não te deixarei morrer david crockett

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Não te deixarei morrer David Crockett Miguel Sousa Tavares, 2001 Não te deixarei morrer David Crockett é uma selecção de textos fabulosos, passe a parcialidade. É uma reunião de textos inéditos e crónicas publicadas no jornal Público e na revista Máxima, nas quais Miguel Sousa Tavares se expõe de uma forma quase pueril. O próprio afirma, justificando a escolha do nome do livro, que «David Crockett representa uma espécie de pureza inicial, um excesso de sentimentos e de sensibilidade, a ingenuidade e a fé, a hipótese fantástica da felicidade para sempre.» Através da sua escrita simples e cativante, Miguel Sousa Tavares vai desvendando não aquela sua faceta mais polémica de homem de opiniões fortes, mas as suas vulnerabilidades e os seus desejos, o que o faz feliz e o que o transtorna. Revela-se muito complicado o processo de escolher um texto favorito, tendo em conta a qualidade e a sensibilidade de todos eles. Miguel Sousa Tavares é um amante e um observador: da natureza (sobretudo da humana), do silêncio e da poesia. Talvez seja genético, talvez seja fruto da educação e do facto de ter crescido rodeado de pessoas maravilhosas. Ou então, aprendeu nas múltiplas viagens e civilizações que conheceu. Ou talvez seja apenas dele. Não consigo ir embora sem deixar aqui um cheirinho, uma espécie de mix de alguns dos textos. Ficam desde já aqui as minhas desculpas ao autor, se sem querer, desvirtuar de alguma forma as suas palavras.

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Page 1: Não te deixarei morrer David Crockett

Não te deixarei morrer David Crockett Miguel Sousa Tavares, 2001

 

 

Não te deixarei morrer David Crockett é uma selecção de textos fabulosos, passe a

parcialidade. É uma reunião de textos inéditos e crónicas publicadas no jornal Público e

na revista Máxima, nas quais Miguel Sousa Tavares se expõe de uma forma quase

pueril. O próprio afirma, justificando a escolha do nome do livro, que «David Crockett

representa uma espécie de pureza inicial, um excesso de sentimentos e de

sensibilidade, a ingenuidade e a fé, a hipótese fantástica da felicidade para sempre.»

Através da sua escrita simples e cativante, Miguel Sousa Tavares vai desvendando não

aquela sua faceta mais polémica de homem de opiniões fortes, mas as suas

vulnerabilidades e os seus desejos, o que o faz feliz e o que o transtorna. Revela-se

muito complicado o processo de escolher um texto favorito, tendo em conta a qualidade

e a sensibilidade de todos eles.

 

Miguel Sousa Tavares é um amante e um observador: da natureza (sobretudo da

humana), do silêncio e da poesia. Talvez seja genético, talvez seja fruto da educação e

do facto de ter crescido rodeado de pessoas maravilhosas. Ou então, aprendeu nas

múltiplas viagens e civilizações que conheceu. Ou talvez seja apenas dele.

Não consigo ir embora sem deixar aqui um cheirinho, uma espécie de mix de alguns dos

textos. Ficam desde já aqui as minhas desculpas ao autor, se sem querer, desvirtuar de

alguma forma as suas palavras.

«Nunca devemos amar em silêncio...Um amor feliz precisa do turbilhão das palavras,

das frases aparentemente inúteis e sem sentido, precisa de adjectivos, de elogios, do

ruído das banalidades.»

«Sabes, quem não acredita em Deus, acredita nestas coisas, que tem como evidentes.

Acredita na eternidade das pedras e não na dos sentimentos; acredita na integridade

da água, do vento, das estrelas. Eu acredito na continuidade das coisas que amamos

(…)

Nisto eu acredito: na veemência destas coisas sem princípio nem fim, na verdade dos

sentimentos nunca traídos.»

Page 2: Não te deixarei morrer David Crockett

(…)

«E de novo acredito que nada do que é importante se perde verdadeiramente. Apenas

nos iludimos, julgando ser donos das coisas, dos instantes e dos outros. Comigo

caminham todos os mortos que amei, todos os amigos que se afastaram, todos os dias

felizes que se apagaram. Não perdi nada, apenas ilusões de que tudo podia ser meu

para sempre.»

SinopsePara além dos textos de ficção inéditos, este livro de Miguel Sousa Tavares reúne textos que ao longo dos anos foram publicados na revista Máxima e noutros lugares. As "Short Stories" que pela primeira vez vão ser vistas por outros olhos: A Passagem, A Fidelidade, O Espião que ficou no frio, Nova York-Lisboa e O Velho de Alcântara Mar. O próprio autor explica na Nota Prévia o título do livro: David Crockett representa "uma espécie de pureza inicial, um excesso de sentimentos e de sensibilidade, a ingenuidade e a fé, a hipótese fantástica da felicidade para sempre". Não Te Deixarei Morrer, David Crockett de Miguel Sousa Tavares

Miguel Sousa Tavares: Não Te Deixarei Morrer, David Crockett

Antes que a ideia de Deus esmagasse os homens, antes dos autos de fé, das

perseguições religiosas da Inquisição e do fundamentalismo islâmico, o

Mediterrâneo inventou a arte de viver. Os homens viviam livres dos castigos de

Deus e das ameaças dos Profetas: na barca da morte até à outra vida, como

acreditavam os egípcios. E os deuses eram, em vida dos homens, apenas a

celebração de cada coisa: a caça, a pesca, o vinho, a agricultura, o amor. Os

deuses encarnavam a festa e a alegria da vida e não o terror da morte.

Antes da queda de Granada, antes das fogueiras da Inquisição, antes dos

massacres da Argélia, o Mediterrâneo ergueu uma civilização fundada na

celebração da vida, na beleza de todas as coisas e na tolerância dos que sabem

que, seja qual for o Deus que reclame a nossa vida morta, o resto é nosso e

pertence-nos – por uma única, breve e intensa passagem. É a isso que chamamos

liberdade – a grande herança do mundo do Mediterrâneo.

(...) Sabes, quem não acredita em Deus, acredita nestas coisas, que tem como

evidentes. Acredita na eternidade das pedras e não na dos sentimentos; acredita

na integridade da água, do vento, das estrelas. Eu acredito na continuidade das

coisas que amamos, acredito que para sempre ouviremos o som da água no rio

Page 3: Não te deixarei morrer David Crockett

onde tantas vezes mergulhámos a cara, para sempre passaremos pela sombra da

árvore onde tantas vezes parámos, para sempre seremos a brisa que entra e

passeia pela casa, para sempre deslizaremos através do silêncio das noites

quietas em que tantas vezes olhámos o céu e interrogámos o seu sentido. Nisto eu

acredito: na veemência destas coisas sem princípio nem fim, na verdade dos

sentimentos nunca traídos.

Miguel Sousa Tavares, in 'Não Te Deixarei Morrer, David Crockett '