nas entrelinhas do passado - roger chartier

Upload: pedro-galdino

Post on 10-Apr-2018

218 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

  • 8/8/2019 Nas Entrelinhas Do Passado - Roger Chartier

    1/20

    Roger Chartier Nas entrelinhas do passadoRedao

    Uma conversa com o historiador Roger Chartier como um encontro com a prpria erudio. Nascido emLyon, na Frana, ele conta com simplicidade como o gosto pelos textos literrios, pelas leituras dosclssicos franceses e espanhis, ainda na juventude despertou seu interesse pela Histria. Sua trajetriaintelectual, ento, tratou de unir as duas paixes: a histria do livro e das prticas de leitura na pocamoderna.

    Diretor de estudos e investigaes histricas da cole des Hautes tudes en Sciences Sociales, Chartier leciona desde 2006 no tradicional Collge de France, onde neste ms de outubro inaugura uma cadeiraintitulada Escrita e cultura na Europa Moderna. A criao desse espao de reflexo resultado da atenoque os historiadores tm dedicado ao tema nos ltimos anos. E isso inclui os estudos feitos no Brasil.

    Entre sorrisos e gestos simpticos, Chartier fala sobre seu contato com as instituies e os intelectuaisbrasileiros e sobre a ausncia de imprensa no Brasil colonial. Mas, especialmente, sobre a reconstruofascinante das formas de se produzir os livros, do impacto provocado pela presena do impresso dentro dasociedade. A emoo de uma histria da leitura que abrange aquele espao de privacidade que se cria entreos olhos do leitor e as letras impressas nas pginas de um livro, de papel ou virtual. Participou desta

    entrevista Andra Daher, professora do Departamento de Histria da Universidade Federal do Rio deJaneiro.

    REVISTA DE HISTRIA - Como se deu a sua opo pela Histria e a sua preferncia pelos estudosde histria cultural?

    ROGER CHARTIER -H um perigo em responder a esta pergunta, que o de cair na idia de umatrajetria absolutamente necessria, enquanto a vida intelectual est cheia de passagens, encontros,oportunidades. No sei exatamente por que a Histria sempre me interessou, desde a escola primria. Maistarde, quando entrei no liceu, meu interesse se voltou ao mesmo tempo para os textos literrios. Lia muitoslivros clssicos franceses, e quando comecei a aprender castelhano, tambm os clssicos espanhis.Quando comecei a fazer trabalhos acadmicos, no final dos anos 1960, na Frana, a Histria utilizava astcnicas estatsticas para a quantificao dos fenmenos culturais e, no fim das contas, a literatura nodesempenhava um papel particularmente importante nessa perspectiva. A histria da cultura mobilizava asmesmas tcnicas, as mesmas fontes que a histria demogrfica, social e econmica, baseada em dadosobjetivos. Ela no permitia, necessariamente, responder a perguntas importantes.

    RH - Que perguntas seriam importantes para relacionar a Histria e a literatura?

    RC -Por exemplo, era possvel, embora difcil para os historiadores dos anos 1960 e 70, reconstruir aproduo tipogrfica de uma cidade durante um certo perodo, reconstruir o contedo das bibliotecasprivadas, a partir das fontes cartoriais, a partir dos catlogos impressos. Mas o que essas anlises diziamsobre a leitura? O que diziam sobre a relao entre o leitor e os textos que foram lidos? Evidentemente,muitos liam textos que no possuam e, como ns, possuam livros que nunca leram. E, dentro dessaperspectiva, tratava-se de construir um projeto compartilhado de uma histria da leitura e dos leitores,entendendo leitura como apropriao do texto, ou seja, o texto incorporado, transformado pelos indivduosem algo que dava sentido sua relao com o mundo.

    RH Por que o interesse pelas prticas de leitura na poca moderna?

    RC A palavra moderna, pelo menos em francs, tem um sentido ambivalente, porque para muitos significao tempo contemporneo. H os que pensam que samos da modernidade, que h uma ps-modernidade.Mas para os historiadores, como se sabe, a poca moderna vai do sculo XVI ao XVIII, o que se classificoutambm de Antigo Regime em francs, a partir do momento em que se pensava a Revoluo como um novoregime. Na tradio francesa, os historiadores que lamos, e que tm uma fora de escrita ou de invenointelectual ou conceitual, trabalhavam, em sua grande maioria, sobre a poca moderna. Lucien Febvre,fundador dos Annales com Marc Bloch, era um historiador do sculo XVI. Braudel era um historiador modernista.

    RH E como ocorreu sua aproximao com o Brasil?

    RC verdade que se pode ter uma relao com um pas, com uma cultura, sem nunca ter estadoefetivamente presente nele. Na Frana, fazamos muitas leituras sobre o Brasil. Por exemplo, Michel de

  • 8/8/2019 Nas Entrelinhas Do Passado - Roger Chartier

    2/20

    Certeau ficou fascinado com o texto de Jean de Lry. Isto mais um Brasil, sem dvida, textual, imaginado,conhecido por intermdio de obras e de historiadores. Depois, em 1993, tive o primeiro convite para vir aoRio de Janeiro, no aniversrio do CPDOC, na Fundao Getulio Vargas. Comearam, ento, relaesregulares com diversas instituies, colegas, comunidades intelectuais e cientficas. E isso foi possvel, meparece, porque no Brasil havia tambm interesses paralelos, principalmente em torno da histria dasprticas de leitura.

    RH No Brasil, qual a razo deste interesse?

    RC No Brasil, a convergncia das cincias sociais, como a sociologia e a antropologia, a dimenso histricae a importncia central do tema para a educao criaram este interesse pela histria das prticas de leitura.O deslocamento que foi feito da histria do livro para a histria das prticas de leitura, questionando suaspossibilidades, os tipos de fontes, o mtodo de investigao, tem encontrado interesse por parte destemundo intelectual que se dedica mesma perspectiva. A cada dia, produzem-se novos textos importantes einteressantes no Brasil sobre esses temas.

    RH Como o historiador deve proceder para pensar as prticas de leitura passadas?

    RC Nosso grande risco o de projetar no passado nossas maneiras de ler, pensar, sentir. E sempredevemos pensar na diferena: reconstruir um mundo, que um mundo diferente, por meio da posturaantropolgica que deve ter o historiador. Hoje em dia, de modo geral se l com os olhos, silenciosamente. como se tivssemos estabelecido um espao de privacidade entre o leitor e o que ele l. Alis, ler no nibusou na biblioteca pode ser definido como um espao abstrato, imaginrio, espao em que o texto encontra osolhos. A prtica de leitura em voz alta tem se mantido apenas em circunstncias institucionais: l-se em vozalta na igreja, nas aulas da universidade para ditar conferncias, no tribunal para pronunciar sentenas, naescola em situao de aprendizagem, entre outras. No entanto, na poca moderna, a leitura em voz alta eramuito mais presente dentro da sociedade.

    RH Como se lia na poca moderna?

    RC Muitas formas regulares de sociabilidade, como o salo e as sociedades literrias, estavam fundadassobre uma leitura compartilhada que podia, depois, alimentar a conversao e o intercmbio. Desta

    maneira, h uma leitura em voz alta para os outros, dentro dos meios particularmente alfabetizados, em quecada um podia ler por sua prpria conta, mas que uma forma de compartilhar o texto e, a partir da, iniciar uma conversao, uma reflexo coletiva. E isto podia acontecer tambm em lugares menos regulares, por exemplo, como a leitura em voz alta durante uma viagem. Pensava-se, assim, que o texto tinha uma foramaior quando era lido por uma voz que o retirava da inrcia. Esta uma primeira diferena entre a eramoderna e a nossa: a onipresena da leitura em voz alta como forma da sociabilidade. H uma segundadiferena que vemos somente hoje em dia, quando se fala de um analfabetismo funcional, quer dizer, depessoas que podem ler, mas apenas certos tipos de textos, e que para entender o texto devem ouvi-lo, emcerto sentido, pronunciando-o ao mesmo tempo. E este tipo de capacidade, que uma capacidadeparticular de leitura, certamente era muito mais difundida e caracterizava uma populao maior nassociedades modernas do que hoje, quando se transformou em um dos critrios do analfabetismo.

    RH E como pensar em lugares marcados pela ausncia da imprensa, como o Brasil colonial?

    RC No havia imprensa, mas circulavam panfletos, libelos, sermes e pasquins em forma manuscrita. Essesmateriais desempenharam um papel importante em diversos momentos histricos do Brasil antes daimprensa. No se deve confundir nunca a circulao da produo escrita com a presena de imprensa numadeterminada situao histrica e geogrfica. Evidentemente, ao contrrio, quando h oficinas de imprensa, acirculao ou a produo dos livros pode se transformar, assim como a produo de textos impressos queno so livros, como os panfletos e os libelos. Todo um mundo de impressos que se relacionam com aatividade comercial, com a atividade administrativa ou religiosa implicava tambm um uso mais freqente daescrita manuscrita. Afinal, muitos desses textos impressos tinham espaos em branco que esperavam umaassinatura, um nome de pessoa, uma meno manuscrita. O paradoxo este: talvez a inveno deGutenberg tenha transformado a circulao dos livros, mas transformou ainda mais a cultura manuscrita.

    RH Qual seria o foco de interesse de uma histria da cultura escrita no Brasil colonial?

    RC Se faltava a imprensa, talvez se devesse medir, no Brasil, como era esse papel do escrito dentro dessasrelaes comerciais, administrativas e religiosas. No se deve focar somente na cultura livresca. Talvez sedevesse pensar que muitos textos impressos no so livros, e que muitos textos impressos que no so

  • 8/8/2019 Nas Entrelinhas Do Passado - Roger Chartier

    3/20

    livros implicam o uso da escrita manuscrita. Significa pensar que a originalidade de uma situao histricaem que no existia a imprensa estivesse mais vinculada ausncia de documentos impressos no cotidianodo que ausncia dos livros. Afinal, como sabemos, havia muitos livros no Brasil, inclusive os que aInquisio queria proibir e destruir. Esta seria uma maneira de esboar o tema dentro da perspectiva de umahistria da cultura escrita, e no somente na dimenso da cultura dos livros impressos.

    RH Que outros campos de investigao no Brasil se relacionam com as suas pesquisas?

    RC Creio que a Histria da Vida Privada no Brasil. O projeto francs foi dirigido por Georges Duby e PhilippeAris, e depois da morte de Aris, pediram-me para dirigir um volume intitulado Do Renascimento s Luzes.Tratava-se, claro, da vida privada no mundo ocidental europeu. Eu no li todos os volumes da histria davida privada no Brasil, mas no primeiro tomo, o que me chamou ateno foi, em termos de comparao, quenos pases europeus, o modelo poltico supe a existncia de uma autoridade estatal que se impe em umterritrio mais ou menos estvel e mais ou menos controlado. H um vnculo entre o exerccio de poder,configuraes sociais e estruturas psicolgicas. Evidentemente, quando se l o primeiro volume da histriada vida privada no Brasil, fica-se diante um mundo totalmente diferente, pois uma reflexo sobre a dimensoterritorial e a dimenso poltica brasileiras pode encontrar figuras totalmente diferentes, em que himbricaes transculturais que criam formas de relao do indivduo com as diversas definies de privado:

    a solido, a famlia ou os grupos de sociabilidade. Ainda que utilizando os mesmos conceitos, haversentidos totalmente diferentes em relao Europa no que diz respeito s estruturas familiares, s formasde experincia da privacidade, relao entre a existncia cotidiana e as crenas mais profundas, como,por exemplo, as religiosas.

    RH A sua entrada no Collge de France, em 2007, acontece justamente com a criao da ctedraEscrita e Cultura na Europa Moderna. O que significa a criao de uma ctedra como esta?

    RC necessrio definir o que o Collge de France, porque uma instituio to rara que no temequivalentes fora da Frana. Foi fundada em 1530 por Francisco I para ditar matrias que no eramensinadas na universidade. E as primeiras ctedras foram as de Hebraico, de Grego e de Matemtica,enquanto que a Universidade de Paris ditava a formao do Latim e, como se sabe, a Teologia, a Medicinae o Direito. E a tradio se manteve, mais ou menos, atravs da poca moderna. Um segundo momento deimportncia do Collge de France foi o sculo XIX, quando o exerccio das ctedras era utilizado como umaforma de oposio ao Segundo Imprio (1852-1870). Ao longo do sculo XX, foi uma instituio quereconheceu para as cincias exatas uma forma de excelncia. No caso das Humanidades ou das CinciasSociais, se podem encontrar nos corredores do Collge de France fantasmas impressionantes, comoBraudel, Foucault e Bourdieu, entre outros. A ctedra que ocuparei a partir deste ano se refere,especificamente, ao tema das mltiplas formas do escrito, da cultura escrita no somente a impressa nas sociedades, do sculo XVI ao sculo XVIII, e sua importncia para as diversas formas culturais. Esteespao s foi possvel, me parece, porque nas ltimas dcadas foram construdos os saberes necessriospara fundamentar uma ctedra como essa.

    RH Como se pode pensar hoje as relaes entre a histria cientfica e o grande pblico?

    RC Isto me parece estar relacionado com uma questo essencial, que a capacidade, hoje em dia, derepresentao do passado. A histria como disciplina, com seus prprios mtodos, critrios de validao eexigncias crticas, tal como se entende pelo menos a partir do sculo XIX, como uma disciplina que produzconhecimento o mais adequado possvel ao seu objeto, est capacitada para representar o passado, tendoao seu lado a literatura. Isto no uma novidade. H, ainda, diversas formas de memria, seja a memriade um grupo, de indivduos, comunidades, ou a memria mais institucionalizada do Estado, dascomemoraes e dos lugares de memria, dos museus, dos monumentos, que consistem tambm numacapacidade de representar o passado. E a histria como disciplina no necessariamente a mais poderosanesse domnio, pois a fora de atrao do romance histrico, se for bem escrito ou se for escrito segundo ospadres que permitam encontrar um pblico amplo, maior.

    RH Que fora tem hoje a literatura, especialmente o romance histrico?

    RC De modo geral, as obras de Shakespeare tm mais fora que os relatos dos cronistas. Assim acontececom as formas de representao ficcionais da histria, que so os filmes ou as telenovelas. O romance

    histrico tem como princpio tornar a histria presente algumas vezes, at o ponto de uma imitao dastcnicas e da prova histrica, como o caso das biografias imaginrias ou dos romances que so escritoscomo se fossem relatos histricos, at mesmo documentados. H escritores que jogaram com isso, como

  • 8/8/2019 Nas Entrelinhas Do Passado - Roger Chartier

    4/20

    o caso de Borges, que se apropriou das tcnicas mais evidentes da prova histrica para produzir umafico.

    RH Qual seria o papel da imprensa na difuso do saber histrico?

    RC Parece-me que pode desempenhar um papel essencial. As revistas de divulgao historiogrficacorrespondem claramente a uma expectativa do pblico, oriunda da sua relao com a fico ou com amemria, de comparar, de comprovar uma experincia do passado atravs do discurso dos historiadores.No servem para pensar que vamos restituir a histria como a nica forma de representao do passado.Podem permitir aos indivduos compreender que cada um pode ter um extraordinrio prazer lendo romanceshistricos inclusive os historiadores mais srios , mas que no se trata do mesmo registro de relao como passado que o de uma anlise que se fundamenta num trabalho de definio de um objeto, de construode suas fontes, de eleio de um modelo de explicao e de submisso aos critrios de validao dacomunidade cientfica de seu momento. Neste ponto, me parece que h uma tarefa importante destasrevistas de grande circulao, mas, evidentemente, com uma tenso permanente: como tornar acessvel osaber histrico para pessoas que no so profissionais, e sim leitores de Histria, sem que a Histria deixede ser, ao mesmo tempo, um saber cientfico? Trata-se de manter a relao com o saber tal como seconstri dentro do mundo universitrio, acadmico, cientfico, sem que se caia na tentao da histria das

    narrativas de destinos de rainhas, de eventos extraordinrios ou de acontecimentos polticos, a histria maisfcil e imediatamente comunicvel.

    VERBETES

    Jorge Lus Borges (1899-1986)Poeta e ensasta argentino, um dos mais importantes autores da literatura mundial. De seus escritosdestacam-se os contos A Biblioteca de Babel, publicado em Fices (1944), e O Zahir, em O Aleph(1949), ambos marcados pelo realismo fantstico.

    Escola dos AnnalesMovimento historiogrfico surgido na Frana em 1929, conhecido por propor novas fontes, novos temas e ouso de diferentes disciplinas no estudo da Histria. Foi fundada pelos historiadores franceses Lucien Febvre(1878-1956) e Marc Bloch (1886-1944). Um dos mais importantes expoentes dos Annales foi FernandBraudel (1902-1985).

    Georges Duby (1919-1996)Historiador francs especialista em Idade Mdia, professor do Collge de France entre os anos de 1970 e1992. autor de clssicos como O tempo das catedrais (1979) e O ano mil (1986).

    Philippe Aris (1914-1984)Dedicou-se ao estudo da histria da famlia, da infncia e da morte. Seus livros mais conhecidos no Brasilso Histria Social da Criana e da Famlia (1960) e Um Historiador Diletante (1980).

    Segundo ImprioRegime monrquico institudo na Frana por Napoleo III, de 1852 a 1870. Neste perodo, Paris foi o centrode grandes exposies que refletiam o desenvolvimento econmico francs e o progresso cultural eindustrial europeu.

    William Shakespeare (1564-1616)Dramaturgo ingls, considerado um dos mais importantes teatrlogos da Humanidade. Autor, entre outraspeas, de Hamlet, Romeu e Julieta e Ricardo III.

    Conversa com Roger Chartier Por Isabel Lustosa

  • 8/8/2019 Nas Entrelinhas Do Passado - Roger Chartier

    5/20

    "No posso aceitar a idia que est identificada com o ps-modernismo

    de que todos os discursos so possveis porque remetem sempre posio de quem o enuncia e nunca ao objeto", afirma o historiador em

    entrevista exclusiva

    Encontrei Roger Chartier no hall da Casa de Rui Barbosa no dia anterior aessa entrevista. Ele voltava do almoo com Sandra Pesavento, sua amigae organizadora do Seminrio de Histria Cultural, do qual estava

    participando. Sandra j lhe havia falado de mim e dito do meu interesseem conversar com ele, de modo que quando nos vimos de longe ela meacenou. Imediatamente, o professor Chartier veio ao meio encontro comaquele sorriso simptico que uma de suas caractersticas. Pois Roger Chartier, a par de ser uma celebridade do mundo acadmico, extremamente simples, afvel, quase carioca na maneira natural e bem-humorada de se aproximar das pessoas, de deix-las vontade.Marcamos a entrevista para a manh do dia seguinte (16/09/2004), noHotel Glria, onde o historiador gosta de se hospedar no Rio de Janeiro.

    Sabendo o quanto Chartier tem sido entrevistado por historiadores e jornalistas e seguindo o meu pendor natural para conhecer a vida das pessoas, orientei minhas primeiras perguntas no sentido de conhecer um pouco da biografia do entrevistado. Chartier resistiu b ravamente a setornar ele mesmo objeto de estudo, mas no exerccio legtimo destaresistncia nos proporciona aqui uma interessante reflexo sobre aquesto biogrfica.

    Entrevistado que facilita o trabalho do entrevistador, pois reage aostemas com clareza, vivacidade e erudio, o que ressalta do discurso deChartier o seu permanente interesse pelos temas relacionados ao seutrabalho. A maneira articulada e inteligente como as suas respostasbrotam denunciam o intelectual em que trabalho e vida se confundem, tal como na proposio de Wright Mills: "A erudio uma escolha de comoviver e ao mesmo tempo uma escolha de carreira; quer o sabia ou no, otrabalhador intelectual forma seu prprio eu medida que se aproximada perfeio de seu ofcio".

    Diretor na Escola de Altos Estudos em Cincias Sociais, em Paris, e professor especializado em histria das prticas culturais e histria daleitura, Roger Chartier um dos mais conhecidos historiadores daatualidade, com obras publicadas em vrios pases do mundo. Suareflexo terica inovadora abriu novas possibilidades para os estudos emhistria cultural e estimula a permanente renovao nas maneiras de ler e fazer a histria.

    Chartier foi professor convidado de numerosas universidades estrangeiras(Princeton, Montreal, Yale, Cornell, John Hopkins, Chicago, Pensilvnia,Berkeley etc) e publicou no Brasil os seguintes livros: Histria da vida

    privada, vol. 3: da Renascena ao Sculo das Luzes (Companhia das

  • 8/8/2019 Nas Entrelinhas Do Passado - Roger Chartier

    6/20

    Letras); Cultura escrita, literatura e histria (Artmed), Formas dosentido - Cultura escrita: entre distino e apropriao (Mercado deLetras), Os desafios da escrita (ed. da Unesp), A aventura do livro (Unesp), A beira da falsia (Editora da Univer sidade), Do Palco Pgina (Casa da Palavra), A ordem dos livros (UnB), Histria daleitura no mundo ocidental (tica), Prticas da le itura (EstaoLiberdade), O poder das bibliotecas: a memria dos livros no Ocidente (sob a direo de M. Baratin e C. Jacob, Ed. UFRJ) e Le ituras e leitoresna Frana do Antigo Regime (Unesp).

    Quem Roger Chartier? Como a sua obra se relaciona com a suahistria de vida?

    Roger Chartier: Tenho sempre uma certa prudncia com questespessoais. Acho que, quando a gente fala de si, constri algo impossvelde ser sincero, uma representao de si para os que vo ler ou para simesmo. Gostaria de lembrar, a este propsito, o texto de Pierre Bourdieusobre a iluso biogrfica ou a iluso autobiogrfica. Bourdieu critica estetipo de narrativa em que uma vida tratada como uma trajetria decoerncia, como um fio nico, quando sabemos que, na existncia dequalquer pessoa, multiplicam-se os azares, as causalidades, asoportunidades.

    Outro aspecto da iluso biogrfica ou autobiogrfica pensar que ascoisas so muito originais, singulares, pessoais, quando so, na verdade,freqentemente, experincias coletivas, compartilhadas com as pessoaspertencentes a uma mesma gerao. Ao fazer um relato autobiogrfico quase impossvel evitar cair nesta dupla iluso: ou a iluso dasingularidade das pessoas frente s experincias compartilhadas ou ailuso da coerncia perfeita numa trajetria de vida.

    Penso que esse tipo de relato s tem sentido quando podemos relacionarum detalhe, algo que seria puramente anedtico, com o mundo social ouacadmico em que se vive. Pierre Nora lanou a idia de ego-histria numa coletnea de ensaios onde esto reunidas oito autobiografias:George Duby, Jacques Le Goff, Pierre Duby, dentre outros. Eram autoresconhecidos falando sobre sua trajetria pessoal ou relacionando-a com aescolha de determinado perodo ou campo histrico. Mas pessoalmenteconsidero muito difcil evitar o anedtico ou o demasiado pessoal nessetipo de relato. Como pensar em si, objetivando entender seu prpriodestino social? Acho que preciso primeiro situar-se dentro do mundosocial e da fazer um esforo de dissociao da pe rsonagem: apersonagem que fala e a per sonagem sobre a qual se fala, que omesmo indivduo.

    Isto posto, podemos entrar , com uma certa cautela, na resposta suapergunta. Nasci em Lyon e per teno a um estrato social fora do mundodos dominantes, sem tradio no meio acadmico. Minha trajetriaescolar e universitria foi conseqncia desta origem. Na Frana, o traodominante era a reproduo: o sistema escolar e universitrio levava aque os filhos reproduzissem as mesmas posies sociais dos pais. PierreBordieu e Jean Claude Passeron trataram desse tema em dois livros. Oprimeiro, publicado em 1964, chamava-se Os herdeiros e o segundo, de1970, A reproduo.

  • 8/8/2019 Nas Entrelinhas Do Passado - Roger Chartier

    7/20

    Naturalmente que h espao para que as pessoas que vm de outrohorizonte social possam driblar essa tendncia. A minha prpria trajetriapertence a esta exceo. Para entend-la preciso um certoconhecimento da realidade social do ps-guerra na Frana, entre os anos1950 e 60, quando predominava o sistema de reproduo, mas ondehavia tambm alguma possibilidade de ascenso para gente de outraorigem social. Acho, no entanto, que quando h este tipo de tenso entreuma forma dominante de escola e uma individualidade de origemdiferente que consegue furar este sistema sempre se mantm algo dessatenso, dessa dificuldade.

    O historiador ingls, Richard Hoggart, em seu livro The uses of literacy, reflete sobre a sua prpria trajetria de estudantebolsista oriundo de uma famlia de operrios. Esta filiao ao lugarde origem, essa relao entre a autobiografia e objeto de estudo,foi extremamente proveitosa no caso de Hoggart, no lhe parece?

    Chartier: Traduzido para o francs como La culture du pauvre, o livrode Hoggart realmente maravilhoso, pois consegue articular elementosbiogrficos com uma reflexo profunda sobre a mdia voltada para asclasses populares, neste caso a classe operria inglesa dos anos 1940 e50. O principal propsito desse livro questionar a idia segundo a qualtodos os leitores ou ouvintes das produes dessa indstria culturalacreditavam piamente em suas mensagens. Viver iam sob uma forma dealienao, submetidos aos modelos sociais que as mensagens dos massmedia do tempo -rdio, cinema e r evistas- impunham.

    Hoggart queria mostrar que havia uma relao muito mais complexa,ambivalente, entre crer e no crer, aceitar a fico e, ao mesmo tempo,ter a conscincia de que se trata de um mundo irreal, um mundo defbula, de fico. A oposio entre ns e os outros era um elementomuito claro no livro de Hoggart, e a maneira como estabelece a relaoentre histria pessoal e discusso sociolgica me parece muito justa eadequada.

    Em Lyon, no entanto, no ramos uma classe operria no mesmo sentidode Hoggart. Vivamos num mundo de artesos que trabalhavam de umamaneira ou de outra na atividade dominante da cidade que a seda.Havia algo como o que descreve Hoggart na relao com os horscopos,com os dirios de grande tiragem e as canes. Mas no havia apenas acirculao dos produtos culturais que descreve Hoggart, havia tambmum certo gosto por uma parte da cultura dominante. A pera, porexemplo, era muito popular.

    Na Lyon da minha infncia ia-se pera como se ia ao cinema, duas, tr svezes por semana. Era uma apropriao muito popular no de todo orepertrio da pera, mas principalmente da pera italiana, de Verdi, dosfranceses. Meu pai viu Carmen 25 vezes. Essa relao mudou entre osanos 1960 e 1970, quando este mundo dos artesos foi gradativamentedesaparecendo e, em seu lugar, surgiu uma fratura mais profunda entre omundo dos que vo pera e o dos que gostam de outra forma dediverso.

    Um aspecto que me pareceu interessante no livro de Hoggart a

  • 8/8/2019 Nas Entrelinhas Do Passado - Roger Chartier

    8/20

    importncia que a literatura teve para a sua formao. Imaginoque na Frana, onde a tradio literria to forte, uma formaobaseada nessas leituras de mocidade deve influir na possibilidadede romper com o sistema da reproduo. Voc no acha?

    Chartier: De fato, na Frana, a literatura tinha muita importncia naescola. Principalmente porque o currculo da escola primria utilizavapara diversos exerccios pedaggicos fragmentos dos clssicos, de VictorHugo, dos novelistas do sculo 19, como Alphonse Daudet. Dessamaneira, como a escola obrigatria, cada um, at a idade de 14 anos,inclusive a gente das camadas mais populares, tinha uma relao direta,ainda que fragmentria, com esse corpus literrio que define a literaturafrancesa.

    Para os alunos dos liceus, havia tambm todo o repertrio da literaturaclssica do sculo 17: Corneille, Molire , Racine. Havia uma impregnaomuito forte daquilo que, numa definio cannica, chamam de literatura.No sei se isso ainda assim hoje em dia, porque a escola primria ousecundria se desprendeu um pouco desse corpus cannico de textos e seabriu a autores contemporneos.

    A mdia tambm mudou muito. Recordo que nos anos 1960 havia somenteuma rede de televiso que saa do ar s oito e meia da noite e onde se liaCorneille. Apresentar numa rede pblica, com uma programao nicapara todos, s oito e meia, um texto clssico, algo impensvel hoje.Salvo nos canais particulares destinados a um certo pblico.

    O mundo mudou profundamente no final dos anos 1960. 1968 foi ummarco da ruptura cultural, no necessariamente no sentido que

    usualmente se pensa: de uma abertura, da quebra da autoridade, deformas mais abertas de comportamento. Mas o que tambm houve apartir de 68 foi o agravamento desse esprito de comercializao, com adestruio da dimenso cultural, por exemplo, da televiso.

    Destruio no sentido de que no h apenas a possibilidadecompartilhada por toda a gente de ver ou desligar a televiso. Agora huma fragmentao infinita, h os canais para os que gostam de pop, paraos que gostam de rock, da msica clssica. uma forma de fragmentaocultural que tambm se pode ver como uma forma de liberdade e dediversificao. Mas ao mesmo tempo, 68 marca tambm odesaparecimento de uma cultura compartilhada e arraigada numa

    referncia como a literatura nacional e universal.A minha gerao foi, no Brasil, talvez a ltima em que a leitura dosclssicos da literatura universal era um hbito. Acho que isso criouum universo de referncia para a nossa gerao que diferentedos jovens de hoje. De que maneira esse universo de refernciasculturais originadas da leitura dos clssicos est na base da visode mundo do historiador de hoje em dia? Por outro lado, de quemaneira esse universo de referncia cultural mais ampliadocontribuiu para a aceitao de abordagens interdisciplinares?

    Chartier: No devemos pensar que o passado era necessariamente

    melhor. H autores que se especializaram nesse tipo de diagnsticopessimista. Acho, ao contrrio, que hoje se l mais do que nos anos

  • 8/8/2019 Nas Entrelinhas Do Passado - Roger Chartier

    9/20

    1950. Inclusive porque o computador no apenas um novo veculo paraimagens ou jogos. Ele responsvel tambm pela multiplicao dapresena do escritor nas sociedades contemporneas. No computadortanto se pode l os clssicos como publicaes acadmicas e r evistas emgeral. Podem no ser necessariamente leituras fundamentais,enriquecedoras, mas so leituras.

    No se pode dizer, portanto, que estejamos assistindo aodesaparecimento da cultura escrita. O problema qual cultura escritapersiste. difcil entender a articulao sempre instvel entre as novasformas culturais, as novas preferncias dos jovens e o que se mantmcomo uma referncia fundamental. O fato de que os textos lidos pelosadolescentes no computador, suas leituras prediletas, no pertenamquele repertrio definido como literrio no necessariamente algoruim. O problema est numa certa discrepncia entre essa nova cultura eos modelos de referncia que , a nosso ver, seriam mais consistentes eforneceriam mais recursos para a compreenso do mundo social, acompreenso de si mesmo e a representao do outro.

    Para isto no tenho resposta, mas me parece que h duas posies quese deve evitar. Uma a que considera que essa presena da literatura narealidade cotidiana pertence a um mundo definitivamente desaparecido.No me parece um diagnstico adequado, pois h, na atualidade, umesforo dentro da escola e fora da escola para preservar a culturaliterria. O que torna difcil identificar esse esforo que, se antes e leera evidente e se concentrava em algumas atividades, hoje ele sediversifica atravs, por exemplo, dos novos e variados meios decomunicao.

    A outra posio a dos que pensam que no h nada de proveitoso, tilou fundamental nesse novo mundo. Postura que me parece muitoinadequada quando pensamos nas possibilidades educativas criadas pelasnovas tecnologias, nas diversas experincias para a alfabetizao, para atransmisso do saber distncia.

    Acho que responsabilidade dos intelectuais, dos meios de comunicao,dos editores, assegurar a transmisso de um saber sobre o mundo,atravs de projetos que v inculem a dimenso esttica ou a dimensocientfica com a existncia cotidiana. Para que as pessoas no sejamtotalmente submetidas s leis do mercado, incerteza ou inquietude, oessencial dar a cada um instrumentos que lhe permita decifrar o mundoem que vive e a sua prpr ia situao neste mundo. Esse saber que podevir da sociologia, da literatura, da histr ia, possibilitaria a resistncia simposies dominantes que vm de todas as partes: dos discursosideolgicos, das mensagens dos veculos de comunicao, da cultura demassa etc.

    O que Hoggart descrevia em seu maravilhoso livro era a maneira comotambm podemos nos plasmar, nos construir atravs do conhecimento.Trata-se de uma experincia densa e forte que se pode obter atravs dostextos literrios, do presente ou do passado, uma perspectiva queenvolve tanto a transmisso da beleza, mas tambm uma dimensocrtica. Mas me parece que, se h um caminho no liter rio para seadquirir saber sobre o mundo social, por que procurar os instrumentosmais vulnerveis para decifrar esse mundo?

  • 8/8/2019 Nas Entrelinhas Do Passado - Roger Chartier

    10/20

    Apesar da valorizao terica que a moderna historiografia tempromovido da narrativa sempre vejo os historiadores atrabalharem ainda com um certo pudor, acompanhando cada fatonarrado de uma anlise minuciosa daquele aspecto ou entorecorrendo ao chamado argumento de autoridade. Parece-me queisso prejudica o resultado do ponto de vista da narrativa, pois, emgeral, a torna fragmentada e desinteressante. O que voc acha?

    Chartier: Entre os anos 1950 e 60, os histor iadores buscavam uma formade saber controlado, apoiado sobre tcnicas de investigao, de medidasestatsticas, conceitos tericos etc. Acreditavam que o saber inerente histria devia se sobrepor narrativa, pois achavam que o mundo danarrativa era o mundo da fico, do imaginrio , da fbula. Destaperspectiva os historiadores rechaaram a narrativa e desprezaram oshistoriadores profissionais que seguiam escrevendo biografias, histriafactual e tudo isso. A tradio francesa dos Annales foi uma das quelevou mais longe essa tendncia.

    Hoje, no entanto, a situao tornou-se muito mais complicada. Uma dasrazes que autores como Hayden White e Paul Ricoeur mostraram que,mesmo quando os historiadores utilizam estatsticas ou qualquer outromtodo estruturalista, produzem uma narrativa. Quer dizer: quandodizem que tal coisa conseqncia ou causa de outra, estabelecem umaordem seqencial, se valem de uma concepo da temporalidade, que amesma de uma novela e de um relato historiogrfico.

    Ao mesmo tempo, entidades abstratas, como classes, valores e conceitos,atuam no discurso dos historiadores quase como personagens, havendotoda uma forma de personificao das entidades coletivas ou abstratas.Dessa forma o historiador no pode evitar a narrao, inclusive quando arechaa conscientemente. Pois a escrita da histria por si mesma, pelamaneira de articular dos eventos, pela utilizao da noo decausalidade, trabalharia sempre com as mesmas estruturas e com asmesmas figuras de uma narrativa de fico.

    a partir desse parente sco entre a narrativa de fico e a narrativahistrica que se coloca a questo: onde est a dife rena? Alguns crticosps-modernos adotaram um relativismo radical e decidiram que no haviadiferena e que a histria era ficcional no apenas no sentido da forma.Ou seja: no diziam que no h verdade na histria, mas que a verdadedo saber histrico era absolutamente semelhante verdade de umanovela.

    Outros historiadores, dentre os quais eu me insiro, acreditam que h algoespecfico no discurso histrico, pois este construdo a partir detcnicas especficas. Pode ser uma histria de eventos polticos ou adescrio de uma sociedade ou uma prtica de histria cultural, paraproduzi-la o historiador deve ler os documentos, organizar suas fontes,manejar tcnicas de anlise, utilizar critr ios de prova. Coisas com asquais um novelista no deve se preocupar.

    Portanto, se preciso adotar essas tcnicas em particular, porque h

    uma inteno diferente no fazer histria: que restabelecer a verdadeentre o relato e o que o objeto deste relato. O historiador hoje precisaachar uma forma de atender a essa exigncia de cientificidade que supe

  • 8/8/2019 Nas Entrelinhas Do Passado - Roger Chartier

    11/20

    o aprendizado da tcnica, a busca de provas particulares, sabendo queseja qual for a sua forma de escrita esta per tencer sempre categoriados relatos, da narrativa.

    Alguns historiadores decidiram ento que no valia pena lutar contraalgo inevitvel e passaram a utilizar-se dos recursos mais persuasivos danarrativa a servio de uma demonstrao histrica. Adotaram formas denarrativa que permitiam assegurar, digamos assim, a mise-en-scne daprova. Historiadores como Carlo Ginzburg utilizam tcnicas de narraoque so at mesmo mais cinematogrficas do que propriamentenovelescas. Outros entrecruzam diversas histrias de vida.

    Acho que a situao atual no a de uma oposio absoluta entre anarrativa como fico e a histria como saber, mas de um sabe r que seescreve atravs da narrativa e da ser necessria uma reflexo sobre quetipo de narrativa adotar. Uma narrativa onde se respeite o discurso dosaber, mas que, ao mesmo tempo, seja atrativa para um pblico deleitores. No uma tarefa fcil, mas h exemplos que demonstram quepode ser feito.

    Talvez aqui se possa colocar tambm a questo do talento donarrador. Alguns livros de histria, como os de Robert Darnton,Nathalie Zemon Davies e Michel Volvelle, so bem escritos,agradveis de ler...

    Chartier: uma questo de talento, sim, mas tambm do campo deinvestigao. Penso que h formas de saber nas cincias humanas esociais que so absolutamente fundamentais, mas que no podem seapresentar atravs de maneiras to sedutoras ou mesmo que no

    pretendem necessariamente encontrar um grande pblico.Se algum trabalha, por exemplo, sobre tcnicas arqueolgicas naMesopotmia antiga ou sobre algum tema da histria econmica maisdifcil, evidentemente os critrios de cientificidade exigidos para arealizao do trabalho o afastam de um formato mais sedutor e fcil paraos leitores. Se algum trabalha, por exemplo, sobre a filologia grega,estabelecendo o texto de uma tragdia de Sfocles, uma contribuiofundamental para o conhecimento, mas no vamos pensar que v vender100 mil exemplares.

    Digo isso porque me parece que na Frana, particularmente, aps o

    sucesso de livros como o Montaillou, de Le Roy Ladurie, fixou-se a idiade que toda a obra de histria deveria necessariamente atrair um grandepblico. A partir da as editoras passaram a privilegiar os livros quetratavam de temas que estivessem na moda, ado tando uma atitude dedesprezo para com trabalhos mais modestos ou difceis.

    Por um lado muito bom pensar que o historiador no deve permanecerem sua torre de marfim, que assim est fazendo algo til ao fornecer uminstrumento crtico ao pblico para pensar seu passado coletivo e seumundo contemporneo. Mas isto se torna perigoso quando a busca peloxito afasta o historiador dos objetos ou critrios prprios da prticacientfica.

  • 8/8/2019 Nas Entrelinhas Do Passado - Roger Chartier

    12/20

    O importante estabelecer formas de mediao. Atualmente, junto comMichlle Perrot e Jacques Le Goff, ocupo-me de um programa de rdio emParis, Les matins de France culture, onde discutimos livros quedificilmente podem encontrar um grande pblico. Mas, se h a mediao,o pblico pode ter idia do progresso do saber. Isso um exemplo do queconsidero uma forma mediatizada de conhecimento.

    H algum tempo fiz a resenha de um livro de ensaios doantroplogo James Clifford. Tive uma certa sensao dedesconforto diante de leitura ps-moderna e desconstrutivista queele faz da tradio etnogrfica. A etnografia foi um instrumentocriado pela cultura ocidental para entender pessoas de outrasculturas, no significando que aquelas pessoas tivessem a mesmansia de nos entender ou de entenderem a si mesmas, ou, ainda,que achassem que a etnografia seria a ferramenta adequada paraisto. Cada cultura tem os seus prprios meios de se relacionar como mundo. A meu ver, sempre se parte de uma base histrica,ideolgica ou cultural para fazer alguma coisa, para pensar oupara agir. O ps-modernismo foi um exerccio de desconstruo dacultura ocidental, e nossa base o universo de informaes quecompem a cultura ocidental. Ela que nos fornece osinstrumentos e a motivao para pensarmos sobre ns e sobre omundo. E at para fazer a crtica dessa maneira de pensar.

    Chartier: Penso que, em certo sentido, o trabalho de James Clifford estem paralelo ao de Hayden White. Acho que algo legitimo fazerhistoriadores e antroplogos refletirem sobre a prpria escrita. Durantemuito tempo a escrita foi vista como um meio neutro para falar sobre opassado ou para descrever o outro. Da ter sido fundamental fazer delaum objeto de reflexo, tal como fez White, ao pensar sobre o papel, naescrita do historiador, de e lementos como a retrica e as figuras que semanejam para escrever sobre o passado. O mesmo fez James Clifford comrelao aos dispositivos que os antroplogos utilizam em seu trabalho.

    Outra contribuio fundamental dessa corrente foi a idia de que h umadescontinuidade necessria entre o presente e o passado, ou entre oantroplogo e o outro, a qual no pode ser anulada pela idia deuniversalidade e de compreenso de si prprio. Tal concepo se apiasobre o conceito de descontinuidade de Foucault, que demonstrou queexiste ruptura em conceitos como de loucura, medicina, clnica esexualidade. Essa atitude proporciona uma conscincia dos limites dautilizao de tcnicas de investigao ou de observao. Supe tambmuma forma de tica na investigao, no encontro com o outro, do passadoou de hoje.

    Mas tanto no texto de White quanto no de Clifford h um relativismoabsoluto. No posso aceitar a idia que e st identificada com o ps-modernismo de que todos os discursos so possveis porque remetemsempre posio de quem o enuncia e nunca ao objeto. De acordo comessa viso, o discurso sempre autoproduzido: no diz nada sobre oobjeto e diz tudo sobre quem o escreveu.

    Parece-me uma concluso equivocada, a partir de premissasinteressantes, porque, tanto no caso da histria quanto no daantropologia, uma produo de saber possvel e necessria. tambm

  • 8/8/2019 Nas Entrelinhas Do Passado - Roger Chartier

    13/20

    uma perspectiva que se vale dos argumentos do politicamente correto,assumindo-se como a forma de respeitar o outro, aquele que estabsolutamente desconhecido, conservando-lhe a identidade prpria.

    Esta justaposio de situaes histricas ou situaes antropolgicasonde no existe nenhuma comunicao, nenhum intercmbio, nem sequerde saberes, parece uma forma terrivelmente reducionista daquilo quepoderia ser um projeto de conhecimento compartilhado. Razo pela qualestou completamente em desacordo com essa postura ps-moderna, essaidia de que no h nenhuma possibilidade de conhecimento.

    diferente dizer que esse conhecimento sempre esteve organizado apartir dos esquemas de percepo, de classificao e compreenso doobservador. E que, se existem formas de descontinuidade culturais, preciso, assim mesmo, fazer um esforo para entender o passado e ooutro. Pois foi a partir dessa dupla perspectiva que se construiu umsaber, e me parece que os trabalhos fundamentais da histria e daantropologia demonstram que este saber no s possvel como tambmpode ser oferecido ao outro para conhecimento de si mesmo -para fazercom que o objeto do saber possa transformar-se em seu prpriomanufator, no dependendo apenas do conhecimento produzido peloantroplogo ou historiador.

    Parece-me que, assim, temos a circulao da fora crtica do sabe r. Seisso for destrudo, cai-se num relativismo absoluto . O que me pareceseria uma concluso trgica e ao mesmo tempo muito ideolgica.

    Neste momento temos a sensao de que tudo se tornou possvel:

    prticas que haviam sido banidas por um conjunto de acordosinternacionais no ps-guerra vm sendo implementadas pelos EUAna guerra no Iraque ou ao manterem pessoas presas sem

    julgamento em Guantnamo. Ao mesmo tempo, ocorre a perda defora de organismos internacionais, como a ONU. Na medida emque sabemos que as grandes idias so filtradas e incorporadas agenda do senso comum, a perspectiva radicalmente relativista dops-moderno no teria infludo de alguma forma nesse tipo depoltica, esvaziando a confiana em algumas conquistas dohumanismo e da cultura do Ocidente?

    Chartier: O maior paradoxo do ps-modernismo que nasce de uma

    perspectiva crtica das autoridades, das hierarquias e dos elementosdominantes, mas, com a introduo da dimenso epistemolgica dorelativismo, a anlise fica sem nenhum recurso para fundamentar estapostura crtica. Pois, se tudo possvel, todos os discursos podem serdiferentes por sua competncia retrica, por sua arte de expresso, masem termos de saber e como instrumento crtico no h diferena entreeles. Cria-se uma tenso fundamental.

    Hayden White, por exemplo, um humanista que compartilha os valoresmorais do humanismo. Mas a aplicao de sua perspectiva no d histria instrumentos para produzir um conhecimento crtico, desmentiras falsificaes e estabelecer um saber verdadeiro. Porque, se no h

    nenhum critrio para estabelecer diferenas entre os discursos doshistoriadores, torna-se muito difcil criticar os discursos enganosos, asfalsificaes e as tentativas de reescrita do passado. Este , me parece, o

  • 8/8/2019 Nas Entrelinhas Do Passado - Roger Chartier

    14/20

    grande limite do ps-modernismo: a contradio entre sua inteno e asua epistemologia.

    Em seu livro O grande massacre dos gatos, Robert Darnton adotaas idias e os mtodos de Clifford Gertz, dando tratamentoetnogrfico a um objeto de estudo histrico. Esse foco ampliadosobre um detalhe me parece produzir uma viso distorcida doobjeto. De que forma voc v esse tipo de investigao?

    Chartier: Houve um grande debate depois da publicao do livro deDarnton. Uma das crticas mais fortes feitas a ele tem a ver com a suaidentificao com as idias de Geertz e de sua tendncia textualizaodas estruturas, das prticas rituais e de toda a cultura. O ponto departida de Darnton, utilizando a idia de Geertz de que um rito pode serlido como um texto, era que se podia pensar as prticas sociais como sefossem textos.

    Em O grande massacre dos gatos as fontes de que Darnton se vale so,sobretudo, textuais. Os historiadores que trabalham com textosdesenvolvem, em primeiro lugar, uma anlise crtica do texto. Noentanto, Darnton quase no avana nessa direo. Para tratar o rito comotexto h como que uma supresso do texto em que o rito est narrado.Quando se analisa meticulosamente aquele trabalho surge um problema:no se pode dizer se a matana imaginria ou real, se teria ocorridorealmente. Ele menciona o texto de um arteso, mas no lhe d maiorimportncia, porque pretende se colocar imediatamente na situao deum espectador do massacre. Como Geertz em Bali.

    No podemos pensar que h uma identidade necessria entre a lgicapropriamente textual e as estratgias das prticas. Foucault estudou emseus livros a tenso entre as sries discur sivas e os sistemas no-discursivos. Michel de Certeau plasmou isto na tenso entre asestratgias discursivas e as tticas de apropriao. Bourdieu refletiusobre as razes escolsticas e o sentido prtico. Nesses trs casos devocabulrios tericos diferentes o que h em comum a diferenciaoentre a lgica da produo textual ou da decifrao de um textoutilizando as escritas e as prticas ou estratgias de outras formas deconstruo, que so as prticas cotidianas, habituais etc.

    Isto est em oposio idia de Geertz que parece querer ver todas as

    prticas do mundo social como se fossem textos decifrveis. O maiscomplicado para o historiador que essas prticas no-textuais, emgeral, se encontram atravs de textos. O desafio fundamental para ohistoriador entender a relao entre os textos disponveis e as prticasque estes textos probem, prescrevem, condenam, representam,designam, criticam etc. O essencial pensar a irredutibilidade entre algica da prtica e a lgica do discurso que , tal como dizia Bourdieu, nose podem confundir.

    As prticas do passado so acessveis a ns, em geral, atravs de textosescritos. E o historiador escreve sobre essas prticas. Ao descrev-las ohistoriador tem que ter claro que a operao da escrita no cria uma

    forma de relao particular com essas prticas, que se tornaramconhecveis atravs de sua mediao. O desafio fundamental pensarconceitual e metodologicamente a ar ticulao e a distncia entre as

  • 8/8/2019 Nas Entrelinhas Do Passado - Roger Chartier

    15/20

    prticas e os discursos e evitar a repetio daquele momento, entre osanos 1950-60, em que a metfora do texto se aplicava a tudo: aos ritos, sociedade etc. Era muito cmodo.

    Ento qualquer documento que no seja escrito, que no sejatexto, coloca para o historiador esse tipo de problema. Tal o casodos que trabalham com imagens -objeto que no possvelenfrentar atravs de mtodos ou regras muito esquemticos, nolhe parece?

    Chartier: A imagem um exemplo magnfico para pensar o quedissemos, pois no uma prtica disseminada, silenciosa, no sequerum texto. Creio que querer analis-la como texto uma perspectivateoricamente equivocada, porque a lgica de construo da imagem ou dedecifrao da imagem no a mesma do texto . Parece-me que a lgicagrfica e a lgica textual no se identificam.

    A lgica textual necessariamente uma lg ica linear, a escrita sedescreve atravs de ordem seqencial. E a leitura, inclusive quando sevai de um fragmento a outro, uma le itura seqencial. A observao deum quadro no est organizada segundo esta ordem seqencial. algocom uma lgica prpria e que no se identifica com a lgica textual. Huma questo de diferentes planos, de diferentes entradas.

    Para restituir a lgica na decifrao da imagem, o historiadornecessariamente deve manejar a ordem seqencial ou linear da escrita. Oresultado desse esforo uma tenso. O que no significa ser essa umatarefa impossvel, mas que preciso estar consciente de suas

    dificuldades. Meu amigo Louis Marin, cuja obra admiro, construiu umaargumentao a propsito de como fazer textos com imagens. Ele citacomo exemplo Os sales, artigo em que Diderot transforma um quadroem texto para critic-lo. E toda a crtica esttica supe essa operao defazer textos com imagens.

    O contrrio disto, fazer imagens a par tir de textos, o princpio de toda aiconografia crist. Textos se transformam em imagens, e vice-versa, masnunca so idnticos entre si, pois h toda uma srie de interpretaes,mediaes, apropriaes. possvel utilizar a metfora da imagem comotexto, ou da observao como leitura. Porm deve-se ter conscincia deque apenas uma forma de falar, que no h uma adequao lgico-

    terica entre os dois documentos e que nunca se dissolve airredutibilidade da diferena.

    Uma demonstrao perfeita desta irredutibilidade verificou-se quandoalguns poetas tentaram romper com essa lgica linear e seqencial eapresentaram o texto escrito como se fosse um grafismo, com uma formaem que se podia entrar no texto de maneira diversa, sem a imposio daordem linear da escrita. Foi um esforo para fazer com que a escritafosse mais identificada pela sua forma grfica do que por seu contedosemntico. A meu ver as questes re lativas a imagens estaro sempretrafegando entre o e spao que vai da crtica textual crtica esttica.

    Uma outra questo a do estilo, da retrica no texto de histria.

  • 8/8/2019 Nas Entrelinhas Do Passado - Roger Chartier

    16/20

    Por exemplo, o tratamento irnico do problema, tal como vocidentificou em Hayden White.

    Chartier: Quando Hayden White descreve as quatro figuras retricas queseriam sempre utilizadas pelos historiadores, inclui, ao lado da metfora,da sindoque e da metonmia, a ironia como uma forma de escritahistrica que se pode utilizar inclusive para temas que no tem a ironiacomo objeto. No conheo muitos historiadores que tenham empregadoesse recurso para escrever textos de histria, talvez por causa da tensoque o uso da ironia provoca no texto.

    Creio que fazer rir era a idia de Darnton em O grande massacre dosgatos, ao divulgar o texto sobre aqueles artesos para os quais eramuito divertido matar gatos. Em todas essas obras verificamos queestamos diante de uma descontinuidade. Os dispositivos, os temas, asformas, os gneros que, em um dado momento, provocam o riso ou osorriso so historicamente definidos.

    Ao mesmo tempo, se podemos entender porque esse fato fazia rir gentedo Renascimento porque h continuidade suficiente para que os outrosaspectos sejam percebidos, entendidos e compreendidos. E o que maistemos discutido com o ps-modernismo sobre a necessidade dereconhecer as descontinuidades histricas sem cair no relativismo queestabelece que no h relao possvel atravs de uma distncia profundae que assim impossvel qualquer compreenso do outro.

    Ultimamente, aqui no Brasil, tm circulado na internet textosfalsamente atribudos a escritores e jornalistas clebres. So

    textos que tm uma certa identidade com o estilo do supostoautor, mas que so renegados com indignao. J houve tambmcasos de textos atribudos a Jorge Lus Borges e a Gabriel GarcaMrquez, que, depois de muito terem rodado na rede, osespecialistas negaram ser deles. Que outros problemas para aquesto da autoria a internet provoca?

    Chartier: Trata-se de uma atitude inversa do plgio , que roubar umtrabalho e assin-lo, enquanto aqui se rouba o nome de algum para porno seu prprio texto. Mas este no um fenmeno diretamente vinculado internet. Esta apenas modificou a forma de circulao dessasfalsificaes.

    Lope de Vega, por exemplo, em pleno sculo 16, se queixava que outrosdramaturgos utilizavam seu nome para vender comdias muito ruins queele nunca havia escrito. Para se proteger, ele divulgou uma lista comtodas as suas obras, que eram muitas, cerca de 450, pois ele era muitoprolfico.

    No mundo da imprensa e da representao teatral essa apropriao donome pode ter diversos fins, no caso de Vega servia para vender ascomdias. Pode tambm servir para pensar em si mesmo como capaz deescrever um texto de Borges. No caso de Borges, parece um fenmenobem-vindo, uma vez que ele e screveu muitas obras assinadas com nomes

    que no eram o seu, como se tivessem sido e scritas no sculo 18.

  • 8/8/2019 Nas Entrelinhas Do Passado - Roger Chartier

    17/20

    O copyright se baseia na idia de que o texto uma criao, uma partedo indivduo, expresso de seus sentimentos, de sua linguagem. Arelao entre o texto e a subjetividade, a idia de que o texto umaprojeo do indivduo tendo como conseqncia econmica a propriedadedo texto surge a partir da metade do sculo 18. O problema da circulaotextual em forma eletrnica, quando no h formas de se fechar o texto, que ela criou dificuldades para os direitos de propriedade literria. Cadatexto pode ser alterado pelo leitor e enviado pela internet. Essamaleabilidade do texto na forma eletrnica tornou difcil proteger odireito de propriedade literria.

    Foucault apresentou na sua conferncia inaugural do Collge de France aidia de um mundo textual sem apropriaes, sem nome, feito de ondastextuais que se sucediam, onde cada um poderia escrever suas palavrasem um discurso j existente. Era um paradoxo, porque ele apresentavaseu sonho de uma textualidade coletiva, indefinida, a partir da posiomais individualizada, a mais prestigiosa da universidade francesa. Decerta forma a internet permite aos autores que realizem esse sonho medida que deixa o texto aberto s escritas, apropriaes e alteraes.Mas h aqueles fiis ao sculo 18 que reivindicam a propriedade literriae a identidade da autoria.

    Um tema que vem sendo discutido nos EUA a forma de impedir que otexto seja transformado, copiado ou impresso. Trata-se de uma questocomplicada porque a nica maneira de solucion-la fechando os textos.E isto um paradoxo, pois a inveno da internet deu-se justamente parafacilitar o acesso aos textos.

    Este foi o problema dos e-books, um texto pelo qual se pagava, mas queno se podia alterar, copiar ou imprimir. Protegia os direitos do editor oudo autor, mas no fez sucesso porque o que torna essa nova tecnologiatextual to atraente justamente a liberdade, a mobilidade. Todas asinvenes que vm no sentido de constranger essa liberdade soconsideradas violncias contra as novas tecnologias.

    A mesma discusso acontece no meio das publicaes cientficas. Hrevistas eletrnicas que querem proibir o acesso gratuito e apossibilidade de cpia dos artigos publicados. E h comunidadesinvestigadoras que afirmam, maneira de Condorcet no sculo 18, que osaber algo que no pode ser apropriado, pois til para o progresso dahumanidade.

    Algumas comunidades investigadoras na rea de biologia, por exemplo,tentam criar uma forma de difuso dos resultados fora do controleeconmico das revistas, cuja assinatura pode chegar a US$ 8 mil oumesmo a US$ 12 mil. uma questo que ainda e st para ser resolvida: ainternet como uma textualidade livre e mvel ou como forma depublicao segundo os mesmos critrios jurdicos e estticos dapublicao impressa.

    Um controle difcil de obter, pois a indstria fonogrfica estperdendo essa guerra

  • 8/8/2019 Nas Entrelinhas Do Passado - Roger Chartier

    18/20

    Chartier: Mas a diferena que a estrutura do livro impresso impe otexto ao leitor sem que e le possa modific-lo. Mesmo que se escreva naspginas em branco, h o reconhecimento da autoria e que isto implica emdireitos econmicos e morais. Mas o texto eletrnico um texto aberto,no qual possvel interferir. uma grande diferena.

    A outra grande diferena que no mundo do texto impresso h umacorrespondncia entre o tipo de publicao e o tipo de textos que sepublica nela. Uma revista no um jornal, que no um livro, que no um documento oficial, que no uma carta. H uma hierarquia deobjetos que correspondem a uma diferenciao na taxonomia do texto. Ocomputador quebra isso.

    A partir do momento em que o mesmo aparato, na mesma forma, d a lertodos os tipos de discursos em termos de gnero, da carta ao livro, ouem termos de autoridade, mais difcil para o leitor que no estpreparado fazer a diferenciao imediata -que est muito mais evidenteno material impresso.

    Uma vez que todos os gneros de textos, desde os mais ntimos aos maispblicos, se do a ler de uma forma quase idntica sobre o mesmoaparato, h uma ruptura muito grande na maneira de entrar ou deconceber ou de manejar o mundo dos textos. Para o melhor ou para opior.

    Para o melhor, porque permite esta proximidade entre os textos, porqueh uma circulao textual que no simplesmente a mobilidade de cadatexto separadamente, seno a mobilidade textual, que seria uma formade inveno e renovao. Para o pior, quando pensamos nos que negam a

    existncia das cmaras de gs.Se algum busca informaes sobre o Ho locausto no mundo da culturaimpressa ou se, ao fazer um trabalho para a escola, consultaenciclopdias, livros de histria, revistas reconhecidas, no ter tantocontato com a propaganda dos negacionistas, que totalmentemarginalizada. Em muitos pases ela est proibida ou s existe emrevistas que no se encontram facilmente. Assim, as informaes sobre oHolocausto sero obtidas em textos mais ou menos controlados.

    Um jornalista fez a mesma investigao sobre o Holocausto na internet eencontrou uma enorme quantidade da propaganda negacionista,

    revisionista, apresentada com todas a aparncia de texto cientfico. Se oleitor no est preparado para estabelecer a diferena que j foiestabelecida na cultura impressa por meio do formato editorial ou dascomunidades cientificas, h um risco de confuso entr e o que informao e o que saber. informao conhecer toda essa propagandarevisionista, mas no saber. o contrrio do saber, a falsificao daverdade.

    A grande dificuldade como controlar, como estabelecer critriospara isto. Quem vai estabelecer?

    Chartier: Voltamos ao nosso primeiro tema de d iscusso. No se trata decensura, mas de como reconhecer a autoridade cientfica. No autoridade

  • 8/8/2019 Nas Entrelinhas Do Passado - Roger Chartier

    19/20

    no sentido cannico, e sim a autoridade que se afirma atravs daevidncia, da prova. Os textos que descrevem uma realidade histricano tm autoridade cientfica equivalente. atravs disto que podemosreconhecer a diferena entre um texto dos revisionistas que inventaramque as cmaras de gs nunca existiram, que nunca aconteceu o massacrede milhes de judeus, e um texto de um historiador que se podeencontrar em uma enciclopdia, em livros de divulgao e queestabeleceu uma percepo adequada do acontecimento.

    O que digo que este diferencial de credibilidade cientfica eraestabelecido no mundo impresso a partir das diferenciaes editoriaisentre os tipos de publicaes e as formas do discurso. A gente podia darmais crdito a um livro publicado por uma editora reconhecida por suaexigncia que a um artigo de peridico ou a uma carta privada. Essaoperao no impossvel com o texto e letrnico. Ela se tornou maisdifcil.

    Talvez porque credibilidade uma coisa que se conquista com otempo. como o prestgio de algumas universidades e o descrditode outras. Dentro da internet ainda no houve tempo para criarportais em que o usurio possa dizer com toda convico: neste euposso confiar.

    Chartier: De fato, preciso dar aos usurios da internet instrumentoscrticos para entender como os textos foram construdos, para avaliar ograu de seriedade de cada local. No podemos minimizar o significado daruptura de um mundo onde objetos e textos esto vinculados atravs dematerialidades mltiplas com um mundo em que a mesma superfcieiluminada do monitor d a ler todos os gneros textuais. A reflexo sobreessas transformaes muda a percepo dos textos e de suas diferenas.

    H uma descontinuidade com a leitura com que estvamos familiarizadose isto implica na transformao da relao fundamental com algo quecontinua a ser um texto, mesmo que em diferentes formas. A leituraeletrnica uma leitura da fragmentao, dos extratos de livro, sem quese saiba nada sobre a totalidade da qual se extraiu aquele fragmento,pois o fragmento eletrnico no mantm nenhuma ligao com o textoque garantia o conhecimento da totalidade. O problema saber se ainternet pode superar a tendncia fragmentao.

    Voc j orientou muitos brasileiros. Ao longo desse tempo voc leumuito sobre o Brasil nas teses desses orientandos. A partir dessasleituras como voc v o Brasil?

    Chartier: Acho que h aqui uma circulao entre os campos d isciplinaresda antropologia, da histria e da sociologia cultural mais forte que emoutros lugares. O campo da educao, por exemplo, que em muitospases muito especializado, aqui me parece estar bastante integrado aomundo das cincias sociais. A maior parte dos trabalhos que orienteitratam de uma forma ou de outr a do mundo das prticas culturais, dahistria da publicao e da circulao dos textos e um pouco tambm do

    mundo social, da histria da vida privada, das e struturas sociais do Brasilcolnia.

  • 8/8/2019 Nas Entrelinhas Do Passado - Roger Chartier

    20/20

    H uma vitalidade impressionante nesse tipo de investigao. O problema que na Europa ou nos Estados Unidos existe uma total falta deinteresse por outros territrios. Todo mundo est muito preso a seuprprio campo de investigao e no se d conta de que possvelaprender muito com estudos sobre temas que no so os seus. Issoimpede que circulem numerosos trabalhos que mereceriam ter umreconhecimento mais forte.

    Para divulgar esses trabalhos que tm uma fora metodolgica ou tericainspiradora, seria preciso fazer com que editoras norte-americanastraduzissem obras latino-americanas para o pblico que no l emespanhol. Pode-se perceber nas referncias bibliogrficas de trabalhosrealizados na Europa e nos EUA que muitas obras latino-americanas noesto em ingls, salvo trabalhos de autores americanos e ingleses sobreo Brasil.

    Traduo de Ana Carolina Delmas

    Isabel Lustosa cientista poltica, pesquisadora da Casa de Rui Barbosa, no Rio deJaneiro, e autora de "Insultos Impressos A Guerra dos Jornalistas naIndependncia" (Companhia das Letras, 2000).