.A. Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser apropriada e estocada em sistema de banco de dados ou processo similar, em qualquer forma ou meio, seja eletrnico, de fotocpia, gravao etc., sem a permisso do detentor do copirraite.

    E d it o r a N ova F r o n t e ir a S.A.Rua Bambina, 25 - Botafogo - 22251-050Rio de Janeiro - RJ - BrasilTel.: (21) 2131-1111 - Fax: (21) 2286-6755http://www.novafronteira.com.bre-mail: [email protected]

    Cip-Brasil. Catalogao-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.

    K23n Kamel, AliNo somos racistas : uma reao aos

    que querem nos transformar numa nao bicolor / Ali Kamel - Rio de Janeiro : Nova Fronteira, 2006

    ISBN 85-209-1923-5

    1. Brasil - Relaes raciais. 2. Discriminao - Brasil. 3. Racismo - Brasil. I. Ttulo.

    CDD 305.8 CDU 316.356.4

  • Para Patrcia, Alice e Sofia

  • SUMRIO

    Prefcio 9

    Agradecimentos 15

    A gnese contempornea da nao bicolor 17

    Raas no existem 43 ftoK

    Sumiram com os pardos 49

    O que os nmeros no dizem 59

    Negros e brancos no mercado de trabalho 73

    Alhos e bugalhos 81

    As cotas no mundo 89

    Estatuto das raas 97

    "Classismo", o preconceito contra os pobres 101

    Pobres e famintos 105

    O dinheiro que no vai para os pobres 115

    Educao, a nica soluo 129

    H soluo 139

  • P R EF C IO

    Yvonne Maggie

    E r a u m a s e x t a - f e ir a , f in a l d e t a r d e q u e n t e d e m a r o d e 2004. E sta va descendo as escadarias do Instituto de Filosofia e Cincias Sociais (IFCS) da UFRJ, onde sou professora h mais de trinta anos, quando vi um cartaz anunciando um debate sobre o projeto de reforma universitria com a presena do reitor Alosio Teixeira e de Ali Kamel, entre outros convidados. Resolvi assistir ao evento. O salo nobre estava lotado de uma platia colorida com algumas lideranas de movimentos negros e estudantes de histria, filosofia e cincias sociais. Apesar de anunciarem um debate sobre a reforma universitria, os estudantes disseram que iriam discutir as cotas raciais. Fiquei surpresa. Entre os temas discutidos pelos estudantes universitrios o racismo no costumava ser ponto de pauta.

    Ali Kamel foi o primeiro a falar, criticando vivamente a poltica de cotas. O jornalista, que tambm cientista social e ex-aluno do IFCS, exps o seu ponto de vista de um modo muito singular. No negava o racismo que, em suas palavras, um mal que atinge a humanidade, mas sustentava que aqui o racismo no estrutural e o "classismo" o mal maior.

    O debate no IFCS foi to emocional como todos os que se seg u ira m c o m diferentes personagens e em diferentes cenrios. Sua

    estrutura, quase ritual, em forma de drama social, mudou pouco nesses ltimos anos. Posies contra e a favor das cotas na mesa e,

  • 10 NO SOM OS RACISTAS

    na platia, um grupo ruidoso que clama pelas cotas raciais e acusa de racistas os que criticam a poltica.

    Acusados de defender os privilgios de uma elite branca que se beneficiou e se beneficia com o racismo, o que na nossa sociedade crime que envergonha, os crticos da poltica de cotas raciais ficam acuados. Se isso ocorre com aqueles que esto no meio acadmico ou em ambientes menos formais, mais ainda com Ali Kamel que, alm de cientista social e jornalista, tambm um importante executivo de jornalismo das Organizaes Globo. Executivos de grandes redes, usualmente, no manifestam suas posies pessoais sobre temas nacionais. Por isso, sua participao no debate pblico to importante para demonstrar que as empresas da mdia so instituies formadas por alguns indivduos que tm opinies prprias, uma outra batalha que Ali Kamel vem travando com muitas patrulhas de planto.

    Logo no incio deste livro, cuja base so os artigos que Ali Kamel vem publicando no jornal O Globo, h um captulo sobre "raa". "Raas no existem", diz o autor. Ressuscitar esse conceito j negado pela cincia seria uma armadilha para o pas. Ali Kamel enfrenta sem medo os nmeros que, em geral, levaram muitas pessoas a se envergonhar do "nosso racismo". Pergunta ainda o propsito de unir "pretos" e "pardos" em uma nica categoria, a categoria "negro", e v a o desejo dos movimentos negros que querem o pas dividido em brancos e negros, idia essa que desenvolve no segundo captulo. "Sumiram com os pardos" revela o "truque" que usado para descrever o pas dividido. Os movimentos negros e tambm os cientistas sociais que se colocaram a favor da poltica de cotas chamam de "negros" o conjunto de "pretos" e "pardos" conforme as estatsticas oficiais. Assim, em vez de uma populao de 5,9% de pretos, as estatsticas divulgadas em prol da poltica de cotas falam em 48% de "negros". Os 42% de autodeclarados pardos no aparecem. Essa dmarche metodolgica explicada em p de pgina e confunde a maioria das pessoas para

  • PREF C IO 1

    quem "preto" e "negro" eram, at pouco tempo, sinnimos. Entre os 56,8 milhes de pobres, as estatsticas divulgadas pelos que apiam as cotas raciais falam em 65,8% de negros e no 7,1% de pretos. Omite-se que os autodeclarados brancos so efetivamente 34,2% entre os pobres, e os autodeclarados pardos, 58,7%. Portanto, diz Ali Kamel, "se a pobreza tem uma cor no Brasil, essa cor parda". Esta "descoberta", publicada no Globo pela primeira vez em 2003, foi a primeira de uma srie que permitiu colocar em xeque um discurso que tentava se impor como verdade para toda a sociedade, o discurso que visava a construir a nao dividida em brancos e negros.

    No terceiro e quarto captulos, chama a ateno para as dificuldades de concluir, com os dados apresentados, que o racismo que produz as desigualdades entre brancos e negros (pretos e pardos nas estatsticas oficiais). Outros pesquisadores j haviam apontado essa inconsistncia, mas boca pequena, intramuros, no ambiente acadmico. Diz mais: mesmo se descrevermos o pas, conceitualmente dividido entre negros e brancos, esses resultados no nos autorizam a afirmar que tais desigualdades se devem ao racismo dos brancos, como afirmam os defensores da poltica de cotas.

    Mas os modelos estatsticos divulgados pela imprensa no so o nico alvo de Ali Kamel que se insurge, no captulo sete, contra o Estatuto da Igualdade Racial para mostrar que este documento prova irrefutvel de que h quem queira ver o pas cindido racialmente. O documento, diz ele, uma prova de que "querem- nos uma nao bicolor, apenas negros e brancos, com os brancos oprimindo os negros". A soluo dada por estes que vem assim o nosso pas nesse documento investir ad nauseam em cotas raciais de todos os tipos. Ser esse o Brasil que queremos?, pergunta ele.

    Ali Kamel formula ento uma outra e muito mais ousada hiptese. E se o problema for a pobreza e no o racismo? Os captulos oito e nove respondem a esta pergunta afirmando que as desigualdades no Brasil no podem ser explicadas pelo racismo porque o

  • 12 NO SOM OS RACISTAS

    que coloca pretos, pardos e brancos pobres em desvantagem a prpria pobreza.

    Depois de ter debatido com os movimentos negros e os for- muladores da poltica de cotas, e acreditando que era preciso investir em programas sociais consistentes, Ali Kamel dirigiu seu olhar crtico para a questo das polticas de transferncia de renda. Com a mesma pacincia e metdico procedimento sociolgico com que decifrou os nmeros das desigualdades "raciais", discutiu as estatsticas divulgadas pelo governo, mostrando que o combate pobreza est errando a pontaria e que os mais pobres no esto realmente sendo atendidos. A argumentao que ele exps por meses nos artigos quinzenais do Globo est na segunda parte do livro e cumpre assim a difcil tarefa de discutir polticas pblicas com instrumental sociolgico, usando uma linguagem que pode ser entendida por pessoas no familiarizadas com o jargo acadmico.

    O ltimo captulo, antes da concluso, uma resposta pergunta que no quer calar sempre que se criticam as polticas pblicas. O que fazer? Ali Kamel sugere uma sada que mesmo parecendo simples no est sendo tomada como prioridade: investimento macio na educao bsica. Os vultosos recursos utilizados em programas sociais deveriam ser dirigidos para as escolas. Em boa hora, cita Sergio Costa Ribeiro, que tambm criticou vivamente a poltica educacional que se estabeleceu como consenso entre educadores e formuladores de poltica de todas as correntes e partidos, de todas as ideologias e seitas desde os anos 1930. Costa Ribeiro conseguiu tambm desfazer discursos de verdade e fez o Brasil descobrir que as crianas e jovens no saam da escola precocemente para trabalhar. Saam da escola depois de muitos anos passados nela sem serem promovidos e sem direito a diplomas. Fez isso olhando e decifrando nmeros para descobrir que havia na primeira srie do ensino fundamental, no incio dos anos 1980, quatro vezes mais crianas de sete anos do que esta coorte de idade no

  • P R E F C IO 1

    Brasil. Graas a esta descoberta, as polticas educacionais puderam ser redefinidas em meados dos anos 1990. Hoje, portanto, h mais esperana do que naqueles anos 1980.

    Sergio Costa Ribeiro demonstrou para os brasileiros que no se devem temer patrulhas ideolgicas quando se trata de questes que afetam o pas de forma to central. Mas, com a aceitao das suas hipteses, que tambm pareceram ousadas na poca em que foram formuladas, acabou provando que gua mole em pedra dura tanto bate at que fura. Ali Kamel vai pelo mesmo caminho.

    Este livro reflete o percurso de Ali Kamel e tambm o de muitos brasileiros que levaram a srio os que propem a poltica de cotas raciais e aqueles que formulam as polticas sociais do governo. O que aqui se discute no diz respeito apenas universidade pblica ou aos que recebem os benefcios sociais. O que est em pauta a nossa concepo de nao, o nosso destino como pas e o nosso futuro. Os textos de Ali Kamel tm sido fonte riqussima de informao e de discusso para pesquisadores pelo pas afora. Os artigos revelam um cientista social acostumado a fazer perguntas e a desarmar as armadilhas do bvio, de discursos que tm pretendido se impor como discursos de verdade. Eu, particularmente, me encanto com seu estilo direto e elegante de tratar essas questes e, mais ainda, com o encontro com esse independente, iconoclasta e ousado crtico da poltica brasileira.

    Rio de Janeiro, 16 de abril de 2006

  • A G RAD ECIM EN TO S

    Fazer u m l iv ro com o e s t e r e q u f .r a a ju d a d e m u i t a s p e s s o a s e , n e s s e

    momento, quero agradecer a todas. A primeira delas minha mulher, Patrcia Kogut, sempre a primeira a ler meus artigos e a coment-los, melhorando-os com seus comentrios inteligentes e bem-humorados.

    No posso deixar tambm de agradecer a um grupo de cientistas sociais que, mesmo divergindo de mim em muitos aspectos, ajudaram-me, lendo os originais e fazendo crticas preciosas.

    Ao longo de muitos anos, sempre encontrei em Jos Roberto Pinto de Ges a figura de um amigo e de um irmo. Mais recentemente, tive dele tambm o olhar do historiador brilhante, que me ps no rumo certo sempre que eu me desviava dele. Se no obteve xito sempre, a culpa no dele, mas de minha teimosia.

    Yvonne Maggie, uma das antroplogas de maior brilho em nosso pas, brindou-me com a sua amizade e com uma troca de e- mails que alimentou meu gosto pela discusso: sei que ela guarda reservas em relao a posies minhas, mas sei ainda com mais certeza que isso no a afasta um milmetro sequer da disposio de ouvir e ponderar.

    A Peter Fry, eu agradeo pela leitura de seus livros e de seus artigos, que me levaram por caminhos que eu gostei de trilhar, apesar de ele me mostrar, muitas vezes, que o caminho que trilhei era um atalho que ele no percorreria.

  • 16 NO SOM OS RACISTAS

    iji =r% Numa pgina de agradecimentos, no posso deixar de mencionar o IBGE: num pas como o nosso, a existncia de uma instituio assim, to permanentemente excelente ao longo dos anos, simplesmente um blsamo. Quando se tem noo dos apertos financeiros do instituto, a dedicao e a competncia de seus pesquisadores se sobressaem ainda mais. Minhas reflexes sobre o tema s so possveis graas ao trabalho deles, graas a publicaes que se mantm, como rotina, em tempos bons ou em tempos maus. Meu acesso a esses trabalhos, e o de toda a imprensa, sempre aberto pela generosidade e pacincia de Luiz Mario Gazzaneo, Silvia Maia e Maria Lea.

    Por fim, importante mencionar que eu no teria tido minha ateno disciplinadamente voltada para os temas deste livro no fossem as colunas que passei a escrever no jornal O Globo, quinzenalmente, a partir de 2003. Da mesma forma, meu trabalho cotidiano na TV Globo, que me pe minuto a minuto frente ao que se passa no Brasil e no mundo, d a mim uma posio confortvel de observador (se fao bom uso disso, o leitor julgar). Assim, no posso deixar de agradecer, pelo estmulo e pela pacincia, a meus companheiros de jornal e de TV, todos eles, mas especialmente a Aluizio Maranho, Carlos Henrique Schroder, Merval Pereira e Rodolfo Fernandes. Terezoca, que poucos chamam de Maria Theresa Pinheiro, tem um papel importante nisso tudo: o meu "grilo falante" particular, sempre disposta a dizer o que pensa, sem medo de me contrariar (ao contrrio, com certo gosto).

    Joo Roberto Marinho tem sido sempre um incentivador, e sou grato a ele, de corao, pelas oportunidades que tive. A sorte dos leitores, e espectadores, que a crena que ele e seus irmos Roberto Irineu e Jos Roberto Marinho tm na pluralidade de idias faz com que O Globo e a TV Globo abram igualmente espaos para colegas que pensam o oposto de mim.

    Essa a beleza de uma imprensa livre.

  • A GNESE CO N TEM PO RN EA DA NAO BICO LO R

    Foi UM MOVIMENTO LENTO. SR G IU NA ACADEMIA, ENTRE ALGUNS SOCILOGOS

    na dcada de 1950 e, aos poucos, foi ganhando corpo at se tornar poltica oficial de governo. Mergulhado no trabalho jornalstico dirio, quando me dei conta do fenmeno levei um susto. Mais uma vez tive a prova de que os grandes estragos comeam assim: no incio, no se d ateno, acreditando-se que as convices em contrrio so to grandes e arraigadas que o mal no progredir. Quando acordamos, leva-se o susto. Eu levei. E, imagino, muitos brasileiros devem tambm ter se assustado: quer dizer ento que somos um povo racista?# Minha reao instintiva foi me rebelar contra isso. Em 2003, publiquei no Globo um artigo cujo ttulo dizia tudo: "No somos racistas." Depois dele, publiquei outros tantos e, hoje, vendo-os no conjunto, tenho a conscincia de que fui me dando conta do estrago medida que ia escrevendo. Escrevi sempre na perspectiva de um jornalista, de algum especializado em ver o imediato das coisas. Outros lutaram em seus campos, sempre com muita propriedade. Gente como os historiadores Jos Roberto Pinto de Ges, Manolo Florentino, Jos Murilo de Carvalho e Monica Grin, os antroplogos Yvonne Maggie, Peter Fry e os socilogos Marcos Chor Maio, Ricardo Ventura e Demtrio Magnoli e o jornalista Luis Nassif, entre tantos outros, tentaram alertar a sociedade brasileira para o perigo nos jornais, em artigos especializados, em seminrios e em livros.

  • 18 NO SOM OS RACISTAS

    O Na perspectiva de jornalista, de algum mais prximo do cidado comum, espantei-me diante de algumas descobertas. Um exemplo, o conceito de negro. Para mim, para o senso comum, para as pessoas que andam pelas ruas, negro era um sinnimo de preto. Nos primeiros artigos, eu me debatia contra uma leitura equivocada das estatsticas oficiais acreditando nisso. Certo dia, caiu a ficha: para as estatsticas, negros eram todos aqueles que no eram brancos. Cafuzo, mulato, mameluco, caboclo, escuri- nho, moreno, marrom-bombom? Nada disso, agora ou eram brancos ou eram negros. De repente, ns que ramos orgulhosos da nossa miscigenao, do nosso gradiente to variado de cores, fomos reduzidos a uma nao de brancos e negros. Pior: uma nao de brancos e negros onde os brancos oprimem os negros. Outro susto: aquele pas no era o meu.

    O debate em torno de raas no Brasil sempre foi intenso. Deixando de lado todo o debate entre escravocratas e abolicionistas, o Sculo XX foi todo ele permeado por essa discusso. Nas primeiras dcadas do sculo passado, o pensamento majoritrio nas cincias sociais era racista. Mas at ele reconhecia que o Brasil era fruto da miscigenao. O racismo era decorrente justamente dessa constatao: para que o pas progredisse, diziam os socilogos, era preciso que se embranquecesse, diminuindo a poro negra de nosso povo. Foi Gilberto Freyre quem mais se destacou em se contrapor a um pensamento to abjeto como este.

    # Freyre no foi o autor do conceito de "democracia racial", no foi ele quem cunhou o termo, hoje to combatido. Alis, era avesso a tal conceito, porque o que ele via como realidade era a mestiagem e no o convvio sem conflito entre raas estanques. Usou em discursos a expresso uma ou duas vezes, a partir da dcada de 1960, mas sempre como sinnimo de um modelo em que a miscigenao prevalece. Jamais edulcorou a escravido. Casa grande e

    senzala, a obra-prima de Freyre, dedica pginas e mais pginas ao relato das atrocidades que se fizeram contra os escravos. Est tudo

  • A G N E S E C O N T E M P O R N E A D A N A O B I C O L O R 19

    ali, todos os sofrimentos impostos aos escravos: o trabalho desumano nas lavouras, as meninas menores de 14 anos, virgens, violadas na crena de que o estupro curaria a sfilis, as mucamas que tinham os olhos furados e os peitos dilacerados apenas por despertar os cimes das senhoras de engenho. Freyre no omite nada; expe. claro que tambm reconhece no branco portugus uma elasticidade, sem o que no poderia ter havido mistura. claro que descreve certo congraamento entre o elemento branco e o negro. Essas caractersticas de Casa grande e senzala, no entanto, foram to realadas com o decorrer do tempo que muitos hoje acreditam, erradamente, que Freyre escondeu os horrores da escravido para fazer do Brasil mais do que uma democracia racial, um paraso.

    O papel de Freyre, porm, foi outro, muito mais marcante. No debate com o pensamento majoritrio de ento, o que Freyre fez foi resgatar a importncia do negro para a construo de nossa identidade nacional, para a construo da nossa cultura, do nosso jeito de pensar, de agir e de falar. Ele enalteceu a figura do negro, dando a ela sua real dimenso, sua real importncia. A nossa miscigenao, conclumos depois de ler Freyre, no a nossa chaga, mas a nossa principal virtude. Hoje, quando vejo o Movimento Negro depreciar Gilberto Freyre, detratando-o como a um inimigo, fico tonto. Os ataques s podem ser decorrentes de uma leitura apressada, se que decorrem mesmo de uma leitura.0 Como bem tem mostrado a antroploga Yvonne Maggie, a viso de Freyre coincidiu com o ideal de nao expresso pelo movimento modernista, que via na nossa mestiagem a nossa virtude. Num certo sentido, digo eu, a antropofagia cultural s poderia ser mesmo uma prtica de uma nao que em si uma mistura de gentes diversas.) Esse ideal de nao saiu-se vitorioso e se consolidou em nosso imaginrio. Gostvamos de nos ver assim, miscigenados. Gostvamos de no nos reconhecer como racistas. Como diz Peter Fry, a "democracia racial", longe de ser uma realidade, era um alvo a ser buscado permanentemente. Um ideal, portanto.

  • 20 NO SOM OS RACISTAS

    Isso jamais implicou deixar de admitir que aqui no Brasil existia o racismo. evidente que ele existia e existe, porque onde h homens reunidos h tambm todos os sentimentos, os piores inclusive. Mas a nao no somente no se queria assim como sempre condenou o racismo. Aqui, aps a Abolio, nunca houve barreiras institucionais a negros ou a qualquer outra etnia. E para combater as manifestaes concretas do racismo inevitveis quando se fala de seres humanos criaram-se leis rigorosas para punir os infratores, sendo a Lei Afonso Arinos apenas a mais famosa delas.

    Mas a partir da dcada de 1950, certa sociologia foi abandonando esse tipo de raciocnio para comear a dividir o Brasil entre brancos e no-brancos, um pulo para chegar aos que hoje dividem o Brasil entre brancos e negros, afirmando que negro todo aquele que no branco. Nos trabalhos de Florestan Fernandes, Fernando Henrique Cardoso, Oracy Nogueira e, mais adiante, Carlos Hasenbalg, se a idia era "fazer cincia", o resultado sempre foi uma cincia engajada, a favor de negros explorados contra brancos racistas. A idia que jazia por trs era que a imagem que tnhamos de ns mesmos acabava por ser malfica, perversa com os negros. Era como se o ideal de nao a que me referi tivesse como objetivo o seu contrrio: idealizar uma nao sem racismo para melhor exercer o racismo. O papel da cincia, "para o bem dos negros", seria desmascarar isso, tirando o vu da ideologia e substituindo-a pela realidade do racismo. Esse raciocnio levava, porm, ao paroxismo de permitir a suposio de que um racismo explcito melhor do que um racismo envergonhado, esquecendo-se de que o primeiro oprime sem pudor, enquanto o segundo, muitas vezes, deixa de oprimir pelo pudor.

    A chave metodolgica encontrada por essa certa sociologia foi importar dos Estados Unidos uma terminologia que no era a nossa, revestindo-a de uma nova roupagem. Na construo de Oracy Nogueira, aqui como l, seriamos negros e brancos, mas l o racismo seria de origem (demarcado pela ascendncia) e aqui, de marca

  • A G N ESE CO N TEM PO R N EA DA NAO BICO LO R 21

    (determinado pela aparncia). L, se um cidado de pele branca e olhos e cabelos claros tiver um negro como antepassado, distante que seja, toda a carga de preconceitos e interdies contra os negros em geral recair sobre ele. Aqui, mais valeria a aparncia do que a origem: um cidado de pele, olhos e cabelos claros, mesmo tendo negros na famlia, ser mais bem aceito que os negros em geral mas, na viso de Oracy, apenas at que ocorra uma briga, quando, ento, o primeiro xingamento a surgir na cabea do branco ser chamar o negro de "seu negro isso, seu negro aquilo".# Oracy relaciona toda uma srie de atributos relacionados ao preconceito de origem e ao de marca. Onde h preconceito de origem, diz ele, o negro excludo de certos direitos, segregado, no pode ter relaes de amizade com brancos, e, como conseqncia, muito mais consciente do preconceito que recai sobre si e, por isso, mais propenso a lutar como grupo pelo fim de injustias. Onde o preconceito de marca, explica Oracy, o negro mais preterido do que excludo (mas pode inclusive vir a ser aceito como um igual, como exceo), assimilado (e, nesse sentido, tenderia a desaparecer, pela miscigenao, o que, na viso dos brancos e sempre segundo Oracy, seria um resultado altamente esperado), pode cruzar as fronteiras da cor no estabelecimento de relaes de amizade, e, como conseqncia, menos consciente do preconceito que sofre e, por isso, menos disposto a lutar como grupo pelos seus direitos. Muito inteligente essa distino entre marca e origem, mas, na verdade, entendo que, diante de duas realidades absolutamente distintas a situao do negro nos EUA e no Brasil o que essa construo terica de Oracy faz torn-las parecidas, semelhantes.

    Em vez de ver as nossas especificidades e, diante delas, opor-nos frontalmente situao americana, Oracy acaba por nos igualar, tornando-nos, como sociedade, to racistas quanto os americanos. Ao reconhecer que no Brasil as relaes de amizade inter-raciais, os casamentos mistos, a inexistncia de barreiras institucionais

  • 22 NO SOM OS RACISTAS

    contra os negros, a ausncia de conflito e de conscincia de raa so uma realidade entre ns, Oracy poderia simplesmente chegar concluso de que no somos uma sociedade em que o racismo o trao dominante. Mas ele prefere se apegar s manifestaes concretas de racismo que aqui existem xingar o negro disso e daquilo, preterir o negro em favor do branco etc. e dizer que elas so a regra, quando na verdade so, se no a exceo, manifestaes minoritrias em nosso modo de viver.

    O racismo, l e aqui, sempre de origem. L, um sujeito de pele e olhos claros ser considerado negro apenas e se a sua ascendncia for conhecida, j que os americanos ainda no tm o dom da vidncia: se esconder a sua origem, passar inclume. Quem duvidar deve ler o romance A marca humana, de Philip Roth, em que um homem, filho de negros, nasce com pele e olhos claros, decide renegar a famlia e vive em paz como judeu at ser, injustamente, acusado de racismo por uma aluna negra. Um homem branco aqui, mas de famlia negra, no sofrer as agruras do racismo apenas se as suas origens no forem descobertas por um racista. Se forem, sofrer.

    O que quero dizer que racistas so iguais, aqui ou l fora. Impem um sofrimento terrvel. evidente que nos EUA o racismo rotineiramente mais duro, mais explcito, mais direto. Mas como saber se o xingamento aberto di mais ou menos do que o desprezo velado? No tenho dvidas de que um arranho di menos do que uma amputao, mas quem poder dizer se o sofrimento na alma que o racismo impe maior ou menor dependendo da rispidez do ato racista? No nego que l o repdio total a tudo o que vem dos negros; aqui, quase todos, mesmo os racistas, encantam-se com o que se considera ter vindo da frica. Mas a nossa principal diferena em relao aos americanos no apenas porque aqui, quando existe, o racismo se revela de maneira menos

    bvia. A nossa diferena que aqui, no h como negar, h um menor nmero dessa gente odiosa, os racistas.

  • A G N ESE CO N TEM PO R N EA DA NAO BtCO LO R 23

    No me agrada, portanto, essa diferena entre racismo de origem e racismo de marca, por mais engenhosa que ela seja. Sei que estou na contramo das interpretaes sobre a obra de Oracy, aplaudido por nos reconhecer como diferentes. Mas o que eu digo: ele no faz isso com o propsito de nos diferenciar, mas de explicar que, apesar das diferenas, somos iguais. Apesar de aparentemente diferentes, brasileiros e americanos so igualmente racistas. Tive pela primeira vez essa viso da obra de Oracy quando, num debate no Instituto de Filosofia e Cincias Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro, diante de toda a minha argumentao sobre como ramos uma sociedade essencialmente diferente no tocante ao racismo mais tolerante, buscando, ao menos como propsito, a prevalncia da crena de que as cores no tornam ningum melhor ou pior o socilogo Carlos Alberto Medeiros, com ar de enfado, aparteou-me dizendo: "Oracy Nogueira j explicou tudo isso. Aqui o preconceito de marca; l, de origem." E, depois de explicar didaticamente uma coisa e outra, concluiu dizendo que aqui e l somos racistas. Foi a primeira vez que, para mim, ficou claro que a obra de Oracy, inteligente e instigante, na verdade faz o que eu sublinho: iguala-nos em vez de nos diferenciar. E o Movimento Negro deu o salto: "Ora, se l e c, apesar das diferenas, somos igualmente racistas, por que no aplicar aqui o remdio de l, como cotas raciais?" E deu-se a importao acrtica de uma soluo americana para um problema americano. Hoje, ns, brasileiros, estamos tendo que nos haver com ela, apesar de nossas diferenas abissais.

    No, nossa especificidade no o racismo. O que nos faz diferentes que aqui, indubitavelmente, h menos racismo e, quando h, ele envergonhado, porque tem conscincia de que a sociedade de modo geral condena a prtica como odiosa. Isso um ativo de que no podemos abrir mo. O que a sociologia que dividiu o Bra-

    sil entre negros e brancos no percebe que, ao fazer isso, chancelou a construo racista americana segundo a qual todo mundo

  • 24 NO SOM OS RACISTAS

    que no branco negro. usar de uma metodologia racista para analisar o racismo.

    O trgico que essa sociologia ganhou espaos, cresceu e, como disse h pouco, foi totalmente acolhida pelo Movimento Negro j no final dos anos 1970. Hoje em dia, ganhou ares de verdade oficial. Quando me dei conta, o governo Fernando Henrique, com as melhores intenes, j tinha avanado em nossa remodelagem como uma nao bicolor, de negros e brancos, em que os ltimos oprimem os primeiros. engraado relembrar um episdio famoso ocorrido em 1994, no incio da campanha eleitoral. Em resposta a Orestes Qurcia, seu oponente, que o acusara de ter as "mos brancas", um eufemismo para acus-lo de nunca ter pego no trabalho pesado, o ento candidato Fernando Henrique declarou: "O candidato disse que eu tinha as mos brancas. Eu, no. Minhas mos so mulatinhas. Eu sempre brinquei comigo mesmo, tenho o p na cozinha. Eu nunca disse outra coisa, eu no tenho preconceito." A ironia que, com essa declarao, Fernando Henrique, para si prprio um branco, parecia discordar de Oracy Nogueira e demonstrar, que, no Brasil, a origem e no a marca que define a "raa". Ao contrrio de gerar solidariedade de "raa", a declarao de Fernando Henrique caiu como uma bomba no Movimento Negro, que ameaou process-lo por considerar os termos em que se expressou "pejorativos" e "preconceituosos". "S se ele filho de mula. Mulatinho o cruzamento com mula, no com negro", chegou a declarar Sueli Carneiro, do Instituto da Mulher Negra.

    Talvez tanto quanto os seus livros especficos sobre cor e raa, os seus discursos no governo so um bom caminho para que entendamos o que estava na cabea do poltico que iniciou a moldagem institucional de um pas bicolor. Em 2000, por exemplo, FH voltaria a falar de sua cor, ressaltando as suas origens. Na recepo ao presidente da frica do Sul, Thabo Mbeki, ele disse: "Basta olhar

    para mim para ver que branco no Brasil um conceito relativo." Naquele mesmo discurso, porm, FH ressaltou que o Brasil tinha

  • A C N ESE CO N TEM PO R N EA DA NAO BICO LO R 25

    uma vantagem em relao a outros pases: "Ns, os brasileiros, gostamos de ser misturados." Apesar desse reconhecimento, e fiel tradio sociolgica que d forma construo terica da nao bicolor, da qual fundador, ele salientou que os estudos no Brasil mostrariam que as desigualdades sociais no tm uma explicao apenas na pobreza, mas tm um fundamento racial. Para FH, a conseqncia, portanto, seria a necessidade de avanar, cada vez mais, em polticas que garantissem a incluso da populao negra. Um ano mais tarde, durante uma cerimnia sobre direitos humanos, o presidente explicaria ainda melhor o que pensa do tema, valendo-se para tanto de sua experincia como jovem pesquisador na dcada de 1950:

    Passei anos de minha vida, como socilogo, no incio de minha carreira, estudando os negros e a discriminao racial no Brasil nas camadas, naturalmente, mais pobres do pas, que so as populaes negras. De So Paulo at o Rio Grande do Sul, naquela poca, nos anos 1950, acredito que no houve favela que eu no tivesse palmilhado e no houve possibilidade de que eu no tivesse aproveitado para no apenas estudar, mas, com Florestan Fernandes, com Octvio Ianni, com Renato Jardim e com tantos outros, para demonstrar a realidade brasileira que, na poca, anos 50, no era percebida ainda pelas nossas elites como se fosse aflitiva. Pelo contrrio, se vivia embalado na iluso que isso aqui j era uma democracia racial perfeita, quando no era, quando at hoje no .

    Em 2000, Fernando Henrique concordou em reeditar Cor e mobilidade social em Florianpolis, que escrevera com Octvio Ianni, mas este no deu o aval iniciativa. FH ento lanou Negros em Florianpolis: relaes sociais e econmicas, o mesmo livro, mas sem a parte segunda, escrita por Ianni. Na ocasio, quando discursava no lanamento do livro, FH voltou a falar de mestiagem:

    Quando comeam a discutir muito, mostro a minha cor. Tem vrios aqui que podem fazer a mesma coisa. Isso aqui branco'/ duvidoso que

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    seja. Agora, que tem a moda de ver pelo DNA, v-se que a imensa maioria dos brasileiros tem sangue indgena. Ns somos muito mestios.

    Dessa vez, FH tira o p da cozinha e o pe na oca, no imagino por qu. As pesquisas do geneticista Srgio Pena nos mostram que 87% dos brasileiros tm ao menos 10% de ancestralidade genmi- ca africana. As mesmas pesquisas mostram que apenas 24% dos brasileiros tm ao menos 10% de ancestralidade genmica amerndia. Somos portanto mais negros do que ndios. No importa. FH nos reconhece majoritariamente mestios, o que nos diferenciaria do resto do mundo. Mas, na verdade, como Oracy, ele acaba por nos tornar semelhantes aos americanos. Acompanhem o raciocnio que ele desenvolve no mesmo discurso:

    Costumo dizer: o importante aqui no s s vezes dizer que temos muitas raas. Temos preconceito sim. Mas h um certo gosto pelo mestio tambm. Em outros pases, outras situaes, h at pases que avanaram democraticamente muito, mas avanaram cada um do seu lado. Aqui, houve mistura. No estou dizendo que seja bom ou mau. Acho bom. Mas o fato que isso altera tambm o tipo de preconceito, o modo como se faz o preconceito. ^5 vezes, at acentua, porque as pessoas querem fingir que no tm mistura. Mas tm, alguns, nem todos.

    , a meu ver, o mesmo trajeto de Oracy: mostrar-nos diferentes na aparncia para nos revelar iguais, talvez piores, na essncia: disfaradamente, sonsamente, racistas. Ainda no mesmo discurso, ele explica de onde vem essa sua crena, relembrando o tempo de jovem pesquisador:

    Nunca me esquecerei de que, nas muitas favelas pelas quais andei, as famlias negras viviam sempre nas reas mais pobres. O setor mais miservel da favela era onde estavam as famlias negras. Portanto, dizer que s uma questo de classe no certo.

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    Em essncia, como tentarei mostrar aqui, o discurso do presidente continuou o mesmo do jovem socilogo. verdade que o presidente pe uma nfase maior na "mistura", admitindo-a, mas ao mesmo tempo frisando que, de algum modo, ela pode agravar o problema do racismo. Em seus trabalhos da juventude, a "mistura", ou melhor, "o gosto pela mistura" no sequer abordado: nas sociedades que estudou, s havia espao para brancos explorando negros e mestios, cada qual sempre no seu canto. Mobilidade social em Florianpolis (1960), em parceria com Octvio Ianni, e Capitalismo e escravido no Brasil meridional (1962) tornaram-se dois clssicos da sociologia que repudiou como falsa a auto-imagem de tolerncia que o Brasil tinha de si. Ambos so, em grande medida, prisioneiros de um arcabouo terico datado, de um marxismo que, embora tenha se pretendido livre dos reducionismos meca- nicistas, no conseguiu pleno xito na empreitada. Pecados da juventude. Apesar disso, l-los hoje fundamental para entender por que foi no governo Fernando Henrique que o projeto daqueles que nos querem transformar numa nao bicolor alou um vo to alto. FH presidente foi sempre seguidor do jovem socilogo Fernando Henrique.

    E importante que o leitor tenha acesso a algumas passagens que eu classifico como fundamentais dos livros. As citaes so extensas, mas importantes. Em Cor e m obilidade social em Florianpolis, o jovem FH analisa a Florianpolis da dcada de 1950 a partir das condicionantes do passado de Desterro (nome que Florianpolis teve at o sculo XIX). Em linhas gerais, ele dir, bem ao estilo marxista, que, como o nvel de desenvolvimento econmico e as caractersticas da economia de Santa Catarina eram mais ou menos os mesmos da poca da escravido, pouca coisa tinha mudado nas relaes entre brancos e negros.

    Parece-nos que o ritmo de mudana da sociedade global, em Florianpolis, no ofereceu muitas oportunidades de ascenso social aos

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    elementos egressos da escravido ou das camadas sociais dependentes. As mudanas recentes apenas afetaram as condies nas quais eles prestam, regularmente, os seus servios. Tomando-se trabalhadores livres e assalariados, nem por isso conseguiram at recentemente, em escala aprecivel, novas oportunidades de especializao e classificao social.

    FH chega a dizer que a situao poderia vir a melhorar com a consolidao da sociedade de classes e com um desenvolvimento econmico maior, mas, por todo o livro, ele insistir na tese de que o preconceito racial ser uma barreira contra a ascenso dos negros. E de onde vem esse preconceito? Novamente, a explicao se ampara na comparao entre o perodo pr e ps Abolio. Numa comunidade em que, sem grandes riquezas, o branco, mesmo durante a escravido, teve de se submeter a trabalhos tambm executados pelos cativos, o preconceito no poderia vir de uma superioridade econmica explcita do branco, mas de atributos subjetivos, restos persistentes da ideologia do tempo em que a ordem escravocrata estava de p:

    Numa comunidade do tipo de Desterro, a discriminao que se exercia primeira e naturalmente quanto ao escravo transferia-se para os negros em geral e seus descendentes mestios. Este processo, que existiu em todo o Brasil, era possvel por causa da seleo de certos caracteres fsicos como elementos capazes de justificar uma desigualdade social em termos da existncia de uma desigualdade natural. Mas em Desterro, por causa da coexistncia do trabalho livre com o trabalho escravo e da inexistncia de condies materiais que possibilitassem a emergncia de um estilo de

    vida senhorial, a "desigualdade natural" entre negros e brancos sempre foi enfatizada vigorosamente, como uma espcie de elemento compensatrio da pequena diferena nas condies sociais de produo entre os negros e os brancos: ambos produziam de motu proprio os meios necessrios sobrevivncia. Dessa form a a discritninao que o senhor exercia

    sobre o escravo pde transformar-se na discriminao dos brancos, ainda que pobres, sobre os negros em geral, ainda que livres. E a discriminao

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    racial pde presewar-se mais facilmente depois da Abolio, porque esta no extinguiria obviamente nenhuma "desigualdade natural".

    Assim, para o jovem FH, em Florianpolis era o fato de que ambos, negros e brancos, trabalhassem mais ou menos igualmente que reforava o preconceito: j que socialmente brancos e negros no estavam distantes, era o apego a atributos naturais supostamente superiores que justificava o preconceito de brancos contra negros. Por outro lado, FH tambm diz no livro que, em cidades mais opulentas, o racismo advinha exatamente da dominao se- nhorial do branco sobre o negro: era a superioridade econmica que determinava a superioridade da raajNa viso do jovem FH, j

    j portanto, o preconceito era produto da superioridade econmica ' do branco, quando ela existia, e da ausncia dela, como em Floria

    npolis. Ou seja, como se no houvesse sada, j que situaes opostas provocam um mesmo resultado. Dessa tica, pode-se con- , cluir que, para o jovem FH, o homem branco acabava por ser, em :si, racista._____________________________________________________ I

    Em Capitalismo e escravido no Brasil meridional, um livro posterior, o jovem socilogo segue o mesmo caminho, analisando no o racismo dos racistas, mas dos brancos em geral, tendo como pano de fundo o Sul brasileiro:

    Com a desagregao da ordem servil, que naturalmente antecede, como processo, a Abolio, foi-se constituindo, pouco a pouco, o "problema negro" e, com de, intensificando-se o preconceito com novo contedo. Nesse processo o preconceito de cor ou raa transparece nitidamente na qualidade de representao social que toma arbitrariamente a cor ou outros atributos raciais distinguveis, reais ou imaginrios, como fonte para a seleo de qualidades estereotipveis. De um momento para o outro, o negro que fora sustentculo exclusivo do trabalho na escravido passa a ser representado como ocioso, por ser negro, e assim por diante.

  • NO SOM OS RACISTAS

    E prossegue:

    Cabe, entretanto, ponderar que as representaes estereotipadas faziam-se com "base na realidade". Seria falso supor que os brancos imputassem todos os atributos negativos aos negros como uma simples projeor- ..._'________ ___ou como simples recurso de autodefesa imaginrio.JNo se pode dizer que o "1 negro desordeiro, ocioso, bbado etc. era uma imagem criada pelo branco.Ao contrrio, e muito pior, o branco no criou apenas essa representao ( do negro: f-lo, de fato, agir dessa forma. E o fez tanto porque criou as con- \ dies de vida e de opo para os negros indicadas acima, quanto porque passou, ao mesmo tempo, a represent-los com essa imagem.

    Ou seja, agora, os brancos, e no apenas os racistas, so responsveis por fazer com que os negros sejam bbados, desordeiros e ociosos, e estes de fato seriam assim, o que uma generalizao absurda. uma viso demonaca do processo social, porque todobranco assim e todo negro assado^Em Cor e mobilidade, o branco atribua caractersticas negativas ao negro para compensar uma "igualdade" social dada por trabalhos mais ou menos equipar- veis. Agora, o negro j no trabalha, por culpa do branco, que, por esse motivo, o demoniza. Mas como a "base real" para a demoni- zao do negro criada pelo branco, este por sua vez demoniza- do por FH.

    No h meio tom.Em Capitalismo e escravido outro fenmeno chama a ateno:

    o engajamento. FH analisa com ateno as edies do jornal O Exemplo, editado por negros. Todo artigo que esteja em linha com as suas teses aplaudido; todo artigo que as contraria dado como exemplo de subordinao do negro ideologia do branqueamen- to. Convencido de que a razo da desigualdade o racismo dos brancos, FH desde o incio repudia a hiptese de que O preconcei- to seja contra o pobre em geral e no contra o negro. Ele cita, com o objetivo de refut-lo, o artigo de Dcio Vital, publicado pelo jornal em 1893, em que o autor d o seguinte testemunho:

  • A G N E S E C O N T E M P O R N E A D A N A O B I C O L O R 31

    Na verdade, o nico meio de um pobre-diabo pr-se a salvo dessa fera, desse monstro que faz de um pacato burgus um heri (o recmtamento) andar enfronhado numa sobrecasaca, seja ela preta ou esverdeada, azul ou cor de burro quando foge, a questo ser ou parecer o fato de gala. [...] E no h dvida que tem produzido efeito o meu estratagema: a minha pessoinha ainda no foi violada, at pelo contrrio tem sido alvo de interessantes equvocos: as patrulhas me deixam passar livremente e muitas vezes tenho ouvido um dos soldados dizer para o outro: "Deixa esse moo passar porque parece ser gente decente, algum bacharel baiano ou dentista carioca." E eu acolho essa opinio com soberba, porque, em suma, uma felicidade ser tratado por moo para quem costumavam apelidar de briguet, gente ordinria, vagabundos e quejandos pelo fato de ter a cor bronzeada.

    A reao de FH foi passar ao largo da discusso sobre se o preconceito racial pode ser mais apropriadamente descrito como o preconceito contra o pobre. Ele preferiu apontar o autor do artigo como um exemplo ntido do negro que, explorado, procura absorver, acriticamente, o ideal de nao sem preconceitos raciais, "defendido pelos brancos". curioso que FH d voz a um negro discordante, mas para diminu-lo, para coloc-lo na posio daquele que no sabe o que diz. Mais adiante no livro nos deparamos corh outro exemplo desse tipo de postura. Ele cita, novamente para desmerecer, um artigo de Miguel Cardoso, tambm publicado em 1893 em 0 Exemplo, em que o jornalista negro diz:

    Em nosso primeiro artigo nos comprometemos a provar o contrrio do que se estabelece ou por outra se tem estabelecido com relao ao que se chama preconceito de raa; preconceito este que muitos dos nossos julgam alusivos aos homens de cor em geral. Mas isso tanto assim no que muitos de nossos irmos so chamados a ocupar cargos pblicos; e alguns os ocupam debaixo de alta responsabilidade, bem a contento daqueles de quem so delegados; mostrando assim serem dignos de figurar no grande crculo da igualdade social. V, pois, o leitor que para

  • N O S O M O S R A C IS T A S

    esses no existe o preconceito de raa de que se queixam muitos. [...] Julgo assim provado que a instruo o nico motivo pelo qual eles tm o mrito que lhes dispensado e de que se torna merecedor todo homem que se impe a considerao pblica, pelos seus atos, ilustrao e iseno de carter.

    Em outro artigo, o mesmo Miguel Cardoso, ainda citado pelo

    jovem FH, escreve:

    Quando em primeiro artigo pedimos a nossos irmos de raa para no olvidarem-se de mandar educar seus filhos, foi porque razo nos sobrava para assim proceder, certos de que cumpriramos um dever de lealdade para aqueles que So nossos iguais. Sim! Temos razo para assim proceder, repetimos, porque muitos pais e mes esquecem o dever que tm de educar seus filhos, sem pensar que assim concorrem para que a ignorncia seja mantida muito alm de nossa expectativa.

    O que faz o jovem FH? Diante do sinal inequvoco de que a educao talvez fosse a porta para pr fim s desigualdades e, por tabela, para reduzir o preconceito, ele prefere classificar o depoimento como quimera:

    A iluso fundamental, nesse caso, no estava propriamente na negao da existncia de barreiras e preconceitos que condicionavam a integrao do negro sociedade de classes, mas na compreenso errnea do sentido dessas barreiras e preconceitos: o branco repudiaria o negro enquanto homem ignorante, no enquanto homem negro.

    Errnea? Ento em vez de explorar esse caminho, verificar o nvel educacional dos negros de ento, compar-los ao nvel educacional dos brancos pobres de ento, refletir at que ponto a hiptese pode ou no ser vlida, o jovem FH apenas a classifica deerrnea? Apesar de reconhecer no livro que a posio defendida por Miguel Cardoso o preconceito contra o pobre no era

  • A GN ESE CO N TEM PO R N EA DA NAO B ICO LO R 33

    solitria, mas esteve sempre acompanhada de muitos outros artigos, crticas e editoriais de O Exemplo, o jovem FH ignora a todos e cita apenas outro articulista do mesmo jornal, Esperidio Calisto, que escreveu "Pelo dever", para criticar a "iluso da sociedade sem preconceitos". Diz Calisto:

    Quanto a um ou outro elemento de cor preta ou parda ocupar posio oficial cie origem meramente poltica, porque desgraadamente ainda existem muitos a quem os bafejos de efmeras regalias obcecam-lhes de tal maneira os sentimentos nobresque no sentem ecoar em sua alma os estalidos das palmatoadas dadas entre muros da cadeia, em homens justamente conceituados, negociantes estabelecidos, simplesmente porque trazem o estigma da cor preta ou parda!

    Sobre este artigo, o jovem FH no poupa elogios: " uma das mais vigorosas e lcidas pginas j escritas sobre a significao da ascenso social de alguns negros no perodo inicial de formao de sistemas de classe."

    Miguel Cardoso iluso, submisso ideologia branca, partidrio do branqueamento; Esperidio Calisto lucidez, vigor, verdade. Por que um diz a verdade enquanto o outro se ilude? A resposta, espirituosa, uma s: porque o "verdadeiro" pensa como FH.

    curioso que o problema da educao tenha sido apenas superficialmente abordado nos dois livros do jovem FH. Em Cor e mobilidade, h meno a uma pesquisa restrita a um pequeno grupo de estudantes em que se diz que apenas 5% deles eram negros. Por que to poucos; como se dava o acesso de negros s escolas; haveria a interdio de negros s escolas; que impactos a educao de negros poderia vir a ter no futuro deles? No, o jovem FH no

    se interessa por esses temas. Fernando Henrique foi sem dvida um excelente presidente. Mudou a face do pas em muitos aspectos de maneira extremamente positiva: livrou-nos da inflao, tornou uma realidade a noo

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    de que no existe pas sem responsabilidade fiscal, reformou as instituies, tornando-as mais republicanas e impessoais, deixou para trs, com as privatizaes, o Estado-produtor, colocando o pas na direo do Estado-regulador e fornecedor de servios, iniciou a modernizao da administrao pblica e comeou a criar uma rede de proteo social queles que, mesmo diante de todos os recursos, no se movem sozinhos. Mas mudou tambm a face do pas em pelo menos um caso de uma maneira cujos efeitos podem vir a ser extremamente negativos. Quando se analisa o governo do presidente Fernando Henrique, tendo-se tomado conhecimento do que ele pensava quando jovem, entende-se melhor o impulso que polticas de preferncia racial tomaram em seus dois mandatos.

    Neste campo, nunca foi de fato to mentirosa a frase falsamente atribuda a ele: "Esqueam o que eu escrevi." A viso do jovem socilogo, em essncia, manteve-se na ao do presidente. Se a desigualdade entre negros e brancos reside em grande medida no racismo, no adianta apenas o esforo de investir na educao dos pobres, negros e brancos, com a inteno de tornar o pas mais justo\ Comear a investir na educao foi um passo que FH de fato deu: foi em seu governo que praticamente 100% das crianas de 7 a 14 anos passaram a freqentar a escola. Mas, ao mesmo tempo, FH deu curso institucionalizao da nao bicolor. Se o racismo na sociedade brasileira de fato um entrave substantivo mobilidade dos negros, educao somente no bastajj em 1995, primeiro ano do mandato, FH criou o Grupo de Trabalho Intermi- nisterial para a Valorizao da Populao Negra, com representantes da "comunidade afro-brasileira", como foi dito poca. Significativamente no dia 13 de maio de 1996, FH lanou o Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH). Entre muitas aes mais do que pertinentes para o combate ao racismo, o programa tinha

    metas claras no caminho da nao bicolor. Vale a pena destacar algumas delas;

  • A G N ESE CO N TEM PO R N EA DA NAO BICO LO R 35

    "Incluso do quesito 'cor' em todos e quaisquer sistemas de informao e registro sobre a populao e bancos de dados pblicos."

    "Incentivar e apoiar a criao e instalao, em nveis estadual e municipal, de Conselhos da Comunidade Negra."

    "Apoiar a definio de aes de valorizao para a populao negra e com polticas pblicas."

    "Apoiar as aes da iniciativa privada que realizem a discriminao positiva."

    "Desenvolver aes afirmativas para o acesso dos negros aos cursos profissionalizantes, universidade e s reas de tecnologia de ponta."

    E, talvez, a mais significativa das propostas:"Determinar ao IBGE a adoo do critrio de se considerar os

    mulatos, os pardos e os pretos como integrantes do contingente da populao negra."

    Felizmente, a determinao jamais entrou em vigor, e muitas das outras propostas demoraram a sair do papel (algumas jamais saram). Em outubro de 2001, o Brasil foi signatrio da III Conferncia Mundial das Naes Unidas de Combate ao Racismo, Discriminao Racial, Xenofobia e Intolerncia Correlata, que se realizou em Durban (frica do Sul). E no dia seguinte, como me disse uma amiga, todos ns acordamos num pas diferente, comprometido oficialmente com a adoo de polticas de preferncia racial. Foi um processo longamente estruturado, mas poca pouco acompanhado, pouco conhecido, pouco debatido. A dimenso do esforo foi dada pelo prprio presidente num discurso sobre direitos humanos j citado aqui:

    Participamos ativamente da reunio havida em Durban. No foiuma participao qualquer. Foi uma participao baseada em uni pro-cesso longo de preparao, de quase dois anos. Esse processo ofereceuaos brasileiros uma oportunidade extraordinria de discusso e de re-

  • N O S O M O S R A C IS T A S

    flexo para a superao do racismo e das diversas formas de discriminao em nossa sociedade.

    O projeto era audacioso, como previu o presidente no mesmo discurso:

    O Conselho Nacional de Combate discriminao dever estudar a adoo de polticas afirmativas em favor dos afro-descendentes. Essas polticas se referem a temas concretos: investimentos preferenciais na rea da educao, sade, habitao, saneamento, gua potvel, controle ambiental nas regies ou reas habitadas majoritariamente por afro- descendentes, quer dizer, as mais pobres do pas, em geral; destinao de recursos piiblicos, inclusive com a participao da iniciativa privada nas bolsas de estudo para estudantes negros, projetos de desenvolvimento sustentvel nas comunidades quilombolas, projetos para a formao de lideranas negras, projetos de apoio a empreendedores negros, projetos de intercmbio com pases africanos e troca de experincias com instituies de outras regies.

    Em 13 de maio de 2002, FH lanou o segundo Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH) e, na mesma data, instituiu, por decreto, o Programa Nacional de Aes Afirmativas, muito ambicioso. Destaco aqui, porm, um nico ponto, o inciso primeiro do artigo segundo, que resume bem o esprito do programa, ao determinar "a observncia, pelos rgos da Administrao Pblica Federal, de requisito que garanta a realizao de metas percentuais de participao de afro-descendentes, mulheres e pessoas portado

    ras de deficincias fsicas no preenchimento de cargos em comisso do Grupo-Direo e Assessoramento Superiores DAS". Em pleno ano eleitoral, e tendo apenas o segundo semestre para se viabilizar, o plano no foi adiante. Mas a mudana de mentalidade no pas j havia sido operada. FH estava consciente disso. No discurso de

    lanamento do segundo PNDH, o presidente, depois de inventariar brevemente o que o 5eu governo tinha feito na rea at ali, disse;

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    Quero concluir reafirmando que to importante quanto medidas concretas que tm sido adotadas pelo governo federal, bem como pelos estados e municpios, a mudana que est ocorrendo no plano das menta- lidades. Alteram-se, a olhos vistos, os padres de legitimidade. Prticas que eram toleradas, h alguns anos, no o so mais, seja no tocante comunidade negra, seja na questo do gnero ou, ainda, no tratamento das minorias e de outros grupos mais vulnerveis.

    O discurso de FH a demonstrao de satisfao por ter contribudo, de modo decisivo, para que as mazelas que afligem os negros no mais fossem atribudas pobreza, mas passassem a ser tratadas tambm como produto do preconceito e do racismo da sociedade brasileira. Para quem, desde jovem, se dedicou com afinco ao tema, era mesmo um momento especial.

    De fato, o ambiente no Brasil passou, cada vez mais, a ser extremamente propcio para que discusses desse tipo aflorassem pas afora. O governo FH jamais props formalmente ao Congresso a adoo de cotas para negros em universidades (o mximo que fez, como mostrei h pouco, foi apoiar a adoo de polticas afirmativas nesse campo, sem especificar quais). Mas o pas andou sozinho. Em novembro de 2001 a Universidade do Estado do Rio de Janeiro tornou-se a primeira universidade a adotar o sistema de cotas, no que foi seguida por muitas outras, num processo rpido de disseminao: Universidade de Braslia, Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul, Universidade Estadual da Bahia e tantas outras.

    Quando eu j finalizava os trabalhos com vistas publicao deste livro, tive oportunidade de uma rpida conversa sobre o tema com o ex-presidente. Quando eu lhe disse que a ao dele no governo, no tocante questo racial, guardava coerncia com o que ele escrevera quando jovem, ele respondeu: "Eu acho que

    tenho sido razoavelmente coerente com o que penso. Claro, evolu com o tempo, mas guardei meus valores." Como j apontei

  • NO SOM OS RACISTAS

    mais acima, diferena do jovem socilogo, em nossa conversa o ex-presidente ps mais nfase no gosto do brasileiro pela mistura, em contraposio s situaes vividas por outros pases, mas, uma vez mais, ele se alongou na explicao sobre que perigos esse gosto pode trazer:

    Aqui e (espero) ser sempre outra coisa. Se assim, por que programas especiais? No fundo, porque eu acho que a vigncia do mito da democracia racial no o coroamento da convivncia mais amena e gostosa que de fato h entre nossos "brancos" e os outros, mas uma ponta de negao ideolgica da mistura que constitui o ceme da nossa "etnia".

    Na conversa, ele se revelou contra cotas nas universidades:

    Da a enrijecer o esprito com cotas vai uma distncia grande e nela mora o perigo. Eu prefiro, por exemplo, a soluo dada no ltamaraty [bolsas para estudantes negros se aperfeioarem para o concurso de entrada] do que a rigidez de somar no sei quantos pontos s notas de quem for "negro" ou "ndio".

    Jt concluiu, fazendo uma espcie de ponte entre o que pensava quando jovem e o que pensa agora, na maturidade, revelando mais coerncia do que contradio:

    A dificuldade para lidar com essas questes no Brasil que no d para "americanizar" e, eventualmente, criar racismo, nem para descuidar e deixar, em nome de nosso igualitarismo racial terico, que os negros e que tais continuem margem das oportunidades.

    Um leitor mais apressado, tendo em mente a fora que a adoo de cotas raciais tomou no pas, poderia concluir que estamos diante de um caso clssico do cientista que, em relao sua criatura,

    lamenta: "Criei um monstro." No creio que se trate disso. No h contradio entre o fato de FH ser contra as cotas e, ao mesmo

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    tempo, seu governo ter contribudo para que elas tenham se tornado uma realidade. No comando da nao, inequivocamente, FH adotou polticas que tinham como pressuposto a existncia, entre ns, de entraves motivados pelo racismo para o progresso social dos negros. Uma vez iniciado o processo, ele ganhou fora prpria e adquiriu contornos que ningum molda a priori. O Estado nunca foi FH, e, justia seja feita, ele nunca agiu para que fosse. No importa que pessoalmente ele rejeitasse, e ainda rejeite, as cotas a adoo delas s se tornou possvel porque, no governo, ele agiu de forma decisiva para que o ideal de nao miscigenada e tolerante fosse substitudo pela nao bicolor em que brancos oprimem negros.

    FH quem opera e institucionaliza essa mudana. O que o presidente Lula fez depois foi dar seqncia, foi seguir adiante, e, tambm aqui, como em tudo mais, sem sutilezas e de maneira canhestra. Criou uma Secretaria da Igualdade Racial, patrocinou o projeto que torna obrigatria a poltica de cotas nas universidades federais e apoiou o Estatuto da Igualdade Racial, que racializa todas as relaes entre os cidados do Estado brasileiro. Lanou ainda as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educao das Relaes tnico-raciais e para o Ensino de Histria e Cultura Afro-brasileira e Africana, em que se diz textualmente que os negros foram submetidos a uma poltica de eliminao fsica depois da Abolio, uma falsidade histrica, como denunciou o historiador Jos Roberto Pinto de Ges. Nisso foi ajudado por ONGs, institutos de pesquisas, nacionais e estrangeiros, que, ao apontar corretamente a desigualdade entre brancos e negros, deram como justificativa o racismo, sem que os nmeros lhes dessem base para tanto.

    E se os trs, o jovem FH, o presidente FH e o presidente Lula, estiverem errados? Num pas em que no ps-Abolio jamais exis

    tiram barreiras institucionais contra a ascenso social do negro,n u m p as e m que os acessos a empregos pblicos e a vagas em

  • 40 NO SOMOS RACISTAS

    instituies de ensino pblico so assegurados apenas pelo mrito, num pas em que 19 milhes de brancos so pobres e enfrentam as mesmas agruras dos negros pobres, instituir polticas de preferncia racial, em vez de garantir educao de qualidade para todos os

    pobres e dar a eles a oportunidade para que superem a pobreza de acordo com os seus mritos, se arriscar a pr o Brasil na rota de um pesadelo: a ecloso entre ns do dio racial, coisa que, at aqui, no conhecamos. Quando pobres brancos, que sempre viveram ao lado de negros pobres, experimentando os mesmos dissabores, virem-se preteridos apenas porque no tm a pele escura, estar dada a ciso racial da pobreza, com conseqncias que a experincia internacional d conta de serem terrveis.

    A nao que sempre se orgulhou de sua miscigenao no me

    rece isto.Ao longo dos ltimos anos, tenho me dedicado a debater todas

    essas questes. A minha nfase tem sido refutar leituras apressadas de estatsticas oficiais, que distorcem a realidade em favor de um Brasil bicolor. Tenho procurado mostrar que, mais que ao racismo, a m situao do negro no Brasil se deve pobreza e que no existem atalhos fceis para super-la, como cotas ou polticas assistencialistas. O nico caminho seguro para que o pas se torne mais justo a educao.

    Eu acredito que majoritariamente ainda somos uma nao que acredita nas virtudes da nossa miscigenao, da convivncia harmoniosa entre todas as cores e nas vantagens, imensas vantagens, de sermos um pas em que os racistas, quando existem, envergonham-se do prprio racismo. Os leitores que pensam como eu tero neste livro um guia que desmistifica o discurso oficial, procura dar uma leitura correta das estatsticas e tenta mostrar por que os gastos com polticas assistencialistas, paradoxalmente, perenizam a pobreza em vez de super-la. Este livro uma seqncia dos

    artigos que publiquei no Globo sobre o tema, reescritos, atualiza

  • A G N E S E C O N T E M P O R N E A D A N A O B I C O I O R 41

    dos, ampliados. Os leitores que pensam diferente tero mais uma oportunidade de se dar conta de que aqueles que, como eu, so contra a transformao do Brasil numa nao bicolor e condenam a adoo de medidas racistas para combater o racismo no esto do outro lado.

    Estamos todos do mesmo lado. Mas temos solues diferentes para o problema que aflige a todos.

  • RAAS NO EX ISTEM

    0 N O FAZ MUITO TEMPO, UM COMENTARISTA DE TV A CABO DISSE, CONFIANTE,que certas doenas e certas qualidades so geneticamente determinadas pela raa. Ouvi tambm um jornalista de rdio dizer, em relao a um jogador humilhado em campo porque negro, que nada se pode fazer quando se quer mencionar o nome de uma raa: "O nome da raa negra", ele disse. E, claro, impossvel esquecer o ento candidato Lula, em 2002, afirmando, num debate, que certamente haveria uma maneira cientfica de determinar se algum da raa negra. O curioso que as trs manifestaes se deram num contexto de repdio ao racismo. O que eles desconhecem que acreditar que raas existem a base dc todo racismo. Raas no existem.

    Nos ltimos trinta anos, este o consenso entre os geneticistas: os homens so todos iguais ou, como diz o geneticista Srgio Pena, os homens so igualmente diferentes.

    O mesmo no se d com os animais. Tomemos o exemplo dos ces. Todos sabemos que h vrias raas da espcie canina. Elas so bem diferentes entre si, tanto na aparncia quanto no comportamento: h raas maiores e menores, compridas e curtas, inteligentes e obtusas, dceis e agitadas. Qualquer um saber dizer, de longe, qual o bass e qual o dogue alemo. Pois bem, o que faz o bass e 0 dogue alemo serem de raas diferentes que basss se pare-

  • 4 4 N O S O M O S R A C IS T A S

    cem mais com basss, do ponto de vista da gentica, do que com dogues alemes. Rena um grupo de basss: haver animais mais compridos que outros, mais altos que outros, com focinhos mais pontudos que outros. Mas a variabilidade entre basss ser sempre menor do que entre basss e dogues alemes.

    Com homens, isso no acontece, e isso a nossa beleza, a nossa riqueza, a nossa sorte. Fico totalmente perturbado de comparar homens e ces, mas a falta de informao de muitos que me leva a usar expediente to constrangedor.

    Consideremos dois grupos. O primeiro com aqueles que o senso comum diz ser da "raa" negra: homens de cor preta, nariz achatado e cabelo pixaim. O segundo com aqueles que o mesmo senso comum diz ser da "raa" branca: homens de cor branca, nariz afilado e cabelos lisos.O Desde 1972,apartirdosestudosdeRichardLewontin,geneticistade Harvard, o que a cincia diz que as diferenas entre indivduos de um mesmo grupo sero sempre maiores do que as diferenas entre os dois grupos, considerados em seu conjunto. No grupo de negros haver indivduos altos, baixos, inteligentes, menos inteligentes, destros, canhotos, com propenso a doenas cardacas, com proteo gentica contra o cncer, com propenso gentica ao cncer etc. No grupo de brancos, igualmente, haver indivduos altos, baixos, inteligentes, menos inteligentes, destros, canhotos, com propenso a doenas cardacas, com proteo gentica contra o cncer, com propenso gentica ao cncer etc. Ou seja, no interior de cada grupo, a diversidade de indivduos grande, mas ela se repete nos dois conjuntos. A nica coisa que vai variar entre os dois grupos a cor da pele, o formato do nariz e a textura do cabelo, e, mesmo assim, apenas porque os dois grupos j foram selecionados a partir dessas diferenas. F,m tudo o mais, os dois grupos so iguais. Na comparao odiosa, dois basss so geneticamente mais homogneos do que um bass e um dogue alemo e, por isso, formam duas raas distintas. Com os homens, isso no acontece.

  • R A A S N O E X I S T E M 45

    6 O genoma humano composto de 25 mil genes. As diferenas mais aparentes (cor da pele, textura dos cabelos, formato do nariz) so determinadas por um conjunto de genes insignificantemente pequeno se comparado a todos os genes humanos. Para ser exato, as diferenas entre um branco nrdico e um negro africano compreendem apenas uma frao de 0,005 do genoma humano. Por essa razo, a imensa maioria dos geneticistas peremptria; no que diz respeito aos homens, a gentica no autoriza falar em raas. Segundo o geneticista Craig Venter, o primeiro a descrever a seqncia do genoma humano, "raa um conceito social, no um conceito cientfico".

    Uma fonte de confuso so estudos freqentemente divulgados em que se diz que uma doena mais comum entre negros ou entre brancos, ou entre amarelos. Isso nada tem a ver com raa, mas

    com grupos populacionais, que se casam mais freqentemente entre si. Seria preciso que os genes que determinam a cor da pele tambm determinassem essa ou aquela doena para se relacionar a "raa" e a doena, e isso no existe. A cincia j mostrou que a associao entre raa e doena no passa de um mito, como me disse o geneticista Antnio Sol-Cava, da UFRJ.

    Por exemplo, o caso da anemia falciforme entre negros. Sabe-se hoje que quem tem essa doena tambm mais resistente malria. No toa, o gene da anemia falciforme mais freqente em algumas reas da frica onde a presena do mosquito transmissor da malria maior, fato determinado pela seleo natural. Nas outras regies da frica, o gene da anemia falciforme raro. Assim, no se pode dizer que todo negro tem uma maior probabilidade de ter este gene: apenas aqueles, mesmo assim nem todos, com antepassados vindos de certas regies onde o mosquito transmissor era numeroso.

    Alm disso, se os negros oriundos daquelas regies tm mais freqentemente o gene da anemia falciforme, isso no torna o gene exclusivo desse grupo. Isso vale para qualquer doena, para

  • 46 NO SOMOS RACISTAS

    qualquer grupo. To logo o indivduo portador de certo gene se case com outro que no tenha o gene, o filho dessa unio poder vir a herd-lo. No caso de um negro e uma branca: se o filho herdar uma pele mais clara e se casar com uma branca, o filho dessa nova unio poder ser branco e, mesmo assim, herdar o gene. Definitivamente, no existem genes exclusivos de uma determinada cor. Numa sociedade segregada como a americana, talvez seja mais comum que grupos populacionais tenham uma carga gentica mais parecida. Em lugares em que a miscigenao predomina, como aqui, isso muito mais improvvel.q A cor da pele no determina sequer a ancestralidade. Nada garante que um indivduo negro tenha a maior parte de seus ancestrais vindos da frica. Isso especialmente verdadeiro no Brasil, devido ao alto grau de miscigenao. O geneticista Srgio Pena j mostrou isso num estudo brilhante. Usando os marcadores moleculares de origem geogrfica, ele analisou o patrimnio gentico de cidados negros da cidade mineira de Queixadinha e descobriu que 27% deles tinham uma ancestralidade predominantemente no-africana, isso , maior do que 50%. Considerando-se os brancos de todo o Brasil, descobriu-se que 87% deles tm ao menos 10% de ancestralidade africana. Nos EUA, esse nmero cai para apenas 11%. Ou seja, no Brasil, h brancos com ancestralidade preponderante africana e negros com ancestralidade preponde-rante europia. Somos, graas a Deus, uma mistura total________O A crena em raas, porm, no apenas fruto da ignorncia. Volta e meia surge dentro da prpria cincia algum disposto a desafiar o consenso reinante: o destino de todos eles o esquecimento, mas, quando surgem, fazem muito barulho. E o caso do bilogo britnico Armand Marie Leroi. Em 2005, ele escreveu um explosivo artigo para o New York Times, asseverando que raas no somente existem como seu conceito bem-vindo, j que ajudaria no diagnstico e tratamento de certas doenas, mito, como

    j v im o s , j d e s fe ito . j o s a rg u m e n to s d e L ero i so n a v erd a d e u m a

  • R A A S N O E X I S T E M 4 7

    revalidao das antigas crenas dos antroplogos do sculo XVIII que criaram a noo de raa. Em resposta, dezenas de cientistas escreveram artigos reafirmando as descobertas da gentica. No disseram, mas eu repito o que sempre digo: o racismo est em todo lugar. Entre cientistas, inclusive.

    Raa, at aqui, foi sempre uma construo cultural e ideolgica para que uns dominem outros. A experincia histrica demonstra isso. No Brasil dos ltimos anos, o Movimento Negro parece ter se esquecido disso e tem revivido esse conceito com o propsito de melhorar as condies de vida de grupos populacionais. A estratgia est fadada a nos levar a uma situao que nunca vivemos: o dio racial. Onde quer que o conceito de raa tenha prevalecido, antagonismos insuperveis surgiram entre os grupos, e deram origem muitas vezes a tragdias. Por que aqui seria diferente?Q Alguns socilogos defendem a manuteno do conceito de raa, mesmo admitindo que, do ponto de vista cientfico, raas no existem. Antnio Srgio Alfredo Guimares, por exemplo, diz em seu livro Classes, raas e democracia que raa seria a nica categoria analtica "que revela que as discriminaes e desigualdades que a noo brasileira de 'cor' enseja so efetivamente raciais e no apenas de 'classe'". No entendo a explicao. Se algum discrimina algum por acreditar que existem elementos inatos em seu grupo que o tornam superior a outros grupos, e se essa crena falsa, continuar usando a noo de raa ter como efeito inequvoco o reforo da noo de raa, e no o contrrio. As discriminaes no sero nunca "efetivamente" raciais, porque raas no existem: as discriminaes sero sempre efetivamente "odiosas", "irracionais", "delirantes", "criminosas". Elas s seriam "efetivamente" raciais se a motivao da discriminao estivesse calcada em uma realidade a existncia de raas humanas , e no numa crena irracional.

    G u im a r e s ta m b m a lu d e , sem d a r nomes, a uma outra verten

    te das cincias sociais, que ele chama de pragmtica. Nas palavras

  • dele: "Assim como aceitamos, h sculos, a teoria copemicana sem que deixemos de organizar as nossas experincias dirias em torno da crena de que o sol se pe e se levanta, assim tambm acontece com a crena em 'raas'. Continuamos a nos classificar em raas, independente do que nos diga a gentica." No sei de onde essa tal corrente tirou comparao to descabida. Coprnico jamais revogou o dia e a noite, nem o fato de que "efetivamente" o Sol nasce e se pe diariamente. O que ele fez foi demonstrar que no o Sol que gira em torno da Terra, mas a Terra que gira em torno do Sol, o que, se tem influncia nula no raiar do dia e no entardecer, modificou totalmente a vida do homem no planeta, tornando possvel um entendimento melhor do universo e coisas mais prticas, como ir Lua e pr um satlite em rbita, o que possibilita coisas to comezinhas como falar ao telefone ou transmitir imagens e dados vencendo distncias continentais. Assim como Coprnico deixou para trs "certezas" baseadas no em fatos, mas na f, a gentica permitiu enterrar de vez a crena odiosa de que existem grupos de homens com caractersticas tais que os diferem fundamentalmente de outros, tornando-os uns superiores aos outros. Ignorar isso abraar o irracionalismo.

    Raas no existem. No Brasil, pas m iscigenado, isso ainda mais evidente. Nos prximos captulos vou mostrar, porm, como se tem feito um esforo enorme para pr fim a essa verdade.

  • SUM IRAM COM OS PARDOS

    O LEITOR CERTAMENTE J OUVIU OU LEU ESTA FRASE: A POBREZA NO BRA SIL

    tem cor, e ela negra. uma frase sempre presente nos trabalhos de pesquisadores que culpam o racismo brasileiro pela situao de penria em que vive a maior parte dos negros. Os nmeros que eles divulgam so de fato eloqentes. Eles sempre dizem que os brancos no Brasil so 51,4% da populao; e os negros, 48%. E se perguntam: "Ser que a pobreza acompanha esses mesmos critrios demogrficos?" E respondem que no: dos 56,8 milhes de brasileiros pobres, os brancos so apenas 34,2%, e os negros representam 65,8% do total. E concluem: os negros so pobres porque no Brasil h racismo.

    Os nmeros so eloqentes, mas inexatos. Segundo o IBGE, os negros so 5,9% e no 48%. Os brancos so, de fato, 51,4% da populao. A grande omisso diz respeito aos pardos: eles so 42% dos brasileiros. Entre os 56,8 milhes de pobres, os negros so 7,1%, e no 65,8%. Os brancos, 34,2%, e os pardos, 58,7%. Portanto, se a pobreza tem uma cor no Brasil, essa cor parda. O que fazem os defensores da tese de que no Brasil brancos oprimem os negros juntar o nmero de pardos ao nmero de negros, para que a realidade lhes seja mais favorvel: apenas somando-se negros e pardos que o nmero de pobres chega a 65,8%. Isso fica evidente na seguinte tabela:

  • NO SOMOS RACISTAS

    TOTAL DE BRASILEIROS E BRASILEIROS POBRES, SEGUNDO A COR.

    BRASIL - PESQUISA NACIONAL POR AMOSTRA DE DOMICLIOS

    (PNAD) 2 0 0 4

    ' ' - | \ / > ; ' : , '"" ' "

    Nmero de brasileiros

    Brasileiros pobres em pobres em

    Total 18 2 5 7 3 1 ,2 %

    Brancos 93 19 3 4 ,2 %

    Negros 11 4 7 ,1 %

    Pardos 76 34 5 8 ,7 %

    Negros + pardos 8 7 38 6 5 ,8 %

    Os artigos desses pesquisadores, seguindo as categorias usadas pelo IBGE, primeiro estratificam a populao entre brancos, pretos (que eu chamo aqui negros), pardos, amarelos e indgenas para, logo depois, agrupar negros e pardos e cham-los a todos de negros (desse ponto em diante, em todas as estatsticas, h apenas meno a negros, mas, na verdade, os nmeros se referem sempre soma de pardos e negros). Geralmente os pesquisadores fazem a seguinte observao, em letras pequenas, ao p da pgina: "A populao negra ou afro-descendente corresponde ao conjunto das pessoas que se declaram pretas ou pardas nas pesquisas do IBGE." somente assim que a j batida afirmao de que o Brasil tem a maior populao negra depois da Nigria se sustenta: juntando-se os negros aos pardos de todos os matizes, do quase branco ao quase negro.

    Como apontei na introduo, trata-se de uma m etodologia nascida na sociologia da dcada de 1950 e hoje vitoriosa: negros so todos aqueles que no so brancos. Nas universidades, tal con- ceituao hoje to corrente que, diante de uma argumentao como a minha, os especialistas, constrangidamente, costumam me desqualificar dizendo que eu no sou "do campo". De fato no sou. Embora tenha me formado em cincias sociais em 1983, toda

    a minha vida profissional foi dedicada ao jornalismo. No considero isso um problema, porm. Isso me alinha imensa maioria

  • SUMIRAM COM OS PARDOS 51

    dos brasileiros que diante de nossa gente enxerga todo um arco- ris de cores, do mulato clarinho ao mulato escuro, do cafuzo ao mameluco, do moreno ao escurinho, do pretinho ao marrom- bombom. preciso ento que os leitores tenham em mente que, toda vez que estiverem diante de uma estatstica que envolva a cor dos indivduos, os nmeros relativos aos negros englobam sempre os nmeros relacionados aos pardos. Na caminhada que esse livro prope, esse esclarecimento fundamental. Eu sempre chamarei os pretos de negros.

    O problema definir o que pardo. Para mim, constrangedor ter de discutir nesses termos, eu que no tenho a cor de ningum como critrio de nada. Mas, infelizmente, a lgica que reina no debate, e eu tenho de me curvar a ela. A funcionria do IBGE que me ajuda com os nmeros se disse parda ao censo, "parda como a Glria Pires". Mas, para muitos, a Glria Pires branca. Digo isso com real preocupao: quem pardo? O pardo um branco meio negro ou um negro meio branco? Chamar um pardo de afro-des- cendente mais do que inapropriado, errado.

    Tenho uma amiga cujo pai negro assim como todos os ascendentes dele. A me italiana, assim como todos os ascendentes dela. Como cham-la apenas de afro-descendente? Por que lgica? Se alguma lgica existe, o correto seria cham-la de talo-afro- descendente ou afro-talo-descendente, como preferirem. E como todos os pardos so, na origem, fruto do casamento entre brancos (europeus) e negros (africanos), os pardos deveriam ser genericamente chamados de euro-afro-descendentes. Teriam, ainda assim, direito a cotas ou a outras polticas de preferncia racial ou o prefixo "euro" os condena irremediavelmente? Falando assim, to cruamente, pretendo deixar claro como todas essas definies so em si racistas. Porque no devemos falar em negros, pardos ou brancos, mas apenas em brasileiros.

    Somar pardos e negros, portanto, seria apenas um erro metodolgico se no estivesse na base de uma injustia sem tamanho.

  • 52 NO SOMOS RACISTAS

    Porque todas as polticas de cotas e aes afirmativas se baseiam na certeza estatstica de que os negros so 65,8% dos pobres, quando, na verdade, eles so apenas 7,1%. Na hora de entrar na universidade ou no servio pblico, os negros tero vantagens. Os pardos, no. Do ponto de vista republicano, isso grave. Na hora de justificar as cotas, os pardos so usados para engrossar (e como!) os nmeros. Na hora de participar do benefcio, so barrados. Literalmente.

    Em 2003, a Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul instituiu cotas para negros em seu vestibular: 20% das vagas, 328 lugares. Para a seleo, 530 estudantes se disseram negros e tiveram de apresentar foto colorida de tamanho cinco por sete. Uma comisso de cinco pessoas foi constituda para analisar as fotos segundo alguns critrios. S passariam os candidatos com o seguinte fen- tipo: "Lbios grossos, nariz chato e cabelos pixaim", na definio dos avaliadores. Setenta e seis foram rejeitados por no terem tais caractersticas. Provavelmente, eram pardos.

    Que o Brasil injusto, no h dvida, mas criar mais uma injustia algo que no se entende. Por que os pardos, usados para justificar as cotas, tero de ficar fora delas, mesmo sendo to pobres quanto os negros? Porque alguns tm nariz afilado ou cabelos ondulados? E por que os brancos, mesmo pobres, sero condenados a ficar fora da universidade? Os defensores de cotas raciais dizem que os brancos so apenas" 34,2% dos pobres. Apenas? Estes 34,2% significam 19 milhes de brasileiros, um enorme contingente que ser abandonado prpria sorte. A simples existncia de tantos brancos pobres desmentiria por si s a tese de que a pobreza discrimina entre brancos e negros: em pases verdadeiramente racistas, o nmero de pobres brancos jamais chega prximo disso. Da mesma forma, o enorme nmero de brasileiros que se declaram pardos, 76 milhes numa populao de 182 milhes, j mostra que somos uma nao amplamente miscigenada. Comoo pardo tem de ser, necessariamente, o resultado do casamento entre brancos e negros, o nmero de brasileiros com algum negro

  • SUMIRAM COM OS PARDOS 53

    na famlia necessariamente alto. Isso seria a prova de que somos uma nao majoritariamente livre de dio racial (repito que, sim, sei que o racismo existe aqui e onde mais houver seres humanos reunidos, mas, certamente, ele no um trao marcante de nossa identidade nacional).

    Todos esses nmeros s reforam a minha crena de que polticas de cotas raciais so extremamente prejudiciais e injustas. Em todas as universidades que instituram polticas assim, h discusses antes no conhecidas entre ns: negros acusando nem to negros assim de se beneficiarem indevidamente de cotas; pardos tentando provar que o cabelo pode no ser pixaim, mas a pele escura; e brancos se sentindo excludos mesmo sendo to pobres quanto os candidatos negros beneficiados pelas cotas. Dizendo claramente: corremos o srio risco de, em breve, ver no Brasil o que nunca houve, o dio racial, e va ^ (.

    Os defensores de cotas raciais se justificam, alegando que chamam a pardos e negros indistintamente de negros porque os dois grupos tm desempenhos em tudo semelhantes em diversos indicadores sociais. Como eu disse, seria rotina acadmica junt-los e cham-los de negros. E tentam afastar o perigo que venho apontando, dizendo que ningum discute que as cotas beneficiaro tan

    to negros como pardos, justamente porque pertencem a uma mesma categoria social. Isso seria um pouco mais tranqilizador, mas creio, no entanto, que esteja apenas no campo das boas intenes. Do contrrio, como explicar o que aconteceu em Mato Grosso do Sul, onde negros entraram e pardos foram barrados? E h outros casos que comprovam que os meus temores so concretos.

    Em 9 de novembro de 2001, o ento governador do Rio, Anthony Garotinho, sancionou a lei 3.708, instituindo as cotas na Uerj dentro de um esprito mais largo. Eis o que diz o artigo primeiro:

    Fica estabelecida a cota mnima de at 40% para as populaes negrac parda nu prcenchirncnto das vagas relativas aus cursas dc graduao

  • 54 NO SOMOS RACISTAS

    da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e da Universidade Estadual do Norte Fluminense (Uenf).

    Notem que a lei fala em negros e pardos. A ser verdadeira a tese de que chamar pretos e pardos de negros rotina, o Movimento Negro e os defensores de cotas raciais teriam cometido uma redundncia na elaborao da lei.

    Mas no se tratou de redundncia. Para a lei, que naquele momento refletia o pensamento do cidado mdio, negro era sinnimo de preto e pardo era pardo mesmo, como sabem todos aqueles que, como eu, vivem a vida real. Mas no passou muito tempo para que os defensores das cotas raciais estreitassem a lei. Afinal, no primeiro vestibular, entraram muitos pardos com nariz afilado, cabelos lisos e pele em tom claro. Aproveitando a necessidade, constatada pelo governo do estado, de harmonizar a lei das cotas raciais com uma outra lei que institua tambm cotas para alunos da rede pblica, unificando-as numa s lei, os defensores das cotas se mobilizaram de tal modo que os pardos foram excludos da legislao. A lei 4.151, sancionada em 4 de setembro de 2003, vetou as cotas aos pardos, com a seguinte redao do artigo primeiro:

    Com vistas reduo de desigualdades tnicas, sociais e econmicas, devero as universidades pblicas estaduais estabelecer cotas para ingresso nos seus airsos de graduao aos seguintes estudantes carentes:

    I - oriundos da rede pblica de ensino;II - negros;III - pessoas com deficincia, nos termos da legislao em vigor, e

    integrantes de minorias tnicas.

    Os pardos sumiram. A nova lei revogou as anteriores.E o sumio dos pardos no foi obra de nenhum conceito abran

    gente de alguns pesquisadores que consideram que pardos so negros. Foi ato deliberado. Porque a mesma lei abre dois pargra

  • SUMIRAM COM OS PARDOS SS

    fos para definir coisas simples, um para definir o que entende por "estudante carente" e, outro, para definir o que entende por "aluno oriundo da rede pblica". Mas no h nenhum pargrafo para definir o que entende por negro (poderiam, se quisessem incluir os pardos, explicitar que, para o legislador, "negros so a soma de negros e pardos", mas no o fizeram). E, pior, acrescentaram um pargrafo, aceitando a autodeclarao como forma de os negros se inscreverem, mas ordenando que a universidade crie mecanismos para combater fraudes. Felizmente, at aqui, no seguiram o exemplo de Mato Grosso do Sul e exigiram fotos. Mas outras universidades enveredaram por caminhos ainda mais estranhos.

    No edital em que explicita as regras do vestibular, a Universidade de Braslia adotou em 2003 o sistema de cotas para negros, mas com uma novidade: o estudante pardo tambm poder se beneficiar das cotas. Parecia que, finalmente, uma injustia comeava a ser reparada. Mas a novidade era apenas aparente e se destinava a fugir do problema exposto acima. O que a UnB props foi um absurdo, do ponto de vista da lgica, da tica e das leis de igualdade racial que, at aqui, regiam a nossa Repblica.

    Porque o edital dizia o seguinte, no seu item 3.1: "Para concorrer s vagas reservadas por meio do sistema de cotas para negros, o candidato dever: ser de cor preta ou parda; declarar-se negro(a) e optar pelo sistema de cotas para negros."

    Ou seja, o aluno pardo ter de se olhar no espelho, constatar, mais uma vez desde que nasceu, que a cor da sua pele no negra (ou preta) nem branca, parda. Feito isso, ao preencher a ficha de inscrio, ele ter de assinalar a opo que mais bem caracteriza a cor de sua pele: pardo. E, em seguida, ser instado a mentir, declarando-se negro. Esse procedimento no resiste lgica, porque, se o aluno pardo, ele no pode ser negro. No resiste tica, porque obriga o aluno a mentir, declarando-se negro, quando na verdade ele pardo. E no resiste s leis de igualdade racial de nosso pas,

  • 56 NO SOMOS RACISTAS

    porque ningum pode ser discriminado pela cor da pele. Isso racismo.

    Mas o edital foi alm. Ele tambm feriu as leis que impedem toda possibilidade de submeter cidados a constrangimentos morais. E no outra coisa que acontecer a milhares de alunos pardos que venham a ser barrados no sistema de cotas. Porque ele ser chamado de mentiroso. O edital estabeleceu o seguinte, no item 3.2: "No momento da inscrio, o candidato ser fotografado e dever assinar declarao especfica relativa aos requisitos exigidos para concorrer pelo sistema de cotas para negros."

    E o item 3.3 concluiu: "O pedido de inscrio e a foto que ser tirada no momento da inscrio sero analisados por uma Comisso que decidir pela homologao ou no da inscrio do candidato pelo sistema de cotas para negros."

    Portanto, o candidato pardo ter de se dizer obrigatoriamente negro, e, depois, sua foto ser analisada por uma comisso que verificar que ele, no sendo negro, mentiu, e, logo, no tem direito a participar das cotas. A incluso de pardos apenas uma iluso, uma maneira encontrada para fugir das crticas. Porque est clara a inteno da UnB: s se beneficiaro das cotas os negros pretos (um pleonasmo) ou os pardos negros (uma impossibilidade tica). E quem ter o poder para decidir quem uma coisa ou outra, num pas de miscigenados como o nosso, uma comisso de umas poucas pessoas, nicas capazes de fazer tal distino.

    Pode fazer sentido acadmico juntar negros e pardos numa categoria "negros", com a justificativa de que os dois grupos compartilham de um mesmo perfil socioeconmico. Mas esses poucos exemplos que relatei aqui mostram a distncia entre os conceitos formulados em gabinetes universitrios e a prtica do dia-a-dia. No vou nem dizer que, sendo os