natan henrique taveira baptista luiza helena rodrigues de ......clássicas pela universidade de são...

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Estudos em dos Clássicos Natan Henrique Taveira Baptista Luiza Helena Rodrigues de Abreu Carvalho Leni Ribeiro Leite ORGANIZADORES

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Page 1: Natan Henrique Taveira Baptista Luiza Helena Rodrigues de ......Clássicas pela Universidade de São Paulo. Fez um estágio pós-doutoral na Universidade de Coimbra, em Portugal, em

Estu do s em

d o s Claacutess ico s

Natan Henrique Taveira Baptista

Luiza Helena Rodrigues de Abreu Carvalho

Leni Ribeiro Leite

O R G A N I Z A D O R E S

Estu do s em

d o s Claacutess ico s

copy Cop yrig ht do s autores Vitoacuteria 2020

U NIVER S ID AD E F ED ER AL D O E S P IacuteR IT O S ANT O

R eitor P aul o Seacutergi o de P aul a V argas

V ice - r eitor Roney P i gnat on da Si l v a

Proacute - reito r de Pesq u isa e Poacute s - Gradu accedilatildeo N ey v al C ost a Rei s J uacuteni or

Diretor a do Centro de Ciecircncias Humanas e Naturais Edi net e M ari a Rosa

Coo rdenad or do Prog rama de Poacutes - Gradu accedilatildeo em L etras V i t or C ei Sant os

Coo rdenad or do Prog rama de Poacutes - Gradu accedilatildeo em H istoacuteria Bel c hi or M ont ei ro L i ma N et o

Editoraccedilatildeo N at an H enri que T av ei ra Bapt i st a

R evisatildeo de Tex to O s aut ores

Projeto Graacutef ico e Diag ramaccedilatildeo Eletrocircn ica N at an H enri que T av ei ra Bapt i st a

Cap a N at an H enri que T av ei ra Bapt i st a

R evisatildeo F inal Barbara F ari a T o fol i D rey kon F ernandes N asc i ment o e F abri zi a N i c ol i D i as

P R OG R AM A D E P OacuteS - G R AD UACcedilAtildeO E M L ET R AS ģU F ES

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D AD OS I N T ER N ACION AIS D E C AT ALOG ACcedilAtildeO - N A - P UB LIC ACcedilAtilde O ( CIP)

(B i bl i otec a Setori al do Centro de Ci ecircnc i as H umanas e N aturai s da U ni versi dade F ederal do Espiacute ri to Santo ES B rasi l )

El aborado por Saul o de J esus Peres ģCRB - 6 ES - 676O

E828 Estudos em traduccedil atildeo amp rec epccedil atildeo dos c laacutessic os [rec urso elet rocircnic o] Natan Henrique

T aveira Baptista L uiza Helena R odrigues de Abreu Carvalho L eni R ibeiro L eite

organizadores ģDados elet rocircnic os ģVitoacuteria ES L et ras - Ufe s 2020

280 p il

ISBN 978 - 65 - 88916 - 00 - 1

M odo de ac esso lthtt p let rasufesbrpt - brperiodicos - e - publicac oesgt

1 Civilizaccedil atildeo c laacutessic a ģdisc ursos ensaios c onferecircnc ias 2 L ite ratura - Histoacuteria e

c riacutetic a 3 T raduccedil atildeo e inte rpretaccedil atildeo na lite ratura I Baptista Natan Henrique T aveira

1991 - II Carvalho L uiza Helena R odrigues de Abreu 1992 - III L eite L eni R ibeiro 1979 -

IV Universidade F ederal do Espiacuterito Santo Program a de Poacutes - Graduaccedil atildeo em L et ras

CDU 82

Natan Henrique Taveira Baptista

Luiza Helena Rodrigues de Abreu Carvalho

Leni Ribeiro Leite

O R G A N I Z A D O R E S

Vitoacuter ia 2 0 2 0

Estu do s em

d o s Claacutess ico s

PARTE I

A ANTIGUIDADE CLAacuteSSICA

Agrave LUZ DOS ESTUDOS DE RECEPCcedilAtildeO

ALUSAtildeO E INTERTEXTUALIDADE

Um possiacutevel diaacutelogo entre o Poema de Parmecircnides e o Tratado do natildeo-ser de Goacutergias

Daniela Brinati Furtado

danibrinatifgmailcom

Faacutebio da Silva Fortes

fabiosfortesyahoocombr

O objetivo deste estudo eacute apresentar uma reflexatildeo sobre a filosofia

parmeniacutedica acerca do ser e em que medida esta pode ter

viabilizado o pensamento de Goacutergias desenvolvido no Tratado do

natildeo-ser Em seu tratado Goacutergias apresenta a hipoacutetese de que as

coisas externas ao discurso [loacutegos] natildeo satildeo traduziacuteveis em palavras

portanto natildeo satildeo comunicaacuteveis Ao fazecirc-lo o sofista impede que

qualquer discurso fale fielmente da realidade atitude que

inviabiliza tratar o Poema de Parmecircnides realmente do ser Feito

isso Goacutergias daacute ao nosso conhecimento apenas acesso ao

discurso o qual receberaacute o poder de atribuir sentido agrave realidade

que seraacute um constante fluxo de discursos pontuais E ao

refletirmos sobre a questatildeo do sofista nos perguntaremos se o ser

parmeniacutedico ndash na medida em que este eacute confundido com o

pensamento presente em seu Poema ndash possivelmente abriu espaccedilo

para os postulados gorgianos

[11]

Introduccedilatildeo

No Tratado do natildeo-ser Goacutergias parece limitar a possibilidade de o loacutegos1 expressar fielmente tudo aquilo que

natildeo seja classificado como uma palavra em um discurso Tal movimento de limitaccedilatildeo do loacutegos parece ir de

encontro com o Poema acerca da natureza de Parmecircnides a saber um discurso sobre como se daacute a realidade

o ser ndash que seria a condiccedilatildeo de possibilidade de todas as coisas que satildeo

Diante disso nos propomos refletir sobre em que medida o Tratado de Goacutergias dialoga com o Poema de

Parmecircnides Para realizaacute-lo propomo-nos primeiro a fazer uma reflexatildeo sobre o poema para entatildeo

ponderar sobre o tratado e acerca de que medida podemos levantar a possibilidade de seu diaacutelogo com o

poema

Com relaccedilatildeo ao Poema refletimos que Parmecircnides atraveacutes da deusa indica o ser como a condiccedilatildeo de

possibilidade das coisas que satildeo ou seja as coisas apenas satildeo porque antes o ser eacute assim como tal ser

tambeacutem parece ser o uacutenico objeto de pensamento Ao fazecirc-lo Parmecircnides parece revelar como

consequecircncia de suas postulaccedilotildees uma realidade simples ou seja uma vez que o ser permeia tudo aquilo que

eacute e portanto na medida em que pensamos algo tal pensamento passa a ser isto eacute passa a ser permeado

pelo ser

Ora Goacutergias parece pensar que se assim o fosse os pensamentos seriam congruentes com relaccedilatildeo ao ser e

portanto natildeo seria possiacutevel pensar o natildeo ser Poreacutem Goacutergias insinua ser capaz de pensar um tratado que

menciona o natildeo ser e assim ele levanta a questatildeo de a realidade natildeo ser simples ndash permeada por apenas um

ser que igualaria a natureza de todas as coisas que permeia ndash mas sim uma realidade complexa na qual pode

existir algo de uma natureza diferente do loacutegos poreacutem natildeo suscetiacutevel de ser conhecida ou se conhecida natildeo

possiacutevel de ser enunciada

O ser parmeniacutedico

Em seu poema Parmecircnides atraveacutes da deusa nos apresenta duas possibilidades de composiccedilatildeo do todo da

realidade ou tudo eacute ser ou tudo eacute natildeo ser ldquoassim ou totalmente eacute necessaacuterio ser ou natildeordquo (DK 28 B811)2

Temos aqui a apresentaccedilatildeo daquilo que Sedley (2008 p 170) chama de ldquoPrimeira lei Natildeo haacute meias-verdades

1 Como nos indica o verbete de um dos mais conceituados dicionaacuterios da liacutengua grega antiga (LIDDELL SCOTT JONES 1996 [1843]) a palavra loacutegos tem vaacuterias traduccedilotildees possiacuteveis dentre elas palavra discurso pensamento 2 οὕτως ἢ πάμπαν πελέναι χρεών ἐστιν ἢ οὐχί Em todas as citaccedilotildees do Poema utilizamos a traduccedilatildeo de Joseacute

Cavalcante de Souza (1973)

[12]

Nenhuma proposiccedilatildeo eacute verdadeira e falsa A nenhuma pergunta se pode coerentemente responder lsquosim e

natildeorsquordquo ou seja quando se trata da verdade ou eacute ou natildeo eacute natildeo haacute como ser ambos

A deusa exclui a possibilidade do natildeo ser como aquele a partir do qual toda a realidade se desdobra na medida

em que este natildeo possui atributos proacuteprios dele nada pode-se afirmar que eacute apenas o que natildeo eacute o que o

impossibilitaria ser condiccedilatildeo de possibilidade daquilo que eacute relaccedilatildeo (SEDLEY 2008)

Jaacute o ser por ter atributos proacuteprios natildeo precisa de um diferente para ser caracterizado ndash dizemos isso porque

em uma negativa noacutes precisariacuteamos de um ldquoBrdquo para dizer que ldquoArdquo natildeo eacute ele A afirmaccedilatildeo por outro lado

permitiria somente a identidade ldquoArdquo eacute ldquoArdquo Ora se a deusa postulou no iniacutecio do poema que o todo eacute ou natildeo

eacute uma vez que o natildeo ser precisa de um diferente para caracterizar-se ele natildeo poderia ser o todo Isso porque

para ser pensado o natildeo ser natildeo o faz identificando-se consigo mesmo mas diferenciando-se de algo e

portanto se ele fosse o todo ele natildeo o seria sozinho mas precisaria de outro para receber atributos O ser

por outro lado identifica-se consigo mesmo podendo ser apenas ele o todo Isso permite um discernimento

do ser um pensamento claro deste e por ter caracteriacutesticas proacuteprias e inteligiacuteveis eacute capaz de ser o motivo

das coisas serem ou seja as coisas satildeo porque fazem parte do ser (KIRK 1983 p 258)

Depois disso estabelecido e o sujeito do verbo ldquoserrdquo ter sido colocado como o ente (CASSIN 2015) a deusa

segue para demonstrar os quatro atributos do ser natildeo gerado e impereciacutevel um todo uacutenico imoacutevel e que o-

que-eacute eacute esfeacuterico A primeira caracteriacutestica trata da atemporalidade do ser Tal caracteriacutestica se apresenta

como fundamental uma vez que ldquose alguma coisa existe natildeo pode nascer nem perecer transformar-se ou

mover-se nem estar sujeita a nenhuma imperfeiccedilatildeordquo (KIRK 1983 p 251) ou seja para nos enganarmos

entendendo que as coisas vecircm a ser no tempo tem de haver algo atemporal espacial de onde tais coisas

possam se desdobrar este algo eacute o ser

Na medida em que nos encaminhamos para a proacutexima caracteriacutestica podemos perceber a

complementaridade entre elas uma vez que o ser eacute impereciacutevel e condiccedilatildeo de existecircncia das coisas

pereciacuteveis este seraacute um uno contiacutenuo que permeia todas as coisas que satildeo ldquoo que estaacute sendo eacute

lsquocompletamente homogecircneo uno e contiacutenuorsquo e natildeo pode ser de outro modo jaacute que estaacute presente em tudo o

que eacuterdquo (CORDERO 2011 p 100)

Se o ser eacute uno contiacutenuo homogecircneo e permeia todas as coisas que existem e se para que as coisas sejam

tem de haver um ser entatildeo no momento em que um pensamento emerge este encontra sua condiccedilatildeo de

possibilidade no ser e quando ele passa a ser efetivamente ele tambeacutem eacute permeado pelo ser ldquoeacute lsquotodo igual a

sirsquo de modo a que nele natildeo se possam encontrar intervalos ou distinccedilotildeesrdquo (SEDLEY 2008 p 174) Ou seja

natildeo haacute como ter um intervalo no ser que permita que algo seja sem ser permeado por este e portanto quando

um pensamento passa a ser segue-se que este eacute permeado pelo ser

[13]

Tal caracteriacutestica pode levar-nos a pensar o ser como muacuteltiplo Poreacutem para evitar tal pensamento de

multiplicidade que engendraria uma certa ilusatildeo acerca da realidade Parmecircnides iraacute introduzir a ideia do

todo como um e quando Parmecircnides postula a realidade como um ser uno ele exclui a possibilidade da

multiplicidade uma vez que mesmo que tenhamos a ilusatildeo de uma realidade muacuteltipla eacute patente o fato de o

ser tudo permear e dar a possibilidade de existecircncia agraves coisas que satildeo portanto a realidade eacute uma uacutenica

existecircncia a do ser (KIRK 1983 p259)

Tal colocaccedilatildeo de que o ser eacute uno e homogecircneo nos leva agrave proacutexima caracteriacutestica que a complementaraacute o ser

eacute imoacutevel Isso porque uma vez que consideramos o ser como atemporal e impereciacutevel e natildeo gerado ele natildeo

realiza um movimento natildeo podemos falar o que ele foi ou seraacute pois ele eacute sempre o mesmo estaacute em um estado

constante ele eacute sempre presente A partir disso podemos pensar o ser como um eterno contiacutenuo ldquocontudo

eacute provaacutevel que o argumento de 296 tenha jaacute negado sua existecircncia no tempordquo (KIRK 1983 p 261) pois se

ele fosse um contiacutenuo dentro do tempo poderiacuteamos dizer que ele foi o mesmo que ele eacute hoje e seraacute sempre

o mesmo mas natildeo devemos falar do ser em comparaccedilatildeo com as coisas que ele natildeo eacute tratamos dele apenas

de forma afirmativa e dizer o que foi seu passado que natildeo eacute mais presente natildeo estaacute de acordo com tal

postulaccedilatildeo

Portanto parece-nos que Parmecircnides pensa em um ser que eacute e que ocupa a dimensatildeo espacial ldquolsquoimoacutevelrsquo eacute

aqui frequentemente interpretado como lsquoimutaacutevelrsquo tomando-se o limite como siacutembolo de lsquoinvariacircnciarsquordquo

(SEDLEY 2008 p 174) Tal dimensatildeo espacial nos leva agrave uacuteltima caracteriacutestica mencionada a sua

esfericidade O ser por ser uno atemporal e homogecircneo natildeo poderia ser carente de nada e por isso

Parmecircnides designa a este limites ldquopreenchendo-se todo espaccedilo disponiacutevel ateacute esse limite natildeo haacute espaccedilo

para esse movimentordquo (SEDLEY 2008 p 174) Portanto colocando um limite espacial Parmecircnides tira do

ser essa caracteriacutestica temporal do movimento

Devemos interpretar esses limites como uma forma tanto metafoacuterica quanto literal de apresentar o

acabamento do ser Literal porque quando se trata de tal acabamento este seraacute esfeacuterico uma vez que a

esfera natildeo permitiraacute uma assimetria e portanto natildeo permitiraacute uma definiccedilatildeo de suas partes por comparaccedilatildeo

agraves outras nas suas diferentes caracteriacutesticas (SEDLEY 2008) Poreacutem haacute objeccedilotildees a essa limitaccedilatildeo do ser a

saber que se o ser eacute limitado e esfeacuterico nada impede que no seu exterior esteja o natildeo-ser (SEDLEY 2008)

Eacute nesse momento que introduzimos a interpretaccedilatildeo metafoacuterica da esfericidade do ser segundo a qual

podemos entender que Parmecircnides ao designar o ser como limitado talvez esteja pensando este como

limitante aquilo que permitiraacute as coisas serem E por este ser uno e todo coloca limite agraves coisas que satildeo

existentes e natildeo permite a existecircncia do natildeo ser ou seja do natildeo existente - ele limitaraacute a existecircncia agraves coisas

que satildeo (KIRK 1983)

[14]

Entatildeo pois limite eacute extremo bem terminado eacute de todo lado semelhante a volume de esfera bem redonda do centro equilibrado em tudo pois ele nem algo maior nem algo menor eacute necessaacuterio ser aqui ou ali pois nem natildeo-ente eacute que o impeccedila de chegar ao igual nem eacute que fosse a partir do ente aqui mais e ali menos pois eacute todo inviolado pois a si de todo igual igualmente em limites se encontra (DK 28 B841-49)3

Podemos perceber nessa passagem do Poema que a deusa coloca o ser como limitado e circular Podemos

pensar que assim ela o faz uma vez que o ciacuterculo impediria uma comparaccedilatildeo negativa ndash a partir da qual uma

parte teria atributos que outra natildeo tem ndash excluindo a possibilidade de o natildeo ser ser de dentro do ser Isso

resulta em um ser todo idecircntico a si mesmo e que impossibilita a diferenccedila dentro de seus limites

Na medida em que o ser eacute homogecircneo e condiccedilatildeo de possibilidade de tudo aquilo que eacute ele permite a

existecircncia das coisas que satildeo uma vez que estas derivam dele Podemos a partir de tal pensamento deparar-

nos com a consequecircncia de que no momento em que um pensamento surge ou que um discurso eacute proferido

eles tambeacutem satildeo derivaccedilotildees do ser e portanto natildeo dizem o natildeo ser ndash pois este eacute impensaacutevel ndash mas mesmo

que diferente da forma que a deusa o apresenta eles expressam o ser e portanto natildeo haveria o falso

Resumidamente vimos que no Poema atraveacutes da deusa Parmecircnides apresenta duas vias possiacuteveis uma que

eacute (a do ser) e outra que natildeo eacute (a do natildeo ser) Uma vez que a via do natildeo ser mostrou-se contraditoacuteria ela natildeo

poderia ser a via do conhecimento nos restando apenas a via do ser A deusa caracteriza o ser que compotildee a

realidade como uno imutaacutevel homogecircneo e circular e devido a tais atributos o ser natildeo poderia ser carente

abrangendo assim todas as coisas que satildeo inclusive o pensamento e portanto pensar se confunde com o

ser

O ser e o loacutegos no Tratado do natildeo ser

Na versatildeo do Tratado ao qual temos acesso atraveacutes do Anocircnimo MXG nos eacute apresentada primeiro a

conclusatildeo para depois serem desenvolvidos os argumentos que levaram Goacutergias a ela

3 αὐτὰρ ἐπεὶ πεῖρας πύματον τετελεσμένον ἐστί

πάντοθεν εὐκύκλου σφαίρης ἐναλίγκιον ὄγκωι

μεσσόθεν ἰσοπαλὲς πάντηιmiddot τὸ γὰρ οὔτε τι μεῖζον

οὔτε τι βαιότερον πελέναι χρεόν ἐστι τῆι ἢ τῆι

οὔτε γὰρ οὐκ ἐὸν ἔστι τό κεν παύοι μιν ἱκνεῖσθαι

εἰς ὁμόν οὔτ᾿ ἐὸν ἔστιν ὅπως εἴη κεν ἐόντος

τῆι μᾶλλον τῆι δ᾿ ἧσσον ἐπεὶ πᾶν ἐστιν ἄσυλονmiddot

οἷ γὰρ πάντοθεν ἶσον ὁμῶς ἐν πείρασι κύρει

[15]

Nada diz Goacutergias eacute Se eacute eacute incognosciacutevel se eacute e eacute cognosciacutevel natildeo pode ser mostrado a outros (Tratado do natildeo-ser sect1)4

Inicialmente percebemos nessa passagem que Goacutergias apresenta-se em desacordo do que foi revelado pela

deusa de Parmecircnides Ao anunciar que ldquonada eacuterdquo Goacutergias parece ir de encontro agrave filosofia de Parmecircnides

desafiando-a e derrubando a seguranccedila que essa tinha diante de sua consequecircncia ndash a relaccedilatildeo direta entre

pensamento e realidade ndash em sua realidade uma (CASERTANO 2010) Tal movimento parmeniacutedico tem

como consequecircncia a impossibilidade de o discurso falar coisas que satildeo diferentes do ser e portanto

apresentar algo diferente deste Poreacutem no trecho apresentado Goacutergias parece impossibilitar a traduccedilatildeo do

ser parmeniacutedico em palavras Ao fazecirc-lo Goacutergias acaba por indicar que haacute como dizer e portanto pensar

aquilo que eacute diferente do ser ou seja nessa passagem o sofista parece indicar a possibilidade de dizer o natildeo

ser e portanto exclui a homogeneidade do ser

Goacutergias provavelmente seguindo os passos da deusa (CASSIN 2015) pensa que se a realidade eacute toda ser ou

toda natildeo ser e se o fato de se poder pensarfalar o natildeo ser ndash como ele o fez anunciando que nada eacute ndash exclui a

possibilidade do ser como todo entatildeo resta ao natildeo ser a posiccedilatildeo de reger a realidade Mas ainda assim se haacute

natildeo ser e este exclui a possibilidade do ser Goacutergias concorda que para que haja natildeo ser para se dizer que natildeo

eacute seria necessaacuterio o desdobramento das coisas deste natildeo ser assim como em Parmecircnides do ser se

desdobravam os entes em Goacutergias do natildeo ser deveriam se desdobrar os natildeo entes (CASSIN 2015) Mas para

que isso aconteccedila o natildeo ser deveria ter atributos proacuteprios como o ser o que natildeo eacute o caso uma vez que o natildeo

ser eacute contraditoacuterio - ele eacute natildeo ser - ele eacute idecircntico e diferente de si ao mesmo tempo E se o natildeo ser permite

contradiccedilatildeo nada impede o ser - que seria o oposto do natildeo ser com o qual coexiste na contradiccedilatildeo - de existir

em uma realidade dominada por natildeo ser Afinal eacute necessaacuterio o ser para afirmar que o natildeo ser eacute

Concluiacutemos entatildeo que provavelmente para Goacutergias o todo natildeo pode ser o ser sozinho uma vez que o natildeo ser

foi colocado na primeira frase do tratado Mas tambeacutem natildeo pode ser o natildeo ser sozinho uma vez que este eacute

contraditoacuterio natildeo tendo atributos proacuteprios e precisando do ser para ser identificado E ainda que ser e natildeo

ser fossem o mesmo nada seria pois ser seria natildeo ser e este uacuteltimo natildeo eacute (Tratado do natildeo-ser sect2)

Goacutergias portanto se vecirc em um impasse ao tentar conhecer o ser parmeniacutedico ele acabou se encontrando

em uma realidade que natildeo eacute simples e composta apenas pelo ser Ele se viu pelo contraacuterio em uma realidade

complexa e composta pelo ser e pelo natildeo ser Isso dificultou a pesquisa do sofista pois durante sua tentativa

de conhecer o ser ele se deparou com o diferente deste e por ter encontrado algo sobre o que a deusa diz

natildeo ser possiacutevel pensar ele tenta distinguir esse diferente ndash o natildeo ser ndash do ser da deusa poreacutem ldquodesde que se

4 Οὐκ εἶναί φησίν οὐδέν εἰ δrsquo ἔστιν ἄγνωστον εἶναι εἰ δὲ καὶ ἔστι καὶ γνωστόν ἀλλrsquo οὐ δηλωτὸν ἄλλοις Tal passagem pode ser encontrada no Tratado sobre o natildeo-ser em sua versatildeo do MXG (De Melisso Xenophane Gorgia) escrita por um doxoacutegrafo anocircnimo da qual seguimos a ediccedilatildeo de Cassin (2005)

[16]

tente garantir a distinccedilatildeo das duas vias elas se confundemrdquo (CASSIN 2015 p 70) Ou seja ao tentar

identificar o natildeo ser com ele mesmo ndash natildeo ser eacute natildeo ser ndash ele encontrou o ser junto do natildeo ser este uacuteltimo

precisando do primeiro para identificar-se consigo mesmo Isso deixa Goacutergias com duas opccedilotildees ou tudo eacute

(ser e natildeo ser satildeocoexistem) ou nada eacute (nem ser nem natildeo ser satildeoexistem)

O sofista se vecirc na posiccedilatildeo de fazer uma escolha e decide ser fiel agrave deusa dizendo que nada eacute pois se ele

optasse pelo tudo eacute ser e natildeo ser coexistiriam e de acordo com a deusa eles natildeo coexistem Segue-se entatildeo

que diferente da deusa Goacutergias natildeo percebe o caminho do ser como persuasivo o que vai levaacute-lo a dizer que

nem ser nem natildeo ser satildeo ou seja nada eacute (CASSIN 2015)

Em seguida Goacutergias recua de sua posiccedilatildeo radical Ele o faz ou melhor permite-se fazecirc-lo uma vez que eacute

indiferente ao conteuacutedo do discurso - natildeo importa se o ser eacute ou natildeo pois mesmo que seja natildeo haacute como ser

dito Entatildeo natildeo haacute porque o discurso ocupar-se do ser (SALLES 2018)

Goacutergias entatildeo recua um pouco de sua hipoacutetese inicial - de que ldquonada eacuterdquo - e anuncia a hipoacutetese de que ldquose eacute eacute

incognosciacutevelrdquo hipoacutetese que estabelece a indiferenccedila mencionada (CASSIN 2015) Isso porque com relaccedilatildeo

a essa realidade objetiva apresentada por Parmecircnides natildeo importa para ele se o ser realmente eacute porque se

ele for natildeo haacute como o conhecermos e portanto produzir um discurso sobre ele como Parmecircnides o fez

Goacutergias ao recuar um pouco da sua hipoacutetese inicial radical parece mostrar que quando se trata do discurso

natildeo haacute um criteacuterio objetivo que indique qual a verdade que se deve defender eacute uma escolha arbitraacuteria que

natildeo segue necessariamente regras loacutegicas Isso porque uma vez que ele abre matildeo da sua tese inicial e

considera a possibilidade de ser ele deixa de mostrar provas objetivas que justifiquem que nada eacute e permite

que o interlocutor decida se eacute ou natildeo pois independente da escolha deste natildeo haacute como dizer se ele estaacute

certo ou natildeo porque isso que ele diz ser ou natildeo eacute incognosciacutevel

Isso nos leva entatildeo ao segundo recuo em direccedilatildeo agrave sua terceira hipoacutetese conforme a qual Goacutergias apresenta

a seguinte sentenccedila ldquose eacute e eacute cognosciacutevel natildeo pode ser mostrado a outrosrdquo (Tratado do natildeo-ser sect1) Ao dizer

que o que eacute natildeo pode ser mostrado aos outros Goacutergias impossibilita que o discurso fale sobre objetos

externos a ele a saber objetos que natildeo satildeo palavras organizadas em um discurso Logo Goacutergias impede que

o discurso [loacutegos] tenha conteuacutedo se tornando apenas forma (CASSIN 2015) E quando o sofista logifica o

ser - ou seja quando o sofista faz o movimento de impossibilitar a atribuiccedilatildeo de um conteuacutedo objetivo a um

discurso fazendo do ser ao qual ele se refere apenas uma palavra ndash o discurso seraacute a uacutenica realidade que

temos acesso e a partir dele criamos o sentido da realidade objetiva

Sobre aquilo que natildeo eacute parece-nos uma reflexatildeo que evidencia bem a complexidade e relatividade de todo discurso que queira propor-se como um nosso discurso cognoscitivo sobre a realidade exterior a noacutes A complexidade eacute fornecida pelo inevitaacutevel entrelaccedilamento entre o niacutevel do nosso discurso sobre a realidade e o niacutevel da realidade que permanece fora

[17]

do nosso discurso e ao mesmo tempo da necessidade de ter bem distintos esses dois planos mesmo na dificuldade em fazer isso coerentemente (CASERTANO 2010 p 68)

Ou seja Goacutergias mostra como a relaccedilatildeo entre pensamentolinguagem [loacutegos] e a realidade eacute complexa e de

acordo com o sofista inconciliaacutevel Enquanto para Parmecircnides era algo simples (uno) ndash permitindo o

pensamento ser considerado criteacuterio do real uma vez que o que eacute eacute pensado e o que natildeo eacute eacute impensaacutevel

Portanto se o ser eacute e para que seja ele precisa ser pensado apenas enquanto uno imutaacutevel homogecircneo e

fechado Mas se eacute possiacutevel pensar sobre o ser diferente do que ele eacute ndash o nada por exemplo entatildeo o ser natildeo

pode ser o todo

Portanto eacute nessa uacuteltima colocaccedilatildeo que o leontino inaugura uma cisatildeo entre realidade e linguagem que natildeo

era problematizada no Poema e que impossibilita qualquer discurso de carregar consigo a verdade

(CORDERO 2011 p 139) Ele limita todo discurso agrave sua discursividade ou seja o discurso apenas anunciaraacute

palavras ele seraacute sempre sua proacutepria referecircncia nunca lhe seraacute possiacutevel anunciar uma realidade objetiva que

eacute de uma natureza diferente da sua E portanto como natildeo haacute nenhum ponto de diaacutelogo entre o loacutegos e uma

possiacutevel realidade objetiva perde-se o criteacuterio de verdade desse loacutegos uma vez que natildeo haacute nada externo a

ele que pode ser referecircncia como confirmaccedilatildeo ou negaccedilatildeo do hipoteacutetico conteuacutedo de tal loacutegos

O ser parmeniacutedico e o loacutegos gorgiano

Escolhemos o ser parmeniacutedico pelo aparente diaacutelogo que o Tratado faz com o Poema Dizemos isso pelo fato

de que Goacutergias parece estar discutindo exatamente a relaccedilatildeo entre as coisas que satildeo e os limites da

linguagem quando se trata de expressar tais coisas enquanto o poema apresenta-se como um discurso que

trata daquilo que eacute

Enquanto Parmecircnides discute sobre o que eacute o ser faz deste o uacutenico objeto do pensamento e impossibilita

que o natildeo ser seja pensado Goacutergias por sua vez parece-nos identificar o natildeo ser no loacutegos na medida em que

consegue dizer que ldquonada eacuterdquo questionando a relaccedilatildeo entre o pensamento e o ser Isso porque uma vez que

Parmecircnides apresenta uma realidade composta apenas pelo ser e o pensamento acaba sendo permeado por

este ser a relaccedilatildeo desses dois pode ser interpretada como paciacutefica ndash uma vez que ambos satildeo o ser ou

derivaccedilotildees deste Ora se o ser permeia todas as coisas natildeo haacute como surgir um pensamento diferente do ser

Poreacutem o questionamento colocado no Tratado leva Goacutergias a pensar que haacute como pensar o diferente do ser

portanto haveria a possibilidade do natildeo ser ndash este como o diferente do ser ndash colocando em questatildeo assim o

monismo parmeniacutedico que sustenta a equivalecircncia de pensamento e ser na medida em que a realidade natildeo

seria mais simples (apenas composta pelo ser) mas complexa (podendo haver a existecircncia de algo diferente

do ser)

[18]

Goacutergias o faz primeiro dizendo que ldquonada eacuterdquo e apenas com esta frase inicial o sofista apresenta seu

engajamento no Tratado se as coisas satildeo e o ser eacute o todo natildeo deixando espaccedilo para o natildeo ser como eacute possiacutevel

anunciar que nada eacute Tal questatildeo poderia ser resolvida dizendo que haacute intervalos no ser e a partir de um

deles teria sido possiacutevel que Goacutergias pensasse que algo diferente de tal ser - o nada - eacute Poreacutem se assim fosse

a deusa estaria enganada no Poema uma vez que neste ela diz ser o todo o ser ndash sem intervalos

Diante entatildeo da possibilidade da existecircncia do natildeo ser no logos ndash uma vez que este permitiu Goacutergias dizer

algo diferente do que eacute ndash o sofista parece assumir uma posiccedilatildeo semelhante agrave da deusa com relaccedilatildeo agrave

realidade poreacutem com consequecircncias diferentes enquanto a deusa ao assumir que o todo ou eacute ser ou eacute natildeo

ser considera persuasivo o ser assumir o posto de totalidade Goacutergias por sua vez parece-nos tambeacutem

considerar que o todo ou eacute ou natildeo eacute Poreacutem o sofista ao explorar a via do ser ndash que tambeacutem abrangeria o

loacutegos ndash encontra a possibilidade de pensar o diferente deste o natildeo ser e por considerar que ser e natildeo ser natildeo

poderiam coexistir ndash como a deusa o postulou ndash ele assume esse todo como o que nada eacute nem ser nem natildeo

ser

Consideramos esse momento do Tratado no qual Goacutergias parece apresentar uma posiccedilatildeo com relaccedilatildeo ao

todo uma passagem de diaacutelogo entre o pensamento do sofista e o de Parmecircnides Poreacutem o que nos eacute

apresentado em seguida pelo sofista parece ser o verdadeiro objetivo do tratado

Logo depois de apresentar uma posiccedilatildeo radical sobre a composiccedilatildeo da realidade ndash a de que nada eacute ndash Goacutergias

recua de tal concepccedilatildeo levantando a possibilidade de ser mas fazendo a ressalva de que natildeo seria conhecido

Tal movimento nos parece ser de grande importacircncia na medida em que diferencia o tratado do poema Isso

porque apesar de a deusa considerar a possibilidade do natildeo ser antes de descartaacute-lo depois que eacute definido o

ser como aquele que compotildee a realidade o poema passa a dedicar-se a argumentos que fundamentariam tal

posiccedilatildeo Goacutergias por sua vez abre matildeo da sua posiccedilatildeo inicial com relaccedilatildeo agrave realidade abstendo-se assim de

uma palavra final acerca dessa realidade

Depois do primeiro recuo o sofista realiza outro segundo o qual ele considera a possibilidade de ser e de ser

conhecido poreacutem com a ressalva de que natildeo pode ser comunicado E eacute esse movimento que consideramos o

principal quando se trata do Tratado e de sua relaccedilatildeo com o Poema Isso porque quando Goacutergias realiza esse

terceiro recuo ele parece justificar o porquecirc de ele se permitir fazecirc-lo aleacutem de tambeacutem parecer justificar o

porquecirc de seu texto natildeo se dedicar a argumentos que fundamentam o nada ser Dizemos que isso tambeacutem

poderia ser um ponto de diaacutelogo com o poema pois na medida em que Goacutergias impossibilita o loacutegos de

traduzir o que eacute ele apesar de considerar a possibilidade de existir o ser e de algueacutem o conhecer ele impede

que algueacutem fale fielmente deste E portanto mesmo que haja o ser e que Parmecircnides o tenha conhecido

Goacutergias exclui a possibilidade de o Poema ser o texto que trata desse ser Nenhum texto eacute capaz de fazecirc-lo

nem o de Goacutergias ou o de Parmecircnides

[19]

Conclusatildeo

Parece-nos portanto que em seu Tratado Goacutergias manteacutem um diaacutelogo com o Poema de Parmecircnides natildeo

porque Goacutergias faz uma colocaccedilatildeo sobre a realidade que vai de encontro com a do filoacutesofo ndash ao dizer que

nada eacute em contrapartida com o ser eacute da deusa mas sim pelo fato de Goacutergias se permitir duvidar da sua

colocaccedilatildeo inicial por ter como objetivo mostrar a falha do loacutegos ao tentar traduzir as coisas que natildeo satildeo

palavras em palavras

Chegamos a tal conclusatildeo tendo em vista que se Goacutergias impossibilita o loacutegos de falar do ser ele entatildeo retira

do Poema a autoridade de ser aquele que apresenta a realidade como esta se mostra Eacute pelo fato de Goacutergias

parecer levantar essa problemaacutetica da dificuldade de o loacutegos tratar do ser que suspeitamos que tal reflexatildeo

pareccedila partir do Poema o que nos levou a optar por levantar a possibilidade de o pensamento de Parmecircnides

ter sido um ponto de partida de Goacutergias

Referecircncias bibliograacuteficas

CASERTANO G Sofista Traduccedilatildeo de J Bortolini Satildeo Paulo Paulus 2010

CASSIN B Se Parmecircnides O tratado anocircnimo de Melisso Xenophane Gorgia Traduccedilatildeo de C Oliveira Belo Horizonte Autecircntica 2015

CORDERO N L A invenccedilatildeo da Filosofia uma introduccedilatildeo agrave filosofia antiga Traduccedilatildeo de E Wolf Satildeo Paulo Odysseus 2011

GOacuteRGIAS Testemunhos e Fragmentos Traduccedilatildeo de M Barbosa e I de Ornellas e Castro Lisboa Colibri 1993

KIRK G S RAVEN J E SCHOFIELD M Os filoacutesofos preacute-socraacuteticos Traduccedilatildeo de C A L Fonseca Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 2013

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PARMEcircNIDES Da natureza Traduccedilatildeo de J C de Souza In Os Preacute-Socraacuteticos Coleccedilatildeo ldquoOs Pensadoresrdquo Satildeo Paulo Abril Cultural 1973

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SEDLEY D Parmecircnides e Melisso In LONG A A (org) Primoacuterdios da filosofia grega Traduccedilatildeo de P Ferreira Aparecida Ideias e Letras 2008 p 167-189

Liacutengua e recepccedilatildeo o caso de uelim + subj em um comentaacuterio agraves Filiacutepicas de Ciacutecero

Alex Mazzanti Jr

alexmazzantijrgmailcom

Essa pesquisa teve o apoio da

Fundaccedilatildeo de Amparo agrave Pesquisa do

estado de Satildeo Paulo (FAPESP) processos

n 201526060-5 e 201706554-9

Ao se deparar com um texto antigo leitores frequentemente

recorrem a comentaacuterios os quais teriam a funccedilatildeo de oferecer

conhecimento suplementar auxiliando (e mediando) a

interpretaccedilatildeo Assim eles ajudam o leitor a completar lacunas que

ele possa julgar ter em relaccedilatildeo agrave histoacuteria agrave tradiccedilatildeo agrave recepccedilatildeo

interpretaccedilatildeo e uso do texto por autores antigos e tambeacutem em

relaccedilatildeo a aspectos linguiacutesticos que podem gerar duacutevida ou

hesitaccedilatildeo no leitor A construccedilatildeo de uelim + subjuntivo natildeo

mediado por ut eacute objeto do comentaacuterio de Ramsey (2003) agrave Filiacutepica

I de Ciacutecero Seguindo Gildersleeve amp Lodge (1903) ele afirma que a

ausecircncia de ut torna o desejo mais enfaacutetico Uma anaacutelise focada nos

dados disponiacuteveis nos revela que nas cartas de Ciacutecero 98 dos

exemplares de uelim + subjuntivo satildeo sem a conjunccedilatildeo e nas obras

filosoacuteficas e discursos quinze exemplares satildeo sem a conjunccedilatildeo e

nenhum com ela Do ponto de vista da linguiacutestica funcional a

ausecircncia da conjunccedilatildeo eacute a forma natildeo marcada e portanto natildeo

enfaacutetica O leitor assim pode ser levado a caminhos diversos a

partir da disputa proacutepria do processo histoacuterico por criteacuterios de

validaccedilatildeo que vatildeo ou natildeo ser considerados em um comentaacuterio

[21]

O comentaacuterio e a recepccedilatildeo dos claacutessicos

Ao ler um texto antigo em grego ou latim o leitor atual tem ao seu dispor uma seacuterie de ferramentas

especialmente se considerarmos os textos mais buscados diversas traduccedilotildees (como as das seacuteries Loeb e

Belles Lettres) ediccedilotildees criacuteticas (como as da Teubner ou da seacuterie Oxford Classical Texts) ferramentas digitais

(como o site Perseus a ferramenta Dioacutegenes o Thesaurus Linguae Graecae o Thesaurus Linguae Latinae)

manuscritos digitalizados (como os da Bibliotheca Palatina) Tradicional e muito uacutetil ferramenta tambeacutem satildeo

os comentaacuterios obras que fazem glosas de um texto literaacuterio remontando a antiga tradiccedilatildeo (primeiros

seacuteculos aC) aleacutem de uma forma especial os escoacutelios que satildeo comentaacuterios exegeacuteticos escritos ao lado do

texto agraves margens dos manuscritos medievais e atestados desde o seacuteculo VI dC (CANCIK SCHNEIDER

2002- sv ldquoCommentaryrdquo e ldquoScholiardquo)

Gumbrecht (2003 p 41) nos oferece um resumo sobre o que motiva a necessidade de fazermos e lermos

comentaacuterios

o principal problema que ele ou ela [ie leitor inteacuterprete] enfrenta estaacute na assimetria entre a gama de conhecimentos gerais e especializados que o texto pressupotildee ndash como uma condiccedilatildeo para a identificaccedilatildeo de seu sentido (ldquopretendidordquo ldquooriginalrdquo ldquohistoacutericordquo ldquoadequadordquo ou ldquoautecircnticordquo) ndash e o conhecimento que o inteacuterprete tem a sua disposiccedilatildeo [] Tem sido sempre a tarefa do comentador e a funccedilatildeo do comentaacuterio superar tal assimetria e entatildeo mediar os diferentes contextos culturais (aquele que o autor do texto compartilhava com sua audiecircncia primaacuteria e aquele dos leitores que pertencem a tempos histoacutericos posteriores ou a diferentes culturas)1

Essas assimetrias podem ser de vaacuterias ordens dependendo do julgamento do comentador a respeito das

possiacuteveis necessidades de conhecimento suplementar que o leitor precisaraacute para ler e interpretar o texto

Nesse sentido veja o que diz Gumbrecht (2003 p 42) ldquoUm comentaacuterio em oposiccedilatildeo [agrave interpretaccedilatildeo]

parece ser um discurso que quase por definiccedilatildeo nunca atinge seu fim [] um comentador nunca tem certeza

das necessidades (ie as lacunas no conhecimento) daqueles que usaratildeo o comentaacuteriordquo2

Pode-se falar de contexto histoacuterico uacutetil para entendermos referecircncias a fatos e acontecimentos que

estavam ao dispor do interlocutor original do texto e que satildeo pressupostos biografia de personagens

(histoacutericos ou fictiacutecios) permitindo que noacutes entendamos melhor quem satildeo os sujeitos que produziram os

1 Todas as traduccedilotildees oferecidas nesse estudo satildeo da lavra do autor ldquoThe main problem he or she [ie reader interpreter] faces lies in an asymmetry between the range of general and specialized knowledge that the text presupposes ndash as a condition for the identification of its (ldquointendedrdquo ldquooriginalrdquo ldquohistoricalrdquo ldquoadequaterdquo or ldquoauthenticrdquo) meaning ndash and the knowledge that the interpreter has at his or her disposal [hellip] It has always been the task of the commentator and the function of the commentary to overcome such asymmetry and to thus mediate between different cultural contexts (between that which the textrsquos author shared with a primary readership and that of readers who belong to later historical times or to different cultures)rdquo 2 ldquoCommentary in contrast [to interpretation] appears to be a discourse that almost by definition never reaches its end [hellip] a commentator is never sure of the needs (ie the lacunae in the knowledge) of those who will use the commentaryrdquo

[22]

textos transmissatildeo do texto indicando quais foram os percalccedilos ao longo dos seacuteculos por que os

manuscritos passaram ateacute que chegassem a noacutes aleacutem de indicar quais partes satildeo mais bem atestadas pela

tradiccedilatildeo manuscrita e quais satildeo sujeitas agrave controveacutersia trechos intertextuais com suas fontes um recurso

muito utilizado e que enriquece o texto ao promover diaacutelogos gerando novas camadas de sentido que

escapam aos que ignoram esse recurso aleacutem de fatos linguiacutesticos que podem impedir o pleno entendimento

do texto considerando no caso dos estudos claacutessicos que se trata de liacutenguas antigas cujo estudo eacute demorado

e sempre lacunar por natildeo serem mais a liacutengua materna de ningueacutem

Uma consequecircncia disso tudo eacute que para a recepccedilatildeo de um texto antigo o comentaacuterio tem uma natureza

dupla Por um lado ele eacute um auxiliador da recepccedilatildeo do texto na medida em que incentiva e facilita sua leitura

por suprir elementos que poderiam impedir (agraves vezes completamente) a sua compreensatildeo ao mesmo tempo

em que pode oferecer elementos suplementares que potencializem leituras impensadas dado um repertoacuterio

sociocultural limitado do leitor fruto por vezes da proacutepria distacircncia soacutecio-histoacuterica entre leitor e texto Nesse

sentido o comentaacuterio permite que o conhecimento acumulado por geraccedilotildees de estudiosos seja replicado e

multiplicado Por outro lado o comentaacuterio eacute um mediador da recepccedilatildeo na medida em que direciona e

potencialmente exclui leituras natildeo abonadas pela tradiccedilatildeo Este aspecto limitador eacute amplificado se

considerarmos que muitos comentaacuterios se baseiam na opiniatildeo de outros comentadores e estudiosos de

modo que certas ideias sejam transmitidas antes pela autoridade do que pela (re)anaacutelise cuidadosa

Do ponto de vista dos estudos de recepccedilatildeo esse caraacuteter ambivalente do comentaacuterio eacute relativizado na

medida em que natildeo haacute uma leitura ldquocorretardquo e ldquopermanenterdquo do texto pois cada leitura se daacute em um novo

contexto e cada novo confronto entre texto e leitor eacute capaz de gerar sentidos natildeo previstos originalmente

Quando textos satildeo relidos em novas situaccedilotildees eles tecircm novos sentidos noacutes natildeo devemos privilegiar sentidos que eles tinham em seus contextos primeiros e lsquooriginaisrsquo (mesmo pressupondo que eles sejam em princiacutepio recuperaacuteveis) (MARTINDALE 2007 p 298)3

Natildeo haacute uma leitura permanentemente lsquocorretarsquo de um texto mas uma lsquofusatildeo de horizontesrsquo (na metaacutefora um tanto estranha de Gadamer) sempre em transformaccedilatildeo entre texto e inteacuterprete (MARTINDALE 2007 p 301)4

Nesse sentido o leitor imerso num contexto soacutecio-histoacuterico e com caracteriacutesticas individuais uacutenicas seria

um fator fundamental na recepccedilatildeo Ainda assim devemos considerar a seguinte advertecircncia

Mas a recepccedilatildeo natildeo alega que a consumidora tem sempre a razatildeo somente que ela eacute sempre parte da transaccedilatildeo Validaccedilatildeo permanece uma questatildeo para os estudiosos da recepccedilatildeo como para outros inteacuterpretes (de fato desde que criteacuterios de validaccedilatildeo satildeo historicamente

3 ldquoWhen texts are reread in new situations they have new meanings we do not have to privilege the meanings that they had in their first lsquooriginalrsquo contexts (even assuming these to be recoverable in principle)rdquo 4 ldquoThere is no permanently lsquocorrectrsquo reading of a text but an ever-changing lsquofusion of horizonsrsquo (in Gadamerrsquos somewhat awkward metaphor) between text and interpreterrdquo

[23]

situados e sempre em disputa eles podem ser eles mesmos vistos como parte crucial do processo de recepccedilatildeo) (MARTINDALE 2007 p 302)5

Eacute na busca por validaccedilatildeo que a natureza dupla dos comentaacuterios que comentaacutevamos acima atua O

conhecimento acumulado agraves vezes de muitos seacuteculos que eacute transmitido por comentaacuterios ao congregar

incontaacuteveis inteligecircncias de modo resumido eacute um uacutetil e eficaz instrumento de validaccedilatildeo de leituras

especialmente no que se refere agraves lacunas que todo leitor tem

Ainda assim gostaria de ressaltar que Martindale natildeo deixa de apontar que criteacuterios de validaccedilatildeo estatildeo

sempre em disputa No caso de conhecimentos linguiacutesticos de liacutenguas antigas ponto em que focaremos nas

proacuteximas seccedilotildees a questatildeo tem complexidades proacuteprias Por um lado a tradiccedilatildeo de leituras remonta agraves vezes

a testemunhos de pessoas que tinham o latim ou o grego como liacutengua materna e que por isso satildeo capazes de

nos oferecer impressotildees e ideias que nenhum leitor moderno que intente se aproximar do texto na liacutengua

original seria capaz de ter Por outro lado a linguiacutestica (ou a filologia) como uma ciecircncia com meacutetodo

descritivo mais do que normativo eacute recente (natildeo mais de dois seacuteculos) ou seja muitas novas descobertas

foram feitas recentemente por conta de novas abordagens a textos tradicionais Acresce que nos uacuteltimos

cem anos dezenas de teorias muitas vezes conflitantes acirram as disputas entre os criteacuterios de validaccedilatildeo agrave

disposiccedilatildeo dos leitores

Tendo esse panorama em vista nas proacuteximas seccedilotildees vou trazer um exemplo de comentaacuterio feito sobre um

fato linguiacutestico de um discurso de Ciacutecero evidenciando a disputa de descriccedilotildees de algumas gramaacuteticas sobre

o fato em questatildeo Em seguida apresento alguns dados sobre o fenocircmeno e os analiso a partir de um conceito

do funcionalismo corrente linguiacutestica que vem se desenvolvendo desde as uacuteltimas deacutecadas do seacuteculo XX

O caso de um comentaacuterio agraves Filiacutepicas de Ciacutecero

O trecho referente ao comentaacuterio que discutiremos estaacute em Cic Phil 113

sed hoc ignoscant di immortales uelim et populo Romano qui id non probat et huic ordini qui decreuit inuitus

Mas gostaria de que os deuses imortais perdoassem tanto o povo romano que natildeo aprova isso quanto esta ordem que aprovou o decreto contra sua vontade

Realccediladas estatildeo as palavras que mais nos interessam uelim primeira pessoa do singular subjuntivo presente

com valor potencial do verbo uolo ldquoquererrdquo sintaticamente verbo principal do periacuteodo e ignoscant terceira

5 ldquoBut reception does not claim that the customer is always right just that she is always a party to the transaction Validity remains an issue for reception scholars as for other interpreters (indeed since criteria of validity are historically situated and always in dispute they can themselves be seen as a crucial part of the processes of reception)rdquo

[24]

pessoa do plural subjuntivo presente do verbo ignosco ldquoperdoarrdquo verbo subordinado a uelim dentro de uma

oraccedilatildeo substantiva ou oraccedilatildeo completiva6

Dada a padronizaccedilatildeo e normatizaccedilatildeo por que passou a liacutengua latina entre o periacuteodo arcaico e o periacuteodo

claacutessico7 a regra padratildeo do latim claacutessico o que inclui a liacutengua de Ciacutecero seria a introduccedilatildeo de oraccedilotildees

substantivas com a conjunccedilatildeo ut (uelim ut di immortales ignoscant)8 A ausecircncia da conjunccedilatildeo frequente no

latim de Plauto e Terecircncio (seacutec III e II aC) ocorre nos autores claacutessicos mas em limitados contextos9

Vejamos o que o comentaacuterio de Ramsey sobre o trecho de Ciacutecero citado acima diz

15 ignoscant aqui tanto com o acusativo de coisa perdoada (hoc a medida sacriacutelega honrando Ceacutesar) quanto com o dativo dos ofensores (populo e ordini consistente com o familiar Senatus Populusque Romanus) O desejo se torna mais enfaacutetico pela omissatildeo de ut para unir o jussivo ignoscant ao subjuntivo potencial uelim (Gildersleeve amp Lodge sect546 R2) ldquoEu gostaria de que os deuses imortais perdoassemhelliprdquo (RAMSEY 2003 p 115 comentaacuterio ao sect 13)10

O autor atribui agrave presenccedila ou agrave ausecircncia da conjunccedilatildeo o sentido de ecircnfase e baseia essa afirmaccedilatildeo na

gramaacutetica de Gildersleeve amp Lodge Ao tratar de ldquoComplementary Final Sentencesrdquo (sentenccedilas completivas

finais) e especificamente de ldquoVerbs of Will and Desirerdquo (verbos de vontade e desejo) os autores da gramaacutetica

fazem a seguinte colocaccedilatildeo

Quando a ideia de querer eacute enfaacutetica o simples subjuntivo sem ut eacute empregado e a restriccedilatildeo de sequecircncia [de tempos] a presente e imperfeito eacute removida (GILDERSLEEVE LODGE 1903 sect 546)11

O problema aparece quando consultamos outras gramaacuteticas e a afirmaccedilatildeo sobre qual situaccedilatildeo eacute enfaacutetica se

inverte completamente A gramaacutetica de Bennett tem como foco o latim arcaico mas o comentaacuterio a seguir

sobre a presenccedila da conjunccedilatildeo em oraccedilotildees completivas eacute feito de forma ampla Vejamos

6 Sobre esse tipo de oraccedilatildeo veja por exemplo Cart et al (2007 p 130-135) Allen amp Greenough (1903 sect 560) e Hofmann amp Szantyr (1965 p 644-647) 7 Sobre o processo de normalizaccedilatildeo da liacutengua latina veja eg Clackson amp Horrocks (2011 p 90 ss) Para uma sugestatildeo de periodizaccedilatildeo da histoacuteria da liacutengua latina veja Weiss (2009 p 23) que chama o latim arcaico (seacuteculos III e II aC) de ldquoOld Latinrdquo 8 Veja por exemplo Hofmann amp Szantyr (1965 p 530) ldquoDie vollendete klassiche Diktion bevorzugt die vollstaumlndige Durchfuumlhrung der Hypotaxe mittels der Konjunktionenrdquo Em traduccedilatildeo minha ldquoA plena dicccedilatildeo claacutessica prefere a realizaccedilatildeo completa da hipotaxe por meio de conjunccedilotildeesrdquo 9 Dados podem ser encontrados em Durham (1901) e Bennett (1982 [1910-1914]) Um estudo pormenorizado sobre a presenccedila e ausecircncia da conjunccedilatildeo ut na complementaccedilatildeo dos verbos facio e uolo em Plauto Terecircncio e Ciacutecero incluindo os contextos que determinam seu uso e o desenvolvimento desse uso entre o latim preacute-histoacuterico e claacutessico pode ser encontrado em minha dissertaccedilatildeo de mestrado (MAZZANTI JR 2018) 10 ldquo15 ignoscant here with both the acc of the thing pardoned (hoc the sacrilegious measure honouring Caesar) and the dat of the offenders (populo and ordini standing for the familiar SPQR) The wish is made more emphatic by the omission of ut to link the jussive ignoscant to the potential subj uelim (GndashL sect546 R2) ldquoI should wish the immortal gods to pardonhelliprdquo 11 ldquoWhen the idea of Wishing is emphatic the simple Subjv without ut is employed and the restriction of sequence to Pr and Impf is removedrdquo

[25]

A diferenccedila original entre tibi impero hoc mihi des e tibi impero ut hoc mihi des mal poderia ser mais do que aquela entre lsquoEu ordeno me decirc issorsquo e lsquoEu ordeno soacute me decirc issorsquo Provavelmente mesmo essa distinccedilatildeo logo se perdeu e as duas formas de expressatildeo passaram a serem sentidas praticamente equivalentes em forccedila (BENNETT 1982 [1910-1914] p 210)12

Em outras palavras Bennett por entender que antes de se tornar conjunccedilatildeo ut era um adveacuterbio afirma que

eacute justamente a presenccedila desse adveacuterbio que gerava ecircnfase e natildeo sua ausecircncia como vimos em Gildersleeve

amp Lodge Bennett ainda compreende que em algum momento posterior nenhuma diferenccedila haveria ou

seja com ou sem conjunccedilatildeo natildeo haveria diferenccedila de ecircnfase

Haacute portanto uma contradiccedilatildeo entre as afirmaccedilotildees das gramaacuteticas Para o leitor que recepciona textos em

latim e que se vale da mediaccedilatildeo de comentaacuterios e gramaacuteticas haacute justamente aquele tipo de disputa entre

criteacuterios de validaccedilatildeo mencionado por Martindale dependendo de qual autor se vale esse leitor eacute

direcionado a entendimentos opostos e diante de ambos a perplexidade seria natural

O que os dados mostram

A abordagem que apresentarei em seguida parte de alguns princiacutepios Em primeiro lugar a ideia de que

podemos recolher dados sobre um certo fenocircmeno quantificaacute-lo e analisando o comportamento dessa

quantificaccedilatildeo extrair alguns princiacutepios sobre o funcionamento da liacutengua

Evidentemente esse tipo de abordagem tem pontos negativos ao resumir fenocircmenos que satildeo uacutenicos em

cada realizaccedilatildeo perdemos justamente as peculiaridades de cada uso individual e todas as nuances

potenciais Dito de outro modo os dados aqui satildeo palavras usadas por um certo falante que tem

caracteriacutesticas soacutecio-histoacutericas estaacute escrevendo em um certo gecircnero para um interlocutor especiacutefico

Simplificados numa quantificaccedilatildeo os dados perdem essa complexidade Por conseguinte datildeo certos tipos de

informaccedilatildeo mas natildeo outros (veja mais agrave frente um exemplo de anaacutelise mais detalhada cujas informaccedilotildees

satildeo perdidas parcialmente no processo de quantificaccedilatildeo)

Por outro lado ao recolhermos uma quantidade grande de dados conseguimos ter uma visatildeo geral sobre a

informaccedilatildeo que estamos estudando ou seja temos acesso a de que modo tal fenocircmeno linguiacutestico foi mais

usado de que modo foi usado ldquona meacutediardquo qual era a regra geral de uso independente dos ambientes uacutenicos

e particulares em que de fato foi utilizado nos textos remanescentes Para se chegar a esse tipo de

informaccedilatildeo a anaacutelise de cada exemplar eacute necessaacuteria e pressuposta mas o que nos interessa eacute o que de

comum esses exemplares tecircm posto um elemento de anaacutelise especiacutefico como no caso a presenccedila ou

ausecircncia da conjunccedilatildeo ut A quantificaccedilatildeo portanto nos mostra quais satildeo as tendecircncias globais de uso de

12 ldquoThe original difference between tibi impero hoc mihi des and tibi impero ut hoc mihi des could hardly have been more than that between lsquoI command you give me thisrsquo and lsquoI command you just give me thisrsquo Probably even this distinction soon passed away and the two forms of expression came to be felt as practically equivalent in forcerdquo

[26]

certa construccedilatildeo por um autor ou num determinado gecircnero algo inacessiacutevel se nos valemos somente da

anaacutelise particular de exemplares

Ter em mente essas questotildees metodoloacutegicas eacute fundamental para sabermos o que os dados tais como foram

recolhidos e tais como satildeo apresentados de fato podem nos informar e o que eacute calado

Posto isso apresento dados recolhidos por Patzner (1910) nas cartas de Ciacutecero que indicam os usos do

verbo uolo completado por subjuntivo introduzido ou natildeo pela conjunccedilatildeo ut A elaboraccedilatildeo das tabelas a

seguir eacute minha e a apresentaccedilatildeo dos dados como distribuiccedilatildeo (porcentagens em que certo fenocircmeno ocorre)

natildeo estatildeo nas obras de onde os extraiacute As colunas indicam as formas do verbo principal (uolo uelim ou uellem)

mais usadas e as contagens as ocorrecircncias da complementaccedilatildeo de subjuntivo Vejamos a Tabela 1

Tabela 1 - Formas de uolo seguido de subjuntivo mais usadas nas cartas de Ciacutecero

uolo uelim uellem Total

Com justaposiccedilatildeo 7 10000 358 9781 31 9394 396 9754

Com ut 0 000 8 219 2 606 10 246

Total 7 10000 366 10000 33 10000 406 10000

Fonte Patzner (1910)

O verbo uolo nas cartas de Ciacutecero quando complementado por subjuntivo eacute quase em cem por cento dos

casos justaposto ao verbo subordinado sem mediaccedilatildeo da conjunccedilatildeo tal como no trecho Cic Phil 113

comentado por Ramsey que vimos acima Em outras palavras a ausecircncia da conjunccedilatildeo nesse tipo de

complementaccedilatildeo parece ser a regra Chama a atenccedilatildeo a quantidade destoante de usos de uelim (366

ocorrecircncias) em oposiccedilatildeo a uolo e uellem (7 e 33 ocorrecircncias respectivamente) Agrave frente veremos o que isso

significa para a forma uelim especificamente

Vejamos que essa tabela natildeo daacute conta de toda a realidade ora seria difiacutecil de se imaginar que em todas as

cartas de Ciacutecero (e satildeo muitas) a forma uolo fosse usada tatildeo pouco Vejamos a Tabela 2

Tabela 2 - Formas de uolo seguido de subjuntivo ou de infinitivo mais usadas nas cartas de Ciacutecero

uolo uelim uellem Total

Com justaposiccedilatildeo 7 886 358 8230 31 5254 396 6911

Com ut 0 000 8 184 2 339 10 175

Infinitivo 72 9114 69 1586 26 4407 167 2914

Total 79 10000 435 10000 59 10000 573 10000

Fonte Patzner (1910)

[27]

Aleacutem da complementaccedilatildeo com subjuntivo a tabela 2 traz a complementaccedilatildeo de infinitivo tambeacutem possiacutevel

Vemos que a forma uolo em geral prefere a complementaccedilatildeo de infinitivo (91 dos casos) e a forma uellem

se divide entre ambas as complementaccedilotildees (53 com subjuntivo justaposto 3 com ut mais subjuntivo e

44 com infinitivo) Em seu turno a forma uelim ainda apresenta uma quantidade muito elevada de

subjuntivos complementando-a 82 justapostos e 2 com ut enquanto somente 16 satildeo complementados

por infinitivos

A conclusatildeo a que podemos chegar eacute a seguinte o verbo uolo pode ser complementado tanto por infinitivo

quanto por subjuntivo e durante seacuteculos houve uma competiccedilatildeo entre essas possibilidades enquanto a

forma uolo passou a ser complementada principalmente por infinitivos a forma uelim ldquose especializourdquo na

complementaccedilatildeo de subjuntivo

Vejamos agora os dados das outras obras de Ciacutecero nomeadamente seus discursos e textos filosoacuteficos Os

dados foram recolhidos dos lexica de Merguet (1877-1884 1887-1894) e estatildeo compilados na Tabela 3

Tabela 3 - Verbo uolo + subjuntivo nas obras filosoacuteficas e nos discursos de Ciacutecero

Outras obras de Ciacutecero

Com justaposiccedilatildeo 39 6964

Com ut 17 3036

Total 56 10000

Fonte Elaborado pelo autor a partir de Merguet (1877-1884 1887-1894)

Agrave primeira vista podemos imaginar que em seus outros textos Ciacutecero utilizou outra regra para decidir se

introduzia ou natildeo o subjuntivo subordinado com a conjunccedilatildeo ut A anaacutelise dos exemplares nos indica que natildeo

eacute o caso Dentre os exemplares justapostos temos como verbo principal uellem (20) uelim (15) uisne (3) e

uolo (1) Dentre os exemplares com ut temos uolo (5) uelitis (3) uelle (3) uellem (2) uolumus (2) uoluit (1) e

uult (1) Em outras palavras temos distribuiccedilotildees muito proacuteximas das das cartas Para nossos interesses basta

notarmos que a forma uelim soacute eacute seguida por subjuntivos justapostos

Voltando ao ponto principal que estamos discutindo a partir desses dados eacute possiacutevel saber se a presenccedila ou

ausecircncia de ut indica ecircnfase

Em primeiro lugar vejamos que ecircnfase eacute um termo geneacuterico que indica o realce de importacircncia de algo o

destaque de algo Utilizamos recursos de ecircnfase quando queremos ldquochamar a atenccedilatildeordquo para o que julgamos

precisar de atenccedilatildeo especial do interlocutor

[28]

Para tentar responder agrave questatildeo vou utilizar um conceito da linguiacutestica funcional desenvolvida

principalmente pelo linguista Dik Trata-se do conceito de marcaccedilatildeo (markedness em inglecircs) Vejamos

Um tipo de construccedilatildeo eacute mais marcado na medida em que eacute menos esperado e portanto exige mais atenccedilatildeo quando ocorre Em geral quanto menos frequente mais raro um item linguiacutestico eacute tanto maior eacute seu valor de marcaccedilatildeo (DIK 1997 p 41)13

Em outras palavras uma forma marcada eacute uma forma raramente usada que quando empregada chama a

atenccedilatildeo do interlocutor por romper suas expectativas Assim podemos entender que quando queremos dar

ecircnfase a algo geralmente utilizamos uma forma que seja marcada Por exemplo na fala podemos pronunciar

uma palavra mais lentamente ou com mais vigor de modo que ao quebrar a expectativa do que seria a

pronuacutencia meacutedia (aquela que ocorre na maior parte do tempo) esses modos de falar sejam marcados e

conferimos ecircnfase ou outro efeito similar (devemos ter em mente que uma forma marcada natildeo

necessariamente expressa ecircnfase) O mesmo ocorre quando usamos uma palavra em desuso arcaica ou um

termo teacutecnico em meio a um discurso natildeo teacutecnico

Se aplicarmos esse conceito aos dados das tabelas acima temos que o subjuntivo sem a mediaccedilatildeo da

conjunccedilatildeo (justaposto) configura 98 da complementaccedilatildeo de subjuntivo de uelim nas cartas de Ciacutecero e

100 em seus outros textos trata-se assim do uso natildeo marcado do uso que natildeo quebra a expectativa do

interlocutor e que portanto natildeo pode segundo essa abordagem linguiacutestica conferir ecircnfase

Seria no miacutenimo estranho que nas 358 vezes em que uelim + subjuntivo aparece nas cartas Ciacutecero quisesse

ser enfaacutetico Se se quer ser enfaacutetico em quase 100 das vezes natildeo se gera o contraste exigido para que de

fato se o seja Segundo o conceito de marcaccedilatildeo eacute a presenccedila do ut introduzindo a complementaccedilatildeo de

subjuntivo de uelim que poderia eventualmente ser a construccedilatildeo enfaacutetica

Como indicado no iniacutecio desta seccedilatildeo anaacutelises quantitativas perdem uma grande quantidade de informaccedilotildees

Uma outra metodologia de anaacutelise demandaria a leitura e interpretaccedilatildeo de cada uma das ocorrecircncia de uelim

+ (ut) subjuntivo em Ciacutecero a fim de se verificar se havendo outros elementos de ecircnfase em cada um dos

exemplares poderiacuteamos conferir agrave presenccedila ou agrave ausecircncia da conjunccedilatildeo algum valor enfaacutetico como por

exemplo semacircntica enfaacutetica dos verbos e das palavras presenccedila de adveacuterbios de intensidade presenccedila de

construccedilotildees estruturadas como paralelismo dentre outras

Haacute o risco de que esse tipo de anaacutelise se torne muito subjetiva jaacute que eacute muito difiacutecil de aferir se uma partiacutecula

tatildeo diminuta como ut de fato teria algum valor aleacutem do gramatical de introduzir oraccedilotildees subordinadas Natildeo

havendo espaccedilo para uma anaacutelise desse tipo que seja completa me restrinjo a um exemplo Vejamos Cic Att

21

13 ldquoA construction type is more marked to the extent that it is less expectable and therefore commands more attention when it occurs In general the less frequent the more rare a linguistic item is the higher its markedness valuerdquo

[29]

et cum Graecos tum uero Latinos diligenter ut conserues uelim

E gostaria de que zelosamente vocecirc conservasse tanto os [livros] Gregos como com efeito os Latinos

Esse eacute um dos exemplares em que o subjuntivo (no caso conserues) eacute introduzido por ut Notemos que o

periacuteodo tem uma seacuterie de elementos estruturais que conferem algum tipo de ecircnfase haacute o par correlativo

cum tum (tanto quanto) os adveacuterbios uero (com efeito) e diligenter (zelosamente) Nesse caso o uso de ut

poderia ser um elemento adicional que considerados os outros elementos da frase poderia conferir ecircnfase

extra

Essas informaccedilotildees (outros elementos da frase) acabaram perdidas quando o exemplar foi quantificado

conforme discutimos no comeccedilo desta seccedilatildeo restando somente a informaccedilatildeo essencial ldquopresenccedila e ausecircncia

da conjunccedilatildeordquo Ainda assim esse tipo de anaacutelise tem um caraacuteter subjetivo elevado e creio seja muito difiacutecil

afirmar categoricamente que o ut em Cic Att 21 acima contribua ao efeito geral de ecircnfase que a frase tem

embora como disse haja elementos que indiquem uma acumulaccedilatildeo da qual o ut poderia ser parte

Revisitando o comentaacuterio e a recepccedilatildeo dos claacutessicos

Como vimos acima os comentaacuterios como importantes auxiliadores na recepccedilatildeo de textos tatildeo afastados na

histoacuteria e na liacutengua tecircm um caraacuteter ambivalente e natildeo estatildeo isentos das disputas por criteacuterios de validaccedilatildeo

que permeiam natildeo somente os estudos de recepccedilatildeo como a ciecircncia em geral Satildeo essas disputas inclusive

um dos elementos que justificam que novos comentaacuterios ainda hoje sejam editados natildeo obstante a

existecircncia de outros sobre um mesmo texto

No que se refere agrave presenccedila e agrave ausecircncia da conjunccedilatildeo ut na complementaccedilatildeo de subjuntivo da forma uelim

(primeira pessoa do singular do verbo uolo no presente do subjuntivo) a abordagem da linguiacutestica funcional

por meio do conceito de marcaccedilatildeo (markedness) apresentado em Dik (1997) adiciona novos elementos agrave

disputa

Antes de irmos aos dados discutimos numa das seccedilotildees acima as vantagens e desvantagens de se abordar

um fenocircmeno linguiacutestico a partir de uma quantificaccedilatildeo O principal benefiacutecio em se utilizar tal meacutetodo eacute que

podemos verificar tendecircncias gerais de uso de fenocircmenos sujeitos agrave variaccedilatildeo tais quais os fenocircmenos

sintaacuteticos

A partir da anaacutelise dos dados que noacutes temos sobre como uelim foi complementado nos textos de Ciacutecero (suas

cartas textos filosoacuteficos e discursos) que satildeo em grande quantidade e tecircm alta probabilidade de serem

representativos de sua liacutengua como um todo a justaposiccedilatildeo agrave forma uelim de um subjuntivo subordinado natildeo

pode ser enfaacutetica Isso ocorre pois a justaposiccedilatildeo eacute segundo o conceito de marcaccedilatildeo a forma natildeo marcada

ou seja a forma esperada e que natildeo demanda atenccedilatildeo especial do interlocutor jaacute que ocorre em quase 100

[30]

dos casos Na realidade a presenccedila da conjunccedilatildeo eacute que poderia o ser (embora natildeo necessariamente expresse

ecircnfase) pois uelim ut + subjuntivo por apresentar miacutenimas ocorrecircncias seria a forma marcada Sendo esse

raciociacutenio aceito o comentaacuterio de Ramsey (2003) precisaria de ser alterado ou pelo menos indicar que a

questatildeo natildeo eacute paciacutefica e demanda maiores estudos

Ao se fazer comentaacuterios como o de Ramsey ou outros tipos de estudo que precisam abordar fatos

linguiacutesticos do latim valemo-nos de gramaacuteticas tradicionais como a de Allen amp Greenough (1903)

Gildersleeve amp Lodge (1903) Bennett (1982 [1910-1914]) Todavia como discutimos no iniacutecio deste texto

ao citar Martindale (2007) os criteacuterios de validaccedilatildeo utilizados por estudiosos e leitores estatildeo sempre em

disputa e novos estudos com outras metodologias podem colocar nova luz quer sobre pontos antes

consensuais nas gramaacuteticas tradicionais do latim quer sobre pontos controversos

Os uacuteltimos anos tecircm sido muito proliacuteficos nesse tipo de pesquisa Exemplifico com o estudo pioneiro de

Adams (1984) que estuda a partir das comeacutedias de Plauto e Terecircncio como algumas expressotildees e palavras

do latim satildeo caracteriacutesticas ou de falantes femininos ou de falantes masculinos Risselada (1993) que estuda

o uso de diretivos (formas de dar ordem) em latim a partir da anaacutelise interacional (teoria relativamente

recente) Barrios-Lech (2016) que estuda algumas formas linguiacutesticas utilizadas na interaccedilatildeo em latim de

Melo (2007) que estuda as formas extra-paradigmaacuteticas do latim arcaico como faxo faxim duim Weiss

(2009) que apresenta o latim dentro do quadro indo-europeu do ponto de vista da linguiacutestica histoacuterica a

partir dos avanccedilos bibliograacuteficos do uacuteltimo seacuteculo e um ganho importantiacutessimo para a bibliografia de

referecircncia a nova sintaxe de Pinkster (2015) a qual tambeacutem congrega estudos do uacuteltimo seacuteculo sobre a

sintaxe da liacutengua latina em variada abordagem

Enfim os recursos disponiacuteveis hoje em dia sejam eles digitais ou impressos satildeo incontaacuteveis Resta que o

leitor por sua vez vetor da recepccedilatildeo de um texto dispondo de sua proacutepria razatildeo possa ser levado a caminhos

diversos diante da pluralidade de criteacuterios de validaccedilatildeo que vatildeo ou natildeo ser considerados em uma disputa

proacutepria do processo histoacuterico

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Stave 2009

O claacutessico

no claacutessico recepccedilatildeo e intertexto entre Heroides e Metamorfoses de Oviacutedio

Fabrizia Nicoli Dias

fnicolidiasgmailcom

As narrativas mitoloacutegicas da tradiccedilatildeo claacutessica foram

frequentemente exploradas por poetas ao longo dos seacuteculos em

suas composiccedilotildees Puacuteblio Oviacutedio Nasatildeo escritor romano antigo

que viveu no principado augustano pode ser enquadrado no rol de

autores que se empenharam em verter em um trabalho de arte

literaacuteria o material mitoloacutegico existente Para aleacutem de se apropriar

dos manuais mitoloacutegicos Oviacutedio para a construccedilatildeo de seu proacuteprio

material opera com modelos literaacuterios o que torna viaacutevel o estudo

do intertexto via recepccedilatildeo de episoacutedios mitoloacutegicos entre duas

obras ovidianas as Heroides e as Metamorfoses que empregam de

maneira evidente o material mitoloacutegico antigo Antes poreacutem de o

efetivar importa resgatar brevemente algumas discussotildees sobre

as noccedilotildees dos estudos de recepccedilatildeo recepccedilatildeo dos claacutessicos e

estudos de intertextualidade

Os estudos de recepccedilatildeo serviram-se das teorias alematildes em esteacutetica

da recepccedilatildeo da deacutecada de 1960 que sendo decorrentes em

especial dos estudos de Hans Robert Jauss Wolfgang Iser e

posteriormente de Hans-Georg Gadamer dedicam-se ao

protagonismo do leitor na atribuiccedilatildeo de sentido de maneira a

receber cada leitor um texto de modo particular a depender de sua

educaccedilatildeo suas experiecircncias e seus anseios pessoais

(BAKOGIANNI 2016 p 115) Esse lugar de relevo concedido ao

leitor no processo de apreciaccedilatildeo de um texto pode ser verificado no

[33]

duplo horizonte proposto por Jauss (2002 p 73) para quem eacute necessaacuterio distinguir e ao mesmo tempo

vincular os dois lados da relaccedilatildeo texto-leitor isto eacute entre o efeito proporcionado pelo texto e a recepccedilatildeo

facultada pelo destinataacuterio a fim de que se materialize o duplo horizonte que compreende aquilo que eacute

interno ao acircmbito literaacuterio envolvido pela obra e a vivecircncia de mundo oferecida pelo leitor pertencente a

determinado contexto social Pelas teorias em esteacutetica da recepccedilatildeo o leitor foi natildeo somente incluiacutedo na

atribuiccedilatildeo do sentido textual mas ainda considerado participante ativo e indispensaacutevel desse processo

A atividade e indispensabilidade concedidas ao leitor pela teoria alematilde eacute entatildeo aproveitada pelos estudos

claacutessicos que nelas encontram respaldo para a consideraccedilatildeo do conceito de claacutessico A obra Redeeming the

text de Charles Martindale publicada em 1993 eacute considerada por muitos o trabalho inaugural de reflexatildeo

dos estudos claacutessicos vinculada aos estudos de recepccedilatildeo O autor no capiacutetulo introdutoacuterio do livro esclarece

o ponto teoacuterico comum agraves vaacuterias versotildees da teoria da recepccedilatildeo o de natildeo pode ser a interpretaccedilatildeo de um

texto dissociada das maneiras que os textos satildeo recebidos pelos leitores afirmando posteriormente o que

tem sido um mantra nas pesquisas que abordam a teoria ldquoO sentido [] sempre se realiza no ponto de

recepccedilatildeordquo (MARTINDALE 1993 p 2-3)1 Tambeacutem para Bakogianni (2016 p 115) a possibilidade de um

texto ser recebido e interpretado de novos modos a cada momento de leitura eacute de grande valor para o estudo

dos claacutessicos uma vez que a cultura material e os textos antigos tecircm sobrevivecircncia fragmentaacuteria sendo os

textos claacutessicos incompletos controversos resgatados de vaacuterias fontes e ressignificados por diferentes

geraccedilotildees de classicistas

A noccedilatildeo de recepccedilatildeo contudo natildeo soacute eacute oportuna ao estudo do claacutessico pela dificuldade do estabelecimento

do texto claacutessico uma vez que segundo Martindale (2006 p 4) ateacute o mesmo leitor romano diante de um

texto original como uma ode de Horaacutecio por exemplo poderia a ler de modo muito diferente em cenaacuterios

histoacutericos distintos na medida em que os textos possuem diferentes sentidos em diferentes contextos A

variabilidade de leituras existente mesmo na Antiguidade tambeacutem eacute reconhecida por Budelmann e Haubold

(2008 p 17) que entendem ser os trabalhos renascentistas e modernos com a Antiguidade orientados por

um longo tempo de outros trabalhos anteriores comeccedilando na proacutepria Antiguidade Se portanto ateacute mesmo

o leitor antigo que estaacute diante da obra antiga pode a examinar de variadas formas natildeo seria em vatildeo a busca

por uma leitura mais autorizada de determinado trabalho antigo Afinal como reflete Batstone (2006 p 14)

ecoando Martindale (1993) ldquoque sentido existe que ainda natildeo eacute um sentido recebidordquo2

Empenhar-se portanto em resgatar uma versatildeo mais fidedigna do texto antigo significa crer que ela tenha

de fato existido e que tenha sido um modelo autossuficiente e mais verdadeiro a partir do qual suas

apropriaccedilotildees passam fatalmente a ser julgadas como meras deturpaccedilotildees Por outro lado se entendemos que

1 ldquoMeaning [] is always realized at the point of receptionrdquo 2 ldquoWhat meaning is there that is not already a received meaningrdquo

[34]

ldquoos claacutessicos natildeo pertencem meramente ao passado mas ao presente e ao futurordquo como considera

Martindale (2006 p 8) passaremos com tranquilidade a deixar de conceber o texto antigo como material

mais autecircntico diante dos posteriores e reconheceremos entatildeo a legitimidade das recepccedilotildees que dele

realizam os diferentes leitores ao longo dos seacuteculos

Como se constatou pode-se considerar como ponto paciacutefico das vaacuterias teorias da recepccedilatildeo a compreensatildeo

de ser a leitura de um texto estritamente associada aos modos como ele eacute recebido pelos leitores No

entanto haacute inuacutemeras dissidecircncias entre os autores que justificam a existecircncia da pluralidade de teorias da

recepccedilatildeo comeccedilando inclusive pelo uso do proacuteprio termo ldquorecepccedilatildeordquo Determinados teoacutericos defendem

que a nomenclatura implica uma funccedilatildeo passiva relegada ao leitor optando entatildeo pelo termo ldquoapropriaccedilatildeordquo

(MARTINDALE 2007 p 300) Sob a oacutetica de Martindale (2007 p 300) devemos recordar que o termo

ldquorecepccedilatildeordquo foi empregado exatamente com o objetivo de destacar o aspecto dinacircmico e dialoacutegico da leitura

entendendo o autor ainda que a categoria ldquoapropriaccedilatildeordquo mdash realizar o proacuteprio mdash diminui a possibilidade de

diaacutelogo

Embora inexista um conceito consensual de ldquorecepccedilatildeordquo e por conseguinte de ldquorecepccedilatildeo dos claacutessicosrdquo

Hardwick e Stray (2008 p 1) arriscam-se na proposta de uma definiccedilatildeo ldquoPor lsquorecepccedilotildeesrsquo consideramos as

maneiras pelas quais o material grego e romano foi transmitido traduzido extraiacutedo interpretado reescrito

re-imaginado e representadordquo3 Os autores adotam o termo ldquorecepccedilatildeordquo fornecendo ainda agrave terminologia um

sentido que embora seja amplo mdash por abarcar a esfera da transmissatildeo agrave representaccedilatildeo passando por outras

como ateacute mesmo a imaginaccedilatildeo mdash eacute delimitado auxiliando-nos em um esclarecimento inicial acerca do

conceito Neste estudo munir-nos-emos assim do conceito aplicado por Hardwick e Stray (2008) agrave

nomenclatura ldquorecepccedilatildeordquo

O eco dos estudos de recepccedilatildeo nos estudos claacutessicos natildeo se restringe contudo agrave revisatildeo do conceito do

claacutessico estendendo-se tambeacutem agraves proacuteprias consequecircncias desencadeadas pelo novo vieacutes lanccedilado ao

material antigo Da compreensatildeo do texto claacutessico como material passiacutevel de releituras posteriores

legiacutetimas decorre um novo olhar para o conceito de tradiccedilatildeo De acordo com Martindale (2006 p 4) nesse

modelo de compreensatildeo do claacutessico dissolve-se a delimitada distinccedilatildeo entre a proacutepria Antiguidade e sua

recepccedilatildeo efetuada no decorrer do tempo Segundo Hardwick e Stray (2008 p 5) essa sensibilidade agrave

possibilidade de um viacutenculo mais estreito entre o antigo e o moderno proporcionou um enfoque tambeacutem no

diaacutelogo entre a tradiccedilatildeo e a recepccedilatildeo Se a noccedilatildeo de tradiccedilatildeo enquanto algo natildeo simplesmente herdado mdash

mas sempre a se fazer e refazer mdash eacute acolhida a recepccedilatildeo e a tradiccedilatildeo podem ser concebidas como partes

associadas (HARDWICK STRAY 2008 p 5)

3 ldquoBy lsquoreceptionsrsquo we mean the ways in which Greek and Roman material has been transmitted translated excerpted interpreted rewritten re-imaged and representedrdquo

[35]

Se no entanto em termos conceituais haacute um certo consenso sobre a relativizaccedilatildeo ou dissoluccedilatildeo do

discernimento entre o mundo antigo e a maneira como eacute recebido posteriormente ao longo do tempo nos

estudos de recepccedilatildeo no niacutevel terminoloacutegico existem dissensos entre os usos das categorias ldquotradiccedilatildeordquo e

ldquorecepccedilatildeordquo Segundo Martindale (2007 p 298)

A etimologia da lsquotradiccedilatildeorsquo por exemplo do latim tradere sugere uma transmissatildeo mdash geralmente benigna mdash de material do passado para o presente A recepccedilatildeo pelo contraacuterio [] opera com uma temporalidade diferente envolvendo a participaccedilatildeo ativa de leitores (incluindo leitores que satildeo artistas criativos) em um processo de duas vias tanto para traacutes quanto para frente em que o presente e o passado estatildeo em diaacutelogo um com o outros4

Logo na visatildeo de Martindale (2007) a categoria ldquotradiccedilatildeordquo distintamente do termo ldquorecepccedilatildeordquo indica um

viacutenculo com o passado e como o autor acrescenta posteriormente o termo ldquolsquotradiccedilatildeorsquo [] pode implicar que

o processo de transmissatildeo eacute incontestavelmente confortaacutevelrdquo (MARTINDALE 2007 p 300)5 Eacute preciso

atentar que essa distinccedilatildeo entre os termos delimitada pelo autor natildeo indica contudo que o teoacuterico defenda

o conceito de tradiccedilatildeo como algo riacutegido ao qual se submete o presente estando o autor apenas a esclarecer

a conotaccedilatildeo passiva que a terminologia ldquotradiccedilatildeordquo transmite em sua perspectiva

Outros autores no entanto como Felix Budelmann e Johannes Haubold (2008 p 25) natildeo compartilham do

mesmo entendimento concebendo que ldquono estudo da recepccedilatildeo como em outros lsquotradiccedilatildeorsquo natildeo deve ser

invocada defendida ou atacada como uma ideia platocircnica mas deve ser vista como uma ferramenta flexiacutevel

para sugerir novas perspectivas de maneiras diferentes em diferentes ocasiotildeesrdquo6 Nesse caso eacute sugerido

pelos teoacutericos que o entendimento da tradiccedilatildeo como algo maleaacutevel deve ser indicado pelo proacuteprio uso da

categoria ldquotradiccedilatildeordquo de maneira a atualizar o sentido da terminologia

Essa dissoluccedilatildeo da legitimidade de uma leitura das obras claacutessicas restritiva exclusivamente ao passado

claacutessico eacute tambeacutem discutida nas reflexotildees suscitadas por estudiosos do fenocircmeno intertextual como

Barchiesi (2001 p 142) que considera ser uma ilusatildeo o entendimento de que determinados modelos podem

acima de tudo ser um modo de limitar e orientar o sentido de um texto concebendo o autor ainda que

delinear viacutenculos intertextuais torna a leitura mais rica e complexa Um oportuno esclarecimento sobre a

possibilidade de ressignificaccedilatildeo do modelo pode ser obtido se considerarmos que jaacute na Antiguidade o

diaacutelogo intertextual era realizado como procedimento de escrita no proacuteprio processo de imitatio Para aleacutem

do sentido de imitatio enquanto imitaccedilatildeo direta da natureza para o tratamento de um novo tema antes natildeo

abordado Horaacutecio (Ars P 119-135) ao afirmar que o escritor deve seguir a tradiccedilatildeo apresenta tambeacutem o

4 ldquoThe etymology of lsquolsquotraditionrsquorsquo for example from the Latin tradere suggests a ndash usually benign ndash handing down of material from the past to the present lsquolsquoReceptionrsquorsquo by contrast [] operates with a different temporality involving the active participation of readers (including readers who are themselves creative artists) in a two-way process backward as well as forward in which the present and past are in dialogue with each otherrdquo 5 ldquorsquotraditionrsquo [] might imply that the process of transmission is comfortably uncontestedrdquo 6 ldquoin the study of reception as indeed elsewhere lsquotraditionrsquo should not be invoked defended or attacked as a Platonic idea but should be seen as a pliable tool for suggesting new perspectives in different ways on different occasionsrdquo

[36]

sentido de imitatio enquanto imitaccedilatildeo da natureza via textos anteriores modelos jaacute existentes na tradiccedilatildeo Eacute

preciso atentar para a recomendaccedilatildeo horaciana de que caso se opte por reportar aos textos da tradiccedilatildeo

deve-se ser coerente com os traccedilos das personagens tais como jaacute foram constituiacutedos na tradiccedilatildeo e ao mesmo

tempo no entanto evitar tanto as trajetoacuterias comuns adotadas por outros escritores quanto a imitaccedilatildeo

passiva (Hor Ars P 119-135) Logo a referecircncia a um texto da tradiccedilatildeo mdash a imitatio para usar o termo latino

mdash eacute na perspectiva do poeta um dos tipos de estrateacutegia inerentes agrave criaccedilatildeo literaacuteria o que tambeacutem pode ser

verificado por Quintiliano (Inst 10 21-2 trad de Antocircnio Rezende)

Com efeito como o inventar acontece primeiro e eacute o mais importante assim eacute proveitoso secundar aquelas coisas que foram bem inventadas Aleacutem disso consta como de ordem natural da vida de cada um que queiramos fazer noacutes mesmos tudo aquilo que aprovamos nos outros Assim os meninos acompanham os sulcos das letras para que se adquira a habilidade do escrever de maneira semelhante os muacutesicos imitam a voz de seus docentes os pintores reproduzem as obras dos antecessores os camponeses tomam para exemplo o cultivo comprovado pela experiecircncia enfim constatamos que o comeccedilo de toda disciplina se forma segundo um modelo estabelecido anteriormente a si7

O retor tambeacutem situa a remissatildeo de uma obra a outra no momento de composiccedilatildeo estendendo a importacircncia

do procedimento para a vida em geral como na caligrafia na voz na arte plaacutestica e mesmo nos preceitos

agriacutecolas Essa remissatildeo a paradigmas literaacuterios jaacute presentes na tradiccedilatildeo tambeacutem eacute verificada sob a oacutetica

moderna do processo intertextual Segundo Barchiesi (2001 p 145) a alusatildeo opera mesmo quando se trata

de uma escolha entre possibilidades jaacute existentes na tradiccedilatildeo e natildeo apenas quando acresce um desvio A

relaccedilatildeo paralela entre o processo de imitaccedilatildeo latina com enfoque no momento de criaccedilatildeo e o fenocircmeno

intertextual eacute tambeacutem identificada se considerarmos implicar toda alusatildeo quando reconhecida o olhar

sobre a produccedilatildeo do texto e a figura do autor uma vez que a intenccedilatildeo do autor eacute um dos aspectos dentre

outros ldquoem um jogo de forccedilas que tambeacutem inclui a recepccedilatildeo textualrdquo (BARCHIESI 2001 p 142)

Pelo viacutenculo paralelo constatado entre os testemunhos dos autores latinos mencionados e os entendimentos

modernos de Barchiesi (2001) podemos inferir portanto que na Antiguidade concebia-se o fenocircmeno que

atualmente denominamos intertextual como uma referecircncia de um escritor a outro sendo uma relaccedilatildeo

existente entre os autores no momento de criaccedilatildeo Tendo em vista que contudo haacute uma lacuna temporal

entre os teoacutericos antigos e os do seacuteculo XX a terminologia imitatio eacute atualmente substituiacuteda por outros

termos mais condizentes com outras categorias enfocadas na modernidade no estudo do fenocircmeno

intertextual como as de texto e de leitor (CESILA 2013 p 14)

7 ldquoNam ut invenire primum fuit estque praecipuum sic ea quae bene inventa sunt utile sequi Atque omnis vitae ratio sic constat ut quae probamus in aliis facere ipsi velimus Sic litterarum ductus ut scribendi fiat usus pueri sequuntur sic musici vocem docentium pictores opera priorum rustici probatam experiment culturam in exemplum intuentur omnis denique disciplinae initia ad propositum sibi praescriptum formari videmusrdquo

[37]

Logo o fenocircmeno de diaacutelogos entre um texto e outro embora natildeo entendido sob a denominaccedilatildeo

ldquointertextualidaderdquo era reconhecido jaacute na Antiguidade na medida em que um texto claacutessico podia ser

resgatado na composiccedilatildeo de outro texto tambeacutem claacutessico Puacuteblio Oviacutedio Nasatildeo aleacutem de empregar manuais

mitoloacutegicos na composiccedilatildeo de sua obra apropria-se de outras fontes literaacuterias existentes (KENNEY 2009 p

146) O escritor latino transforma em diversos de seus trabalhos como nas Heroides e nas Metamorfoses

obras aqui estudadas o material mitoloacutegico existente em um trabalho literaacuterio Ao considerar o manuseio

ovidiano das narrativas mitoloacutegicas Graf (2006 p 110) entende que o poeta concebe os mitos enquanto

textos poeacuteticos escritos por poetas especiacuteficos ou ateacute mesmo desconhecidos da tradiccedilatildeo

Do comentaacuterio do teoacuterico podemos inferir que o trabalho operado por Oviacutedio com a tradiccedilatildeo mitoloacutegica em

suas obras pressupotildee uma referecircncia a textos anteriores A textualidade do conteuacutedo mitoloacutegico eacute tambeacutem

confirmada por Volk (2010 p 51) para quem as passagens mitoloacutegicas satildeo caracteriacutesticas e altamente

intertextuais tendo em vista que respondem e recriam tratamentos anteriores da mesma histoacuteria Tambeacutem

para Graf (2006 p115) a tradiccedilatildeo narrativa miacutetica designa o processo intertextual no sentido de que um

texto posterior se apoia e reage a um anterior Uma vez que nas Heroides e nas Metamorfoses o material

mitoloacutegico eacute empregado de maneira evidente e ainda que ndash como entende Carvalho (2010 p 27) sob uma

perspectiva que considere a produccedilatildeo ovidiana em geral ndash Oviacutedio realiza uma constante releitura de seu

proacuteprio trabalho configura-se uma possibilidade de estudo examinar os intertextos existentes entre duas

obras ovidianas as Heroides e as Metamorfoses objetivo que se busca atingir ao longo deste texto

Diante dos tipos de viacutenculos intertextuais elencados e definidos por Vasconcellos (2001) em seu texto

ldquoFormas e processos alusivos na Eneidardquo constituinte da obra Efeitos intertextuais na Eneida de Virgiacutelio

observou-se que todas as alusotildees reconhecidas neste estudo satildeo autotextuais Segundo Vasconcellos (2001

p 148) a autotextualidade consiste na evocaccedilatildeo em uma determinada obra de passagens pertencentes a

outra obra de mesmo autor Uma vez que os diaacutelogos foram reconhecidos entre duas obras ovidianas pode-

se portanto consideraacute-los autotextuais

Antes contudo de se apresentar os diaacutelogos existentes julga-se necessaacuteria uma breve exposiccedilatildeo das obras

ovidianas Emprestando sua voz a heroiacutenas mitoloacutegicas que dirigem cartas aos seus respectivos amados

queixando-se de sua ausecircncia ou abandono Oviacutedio compotildee as Heroides vinte e uma epiacutestolas em que

personagens mitoloacutegicas femininas comportam-se como remetentes e as masculinas enquanto destinataacuterias

salvo trecircs cartas-resposta destas agravequelas como as missivas 6 18 e 20 de Paacuteris a Helena de Leandro a Hero

e de Acocircncio a Cidipe respectivamente Ao reivindicarem o retorno de seus estimados as remetentes

rememoram episoacutedios mitoloacutegicos de conhecimento comum dos leitores antigos que envolvem a partida de

seus amados

[38]

As Metamorfoses por sua vez constituem-se de poemas narrativos que contam episoacutedios de mudanccedilas de

forma da mitologia grega e romana Apesar de Oviacutedio questionar os limites do gecircnero eacutepico na obra ainda

podemos a ele vincular a produccedilatildeo eacutepica uma vez que ela conjuga o aspecto etioloacutegico pois a maior parte

das metamorfoses explica a origem de um fenocircmeno por meio de um mito caracteriacutestico da tradiccedilatildeo eacutepica

heleniacutestica com o caraacuteter mais histoacuterico proacuteprio da tradiccedilatildeo eacutepica romana (LEITE 2016 p 38)

Realizadas tais consideraccedilotildees passamos entatildeo a alguns dos diaacutelogos reconhecidos entre fragmentos das

Metamorfoses e das Heroides O trecho 13624-627 da primeira obra pode ser ecoado intertextualmente na

leitura do trecho 85-86 da missiva de Dido a Eneias

[] sacra et sacra altera patrem

fert umeris venerabile onus Cythereius heros 625

de tantis opibus praedam pius eligit illam

Ascaniumque suum []

[] Aos ombros o heroacutei da Citereacuteia

traz imagens sacras e outra coisa sacra o pai veneraacutevel carga

de tantas outras riquezas o pio heroacutei escolheu soacute tais despojos

e o seu amado Ascacircnio []

(Ov Met 13624-627)

Si quaeras ubi sit formosi mater Iuli 85

Occidit a duro sola relicta viro

Se queres saber onde estaacute a matildee do pequeno Iulo morreu

abandonada pelo cruel esposo

(Ov Her 785-86)

Ambas as passagens se vinculam cada qual agrave sua maneira ao momento em que Eneias parte de Troia em sua

missatildeo de formaccedilatildeo de uma nova cidade Em ambas menciona-se a imagem do filho do troiano sendo sob a

forma acusativa Ascanium no primeiro trecho e sob o termo no genitivo Iuli no segundo As proximidades

existentes entre os excertos funcionam como uma espeacutecie de sinal alusivo conduzindo-nos portanto a

comparaacute-los Se nas Metamorfoses Eneias eacute representado como homem pio por ter escolhido levar em sua

empreitada dentre todas as coisas os deuses penates seu pai Anquises e seu filho Iulo nas Heroides Dido

lembra que na partida o troiano abandona Creuacutesa a matildee de Iulo e sua entatildeo esposa Da leitura intertextual

surge portanto um efeito de contraste que sugere o questionamento da imagem benevolente e piedosa de

Eneias

Agrave representaccedilatildeo tradicional da personagem mitoloacutegica de Jasatildeo novas camadas de sentido podem ser

tambeacutem acrescidas via uma leitura intertextual ou de maneira mais especiacutefica autotextual entre os

seguintes trechos

si facere hoe aliamue potest praeponere nobis

occidat ingratus sed non is vultus in illo

non ea nobilitas animo est ea gratia formae

ut timeam fraudem meritique oblivia nostri 45

Se tiver a coragem de o fazer se preferir a mim a outra mulher

que morra o ingrato mdash Mas natildeo Ele tem uma tal expressatildeo

no rosto uma nobreza de alma uma figura tatildeo graciosa

que natildeo receio traiccedilatildeo ou o esquecimento dos meus serviccedilos

(Ov Met 742-45)

[39]

Est aliqua ingrato meritum exprobare voluptas

Hac fruar haec de te gaudia sola feram

Eacute como que um prazer recordar ao ingrato o benefiacutecio recebido

Deixa-me tecirc-lo soacute este terei de ti

(Ov Her 1221-22)

Eacute comum agraves duas passagens a menccedilatildeo agrave memoacuteria de Jasatildeo quanto aos auxiacutelios a ele concedidos por Medeia

Em termos lexicais observa-se um paralelismo entre ingratusmeriti nas Metamorfoses e ingratomeritum nas

Heroides Na primeira passagem cede-se voz agrave princesa da Coacutelquida que afastando a conjectura de ser

preterida por parte de Jasatildeo a outra mulher desconsidera a partir da apreciaccedilatildeo da imagem nobre e graciosa

do filho de Esatildeo o medo de uma possiacutevel deslealdade ou ingratidatildeo relativa ao amparo por ela prestado A

leitura da missiva em que Medeia agora como remetente aposta na notificaccedilatildeo agrave Jasatildeo da ajuda ofertada

como uacutenico meio de obter dele algum reconhecimento de seus esforccedilos coloca-nos diante de uma mudanccedila

da perspectiva acerca da figura de Jasatildeo na medida em que a proacutepria alteraccedilatildeo do ponto de vista da princesa

da Coacutelquida verificada entre um excerto e outro desmantela o caraacuteter heroico atribuiacutedo a Jasatildeo A partir da

leitura do trecho epistolar a imagem heroacuteica de Jasatildeo constituiacuteda por Medeia nas Metamorfoses eacute submetida

a uma reinterpretaccedilatildeo jaacute que na carta por traacutes do caraacuteter heroico do filho de Esatildeo satildeo evidenciados ao leitor

os esforccedilos efetuados pela princesa

A passagem 783-85 das Metamorfoses tambeacutem pode ser ressignificada pelo excerto 31-35 da mesma carta

das Heroides antes mencionada

ut vidit iuvenem specie praesentis inarsit

et casu solito formosior Aesone natus

illa luce fuit posses ignoscere amanti 85

mal viu o jovem se reacende agrave vista de sua linda presenccedila

E por acaso naquele dia o filho de Eacuteson estava mais belo

que de costume ateacute lhe perdoarias por estar apaixonada

(Ov Met 783-85)

Tunc ego te vidi tunc coepi scire quid esses

Illa fuit mentis prima ruina meae

Ut vidi ut perii Nec notis ignibus arsi

Ardet ut ad magnos pinea taeda deos

Et formosus eras et me mea fata trahebant 35

Entatildeo te vi Comecei a saber o que eras Esse foi o princiacutepio da

ruiacutena de minha vida Completei-te e sucumbi Inflamei-me com

estranha paixatildeo como ardem as lascas de pinho junto aos altares

dos deuses excelsos Tu eras belo e minha sina arrastava-me

(Ov Her 1231-35)

Na passagem das Metamorfoses eacute narrado o momento em que Medeia enquanto vai ao altar de Heacutecate

sentindo-se forte e praticamente isenta da paixatildeo volta a ser acometida pelo sentimento ao avistar Jasatildeo O

mesmo momento do mito eacute representado na deacutecima segunda epiacutestola das Heroides Ocupando a posiccedilatildeo de

remetente na carta a princesa da Coacutelquida narra a ocasiatildeo lembrando-se de como avistar Jasatildeo

desencadeou em si uma paixatildeo ardente e ao mesmo tempo o iniacutecio de sua decadecircncia Satildeo representadas

em ambas as passagens o cenaacuterio em que Medeia se apaixona por Jasatildeo por com ele se deparar a beleza de

Jasatildeo como elemento que a atrai e a paixatildeo como sentimento ardente Haacute ainda algumas proximidades

lexicais entre os excertos viditvidi inarsitarsit formosiorformosus nas Metamorfoses e Heroides

[40]

respectivamente Essas paridades existentes entre os trechos podem estimular o leitor a realizar no

momento de recepccedilatildeo uma leitura intertextual entre as produccedilotildees Observa-se que enquanto no primeiro

caso um narrador em um momento de onisciecircncia conta que Medeia afetada por Jasatildeo poderia lhe

perdoar no segundo texto a proacutepria Medeia assume a palavra e relata a ocasiatildeo em que vecirc Jasatildeo como

momento inicial de sua perdiccedilatildeo A identificaccedilatildeo do fenocircmeno alusivo suscita mais uma vez um efeito de

contraste na medida em que a partir da leitura da missiva a figura de Medeia presente no trecho das

Metamorfoses como mera mulher que age em funccedilatildeo de um homem sem ter consciecircncia de sua inclinaccedilatildeo e

das fatais consequecircncias de tal ato eacute ressignificada e relativizada

Os diaacutelogos alusivos reconhecidos podem confirmar o entendimento de alguns autores sobre o tratamento

caracteristicamente ovidiano dado agraves narrativas mitoloacutegicas nas obras literaacuterias que as abordam Volk

(2010 p 56) por exemplo evidencia a apreciaccedilatildeo ovidiana pelo fornecimento de uma nova versatildeo de mitos

antigos jaacute consagrados em textos literaacuterios da tradiccedilatildeo Ao considerar algumas das funccedilotildees assumidas pelas

narrativas mitoloacutegicas Graf (2006 p 112) entende que uma delas consiste em fornecer uma determinada

linguagem para falar das relaccedilotildees e experiecircncias humanas Tal entendimento eacute tambeacutem pontuado por

Barchiesi (2001 p 18) que dedicando-se agrave reflexatildeo de aspectos gerais da poeacutetica ovidiana considera a

alusatildeo organizada em retrospectiva o modo de operaccedilatildeo distintivo do intertexto de Oviacutedio afirmando o

autor que em certos casos a personagem lembra e retoma seu eu passado fazendo referecircncia a outro texto

como elemento de suas recordaccedilotildees subjetivas O papel do mito como um recurso discursivo sobre a emoccedilatildeo

e a experiecircncia tornou a narrativa mitoloacutegica ideal para viabilizar um paradigma de expressatildeo de novas

experiecircncias (GRAF 2006 p 112)

Da recepccedilatildeo dos trechos selecionados via leitura intertextual ou de modo especiacutefico autotextual entre as

Metamorfoses e as Heroides satildeo manifestados acreacutescimos de sentido agraves representaccedilotildees das personagens

mitoloacutegicas Nas epiacutestolas os mitos satildeo constituiacutedos de maneira a se introduzirem em um momento temporal

especiacutefico da narrativa mitoloacutegica tradicional que pode ser resgatada pelo leitor familiarizado com as

intertextualidades ovidianas (VOLK 2010 p 60) Ao dar as suas proacuteprias versotildees dos mitos tradicionais as

rementes incitam os leitores a se reportarem aos textos mitoloacutegicos da tradiccedilatildeo de modo a os impelir a uma

interpretaccedilatildeo das missivas que considere as relaccedilotildees alusivas que elas estabelecem com outras composiccedilotildees

mitoloacutegicas

Por munirem-se dos mitos como uma maneira de expressatildeo de suas subjetividades as heroiacutenas preenchem

as narrativas mitoloacutegicas realizadas nas Metamorfoses com detalhes pessoais As representaccedilotildees de Ulisses

de Eneias como pio e de Jasatildeo como heroico passam a ser ressignificadas pela identificaccedilatildeo das alusotildees

Pode-se considerar que as relaccedilotildees paralelas entre as duas composiccedilotildees aqui consideradas sejam

convergentes ou divergentes funcionam para o leitor como um letreiro luminoso que o impele a recuperar

em seu repertoacuterio outras versotildees dos mitos e comparaacute-las As respostas fornecidas pelas proacuteprias heroiacutenas

[41]

aos mitos da tradiccedilatildeo nas passagens selecionadas convidam o leitor a ressignificar as representaccedilotildees

constituiacutedas nas Metamorfoses de maneira a natildeo soacute desmanchar o estatuto heroacuteico de personagens centrais

da tradiccedilatildeo eacutepica como Eneias e Jasatildeo mas o deslocar para as personagens mitoloacutegicas femininas como Dido

e Medeia respectivamente

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O leitor e o gecircnero epistolar no livro 2 das Epiacutestolas Morais de Secircneca

Ana Azevedo Bezerra Felicio

missanagreenhotmailit

Isabella Tardin Cardoso

itardincardosogmailcom

O presente artigo foi realizado com apoio

da Coordenaccedilatildeo de Aperfeiccediloamento

de Pessoal de Niacutevel Superior (CAPES) ndash

Coacutedigo de Financiamento 001

O presente texto visa a apresentar uma das questotildees levantadas

em nossa pesquisa de mestrado sobre a imagem do leitor no livro 2

das Epiacutestolas Morais de Luacutecio Aneu Secircneca A investigaccedilatildeo como um

todo propotildee-se a estudar uma instacircncia especial de recepccedilatildeo da

obra a imagem de destinataacuterio presente nas cartas endereccediladas a

Luciacutelio Juacutenior bem como a concepccedilatildeo de leitor ideal e de leitura dali

inferiacutevel Trataremos nesta ocasiatildeo do modo como a recepccedilatildeo do

gecircnero epistolograacutefico influi na interpretaccedilatildeo da obra senequiana

e do papel que nela tem o leitor Na histoacuteria da leitura das cartas

vemos por exemplo que para dar autoridade ao gecircnero ensaiacutestico

em que sua obra se inseria Francis Bacon (1612) aproxima-a das

cartas a Luciacutelio e traccedila uma longa tradiccedilatildeo de traduccedilatildeo e leitura das

Epiacutestolas como ensaios (BOYD 1867) A importacircncia da forma

especificamente epistolar para os fins da obra senequiana vem

[44]

sendo modernamente reconhecida (ALTMAN 1982 BRAREN 1999 WILSON 2001 SCHAFER 2011)

nesta comunicaccedilatildeo pretendemos aprofundar a discussatildeo direcionando-a para a imagem do leitor no corpus

em apreccedilo e observando alguns aspectos da histoacuteria da recepccedilatildeo desse gecircnero textual

Introduccedilatildeo

No entanto para ser classificado como uma carta um texto talvez exija um destinataacuterio (ou destinataacuterios) especiacutefico(s) O lugar do leitor eacute colocado em primeiro plano mais insistentemente em uma carta do que em qualquer outro tipo de escrita (ALTMAN 1982 p 87-88)1

As Epiacutestolas Morais (Epistulae Morales) de Luacutecio Aneu Secircneca (4 aC ndash 65 dC) 2 foram escritas para um uacutenico

destinataacuterio nominal Luciacutelio Sabe-se que as Epiacutestolas tecircm uma longa histoacuteria de leitura e recepccedilatildeo No

presente artigo privilegiaremos a recepccedilatildeo de Secircneca por parte do humanista Michel de Montaigne (1533-

1592) e discutiremos brevemente alguns dos efeitos dessa recepccedilatildeo para a compreensatildeo da obra ateacute os dias

de hoje Mais especificamente discutiremos se eacute possiacutevel aproximar o gecircnero ensaiacutestico (do qual o autor eacute

grande expoente) do gecircnero das Epiacutestolas e para tanto analisaremos possiacuteveis diferenccedilas e semelhanccedilas

entre ambos

Secircneca ndash principalmente com suas Epiacutestolas Morais ndash eacute considerado a influecircncia mais importante na escrita

de Montaigne3 conforme analisam Carneiro e Maerki (2018 p 214) Num quadro mais amplo eacute notoacuterio que

autores antigos como Ciacutecero (106-43 aC) Tito Liacutevio (59 aC ndash 17 dC) bem como Plutarco (46-125 dC) e

Lucreacutecio (94-56 aC) eram vistos como modelos a serem imitados para a formaccedilatildeo escolaacutestica do intelectual

seiscentista (MOSS 1989) Nesse contexto de programa escolaacutestico de educaccedilatildeo que notoriamente previa

o estudo do latim claacutessico Montaigne era ldquomarcado por uma ironia afaacutevel profundamente ceacutetica em relaccedilatildeo

ao programa humanistardquo (BLOOM 2005 p 143) Curiosamente ele citava os autores antigos sem reportar

agraves fontes segundo notam Carneiro e Maerki (2018 p 215) e esse era um dos aspectos pelos quais ele se

diferenciava dos seus colegas humanistas O escritor e meacutedico suiacuteccedilo Jean Starobisnky (2011 [1985] p 13)

em seu discurso em ocasiatildeo do recebimento do Precircmio Europeu do Ensaio em 1984 destaca que em meio agrave

obra de Montaigne os Essais tecircm uma grande fortuna criacutetica na Franccedila do seacuteculo XVI tanto que segundo

analisa o estudioso foram logo traduzidos para o inglecircs (em 1603) e assim recebidos na Inglaterra

1 ldquoNevertheless to be classed as a letter a text does perhaps require a specific addressee (or addressees) The place of the reader is more insistently foregrounded in a letter than in any other kind of writing)rdquo Salvo indicaccedilatildeo diferente eacute nossa a traduccedilatildeo de todos os trechos aqui citados em latim ou em liacutenguas modernas 2 Cf Conte (1994 p 408-409) 3 Cf Carneiro Maerki (2018)

[45]

Semelhanccedilas e dessemelhanccedilas entre Ensaios e Epiacutestolas ou entre Montaigne e Secircneca

Tendo contextualizado um pouco a obra do humanista francecircs chamaremos agora a atenccedilatildeo para a maneira

como Secircneca escreve i e para seu estilo As 124 Epiacutestolas tratam de diversos temas que podem ser lidos

como gatilhos para a discussatildeo filosoacutefica que o autor instaura com seu leitor e interlocutor Luciacutelio Por

exemplo Secircneca inicia uma carta comentando sobre sua ida agrave casa de campo (Ep 12) para refletir sobre o

tema da velhice e o passar do tempo em outra carta descreve as festividades de dezembro (a saber as festas

Saturnaacutelias) para discursar sobre a pobreza (Ep 18) O filoacutesofo romano faz isso poreacutem sem que cada carta

se configure monotemaacutetica ou desconectada do conteuacutedo das cartas que a antecedem ou a seguem Essa

rede complexa de relaccedilotildees pode parecer agrave primeira vista assistemaacutetica4 uma vez que as experiecircncias do

cotidiano como as exemplificadas acima satildeo associadas a citaccedilotildees de autores de diversas escolas filosoacuteficas

bem como a citaccedilotildees poeacuteticas e a exempla histoacutericos (Ep 1110 Ep 1314 Ep 14 Ep 214) tudo isso visaria agrave

edificaccedilatildeo moral do seu disciacutepulo-leitor Luciacutelio (SCHAFER 2011 p 50)5 Outra caracteriacutestica marcante da

escrita do filoacutesofo romano eacute o estilo aforiacutestico-sentencioso6 A recepccedilatildeo das Epiacutestolas ao longo dos seacuteculos

tem mostrado com notaacutevel relevacircncia o aspecto acima citado pois houve diversas obras com maacuteximas

senequianas ou pseudo-senequianas7 Mutatis mutandis percebemos que tambeacutem nos dias de hoje sua

recepccedilatildeo fora da academia tambeacutem eacute marcada pela popularizaccedilatildeo de maacuteximas publicadas e compartilhadas

por diversos veiacuteculos de miacutedia social em paacuteginas que frequentemente tratam de assuntos como liccedilotildees de

vida ldquoautoajudardquo e cuidados da sauacutede e da mente

Ora o estilo senequiano parece ser imitado por Montaigne como afirmam Carneiro e Maerki (2018 p 218)

ldquoas referecircncias montaignianas muitas vezes satildeo construiacutedas atraveacutes de um complexo mosaico de citaccedilotildees

que aproxima os Ensaios em muitas passagens dos chamados lsquocentotildeesrsquordquo Mas por que comparar a escrita dos

dois autores Porque a recepccedilatildeo das Epiacutestolas morais a Luciacutelio eacute marcada no mundo angloacutefono por uma forte

influecircncia do gecircnero ensaio a ponto de serem lidas como se fossem um ensaio por todo o seacuteculo XX

(WILSON 2001 p 64) Francis Bacon (1561-1626) em sua publicaccedilatildeo dos Ensaios datada de 1612 mais

precisamente na dedicatoacuteria ao priacutencipe Henry escreve

Algumas breves notas escritas de forma mais significativa que curiosa que eu chamei ldquoEnsaiosrdquo A palavra eacute tardia mas a coisa eacute antiga pois se vocecirc bem notar as Epiacutestolas a

4 Cf De Pietro (2013) para uma anaacutelise mais aprofundada sobre ldquosistemardquo e ldquosistematismordquo no estoicismo antigo 5 Schafer (2011 p 50) conclui que visto o irrestrito comprometimento com a virtude e o aperfeiccediloamento moral do seu disciacutepulo-destinataacuterio Luciacutelio Secircneca faz um retrato da educaccedilatildeo marcadamente variado e pluraliacutestico Ainda comenta que a educaccedilatildeo eacute como um edifiacutecio para o qual tudo pode ser usado os estudos filosoacuteficos a histoacuteria a poesia e as coisas do dia a dia ateacute mesmo as mais banais 6 A esse estilo Boella (1983 p 17) chama de ldquoepigramaacutetico (epigrammatico)rdquo 7 Florilegium Morales Oxoniense (DELHAYE TALBOT 1955) Auctoritates Aristoteleis Senecae Boethiihellip (Philosophes Medievaux v 17 p 273-296) Opus Magnum (BACON BRIDGES 2010 1900 p 299-365)

[46]

Luciacutelio de Secircneca natildeo satildeo nada mais que Ensaios ou seja meditaccedilotildees variadas embora transmitidas na forma de epiacutestolas8

Temos entatildeo por todo o seacuteculo XX na academia uma reclassificaccedilatildeo das Epiacutestolas como sendo ldquoensaios

curtosrdquo (ROSE 1949 p 369) ou ldquoensaios moraisrdquo (QUINN 1979 p 213) ldquoensaios filosoacuteficosrdquo (DUFF 1964

p 184) ou ainda ldquoensaios sobre assuntos especiacuteficosrdquo (COLEMAN 1974 p 288) Wilson observa como no

mundo angloacutefono essa leitura foi aleacutem da academia e passou a ser reproduzida por escritores mais

populares Um exemplo eacute Williamson (1951 p 194) que em The Senecan Amble menciona a ldquopraacutetica de

Secircneca de escrever ensaios sob a forma de cartasrdquo como se o ldquoensaiordquo propriamente dito jaacute existisse como

gecircnero no I seacutec dC Tambeacutem na ediccedilatildeo Penguin (CAMPBELL 1969 p 194) das cartas senequianas se

assevera que ldquoas Epiacutestolas Morais satildeo ensaios mascaradosrdquo E por fim vemos que a difundida traduccedilatildeo em

inglecircs de Gummere (1996) (publicada pela Loeb desde 1917) traz verdadeiros tiacutetulos no iniacutecio de cada carta

sugerindo uma certa autonomia temaacutetica agrave maneira dos ensaios baconianos9 tambeacutem numa ediccedilatildeo italiana

de grande prestiacutegio traduzida por Giuseppe Monti (1974 2018) notamos que as cartas figuram com tiacutetulos

com efeito anaacutelogo10 O caraacuteter precursor da obra senequiana no gecircnero ldquoensaiordquo eacute aventada ateacute mesmo em

estudos modernos sobre ensaios brasileiros como no de Guerini (2000 p 11) ao dizer que o ensaio pode

ldquoser colocado entre os mais antigos pois as suas origens se encontram nos Diaacutelogos de Platatildeo nas Epiacutestolas

de Secircneca nas Meditaccedilotildees de Marco Aureacutelio nas Confissotildees de Santo Agostinho nos discursos fuacutenebres etcrdquo

Essa recepccedilatildeo eacute pois um dos motivos pelos quais parece interessante comparar e com maior atenccedilatildeo do

que seria possiacutevel no presente estudo a maneira de Secircneca escrever com a escrita montaigniana Poreacutem

parece-nos necessaacuterio tambeacutem observar mais de perto o que mais assemelharia o gecircnero epistolar ao ensaio

Para Starobinsky (2018 p 17) o ensaio tem sempre um ldquoar de comeccedilordquo ou seja eacute literalmente um coup drsquoessai

uma tentativa ldquoapenas uma aproximaccedilatildeo preliminarrdquo Desse ponto de vista efetivamente algumas das

cartas do ldquoestoico livrerdquo11 apenas pincelam os assuntos como vemos o modo como tema da amizade eacute tratado

na Ep 3 No entanto jaacute na Ep 6 e 9 e em seguida 109 o mesmo assunto seraacute aprofundado do ponto de vista

filosoacutefico trazendo questotildees claacutessicas sobre a amizade filosoacutefica como por exemplo a tensatildeo entre a

autossuficiecircncia do saacutebio e a necessidade de o saacutebio ter amigos

8 ldquoCertain brief notes set down rather significantly than curiously which I have called lsquoEssaysrsquo The word is late but the thing is ancient for Senecarsquos Epistles to Lucilius if you mark them well are but Essays that is dispersed meditations though conveyed in the form of epistlesrdquo Encontramos a ediccedilatildeo jaacute de domiacutenio puacuteblico de James R Boyd D D Lordrsquos Baconrsquos Essays with a sketch of his life and character reviews of his philosophical writings critical estimates of his essas analysis notes and queries for students and select portion of the lsquoannotationsrsquo of Archibishop Whately Ali o historiador Henry Hallam (JAMES BOYD 1867 p 52-53) traz a sua criacutetica dos ensaios e reporta essa citaccedilatildeo da ediccedilatildeo dos Essays publicada em 1612 9 A tiacutetulo de exemplo ldquoOn Brawn and Brainsrdquo Ep 15 ldquoOn Festivals and Fastingrdquo Ep 18 ldquoOn the Renown which my writings will bring yourdquo Ep 21 (GUMMERE 1965 p iii) 10 Por exemplo ldquoBisogna esercitare lo spirito piugrave che il corpordquo Ep 15 ldquoElogio della povertagraverdquo Ep 18 ldquoLa vera Gloriardquo Ep 21 (MONTI 2018 p 1082) 11 Usamos a expressatildeo de Carneiro e Maerki (2011 p 220)

[47]

Aleacutem desse ldquoar de comeccedilordquo parece-nos que ainda um outro aspecto talvez aproxime as duas modalidades de

escrita o desprestiacutegio que ambas recebem em sua histoacuteria Isso porque no seacutec XVII aparece pela primeira

vez a palavra ldquoensaiacutestardquo (ldquoessaystrdquo) em inglecircs e com matiz pejorativo12 O ceacutelebre escritor da Renascenccedila

inglesa Ben Jonson (1572-1637) escreve ldquoMeros ensaiacutestas um punhado de frases soltas e nada maisrdquo

(ldquoMere essayists a few loose sentences and thatrsquos allrdquo13) em 1845 o poeta francecircs Theacuteophile Gautier (1811-

1872)14 usa a palavra como sinocircnimo de ldquoautor de obras sem profundidaderdquo

Ora sabemos que as Epiacutestolas senequianas foram tambeacutem muito criticadas e de modo semelhante por

autores antigos Aleacutem da famosa passagem da Instituiccedilatildeo oratoacuteria (X 1125-131) de Quintiliano (35 dC ndash 95

dC) lemos no testemunho de Aulo Geacutelio (125 dC ndash 180 dC) que um seacuteculo depois da sua morte que

apesar de alguns admirarem o conhecimento ldquocientiacuteficordquo e seu ldquosaber teoacutericordquo (scientiam doctrinamque ei non

deesse dicunt NA 1221) Secircneca tinha uma fama negativa devido ao seu estilo pedestre e banal (oratio

uulgaria uideatur et protrita) de erudiccedilatildeo provinciana e plebeia (eruditio autem uernacula et plebeia) Wilson

natildeo cita a famosa passagem de Aulo Geacutelio mas lembramos que esse autor antigo em suma recomenda que

os jovens natildeo lessem Secircneca isso porque embora haja frases bem escritas na obra senequiana (ipse Seneca

bene dixerit 12213) natildeo conviria ao jovem aprender umas poucas coisas bem ditas no meio de tantas frases

ruins (multoque tanto magis si et plura sunt quae deteriora sunt NA 12214)

Segundo Wilson (2001 p 169) essa faacutecil associaccedilatildeo entre os Ensaios e as Epiacutestolas se deu tambeacutem pela falta

de uma teoria epistolar desenvolvida ausecircncia que se confirma mesmo em tempos modernos Wilson nota

tambeacutem que mais precisamente nos anos 90 do seacutec XX as pesquisas tenderam a abandonar essa

comparaccedilatildeo da obra senequiana com o gecircnero ldquoensaiordquo poreacutem tambeacutem assumiram tacitamente que natildeo era

importante considerar as Epiacutestolas em alguma categoria fundamental Para a discussatildeo da obra senequiana

tal postura resulta segundo o estudioso numa efetiva falta de discussatildeo criacutetica sobre vaacuterios aspectos ainda

atualmente15

No Brasil dentre as diversas caracteriacutesticas do gecircnero epistolar jaacute abordadas vale lembrar que Ingedore

Braren (1999 p 41-43) jaacute havia notado a importacircncia da forma (ie da escolha do gecircnero epistolar) para os

fins dessa obra filosoacutefica senequiana Jaacute Marcos Martinho Dos Santos (1999) explora a metalinguagem ie

12 Cf Starobinky (2011 p 15) Segundo o Oxford English Dictionary a palavra ldquoessayrdquo tem sua origem no seacutec XV como verbo e como substantivo no seacutec XVI 13 Cf ldquoEpicoene or The Silent Woman v 46-47rdquo (JONSON HOLDSWORTH 1979 p 42) 14 Eacute curiosa a perspectiva de Gautier contra os ldquoensaiacutestasrdquo ele que foi um dos primeiros articuladores do Esteticismo na Europa no seacutec XIX e que popularizou a expressatildeo ldquolrsquoart pour lrsquoartrdquo utilizada anteriormente por Benjamin Constant (1767-1830) Oxford Encyclopedia of British Literature v 5 p 14 15 Habinek (1992) e Yun Lee Too (1994) satildeo dois exemplos de estudiosos que propotildeem uma reclassificaccedilatildeo das Epiacutestolas poreacutem segundo Wilson (2011 p 169) a maneira como esses dois artigos reclassificam a obra senequiana faz com que alguns aspectos do texto sejam considerados falta de consistecircncia ou de sinceridade e ldquoa complexa relaccedilatildeo tripla entre Secircneca Luciacutelio e noacutes o puacuteblico leitor eacute simplificada e mal representadardquo (the complex three-way relations between Seneca Lucilius andu s the Reading public is simplified and misrepresented)

[48]

a tematizaccedilatildeo da arte dialoacutegica nas epiacutestolas como sendo uma tentativa de retomar o dialogismo presente

no estudo da filosofia desde Platatildeo Ambas as abordagens destacando aspectos tatildeo fundamentais da

epistolografia de nosso autor acabam por evidenciar ainda uma lacuna a nosso ver natildeo menos importante

a falta de atenccedilatildeo sistemaacutetica a um aspecto imprescindiacutevel ao gecircnero epistolar Trata-se de uma lacuna que

de certa forma jaacute foi mencionada por Berno (2006 p 15) ldquoas intervenccedilotildees atribuiacutedas a Luciacutelio ndash que por sua

vez estatildeo ainda agrave espera de um estudo analiacuteticordquo 16 Em que medida esse aspecto das epiacutestolas senequianas

destoa do gecircnero ensaiacutestico ou reforccedila a jaacute tradicional aproximaccedilatildeo com as cartas eacute um ponto de que

pretendemos tratar Antes disso observaremos de que modo o leitor se apresenta no texto em apreccedilo

Interlocuccedilatildeo nas Epiacutestolas

Para uma melhor compreensatildeo da importacircncia da forma epistolar para a leitura ou recepccedilatildeo da obra

senequiana traremos alguns exemplos ressaltando a construccedilatildeo do interlocutor das Epiacutestolas Estamos

interessados na presente anaacutelise natildeo na construccedilatildeo do Luciacutelio-personagem-histoacuterico mas de um Luciacutelio-

leitor cuja atenccedilatildeo pode levar agrave compreensatildeo das Epiacutestolas17 sob uma oacutetica diferente Ora natildeo raro Secircneca

se dirige a seu interlocutor em suas epiacutestolas ldquoTalvez vocecirc venha perguntar o que estou fazendo eu que lhe

dou tais prescriccedilotildees Vou falar com vocecirc francamente [hellip]rdquo18 ou tambeacutem lsquosoacute quersquo vocecirc diz lsquoora quero folhear

(euoluere) esse livro ora aquelersquordquo19

Vemos que em passos desse teor Secircneca muitas vezes infere ou sugere o que Luciacutelio perguntaria em

determinado ponto da argumentaccedilatildeo da carta Poreacutem em outras passagens (Ep 21-4) podemos ler palavras

que o proacuteprio Luciacutelio (a nos fiarmos em Secircneca) teria escrito em outra carta ao seu amigo filoacutesofo Muitas

vezes como lemos na quarta epiacutestola do primeiro livro as palavras de Luciacutelio satildeo natildeo apenas citadas mas

tambeacutem corrigidas e em seguida utilizadas para a introduccedilatildeo de algum ensinamento ou novo assunto na

carta

Epistulas ad me perferendas tradidisti ut scribis amico tuo deinde admones me ne omnia cum eo ad te pertinentia communicem quia non soleas ne ipse quidem id facere ita eadem epistula illum et dixisti amicum et negasti Itaque si proprio illo uerbo quasi publico usus es et sic illum amicum uocasti (Ep 41 grifos nossos)

Vocecirc entregou conforme me escreve a um amigo seu as cartas para serem trazidas a mim em seguida vocecirc me adverte a natildeo conversar com ele sobre nada a seu respeito porque nem vocecirc mesmo tem o costume de fazer tal coisa Assim numa mesma carta vocecirc tanto disse

16 ldquoGli interventi attribuiti a Lucilio ndash che peraltro attendono ancora uno studio analiticordquo Em nosso Mestrado procuramos tratar natildeo apenas da intervenccedilatildeo atribuiacuteda a Luciacutelio como tambeacutem mais amplamente da construccedilatildeo e efeito da imagem desse destinataacuterio 17 Salvo outra indicaccedilatildeo o texto latino das epiacutestolas senequianas eacute citado da ediccedilatildeo de Reynolds (1965) 18 Interrogabis fortasse quid ego faciam qui tibi ista praecipio Fatebor ingenue (Ep 14) 19 Sed modo inquis hunc librum euoluere uolo modo illumrsquo (Ep 24)

[49]

como negou que ele eacute seu amigo Logo vocecirc empregou essa palavra que eacute especiacutefica feito uma geneacuterica

Esse ldquobate-papordquo eacute feito de pergunta e resposta esses diaacutelogos satildeo ora interrompidos ora continuados

dentro das cartas e entre as cartas Trata-se de um aspecto constante nas Epiacutestolas que ao nosso ver eacute

exatamente favorecido pelo gecircnero em que se inserem e que embora adotaacutevel por outros gecircneros eacute tiacutepico

de uma epiacutestola ndash essa ldquoconversa entre amigos ausentesrdquo (amicorum conloquia absentium)20 Para darmos mais

um exemplo na Ep 44 eacute reportada uma frase atribuiacuteda a Luciacutelio e logo em seguida Secircneca responde agrave

maneira dialoacutegica ldquolsquoEacute difiacutecilrsquo vocecirc diz lsquoconduzir o espiacuterito ao desprezo pela vidarsquo Mas vocecirc natildeo vecirc por quais

motivos fuacuteteis ela jaacute eacute menosprezadardquo21

Um modelo de diaacutelogo contiacutenuo entre Epiacutestolas temos nas cartas 7 e 8 Ambas comeccedilam com uma citaccedilatildeo de

pergunta de Luciacutelio22 Mas na carta 8 ele questionaria precisamente o ensinamento enviado na anterior

Perceber essas nuances tambeacutem eacute possiacutevel em razatildeo de se ter uma seacuterie epistolar que hoje assume-se se

encontra em ordem cronoloacutegica Trata-se de uma ordenaccedilatildeo privilegiada segundo Gibson (2012 p 62) jaacute

que da Antiguidade claacutessica temos outras coleccedilotildees epistolares ordenadas por outros criteacuterios que natildeo o

cronoloacutegico23

Nas cartas senequianas Luciacutelio se mostra tambeacutem um leitor ativo ie natildeo passivo aos ensinamentos do

filoacutesofo estoico ldquolsquoEnviersquo vocecirc diz lsquotambeacutem para noacutes as ideias mais eficazes que vocecirc tiver experimentadorsquordquo24

Podemos pois da passagem senequiana em apreccedilo depreender a expectativa de um leitor ativo de um leitor

que jaacute chega a seu mestre com questionamentos e observaccedilotildees algueacutem intencionado a aprender Nesse

sentido segundo o trecho a seguir Secircneca sugere que Luciacutelio aprimora os aprendizados ao expressaacute-los

melhor

Hunc sensum a te dicis non pauco melius et adstrictius menini lsquonon es tuum fortuna quod fecit tuumrsquo (Ep 810 grifos nossos)

Lembro-me de que vocecirc mesmo expressa esta ideia de um modo que natildeo eacute pouco melhor e mais conciso ldquoNatildeo eacute teu o que a fortuna fez teurdquo

20 A definiccedilatildeo se encontra em Ciacutecero (Fil 274) 21 lsquoDifficile estrsquo inquis lsquoanimum perducere ad contemptionem animaersquo Non uides quam ex friuolis causis contemnatur (Ep 44) 22 ldquoVocecirc pergunta o que julgar que se deva evitar acima de tudo A multidatildeordquo (Quid tibi uitandum praecipue existimes quaeris Turbam Ep 71) ldquoVocecirc diz ldquoVocecirc me manda evitar a multidatildeo afastar-me e ficar contente em minha consciecircnciardquo (lsquoTu mersquo inquis lsquouitare turbam iubes secedere et conscientia esse contentum Ep 81) 23 Sobre a ordenaccedilatildeo das Epiacutestolas e tambeacutem de outras coleccedilotildees epistolares latinas na antiguidade cf Gibson (2012) O estudioso em seu artigo primoroso considera as coleccedilotildees de epiacutestolas de Ciacutecero Secircneca Pliacutenio o Jovem Frontatildeo Siacutemaco e Ambroacutesio Agostinho Jerocircnimo Paulino de Nola e de Sidocircnio Apolinaacuterio Em suma o autor chama a comunidade cientiacutefica para uma urgente ldquodesfamiliarizaccedilatildeo das coleccedilotildees epistolograacuteficas antigasrdquo Isso porque o leitor moderno frequentemente equipara as cartas antigas a uma biografia quase que a uma autobiografia Poreacutem com exceccedilatildeo de Ciacutecero e Secircneca nenhum dos demais autores acima citados tem suas coleccedilotildees ordenadas por criteacuterios cronoloacutegicos haacute outros como a organizaccedilatildeo por tema (Jerocircnimo eacute um exemplo) ou por destinataacuterio (Pliacutenio o Jovem) 24 lsquoMittersquo inquis lsquoet nobis ista quae tam efficacia expertus esrsquo (Ep 64)

[50]

Jaacute no segundo livro haacute algumas especificaccedilotildees sobre a maneira de escrever de Luciacutelio e sobre sua evoluccedilatildeo

e aprendizado como leitor de Secircneca ldquoVocecirc ndash e eu sei disso Luciacutelio vecirc claramente que ningueacutem pode ter uma

vida feliz e nem toleraacutevel sem o amor pela sabedoriardquo25 Ademais mais adiante na troca epistolar a carta 34

ndash que jaacute foi alvo de muitas discussotildees pela ceacutelebre frase ldquoOpus mihi esrdquo (ldquovocecirc [ie Luciacutelio] eacute minha obrardquo Ep

342)26 ndash tambeacutem conteacutem referecircncias agrave interlocuccedilatildeo entre os missivistas por meio da escrita e leitura das

cartas

Cresco et exulto et discussa senectute recalesco quotiens ex iis quae agis ac scribis intellego quantum te ipse ndash nam turbam olim reliqueras ndash superieceris (Ep 341)

Cresccedilo e exulto e tendo-me desprendido da velhice reanimo-me todas as vezes em que age como escreve entendo o quanto impeliu a si mesmo pois anteriormente vocecirc jaacute se havia retirado da multidatildeo

Segundo Wilson as Epiacutestolas Morais individualmente natildeo tecircm uma forma narrativa nem mesmo se lidas em

seacuterie como uma coleccedilatildeo Isso porque em seu entender natildeo tecircm narrador haacute poucas accedilotildees narradas e

muitas interrupccedilotildees da continuidade Poreacutem o estudioso ressalta

mas ler as cartas senequianas de uma certa forma eacute anaacutelogo ao que se experimenta ao ler um romance epistolar Elas contam uma histoacuteria de uma relaccedilatildeo crescente entre o escritor e o recipiente e da progressiva profundidade e a resoluccedilatildeo da filosofia de ambos (WILSON 2001 p 185)

Ora diz-se que nos Ensaios podemos perceber uma pintura de si (STAROBINSKY 2011 p 19) Se nos

servirmos da mesma imagem trata-se de mais uma aproximaccedilatildeo entre os gecircneros Isso porque nas Epiacutestolas

haacute efetivamente um retrato Contudo diferente do ensaio em geral retrata-se em geral a interlocuccedilatildeo entre

os missivistas esta natildeo eacute uniacutevoca e linear mas pode ser depreendida por meio de uma anaacutelise sistemaacutetica

das intervenccedilotildees atribuiacutedas a Luciacutelio ou mais em geral ao leitor

Conclusatildeo

Ao trazermos trechos de cartas do primeiro ateacute o quarto livro (Ep 34) estamos longe do fim do epistolaacuterio

pois a obra senequiana que chegou ateacute noacutes eacute composta por 124 epiacutestolas Poreacutem ao nos fiarmos na referida

carta 34 Luciacutelio jaacute progrediu o suficiente para ser admirado Monica Natali (2000 p 684-685) ao discorrer

sobre os destinataacuterios das Epiacutestolas Morais faz trecircs distinccedilotildees entre os possiacuteveis destinataacuterios das cartas

Luciacutelio os poacutesteros (Ep 82 e Ep 213-5) e por fim o proacuteprio Secircneca27 Haacute quem como faz Natali (2000) para

25 Liquere hoc tibi Lucili scio neminem posse beate uiuere ne tolerabiliter quidem sine sapientae studio (Ep 161) 26 A passagem jaacute foi discutida por Mazzoli (1989 p 1855) Rolim de Moura (2015 p 288) Edwards (1997 p 30) e Schafer (2011 p 45) 27 Eacute preciso ressaltar que a apreensatildeo de um efetivo diaacutelogo entre os missivistas natildeo eacute consensual Segundo Natali Luciacutelio torna-se um mero espectador de um soliloacutequio do filoacutesofo a Ep 5 seria um exemplo disso Essa visatildeo que nosso estudo natildeo corroborou ateacute o momento seraacute discutida no aprofundamento de nosso Mestrado

[51]

explicar o uacuteltimo ponto afirme que Luciacutelio se torna um mero espectador de um soliloacutequio do filoacutesofo Contra

essa abordagem pode-se natildeo apenas lembrar de passos como os que acima aventamos como tambeacutem

lembrar que por mais que muitas vezes Luciacutelio natildeo seja nem sequer mencionado no texto as proacuteprias cartas

natildeo existiriam sem sua imagem pois que precisamente natildeo seriam cartas

A afirmaccedilatildeo acima citada de Starobinsky (2011 p 19) sobre o ensaio ser uma ldquopintura de sirdquo lembra-nos de

uma imagem senequiana presente nas epiacutestolas 9 e 34 a de um artista elaborando sua obra Em nossa anaacutelise

percebemos de fato a elaboraccedilatildeo de um leitor que enquanto lecirc eacute representado citado interpelado e

elogiado trata-se de um leitor que pergunta critica argumenta Ora embora o aspecto inceptivo seja

efetivamente um importante aspecto comum ao gecircnero ensaiacutestico e ao gecircnero epistolar essa primeira

apreciaccedilatildeo das cartas nos indica que nelas tal aspecto eacute guiado por um processo muacuteltiplo de leitura que a

cada uma se re-instaura (FOWLER 1997 p 16) Luciacutelio eacute pois um leitor que estaacute sendo esculpido e pintado

a cada epiacutestola um leitor que pode ser silenciado ou ignorado em abordagens que natildeo levem em conta o

gecircnero epistolar com o qual afinal o autor escolheu escrever a uacuteltima obra que deixou agrave posteridade

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Diaacutelogos entre a gratiarum actio de Pliacutenio e o Panegiacuterico a Teodoacutesio de Pacato Drepacircnio

Kaacutetia Regina Giesen

katiagiesengmailcom

Este estudo propotildee examinar a recepccedilatildeo do texto da gratiarum actio

de Pliacutenio a Trajano no panegiacuterico a Teodoacutesio de Pacato Drepacircnio

com o objetivo de demonstrar como o diaacutelogo entre esses textos

participa do processo de constituiccedilatildeo de um gecircnero laudatoacuterio

proacuteprio do periacuteodo imperial o panegiacuterico latino Como primeiro

texto da coleccedilatildeo composta por outros onze panegiacutericos e o mais

antigo dentre eles o discurso de Pliacutenio eacute considerado modelar para

os demais e representa um novo tipo de oratoacuteria para Roma natildeo

apenas por seu contexto de realizaccedilatildeo na presenccedila do princeps

mas por seu caraacuteter simultaneamente elogioso e aconselhador

Com a metade da extensatildeo do texto pliniano o discurso de Pacato

apresenta uma estrutura argumentativa tanto na ordem e tipos

dos argumentos quanto nas figuras utilizadas quase

completamente anaacuteloga ao seu predecessor Se como afirma

Ciacutecero (Brut 163) a doutrina oratoacuteria pode ser extraiacuteda natildeo apenas

dos tratados mas tambeacutem dos discursos deixados por um orador a

imitaccedilatildeo estrutural temaacutetica e estiliacutestica feita por Pacato confirma

a praacutetica pliniana como principal registro de uma concepccedilatildeo latina

sobre o elogio agrave eacutepoca imperial que se consolida a partir do seacutec II

[54]

Afirmar a influecircncia do Panegiacuterico de Pliacutenio o Jovem a Trajano (100 dC)1 sobre algum dos discursos que

compotildeem o conjunto de panegiacutericos tardios conhecido como XII Panegyrici Latini (seacutec III-IV)2 natildeo eacute nem uma

novidade mdash uma vez que esse tem sido um tema debatido por estudiosos tanto da obra pliniana quanto dos

textos advindos da Antiguidade Tardia3 mdash nem uma tarefa simples dado que essa influecircncia natildeo eacute sempre

facilmente identificaacutevel4 Por outro lado as formas de interaccedilatildeo entre esses textos eacute muacuteltipla pois conforme

destacam Gibson e Rees (2013 p 154) ldquocomo modelo o Panegiacuterico poderia operar em um ou mais de vaacuterios

niacuteveis lexical retoacuterico estiliacutestico geneacuterico intelectual e ideoloacutegicordquo5 o que amplia as formas possiacuteveis de

leitura comparativa desses textos para aleacutem de uma intertextualidade mais restrita

Em vista dessa complexidade eacute proposto neste breve estudo o exame de alguns aspectos da recepccedilatildeo do

texto da gratiarum actio de Pliacutenio a Trajano em apenas um desses escritos elogiosos posteriores o panegiacuterico

a Teodoacutesio de Pacato Drepacircnio Tal proposta tem o objetivo de demonstrar como o diaacutelogo entre eles

participa do processo de constituiccedilatildeo de um gecircnero laudatoacuterio proacuteprio do periacuteodo imperial o panegiacuterico

latino especificamente em uma vertente laudatoacuteria pliniana Considerando as diversas possibilidades de

leitura jaacute mencionadas esta discussatildeo se concentra em observar como satildeo apropriados pelos autores dois

1 Conhecido desde o seacutec V dC (Sid Apoll Epist 8103) sob o nome de Panegiacuterico ade Trajano ou simplesmente Panegiacuterico essa obra eacute o resultado de uma gratiarum actio um discurso de agradecimento pronunciado por Pliacutenio ao Senado romano em setembro do ano 100 dC quando o orador foi nomeado consul suffectus Embora a ocasiatildeo tivesse como caracteriacutestica principal a gratidatildeo ao imperador o discurso pliniano se configura mormente como um elogio agraves virtudes e accedilotildees de Trajano que havia assumido o poder dois anos antes 2 Em 1433 foi descoberto em Mainz por Johannes Aurispa um manuscrito contendo o discurso de Pliacutenio e mais onze composiccedilotildees encomiaacutesticas oficiais de autoria diversa mdash algumas anocircnimas mas todas originaacuterias de escolas gaulesas de retoacuterica mdash e destinadas a diferentes imperadores que governaram entre os seacuteculos III e IV Nixon e Rodgers (1994 p 4) informam que esse manuscrito foi perdido poreacutem o conjunto foi preservado por coacutepias remanescentes e ficou conhecido desde entatildeo como XII Panegyrici Latini Para ediccedilotildees e comentaacuterios sobre eles cf Galletier (1949) Nixon e Rodgers (1994) e Rees (2012) 3 Garciacutea-Ruiz (2013 p 195) destaca a existecircncia de certa tradiccedilatildeo comeccedilada por Boissier (1984) em se considerar que os discursos elogiosos tardios possuiacuteam como modelo principal tanto em termos temaacuteticos quanto estruturais apenas o texto pliniano Para Pichon (1906 p 209-291) o posicionamento do discurso de Pliacutenio no iniacutecio da coleccedilatildeo torna inescapaacutevel a comparaccedilatildeo entre o elogio a Trajano e os demais Tambeacutem Klotz (1911 p 535) enumera uma seacuterie de ecos textuais entre os doze discursos Com o objetivo de fazer repensar essa posiccedilatildeo original estaacutetica e modelar do Panegiacuterico de Pliacutenio poreacutem Nixon e Rodgers (1994 p 3) destacam a existecircncia de uma tradiccedilatildeo de discursos elogiosos desde os tempos da Repuacuteblica e afirmam que ldquoO Panegiacuterico de Pliacutenio apenas aconteceu de ser o primeiro desses discursos que sobreviveurdquo (ldquoPlinyrsquos Panegyricus merely happens to be the first of such speeches to have survivedrdquo) Ainda sobre a complexidade dessas relaccedilotildees cf Rees (2011) Gibson Rees (2013) Henderson (2013) Gibson (2013) e Kelly (2015) 4 Rees (2011 p 183) argumenta que a influecircncia do texto pliniano nos panegiacutericos posteriores eacute de difiacutecil demonstraccedilatildeo pois natildeo haacute um processo de referecircncia ou intertextualidade expliacutecito O nome de Pliacutenio por exemplo natildeo eacute aludido por nenhum dos panegiristas tardios Similarmente Garciacutea-Ruiz (2013 p 196) observa que apenas o texto de Pacato (389 dC) segundo da coleccedilatildeo e o de Claacuteudio Marmentino (362 dC) posicionado como terceiro apresentam exemplos mais abundantes de ideias e expressotildees derivadas do elogio de Pliacutenio a Trajano Os outros nove textos da coleccedilatildeo apresentam de acordo com a analista um interesse variado poreacutem bastante mais limitado por essas formas de referenciar 5 ldquoas a model the Panegyricus could operate on one or more of several levels lexical rhetorical stylistic generic intellectual and ideologicalrdquo

[55]

temas principais fortemente interligados a construccedilatildeo discursiva da sinceridade nos contextos

encomiaacutesticos e o recurso da comparaccedilatildeo como ferramenta textual e argumentativa

O breve conjunto de reflexotildees que seraacute desenvolvido no decorrer deste ensaio possui uma dupla motivaccedilatildeo

De um lado ele participa de uma discussatildeo de nota de rodapeacute iniciada durante o desenvolvimento de um

artigo ainda em processo de publicaccedilatildeo escrito em coautoria com Natan Henrique Taveira Baptista sobre

as estruturas epidiacuteticas e as relaccedilotildees poliacuteticas no texto do panegiacuterico de Pacato Drepacircnio De outro mdash e na

verdade como consequecircncia da primeira mdash elas integram uma parte ainda natildeo completamente consolidada

da tese de doutorado em andamento em que se buscaraacute demonstrar que a praacutetica pliniana eacute o principal

registro de uma concepccedilatildeo teoacuterico-praacutetica latina sobre o elogio agrave eacutepoca imperial (para qual natildeo haacute em latim

textos teoacutericos contemporacircneos) e que se consolida como modelo a partir do seacutec II influenciando os

panegiristas posteriores Por isso os comentaacuterios realizados neste trabalho destacam os elementos

relacionados agrave sinceridade e agrave comparaccedilatildeo como sinalizadores de uma reflexatildeo em certo niacutevel

metadiscursiva a respeito da constituiccedilatildeo dos textos encomiaacutesticos ou seja eles satildeo interpretados

sobretudo no texto de Pliacutenio como indiacutecios de uma teorizaccedilatildeo sobre o proacuteprio panegiacuterico como gecircnero

Desse modo sua apariccedilatildeo e uso por Pacato configuram uma confirmaccedilatildeo dessas estruturas como

constituintes do gecircnero em desenvolvimento e do papel de Pliacutenio como principal modelo no contexto

imperial6

Embora haja um intervalo de quase trecircs seacuteculos entre o pronunciamento em setembro de 100 do

agradecimento de Pliacutenio em honra de Trajano e da realizaccedilatildeo em 389 do panegiacuterico de Pacato Drepacircnio ao

imperador Teodoacutesio haacute uma diversidade de fatores contextuais e cotextuais que fazem com que uma leitura

comparativa ou paralela entre eles seja quase inevitaacutevel Os paralelos entre esses dois discursos tecircm iniacutecio

na proacutepria conformaccedilatildeo de sua tradiccedilatildeo manuscrita uma vez que o conjunto dos Panegyrici Latini chegou ateacute

a atualidade em uma ordem natildeo cronoloacutegica de modo que o elogio a Teodoacutesio mesmo sendo temporalmente

o uacuteltimo ou seja o mais recente eacute alocado como segundo do conjunto logo apoacutes o texto de Pliacutenio que eacute

mantido nessa posiccedilatildeo inicial independentemente da cronologia7 Essa disposiccedilatildeo foi estabelecida muito

6 Natildeo se nega a presenccedila e a importacircncia dos textos de Ciacutecero sobretudo Pro Marcello e Pro lege Manilia ou mesmo do De clementia de Secircneca como modelos encomiaacutesticos que podem ter influenciado na constituiccedilatildeo do panegiacuterico latino como gecircnero retoacuterico (cf Nixon Rodgers 1994 p 1-4 Pernot 2005 p 171-181 Gibson 2011 p 105 Braund 2012) Todavia defendemos a especificidade da influecircncia pliniana dados os contextos condiccedilotildees e recursos especiacuteficos envolvidos na produccedilatildeo de seu discurso 7 De acordo com a disposiccedilatildeo dos manuscritos o primeiro discurso eacute o de Pliacutenio seguido pelo panegiacuterico de Pacato de Claacuteudio Mamertino de Nazaacuterio de alguns cujos autores satildeo desconhecidos e de Eumecircnio Com o objetivo de tornar mais clara a observaccedilatildeo e referecircncia do conjunto a criacutetica moderna buscou estabelecer uma ordem cronoloacutegica entre esses textos e com isso uma dupla numeraccedilatildeo foi proposta como convenccedilatildeo mais comum para as obras acadecircmicas (Rees 2012 p 23) os nuacutemeros colocados fora de parecircnteses ou colchetes indicam a ordem transmitida pela Antiguidade enquanto os nuacutemeros usados entre parecircnteses ou colchetes referem a posiccedilatildeo do texto cronologicamente estabelecida na antologia (cf Rees 2017 p 313-314)

[56]

provavelmente pelo proacuteprio Pacato Drepacircnio8 que ao fazecirc-lo natildeo apenas reafirma o texto de Pliacutenio como o

mais antigo da coleccedilatildeo mas tambeacutem o indica como o principal modelo para o gecircnero dos panegiacutericos latinos

posteriores9 Nessa mesma linha de raciociacutenio portanto o texto de Pacato seria o segundo mais importante

e por isso a ideia de uma comparaccedilatildeo e mesmo disputa entre os dois textos ganha mais forccedila A posiccedilatildeo de

segundo entre os panegiacutericos pode ser notada tambeacutem na proacutepria extensatildeo do discurso Com pouco menos

da metade de capiacutetulos que conteacutem o panegiacuterico pliniano que eacute o mais extenso da antologia o texto de

Pacato eacute entre os tardios o com maior nuacutemero de capiacutetulos

Outras semelhanccedilas entre os textos de Pliacutenio e Pacato podem ser encontradas nas condiccedilotildees gerais de sua

produccedilatildeo e pronunciamento Ambos os panegiristas por exemplo ascenderam na carreira puacuteblica sob

imperadores anteriores agravequeles que foram elogiados em seus discursos ambos fazem loas a priacutencipes

originaacuterios da Hispacircnia e ambos recebem novos cargos administrativos de importacircncia apoacutes realizarem seus

discursos laudatoacuterios10 (REES 2013 p 242-243) Desses aspectos talvez o mais importante seja a

percepccedilatildeo de que tanto Pliacutenio quanto Pacato elogiam em Roma imperadores que acabaram de ascender ao

poder em um contexto conturbado mas ambos os oradores jaacute estavam razoavelmente consolidados como

figuras puacuteblicas o que implica uma ascensatildeo pregressa desses oradores sob governantes discursivamente

opostos aos que agradecem e elogiam11 Pliacutenio louva Trajano que assumiu o comando sobre o impeacuterio em

98 dois anos apoacutes do assassinado de seu antecessor12 e antagonista Domiciano uacuteltimo dos imperadores

flavianos Pacato elogia Teodoacutesio que havia vencido no ano anterior o usurpador Magno Maacuteximo pelo

domiacutenio das Gaacutelias13

No que se refere ao contexto especiacutefico de recitaccedilatildeo desses discursos tambeacutem alguns paralelos podem ser

encontrados O panegiacuterico de Pliacutenio foi pronunciado no Senado estando Trajano presente como forma de

agradecimento pelo consulado recebido pelo orador Tais circunstacircncias satildeo referidas ao longo do proacuteprio

texto Pliacutenio caracteriza sua fala como um discurso de agradecimento em diferentes momentos (cf Pan 11

41 903) e se dirige diretamente aos senadores desde o iniacutecio quando afirma ldquoBem e sabiamente pais

8 Tal hipoacutetese eacute elencada por Pichon (1906 p 290-291) e permanece de acordo com Gibson e Rees (2013 p 218 nota 6) validada pela criacutetica posterior 9 Para Galletier (1949 pvii) le modegravele du genre para Roger Rees (2013 p 242) o primus o megaacutelito o imoacutevel 10 Tal ascensatildeo pode ser um dos indicativos do sucesso dos textos laudatoacuterios que eles apresentaram a seus governantes Apoacutes a entrega de sua laudatio as conexotildees com Ausocircnio e sua condiccedilatildeo de orador levaram Pacato a receber o proconsulado da Aacutefrica em 390 e tornar-se comes rei privatae em 393 (NIXON RODGERS 1994 p 439) Pliacutenio por sua vez que assumia o cargo de cocircnsul em 100 se manteve atuante em diferentes causas e tornou-se por volta de 110 governador da Bitiacutenia 11 Sobre os paradoxos da ascensatildeo pliniana sob Domiciano cf Kelly (2015 p 229) e Whitton (2015) Sobre a posiccedilatildeo de Pacato como parte dos comites de Maacuteximo cf Sordi (2002 p 315) 12 Natildeo se trata nesse caso de um antecessor direto uma vez que apoacutes o assassinato de Domiciano Nerva assumiu o poder poreacutem durante um periacuteodo bastante curto 13 A declamaccedilatildeo do panegiacuterico de Pacato ocorreu no momento da volta de Teodoacutesio agrave capital Roma para oficializar a posse das Gaacutelias ocupadas por Magno Clemente Maacuteximo que havia usurpado o poder sobre o Impeacuterio Romano ocidental desde 383 ateacute agosto de 388 quando foi derrotado por Teodoacutesio (KELLY 2015 p 215-217)

[57]

conscritos nossos antepassados instituiacuteram que deveriacuteamos iniciar com preces os discursos []rdquo (Plin Pan

11 Grifo nosso)14 Tambeacutem o imperador eacute referido em segunda pessoa ao longo do discurso como ocorre

em Pan 43 ldquoNos dois casos Ceacutesar Augusto ages com moderaccedilatildeo mdash tanto ao natildeo permitir que te demos

graccedilas em outro lugar quanto ao permitirrdquo15 O texto de Pacato por sua vez foi declamado na presenccedila de

senadores e do consilium do imperador (formado por altos membros da elite oficiais de alto escalatildeo e

comandantes militares) como parte das festividades triunfais de Teodoacutesio Tal contexto imediato tambeacutem eacute

anunciado ainda nos primeiros paraacutegrafos do discurso momento em que o orador busca pela exposiccedilatildeo de

sua modeacutestia captar a benevolecircncia de sua audiecircncia

Se houve um dia algueacutem Imperador Augusto que prestes a falar justamente tenha tremido em tua presenccedila por certo este sou eu e natildeo soacute eu mesmo o sinto mas tambeacutem vejo que assim pode parecer a estes que participam do teu conselho [] Para caacute veio o senado como ouvinte a quem por causa do amor em ti com o qual ele foi dotado eacute difiacutecil satisfazer a respeito de ti [hellip] (Pan Lat 2[12]12-3)16

Nesse caso se pode pensar que eacute como se Pacato observasse a si mesmo em uma conjuntura tanto de

produccedilatildeo quanto de recepccedilatildeo bastante proacutexima daquela em que se encontrava Pliacutenio e portanto recorresse

a muitos dos recursos discursivos desse seu predecessor assim como a estruturas lexicais frasais e mesmo

certos posicionamentos poliacuteticos (REES 2013 p 246) Para Gibson (2013 p 219) por exemplo a

justaposiccedilatildeo dos textos de Pliacutenio e Pacato natildeo evoca apenas e necessariamente um paralelo retoacuterico em

termos estruturais ou textuais em um sentido mais estrito Para o analista em concordacircncia com Garcia-Ruiz

(2013 p 205-215) essa sequecircncia suscita tambeacutem a comparaccedilatildeo entre os imperadores tardios e a figura

imperial de Trajano razatildeo pela qual algumas estrateacutegias discursivas tambeacutem satildeo imitadas

Diante desse quadro relativo agrave ascensatildeo de novos governantes o primeiro elemento de aproximaccedilatildeo entre

os dois discursos laudatoacuterios eacute a urgecircncia de ambos em declarar sua sinceridade logo no iniacutecio de sua

declamaccedilatildeo A aplicaccedilatildeo de teacutecnicas para o efeito de sinceridade eacute para Bartsch (1994 p 149) talvez o

principal aspecto do texto pliniano classificaacutevel pela autora como uma verdadeira obsessatildeo17 Embora para

Bartsch (1994) esse seja na verdade um indiacutecio de que nenhuma sinceridade eacute mais possiacutevel nos louvores

defendemos que o uso de tal recurso tem como finalidade a criaccedilatildeo discursiva de um novo campo para o

exerciacutecio do epidiacutetico pois o panegirista afirma apresentar diante de Trajano uma forma renovada de

discursos de agradecimento Nesse contexto Pliacutenio suplica a Juacutepiter da seguinte maneira ldquo[] que meu

14 ldquoBene ac sapienter patres conscripti maiores instituerunt ut rerum agendarum ita dicendi initium a precationibus capererdquo (Plin Pan 11) Todas as traduccedilotildees do Panegiacuterico citadas neste texto satildeo de autoria de Lucas Lopes Giron 15 ldquoVtrumque Caesar Auguste moderate et quod alibi tibi gratias agi non sinis et quod hic sinisrdquo (Plin Pan 43) 16 ldquoSi quis umquam fuit imperator Auguste qui te praesente dicturus iure trepidaverit eum profecto me esse et ipse sentio et his qui consilium tuum participant videri posse viacutedeo [] Huc accedit auditor senatus cui cum difficile sit pro amore quo in te praeditus est de te satis fieri []rdquo (Pan Lat 2[12]11-3) Todas as traduccedilotildees do texto de Pacato Drepacircnio satildeo de nossa autoria 17 ldquo[] a obsessatildeo do Panegiacuterico com as teacutecnicas de sinceridaderdquo [hellip] the Panegyricus obsession with the techniques of sincerityrdquo (BARTSCH 1994 p 149)

[58]

discurso seja digno de um cocircnsul digno do senado e digno do priacutencipe que em tudo o que for dito por mim

conste a liberdade a sinceridade e a verdade e que meu agradecimento esteja tatildeo distante da aparecircncia de

adulaccedilatildeo quanto estaacute de sua necessidaderdquo (Plin Pan 16)18

A primeira caracteriacutestica desse discurso eacute portanto a franqueza de suas palavras as quais o orador suplica

aos deuses que sejam primeiramente compatiacuteveis com sua condiccedilatildeo de cocircnsul com o senado e com o

priacutencipe19 e que sejam confirmadas pela verdade (veritas) pelo compromisso (fides) e pela liberdade (libertas)

A tal pedido o orador acrescenta que deseja que elas natildeo sejam interpretadas como adulaccedilatildeo algo que como

enfatiza Taacutecito (Hist 1112) conteacutem em si ldquoo vergonhoso crime de servidatildeordquo20 Nesse contexto importa

destacar que o panegirista quer afastar natildeo a adulaccedilatildeo em si mas a aparecircncia dela mdash species adulationis mdash

expressatildeo que denota natildeo a possibilidade de que o elogio seja de fato concebido como lisonja vazia ao

imperador mas que ele poderia ser assim mal interpretado pelos ouvintes

Para reforccedilar seu argumento Pliacutenio destaca que esse afastamento deve ser proporcional a sua falta de

necessidade expressatildeo que denota um elogio natildeo forccedilado pelo imperador mas realizado de boa vontade

pelo panegirista21 Desse modo Pliacutenio busca afirmar seu discurso como louvor sincero ante os deuses o

senado e o imperador isso porque os tempos satildeo outros livres como afirma logo em seguida

Quanto a mim penso que natildeo somente o cocircnsul mas todos os cidadatildeos devem se esforccedilar para natildeo dizer do nosso priacutencipe aquilo que pareccedila poder ser dito de outro Que saiam e afastem-se entatildeo aquelas palavras que o medo forccedilava Natildeo digamos nada como antes pois nada sofremos como antes Nem falemos em puacuteblico sobre o priacutencipe o mesmo que antes pois natildeo falamos em particular o mesmo que antes Que a mudanccedila dos tempos seja manifesta pelos nossos discursos e que se entenda a partir do proacuteprio modo do agradecimento quem e em que momento acontecem Que em nada como um deus que em nada como uma divindade o louvemos Pois natildeo falamos de um tirano mas de um cidadatildeo natildeo falamos de um amo mas de um pai (Plin Pan 21-3 Grifos nossos)22

De acordo com essa linha de raciociacutenio quanto mais a audiecircncia e o proacuteprio priacutencipe concordarem com a

liberdade do periacuteodo mais sincero e verdadeiro eacute o elogio De outra maneira interpretar o discurso de

18 ldquo[] ut mihi digna consule digna senatu digna principe contingat oratio utque omnibus quae dicentur a me libertas fides ueritas constet tantumque a specie adulationis absit gratiarum actio mea quantum abest a necessitaterdquo 19 Tais personagens colocados nessa ordem frasal enfatizam a importacircncia das instituiccedilotildees republicanas ao longo de todo agradecimento realizado por Pliacutenio 20 ldquoquippe adulationi foedum crimen servitutis [] inestrdquo (Taacutec Hist 1112) 21 O restante do trecho do panegiacuterico trata do mesmo assunto A caracterizaccedilatildeo desse discurso como livre tambeacutem eacute feita por Pliacutenio em uma das cartas em que comenta o processo de revisatildeo e reescrita do agradecimento a Trajano na qual afirma que seu discurso mereceu uma versatildeo escrita (scribitur) natildeo por ter sido elaborado com mais habilidade oratoacuteria (eloquentius) mas sim porque mais livremente (liberius) e de mais boa vontade (Plin Ep 3183) 22 ldquoEquidem non consuli modo sed omnibus ciuibus enitendum reor ne quid de priacutencipe nostro ita dicant ut idem illud de alio dici potuisse uideaturQuare abeant ac recedant uoces illae quas metus exprimebat Nihil quale ante dicamus nihil enim quale antea patimur nec eadem de principe palam quae prius praedicemus neque enim eadem secreto quae prius loquimur Discernatur orationibus nostris diuersitas temporum et ex ipso genere gratiarum agendarum intellegatur cui quando sint actae Nusquam ut deo nusquam ut numini blandiamur non enim de tyranno sed de ciue non de domino sed de parente loquimurrdquo

[59]

agradecimento como falso ou bajulaccedilatildeo servil implica acusar o novo governo de tirania23 Tal ideia eacute

confirmada pela oposiccedilatildeo entre ldquoantesrdquo e ldquoagorardquo e pela afirmaccedilatildeo de que a mudanccedila dos tempos eacute

manifestada por meio de um tipo novo de elogios24 Nesse contexto o segundo principal recurso do

panegiacuterico de Pliacutenio (que seraacute discutido mais longamente ainda neste trabalho) eacute a comparaccedilatildeo a partir da

qual a ideia mesma de sinceridade pode ser construiacuteda Os elementos constituintes desse confronto satildeo

tambeacutem sumarizados ainda nesse trecho inicial De um lado seraacute louvado Trajano como figura de cidadatildeo e

de pai de outro seraacute vituperado Domiciano descrito como tirano25

Em um trecho que pode ser classificado como algo entre paraacutefrase siacutentese ou glosa das ideias de Pliacutenio

Pacato ainda nos primeiros paraacutegrafos do elogio afirma que

E tambeacutem isto me impeliu a discursar porque ningueacutem obrigava que eu discursasse de fato natildeo mais o louvor forccedilado e as vozes pressionadas pelo medo livravam do perigo do silecircncio Que seja passada e afastada aquela triste obrigaccedilatildeo de eloquecircncia servil quando a aprovaccedilatildeo mentirosa afagava um tirano truculento que cativava toda celebridade dos aplausos puacuteblicos com uma popularidade vazia quando faziam agradecimentos os sofredores e natildeo ter elogiado o tirano se classificava como acusaccedilatildeo de tirania Haacute agora igual liberdade para falar e silenciar e eacute tatildeo seguro louvar abertamente o priacutencipe quanto ter silenciado sobre ele (Pan Lat 2[12]22-4 Traduccedilatildeo e grifo nossos)26

Como pode ser notado a ligaccedilatildeo intertextual mais evidente entre os dois discursos estaacute na sentenccedila que

menciona um tipo de louvor anterior que era compelido pelo medo Em ambas as passagens satildeo utilizados

os mesmos vocaacutebulos ainda que em ordem e formas diferentes ldquonon enim iam coacta laudatio et expressae

metu voces periculum silentii redimuntrdquo (Pan Lat 2[12]22) e ldquoQuare abeant ac recedant uoces illae quas metus

exprimebatrdquo (Plin Pan 21) Todavia a mesma seacuterie de ideias utilizada nos paraacutegrafos iniciais de Pliacutenio eacute

aplicada nesse trecho de Pacato

Em primeiro lugar estaacute o argumento de que o elogio natildeo eacute coagido pela forccedila poliacutetica do imperador mas

impulsionado pela proacutepria liberdade de dizer Em segundo a menccedilatildeo ao afastamento de uma eloquecircncia

servil legada a tempos anteriores marcados justamente pela ausecircncia de autonomia (Pan Lat 2[12]23 Plin

Pan 16) Nesses dois aspectos Pacato ao mesmo tempo parafraseia e sintetiza as teses elencadas por Pliacutenio

Em terceiro lugar eacute identificaacutevel a menccedilatildeo agrave figura do tirano com a qual por consequecircncia o elogiado deveraacute

23 Sobre essa atribuiccedilatildeo da responsabilidade interpretativa agrave audiecircncia cf Bartsch (1994 p 160-161) 24 De acordo com Christopher Kelly (2015 p 226) essa antiacutetese entre o periacuteodo anterior e o vigente eacute um dos dispositivos estruturais mais importantes de Pliacutenio 25 Nessa passagem nenhuma pessoa em particular eacute citada diretamente todavia a menccedilatildeo a ldquoum deusrdquo e em seguida a ldquoum amordquo remete agrave figura de Domiciano uma vez que dominus et deus eacute um tiacutetulo comumente atribuiacutedo a ele Sobre as evidecircncias dessas denominaccedilotildees cf Jones (1992 p 107-109) 26 ldquoQuin et illud me impulit ad dicendum quod ut dicerem nullus adigebat non enim iam coacta laudatio et expressae metu voces periculum silentii redimunt Fuerit abieritque tristis illa facundiae ancillantis necessitas cum trucem dominum auras omnes plausuum publicorum ventosa popularitate captantem mendax adsentatio titillabat cum grates agebant dolentes et tyrannum non praedicasse tyrannidis accusatio vocabatur Nunc par dicendi tacendique libertas et quam promptum laudare principem tam tutum siluisse de principerdquo

[60]

ser contraposto Por fim Pacato reafirma a franqueza de suas palavras por meio do argumento de que o

silecircncio natildeo eacute mais interpretado como traiccedilatildeo por isso poderia calar-se mas escolheu o fazer Nesses dois

uacuteltimos argumentos ideias que estavam presentes natildeo apenas no comeccedilo mas ao longo da gratiarum actio a

Trajano satildeo de certo modo desenvolvidas jaacute de iniacutecio no texto dedicado a Teodoacutesio A caracterizaccedilatildeo do

governante anterior como tirano truculento e sanguinaacuterio por exemplo ocorre em diferentes momentos ao

longo do texto pliniano (Plin Pan 204-6 483-5) enquanto a ponderaccedilatildeo sobre o silecircncio eacute feita na segunda

metade do discurso (Plin Pan 531-3)27

Natildeo se trata nesse caso de afirmar que Pacato se apoiou uacutenica e exclusivamente no texto de Pliacutenio ou que

natildeo modificou e adaptou muitas outras estrateacutegias advindas de sua formaccedilatildeo oratoacuteria no processo de

produccedilatildeo de seu discurso Para Rees (2013 p 244-247) os recursos estiliacutesticos sobretudo os tipos de

ornamentaccedilatildeo retoacuterica do texto de Pacato Drepacircnio satildeo bastante originais de origem poeacutetica e refletem as

transformaccedilotildees proacuteprias do periacuteodo Todavia pela observaccedilatildeo comparativa dos textos fica evidente que a

obra encomiaacutestica pliniana influenciou de maneira bastante direta as escolhas estruturais temaacuteticas e em

alguns casos textuais do panegirista tardoantigo Eacute a partir de tal interpretaccedilatildeo que se torna possiacutevel

localizar Pliacutenio como modelo e paradigma encomiaacutestico

No entanto o que faz com que se entenda haver uma recepccedilatildeo do texto pliniano no panegiacuterico a Teodoacutesio

natildeo eacute apenas a supracitada caracterizaccedilatildeo do elogio como sincero mas o fato de que nos dois discursos

muito dessa ficccedilatildeo de franqueza se constroacutei a partir da constante e insistente comparaccedilatildeo entre o atual

imperador e o governante (ou os governantes) que o antecedeu (antecederam) Tal estrutura textual e

argumentativa eacute uma das caracteriacutesticas mais marcantes do Panegiacuterico de Pliacutenio considerada ainda um fator

de diferenciaccedilatildeo de seu modelo laudatoacuterio em relaccedilatildeo agrave tradiccedilatildeo latina28 O indiacutecio da importacircncia desse

artifiacutecio retoacuterico eacute dado pela metalinguagem do proacuteprio texto da gratiarum actio onde o panegirista afirma

Tudo pais conscritos que eu digo ou disse de outros priacutencipes tem a intenccedilatildeo de mostrar por quanto tempo corromperam-se e depravaram-se os costumes do principado que nosso pai agora reforma e corrige Aleacutem disso natildeo se faz um elogio adequado sem uma comparaccedilatildeo (Plin Pan 531-3 Grifo nosso)29

27 No contexto da gratiarum actio a Trajano o silecircncio natildeo eacute sinocircnimo de liberdade tatildeo diretamente quanto no texto de Pacato Em outras duas menccedilotildees agrave possibilidade de silenciar-se o texto deixa impliacutecitos os riscos dessa accedilatildeo Em Pan 251 o panegirista justifica sua prolixidade pela afirmaccedilatildeo de que o silecircncio sobre qualquer feito do princeps poderia ser interpretado como desaprovaccedilatildeo enquanto em Pan 536 ao silecircncio sobre os males de tempos anteriores eacute atribuiacuteda tambeacutem uma criacutetica ao tempo presente 28 Sobre a recepccedilatildeo do modelo comparativo e antiteacutetico de elogio realizado por Pliacutenio em contextos posteriores cf Pailler 2003 29 ldquoOmnia Patres Conscripti quae de aliis principibus a me aut dicuntur aut dicta sunt eo pertinent ut ostendam quam longa consuetudine corruptos depravatosque mores principatus parens noster reformet et corrigat Alioqui nihil non parum grate sine comparatione laudaturrdquo

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Natildeo eacute originalmente de Pliacutenio o Jovem a ideia de que elogio requer que dois ou mais elementos sejam

comparados pois ela eacute jaacute apontada por Aristoacuteteles (Rh1366a-1368b Trad de Manuel Alexandre Juacutenior et

alii) de acordo com quem

Deve-se poreacutem comparar com pessoas de renome pois resulta amplificado e belo se se mostrar melhor que os virtuosos [] A amplificaccedilatildeo enquadra-se logicamente nas formas de elogio pois consiste em superioridade e a superioridade eacute uma das coisas belas Pelo que se natildeo eacute possiacutevel comparar algueacutem com pessoas de renome eacute pelo menos necessaacuterio comparaacute-lo com as outras pessoas visto que a superioridade parece revelar a virtude

Semelhantemente Ciacutecero destaca que ldquotambeacutem a comparaccedilatildeo com outros homens notaacuteveis eacute ilustre num

elogiordquo (Cic De orat 2348 Trad de Maximiano Augusto Gonccedilalves)30 conselho obedecido pelo proacuteprio

orador no Pro Marcello (5) quando afirma equiparar (conferri) mentalmente ou em diaacutelogos privados os

feitos e virtudes de Ceacutesar aos homens mais ilustres de povos estrangeiros e concluir que seu elogiado eacute o

melhor entre eles Quintiliano tambeacutem registra a comparaccedilatildeo como um dos elementos essenciais da

amplificaccedilatildeo dos discursos ldquoconsidero que a amplificaccedilatildeo eacute composta por quatro gecircneros principais adiccedilatildeo

comparaccedilatildeo racionalizaccedilatildeo acumulaccedilatildeordquo (Quint Inst 843 Traduccedilatildeo nossa)31 Eacute diante de tal tradiccedilatildeo que

Lausberg (1998 p 191) afirma acertadamente que ldquo[] comparatio eacute especialmente adequada para o gecircnero

epidiacutetico em que caracteriacutesticas da histoacuteria poesia ou mito satildeo retratadas como tendo sido superadas pelo

sujeito que estaacute sendo elogiadordquo32

Todavia como fica evidente quando se observam as ponderaccedilotildees dos autores antigos sobre esse recurso a

comparaccedilatildeo eacute no contexto elogioso em geral definida pelo uso de exemplos positivos Contrariando essa

posiccedilatildeo poreacutem o agradecimento de Pliacutenio a Trajano se constroacutei mormente pelo confronto do novo

imperador natildeo com os precedentes mais ilustres mas com os exemplos anteriores qualificados se natildeo como

tiranos ao menos como governantes imperfeitos33 Desse modo a censura mais que o louvor eacute trazida para

o primeiro plano do discurso de agradecimento a Trajano Para aleacutem de afirmar as virtudes e feitos do

princeps grande parte do elogio de Pliacutenio se dedica a negar a possibilidade de que ele seja similar aos que

governaram antes Como destaca o texto do panegiacuterico ldquo[] eacute o primeiro dever dos cidadatildeos pios diante de

um imperador oacutetimo atacar os que natildeo lhe satildeo semelhantes pois natildeo teraacute amado suficientemente os bons

priacutencipes aquele que natildeo odeie os maus o bastanterdquo (Plin Pan 531-2 Grifos nossos)34

30 ldquoEst etiam cum ceteris praestantibus viris comparatio in laudatione praeclarardquo 31 ldquoQuattuor tamen maxime generibus video constare amplificationem incremento comparatione ratiocinatione congerierdquo 32 ldquoComparatio is especially suited to the epideictic genus in that features of history poetry or myth are portrayed as having been surpassed by the subject being praisedrdquo 33 Haacute no texto do Panegiacuterico tambeacutem exemplos positivos aos quais Trajano eacute comparado (cf Pan 134-5 291-2 354 556-7 574-5 804 841-2 e 886-8) poreacutem a relevacircncia deles eacute minorada pela contiacutenua oposiccedilatildeo ao passado funesto que eacute elaborado ao longo do discurso 34 ldquo[hellip] hoc primum erga optimum imperatorem piorum civium officium est insequi dissimiles Neque enim satis amarit bonos principes qui malos satis non oderitrdquo (Plin Pan 531)

[62]

A finalidade ou a funccedilatildeo dessa comparaccedilatildeo e consequente vitupeacuterio eacute destacada logo em seguida quando o

panegirista aconselha incluindo-se entre os aconselhados que

[] Devemos agir assim em nossas conversas privadas nas puacuteblicas e em nossas accedilotildees de graccedilas e lembremo-nos de que o melhor enaltecimento para um imperador vivo eacute repreender seus antecessores que mereceram Pois quando a posteridade se cala quanto a um mau priacutencipe eacute manifesto que o priacutencipe atual faz as mesmas coisas (Plin Pan 536)35

O exerciacutecio aberto da censura a anteriores eacute de acordo com esse argumento prova da sinceridade e da

legitimidade do elogio atual ainda que nesse caso o vitupeacuterio natildeo esteja contraposto ao elogio mas ao

silecircncio Tais elementos de antiacutetese satildeo evocados ao longo de todo o Panegiacuterico de Pliacutenio seja por meio da

construccedilatildeo de um modelo negativo mais geneacuterico geralmente caracterizado pelo uso da terceira pessoa do

singular de modo que parece referir a todos os predecessores (184 241-5 361-2 412-3 421-3 451-3

471-2 501-3 581-4 633-7 653 663 704-7 711-3 794-6 881-3 911-2) quanto pela menccedilatildeo

indireta a um modelo negativo poreacutem direcionada de modo que eacute possiacutevel identificar sobretudo a figura de

Domiciano (23 145 331-4 483-5 495-8 52 541-3 571-2 623 763-5 81-82 832-6 941-3)36

Esse recurso eacute utilizado tambeacutem por Pacato ainda que de maneira um pouco diversa Diferentemente de

Pliacutenio cujo exerciacutecio comparativo pode ser notado ao longo de todo o panegiacuterico de maneira que quase

todos os itens elogiados em Trajano satildeo em sequecircncia vituperados em outros Pacato concentra o vitupeacuterio

a Maacuteximo entrecortado pelo elogio a Teodoacutesio entre os capiacutetulos 21 e 29 aos quais acrescenta em

2(12)313 uma siacutentese comparativa entre eles ldquo[] por fim contigo o compromisso com ele a perfiacutedia

contigo as leis divinas com ele o sacrileacutegio contigo a justiccedila com ele a injuacuteria contigo a clemecircncia dececircncia

religiatildeo com ele a impiedade devassidatildeo crueldade e a combinaccedilatildeo de todos os crimes e dos piores viacutecios

[]rdquo37 Portanto embora partam como apresentado no exame dos seus capiacutetulos iniciais de um mesmo

princiacutepio comparativo o modo como cada um dos oradores dispotildeem essa antiacutetese em seus discursos eacute

diferente Ainda assim o trecho destinado ao confronto entre os imperadores eacute no texto de Pacato bastante

extenso de modo que ocupa parte relevante de sua argumentaccedilatildeo

35 ldquoHoc secreta nostra hoc sermones hoc ipsae gratiarum actiones agant meminerintque sic maxime laudari incolumem imperatorem si priores secus meriti reprehendantur Nam quum de malo principe posteri tacent manifestum est eadem facere praesentemrdquo 36 Como destaca Christopher Kelly (2015 p 227) ldquoo valor de Trajano sua generosidade sua prudecircncia financeira seu respeito pelas leis destacam-se muito mais claramente em comparaccedilatildeo com a covardia ganacircncia excesso e tirania de Domiciano []rdquo (ldquoTrajanrsquos valor generosity financial prudence and respect for the laws stand out all the more clearly in comparison to Domitianrsquos cowardice greed excess and tyranny [hellip]rdquo) 37 ldquoPostremo tecum fidem secum perfidiam tecum fas secum nefas tecum ius secum iniuriam tecum clementiam pudicitiam religionem secum impietatem libidinem crudelitatem et omnium scelerum postremorumque vitiorum [] collegiumrdquo

[63]

Como natildeo eacute propoacutesito deste estudo analisar exaustivamente todos os trechos comparativos em cada um dos

textos encomiaacutesticos destaca-se aqui uma passagem principal em que os elementos escolhidos para a

comparaccedilatildeo satildeo semelhantes em ambos os discursos Em Pan Lat 2(12)21 Pacato associa de modo

bastante proacuteximo ao que faz Pliacutenio em Pan 474-6 e 481 o espaccedilo fiacutesico das casas e da cidade agrave relaccedilatildeo do

imperador com os cidadatildeos Nesse contexto Teodoacutesio e Trajano satildeo relacionados a casas e cidades abertas

jaacute que querem mostrar sua face e seu interior Ambos natildeo temem sair agrave rua e serem vistos e abordados pelos

suacuteditos a quem segundo os panegiristas atendem sem inspirar medo Domiciano e Maacuteximo por outro lado

inflados por sua pretensa divindade se fecham em paredes e templos rodeados por soldados Ainda que natildeo

possa ser notada uma equivalecircncia vocabular ou frasal entre os trechos argumentos bastante semelhantes

satildeo empregados Nas palavras de Pacato Drepacircnio

Mas quatildeo diferente foi o costume dos nossos priacutencipes anteriores (de quais falo eacute sabido) os quais pensavam que a grandeza real era diminuiacuteda e tornada vulgar se eles natildeo estivessem confinados no interior do edifiacutecio Palatino tal qual um templo de Vesta para em segredo os consultar uma veneraccedilatildeo oculta (Pan Lat 2(12)213)38

Esse trecho iniciado por Quantum aliter illorum principum evoca uma estrutura razoavelmente comum no

texto pliniano que com frequecircncia inicia sua contraposiccedilatildeo com vocaacutebulos semelhantes (quantumquam

dissimilis quam diversum mdash Plin Pan 204 653 821) Tal arranjo poreacutem natildeo eacute utilizado no trecho em que

ideias semelhantes satildeo desenvolvidas por ele cujo indiacutecio de antiacutetese eacute fornecido por um Ille tamen cujo valor

expressivo eacute similar a ldquoaquele (cuja identidade vocecirc audiecircncia conhece)rdquo indireta tatildeo claramente

apresentada por Pacato

Ele poreacutem entre aquelas paredes e muros em que parecia proteger sua vida fechou consigo a trapaccedila as conspiraccedilotildees e o deus vingador dos crimes A Pena separou e quebrou as proteccedilotildees e entrou por caminhos apertados e obstruiacutedos como se por portas abertas e umbrais receptivos De nada servia entatildeo a sua pretensa divindade de nada serviam aqueles quartos secretos e crueacuteis esconderijos onde era tomado pelo temor pela soberba e pelo oacutedio aos homens (Plin Pan 491)39

Permanece portanto na relaccedilatildeo entre essas duas passagens a menccedilatildeo agraves paredes fechadas aos locais

escuros e secretos e agrave presunccedilatildeo de divindade dos imperadores Tais caracteriacutesticas em ambos os casos

todavia expressam natildeo apenas o risco que como tiranos representariam para os cidadatildeos mas o temor que

possuem de perderem sua grandeza por meio do contato com os demais

38 ldquoAt quanto aliter illorum principum mos fuit (quos loquar notum est) qui maiestatem regiam imminui et volgari putabant nisi eos intra repositum Palatinae aedis inclusos tamquam aliquod Vestale secretum veneratio occulta consuluisset nisi intra domesticam umbram iacentes solitudo provisa et silentia late conciliata vallassentrdquo 39 ldquoIlle tamen quibus sibi parietibus et muris salutem suam tueri videbatur dolum secum et insidias et ultorem scelerum deum inclusit Dimovit perfregitque custodias poena angustosque per aditus et obstructos non secus ac per apertas fores et invitantia limina irrupit longeque tunc illi divinitas sua longe arcana illa cubilia saevique secessus in quos timore et superbia et odio hominum agebaturrdquo

[64]

O segundo trecho em que se nota certa equivalecircncia entre os dois panegiacutericos eacute na verdade parte

constituinte dessa mesma reflexatildeo sobre o isolamento e desconfianccedila tiracircnica Tanto Pliacutenio quanto Pacato

ilustram esse argumento com a comparaccedilatildeo de seus respectivos priacutencipes a monstros que se escondem em

cavernas A respeito de Domiciano Pliacutenio afirma que

[] demoramos e permanecemos como em uma casa comum onde haacute pouco aquela crudeliacutessima besta havia cercado com muitiacutessimo terror quando como que fechada em uma caverna ora lambia o sangue dos familiares ora se entregava agrave carnificina e ao massacre dos cidadatildeos mais ilustres [] Ningueacutem ousava aproximar-se e dirigir-lhe a palavra sempre buscava as trevas e o misteacuterio e nunca saiacutea de sua solidatildeo senatildeo para causar a solidatildeo (Pan 483 e 5)40

Pacato por sua vez que reserva todo o capiacutetulo 26 para um vitupeacuterio direto e ininterrupto de Maacuteximo

nessa oportunidade explicita a comparaccedilatildeo do usurpador agrave figura mitoloacutegica de Cariacutebdis41

Aquele nosso pirata acumulava tudo aquilo que havia saqueado em todas as partes para a perda nossa e dele na caverna de sua Cariacutebdis Digo Cariacutebdis ela apoacutes ter tragado navios repletos diz-se que regurgita os naufraacutegios e coloca nos litorais de Taormina os navios retorcidos no fundo (Pan Lat 2[12]264)42

O aspecto de semelhanccedila nesse contexto eacute a monstruosidade de ambos os imperadores que de suas

respectivas cavernas figurativamente se alimentam dos cidadatildeos ou de seus bens Tal monstruosidade eacute em

ambos os discursos encomiaacutesticos parte da amplificaccedilatildeo que eacute o principal recurso da prosa epidiacutetica (Arist

Rh 1368a Quint Inst 8427) cujo efeito nesse caso eacute transformar Maacuteximo e Domiciano nos piores

exemplos de imperadores em relaccedilatildeo aos quais as imagens positivas de Teodoacutesio e Trajano satildeo cada vez mais

valorizadas

Mais uma vez estaacute evidente que as referecircncias entre os dois textos natildeo se datildeo frequentemente por meio de

menccedilotildees citaccedilotildees ou intertextos diretos mas pela apropriaccedilatildeo de estruturas argumentativas mais amplas

que verificadas e interpretadas colocam os textos em paralelo Desse modo o que se apresenta eacute a questatildeo

teoacuterica mais abrangente em torno dos discursos epidiacuteticos que natildeo se refere apenas agrave estrutura ou ao estilo

mas tambeacutem a como esse tipo de discurso precisaria ser pensado diante das diferentes condiccedilotildees de

produccedilatildeo e pronunciamento exigidas em ambiente imperial Pliacutenio e Pacato administram em seu texto na

40 ldquoRemoramur resistimus ut in communi domo quam nuper immanissima bellua plurimo terrore munierat quum velut quodam specu inclusa nunc propinquorum sanguinem lamberet nunc se ad clarissimorum civium strages caedesque proferret []on adire quisquam non adloqui audebat tenebras semper secretumque captantem nec unquam ex solitudine sua prodeuntem nisi ut solitudinem faceretrdquo 41 Conforme descreve Grimal (2005 p 74) Cariacutebdis era uma filha da Terra e de Poseidon que tendo devorado alguns animais do rebanho de Geacuterion foi punida por Zeus que a transformou em um monstro e a lanccedilou no fundo do mar Assim passou a viver no estreito de Messina onde ldquoabsorvia trecircs vezes por dia uma grande quantidade de aacutegua do mar arrastando para as suas fauces tudo que flutuava Deste modo engolia os navios que se encontravam nessas paragens Depois expelia a aacutegua que tinha absorvidordquo (GRIMAL 2005 p 74) 42 ldquoNoster ille pirata quidquid undecumque converrerat id nobis sibique periturum in illam specus sui Charybdim congerebat Charybdim loquor quae cum plena navigia sorbuerit dicitur tamen reiectare naufragia et contortas fundo rates Tauromenitanis litoribus exponererdquo

[65]

interligaccedilatildeo entre sinceridade e comparaccedilatildeo pelo negativo o que Kelly (2015 p 217) chamou de ldquoparadoxo

inevitaacutevel dos louvoresrdquo Trata-se de uma caracteriacutestica intriacutenseca aos textos de tipo epidiacutetico ocasionada

sobretudo por seu aspecto cerimonial Ao panegirista eacute requisitado que louve algueacutem mas ao mesmo

tempo seu louvor estaacute continuamente sob um olhar desconfiado que duvida natildeo soacute de sua importacircncia mas

de sua veracidade Nos panegiacutericos examinados neste trabalho os oradores constroem certas estruturas que

buscam garantir a legitimidade desse mesmo elogio Uma dessas estruturas eacute a admissatildeo do fato de que o

louvor pode de fato ser adulaccedilatildeo e que na verdade o foi no contexto anterior mas natildeo o eacute no contexto

presente em que eacute possiacutevel falar abertamente dos defeitos de um imperador anterior43 Essa eacute uma

problemaacutetica proacutepria do louvor imperial romano para a qual Pliacutenio parece encontrar uma soluccedilatildeo que Pacato

reconhece concorda adota e desenvolve Diante dessas aproximaccedilotildees as relaccedilotildees estabelecidas por Pliacutenio

e Pacato satildeo consistentemente explicadas por Kelly (2015 p 217) quando este afirma que ldquoo brilho de um

orador jaz natildeo na invenccedilatildeo de algo completamente novo [] mas em como elementos costumeiros do elogio

satildeo selecionados e costurados da maneira mais apropriada para as circunstacircncias presentesrdquo44

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43 Esse processo tem efetividade apenas diante de uma seacuterie de outros argumentos que satildeo tecidos ao longo dos discursos como os conselhos sejam abertos ou velados a esses imperadores presentes Nesse sentido mesmo alguns erros dos governantes elogiados satildeo admitidos em contexto retoacuterico Cf Pan Lat 2(12) 231 44 ldquoThe brilliance of an orator lay not in the invention of some startlingly novel argument [hellip] but in how customary elements of praise were selected and knitted together in a manner most appropriate to present circumstancesrdquo

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[66]

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GIESEN K R BAPTISTA N H T ldquoet rei et famae bene consulit munificus imperatorrdquo as estruturas epidiacuteticas e as relaccedilotildees poliacuteticas no Panegiacuterico a Teodoacutesio de Pacato Drepacircnio (submetido agrave revista)

GRIMAL P Dicionaacuterio da mitologia grega e romana Trad de V Jabouille 5 ed Rio de Janeiro Bertrand Brasil 2005 [1951]

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WHITTON C Plinyrsquos Progress on a Toublesome Domitianic Career Chiron v 45 2015 p 1-22

Lector studiose o leitor nas Metamorfoses de Apuleio

Rayana da Costa Teles Barreto

grayana07007gmailcom

Isabella Tardin Cardoso

itardincardosogmailcom

O presente artigo que sumariza parte

da pesquisa de Mestrado em andamento no

Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Linguiacutestica

do IEL ndash Unicamp foi desenvolvido com

apoio da Coordenaccedilatildeo de Aperfeiccediloamento

de Pessoal de Niacutevel Superior (CAPES) ndash

Coacutedigo de Financiamento 001

(Processo n 888873348102019-00)

Este estudo trata das imagens e do papel atribuiacutedo ao leitor no

romance antigo Metamorphoses (Metamorphoseon Libri) de Apuleio

(125-170 dC) tambeacutem conhecido como O Asno de Ouro (Asinus

Aureus) desde sua recepccedilatildeo na Antiguidade tardia Com esse

enfoque pretende-se colaborar com interpretaccedilotildees mais recentes

que embora evidenciem a complexidade alusiva do texto apuleiano

(HARRISON 2003) ainda natildeo apontam para uma revisatildeo

sistemaacutetica do estatuto de um leitor que as reconheceria Ao

considerar as referecircncias expliacutecitas ao leitor vai-se apontar para

caracteriacutesticas nele inferidas que ao mesmo tempo apontam para

seu papel nas narrativas sobrepostas bem como no consequente

jogo de espelhamentos que conforme defendemos se fazem notar

na ficccedilatildeo apuleiana

[68]

Introduccedilatildeo

Escrito no seacuteculo II de nossa era1 as Metamorfoses (ou O Asno de Ouro)2 de Apuleio (125-170 dC) conta a

histoacuteria de um jovem abastado de nome Luacutecio que ao viajar para Tessaacutelia mdash uma cidade conhecida por ser o

antro da magia mdash acaba se metamorfoseando em asno Apoacutes a transformaccedilatildeo fatiacutedica motivada pela

curiosidade e o desejo de conhecer a ars magica o jovem protagonista passa a enfrentar diversos reveses ateacute

retornar agrave forma humana o que se deu atraveacutes da intervenccedilatildeo da deusa Iacutesis

Tratamos aqui de uma obra de ficccedilatildeo escrita em prosa mdash algo que se considera inovador para a Roma da

eacutepoca de Apuleio3 mdash e que modernamente ainda que natildeo sem polecircmica (HARRISON 1999 p xi) eacute

classificada no gecircnero ldquoromancerdquo antigo4 Ora a natureza episoacutedica do texto convida o leitor a apreciar

diferentes histoacuterias (as uariae fabulae que o narrador propotildee logo no iniacutecio da obra Apul Met 11) Todas

elas segundo salientamos podem ser alinhavadas na narrativa principal isto eacute nas aventuras de Luacutecio Essa

afirmaccedilatildeo nos parece necessaacuteria porque nas leituras que foram feitas ao longo dos seacuteculos estudiosos nem

sempre vislumbraram coesatildeo e coerecircncia no texto apuleiano

Ateacute o iniacutecio do seacuteculo XX a criacutetica sobre a ficccedilatildeo apuleiana pouco ou nada valorizava o caraacuteter fragmentaacuterio

da narrativa considerando-a sobretudo desarmocircnica Nesse sentido as Metamorfoses apresentariam uma

linha narrativa confusa e inconsistente em muito devido agrave referida sobreposiccedilatildeo de episoacutedios (PERRY 1967

HARRISON 2003)5 Dentre as criacuteticas agrave ficccedilatildeo apuleiana uma diz respeito mais diretamente agrave recepccedilatildeo as

Metamorfoses eram destinadas a um puacuteblico pouco exigente os leitores do tempo de Apuleio (CAVALLO

1997)

Hoje em dia se sabe que a ficccedilatildeo apuleiana superou sua eacutepoca e teve amplo impacto sobre autores ceacutelebres

posteriores como Petrarca (1304-1374) Boccaccio (1313-1375) Shakespeare (1564-1616) para citar

apenas alguns renascentistas mais famosos No portuguecircs destacam-se nada menos que Fernando Pessoa

(1888-1935) e Machado de Assis (1839-1908) Tudo isso evidencia a recepccedilatildeo bastante profiacutecua que teve a

obra em tempos modernos Eacute notoacuterio que as dificuldades em reconstituir o horizonte de expectativa

1 Sobre a dataccedilatildeo das Metamorfoses apuleianas cf Harrison (2000 p 9-10) e Barreto Cardoso (2018 p 27) 2 Vale notar que o duplo tiacutetulo da ficccedilatildeo apuleiana jaacute aparece em sua recepccedilatildeo na Antiguidade Tardia como testemunham leitores studiosissimi no seacuteculo IV Santo Agostinho (cf De Ciuitate Dei 18 18) se refere agrave ficccedilatildeo apuleiana como Asinus Aureus (SANDY 1997 p 233 HARRISON 1999 p xxvi-xxvii) Em seguida Fulgecircncio (seacuteculos V-VI dC) menciona ambos os tiacutetulos (Metamorfoses em Myth 36 e Expos Serm Ant 36 O Asno de Ouro em Expos Serm Ant 17 40) O tiacutetulo Metamorfoses (Metamorphoseon libri) eacute o uacutenico mencionado nos manuscritos no entanto a expressatildeo O Asno de Ouro costuma ser mais empregada cf discussatildeo em Harrison (2000 p 210-1) e Barreto Cardoso (2018 p 28) 3 Para um panorama dos leitores antigos das Metamorfoses apuleianas cf Barreto Cardoso (2018) 4 Dentre os ldquoromancesrdquo produzidos em Roma antiga a obra de Apuleio eacute a uacutenica transmitida integralmente uma vez que o Satyricon de Petrocircnio (seacuteculo I d C) apresenta trechos lacunares e corrompidos (CONTE 1994 p 559) Sobre o gecircnero ldquoromancerdquo antigo de modo geral cf Callebat (1998) Harrison (1999) 5 Para um panorama das criacuteticas cf Teixeira (2000) que analisa em especial o papel de Perry (1967) no debate sobre a obra Cf ainda Barreto Cardoso (2018 p 29)

[69]

previsto na Teoria de Recepccedilatildeo de Jauss (1967) de uma obra tal como as Metamorfoses de Apuleio se devem

agrave escassez de testemunhos acerca de sua recepccedilatildeo coeva algo comum agraves demais ficccedilotildees em prosa da

Antiguidade (HARRISON 2003 CARVER 2007) Aleacutem disso eacute verdade que o primeiro registro

remanescente sobre Apuleio uma carta escrita por Seacutetimo Severo (imperador de Roma entre 193 e 211 dC)

natildeo eacute nada elogioso para o leitor de Apuleio

Maior fuit dolor quod illum pro litterato laudandum plerique duxistis cum ille neniis quibusdam anilibus occupatus inter Milesias Punicas Apulei sui et ludicra litteraria consenesceret (Septimus Severus SHA Clod Alb 12 12 grifos nossos)

Foi uma dor maior para mim que muitos de vocecircs consideraram que ele merece louvor como homem de literatura ao passo que ele se ocupava com certos absurdos ou outras ninharias para mulheres velhas e estava ficando senil entre os contos puacutenicos milesianos de seu caro Apuleio e tais trivialidades literaacuterias (Traduccedilatildeo nossa)

Posteriormente o parecer de Macroacutebio (entre os seacuteculos IV-V dC) em O sonho de Cipiatildeo (Somnium Scipionis)

condena a ficccedilatildeo em prosa propriamente dita ao consideraacute-la mera provocaccedilatildeo destinada a um puacuteblico

menos instruiacutedo

Auditum mulcent hellipargumenta fictis casibus amatorum referta quibus vel multum se Arbiter exercuit vel Apuleium non nunquam lusisse miramur Hoc totum fabularum genus quod solas aurium delicias profitetur e sacrario suo in nutricum cunas sapientiae tractatus eliminat (Macrobius Somn 1 2 8)

Nossa audiccedilatildeo fica encantada por enredos cheios das vicissitudes fictiacutecias dos amantes sobre as quais Petrocircnio despendeu muito trabalho e com os quais nos surpreendemos que frequentemente mesmo Apuleio se tenha divertido Todo esse tipo de histoacuteria uma vez que serve apenas aos prazeres dos ouvidos o tratado da sabedoria expulsa de seu santuaacuterio e impele aos berccedilos das amas (Traduccedilatildeo nossa)

Referida como ldquoninharias para mulheres velhasrdquo e ldquoliteratura de berccedilos de amasrdquo uma menccedilatildeo francamente

pejorativa nas passagens acima referidas a ficccedilatildeo em prosa de Apuleio era desde seus primeiros registros

remanescentes apontada como sendo destinada a um puacuteblico menos instruiacutedo do que senadores e autores

dignos desse nome6 No entanto conforme sugerimos na proacutexima seccedilatildeo o texto apuleiano contava tambeacutem

com a possibilidade de ter um leitor um pouco mais sofisticado

O lector nas Metamorfoses

O leitor eacute abertamente referido pela narrativa ao longo dos onze livros que compotildeem as Metamorfoses de

Apuleio A seguir elencaremos uma amostra de passos em que a menccedilatildeo a tal puacuteblico eacute mais expliacutecita

Vejamos inicialmente como isso se daacute no proacutelogo da obra

6 Sobre a menccedilatildeo aos contos milesianos nessa passagem cf Barreto Cardoso (2018 p 32)

[70]

At ego tibi sermone isto Milesio uarias fabulas conseram auresque tuas beniuolas lepido susurro permulceam mdash modo si papyrum Aegyptiam argutia Nilotici calami inscriptam non spreueris inspicere mdash figuras fortunasque hominum in alias imagines conuersas et in se rursum mutuo nexu refectas ut mireris (Apul Met 11 grifos nossos)

Com esta minha narrativa mileacutesia eu gostaria de entrelaccedilar para ti histoacuterias variadas e afagar os teus bem-dispostos ouvidos com um elegante sussurro ndash desde que natildeo desdenhes lanccedilar os olhos sobre um papiro egiacutepcio escrito com a sutileza de um caacutelamo do Nilo Iraacutes apreciar com espanto as metamorfoses operadas na figura e na fortuna de seres humanos que assumiratildeo outras formas ateacute retomarem novamente a condiccedilatildeo inicial no termo de uma cadeia de reciacuteprocas ligaccedilotildees

No proacutelogo das Metamorfoses (11) mais precisamente na expressatildeo inicial at ego tibi (literalmente ldquomas eu a

tirdquo) jaacute se apontou que o emprego do dativo eacutetico tibi seguido do pronome ego logo no iniacutecio da narrativa

associa o falante do proacutelogo diretamente ao seu destinataacuterio7 No final desse passo lecirc-se

En ecce praefamur ueniam siquid exotici ac forensis sermonis rudis locutor offendero Iam haec equidem ipsa uocis immutatio desultoriae scientiae stilo quem accessimus respondet Fabulam Graecanicam incipimus Lector intende laetaberis (Apul Met 11 grifos nossos)

E desde jaacute apelo agrave tua benevolecircncia para o caso de te ofender a sensibilidade ao exprimir-me com pouca elegacircncia na liacutengua do foacuterum para mim estrangeira Aliaacutes estas variaccedilotildees de linguagem ateacute vecircm ao encontro do gecircnero que eu cultivo como um cavaleiro que salta de montada ndash pois eacute da Greacutecia que provem a histoacuteria que passarei a narrar Leitor presta atenccedilatildeo vais ficar deleitado (Trad de D Leatildeo 2007 grifos nossos)

Por meio das palavras lector intende laetaberis (isto eacute ldquoleitor presta atenccedilatildeo vais ficar deleitadordquo) conclui-

se portanto a promessa de entreter o leitor por meio de histoacuterias variadas (uarias fabulas) Por um lado tal

anuacutencio da variedade pode levar a pressupor num primeiro momento uma menor exigecircncia quanto agrave leitura

que poderia ser mais dispersa menos aprofundada mdash tal como a obra foi considerada por muito tempo pelos

estudiosos Mas por outro lado a riqueza de detalhes e uma cadeia complexa de possiacuteveis interpretaccedilotildees

presentes no proacutelogo tambeacutem exigem a atenccedilatildeo do leitor (lector intende) Essa passagem das Metamorfoses

efetivamente se tornou desde o seacuteculo XX objeto de grande interesse nas pesquisas sobre a obra

Apoacutes o proacutelogo a proacutexima menccedilatildeo direta ao leitor ocorre apenas no livro nove das Metamorfoses (9 30)

Sed forsitan lector scrupulosus reprehendens narratum meum sic argumentaberis Vnde autem tu astutule asine intra terminos pistrini contentus quid secreto ut adfirmas mulieres gesserint scire potuisti Accipe igitur quem ad modum homo curiosus iumenti faciem sustinens cuncta quae in perniciem pistoris mei gesta sunt cognoui (Apul Met 930 grifos nossos)

Mas talvez leitor escrupuloso tu venhas criticar a minha narraccedilatildeo com argumentos deste tipo ldquoE entatildeo como eacute que tu um burro tatildeo astuto mas que estava encerrado no interior do moinho conseguiste saber o que essas mulheres andavam a maquinar ainda por cima em segredo como tu mesmo afirmasrdquo Pois fica entatildeo a conhecer a forma como este homem

7 Para uma anaacutelise mais completa das referecircncias ao narrador e ao leitor no proacutelogo cf Barreto Cardoso (2018)

[71]

curioso disfarccedilado embora sob o aspecto de um jumento se inteirou de toda a trama urdida para causar a perdiccedilatildeo do meu moleiro (Trad de D Leatildeo 2007 grifos nossos)

O narrador Luacutecio nessa ocasiatildeo conta a histoacuteria de um adulteacuterio segundo a qual um moleiro apoacutes descobrir

as traiccedilotildees de sua mulher e pedir o divoacutercio eacute assassinado por uma feiticeira a pedido da esposa Em tal

passagem por um lado o leitor imaginado pelo narrador eacute caracterizado como escrupuloso (lector

scrupulosus) a ponto de poder questionar sobre a proacutepria coerecircncia ou verossimilhanccedila da narrativa Por

outro lado qualificar o narrador Luacutecio como curiosus (ldquoesse homem curioso disfarccedilado embora sob o aspecto

de um jumentordquo) em meio a tatildeo chamativo episoacutedio tem um efeito reciacuteproco de enfatizar a curiosidade do

leitor e despertar o interesse na narraccedilatildeo

Em outro passo a referecircncia a um leitor criacutetico se daraacute natildeo pelo substantivo lector e sim pelo pronome

indefinido nequis (mais precisamente nequis reprehendat isto eacute ldquoque ningueacutem me repreendardquo) Ali o

narrador interrompe sua digressatildeo filosoacutefica quando pressupotildee certa insatisfaccedilatildeo do puacuteblico (Apul Met

1033)

Contudo antes disso o leitor jaacute fora adjetivado e dessa vez eacute qualificado como um optime lector isto eacute um

leitor oacutetimo ldquobenignordquo (lector optime Apul Met 102) Nesta menccedilatildeo o lector eacute convidado pelo narrador a

ldquotrocar os socos rasteiros pela elevaccedilatildeo do coturnordquo (a socco ad coturnum ascendere) Com referecircncia aos

calccedilados emblemaacuteticos de cada gecircnero dramaacutetico (o soco para o cocircmico e o coturno para o traacutegico) o leitor

eacute advertido que leraacute daquele trecho em diante algo proacuteximo de uma ldquotrageacutediardquo (tragoedia em que se usavam

coturnos) natildeo mais uma peccedila ou histoacuteria (fabula) qualquer

Eacute na uacuteltima passagem em que o termo lector eacute mencionado que se pressupotildee seu interesse (isto eacute seu studium

referido pelo adjetivo studiosus) Trata-se de um interesse quanto a novos acontecimentos ocorridos na

ocasiatildeo em que Luacutecio havia sido convertido agrave religiatildeo Isiacuteaca e retomado sua forma humana Nesse momento

novamente se interrompe a narrativa dos fatos o que evoca uma possiacutevel intervenccedilatildeo do leitor

Quaeras forsitan satis anxie studiose lector quid deinde dictum quid factum dicerem si dicere liceret cognosceres si liceret audire Sed parem noxam contraherent et aures et lingua ltista impiae loquacitatisgt illae temerariae curiositatis (Apul Met 1123 grifos nossos)

Talvez oacute leitor desejoso de aprender tu te perguntes com ansioso interesse o que depois se disse e se fez Di-lo-ia se fosse liacutecito dizecirc-lo e tu ficarias a saber se te fosse liacutecito escutar Poreacutem tanto a liacutengua como os ouvidos iriam incorrer em falta idecircntica aquela por iacutempia loquacidade estes por temeraacuteria curiosidade (Trad de D Leatildeo 2007 levemente modificada por noacutes grifos nossos)

Esta derradeira menccedilatildeo ao lector na obra Metamorfoses contrasta com o que se diz daquela no proacutelogo da

obra trecho em que notadamente se evoca os ouvidos do leitor A ldquotemeraacuteria curiosidaderdquo (illae temerariae

curiositatis) eacute um elemento que como apontamos em estudo anterior (BARRETO CARDOSO 2017)

caracteriza natildeo apenas o narrador Luacutecio como tambeacutem a personalidade de Psiquecirc Para aleacutem dos possiacuteveis

[72]

significados que o termo curiositas possa evocar dentro da narrativa8 tal analogia mostra-se expressiva Isso

porque a curiositas eacute a nosso ver o fio condutor das Metamorfoses que permite precisamente costurar os

pequenos episoacutedios que as compotildeem Essa analogia entre o narrador principal e a personagem de um dos

episoacutedios mais importantes dentre os que integram o romance como um todo eacute aqui estendida ao proacuteprio

leitor Conforme DeFillipo (1999 p 276 traduccedilatildeo nossa) afirma

O fato de que Luacutecio e o scrupulosus lector teriam recebido uma puniccedilatildeo igual por meio da curiositas sugere que ambos satildeo igualmente culpados por ela Mas eacute difiacutecil compreender se a curiositas eacute mera curiosidade pois ao narrar acerca dos ritos isiacuteacos Luacutecio natildeo estaria satisfazendo seu proacuteprio desejo de conhecer mas antes os nossos como leitores do romance 9

Consideraccedilotildees finais

Ao tratar dos excertos referentes ao leitor no texto das Metamorfoses eacute possiacutevel constatar que a curiositas

mdash tema fundamental e recorrente no enredo mdash eacute tambeacutem associada ao processo narrativo Isso ocorre

quanto agrave sua produccedilatildeo (embasando mais de uma vez a verossimilhanccedila relativa agrave autoridade do narrador)

mas tambeacutem quanto agrave sua recepccedilatildeo na medida em que tambeacutem assim o lector eacute caracterizado Ocorre pois

a identificaccedilatildeo do leitor com o proacuteprio narrador-personagem esse eacute um dos efeitos da proximidade entre

Luacutecio Psiquecirc e o lector (scrupulosus studiosus optimus) ressaltada pelo vieacutes da curiosidade

Eacute tentador reconhecer que haveria aqui mdash nos moldes do que defendem teoacutericos modernos na linha da

Teoria da Recepccedilatildeo (JAUSS 1994 ISER 2002 [1989]) ou da ldquoReader-response criticismrdquo (FISH 1992) mdash um

aceno para o reconhecimento da funccedilatildeo que o leitor teria na narrativa do romance apuleiano Eacute de se

perguntar se tal reconhecimento apontaria mesmo para uma dependecircncia do papel do leitor isto eacute para se

inferir que Apuleio reconhecia que a tal leitor caberia dar coesatildeo ele mesmo agraves mais frouxas relaccedilotildees entre

as fabulae

Esses aspectos mereceratildeo ainda uma investigaccedilatildeo mais aprofundada em nossa pesquisa levando em conta

tambeacutem referecircncias menos diretas ao leitor ao longo do texto apuleiano e em outra fase o papel do tradutor

como leitor privilegiado da obra No entanto por ora dentre os efeitos da identificaccedilatildeo narradorndash

personagensndashleitor na estrutura e interpretaccedilatildeo desse romance antigo jaacute podemos constatar um aspecto

bastante significativo para sua recepccedilatildeo ao transferir tal caracteriacutestica para o leitor a ficccedilatildeo apuleiana

tematiza o proacuteprio ato de leitura e sua permanente metamorfose

8 Cf Barreto Cardoso (2017) 9 ldquoThe fact that Lucius and the scrupulosus lector would contract an equal punishment for curiositas suggests that they are both equally guilty of it But this is difficult to understand if curiositas is mere curiosity for in telling about the Isiac rites Lucius would not be satisfying his own desire to know but rather ours as readers of the novelrdquo

[73]

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A

construccedilatildeo do eacutethos do autor no Octavius de Minuacutecio Feacutelix

Marcela da Penha Coco

marcelapcocogmailcom

Neste estudo discutimos alguns aspectos da construccedilatildeo do eacutethos

de Minuacutecio Feacutelix no preacircmbulo de sua obra Octavius Nosso

objetivo ao analisar como Minuacutecio Feacutelix articula as relaccedilotildees de

amizade entre as personagens apresentadas no diaacutelogo Octavius eacute

demonstrar que tornando as personagens modelos claramente

dicotocircmicos o autor constroacutei de forma sutil sua posiccedilatildeo em relaccedilatildeo

ao discurso apologeacutetico cristatildeo enunciado ao longo da obra de

modo a utilizar de estruturas retoacuterico-discursivas claacutessicas

conhecidas e esperadas do puacuteblico letrado do periacuteodo e portanto

a expressar uma autoridade persuasiva Visamos aleacutem disso

demostrar que o eacutethos construiacutedo ao longo do preacircmbulo de

Octavius tem uma premissa clara ser compatiacutevel com o objetivo de

criar uma identidade cristatilde para os adeptos do cristianismo

primitivo no final do seacuteculo II e iniacutecio do III de nossa era Para esse

fim nos embasaremos estudos da Retoacuterica Antiga parte essencial

da educaccedilatildeo ou paideia antiga e dos Estudos do Discurso

contemporacircneos nossos

A partir do seacuteculo IV os entrelaccedilamentos de Estado Romano e

Igreja cristatilde se tornam mais amplos e complexos se por um lado

haacute o interesse em manter relaccedilotildees e posiccedilotildees por aqueles

pertencentes agrave Igreja por outro existiam perspectivas adversas a

esses interesses Das Como defende Cameron (1991 p 129-130)

escrever acerca do governo imperial nos seacuteculos IV e V era versar

[75]

sobre o imperador daiacute a produccedilatildeo de diversos panegiacutericos praacutexis que natildeo foi ignorada no desenvolvimento

da retoacuterica cristatilde que por sua vez antes de optar por uma via de confronto fez a escolha por uma que

minimizava as tensotildees demostrando a importacircncia do apoio imperial para a Igreja cristatilde Tal esforccedilo pode

ser observado no empenho para equalizar as praacuteticas cristatildes aos interesses da poliacutetica imperial

principalmente no governo de Constantino I Por isso podemos dizer que no seacuteculo IV jaacute havia um

determinado aparato que permitia posiccedilotildees menos veladas e mais consistentes no sentido da possibilidade

de manifestaccedilotildees independentes da posiccedilatildeo ocupada pelo indiviacuteduo que tomasse para si a tarefa de emitir

um discurso fosse ele favoraacutevel ou contraacuterio agrave Igreja cristatilde tendo isso se dado sem duacutevida atraveacutes do uso

da formaccedilatildeo educacional retoacuterica compartilhada por cristatildeos e politeiacutestas (CAMERON 1991 p 129-130)

No entanto o contexto do seacuteculo IV eacute radicalmente distinto de periacuteodos anteriores como o que circundou a

produccedilatildeo da obra Otaacutevio de Minuacutecio Feacutelix Nosso objeto de pesquisa foi produzido em um contexto de

distintas praacuteticas religiosas entre os seacuteculos II e III no qual Minuacutecio Feacutelix se esforccedilou na tentativa por

equilibrar o peso da tradiccedilatildeo politeiacutesta muito presente na sociedade romana frente agrave nova praacutetica religiosa

cristatilde Para Marta Alesso (2006 p 32) o seacuteculo II eacute significativo no que diz respeito a um esforccedilo mais

concentrado para a produccedilatildeo de discursos de cunho apologeacutetico cristatildeo em funccedilatildeo das querelas fruto das

imagens discursivas produzidas tanto por cristatildeos acerca dos praticantes da religio1 politeiacutesta quanto por

estes em relaccedilatildeo aos primeiros Nesse sentido argumenta Alesso (2016 p 32) foi imperativo aos apologistas

cristatildeos adequarem seus discursos ao ambiente e aos ouvintes para evidenciarem uma imagem do

cristianismo contraacuteria agrave produzida pelos autores pagatildeos

Para Moreschini e Norelli (2014 p 442) a proviacutencia romana da Aacutefrica teve elevada importacircncia nos seacuteculos

II e III no contexto do desenvolvimento da literatura cristatilde tendo o processo de difusatildeo do cristianismo

exigido o enfrentamento da ldquonecessidade de dirigir-se a uma classe social elevada e interessada na culturardquo

(MORESCHINI NORELLI 2014 p 442) Na perspectiva dos autores (MORESCHINI NORELLI 2014 p

442) a principal caracteriacutestica da proviacutencia era a ldquoforte romanizaccedilatildeordquo elemento que foi expresso nas

1 O termo latino religio traduzido com frequecircncia por religiatildeo exige a tentativa de tornar mais niacutetido as distinccedilotildees de seu uso na Antiguidade Claacutessica sob o ponto de vista dos praticantes dos cultos politeiacutestas e o uso proposto pelos autores cristatildeos Para Cristiane Azevedo (2010 p 91-92) o deslocamento que ocorre no significado do termo religio foi importante para atender o anseio de demarcar fronteiras entre os cultos politeiacutestas e cristatildeos Nelson Bondioli (2014 p 21) aponta que ldquoo termo podia apresentar duas acepccedilotildees dependendo do autor que o utilizava uma conectando-o ao termo religare no sentido da existente ligaccedilatildeo entre os homens e os deuses e outra ao termo religere enfatizando a necessidade da devida observacircncia religiosardquo Portanto religere estaacute intrinsicamente ligado ao sentido defendido por Ciacutecero no diaacutelogo De Natura Deorum obra na qual ele afirma a superioridade dos romanos na observacircncia dos cultos aos deuses (Cic Nat Deo II 8) Em contraponto os autores cristatildeos optaram pelo uso na acepccedilatildeo religere Para Carlo Prandi (1999 p 256) os escritores cristatildeos como Lactacircncio (240-320 EC) buscaram ldquoredirecionar o termo religio de modo que fosse capaz de exprimir tanto o conceito de transcendecircncia segundo o pensamento cristatildeo quanto ndash mais do que o comportamento do crente ndash a natureza da relaccedilatildeo de feacute instaurada pelo cristianismo entre o humano e o niacutevel divinordquo Dessa maneira o uso cristatildeo do termo religio se distancia da acepccedilatildeo que prima pelo zelo aos ritos associados aos cultos deslocando-se para a ligaccedilatildeo que os cristatildeos deveriam ter ou desenvolver com a divindade cristatilde

[76]

manifestaccedilotildees literaacuterias cristatildes uma vez que ldquoa retoacuterica percorre profundamente as obras de todos os

escritores africanos do seacuteculo III os quais a possuiacuteam decerto jaacute antes da conversatildeordquo de modo que

O seacuteculo III dC eacute o periacuteodo em que eacute preponderante na vida cultural cristatilde a proviacutencia romana da Aacutefrica esse fato natildeo passa do natural prosseguimento em acircmbito cristatildeo de uma evoluccedilatildeo da cultura latina pagatilde que no seacuteculo II tinha sido essencialmente africana Tertuliano Minuacutecio e Cipriano satildeo equivalentes naturais no plano da cultura e da literatura cristatilde de Frontatildeo e Apuleio (MORESCHINI NORELLI 2014 p 426)

Em contraste com o final do seacuteculo II e iniacutecio do III periacuteodo estimado da escrita de Octavius no seacuteculo IV ldquoos

escritores cristatildeos tinham ousado em quase todos os gecircneros da literatura tradicionalrdquo (LEMOS 2009 p 93)

Emular os autores tradicionais natildeo deixou de ser algo valorado de forma positiva contudo

As formas tradicionais ganharam novos conteuacutedos para expressar a doutrina cristatilde polemizar comunicar dogmas [] e especialmente preservar por escrito uma memoacuteria que dava aos seguidores de Cristo um passado comum referecircncias para organizar a vida suas praacuteticas cotidianas e se posicionarem no Impeacuterio e em relaccedilatildeo ao monarca (LEMOS 2009 p 93)

O diaacutelogo Octavius tem sido classificado por muitos autores como uma apologia Johannes Quasten (2004 p

460) defende ser essa a primeira apologia produzida em Roma e situa Minuacutecio Feacutelix ao lado de importantes

nomes da histoacuteria do cristianismo como Hipoacutelito de Roma (170 ndash 235) conhecido por sua erudiccedilatildeo e

Novaciano (200 ndash 258) o primeiro teoacutelogo a escrever em liacutengua latina Quasten ainda aponta que o diaacutelogo

Octavius faz uma defesa esmerada da feacute cristatilde mas busca natildeo ser ofensivo aos praticantes dos cultos

politeiacutestas Victor Sanz Santacruz (2000 p 23) em concordacircncia com o teor apologeacutetico da obra afirma que

uma das caracteriacutesticas mais expressivas de Octavius satildeo as influecircncias literaacuterias greco-romanas de Minuacutecio

Feacutelix notaacuteveis em meio ao diaacutelogo estando entre elas Platatildeo e Ciacutecero

Argentino Cescon (2015 p 25) tambeacutem eacute categoacuterico na defesa do caraacuteter filosoacutefico religioso da obra de

Minuacutecio Feacutelix e aponta que seu objetivo eacute ldquoapologeacutetico missionaacuteriordquo Em mesma perspectiva Silva (1990 p

38) ressalta o empenho de Minuacutecio Feacutelix em propor a adesatildeo agrave praacutetica religiosa cristatilde ao longo do diaacutelogo

buscando refutar as acusaccedilotildees mais recorrentes aos cristatildeos como a de incesto e que ele ldquorestringe-se ao

objectivo de formalizar uma nova cultura que tenha como objetivo remover os obstaacuteculos agrave aceitaccedilatildeo da feacute

cristatilderdquo (SILVA 1990 p 38) Nesse quesito a nosso ver satildeo de especial relevacircncia para esclarecer quaisquer

duacutevidas em relaccedilatildeo ao conteuacutedo apologeacutetico de Octavius os testemunhos de Lactacircncio no livro V de

Instituiccedilotildees Divinas e de Satildeo Jerocircnimo na obra Sobre os Homens Ilustres pois ambos os autores apontam as

contribuiccedilotildees de Minuacutecio Feacutelix na difusatildeo e defesa da feacute cristatilde (MORESCHINI NORELLI 2005 p 213)

Entretanto usaremos o termo apologia em nosso trabalho mas natildeo como um gecircnero discursivo A apologia

natildeo era um gecircnero literaacuterio bem definido na Antiguidade como a eacutepica ou a trageacutedia Somente a partir do

seacuteculo II podemos verificar o uso do termo em sentido de defesa do discurso cristatildeo (EDWARDS et al 1999

[77]

p 1-2) Mas o termo apologia jaacute era usado em contextos distintos desde o seacuteculo IV AEC como nas obras

Apologia a Soacutecrates de Platatildeo e de Xenofonte ambas defesas do filoacutesofo (ARZANI VENTURINI 2011 p 3)

ou na Apologia de Apuleio de Madaura (125-170) defesa do processo de acusaccedilatildeo de uso de magia para

contrair matrimocircnio com uma viuacuteva de condiccedilatildeo abastada (EDWARDS et al 1999 p 3) Lima Neto (2015 p

209-228) esclarece acerca da Apologia de Apuleio de Madaura afirmando que havia outras acusaccedilotildees contra

Apuleio como as de ser eloquente e belo e de ter produzido escritos de cunho eroacutetico entre outras As

acusaccedilotildees aleacutem de irem de encontro agrave tentativa de fortalecer o suposto uso de magia para seduzir Emiacutelia

Pudentila tambeacutem traziam prejuiacutezos agrave imagem de filoacutesofo de Apuleio e consequentemente aos argumentos

utilizados em sua defesa A principal diferenccedila entre os dois exemplos mencionados claro eacute que na Apologia

a Soacutecrates natildeo haacute intenccedilatildeo de reverter a sentenccedila uma vez que esta jaacute havia sido cumprida enquanto no

caso de Apuleio o objetivo eacute promover sua absolviccedilatildeo o que corrobora a definiccedilatildeo de Marta Alesso (2006

p 32) para quem a ldquoapologia em seu princiacutepio era um discurso juriacutedico dirigido a funcionaacuterios puacuteblicosrdquo

Segundo Edwards e outros (1999 p 4) haacute uma relativa distinccedilatildeo nas produccedilotildees de cunho apologeacutetico cristatildeo

dos primeiros seacuteculos da era comum essas obras a priori natildeo se destinavam a refutaccedilotildees nem mesmo agrave

ampliaccedilatildeo do nuacutemero de adeptos ao cristianismo a preocupaccedilatildeo de tais investimentos residiria no desejo de

extinguir as duacutevidas e solidificar a escolha dos novos cristatildeos ajustando suas praacuteticas com os pressupostos

jaacute existentes como seria por exemplo a funccedilatildeo das cartas do apoacutestolo Paulo aos Coriacutentios O termo apologia

foi utilizado com maior frequecircncia para designar obras que buscam promover a defesa do discurso cristatildeo

sobretudo apoacutes o seacuteculo II (EDWARDS et al 1999 p 1) Assim a apologia passou a significar a defesa de uma

determinada causa relevante para o emissor sendo ela no caso dos escritores cristatildeos a defesa do discurso

cristatildeo Como defende Richard A Norris Jr (2004 p 36 apud SANTOS 2017 p 62-63) ldquoo objetivo de tais

escritos eram em geral persuadir as autoridades de que as frequentes perseguiccedilotildees locais eram injustas

desnecessaacuterias e indignas de governantes esclarecidosrdquo Tambeacutem havia ldquouma explicaccedilatildeo das crenccedilas das

praacuteticas e da moral cristatildes que caminhavam para uma defesa Aleacutem disso as apologias tinham em sua base

uma refutaccedilatildeo de seus criacuteticos e apresentavam o cristianismo como superior agraves demais crenccedilasrdquo (SANTOS

2017 p 62-63) Empregamos portanto o termo em nossa pesquisa para analisar a obra de Minuacutecio Feacutelix

entendendo apologia natildeo como um gecircnero discursivo mas sim como uma forma mais simples e direta de

definir o conteuacutedo exposto no Octavius atraveacutes de um diaacutelogo esse sim um gecircnero tradicional de

conhecimento de toda a elite romana

Conforme Marta Alesso (2006 p 32) o gecircnero diaacutelogo foi na segunda metade do seacuteculo II EC muito

utilizado nos discursos de refutaccedilatildeo A estrutura que permite intercalar as falas das personagens favorecia a

exposiccedilatildeo dos pontos a serem confrontados e era de domiacutenio ldquoespecialmente por aqueles educados nas

escolas gregasrdquo (ALESSO 2006 p 32) Uma vez que a formaccedilatildeo intelectual da elite romana fosse ela cristatilde

ou politeiacutesta era compartilhada o conhecimento dos paracircmetros literaacuterios valorizados era de domiacutenio de

[78]

toda a aristocracia romana e o diaacutelogo filosoacutefico como forma de debate de ideias era um gecircnero

reconhecido Para Maingueneau (2018 p 244) a fluidez do gecircnero diaacutelogo o torna adequado a contrapor

diferentes conteuacutedos e ldquosua proximidade com o intercacircmbio conversacionalrdquo favorece a exposiccedilatildeo de pontos

de vistas discordantes sem um formato riacutegido propiciando a reflexatildeo

O emprego do gecircnero diaacutelogo na literatura latina sobretudo nos diaacutelogos de reflexatildeo filosoacutefica vem da

influecircncia da literatura grega sempre fonte de inspiraccedilatildeo principalmente os autores considerados claacutessicos

Um exemplo expressivo do emprego do gecircnero na literatura grega eacute Platatildeo (427ndash347 AEC) que acumulou

entre suas obras mais de vinte diaacutelogos dentre eles Fedro O Banquete e Timeu (REIS 2016 p 1) Para

Albrecht (1997 p 447) uma das peculiaridades dos diaacutelogos platocircnicos eacute a exposiccedilatildeo das falas das

personagens de maneira contiacutenua forma semelhante agrave que observamos no diaacutelogo Octavius apontado como

sendo um represente da literatura cristatilde (ALBRECHT 1997 p 447) Na literatura latina jaacute podemos

encontrar o gecircnero diaacutelogo sendo empregado por Ciacutecero Para Giuseppe Cambiano (2010 p 272) os

diaacutelogos de Ciacutecero foram compostos seguindo estrutura semelhante ao ldquoprocedimento judiciaacuteriordquo e que

quanto ao conteuacutedo este ldquonatildeo eacute constituiacutedo por temaacuteticas ou argumentaccedilotildees radicalmente novas com

respeito agravequelas jaacute elaboradas pela tradiccedilatildeo filosoacutefica gregardquo A tiacutetulo de exemplo podemos apontar o

diaacutelogo entre Veleio Lucilio Blabo e Cota no De Natura Deorum escrito em 45 AEC que traz as trecircs correntes

filosoacuteficas o epicurismo defendido pelo primeiro o estoicismo representado pelo segundo e por fim Cota

fazendo a defesa da academia (VENDEMIATTI 2003 p 12)

Todos os membros das elites do Impeacuterio Romano que passavam por algum niacutevel de escolaridade teriam

portanto familiaridade com o diaacutelogo como gecircnero apropriado para a filosofia e para a expressatildeo de

conceitos Para Joseacute Joaquim Pereira Melo (2011 p 37) a formaccedilatildeo educacional dos cristatildeos eacute resultado da

integraccedilatildeo que ocorreu entre a paideiacutea grega que congregava todos os valores formativos de virtude

acumulados pela tradiccedilatildeo por meio da literatura grega e da biacuteblia2 Esse equiliacutebrio entre educaccedilatildeo claacutessica e

doutrina cristatilde eacute fruto da compreensatildeo de que um trabalho de seleccedilatildeo e adaptaccedilatildeo dos elementos culturais

claacutessicos poderia gerar proveito para o cristianismo Contudo ldquoo ideal religioso dos cristatildeos estava alinhado

2 Segundo Jaeger (2018 p 351) a siacutentese da paideiacutea eacute uma educaccedilatildeo eacutetica e poliacutetica pois ldquonos tempos claacutessicos eacute essencial a ligaccedilatildeo entre a alta educaccedilatildeo e a ideia do Estado e da sociedaderdquo O uso do termo paideia eacute identificado a partir do V AEC Para Jaeger (2018 p 23) isso significa que para compreender a formaccedilatildeo educacional grega em sua amplitude eacute necessaacuterio recuar ao periacuteodo anterior a seu surgimento Ainda em sua perspectiva o ldquotema essencial da histoacuteria da formaccedilatildeo grega eacute antes o conceito de areteacute que remonta a tempos mais antigos [] a palavra ldquovirtuderdquo na sua acepccedilatildeo natildeo atenuada pelo uso moral e como expressatildeo do mais alto ideal cavalheiresco unido a uma conduta cortecircs e distinta e ao heroiacutesmo guerreiro talvez pudesse exprimir o sentido da palavra gregardquo E assim atraveacutes da expansatildeo do significado e da importacircncia do termo paideiacutea e ao relacionaacute-lo agrave ldquomais alta areteacute humanardquo pode-se combinar o ldquoconjunto de todas as exigecircncias ideais fiacutesicas e espirituais [] no sentido de uma formaccedilatildeo espiritual conscienterdquo (JAEGER 2018 p 335)

[79]

com a formaccedilatildeo cultural claacutessica mas sem se esquecer que a segunda deveria estar agrave serviccedilo da primeirardquo

(MELO 2011 p 40)

Esse ciacuterculo que inclui a formaccedilatildeo intelectual a seleccedilatildeo a adaptaccedilatildeo e o compartilhamento dos saberes pela

aristocracia romana natildeo eacute novidade no mundo romano Nos termos de Jaeger foi ldquodas necessidades mais

profundas da vida do Estado que nasceu a ideia da educaccedilatildeo a qual reconheceu no saber a nova e poderosa

forccedila espiritual daquele tempo para a formaccedilatildeo de homens e a pocircs a serviccedilo dessa tarefardquo (JAEGER 2018 p

337)

Jaeger (2018 p 339) pinta um cenaacuterio em que o aprendiz contava com um preceptor que recebia pagamento

pelos preciosos serviccedilos prestados Podemos de antematildeo concluir que uma vez que o acesso era

prerrogativa da aristocracia eram os interesses desse grupo social que detinha posiccedilotildees expressivas na

estrutura estatal objetos de demanda nas atividades desempenhadas na atuaccedilatildeo puacuteblica A educaccedilatildeo

aristocrata na Greacutecia e depois em Roma centrava-se no uso puacuteblico da palavra com os corretos gecircneros

modos e formas aprendidos na escola e reconhecidos pelos pares em suma era uma educaccedilatildeo retoacuterico-

literaacuteria Aquele que a detinha estaria apto ao ofiacutecio de enunciar tendo sido esse tipo de ensino aplicado

tambeacutem ao discurso cristatildeo (MELO 2011 p 33-45) Eacute portanto nesse ciacuterculo de formaccedilatildeo intelectual que

situamos Minuacutecio Feacutelix autor de Octavius

A biografia de Minuacutecio Feacutelix eacute bem sucinta pois sabemos muito pouco a seu respeito Octavius eacute a uacutenica obra

conhecida do autor na qual podemos encontrar algumas informaccedilotildees a seu respeito sendo dentre elas o

dado de que ele vivia em Roma verificado na ocasiatildeo da visita do amigo que daacute nome agrave obra (Oct 21) Price

(1999 p127) respaldado por uma fala de Ceciacutelio defende que provavelmente Minuacutecio Feacutelix fosse natural

do norte da Aacutefrica o que o autor natildeo contradiz ao longo da obra3 Temos tambeacutem atraveacutes de Lactacircncio (240

ndash 320) no livro V da obra Instituiccedilotildees Divinas a informaccedilatildeo de que Minuacutecio Feacutelix era advogado dispunha de

prestiacutegio em seu meio social e que sua obra respondia a uma necessidade latente como afirma

Segue-se que a sabedoria e a verdade estatildeo necessitadas de uma forma adequada E se casualmente pessoas cultas se dedicam elas natildeo satildeo suficientes para defendecirc-las Entre as que conheccedilo estaacute Minuacutecio Feacutelix advogado notaacutevel entre os de sua cidade seu livro intitulado Otaacutevio demonstra o bom defensor da verdade que poderia ser se tivesse se dedicado totalmente a esta missatildeo (Lac Div Inst 521-22 traduccedilatildeo nossa)

A referecircncia agrave obra de Minuacutecio Feacutelix eacute precedida de uma inflamada criacutetica na qual o apologista argumenta

que a rejeiccedilatildeo de muitos ao discurso cristatildeo eacute fundamentada na apreciaccedilatildeo ao discurso eloquente Lactacircncio

argumenta que isso se devia ao fato de aqueles considerados saacutebios e cultos apreciarem ouvir e ler conteuacutedos

que lhe proporcionassem gozo pela eloquecircncia mesmo que esse tema natildeo exaltasse o bem e que suplantasse

3 A fala de Ceciacutelio (Oct 96) ldquonosso concidadatildeo de Cirtardquo eacute uma referecircncia a Frontatildeo orador natural da cidade mencionada

[80]

a verdade em sua oacutetica que advoga sobre a verdade cristatilde (Div Inst 515-20) Minuacutecio Feacutelix eacute lembrado

ainda por Satildeo Jerocircnimo (347-419) que faz alusatildeo agrave erudiccedilatildeo do autor e a uma segunda obra de autoria dele

(SANTACRUZ 2000 p 5)4

Em linhas gerais Octavius eacute um diaacutelogo cujo tema geral eacute motivado por uma demonstraccedilatildeo de reverecircncia agrave

divindade tradicional Serapis O texto compreende a fala de trecircs personagens Ceciacutelio praticante da religio

politeiacutesta Otaacutevio adepto ao cristianismo e o proacuteprio autor Minuacutecio Feacutelix que atua como mediador do

diaacutelogo que eacute disposto em quatro momentos a saber preacircmbulo discurso de Ceciacutelio intervenccedilatildeo do

mediador e discurso de Otaacutevio Para fins deste trabalho nos deteremos apenas em alguns aspectos do

preacircmbulo pois eacute nas paacuteginas iniciais da obra que Minuacutecio Feacutelix busca estabelecer alguns pontos de

importacircncia inclusive uma identidade vaacutelida para os adeptos do cristianismo

O primeiro aspecto que nos chama a atenccedilatildeo eacute a disparidade existente quando da descriccedilatildeo das duas

personagens que apresentaratildeo seus pontos de vista no decorrer do diaacutelogo apologeacutetico Isso se manifesta

nos adjetivos elencados para fazer menccedilatildeo a Otaacutevio que eacute apresentado como ldquocompanheiro fideliacutessimordquo

(fidelissimi contubernalis) ldquodouto e santordquo (eximius et sanctus) enquanto Ceciacutelio eacute apresentado como ldquoainda

ligado a vaidades supersticiosasrdquo (superstitiosis vanitatibus etiamnunc inhaerentem) (Oct 11-4)5 Mais adiante

o perfil traccedilado para Otaacutevio inclui menccedilatildeo agrave sua famiacutelia composta por sua esposa e filhos Estes recebem

especial atenccedilatildeo mencionados por serem agradaacuteveis e apesar de pequenos e ainda falarem de forma

hesitante o que diziam expressava o que ldquohavia de mais docerdquo (loquellam ipso offensantis linguae fragmine

dulciorem)6 A uacuteltima linha do trecho eacute reservada a Ceciacutelio poreacutem para registrar seu gesto de reverecircncia ao

passarem diante de um templo dedicado agrave divindade Seraacutepis (Oct 21-4)7

A partir do gesto de Ceciacutelio o diaacutelogo se desenvolve e o texto de Minuacutecio Feacutelix segue na perspectiva de

alinhar o comportamento daqueles que jaacute eram adeptos ao cristianismo e tambeacutem promover novas adesotildees

Otaacutevio repreende severamente Minuacutecio Feacutelix por receber em sua casa e manter a seu lado nos espaccedilos

puacuteblicos um homem cujas praacuteticas seriam de pessoas ignorantes ou supersticiosas (Oct 31) Percebe-se

claramente nesse ponto a ecircnfase na dicotomia entre as duas personagens Otaacutevio ainda prossegue

alertando Minuacutecio Feacutelix que a omissatildeo deste diante da praacutetica errocircnea de Ceciacutelio ldquorecai em igual medida

sobre ambosrdquo (Oct 31)

4 Satildeo Jerocircnimo faz referecircncia a uma segunda obra Sobre o destino ou Contra os matemaacuteticos como sendo de possiacutevel autoria de Minuacutecio Feacutelix poreacutem ainda que ela tenha existido natildeo chegou a nossos dias (SANTACRUZ 2000 p 9-10) 5 Todas as citaccedilotildees da obra em portuguecircs satildeo da traduccedilatildeo proposta por Cescon (2015) 6 Natildeo podemos esquecer que a inocecircncia das crianccedilas eacute uma toacutepica cara ao cristianismo ressaltada no Novo Testamento no Evangelho de Mateus 1914 ldquoDeixai as crianccedilas e natildeo as impeccedilais de virem a mim porque de tais eacute o reino dos ceacuteusrdquo 7 Trata-se de uma deidade egiacutepcia que teve o culto expandido no mundo helecircnico e romano (SANTACRUZ 2000 p 55)

[81]

Um detalhe nos chama atenccedilatildeo na repreensatildeo de Otaacutevio ponto que caminha no sentido de corroborar o

objetivo apologeacutetico No iniacutecio do preacircmbulo Minuacutecio Feacutelix afirma que a conexatildeo resultante dos viacutenculos de

amizade existentes entre ele e Otaacutevio seria de uma ordem em que natildeo haveria quaisquer espaccedilos para

discordacircncias ou seja natildeo existiria entatildeo razatildeo para o incidente narrado adiante Contudo eacute exatamente

na relaccedilatildeo entre pares discordantes que ocorre a abertura para enunciar o discurso cristatildeo Dessa forma

Minuacutecio Feacutelix delega a Otaacutevio a tarefa de colocar em evidecircncia a propagaccedilatildeo desse discurso A nosso ver tal

articulaccedilatildeo visa conservar sua habilidade de dialogar com pessoas diversas e em espaccedilos distintos

possivelmente parte do prestiacutegio atestado por Lactacircncio como apontado anteriormente Percebemos

assim que antes mesmo de dar agraves personagens vozes e espaccedilo para suas proacuteprias falas Minuacutecio Feacutelix

cuidadosamente evoca lugares para ambos atraveacutes da demarcaccedilatildeo de perfis identitaacuterios preacutevios A questatildeo

entatildeo se potildee no campo do estabelecimento de uma identidade em oposiccedilatildeo agrave outra ou seja a do cristatildeo e a

do politeiacutesta

No que tange ao estabelecimento das identidades Kathryn Woodward nos lembra que

As identidades satildeo fabricadas por meio da marcaccedilatildeo da diferenccedila Essa marcaccedilatildeo da diferenccedila ocorre tanto por meio de sistemas simboacutelicos de representaccedilatildeo quanto por meio de forma de exclusatildeo social A identidade pois natildeo eacute o oposto da diferenccedila a identidade depende da diferenccedila (WOODWARD 2018 p 40 grifo nosso)

Em concordacircncia com Woodward Tomaz Tadeu da Silva (2014 p 76) afirma que o processo de construccedilatildeo

da identidade assim como da diferenccedila depende de ldquocriaccedilotildees sociais e culturaisrdquo ou seja ambas satildeo forjadas

em meio aos espaccedilos de conviacutevio social e de exerciacutecio de poder A criaccedilatildeo de novos marcadores de identidade

tem como consequecircncia direta a delimitaccedilatildeo do diferente e na obra Octavius o diferente se manifesta na

figura de Ceciacutelio que tem praacuteticas religiosas distintas das de Otaacutevio apontado jaacute na abertura do texto como

modelo a ser seguido pela voz de Minuacutecio Feacutelix

Essa concordacircncia de Minuacutecio Feacutelix isto eacute a voz construiacuteda na obra (e natildeo autor empiacuterico ao qual natildeo temos

acesso) com a marcaccedilatildeo de uma identidade cristatilde eacute feita atraveacutes da construccedilatildeo e da manifestaccedilatildeo de um

eacutethos do autor Minuacutecio Feacutelix na obra Antes mesmo do iniacutecio do diaacutelogo e das falas de Ceciacutelio e Otaacutevio haacute a

construccedilatildeo de um eu que discursa o eu de Minuacutecio tatildeo elaborado como qualquer uma das personagens e tatildeo

efetivo no convencimento quanto elas

O eacutethos do enunciador eacute tambeacutem um instrumento retoacuterico-discursivo Dominique Maingueneau (2018 p

272) afirma que a edificaccedilatildeo de um eacutethos eacute efeito de interaccedilotildees diversas e ldquoimplica uma maneira de se

movimentar no espaccedilo socialrdquo O enunciador se move em direccedilatildeo a compreender quais satildeo as bases vaacutelidas

para alcanccedilar o ecircxito pretendido uma vez que ldquoo destinataacuterio o identifica com base num conjunto difuso de

representaccedilotildees sociais avaliadas de modo positivo ou negativo de estereoacutetipos que a enunciaccedilatildeo contribui

para afirmar ou modificarrdquo (MAINGUENEAU 2018 p 272) Na medida em que Minuacutecio Feacutelix afirma

[82]

concordar com todos os posicionamentos de Otaacutevio seu eacutethos se apresenta de forma intolerante para com o

diferente marcando assim mais uma vez sua posiccedilatildeo na obra E embora sua praacutetica possa ser a escolha por

uma posiccedilatildeo intermediaria mdash pois Minuacutecio Feacutelix sustenta no discurso ser amigo tanto de Ceciacutelio quanto de

Otaacutevio mdash ele age no sentido de fazer dessa posiccedilatildeo aparente um mecanismo para ampliar a abrangecircncia do

discurso contido na obra reafirmando os valores presentes no eacutethos de juiz imparcial manifesto desde o

princiacutepio do diaacutelogo

Maingueneau (20018 p 72) especiacutefica ainda que no processo de construccedilatildeo do eacutethos ocorre a evocaccedilatildeo de

um fiador e este eacute apresentado de maneira a dar ecircnfase aos elementos salientados no eacutethos em construccedilatildeo

O fiador permite que seja identificado o tom presente no discurso enunciado pois na perspectiva de

Maingueneau ldquoqualquer discurso escrito mesmo que negue possui uma vocalidade especiacutefica que permite

relacionaacute-lo a uma fonte enunciativardquo de modo que ldquoa leitura faz emergir uma origem enunciativa uma

instacircncia subjetiva encarnada que exerce o papel de fiadorrdquo (MAINGUENEAU 2018 p 72) Ao fiador satildeo

atribuiacutedos qualitativos frutos das representaccedilotildees socialmente construiacutedas com a finalidade de tornar

niacutetidos estereoacutetipos que congregam caracteres positivos identificaacuteveis pelos destinataacuterios Portanto o papel

a ser desempenhado por ele eacute significativo no encadeamento das representaccedilotildees que confluem na

elaboraccedilatildeo do eacutethos pois na adesatildeo ao discurso eacute necessaacuterio que o fiador tenha condiccedilotildees de gerar no

destinataacuterio o desejo de incorporar ldquoum conjunto de esquemas que correspondem a uma maneira especiacutefica

de se relacionar com o mundordquo (MAINGUENEAU 2018 p 272) Essa incorporaccedilatildeo vai aleacutem de um processo

de identificaccedilatildeo pois haacute ldquoum mundo eacuteticordquo em que o fiador estaacute inserido e ao qual por meio dele os

destinataacuterios podem ter acesso (MAINGUENEAU 2018 p 272)

Nesse sentido na fala de Minuacutecio Feacutelix a respeito da adesatildeo de ambos ao cristianismo mdash ldquosoacute ele conhecia as

minhas supersticcedilotildees pagatildes soacute ele era participante dos meus erros e quando dissipado o nevoeiro emergi

das trevas a luz da sabedoria e da verdade ele natildeo rejeitou o companheiro mas o que eacute mais maravilhoso

correu a frenterdquo (Oct 14) mdash para aleacutem de ser esclarecido que foi ele quem conduziu o amigo Otaacutevio ao

cristianismo ele usa de si mesmo para indicar qual seria o comportamento esperado daqueles que tecircm a

mesma oportunidade Dessa maneira ao exaltar o comportamento de Otaacutevio Minuacutecio Feacutelix expotildee quais satildeo

seus proacuteprios os valores e consequentemente o seu eacutethos aleacutem de construir isso por meio de afirmativas que

o conecta ao amigo a quem ele diz ldquoconcordava comigo em querer ou natildeo querer os mesmos objetivos ao

ponto de acreditar que uma soacute alma fosse repartidardquo (Oct 13) Parece-nos assim que o eacutethos do autor eacute

manifesto de modo ostensivo como modelo para os demais cristatildeos e tem como fiador Otaacutevio a quem satildeo

atribuiacutedos qualitativos que abrange sua imagem puacuteblica apontado como ldquobom fideliacutessimo companheiro

varatildeo excelente e iacutentegrordquo (Oct 11-3) O fiador do eacutethos de Minuacutecio Feacutelix congrega dessa forma virtudes

desejaacuteveis a um homem pertencente agrave elite aristocraacutetica romana tornando assim possiacutevel a materializaccedilatildeo

do conjunto de valores socialmente construiacutedos mobilizados a fim de explicitar o eacutethos de Minuacutecio Feacutelix

[83]

Minuacutecio Feacutelix ao enunciar as atividades laborais de ambos em Roma e afirmar que estava de feacuterias assim

como Otaacutevio mdash uma vez que a viagem agrave Oacutestia se deu pois ldquoas feacuterias haviam interrompido os trabalhos

judiciaisrdquo (Oct 23) mdash os situa geograficamente no centro do poder poliacutetico romano demostrando que os

cristatildeos natildeo estavam destinados a locais perifeacutericos no Impeacuterio O autor coloca ainda em destaque o valor

dos viacutenculos entre pares Ao apontar os qualitativos de Otaacutevio ele diz de modo evidente qual o perfil de com

quem se devia cultivar esses viacutenculos ou seja preferencialmente com cristatildeos como ele e Otaacutevio Todavia

as praacuteticas religiosas no impeacuterio eram heterogecircneas de forma que a relaccedilatildeo entre membros da aristocracia

que natildeo haviam aderido ao cristianismo era comum como mostra a amizade de Minuacutecio Feacutelix e Ceciacutelio

chamado por Otaacutevio de ldquogente supersticiosardquo (Oct 34) Entretanto a toleracircncia nesse caso tem finalidade

especiacutefica os pesos satildeo distintos na relaccedilatildeo entre eles A promoccedilatildeo da doutrina cristatilde estaacute no centro dessa

relaccedilatildeo e mais que promover essa feacute o autor de Octavius tem a tarefa de descortinar como um verdadeiro

cristatildeo devia se comportar

Por fim o preacircmbulo de Octavius evidencia a estreita relaccedilatildeo de Minuacutecio Feacutelix atraveacutes do eacutethos exposto com

os paracircmetros culturais claacutessicos e isso eacute manifesto desde a escolha do gecircnero da obra passando pelo modo

de dispor o conteuacutedo apologeacutetico evitando os pontos mais sensiacuteveis a fim de expor que a adesatildeo agrave feacute cristatilde

natildeo era excludente da manutenccedilatildeo dos valores aristocraacuteticos Minuacutecio Feacutelix externa assim em seu ponto de

vista a compatibilidade da erudiccedilatildeo claacutessica com a praacutetica religiosa cristatilde expondo ainda aos pares que

desempenhavam funccedilotildees expressivas na sociedade romana que em suas atuaccedilotildees poderia ser exigido o

conviacutevio com outros pares que embora detivessem a mesma formaccedilatildeo intelectual eram praticantes dos

cultos politeiacutestas Se por um lado isso poderia ser incocircmodo por outro era oportunidade de difundir a

praacutetica religiosa cristatilde e ademais uma circunstacircncia propiacutecia para solidificar a identidade cristatilde construiacuteda

por meio dos elementos simboacutelicos mobilizados na edificaccedilatildeo do eacutethos minuciano

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A censura aos espetaacuteculos na literatura claacutessica e o De Spectaculis de Tertuliano

Natan Henrique Taveira Baptista

natanbaptistagmailcom

O presente capiacutetulo que sumariza parte

da dissertaccedilatildeo de mestrado do autor

foi desenvolvido com apoio da Fundaccedilatildeo

de amparo agrave pesquisa e inovaccedilatildeo do

Espiacuterito Santo (Fapes) entre 2015 e 2017

Este estudo comenta os usos de textos claacutessicos ndash gregos latinos e

judaicos ndash na construccedilatildeo da criacutetica aos espetaacuteculos por Tertuliano

de Cartago (c 160-230) Mesmo que o pensador africano rechace

o conhecimento e a tradiccedilatildeo natildeo paleocristatilde ou seja externa agrave

seita religiosa que se firmava na transiccedilatildeo do seacuteculo segundo para

o terceiro sua argumentaccedilatildeo condenatoacuteria natildeo eacute era total

novidade dentro do arcabouccedilo discursivo de sua eacutepoca Ao

contraacuterio sua retoacuterica utiliza temas motivos e linhas de raciociacutenio

da literatura pregressa como combustiacutevel intelectual para o

vitupeacuterio aos spectacula imperiais Assim a partir da preacutedica de

Tertuliano quanto aos espaccedilos destinados agraves praacuteticas de

entretenimento e convivecircncia examinamos a reafirmaccedilatildeo do

sentimento de pertenccedila e propoacutesito a todo o tempo reiterado no

discurso cristatildeo que tornaria possiacutevel o acesso do neoacutefito agrave

comunidade paleocristatilde Operou-se no discurso de Tertuliano

uma proposta de mudanccedila na compreensatildeo das categorias de

[87]

lazer e espetaacuteculos puacuteblicos indicativo importante da tentativa de transformaccedilatildeo de consciecircncia que se

baseou na criacutetica ao comportamento da sociedade romana desde os primeiros anos do paleocristianismo no

norte da Aacutefrica

Antes de discutir a criacutetica paleocristatilde eacute necessaacuterio pautar a censura e a condenaccedilatildeo aos espetaacuteculos por

grupos anteriores visto que a elite literaacuteria e filosoacutefica estoica e os componentes da religiatildeo judaica jaacute

apresentavam segmentos contraacuterios aos espetaacuteculos muito antes do surgimento da criacutetica por parte dos

pensadores eclesiaacutesticos Assim a despeito da pecha de grupo coeso nomeados sobre a complicada eacutegide

de ldquopagatildeosrdquo1 os integrantes da sociedade romana tradicional e adeptos da filosofia estoica por exemplo

natildeo partilhavam da plena adesatildeo aos espetaacuteculos Os estudos sobre a complexidade social dos grupos

aglomerados pela terminologia ldquopaganismordquo (CAMERON 2011 ROSA 2008 BAPTISTA 2015 p 25-45)

mostraram que dentro dele nunca existiu um apoio indiscriminado aos jogos de circo ou anfiteatro e das

apresentaccedilotildees de teatro Aleacutem disso os estudos dessas criacuteticas mostram que vaacuterios autores cristatildeos com

destaque para Tertuliano fizeram uso da filosofia e da literatura claacutessica ao assumirem para si a negaccedilatildeo

dos espetaacuteculos em sua forma mais tradicional reproduzindo em termos evangeacutelicos a criacutetica antecedente

Essa constataccedilatildeo ampara o entendimento sobre a natureza fluida das fronteiras religiosas romanas

No caso dos jogos do circo do teatro e do anfiteatro a criacutetica pagatilde veio em grande parte de um pequeno

grupo vinculado ao estoicismo que por vaacuterios motivos natildeo coadunava com o interesse das massas

populares e de grande parte dos estamentos superiores pelos jogos2 Quando os estoicos criticavam esse

tipo de manifestaccedilatildeo cultural eles natildeo defendiam a sua aboliccedilatildeo mas censuravam audiecircncia e os

patrocinadores do espetaacuteculo Por essas razotildees Mammel (2014 p 605) sustenta que ldquo[] muitas das

acusaccedilotildees da elite literaacuteria popular aos espetaacuteculos em estilo romano foram motivadas em grande parte

pelo elitismo e esnobismo intelectualrdquo De fato natildeo era raro que os espetaacuteculos romanos fossem vistos com

certo desdeacutem como algo proacuteprio do uulgus das massas comuns e dos segmentos sociais inferiores ou

menos instruiacutedos Dessa maneira a criacutetica aos jogos funcionou em grande medida como um artifiacutecio

retoacuterico de distinccedilatildeo entre os que os apreciavam ou seja os plebeus incultos e os que os rejeitavam devido

1 O termo paganismo refere-se em geral a uma coletividade grandemente difusa de accedilotildees praacuteticas e crenccedilas heterogecircneas religiosas antigas formada entre outras manifestaccedilotildees pelo culto ciacutevico romano ndash privado e puacuteblico ndash pelos cultos advindos do Oriente e pelo culto ao imperador associados a uma identidade tradicional (CAMERON 2011 p 3-13) Entretanto essa terminologia apresenta vaacuterias dificuldades teoacutericas O paganismo ndash e o paleocristianismo ndash natildeo pode ser tratado como sistemas homogecircneos e muito menos como religiotildees cristalizadas Seria mais correto designaacute-las de religiotildees ou sistemas religiosos Assim o uso do termo paganismo neste trabalho natildeo possui cunho pejorativo ou de decreacutescimo simboacutelico nem deve ser visto de maneira equivocada como se houvesse uma unidade religiosa na Antiguidade romana (ROSA 2008 p 15-20) Antes trabalhamos com a noccedilatildeo de cristianismos e paganismos uma vez que essas realidades religiosas se encontravam disseminadas pela bacia do Mediterracircneo sendo praticadas de modo diversificado no interior das diferentes comunidades agregadas pelo impeacuterio tardoantigo 2 Para uma discussatildeo recente sobre o estoicismo cf Barbosa e Castro (2020 p 56-68)

[88]

agrave educaccedilatildeo elevada que haviam recebido Possuir interesses compartilhados com o populus natildeo era

apropriado para um cidadatildeo romano bem nascido e por isso mesmo portador de urbanitas (WIEDEMANN

1992 p 141-144 WISTRAND 1992 p 62 MAMMEL 2014 p 605)3

Entre o fim da Repuacuteblica e o Impeacuterio o lazer gradualmente foi incorporado pelas categorias mais populares

da sociedade Para a elite romana as inconveniecircncias do lazer surgiram quando o tempo livre o otium

alcanccedilou tambeacutem os estratos mais baixos que se encontravam fora do controle das autoridades (TONER

1995 p 23 ss)4 Foi por isso que de acordo com Pliacutenio o Jovem (Ep 96 Pan 464-6) faltavam aos

espetaacuteculos a seueritas e a grauitas condizentes com os homens de estrato superior motivo este para a

censura agrave participaccedilatildeo de membros da elite romana ndash e no limite do proacuteprio imperador ndash nos espetaacuteculos

Taacutecito (Ann 1414-15) chegou a qualificar o desejo de Nero em participar das corridas de bigas como

studium foedum (desejo vergonhoso) e Suetocircnio principalmente nas biografias de Tibeacuterio (352) e Caliacutegula

(541) se une a Pliacutenio na criacutetica qualificando a participaccedilatildeo nos espetaacuteculos como algo profundamente

degradante e digno de desprezo (WISTRAND 1992 p 30 ss BELL 2014 p 496)

Podemos sistematizar a criacutetica estoica aos jogos apoacutes Wistrand (1992) e Mammel (2014) em cinco

argumentos principais O primeiro deles era a repeticcedilatildeo e a falta de novidade ou variaccedilatildeo nas competiccedilotildees

Em seguida questionava-se a perda de tempo que de acordo com os criacuteticos poderia ter sido dedicado a

outras atividades mais proveitosas intelectualmente tais como o estudo ou a leitura O terceiro alvo de

censura era a enormidade dos salaacuterios e as fortunas dos atletas mais famosos Em quarto lugar criticava-se

o despertamento de emoccedilotildees natildeo condizentes com o estatuto do filoacutesofo nos espaccedilos puacuteblicos dada a

sociabilidade com toda sorte de atores sociais Finalmente os estoicos admoestavam sobre os perigos das

aglomeraccedilotildees para o indiviacuteduo sobretudo as confusotildees criadas e as multidotildees que se deixavam arrastar

pelos arredores desses ambientes luacutedicos5

3 Vrbanitas era um conceito muito caro aos romanos desde a Res Publica ficando particularmente associado aos escritos de Ciacutecero (De or 2216-291) de Horaacutecio (Ep 110 24-6) e de Quintiliano (Inst 63) (MARQUES JUacuteNIOR 2008 p 15 ss MIOTTI 2010 p 17 ss) Ciacutecero jaacute a expressava como transliteraccedilatildeo de um sentimento de completude ao associar vivecircncia citadina altamente urbanizada e polidez Sendo assim a exaltaccedilatildeo da vida na cidade era propiacutecia ao bom gosto ao requinte agrave cultura e agrave elegacircncia Sobre as diferentes acepccedilotildees do conceito dentro da retoacuterica claacutessica cf Ramage (1963 p 390-414) e Goodman (2007 p 12) 4 Afinal ldquoa base para o tratamento discriminatoacuterio das atividades de lazer foi a distinccedilatildeo entre a vida de lazer um preacute-requisito da elite e a vida de trabalho que era a marca de uma existecircncia plebeacuteia A partir desta perspectiva tradicional o lazer era uma parte natural e legiacutetima da cultura de elite ao passo que para os trabalhadores era uma tentaccedilatildeo potencialmente perigosa e uma distraccedilatildeo de suas principais preocupaccedilotildeesrdquo (TONER 1995 p 25) 5 Nesse sentido uma voz destoante da tradiccedilatildeo filosoacutefica foi Frontatildeo (c 100-170) cocircnsul gramaacutetico retoacuterico e advogado originaacuterio da Numiacutedia tambeacutem no norte da Aacutefrica (Ad M Caes 235) Ele se coloca contra a tradiccedilatildeo filosoacutefica quando trata as confusotildees e explosotildees no espaccedilo do circo e os proacuteprios jogos de maneira muito mais despreocupada e em grande parte descontraiacuteda ao escrever aos seus amigos e a Marco Aureacutelio a situaccedilatildeo (Ad M Caes 211-5 Ad amicos 231-3) Em sua opiniatildeo natildeo se deveria perder de vista que os jogos mantinham a populaccedilatildeo de bom humor e agradavam a eles coletivamente assim sua continuidade deveria ser preservada sendo o papel do imperador natildeo negligenciar um aspecto social que era importante para os seus suacuteditos (BELL 2014 p 120-126)

[89]

Sobre a repeticcedilatildeo enfadonha dos jogos Pliacutenio (Ep 961) foi bastante enfaacutetico ao apontar que ldquonatildeo tecircm

novidade natildeo tecircm variaccedilatildeo natildeo tecircm nada para o qual uma visatildeo natildeo seria suficienterdquo6 Ciacutecero (Ep 71)

teceu a mesma criacutetica mas direcionada agraves uenationes uma vez que segundo ele quem assistisse a uma jaacute

teria assistido a todas as outras Jaacute Marco Aureacutelio em suas Meditaccedilotildees (6461) deixava claro que ldquotal como

os espetaacuteculos no circo ou de outros locais de diversatildeo nos cansam com a sua perpeacutetua repeticcedilatildeo das

mesmas coisas numa monotonia que torna o espetaacuteculo enfadonho tambeacutem o mesmo se passa com toda a

experiecircncia da vida []rdquo7

Os membros da elite romana tambeacutem eram unacircnimes em afirmar que os homens de posiccedilatildeo elevada

deveriam despender seu tempo livre em atividades mais valiosas intelectualmente e natildeo com a banalidade

dos espetaacuteculos Eram nos momentos de otium que os intelectuais deveriam estar envolvidos em atividades

voltadas para os estudos filosoacuteficos e literaacuterios Para eles o oacutecio poderia ser entendido como ldquo[] um

espaccedilo de tempo de descanso do corpo e recreaccedilatildeo do espiacuterito um tempo livre do trabalho que se dava

para depois retomar as atividades cotidianas ao trabalho e ao de serviccedilo puacuteblico O oacutecio romano consistia

como se vecirc em natildeo trabalharrdquo (BETANCUR SEPUacuteLVEDA 2008 p 05) Na Roma republicana os uacutenicos

indiviacuteduos que poderiam desfrutar do oacutecio eram os notaacuteveis isto eacute uma minoria que natildeo trabalhava e que

vivia dos lucros produzidos por artesatildeos comerciantes e trabalhadores agriacutecolas Eacute por isso que na

Antiguidade Claacutessica o otium era uma peccedila essencial da vida das elites8

De acordo com a ideologia aristocraacutetica romana os estratos sociais eram repartidos de acordo com os

recursos econocircmicos dos quais dispunham A partir dessa concepccedilatildeo de mundo os escravos camponeses e

negociantes natildeo poderiam desfrutar de uma vida feliz isto eacute de uma vida proacutespera e privilegiada do

aristocrata Esses homens ditos ociosos correspondiam moralmente ao ideal de ser humano e mereciam

por isso serem cidadatildeos por inteiro Os notaacuteveis da sociedade romana ldquonatildeo se consideravam superiores agrave

meacutedia da humanidade como os nobres do Antigo Regime consideravam-se a humanidade plena e inteira a

humanidade normal portanto os pobres eram moralmente inferiores [afinal] natildeo viviam como se deveria

viverrdquo (VEYNE 2009 p 115) Uma categoria abastada letrada e desejosa de reservar para si o controle da

poliacutetica exaltava o oacutecio afortunado como produto de uma cultura literaacuteria e de uma carreira puacuteblica O

trabalho da elite consistia no cumprimento dos deveres ciacutevicos e na administraccedilatildeo de seu patrimocircnio

6 ldquoNihil novum nihil varium nihil quod non semel spectasse sufficiatrdquo (Trad nossa comparada a Betty Radice 1969) 7 ldquoὭσπερ προσίσταταί σοι τὰ ἐν τῷ ἀμφιθεάτρῳ καὶ τοῖς τοιούτοις χωρίοις ὡς ἀεὶ τὰ αὐτὰ ὁρώμενα καὶ τὸ

ὁμοειδὲς προσκορῆ τὴν θέαν ποιεῖ τοῦτο καὶ ἐπὶ ὅλου τοῦ βίου πάσχεινrdquo (Trad Alex Martins 2002) 8 Na concepccedilatildeo da elite romana otium poderia equivaler a uma designaccedilatildeo temporal mas no contexto poliacutetico foi utilizado no sentido de um estado desejaacutevel de tranquilidade e seguranccedila (Pax e Concordia) Para aleacutem dessas duas categorias otium tambeacutem pode ser compreendida como um conceito qualitativo reflexo do caraacuteter moral do cidadatildeo romano Fagan (2006) distingue duas principais caracterizaccedilotildees do otium romano O otium de qualidade no sentido de contemplaccedilatildeo encontrava-se expresso nas atividades edificantes como a leitura e a escrita e tambeacutem na caccedila (Sen Ep 823) Jaacute o otium negativo relacionado agrave ociosidade e agrave preguiccedila apresentava-se no descanso nas tabernas ou na inatividade do pensamento nos espetaacuteculos de massa corrompendo a mente dos jovens e a disciplina dos soldados

[90]

(TONER 1995 p 26) Assim o trabalho implicaria obrigaccedilatildeo ao passo que o lazer implicaria ludicidade e

entretenimento para o corpo e mente Embora antagocircnicos lazer e trabalho do ponto de vista das elites

romanas encontravam-se intrinsecamente relacionados e amalgamados a um ideal de plenitude da vida

ciacutevica Em suma para os estoicos os espetaacuteculos e o lazer envolvidos nessa praacutetica eram passiacuteveis de

censura pois os membros da elite poderiam tornar-se presos ou viciados aos passatempos triviais das

massas e negligenciar as atividades mais apropriadas para o seu lugar social como por exemplo o estudo

das artes liberais (Tac Dial 293 WISTRAND 1992 p 43)

Os autores estoicos demonstram aleacutem disso aversatildeo agravequeles que enriqueceram com os jogos Todavia se

um senador recebesse o governo de uma proviacutencia mediante faustoso salaacuterio era considerado um homem

de respeito em conformidade com o ideal de vida poliacutetica A concepccedilatildeo antiga do trabalho era marcada por

uma seacuterie de ponderaccedilotildees a partir da posiccedilatildeo social pois natildeo dependiam da atividade que o indiviacuteduo

exercesse Um notaacutevel natildeo era definido pelo que fizesse natildeo importava o que fosse Poreacutem um homem

ordinaacuterio era classificado a partir da atividade que exercesse fosse sapateiro ou professor Para ser um

romano devia possuir patrimocircnio Quando um notaacutevel proclamava em seu epitaacutefio ter sido um bom

agricultor por exemplo ele desejava exprimir que teve talento para administrar suas terras e natildeo que havia

sido um agricultor de profissatildeo Os notaacuteveis obtinham honra consagrando-se agrave filosofia agrave eloquecircncia ao

direito agrave poesia Por isso a cidade lhes erguia estaacutetuas ndash tais atividades eram publicamente reverenciadas

via-se nelas respeito ou algo a respeitar-se Um romano por tradiccedilatildeo se definia por meio delas Ele dizia por

exemplo fui cocircnsul e filoacutesofo Foi por isso que Juvenal (Sat 7106-14) e Marcial (1074) lamentaram o fato

de aurigas e gladiadores serem premiados com riqueza fama sucesso e reconhecimento ao passo que

gramaacuteticos poetas e oradores trabalhavam em relativa pobreza e obscuridade (WISTRAND 1992 p 45)

Outra criacutetica dos estoicos aos jogos se referia agraves emoccedilotildees que despertavam emoccedilotildees natildeo condizentes de

acordo com eles com o estatuto do filoacutesofo razatildeo pela qual recomendavam atenccedilatildeo para com a

racionalidade o prazer e a virtude Defendiam desse modo que o homem deveria ser governado pela

racionalidade e natildeo pelas emoccedilotildees animalescas (uoluptates) Os prazeres nessa perspectiva deveriam ser

usufruiacutedos com moderaccedilatildeo a fim de natildeo tornarem o homem suave ou deacutebil (mollis) (WISTRAND 1992 p

12 MAMMEL 2014 p 606) Os espetaacuteculos eram portanto vistos como perigosos pois despertavam no

espectador segundo os filoacutesofos emoccedilotildees prazeres e instintos primitivos e sensuais desviando a atenccedilatildeo

do objetivo mais elevado que eram as atividades racionais (WISTRAND 1992 p 142-3) Diante disso a

soluccedilatildeo proposta era a moderaccedilatildeo dos prazeres que forneceria inclusive aliacutevio agrave mente do filoacutesofo Mas

para aqueles que natildeo conseguissem controlar a si proacuteprios a rejeiccedilatildeo completa aos prazeres seria a melhor

opccedilatildeo Os jogos eram vistos como um risco ateacute mesmo para aquele que possuiacutesse conhecimento filosoacutefico

quanto mais para aquele que natildeo o possuiacutea (MAMMEL 2014 p 606 ss) Essa criacutetica foi fundamental pois

os cristatildeos dela se valeram criando assim seus proacuteprios argumentos para a censura aos espetaacuteculos

[91]

Amiano Marcelino (14618-20 1572 38432) por exemplo foi conhecido pela sua famosa criacutetica satiacuterica

agrave sociedade romana participante dos espetaacuteculos puacuteblicos Para esse autor a principal acusaccedilatildeo imputada

ao circo era a loucura (furor) ou seja a perda de autocontrole manifestada na obsessatildeo que levava as

multidotildees a se interessar por tudo que se relacionava aos jogos circenses (JIMEacuteNEZ SAacuteNCHEZ 2001 p

462-463 BELL 2014 p 499) Essa criacutetica foi comumente repetida tal como um toacutepos retoacuterico ou seja uma

linha argumentativa na forma de lugar comum (Quint Inst 851-2 861-2 91-3) tanto na literatura

claacutessica pagatilde ou gentia quanto na literatura patriacutestica9 Tertuliano (Spect 161-3) usa exatamente a mesma

argumentaccedilatildeo para apresentar a pompa que marcava o iniacutecio dos ludi circenses comeccedilando com a chegada

tumultuada e freneacutetica dos espectadores ao espaccedilo luacutedico Nas palavras do rigorista africano a populaccedilatildeo

[] chegava jaacute esbravejante [cum furor] agitada cega e incitada a fazer apostas O pretor eacute lerdo os olhos rodam dentro da urna dele com as sortes Desde este lugar pendem para o sinal os ansiosos e uma soacute eacute a voz de uma soacute insacircnia Observe a insacircnia de sua futilidade lsquojogoursquo dizem e anunciam um apoacutes o outro aquilo que ao mesmo tempo foi visto por todos Eu apreendo o testemunho de sua cegueira natildeo veem o que foi jogado pensam ser o lenccedilo [que dava o sinal] mas eacute a imagem do diabo caiacutedo do alto (Tert Spect 161-3)10

Em outra de sua obra o rigorista afirma que o cristatildeo natildeo devia deixar-se arrastar ldquo[] pelos deliacuterios do

circo ou pelas atrocidades da arena ou pelas torpezas do teatrordquo (Tert Cult fem 184)11 Nestas e em outras

passagens desse tratado (Spect 152 161-4) e de outros fica expliacutecito que o furor marcava a perda do

autocontrole sendo um dos motivos principais para que os paleocristatildeos fossem proibidos de frequentar os

espaccedilos puacuteblicos especialmente o circo Tertuliano se inclui em uma tradiccedilatildeo discursiva ao repetir a

mesma admoestaccedilatildeo efetuada pelos filoacutesofos estoicos anteriores a ele mas tambeacutem marcando o iniacutecio de

uma recomendaccedilatildeo que foi repetida por uma longuiacutessima tradiccedilatildeo de autores posteriores a ele e

igualmente ligados agrave patriacutestica12

9 A escrita de Tertuliano comporta um estilo literaacuterio que manifesta sua formaccedilatildeo em retoacuterica especialmente pelo uso do exemplum (Tert Ad Her 44962 Cic Inv 1496 Quint Inst 5116) e de longi temporis praescriptio e traditio para discutir seus argumentos Esse estilo se apresenta com a utilizaccedilatildeo de exemplos histoacutericos cotidianos e filosoacuteficos para convencer a um puacuteblico geral (SIDER 1971 p 111) mas tambeacutem por um texto conciso contundente em rimas em ritmos e em figuras como simetria paralelismo assonacircncia aliteraccedilotildees circunloacutequios metaacuteforas aleacutem de paromoia (mesmas palavras paralelas em duas ou mais frases) homeoteleuton (rima baseada no teacutermino dos sintagmas) e homoiorcatarcta (palavras com iniacutecio similar) (MELRO 1974 p 21-22) 10 ldquo[] iam cum furore venientem iam tumultuosum iam caecum iam de sponsionibus concitatum tardus est illi praetor semper oculi in urna eius cum sortibus volutantur dehinc ad signum anxii pendent unius dementiae una vox est cognosce dementiam de vanitate lsquomisitrsquo dicunt et nuntiant invicem quod simul ab omnibus visum est teneo testimonium caecitatis non vident missum quid sit mappam putant sed est diaboli ab alto praecipitati figurardquo (Traduccedilatildeo nossa) Agradecemos a gentileza de Kaacutetia Regina Giesen no apoio e correccedilatildeo da traduccedilatildeo deste excerto 11 ldquocirci furoribus aut arenae atrocitatibus aut scenae turpitudinibusrdquo (Trad Fernando Melro 1974) 12 As queixas dos escritores da patriacutestica posteriores ndash com especial destaque para Novaciano Cipriano Agostinho e Isidoro que transcreveu o capiacutetulo nono do De Spectaculis quase ipsis litteris ndash e as contiacutenuas alegaccedilotildees contra a ida aos espetaacuteculos provam que a tentativa de Tertuliano teve pouco sucesso pelo menos nos dois primeiros seacuteculos apoacutes sua vida tendo relativa forccedila apenas quando foram constituiacutedos alguns dos conciacutelios da Igreja nos finais do quarto e iniacutecio do quinto seacuteculos ndash como o Terceiro e Quarto conciacutelio de Cartago em 397 e em 419 ndash quando foram tomadas medidas para impedir que os cristatildeos especialmente cleacuterigos e seus filhos frequentassem ou organizassem os jogos puacuteblicos

[92]

A uacuteltima criacutetica estoica aos jogos eacute vista principalmente em Secircneca em seu seacutetimo conjunto de Cartas a

Luciacutelio Tal criacutetica concernia ao elemento mais perigoso e censuraacutevel dos ludi para um filoacutesofo ou seja as

multidotildees Secircneca em sua admoestaccedilatildeo ao jovem Luciacutelio afirmou que as multidotildees tinham o poder de

corromper o homem prudente que se esforccedilava para viver virtuosamente porque despertava nele emoccedilotildees

primitivas e o fazia retornar agrave condiccedilatildeo de homem vicioso e pernicioso (MAMMEL 2014 p 607)13 Nas

palavras de Secircneca (Ep 71-2)

queres saber qual eacute a coisa que com maior empenho deves evitar A multidatildeo Ainda natildeo estaacutes em estado de frequentaacute-la em seguranccedila Eu confesso-te sem rodeios a minha proacutepria fraqueza nunca regresso com o mesmo caraacutecter com que saiacute de casa algo do que jaacute pusera em ordem eacute alterado algo do que jaacute conseguira eliminar regressa O mesmo que sucede aos doentes que uma longa debilidade natildeo deixa ir a parte alguma sem recaiacuteda nos acontece a noacutes cujo espiacuterito se estaacute refazendo de uma prolongada enfermidade Eacute-nos prejudicial o conviacutevio com muita gente natildeo haacute ningueacutem que nos natildeo pegue qualquer viacutecio nos contagie nos contamine sem noacutes darmos isso Por isso quanto maior eacute a massa a que nos juntamos tanto maior eacute o perigo Mas nada eacute tatildeo prejudicial para o bom caraacuteter como o haacutebito de descansar nos jogos em seguida eacute que o viacutecio sutilmente rasteja atraveacutes da avenida de prazer sobre aquele [que assiste aos jogos] []14

Nos espetaacuteculos de circo em que as aglomeraccedilotildees eram particularmente maiores o prazer e as emoccedilotildees

eram potencializadas fazendo com que o espectador ao regressar agrave casa se sentisse ldquo[] mais ganancioso

mais ambicioso mais voluptuoso e ainda mais cruel e desumano por ter estado entre tantos seres

humanosrdquo (Sen Ep 73)15 Finalmente para Secircneca e para os demais estoicos o perigo da multidatildeo residia

em sua capacidade de drenar as capacidades intelectuais e a forccedila moral dos filoacutesofos (Sen Ep 76)

Todas as criacuteticas acima assinaladas convergem para um ponto a elite romana em geral e os estoicos

especificamente se opunham aos espetaacuteculos de modo a definir e mais que isso defender a sua identidade

de elite filosoacutefica em clara oposiccedilatildeo agrave cultura popular e aos entretenimentos apreciados pelas camadas

sociais inferiores formada em grande parte por iletrados ou pessoas de escolaridade insipiente Essa

Isso mostra que essa ainda era uma praacutetica corrente nos seacuteculos posteriores e sua diminuiccedilatildeo converge com a atenuaccedilatildeo do evergetismo durante o desmantelamento do centro poliacutetico imperial (BAPTISTA 2015 p 248-260) 13 ldquoO estoicismo pretendeu atraveacutes de sua doutrina moral fornecer meios para que o homem pudesse garantir sua felicidade Ao assegurar o conhecimento de como o homem deveria agir a partir da identificaccedilatildeo dos bens e dos males morais e consequente atenuaccedilatildeo das paixotildees o filoacutesofo estoico estava certo de que dessa forma o homem estaria agindo conforme sua natureza E ainda que embora fosse naturalmente apropriado preferir a riqueza e a sauacutede agrave pobreza e agrave doenccedila esses bens considerados como preferiacuteveis e natildeo-preferiacuteveis natildeo fariam diferenccedila na conquista da felicidade idealmente entendida como ataraxiacutea ou seja a tranquilidade da almardquo (GUIMARAtildeES 2009 p 98) 14 ldquoQuid tibi vitandum praecipue existimes quaeris Turbam Nondum illi tuto committeris Ego certe confitebor inbecillitatem meam numquam mores quos extuli refero Aliquid ex eo quod conposui turbatur aliquid ex iis quae fugavi redit Quod aegris evenit quos longa inbecillitas usque eo adfecit ut nusquam sine offensa proferantur hoc accidit nobis quorum animi ex longo morbo reficiuntur Inimica est multorum conversatio nemo non aliquod nobis vitium aut commendat aut inprimit aut nescientibus adlinit Utique quo maior est populus cui miscemur hoc periculi plus est Nihil vero tam damnosum bonis moribus quam in aliquo spectaculo desidere Tunc enim per voluptatem facilius vitia subrepunt []rdquo (Trad Segurado e Campos 1991 com pequenas modificaccedilotildees nossas) 15 ldquoAvarior redeo ambitiosior luxuriosior immo vero crudelior et inhumanior quia inter homines fuirdquo (Trad Segurado e Campos 1991 com pequenas modificaccedilotildees nossas)

[93]

oposiccedilatildeo natildeo era constituiacuteda por uma rejeiccedilatildeo total e indiscriminada aos espetaacuteculos mas ao perigo que

representavam para o bem-estar intelectual e moral dos homens de bem da elite (MAMMEL 2014 p 607)

Em Tertuliano essa criacutetica foi transmutada e adaptada Em sua obra o paleocristatildeo tambeacutem alude aos

perigos da coletividade pois ldquoAssim como o engodo do dinheiro das honras da gula da devassidatildeo e da

gloacuteria eacute concupiscecircncia tambeacutem eacute concupiscecircncia o engodo do prazer e uma espeacutecie de prazer eacute a ida aos

espetaacuteculosrdquo (Spect 142)16 Tornavam-se assim perturbados ldquo[] com as aacutescuas do furor e da biacutelis da ira e

do desesperordquo (Spect 152)17 pois toda a assistecircncia a um espetaacuteculo provocava emoccedilotildees natildeo espirituais

mesmo naqueles que conseguissem apreciar ldquoo espetaacuteculo modesta e retamente por atender ao respeito

que a si deve ou ainda por imposiccedilatildeo da idade ou do temperamento natildeo se livra ao abalo espiritual e ao

fogo sob as cinzas duma paixatildeo larvadardquo (Spect 155)18 O atleta nesse contexto tinha participaccedilatildeo decisiva

na contaminaccedilatildeo pecaminosa pois era um ldquo[] inquietador de tanta cabeccedila vatilde e agitador de tantas paixotildees

cingido da coroa rostral como sacerdote coroado e pintalgado como rufiatildeo de alcouce a quem o diabo

embelezou para arremeter contra Elias e o arrebatar em um carro por esses ares forardquo (Spect 232)19

No que concerne aos judeus a sua oposiccedilatildeo a maioria das tradiccedilotildees greco-romanas como deturpadoras da

cultura da moralidade ancestral e das tradiccedilotildees religiosas judaicas pode ser visualizada em um contexto

muito antigo ainda no periacuteodo poacutes-alexandrino O conflito decorrente das atitudes helenizadas como a

instituiccedilatildeo dos jogos pode ser confirmado jaacute no Segundo Livro de Macabeus (49-15 18-19) Essa narrativa

apresenta um tom criacutetico agrave valorizaccedilatildeo da cultura helecircnica e luacutedica de ginaacutesio durante o final do reinado de

Seleuco IV Filopaacuteter (186 ndash 176 aC) precedido por Antiacuteoco IV Epiacutefacircnio que governou a Siacuteria Palestina

entre 175 e 164 aC (GIORDANI 2001 p 150 KIPPENBERG 1988 p 77) Vaacuterias das atitudes do governo

helenizado ndash especialmente as que reforccedilavam o estigma de outsiders sociais e poliacuteticos dos judeus pelos

seus costumes distintos ou maciccedila capacidade de agir como coletivo ndash levaram a conflitos com as

autoridades nos quais se destacou o papel de Judas Macabeu que liderou uma seacuterie de revoltas contra o

Impeacuterio Selecircucida entre os anos de 167 e 160 aC (RUSSELL 1973 p 18 ASURMENDI 2004 p 426) A

atitude de resistir agravequeles considerados opressores da feacute tradicional pode ser vista durante grande parte

da histoacuteria do povo judaico chegando tambeacutem agrave promoccedilatildeo ostensiva dos jogos e espetaacuteculos sob o governo

do rei-cliente Herodes I o Grande de 37 a 4 aC Segundo Rajak (2003 p 3)

Herodes que era de uma famiacutelia idumeia mas que havia se convertido ao judaiacutesmo chamou a si mesmo natildeo soacute Philoroacutemaios um amante de Roma mas tambeacutem um amante dos

16 ldquoNam sicut pecuniae vel dignitatis vel gulae vel libidinis vel gloriae ita et voluptatis concupiscentia est species autem voluptatis etiam spectaculardquo 17 ldquo[] non furore non bile non ira non dolore inquietarerdquo 18 ldquoNam et si qui modeste et probe spectaculis fruitur pro dignitatis vel aetatis vel etiam naturae suae condicione non tamen immobilis animi est et sine tacita spiritus passionerdquo 19 ldquo[] tot animarum inquietator tot furiarum minister tot statuum ut sacerdos coronatus vel coloratus ut leno quem curru rapiendum diabolus adversus Elian exornavitrdquo

[94]

gregos e seu orgulho em sua proacutepria cultura grega expressaram-se em atos como a fundaccedilatildeo de cidades gregas e benfeitorias para os Jogos Oliacutempicos Atos que natildeo se limitaram ao mundo pagatildeo mas tiveram um impacto tambeacutem dentro da Palestina judaica Como resultado a clivagem entre os judeus se intensificou

De fato para os judeus um grupo eacutetnico-religioso que guardava certo distanciamento da cultura pagatilde os

espetaacuteculos ndash natildeo importando seu estilo niacutevel de violecircncia ou competitividade ndash eram censuraacuteveis por

razotildees morais consuetudinaacuterias (MCCLISTER 2008 p 131 PATRICH 2002 p 231-9) Dentro do

pensamento judaico a reaccedilatildeo aos jogos foi tambeacutem evidenciada pelo historioacutegrafo Flaacutevio Josefo que

descreve vaacuterias objeccedilotildees aos espetaacuteculos instituiacutedos por Herodes sempre elucidando sua preocupaccedilatildeo

com a defesa da cultura e moralidade judaicas uma vez que os jogos levariam os homens agrave negligecircncia da feacute

(KASHER 1996 p 152-6) Um trecho em especial embora longo merece ser citado

Assim Herodes com poder absoluto e plena liberdade para fazer o que queria natildeo teve receio de se afastar cada vez mais das tradiccedilotildees de nossos antepassados Aboliu os nossos antigos costumes que lhe deveriam ser inviolaacuteveis para introduzir outros trazendo assim uma estranha mudanccedila na disciplina que mantinha o povo no cumprimento do dever Comeccedilou por instituir jogos lutas e corridas que se faziam cada cinco anos em honra de Augusto e mandou construir para esse fim um circo em Jerusaleacutem e um grande anfiteatro fora da cidade Esses dois edifiacutecios eram soberbos mas contraacuterios aos nossos costumes que natildeo nos permitem assistir a semelhantes espetaacuteculos [] O circo era rodeado de inscriccedilotildees em louvor a Augusto e de trofeacuteus das naccedilotildees que ele tinha vencido Havia ouro e prata ricos vestuaacuterios e pedras preciosas Mandou tambeacutem vir de todas as partes grande quantidade de animais ferozes como leotildees e outros animais cuja forccedila extraordinaacuteria ou alguma qualidade rara suscitava admiraccedilatildeo e curiosidade [] Mas os judeus o consideravam uma deturpaccedilatildeo e uma corrupccedilatildeo da disciplina de seus antepassados Nada lhes parecia mais iacutempio que expor homens ao furor das feras por um prazer tatildeo cruel ou abandonar os santos costumes para abraccedilar os de naccedilotildees idolatras Os trofeacuteus que lhes pareciam cobrir figuras de homens natildeo lhes eram menos insuportaacuteveis porque violavam inteiramente as nossas leis Herodes vendo-os com esses sentimentos julgou natildeo dever usar de violecircncia Falou-lhes com muita afabilidade procurando fazecirc-los compreender que aquele temor procedia apenas de uma vatilde supersticcedilatildeo Mas natildeo conseguiu persuadi-los Convictos de que ele cometia um graviacutessimo pecado declararam que ainda que tolerassem o resto natildeo permitiriam jamais em suas cidades imagens ou figuras de homens porque a sua religiatildeo o proibia expressamente Herodes facilmente concluiu por essas palavras que o uacutenico meio de acalmaacute-los era livraacute-los daquele engano Levou alguns deles ao circo mostrou-lhes vaacuterios trofeacuteus e perguntou-lhes o que pensavam que eram Eles responderam que eram figuras de homens Entatildeo ele mandou tirar todos os ornamentos restando apenas os cabides sobre os quais estavam pendurados Todos acharam graccedila e o tumulto acalmou-se Quase todos vieram a tolerar com facilidade o resto mas alguns natildeo mudaram os seus sentimentos nem a sua opiniatildeo O horror que tinham aos costumes estrangeiros lhes fazia crer que natildeo podiam ser introduzidos sem prejuiacutezo das tradiccedilotildees de nossos antepassados e sem causar a ruiacutena da naccedilatildeo Assim natildeo consideraram mais Herodes seu rei e sim um inimigo E resolveram antes expor-se a qualquer coisa que tolerar tatildeo grande mal (Jos AJ 11660 grifo nosso)20

20 Διὰ τοῦτο καὶ μᾶλλον ἐξέβαινεν τῶν πατρίων ἐθῶν καὶ ξενικοῖς ἐπιτηδεύμασιν ὑποδιέφθειρεν τὴν πάλαι

κατάστασιν ἀπαρεγχείρητον οὖσαν ἐξ ὧν οὐ μικρὰ καὶ πρὸς τὸν αὖθις χρόνον ἠδικήθημεν ἀμεληθέντων ὅσα

πρότερον ἐπὶ τὴν εὐσέβειαν ἦγεν τοὺς ὄχλους πρῶτον μὲν γὰρ ἀγῶνα πενταετηρικὸν ἀθλημάτων

κατεστήσατο Καίσαρι καὶ θέατρον ἐν Ἱεροσολύμοις ᾠκοδόμησεν αὖθίς τ᾽ ἐν τῷ πεδίῳ μέγιστον ἀμφιθέατρον

περίοπτα μὲν ἄμφω τῇ πολυτελείᾳ τοῦ δὲ κατὰ τοὺς Ἰουδαίους ἔθους ἀλλότρια [] τό γε μὴν θέατρον

ἐπιγραφαὶ κύκλῳ περιεῖχον Καίσαρος καὶ τρόπαια τῶν ἐθνῶν ἃ πολεμήσας ἐκεῖνος ἐκτήσατο χρυσοῦ τε

ἀπέφθου καὶ ἀργύρου πάντων αὐτῷ πεποιημένωντὰ δ᾽ εἰς ὑπηρεσίαν οὐδὲν οὕτως ἦν οὔτ᾽ ἐσθῆτος τίμιον οὔτε

[95]

De acordo com Josefo os espetaacuteculos romanos eram uma afronta agraves tradiccedilotildees e agrave moralidade ancestral dos

judeus elementos centrais na definiccedilatildeo de sua identidade cultural Assim a oposiccedilatildeo a eles era um meio de

defender e definir a identidade judaica contra as influecircncias estrangeiras tidas como perniciosas Em Sobre

as Guerras Judaicas elaborada entre 75 e 79 do mesmo autor fica claro que os jogos tambeacutem significavam

para os judeus uma referecircncia agrave autoridade romana exercida sobre sua terra natal bem como a

consequente perda da estabilidade e autonomia poliacutetica A edificaccedilatildeo do mais famoso anfiteatro o Coliseu

ou Anfiteatro Flaacutevio era uma lembranccedila constante dos horrores da guerra da Judeia pois

a construccedilatildeo do Coliseu comeccedilou no iniacutecio dos anos 70 apoacutes a conclusatildeo da primeira guerra judaica e os prisioneiros judeus podem ter trabalhado nele [] A inscriccedilatildeo dedicatoacuteria na fachada da estrutura anunciava para os espectadores alfabetizados que [IMP T CAES VESPASIANVS AVG AMPHITHEATRUM NOVUM EX MANVBIS FIERI IVSSIT] ldquo[O Imperador Ceacutesar] Vespasiano [Augusto] fez esse [novo anfiteatro] a ser erigido a partir dos despojos [de guerra Isto eacute de sua vitoacuteria na Judeacuteia]rdquo [] O anfiteatro mais famoso do Impeacuterio Romano eacute assim um monumento agrave sujeiccedilatildeo dos judeus (MACLEAN 2014 p 585)

Aleacutem disso Josefo (BJ 21 31 55-6) registra que Tito teria executado milhares de judeus cativos atirando-

os aos animais ou obrigando-os a lutar entre si O triunfo que Vespasiano e Tito celebraram em Roma no

veratildeo de 71 incluiu uma procissatildeo de prisioneiros judeus Em certa medida os locais destinados a esses

espetaacuteculos coletivos funcionavam como instrumentos de controle social como mecanismos de dissuasatildeo

aos que de alguma forma atentassem contra os interesses imperiais Era o caso das minorias religiosas por

vezes estigmatizadas como inimigos de Roma Em suma os espetaacuteculos puacuteblicos teriam auxiliado na

humilhaccedilatildeo dos judeus Quando Josefo afirmou que os espetaacuteculos levavam agrave negligecircncia das observacircncias

da feacute (mesmo argumento empregado em 2 Mac 413-15) ele se referia muito mais do que meramente ao

tempo despendido nos espetaacuteculos pois enfatizava maldade impiedade praacuteticas estranhas subordinaccedilatildeo

e idolatria proacuteprios do recinto dos jogos que minavam seus costumes e regras de feacute e praacutetica diluindo

σκευῆς λίθων ὃ μὴ τοῖς ὁρωμένοις ἀγωνίσμασιν συνεπεδείκνυτο παρασκευὴ δὲ καὶ θηρίων ἐγένετο λεόντων τε

πλείστων αὐτῷ συναχθέντων καὶ τῶν ἄλλων ὅσα καὶ τὰς ἀλκὰς ὑπερβαλλούσας ἔχει καὶ τὴν φύσιν ἐστὶν

σπανιώτερα [] ἀσεβὲς μὲν γὰρ ἐκ προδήλου κατεφαίνετο θηρίοις ἀνθρώπους ὑπορρίπτειν ἐπὶ τέρψει τῆς

ἀνθρώπων θέας ἀσεβὲς δὲ ξενικοῖς ἐπιτηδεύμασιν ἐξαλλάττειν τοὺς ἐθισμούς πάντων δὲ μᾶλλον ἐλύπει τὰ

τρόπαια δοκοῦντες γὰρ εἰκόνας εἶναι τὰς τοῖς ὅπλοις περιειλημμένας ὅτι μὴ πάτριον ἦν αὐτοῖς τὰ τοιαῦτα

σέβειν οὐ μετρίως ἐδυσχέραινον Ἐλάνθανον δ᾽ οὐδὲ τὸν Ἡρώδην ἐκταραττόμενοι καὶ βίαν μὲν ἐπάγειν

ἄκαιρον ᾤετο καθωμίλει δ᾽ ἐνίους καὶ παρηγόρει τῆς δεισιδαιμονίας ἀφαιρούμενος οὐ μὴν ἔπειθεν ἀλλ᾽ ὑπὸ

δυσχερείας ὧν ἐδόκουν ἐκεῖνον πλημμελεῖν ὁμοθυμαδὸν ἐξεβόων εἰ καὶ πάντα δοκοῖεν οἰστά μὴ φέρειν

εἰκόνας ἀνθρώπων ἐν τῇ πόλει τὰ τρόπαια λέγοντες οὐ γὰρ εἶναι πάτριον αὐτοῖς Ἡρώδης δὲ τεταραγμένους

ὁρῶν καὶ μὴ ῥᾳδίως ἂν μεταπεσόντας εἰ μὴ τύχοιεν παρηγορίας καλέσας αὐτῶν τοὺς ἐπιφανεστάτους εἰς τὸ

θέατρον παρήγαγεν καὶ δείξας τὰ τρόπαια τί ποτ᾽ ἔστιν ὃ δοκεῖ ταῦτα αὐτοῖς ἐπύθετο τῶν δὲ ἐκβοησάντων

ἀνθρώπων εἰκόνες ἐπιτάξας ἀφαιρεθῆναι τὸν περιθέσιμον κόσμον ἐπιδείκνυσιν αὐτοῖς γυμνὰ τὰ ξύλα τὰ δ᾽

εὐθὺς ἦν ἀποσυληθέντα γέλως καὶ πλεῖστον εἰς διάχυσιν ἐδυνήθη τὸ καὶ πρότερον αὐτοὺς ἐν εἰρωνείᾳ τίθεσθαι

τὰς κατασκευὰς τῶν ἀγαλμάτων Τοῦτον δὲ τὸν τρόπον αὐτοῦ παρακρουσαμένου τὸ πλῆθος καὶ τὴν ὁρμὴν ἣν

ἐπεπόνθεισαν ἐξ ὀργῆς διαχέαντος οἱ μὲν πλείους εἶχον ὡς μεταβεβλῆσθαι καὶ μὴ χαλεπαίνειν ἔτι τινὲς δ᾽

αὐτῶν ἐπέμενον τῇ δυσχερείᾳ τῶν οὐκ ἐξ ἔθους ἐπιτηδευμάτων καὶ τὸ καταλύεσθαι τὰ πάτρια μεγάλων

ἡγούμενοι ἀρχὴν κακῶν ὅσιον ᾠήθησαν ἀποκινδυνεῦσαι μᾶλλον ἢ δοκεῖν ἐξαλλαττομένης αὐτοῖς τῆς

πολιτείας περιορᾶν Ἡρώδην πρὸς βίαν ἐπεισάγοντα τὰ μὴ δι᾽ ἔθους ὄντα καὶ λόγῳ μὲν βασιλέα τῷ δ᾽ ἔργῳ

πολέμιον φαινόμενον τοῦ παντὸς ἔθνους (Trad Vicente Pedroso 2005)

[96]

aquilo que os fazia um grupo coeso religiosamente Esse argumento que eacute reciclado por Tertuliano sob um

vieacutes paleocristatildeo por exemplo quando afirmava que a ida aos espetaacuteculos aleacutem de perigosa pois qualquer

um poderia ser dominado por legiotildees satacircnicas por estarem afastados de Deus e em espaccedilo demoniacuteaco

(Spect 261-4) causava um movimento da perda de controle do corpo e do espiacuterito uma vez que os

espectadores nem a si mesmos se pertenciam trazendo a hipocrisia e a incoerecircncia para dentro da

comunidade paleocristatilde (Spect 165)

A alteridade judaica assim como a paleocristatilde seacuteculos depois teria sido demarcada dentre outras

variaacuteveis pela recusa aos jogos muito embora tenhamos conhecimento de que dentre os espectadores do

circo ou do anfiteatro houvesse judeus Essa praacutetica pode ser confirmada pois segundo Weiss (1999 p

44) havia assentos reservados para os judeus em teatros provinciais MacLean (2014 p 585) afirma que

[] uma parte substancial de judeus foram provavelmente os cidadatildeos romanos e portanto elegiacutevel para se misturar com o resto do puacuteblico [] Judeus em Roma teriam se encontrado na posiccedilatildeo de negociar identidades muacuteltiplas simultaneamente em primeiro lugar decidir se a assistir aos jogos entatildeo se a sentarem-se uns com os outros ou se misturar com o resto da multidatildeo e finalmente como responder agraves demonstraccedilotildees de valor marcial e do imperialismo que eram encenadas na arena

McClister (2008 p 141) interpretando o deuterocanocircnico 1 Livro dos Macabeus (114-15) esclarece

sobre a praacutetica de reversatildeo da circuncisatildeo por epispasmo ciruacutergico uma indicaccedilatildeo de como os elementos

ou marcadores da etnia judaica foram menos fixos do que poderiacuteamos supor O autor de Macabeus retrata

que ldquoconstruiacuteram entatildeo em Jerusaleacutem uma praccedila de esportes (γυμνάσιον gymnaacutesium) segundo os

costumes das naccedilotildees restabeleceram seus prepuacutecios e renegaram a Alianccedila sagrada Assim associaram-se

aos pagatildeos e se venderam para fazer o malrdquo21 A razatildeo para o ato de reconstruccedilatildeo do prepuacutecio se deveu ao

fato de que para gregos e romanos era considerado inaceitaacutevel um homem frequentar um banho puacuteblico

ou ginaacutesio circuncidado Mediante esse relato o fato de alguns judeus decidirem participar em uma das

instituiccedilotildees heleniacutesticas mais importantes o ginaacutesio diz muito sobre o grau de aculturaccedilatildeo heleniacutestica e das

mudanccedilas propiciadas por Herodes no cotidiano e nas sociabilidades da Palestina judaica (MCCLISTER

2008 p 141) Essas interaccedilotildees sociais natildeo eram propriamente uma novidade uma vez que

a disseminaccedilatildeo gradual do poder romano criou uma situaccedilatildeo em que literalmente centenas de grupos eacutetnicos distintos adotaram aspectos da cultura romana pelo menos em algum grau Este foi um processo complexo que envolveu vaacuterios niacuteveis de aceitaccedilatildeo ativa compulsatildeo aquiescecircncia e resistecircncia O espetaacuteculo como uma encenaccedilatildeo puacuteblica de normas e praacuteticas dos romanos era um cenaacuterio particularmente importante onde esse processo foi desenrolado (MACLEAN 2014 p 585)

21 ldquoκαὶ ᾠκοδόμησαν γυμνάσιον ἐν Ιεροσολύμοις κατὰ τὰ νόμιμα τῶν ἐθνῶν καὶ ἐποίησαν ἑαυτοῖς ἀκροβυστίας

καὶ ἀπέστησαν ἀπὸ διαθήκης ἁγίας καὶ ἐζευγίσθησαν τοῖς ἔθνεσιν καὶ ἐπράθησαν τοῦ ποιῆσαι τὸ πονηρόνrdquo (Trad Biacuteblia de Jerusaleacutem 2006) A criaccedilatildeo do ginaacutesio e a valorizaccedilatildeo da cultura helecircnica podem ser observadas tambeacutem no 2 Livro de Macabeus (49-15 18-19) e em Flaacutevio Josefo (AJ 12237-41)

[97]

Estudos recentes como Weiss (1999 p 23-49) e Maclean (2014 p 578-589) demonstraram tambeacutem que

os judeus da Palestina comeccedilaram a aceitar os jogos romanos como parte de seu background sociocultural jaacute

no final do primeiro seacuteculo o que foi atestado pela proliferaccedilatildeo de espetaacuteculos e jogos naquela regiatildeo ao

longo do segundo e terceiro seacuteculos Em outras palavras a reaccedilatildeo judaica aos jogos e espetaacuteculos exprimiu

natildeo apenas um diaacutelogo entre centro e periferia entre estabelecidos e outsiders mas tambeacutem entre os

proacuteprios membros de um grupo religioso na fronteira com integrantes de diversos estamentos sociais que

entravam em conflito e diaacutelogo no ambiente urbano e que deviam por meio de suas praacuteticas e

representaccedilotildees criar e diferir a si mesmos na criaccedilatildeo e coesatildeo de uma identidade de modo que ao mesmo

tempo gerenciassem da melhor forma possiacutevel suas interaccedilotildees na complexidade do dia a dia

Nosso objetivo foi identificar as principais objeccedilotildees aos jogos levantadas por grupos diferentes dentro da

cultura romana especialmente os estoicos e os judeus Isso foi feito de maneira a evidenciar que existiam

diversas criacuteticas aos espetaacuteculos anteriores ao cristianismo e que elas alimentam de alguma maneira as

reflexotildees dos Padres da Igreja No Impeacuterio cada grupo criava uma autorrepresentaccedilatildeo mediante rejeiccedilatildeo

ou aceitaccedilatildeo de determinados marcadores culturais negociando no cotidiano sua identidade processo

para o qual os espetaacuteculos contribuiacuteram sobremaneira Significa dizer tambeacutem que nem sempre a dimensatildeo

retoacuterica corresponde a uma praacutetica coerente e homogecircnea ndash quando o cotidiano estava em pauta a palavra

e a accedilatildeo poderiam ser elementos avessos

A oposiccedilatildeo agrave ida aos espetaacuteculos estava intimamente ligada aos processos de autorrepresentaccedilatildeo e

formaccedilatildeo da identidade Segundo Mammel (2014 p 603) ldquo[] a proacutepria cultura de espetaacuteculo romano [e

tambeacutem helecircnica] desempenhou um papel fundamental na formaccedilatildeo de muitos aspectos da identidade

romana e para a sociedade romana como um todo ateacute mesmo a oposiccedilatildeo aos espetaacuteculos forneceu um

meio de automodificaccedilatildeo individual e dentro do grupordquo Isso significa dizer que ao rejeitar e denunciar as

mazelas reais ou simboacutelicas dos jogos romanos os criacuteticos foram capazes de se definir e posicionar-se em

relaccedilatildeo a outros grupos antigos Para os estoicos a alteridade era manifesta no comportamento das massas

incultas Para os judeus e em breve para os paleocristatildeos os jogos significavam corrupccedilatildeo violecircncia

escravidatildeo e subserviecircncia diante dos pagatildeos que mesmo compartilhando certo background cultural

possuiacuteam outros coacutedigos de moralidade e de identidade

Nesse sentido a disciplina proposta por Tertuliano natildeo seria totalmente ineacutedita uma vez que dentre as

principais ideias do cartaginecircs se destacam os argumentos tomados de empreacutestimo altamente

influenciados pelas correntes filosoacuteficas epicurista ciacutenica e gnoacutestica e como visto neste trabalho estoica

Sobre o uso da filosofia na teologia de Tertuliano Roberts (1924 p 42) afirmou

[98]

quando olhamos para obras de Tertuliano natildeo encontramos qualquer posiccedilatildeo sistemaacutetica adotada que natildeo seja baseada na leitura biacuteblica [] Ele de fato aceita algumas das ideias pagatildes em circulaccedilatildeo desde que elas natildeo contradigam as Escrituras [] por exemplo em De anima onde as ideias teacutecnicas dos estoicos sobre a natureza da alma satildeo implementadas contra Hermoacutegenes embora mais tarde os Padres natildeo considerassem tais ideias como neutras ou objetivas mas sim ao contraacuterio do ensino inspirado Ele era tambeacutem muito disposto a fazer uso de argumentos filosoacuteficos para mostrar o erro da heresia Mas parece que isso tudo satildeo espeacutecies de ferramentas retoacutericas para discutir com os pagatildeos afinal ele poderia igualmente rejeitar em outros contextos um mesmo argumento utilizado por ele

A partir da anaacutelise de Roberts e por meio interpretaccedilatildeo de uma passagem de Sobre a prescriccedilatildeo dos hereges

(79-13) podemos afirmar que a autoridade maacutexima para Tertuliano natildeo seria encontrada em ideias

inventadas ou desenvolvidas por homens e sim apenas na inspiraccedilatildeo divina Em um trecho exaltado arguiu

O que tem Atenas a ver com Jerusaleacutem Que relaccedilatildeo haacute entre a Academia e a Igreja O que os hereges tecircm com os cristatildeos Nossas instruccedilotildees vecircm do poacutertico de Salomatildeo que ensinou ele mesmo que o Senhor deve ser procurado na simplicidade de coraccedilatildeo Fora com todas as tentativas de criar um cristianismo estoico platocircnico e dialeacutetico (Tert Praes her 79-11)22

Assim mesmo que utilizasse vaacuterios argumentos da filosofia Tertuliano (Praes her 712-13) a rejeitou

completamente pois para ele a experiecircncia cristatilde devia ser vivida por experiecircncia empiacuterica Ele afirmava

que esta era a verdade revelada e vivenciada diariamente recusando-se assim a adulteraacute-la com qualquer

outro material meramente transitoacuterio fosse de matriz filosoacutefica ou dos demais textos escritos claacutessicos

(JOHNSON 2001 p 63 ROBERTS 1924 p 42 ss)

Ao mesmo tempo ele tambeacutem polemizou ldquo[] com os autores romanos baseando-se e utilizando as

referecircncias das representaccedilotildees sistematizaccedilotildees e argumentaccedilotildees sobre a religiatildeo romana que se

encontram nestes mesmos autoresrdquo (AMES 2008 p 55) Em grande medida as principais influecircncias

literaacuterias claacutessicas para os autores paleocristatildeos eram os escritores latinos escolares consagrados com os

quais eacute provaacutevel que o cartaginecircs tenha sido alfabetizado23 Fica clara aqui a recepccedilatildeo paleocristatilde dos

claacutessicos da cultura pagatilde uma vez que as formas e gecircneros greco-romanos foram continuamente

22 ldquoQuid ergo Athenis et Hierosolymis quid academiae et ecclesiae quid haereticis et christianis Nostra institutio de porticu Solomonis est qui et ipse tradiderat Dominum in simplicitate cordis esse quaerendum Viderint qui Stoicum et Platonicum et dialecticum christianismum protuleruntrdquo (Trad Cristiana de Assis Serra 2001) 23 Especialmente importante para Tertuliano assim como tambeacutem para toda a tradiccedilatildeo da patriacutestica latina posterior a ele satildeo obras como o Sobre a Natureza dos Deuses de Ciacutecero ou as Antiguidades das coisas humanas e divinas de Varratildeo (AMES 2008 p 47-48) Aleacutem disso em Sobre os espetaacuteculos (58) Tertuliano tambeacutem faz uso de uma obra claacutessica muito relevante para a temaacutetica luacutedica de autoria de Suetocircnio no princiacutepio do segundo seacuteculo nomeada como Ludicrae Historiae hoje perdida Segundo o testemunho do proacuteprio esse trabalho de Suetocircnio foi a fonte principal para elucidar os aspectos mais teacutecnicos as origens mitoloacutegicas e religiosas dos jogos e elementos luacutedicos e a relaccedilatildeo dos espetaacuteculos com as festas religiosas romanas presentes no De spectaculis (58) Contudo Tertuliano em seu texto fez somente menccedilatildeo ao autor e natildeo agrave obra Dessa forma a posteridade soacute conheceu o tiacutetulo dessa obra graccedilas agrave menccedilatildeo da mesma no nono livro das Noites Aacuteticas (de Aulo Geacutelio (973) ldquoa partir desta uacuteltima podemos deduzir algumas das caracteriacutesticas do trabalho deste historioacutegrafo [Suetocircnio] Nela se examinavam quatro tipos de espetaacuteculos os ludi circenses os theatrici os athletici e finalmente o munus gladiatorio ndash era provaacutevel que estivesse compreendido tambeacutem os ludi uenatoriirdquo (JIMEacuteNEZ SAacuteNCHEZ 2001 p 16)

[99]

absorvidos e renovados das mais diferentes formas pelos autores cristatildeos Elucidativo eacute perceber que

mesmo Tertuliano fazendo uso em seu texto dos autores claacutessicos como Varratildeo (Ling 5154 em Spect 53)

Suetocircnio (Ludicra Historia em Spect 58) e Virgiacutelio (Georg 3113-114 em Spect 92) em outra parte de sua

obra renegou toda a literatura pagatilde Assim o apologista explicitou que os ouvidos e os olhos do verdadeiro

cristatildeo deveriam estar a serviccedilo do espiacuterito e para que isso fosse efetuado o fiel deveria rejeitar toda a

literatura claacutessica vista como profana em especial as obras de trageacutedia e comeacutedia (Tert Spect 175)

Mesmo que ele proacuteprio tenha utilizado o conhecimento e os textos claacutessicos Tertuliano foi peremptoacuterio

toda a literatura claacutessica natildeo deveria ser lida nem citada pois isso seria consentir com seu conteuacutedo

lascivo criminoso e devasso (Spect 294) A justificativa para que ele acessasse essa tradiccedilatildeo portanto era

a de exposiccedilatildeo do engano demoniacuteaco presente nesses textos

O emprego do gecircnero apologeacutetico pelos autores latinos paleocristatildeos mediante a apropriaccedilatildeo dos cacircnones

claacutessicos principalmente em momentos de enfrentamento retoacuterico representava uma estrateacutegia

discursiva de um grupo que lutava pelo estabelecimento de sua identidade e por maior influecircncia social em

um contexto de desigual de distribuiccedilatildeo do poder e de busca de legitimidade social (SIDER 1978 p 340)

Em grande medida isso se explica segundo Corbeill (2007 p 70) porque a praacutetica retoacuterica especialmente

nos periacuteodos republicano e imperial romanos trabalhou de modo a reafirmar o pensamento hieraacuterquico

existente ou propor uma contestaccedilatildeo por meio do embate discursivo ou do convencimento da audiecircncia

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Entre manuscritos e impressos do corpus Cypriani a transmissatildeo das obras de Cipriano de Cartago

Carolline da Silva Soares

carollinesgmailcom

A produccedilatildeo literaacuteria de Cipriano eacute vasta sobretudo se

consideramos o breve periacuteodo em que ocupou o episcopado de

Cartago entre 249 e 258 e redigiu os seus escritos Considerava

Tertuliano o seu mestre e de fato foi muito influenciado pelos

escritos dele Poreacutem seu estilo literaacuterio natildeo eacute impetuoso como o de

Tertuliano pelo contraacuterio sua maneira de escrever eacute considerada

mais calma tranquila e ponderada (CARDOSO 2011 p 182) O

corpus Cypriani tal como o conhecemos hoje abarca 81 cartas e 13

tratados de extensatildeo proveniecircncia e conteuacutedo muito diversos

Algumas cartas se perderam e provavelmente alguns de seus

sermotildees tambeacutem Cipriano foi liacuteder eclesiaacutestico eminentemente de

accedilatildeo como demonstra sua intensa correspondecircncia

O objetivo em nossa tese de doutorado foi demonstrar como se

desenvolveu o conflito em torno do rebatismo dos lapsi na

comunidade cartaginesa liderada por Cipriano e analisar a defesa

que ele fez acerca da autoridade episcopal bem como da ldquopurezardquo

da Igreja Assim selecionamos as 81 cartas e oito dos tratados de

Cipriano ndash Ad Donatum Ad Demetrianum De lapsis De catholicae

Ecclesiae unitate De mortalitate De habitu uirginum De opere et

eleemosynis e De bono patientiae ndash como fonte documental do nosso

[103]

trabalho Tais tratados nos permitiram elucidar as praacuteticas cotidianas dos cristatildeos em interaccedilatildeo com os

adeptos de outras crenccedilas em Cartago e as admoestaccedilotildees de Cipriano com a finalidade de disciplinar a

congregaccedilatildeo cartaginesa com vistas a manter a unidade da igreja Por isso neste artigo iremos tratar apenas

dos oito tratados que utilizamos para a escritura de nossa tese

A composiccedilatildeo dos tratados

Considerados em conjunto e tendo em conta o conteuacutedo e a forma Cipriano possui 13 tratados autecircnticos

que podem ser repartidos em pelo menos trecircs grupos O primeiro deles se refere aos tratados de teor

apologeacutetico como eacute o caso do Ad Donatum Quod idola dii non sint Ad Demetrianum Ad Fortunatum e Ad

Quirinum o segundo grupo aos escritos de teor disciplinar tais como o De lapsis De catholicae Ecclesiae

unitate e De mortalitate e o terceiro por sua vez abrange os sermotildees e exortaccedilotildees pastorais como o De

habitu uirginum De dominica oratione De opere et eleemosynis De bono patientiae e De zelo et lioure

As Epistulae de Cipriano

A preeminecircncia da igreja de Cartago os impasses da atividade pastoral a cronologia dos conciacutelios sua

periodicidade e os temas neles discutidos entre outros assuntos satildeo aspectos que a correspondecircncia de

Cipriano nos permite conhecer com riqueza de detalhes (SALCEDO GOacuteMEZ 2002 p 9) A correspondecircncia

de Cipriano eacute abundante e nos traz informaccedilotildees valiosas sobre a organizaccedilatildeo da Igreja a disciplina

eclesiaacutestica os fundamentos da doutrina e a liturgia As Epistulae nos informam sobretudo acerca do

cotidiano de um bispo influente numa das proviacutencias mais importantes do Impeacuterio Romano em meados do

seacuteculo III dC

As cartas que compotildeem o corpus Cypriani foram destinadas tanto a indiviacuteduos em geral cleacuterigos quanto a

grupos de trecircs ou quatro pessoas e tambeacutem agraves congregaccedilotildees de diversas localidades especialmente agrave de

Cartago1 O estilo de Cipriano foi quase sempre o de um orador mesmo quando ele escreve a pessoas

privadas2

O epistolaacuterio tal como o possuiacutemos hoje foi constituiacutedo pouco a pouco Cipriano guardava coacutepia das

correspondecircncias que enviava e a elas juntava as respostas que recebia Assim tinha sempre agrave matildeo as cartas

que havia escrito podendo exibi-las ou enviaacute-las a outros destinataacuterios Agrave Epistula 20 por exemplo mdash

1 A foacutermula ldquoaos presbiacuteteros aos diaacuteconos e a todo o povordquo eacute frequente nas Epistulae Cypriani 2 Quanto a isso eacute importante ressaltar que Cipriano antes da sua conversatildeo ensinava retoacuterica em Cartago

[104]

enviada ao clero de Roma com a finalidade de justificar o fato de ter fugido durante a perseguiccedilatildeo de Deacutecio

mdash Cipriano anexou a coacutepia de treze cartas destinadas aos sacerdotes de Cartago aos confessores aos

exilados e a todos os fieacuteis Assim o proacuteprio autor comeccedilou a compor coleccedilotildees de cartas agrupadas por tema3

Das 81 peccedilas que compotildeem o corpus epistolar nas ediccedilotildees modernas 59 foram escritas por Cipriano para

indiviacuteduos ou agraves comunidades 16 foram escritas a Cipriano ou ao clero de Cartago e se referem a assuntos

do episcopado e seis cartas satildeo coletivas oriundas dos siacutenodos nos quais Cipriano foi o principal ou o uacutenico

redator (DONNA 1964 p ix) O corpus epistolar de Cipriano eacute uma fonte indispensaacutevel para a Histoacuteria da

Igreja e do Direito Canocircnico sobretudo por ser de um periacuteodo turbulento para os cristatildeos na medida em que

nos informa sobre os problemas e as controveacutersias que Cipriano e demais liacutederes eclesiaacutesticos tiveram que

enfrentar em meados do seacuteculo III num contexto de perseguiccedilatildeo (GARCIacuteA SANCHIDRIAacuteN 1998 p 35)4

Algumas cartas nos trazem o eco das palavras de personalidades da eacutepoca como Novaciano Corneacutelio

Estevatildeo e Firmiliano de Cesareia e nos revelam as esperanccedilas os temores a vida e a morte enfim o

cotidiano dos cristatildeos em uma das proviacutencias mais importantes do Impeacuterio Romano

O contexto em que o bispo escreveu as suas cartas foi o das duas perseguiccedilotildees aos cristatildeos a de Deacutecio em

250 e a de Valeriano em 258 eacutepoca marcada tambeacutem pela atuaccedilatildeo episcopal de Cipriano jaacute que foi bispo

entre 249 e 258 Os conciacutelios provinciais realizados todos os anos em Cartago quando havia uma pausa na

perseguiccedilatildeo permitiram que Cipriano e os outros bispos africanos com seus correligionaacuterios da Numiacutedia e

da Mauritacircnia discutissem os problemas mais urgentes enfrentados pela Igreja (DONNA 1964 p x)

A importacircncia dos fatos que satildeo expostos nas epistulae de Cipriano mdash duas perseguiccedilotildees em oito anos dois

cismas entre sete e oito conciacutelios provinciais uma discordacircncia que dividiu a igreja em dois campos

antagocircnicos mdash eacute mais que suficiente para estimular o historiador a explorar as cartas cipriacircnicas Em meio a

esses eventos destaca-se a atuaccedilatildeo de Cipriano como bispo de Cartago

A carta no periacuteodo da Antiguidade era o principal suporte de comunicaccedilatildeo e circulaccedilatildeo de notiacutecias em uma

sociedade como a greco-romana na qual natildeo existiam meios de comunicaccedilatildeo de massa As missivas

tornaram-se um veiacuteculo importante para a troca de informaccedilotildees tanto em acircmbito privado quanto puacuteblico

No entanto natildeo iremos tratar neste artigo acerca das especificidades do gecircnero epistolar na Antiguidade

haja vista que jaacute fizemos isso em um outro artigo intitulado O gecircnero epistolar na Antiguidade a importacircncia

das cartas de Cipriano para a Histoacuteria do cristianismo norte africano (seacuteculo III dC) publicado em 2013 na revista

3 Entre as 81 epistulae podemos distinguir quatro grupos de temas principais aquelas que tratam de assuntos de disciplina (1 a 4) as que tratam da perseguiccedilatildeo de Deacutecio da reconciliaccedilatildeo dos apoacutestatas e da luta contra os cismaacuteticos (5 a 68) as que tratam do batismo ministrado pelos dissidentes (69 a 75) e as que tratam da perseguiccedilatildeo de Valeriano (76 a 81) (BAYARD 1945 p xlvi) 4 Eacute importante ressaltar que quase todos os manuscritos diferem em relaccedilatildeo ao nuacutemero e a ordem das cartas

[105]

Histoacuteria e Cultura Diante disso iremos agora nos reportar agrave transmissatildeo das obras de Cipriano ao longo do

tempo ateacute chegar aos dias atuais

A transmissatildeo do corpus Cypriani

As obras de Cipriano foram escritas em latim e possivelmente sob a forma de codex o livro com paacuteginas que

substituiu o volumen mdash livro-rolo de papiro ou pergaminho mdash a partir do seacuteculo II dC e tornou-se o suporte

preferido dos escritores cristatildeos e de seus leitores5 Foram os cristatildeos tanto os do Ocidente quanto os do

Oriente que mais rapidamente adotaram o codex de tal forma que a maior parte da literatura cristatilde foi desde

o iniacutecio conservada nesse tipo de suporte

Apoacutes a redaccedilatildeo os libelli e epistulae de Cipriano foram reproduzidos e disseminados entre as comunidades

cristatildes Era muito comum na Antiguidade especialmente nos ciacuterculos cristatildeos que aquilo que circulava por

escrito fosse natildeo apenas lido mas ouvido de maneira coletiva o que pode ter contribuiacutedo para a

disseminaccedilatildeo da obra de Cipriano pois um uacutenico livro poderia ser compartilhado por muitas pessoas (FOX

1998 p 155) Durante o periacuteodo imperial romano quando os textos eram escassos e natildeo havia um niacutevel

muito elevado de alfabetizaccedilatildeo um uacutenico leitor por meio da leitura puacuteblica transmitiria informaccedilotildees para

um puacuteblico bem maior que o de leitores propriamente ditos

A partir do seacuteculo XI o ofiacutecio dos copistas mdash geralmente monges beneditinos mdash eacute intensificado Nesse

periacuteodo a Igreja era responsaacutevel pela preservaccedilatildeo de boa parte da produccedilatildeo literaacuteria da Antiguidade Os

monges copistas viviam grande parte da vida dentro das bibliotecas eclesiaacutesticas mdashscriptoria mdash copiando as

obras antigas com o objetivo de aumentar o acervo das igrejas e monasteacuterios (QUEIROZ 2008) Quanto

mais vezes uma obra fosse copiada maiores eram as chances de que fosse preservada (HOFFMAN 2010 p

109) Algumas obras no entanto apesar de bastante conhecidas e lidas durante a Antiguidade e Idade Meacutedia

experimentaram um processo de transmissatildeo complexo Esse eacute o caso dos escritos de Cipriano

Desde Hartel (1868-1871) a difusatildeo dos manuscritos que contecircm os libelli e as epistulae de Cipriano tem sido

objeto de estudo por meio de numerosos e importantes trabalhos como The tradition of manuscripts a study

in the transmission of St Cyprian (1961) de Beacutevenot Cyprianische Untersuchungen de Koch (1926) Contributo

allo studio della tradizione manoscritta degli Opuscula di Cipriano (1972) de Moreschini Le Codex Veronensis de

saint Cyprien (1968) de Petitmengin Note sulla tradizione manoscritta di alcuni trattati di Cipriano (1971) de

5 Acerca do sucesso e da praticidade do codex no Mundo Antigo sobretudo nos ciacuterculos cristatildeos ver a discussatildeo contida em Chartier e Cavallo (2002) e Gamble (1995)

[106]

Simonetti e Die cyprianische Briefsammlung (1904) de Von Soden que redefiniram a histoacuteria da tradiccedilatildeo

manuscrita embora ela ainda natildeo tenha sido plenamente elucidada

Podemos no entanto fixar o nome a localizaccedilatildeo e a descriccedilatildeo senatildeo de todos mas dos principais

manuscritos Satildeo conhecidos cerca de 200 manuscritos de Cipriano anteriores ao seacuteculo XV dos quais vinte

foram redigidos antes do seacuteculo X Eles se encontram dispersos por vaacuterios paiacuteses da Europa especialmente

na Franccedila e na Itaacutelia A Inglaterra conserva algumas paacuteginas do codex mais antigo de 400 aproximadamente

conservado no British Museum o Add 40615 A e alguns manuscritos que derivam deste confeccionados no

seacuteculo XII

Os dois manuscritos completos mais antigos dos tratados de Cipriano satildeo denominados S e V O primeiro

encontra-se em Paris eacute o codex Parisianus lat 10592 de meados do seacuteculo VI Ele pertencia ao chanceler

Seacuteguier daiacute o seu antigo nome Seguierianus e sua sigla S Ele fazia parte do fundo Coislin 185 CLA V 602 S

conteacutem os seguintes tratados Ad Donatum De habitu uirginum De lapsis De oratione dominica De catholicae

Ecclesiae unitate De mortalitate De bono patientiae De opere et eleemosynis Ad Fortunatum e as epistulae

Alguns manuscritos satildeo incompletos no iniacutecio ou no fim e agraves vezes em ambos Apesar de alguns erros

grosseiros e facilmente identificaacuteveis detectados por Molager (1982 p 56) esse codex continua a ser um

dos mais valiosos

O codex Veronensis era do seacuteculo VI e pertencia aos cacircnones de Verona Ele desapareceu no seacuteculo XVI

poreacutem sabemos de sua existecircncia graccedilas a Latino Latini que em marccedilo de 1559 fez anotaccedilotildees criacuteticas nas

margens de uma ediccedilatildeo de Cipriano feita por Erasmo e publicada em Lyon em 1537 A comparaccedilatildeo efetuada

por Latini entre V e a ediccedilatildeo de Erasmo encontra-se conservada na Biblioteca de Naacutepoles e compotildee o fondo

Brancacciano Rari A 19 Eacute considerado um documento de base e foi utilizado por Dom R Weber na coleccedilatildeo

do Corpus Christianorum Em um artigo denominado Le codex Veronensis de Saint Cyprien para a Revue des

Eacutetudes Latines Petitmengin (1972) relata a histoacuteria desse manuscrito A credibilidade do codex Veronensis foi

contestada por pesquisadores como Hartel (1868-1871) que natildeo o utiliza por consideraacute-lo merae

coniecturae A mesma atitude ceacutetica eacute adotada por Beacutevenot (1971) em sua ediccedilatildeo do De catholicae Ecclesiae

unitate Martin (1960) ao contraacuterio confere ao codex Veronensis grande autoridade (summae auctoritatis) Eacute

Petitmengin (1968) que no artigo citado acima reabilita plenamente V Para o autor o manuscrito deriva de

uma espeacutecie de ldquoediccedilatildeo criacuteticardquo estabelecida na Aacutefrica logo apoacutes a morte de Cipriano O codex Veronensis

contecircm os tratados Ad Donatum De habitu uirginum De opere et eleemosynis De zelo et liuore De catholicae

Ecclesiae unitate De mortalitate De bono patientiae De lapsis Ad Fortunatum De oratione dominica Ad Quirinum

Quod idola dii non sint e as epistulae

[107]

Haacute uma diversidade de outros coacutedices que contecircm as obras de Cipriano como Q M Y W G entre outros Q

denominado codex Trecensis 581 eacute proveniente de Saint-Amand ou de Salzbourg e estaacute localizado na

Biblioteca Municipal de Troyes Franccedila Eacute originaacuterio dos seacuteculos VIII e IX e conteacutem a maior parte dos tratados

e das cartas M eacute proveniente dos Codices Latini Antiquiores IX estaacute localizado na Biblioteca de Munique e eacute

oriundo dos seacuteculos VIII-IX Ele se origina de Q e apresenta o mesmo conteuacutedo Y tambeacutem estaacute localizado na

Biblioteca de Munique e eacute da primeira metade do seacuteculo IX Jaacute o codex Wirceburgensis representado pela letra

W localiza-se na Biblioteca da universidade de Wurtzbourg Uma parte desse manuscrito eacute do iniacutecio do

seacuteculo IX (folhas 1 a 43) e a outra parte eacute de meados desse mesmo seacuteculo Ele compreende quase todos os

tratados de Cipriano e foi corrigido por alguns editores que o denominaram Wordf ou Wmg nome que se impotildee

frequentemente6 G denominado codex Sangallensis 89 estaacute localizado em Saint-Gall Suiacuteccedila eacute tambeacutem

proveniente do seacuteculo IX e conteacutem cinco tratados de Cipriano De bono patientiae De oratione dominica De

opere et eleemosynis De mortalitate e o De catholicae Ecclesiae unitate Esse manuscrito difere muito de W mas

eacute muito proacuteximo de S e de V Beacutenevot o inclui em sua classificaccedilatildeo e o alocou na primeira classe dos

manuscritos de Cipriano7

As ediccedilotildees das obras de Cipriano comeccedilam a ser elaboradas na segunda metade do seacuteculo XV A primeira

refere-se agrave Editio princeps Romana editada em Roma em 1471 por J Andreas depois contamos com a Editio

Veneta de Venise Franccedila editada em 1471 que se configura como uma recuperaccedilatildeo da ediccedilatildeo precedente

com algumas modificaccedilotildees ortograacuteficas em seguida temos a Editio Veneta tambeacutem de Venise redigida em

1483 que conteacutem algumas melhorias em relaccedilatildeo agrave anterior com um breve sumaacuterio ao iniacutecio de cada tratado

e das Cartas A Editio Memmingensis elaborada em Memmingen Alemanha no ano 1477 possui um texto

6 De acordo com Molager (1982 p 58) o manuscrito comporta algumas interpolaccedilotildees inuacuteteis e agraves vezes errocircneas Jaacute Hartel (1868-1871) o considera como um dos melhores manuscritos de Cipriano Beacutevenot (1961) apesar de consideraacute-lo importante natildeo o utiliza 7 Como dito anteriormente existem cerca de 200 manuscritos com as obras de Cipriano no entanto natildeo eacute nossa intenccedilatildeo aqui listar todos Pretendemos apenas evidenciar o quatildeo profiacutecua foi a multiplicaccedilatildeo desses manuscritos ao longo dos seacuteculos e consequentemente a leitura dos escritos de Cipriano Por isso preferimos trazer as informaccedilotildees acerca dos outros manuscritos em anexo Os manuscritos tambeacutem foram agrupados em famiacutelias pelo fato de apresentarem semelhanccedilas entre si Poreacutem mesmo assim eacute difiacutecil articulaacute-las Hartel (1868-1871) pensa que tais famiacutelias de manuscritos podem ser distinguidas em trecircs grupos LNP MGT e CR Segundo esse autor os dois primeiros grupos satildeo provenientes de um arqueacutetipo que remonta ao seacuteculo VII ou VIII Ao contraacuterio de Hartel von Soden (1904) defende que a hipoacutetese para a formaccedilatildeo da primeira famiacutelia eacute vaacutelida no entanto acerca da segunda famiacutelia considera que T deve ser separado de MG Quanto agrave famiacutelia CR para von Soden ela natildeo existe7 Em sua obra The tradition of MSS A study in the transmission of St Cyrianrsquos Treatises Beacutevenot (1961 p 94-95) reuacutene os manuscritos semelhantes para estabelecer o texto do De catholicae Ecclesiae unitate Uma primeira classe de manuscritos inclui as famiacutelias M (m p e em apoio o codex de Oxford) W (WY) L (a u e em apoio l w) P (P k e em apoio Vatic Reg Lat 117 Turin D IV 37 Escurial S I II) Entre as famiacutelias W e L Beacutevenot inclui o manuscrito G isolado A segunda classe de manuscritos compreende as famiacutelias D (D com os manuscritos cistercienses Berlin Th Lat Fol 700 Dijon 124 Paris Nouv Acq Lat 1792 Bamberg Patr 64) E (e f com o segundo Oxford Bodl 210 Lambeth 106 Oxford New Coll 130) Beacutevenot coloca B entre as famiacutelias D e E em seguida apoacutes E coloca um manuscrito de Berne Bibl Bongarsiana 235 (aparentado com V) Uma terceira classe inclui a famiacutelia H composta por H T e h Pierre Petitmengim concorda com todos os agrupamentos de Beacutevenot mas confere ao codex Veronensis maior importacircncia que o antecessor atestando que ele possui informaccedilotildees que nenhum outro manuscrito apresenta

[108]

semelhante ao da editio romana mas conteacutem os tratados e as Cartas em uma ordem mais loacutegica e por fim haacute

a Editio Dauentriensis de Daventry Inglaterra elaborada em 1477 que conteacutem apenas alguns tratados

As ediccedilotildees datadas do seacuteculo XVI satildeo a Editio Ramboltiana redigida em Paris em 1512 que se configura

como uma recuperaccedilatildeo da editio Veneta mas com uma nova classificaccedilatildeo das Cartas divididas em quatro

livros a Editio Erasmiana de Basel Suiacuteccedila de 1520 que comporta em seu iniacutecio a Passio Cypriani e conteacutem

apenas alguns tratados Essa ediccedilatildeo eacute muito conhecida em razatildeo das notas de Erasmo que compreende

sendo usada como referecircncia para outras ediccedilotildees como a editio Erasmiana de Basel redigida em 1530 que

conteacutem o Ad Fortunatum e a editio Erasmiana de Colocircnia elaborada em 1544 que inclui um novo index mais

abundante que o antigo e melhor repartido Apoacutes as ediccedilotildees de Erasmo contamos com a Editio Manutiana

proveniente de Roma de 1563 preparada por Latino Latini o qual utilizou o manuscrito V natildeo usado nas

ediccedilotildees de Erasmo8 a Editio Moreliana de Paris redigida em 1564 que conteacutem vaacuterios tratados ineacuteditos mas

erroneamente atribuiacutedos a Cipriano e as uacuteltimas cartas e por fim a Editio Pameliana da Antueacuterpia Beacutelgica

elaborada em 1568 que segundo Hartel (1868-1871 p LXXXII) natildeo eacute uma ediccedilatildeo confiaacutevel

As ediccedilotildees organizadas no seacuteculo XVII satildeo apenas duas a Editio Rigaltiana de Paris elaborada em 1648 por

Rigault e a Editio Oxoniensis de Oxford de 1682 compostas por Fell e Pearson que utilizaram numerosos

manuscritos alguns muito antigos Essa ediccedilatildeo oferece um meacuterito a ordem cronoloacutegica das epistulae se

aproxima da ordem correta que possuiacutemos Outra ediccedilatildeo existente eacute a Editio Baluziana elaborada em Paris

e comeccedilou a ser impressa em 1717 e 1718 Essa ediccedilatildeo eacute baseada na comparaccedilatildeo de numerosos coacutedices e

nos comentaacuterios de Latini Aleacutem disso ela foi copiada vaacuterias vezes no seacuteculo XIX em Milatildeo em 1835 e em

Paris em 1836 Em 1844 a coleccedilatildeo Migne de Paris reproduziu a Editio Baluziana com numerosas correccedilotildees

Podemos contar ainda com as Editiones Krabingeri de Tubinga Alemanha que foram elaboradas em duas

etapas a primeira parte datada de 1853 conteacutem os tratados De catholicae Ecclesiae unitate De lapsis e De

habitu uirginum e a segunda de 1859 possui os tratados Ad Donatum De dominica oratione De mortalitate

Ad Demetrianum De opere et eleemosynis De bono patientiae e De zelo et liuore Essas ediccedilotildees foram compostas

por Krabinger e satildeo as primeiras ediccedilotildees alematildes das obras de Cipriano O autor utilizou os manuscritos das

abadias de Bamberg e de Wurtzbourg valendo-se tambeacutem da comparaccedilatildeo criacutetica do codex Veronensis daiacute as

excelentes correccedilotildees que essas ediccedilotildees possuem

Em relaccedilatildeo agraves ediccedilotildees criacuteticas mais recentes as mais utilizadas satildeo a de Hartel (1868-1871) Hans Von Soden

(1904) e Bayard (1925) A ediccedilatildeo de Hartel intitulada S Thasci Caecilii Cypriani Opera Omnia foi redigida em

8 Quando Latino Latini percebeu que havia modificado profundamente o texto do manuscrito V ele natildeo deixou seu nome ser incluiacutedo na ediccedilatildeo por isso ela possui o nome de Manutius

[109]

Viena entre 1868 e 1871 e compotildee a seacuterie do Corpus Scriptorum Ekklesiasticorum Latinorum (CSEL)9 Essa

ediccedilatildeo foi durante um seacuteculo a grande ediccedilatildeo consultada pelos especialistas Hoje apesar das deficiecircncias

relacionadas agrave traduccedilatildeo os editores ainda a utilizam Em sua ediccedilatildeo Hartel adotou mais de quarenta

manuscritos descrevendo-os em seu prefaacutecio de acordo com o grau de importacircncia Possivelmente Hartel

conhecia uma quantidade bem maior de manuscritos mas como eles continham muitas interpolaccedilotildees o

autor considerou-os irrelevantes

Hans von Soden (1904) em sua ediccedilatildeo intitulada Die cyprianische Briefsammlung cita 431 manuscritos dos

quais apenas 157 contecircm um corpus relevante segundo o autor Von Soden utilizou o estudo de Hartel

principalmente sob o ponto de vista de uma criacutetica severa De seu vasto trabalho emergiram conclusotildees

importantes (BAYARD 1945 p xl)

Outro grande editor das obras de Cipriano eacute Bayard que possui a melhor ediccedilatildeo moderna das cartas

denominada Correspondance editada em Paris em 192510 Em relaccedilatildeo agrave criacutetica textual Bayard natildeo despreza

nem a classificaccedilatildeo de Hartel e nem a de von Soden Ele considera que a criacutetica dos textos deve ser feita com

precauccedilatildeo uma vez que os manuscritos satildeo resultado da junccedilatildeo ou reuniatildeo de outros Eacute por isso por

exemplo que apesar da diferenccedila de origem existente entre os manuscritos pode-se constatar uma

concordacircncia textual entre alguns

As possibilidades de pesquisa a partir do Corpus Cypriani

O episcopado de Cipriano durou apenas nove anos de 249 a 258 Em tatildeo pouco tempo no entanto o bispo

produziu um consideraacutevel nuacutemero de obras que nos informam acerca da vida e dos problemas enfrentados

pelos cristatildeos numa eacutepoca de instabilidade no Impeacuterio Romano e de crise dentro da igreja cartaginesa uma

vez que o periacuteodo em que Cipriano escreveu suas obras foi marcado pelas primeiras perseguiccedilotildees oficiais aos

cristatildeos primeiramente com Deacutecio e depois com Valeriano

As cartas e tratados de Cipriano trazem importantes informaccedilotildees acerca do dia-a-dia dos cristatildeos

cartagineses de meados do seacuteculo III Poreacutem mesmo diante de um material tatildeo profiacutecuo percebemos que os

estudos produzidos acerca dos escritos de Cipriano ainda satildeo escassos principalmente no que tange ao

cotidiano dos cristatildeos e agrave interaccedilatildeo com os adeptos do paganismo e do judaiacutesmo no espaccedilo da cidade de

9 O CSEL eacute uma seacuterie de ediccedilotildees criacuteticas dos Padres latinos da Igreja publicada pelo comitecirc da Academia de Ciecircncias da Aacuteustria 10 Em relaccedilatildeo agrave numeraccedilatildeo das Cartas em nenhum manuscrito elas aparecem ordenadas cronologicamente Mesmo os manuscritos mais completos natildeo trazem essa ordem Eacute o caso de V que dispotildee as correspondecircncias em duas partes primeiro as cartas escritas por Cipriano e depois as cartas endereccediladas ao bispo Nas cartas enviadas por Cipriano a ordem eacute a seguinte aos maacutertires ao clero e ao povo de Cartago ao clero e ao povo de Roma e agraves seacutes da Aacutefrica

[110]

Cartago As anaacutelises baseadas nas obras de Cipriano muitas vezes focam um vieacutes teoloacutegico pouco

contribuindo para o conhecimento histoacuterico Em relaccedilatildeo aos estudos em liacutengua portuguesa a produccedilatildeo

historiograacutefica eacute praticamente nula sendo mais comum os trabalhos em liacutengua inglesa espanhola e francesa

Muitos satildeo os temas tratados por Cipriano em suas obras no entanto um dos nossos objetivos foi o de

analisar os coacutedigos de conduta contidos nas cartas e tratados que visavam a disciplinarizaccedilatildeo dos fieacuteis e a

ldquopurificaccedilatildeordquo da igreja cartaginesa em meados do seacuteculo III Aleacutem disso a interaccedilatildeo social entre os adeptos

dos sistemas religiosos em Cartago mdash cristianismo paganismo e judaiacutesmo mdash eacute outro aspecto relevante da

nossa pesquisa O fato de alguns cristatildeos apoacutes a conversatildeo natildeo abandonarem seus haacutebitos e costumes

antigos identificados com o modus uiuendi pagatildeo eou judaico como por exemplo a presenccedila nas sinagogas

nos teatros nas arenas nos anfiteatros nas termas e nas festas ciacutevicas nos levou a conjecturar que nem

sempre os cristatildeos se propunham a cumprir as determinaccedilotildees emanadas pelas lideranccedilas eclesiaacutesticas como

Cipriano

Averiguamos o cotidiano as relaccedilotildees de sociabilidade e os intercacircmbios culturais e religiosos entre os

cristatildeos e os adeptos das outras crenccedilas bem como a relaccedilatildeo dos fieacuteis com os espaccedilos da cidade greco-

romana Com o intuito de orientar a congregaccedilatildeo cartaginesa que julgava ter relaxado nos costumes e

praacuteticas Cipriano recomendou aos cristatildeos alguns coacutedigos disciplinais que deveriam ser adotados

Destacamos portanto a importacircncia da obra de Cipriano em virtude do anseio que demonstra de regular a

congregaccedilatildeo cartaginesa na medida em que tenta apartar os cristatildeos dos adeptos de outras crenccedilas e dos

espaccedilos citadinos que o bispo avaliava como perigosos impuros e por isso capazes de poluir a assembleia

Tomando como ponto de partida essas informaccedilotildees preliminares identificamos as propostas de

Cipriano que visavam agrave formaccedilatildeo de um cristatildeo ldquolegiacutetimordquo livre de hibridismos e ldquoimpurezasrdquo Tal cristatildeo

se caracterizaria por exemplo pelo zelo agrave continecircncia sexual pela esmola caridade oraccedilatildeo e disciplina aleacutem

de por ser um devoto que respeitasse a autoridade episcopal a legitimidade do bispo e natildeo frequentasse os

espaccedilos proibidos da cidade proacuteprios de pagatildeos e judeus

A essa conjuntura somam-se as primeiras perseguiccedilotildees oficiais aos cristatildeos Iniciadas pelo imperador

Deacutecio quando este assumiu a puacuterpura imperial em 249 e pretendeu restaurar a pax deorum elas

tiveram prosseguimento com Valeriano em 253 que deu continuidade agrave poliacutetica persecutoacuteria de Deacutecio

Assim investigamos tambeacutem como tais perseguiccedilotildees e a situaccedilatildeo de instabilidade que marcou o Impeacuterio

durante o seacuteculo III influenciaram a atuaccedilatildeo pastoral de Cipriano em Cartago

Evidenciamos os conflitos e os problemas que afetaram a ecclesia de Cartago em meados do seacuteculo III e as

atitudes e soluccedilotildees tomadas pelo bispo Cipriano para tentar superar todas essas dificuldades Em seus

escritos Cipriano esclarece a sua linha de raciociacutenio acerca do que eram segundo ele as atitudes e praacuteticas

[111]

de um cristatildeo ilegiacutetimo Evidenciamos as caracteriacutesticas que Cipriano elencou e que demonstram as atitudes

de um verdadeiro cristatildeo ou seja de um cristatildeo considerado legiacutetimo livre de hibridismos

Segundo o seu testemunho Cipriano considerava que um cristatildeo verdadeiramente comprometido com os

ensinamentos de Cristo natildeo deveria afrontar a autoridade estabelecida isto eacute o poder episcopal uma vez

que o bispo fora escolhido por Deus eleito pelo povo e confirmado por seus correligionaacuterios Logo Cipriano

esperava que um legiacutetimo cristatildeo natildeo duvidasse da posiccedilatildeo ocupada por seu ldquopastorrdquo A disciplina deveria

reger a conduta de um verdadeiro cristatildeo de tal modo que os conselhos e ordens do bispo deveriam ser

cumpridos Natildeo era permitida ao cristatildeo a circulaccedilatildeo pelos espaccedilos considerados perigosos da cidade

(termas teatro circo sinagoga entre outros) Ele deveria ao contraacuterio trabalhar e se dedicar quase que

exclusivamente agrave sua comunidade

Poreacutem nem todos os cristatildeos seguiram as prescriccedilotildees do bispo desencadeando um problema dentro da

comunidade cartaginesa que precisou ser discutido e resolvido por Cipriano A questatildeo sobre os lapsi por

exemplo foi debatida nos conciacutelios e o rebatismo foi permitido mediante o cumprimento da penitecircncia

Aquele indiviacuteduo que havia negado a feacute cristatilde estaria fora da verdadeira Igreja enquanto o cristatildeo que natildeo

houvesse adorado aos deuses pagatildeos e aleacutem disso confirmado a sua feacute no cristianismo seria considerado um

cristatildeo legiacutetimo

Percebemos mediante as obras de Cipriano que a disciplina eclesiaacutestica foi um dos pilares dos ensinamentos

do bispo Ao mesmo tempo em que o rebanho era aconselhado a natildeo se relacionar com os adeptos de outras

crenccedilas e a natildeo frequentar os espaccedilos perigosos da cidade o bispo aconselhou o cristatildeo a ter sempre

paciecircncia a praticar a esmola a oraccedilatildeo e seguir sempre a disciplina Evitava-se assim o contato com seres e

espaccedilos considerados como fontes de contaacutegio de perigo e impureza De tal forma Cipriano prezou por uma

comunidade pura livre de indiviacuteduos hiacutebridos

Ao estabelecer a disciplina Cipriano afirma que soacute havia uma verdadeira Igreja e que ldquonatildeo haacute mais que um soacute

Deus e um soacute Cristo e uma soacute igreja e uma soacute caacutetedra estabelecida pela palavra do Senhor sobre Pedrordquo De

tal forma condenava todo aquele que estava fora dessa Igreja pois ldquonatildeo pode estabelecer outro altar novo

sacerdoacutecio fora desse uacutenico altar e uacutenico sacerdoacuteciordquo Segundo o discurso de Cipriano todo aquele que estaacute

fora da verdadeira e uacutenica Igreja ldquoeacute aduacuteltero eacute iacutempio eacute sacriacutelego todo aquele que institui uma loucura humana

[uma nova Igreja] violando as disposiccedilotildees divinasrdquo (Ep 43 V 2)

Consideraccedilotildees finais

Diante deste esboccedilo ao decidirmos estudar o cotidiano dos cristatildeos e o desenvolvimento das comunidades

[112]

cristatildes norte-africanas em Cartago durante o seacuteculo III dC tivemos o intuito de contribuir com os estudos

acerca da Histoacuteria do Cristianismo no norte da Aacutefrica tomando como base o testemunho de Cipriano

Os estudos tradicionais acerca da Histoacuteria da Igreja por se pautarem em larga medida numa leitura

teoloacutegica e doutrinal tenderam a deixar de lado os aspectos poliacutetico-administrativos e disciplinares da

organizaccedilatildeo das comunidades cristatildes e o funcionamento da Igreja no cotidiano lacuna que preenchemos em

parte com a nossa pesquisa que diz respeito agrave congregaccedilatildeo norte-africana de Cartago em meados do seacuteculo

III dC

Assim por intermeacutedio de nossas fontes mdash as cartas e os tratados elaborados por Cipriano mdash realizamos um

estudo mais amplo acerca do testemunho desse autor ainda pouco estudado sobretudo nos meios

acadecircmicos brasileiros Acreditamos que a produccedilatildeo de uma tese explorando o conjunto de sua obra

representa uma contribuiccedilatildeo para o avanccedilo da pesquisa no Brasil concernente agrave Histoacuteria do Cristianismo

norte-africano e do cotidiano dos diversos grupos religiosos na ciuitas cartaginesa

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PARTE II

A PERMANEcircNCIA DOS

CLAacuteSSICOS NA DIACRONIA

Em diaacutelogo a Retoacuterica claacutessica a arte poeacutetica medieval e a saacutetira trovadoresca

Fernanda Scopel Falcatildeo

fernanda-scopelhotmailcom

Para meus estudos sobre as tenccedilotildees galego-portuguesas nos quais

procuro sempre analisar os recursos retoacuterico-poeacuteticos

empregados pelos trovadores e jograis em suas cantigas estudei as

artes poeacuteticas latino-medievais e trovadorescas para identificar os

expedientes mais apreciados no Medievo europeu e peninsular

Pude constatar a jaacute sabida influecircncia da retoacuterica claacutessica na

elaboraccedilatildeo desses tratados e consequentemente dada sua

valorizaccedilatildeo e difusatildeo das composiccedilotildees galego-portuguesas Dadas

as limitaccedilotildees naturais de um texto em formato de artigo farei aqui

um apanhado sinteacutetico mas que exemplificaraacute a influecircncia

permanecircncia e atualizaccedilatildeo da retoacuterica claacutessica na teoria e na

praacutetica poeacutetica medieval e trovadoresca

Retomo inicialmente Aristoacuteteles autor do tratado mais conhecido

sobre o assunto que define a retoacuterica como ldquoa capacidade de

descobrir o que eacute adequado a cada caso com o fim de persuadirrdquo (Rh

121355b) A Retoacuterica claacutessica pode ser entendida entatildeo como

uma disciplina que identifica e sistematiza os elementos e

mecanismos uacuteteis ao convencimento ou persuasio considerando

que a funccedilatildeo de um determinado discurso eacute persuadir para docere

delectare eou movere Seguindo o preceito aristoteacutelico em sua

evoluccedilatildeo a disciplina foi atualizada e adaptada agrave realidade

discursiva de cada contexto espaccedilo-temporal em que esteve

inserida Segundo Massaud Moiseacutes (2013 p 393-395) a Retoacuterica

grega era um misto de oratoacuteria e poesia na passagem para os

[117]

romanos a Retoacuterica se separa da Poeacutetica assumindo funccedilatildeo especificamente oratoacuteria e entre os medievais

a Retoacuterica reaproveita as liccedilotildees gregas e sobretudo romanas e se mescla com a Gramaacutetica e a Poeacutetica ndash o

que teria ocorrido especialmente na Peniacutensula Ibeacuterica1

O sistema da Retoacuterica medieval manteacutem portanto as estruturas essenciais da claacutessica recuperando-as

poreacutem de acordo com as necessidades comunicativas do medievo Assim quando entre os medievais os

sermotildees as cartas e as obras literaacuterias surgem como novas modalidades comunicativas o cultivo pragmaacutetico

dos saberes da Retoacuterica claacutessica daacute origem agrave ars praedicandi aplicada agrave pregaccedilatildeo eclesiaacutestica agrave ars dictaminis

voltada para a escrita de cartas e agrave ars poetria nome dado agrave gramaacutetica preceptiva ou retoacuterica da versificaccedilatildeo

As artes poetriae compostas entre os seacuteculos XII e XIII2 foram escritas em sua maioria por professores de

Gramaacutetica e se baseavam principalmente no Da invenccedilatildeo de Ciacutecero e na Retoacuterica a Herecircnio sendo tambeacutem em

certa medida herdeiros de Aristoacuteteles Horaacutecio Quintiliano Isidoro de Sevilha entre outros Embora essas

poeacuteticas fossem redigidas em latim e voltadas agrave instruccedilatildeo escolar seus preceitos certamente tocaram a

produccedilatildeo poeacutetica em vernaacuteculo e influenciaram a formaccedilatildeo do gosto esteacutetico no Duzentos e no Trezentos e

os novos tratados que viriam a surgir Na esteira das artes poetriae com o fortalecimento dos idiomas

autoacutectones outras poeacuteticas foram redigidas em liacutenguas romacircnicas e voltadas agraves novas produccedilotildees

comunicativo-literaacuterias em vernaacuteculo mormente ligadas agrave cultura trovadoresca

As artes poeacuteticas latino-medievais possuem caraacuteter didaacutetico-preceptivo e se utilizam da

[] teacutecnica da ldquoexplicaccedilatildeo de textosrdquo propostos natildeo soacute para o serviccedilo do velho meacutetodo do ldquocomentaacuteriordquo como tambeacutem para imitaccedilatildeo de poetas ou oradores cuja excelecircncia comprovada conduziraacute o aluno agrave criaccedilatildeo perfeita Aleacutem do ldquosentidordquo examinava-se tambeacutem o aspecto ldquoteacutecnicordquo das obras com vistas a colher ldquoexemplosrdquo de estilo e composiccedilatildeo de que resultava o elenco de regras e normas da dispositio [] eacute assim que nasce todo um corpo ldquonovordquo de doutrinas destinadas a completar os tratados dos teoacutericos antigos (MONGELLI 1999 p 96)

Conquanto o conteuacutedo dessas poeacuteticas natildeo diferisse muito daquele convencionado nos manuais de

Gramaacutetica e Retoacuterica antigos (MONGELLI 2009 p XXXIII) os conhecimentos foram atualizados e

adaptados ao ensino de arte poeacutetica Assim como natildeo se destinavam agrave produccedilatildeo dos gecircneros judicial

deliberativo e demonstrativo mas agrave composiccedilatildeo literaacuteria o tratamento das cinco operaccedilotildees dimensotildees ou

fases da elaboraccedilatildeo do discurso (inventio dispositio elocutio actio ou pronuntiatio e memoria) eacute aplicado nesse

1 Mais tarde na Renascenccedila haveraacute o retorno da retoacuterica oratoacuteria (MOISEacuteS 2013 p 394) Nos tempos modernos e poacutes-modernos vemos os recursos retoacutericos presentes na construccedilatildeo dos diversos modos discursivos mormente na publicidade e os estudos contemporacircneos conjugam a multiplicidade de formas retoacutericas que nos precederam sobretudo a retoacuterica claacutessica ensinada desde o seacuteculo V aC com a Retoacuterica em sentido lato enquanto arte do discurso em geral 2 A Ars versificatoria (1175) de Matthieu de Vendocircme a Poetria nova (1208-1216) e o Documentum de modo et arte dictandi et versificandi ambos de Geoffrey de Vinsauf a Ars versificatoria (1215) de Gervais de Melkley a Parisiana poetria (1220) e o De arte prosaica metrica et riacutetmica de John de Garlande e o Laborintus (1250) de Eberhard o Alematildeo

[118]

sentido de modo que predominam os conhecimentos relativos agrave estrutura e ao estilo evidenciando-se as

liccedilotildees sobre amplificaccedilatildeo e abreviaccedilatildeo escolha vocabular correccedilatildeo gramatical e ornamentaccedilatildeo

Outro ponto de diferenccedila entre os antigos e os medievais esteve no fato de que enquanto a Retoacuterica claacutessica

se preocupou mais com o estudo estrutural de palavras e grupos de palavras a medieval cuidou de aleacutem

disso observar as relaccedilotildees sintaacuteticas e semacircnticas tanto das microestruturas quanto do todo da composiccedilatildeo

e de inter-relacionar as funccedilotildees esteacutetica e discursiva Assim as operaccedilotildees retoacutericas deixaram de ser

encaradas apenas como componentes estruturais e passaram a categorias criativas e funcionais

Dos procedimentos da organizaccedilatildeo utilizados na dispositio a amplificaccedilatildeo e a abreviaccedilatildeo tiveram grande

importacircncia na ars poetria latino-medieval que lhes deu sentidos distintos daqueles que possuiacuteam nos

tempos antigos

Enquanto o termo amplificatio era utilizado pelos retoacutericos da Antiguidade com a acepccedilatildeo de fazer valer uma ideia ou realizaacute-la para contribuir desse modo com a valorizaccedilatildeo dessa ideia ndash assim se expressou Quintiliano e o recolheu Alcuiacuteno ndash recebeu uma acepccedilatildeo distinta na Idade Meacutedia Durante o periacuteodo medieval a amplificaccedilatildeo esteve mais ligada agrave redaccedilatildeo e ao desenvolvimento de uma ideia Da mesma maneira se por abbreviatio na eacutepoca claacutessica se entendia a atenuaccedilatildeo de um pensamento riacutegido nas artes poetriae latino-medievais passou a designar os diversos meios de encurtar o discurso Na retoacuterica medieval pode-se afirmar que virtualmente qualquer modificaccedilatildeo no discurso com o uso de tropos e figuras se daacute sob amplificaccedilatildeo ou abreviaccedilatildeo

Dos modos assinalados para introduzir variaccedilatildeo em uma mateacuteria dada ou algum elemento de originalidade na composiccedilatildeo poeacutetica foi a amplificaccedilatildeo o procedimento que mais atenccedilatildeo captou e mais extensamente foi tratado nas artes poetriae

Dentro da amplificaccedilatildeo se estudaram os distintos meacutetodos dos quais podia o escritor servir-se para realccedilar um tema desenvolvendo-o por meio da reiteraccedilatildeo das mesmas ideias ou conceitos sob diferentes aspectos ou recorrendo a diversos procedimentos estiliacutesticos (CALVO REVILLA 2010 p 25-26 traduccedilatildeo minha)

O peso outorgado agrave elocutio ndash expressatildeo linguiacutestica do pensamento (mateacuteria conteuacutedo provas ideias

argumentos etc) elaborado na inventio e organizado na dispositio ndash tambeacutem foi um dos aspectos mais

destacados na evoluccedilatildeo da Retoacuterica antiga para as poeacuteticas medievais conquanto ldquoos teoacutericos que sobre ela

se debruccedilam muito pouco acrescentam do ponto de vista formal agraves bases aristoteacutelicas e ciceronianasrdquo

(MONGELLI 1999 p 90)

Na Retoacuterica medieval o ornatus teve o grande lugar de destaque entre as qualidades elocutivas Ampla

influecircncia veio mais uma vez das liccedilotildees do autor da Retoacuterica a Herecircnio para quem os ornamentos3 colaboram

3 Os ornamentos citados pelo autor da Retoacuterica a Herecircnio repeticcedilatildeo conversatildeo complexatildeo transposiccedilatildeo contenccedilatildeo exclamaccedilatildeo interrogaccedilatildeo arrazoado sentenccedila contraacuterio membro articulaccedilatildeo continuidade paridade semelhanccedila de desinecircncia casual semelhanccedila de terminaccedilatildeo agnominaccedilatildeo subjeccedilatildeo gradaccedilatildeo definiccedilatildeo transiccedilatildeo correccedilatildeo ocultamento disjunccedilatildeo conjunccedilatildeo adjunccedilatildeo reduplicaccedilatildeo interpretaccedilatildeo comutaccedilatildeo permissatildeo dubitaccedilatildeo expediecircncia desligamento rescisatildeo conclusatildeo (Auct ad Her 419-41)

[119]

com a dignidade tornando o discurso distinto pela variedade ndash ldquoVariar mantendo a unidade era um preceito

baacutesico da poeacutetica medievalrdquo (MONGELLI VIEIRA 2003 p 81) A oposiccedilatildeo entre ornatus dificillis e facilis da

Retoacuterica a Herecircnio traduziu-se no Trovadorismo na oposiccedilatildeo entre o trobar clus (ou car escur cobert sotil

prim) estilo elevado de escrita hermeacutetica e obscura e o trobar leu (ou leugier ou pla) menos rebuscado e mais

acessiacutevel Martin de Riquer distingue ainda um terceiro modo intermediaacuterio o trobar ric que eacute elevado e um

tanto hermeacutetico mas sem a obscuridade marcante do trobar clus o que nos faz lembrar do trio de genera

elocutionis (subtile medium e sublime)

Para os tratadistas do Duzentos e do Trezentos as operaccedilotildees elocutivas satildeo o suporte baacutesico que constitui

a literariedade de um poema mas esta soacute eacute visualizada e melhor compreendida pragmaticamente (CALVO

REVILLA 2008 p 67) Nesse sentido os tratadistas medievais recomendavam o embelezamento da

linguagem ldquocom o fim de lsquomoverrsquo os ouvintes ou leitores [] a crer em algo ou a fazecirc-lordquo (MONGELLI VIEIRA

2003 p 120-121) e os tropos e figuras passam a ser encarados como uacuteteis recursos de persuasatildeo

De acordo com Heinrich Lausberg a persuasio se concretiza pela criaccedilatildeo de um elevado grau de credibilidade

entre o poetaorador e seu puacuteblicojuiz sendo obtida sobretudo quando o poeta constroacutei os procedimentos

da amplificatio na dispositio dirigidos psicologicamente ou mais ao intelecto ou mais aos afetos do puacuteblico

Nesse processo as virtutes elocutionis atuam enquanto recursos de persuasatildeo quando servem como

incrementum agrave execuccedilatildeo da amplificatio na realizaccedilatildeo intelectual e afetiva da persuasio por meio do docere

do delectare e do movere O docere aplicado ao genus subtile eacute a influecircncia intelectual que o poeta exerce sobre

o puacuteblico e eacute praticado pelos poetas ldquocomo finalidade didaacutectica da poesia dentro da utilidade intelectual e

moral da mesmardquo (LAUSBERG 2004 p 105) O docere possui dois graus de intensidade ldquo1) A comunicaccedilatildeo

(dar a conhecer) p ex na propositio e na narratio 2) A prova (com funccedilatildeo de probare) p ex na argumentatiordquo

(p 104) Os afetos tambeacutem aparecem em dois graus um mais suave o ethos e um mais violento o pathos No

ethos o delectare aplicaacutevel ao genus medium eacute a influecircncia afetiva pretendida e exercida pelo poeta sobre o

puacuteblico ldquocom a finalidade de nele excitar favoravelmente ao partido afectos suavesrdquo (p 105) Eacute notadamente

indicado para se obter a benevolentia ldquoe aparece aleacutem disso no discurso geralmente como ornatusrdquo (p 105)

No pathos o movere aplicaacutevel ao genus sublime eacute a influecircncia afetiva pretendida e exercida pelo poeta sobre

o puacuteblico ouvinte com o objetivo provocar afetos violentos ldquoNa poesia o pathos eacute atribuiacutedo com efeito agrave

trageacutedia e a certas poesias narrativasrdquo (LAUSBERG 2004 p 105-106)

Lausberg (2004 p 105) destaca ainda o uso do ridiculum na persuasio via virtutes elocutiones embora seja

considerado uma variante do ethos ndash ldquopode ser inerente agrave materia (p ex na comeacutedia) ou que pode tambeacutem

ser acrescentado agrave materia como ornatus de pensamentordquo ndash o ridiculum eacute aplicaacutevel aos trecircs genus e serve

como instrumento de persuasatildeo De acordo com Georges Minois (2003 p 106) o riso eacute uma excelente

ferramenta ao orador ou poeta porque o torna simpaacutetico ao auditoacuterio ldquodesperta a atenccedilatildeo ou ao contraacuterio

desvia-a embaraccedila o adversaacuterio enfraquece-o intimida-ordquo

[120]

Das poeacuteticas latino-medievais um destaque vai para a Poetria nova do inglecircs Geoffrey de Vinsauf por ser

considerada uma das artes mais eruditas influentes e difundidas no Ocidente europeu a partir do seacuteculo XIII

um manual avanccedilado destinado aos estudantes que jaacute possuem uma base gramatical e retoacuterica consolidada

(CALVO REVILLA 2008 p 17) Seu tiacutetulo eacute um eco das suas principais fontes a Ars poetica de Horaacutecio

tambeacutem chamada de Poetria no Medievo e a Retoacuterica a Herecircnio chamada ainda de Retoacuterica nova (em oposiccedilatildeo

ao De inventione de Ciacutecero conhecido como a Rhetorica vetus) Assim concebido o seu tiacutetulo parece revelar

a intenccedilatildeo de Vinsauf de atualizar a obra de Horaacutecio de acordo com as necessidades da escola medieval

A poeacutetica vinsaufiana abarca o estudo das cinco operaccedilotildees retoacutericas inventio dispositio elocutio memoria e

actio seguindo o esquema da Retoacuterica antiga mas adaptando os preceitos claacutessicos para o uso na composiccedilatildeo

poeacutetica Vinsauf preocupa-se com a ldquolsquoorganicidadersquo da obra desde o momento de sua concepccedilatildeo ateacute o da sua

execuccedilatildeordquo (MONGELLI VIEIRA 2003 p 79) Trabalha as operaccedilotildees retoacutericas de modo interdependente

manifestando a importacircncia de a invenccedilatildeo adequada a disposiccedilatildeo elegante a beleza da expressatildeo a

memoacuteria eficiente e a performance pragmaacutetica (tom e intensidade da voz expressatildeo facial gesto movimentos

corporais) atuarem em conjunto (Poetria Nova 80-85) As operaccedilotildees retoacutericas funcionam portanto

subordinadas ldquoao plano original desenhado pelo autor um princiacutepio que teve amplo acolhimento entre os

escritores dos seacuteculos XII e XIIIrdquo (CALVO REVILLA 2008 p 68 traduccedilatildeo minha)

No tratamento dos recursos elocutivos o autor se mostra ldquoplenamente consciente da estreita imbricaccedilatildeo

que na praacutetica e como processo operacional manteacutem a elocutio com a inventio e com a dispositiordquo (CALVO

REVILLA 2008 p 69 traduccedilatildeo minha) Assim por exemplo ao abordar as escolhas vocabulares trabalha

sua adequaccedilatildeo agrave significaccedilatildeo pretendida na inventio agrave ordenaccedilatildeo e ao estilo propostos na dispositio e na

elocutio sempre de maneira a conformar-se com o propoacutesito geral da obra ao abordar as figuras e tropos

natildeo os entende como adornos meramente exteriores mas como recursos ligados ao niacutevel semacircntico-

intensional do discurso Destarte o tratadista demanda o princiacutepio do aptum ou decorum e orienta que o

poeta apoacutes compreender e estabelecer o alcance da mateacuteria a ser tratada deve adornaacute-la com palavras

tropos e figuras que correspondam agrave sua interioridade que sejam reflexos dela pois o discurso soacute teraacute razatildeo

se os ornamentos interior e exterior estiverem em conformidade (Poetria Nova 743-761) Nesse sentido a

percepccedilatildeo vinsaufiana da elocutio natildeo se limita a

um plus meramente ornamental mas um plus significativo que dota o discurso de gravidade superior contribui com sua doutrina para enriquecer o conceito de poeticidade e defender uma concepccedilatildeo verdadeira da essecircncia do discurso literaacuteriopoeacutetico eliminando a tentaccedilatildeo de limitaacute-lo a uma mera acumulaccedilatildeo repetitiva de adornos as figuras e tropos natildeo satildeo concebidas como simples deslocamentos e modificaccedilotildees no niacutevel semacircntico-extensional mas em termos de adorno interior pois fazem referecircncia direta ao niacutevel semacircntico-intensional atendendo agrave sua natureza diferencial qualitativa (CALVO REVILLA 2008 p 70 traduccedilatildeo minha)

[121]

Aleacutem disso para o autor da Poetria nova os recursos de expressividade linguiacutestica eliminam o taedium e

promovem um ldquodeleite que por si mesmo fortalece a eficaacutecia da memoacuteriardquo (Poetria nova 2025-2026 traduccedilatildeo

minha) Ao contribuiacuterem com a memoria tambeacutem auxiliam a actio pois favorecem a memorizaccedilatildeo tanto do

compositor quanto do puacuteblico o que ajuda a garantir a eficaacutecia da performance a conexatildeo do poeta com os

ouvintes e o deleite destes o que fomenta o convencimento Percebe-se portanto que a elocutio estaacute inter-

relacionada com as demais operaccedilotildees retoacutericas de modo a garantir a eficaacutecia do discurso e atingir o objetivo

da comunicaccedilatildeo retoacuterica a persuasio

Natildeo obstante o preceito de interconexatildeo entre as operaccedilotildees ndash ou talvez justamente devido a esse preceito

que lega complexidade e multifuncionalidade agrave elocutio ndash a doutrina do estilo possui uma vultosa

representatividade de 835 na redaccedilatildeo da Poetria sobretudo no que tange ao tratamento do ornatus cuja

seccedilatildeo eacute a mais extensa da obra Dos 2120 versos 1770 compreendem os processos elocutivos destes

1232 tratam dos ornamentos ndash mais da metade do total de versos

Embora o autor natildeo tenha feito uma clara delimitaccedilatildeo eacute possiacutevel identificar que a Poetria possui sete seccedilotildees

A primeira (versos 1-42) eacute um prefaacutecio agrave guisa de panegiacuterico dedicando a obra ao Papa Inocecircncio III Na

segunda seccedilatildeo (versos 43-86) satildeo dadas as observaccedilotildees iniciais mormente ligadas agrave intellectio e agrave inventio e

gerais sobre a composiccedilatildeo poeacutetica com algumas alusotildees a processos da dispositio Esta no entanto eacute

apresentada de fato na terceira seccedilatildeo (versos 87-202) na qual o autor daacute atenccedilatildeo agraves partes do discurso e faz

a claacutessica distinccedilatildeo entre ordo artificialis e naturalis Na quarta seccedilatildeo (versos 203-1973) temos a doutrina

relativa agrave elocutio que se inicia com os meacutetodos de amplificaccedilatildeo4 e de abreviaccedilatildeo5 depois trata dos recursos

estiliacutesticos ndash dividindo-os entre gravitasornata difficultasornatus gravis6 e levitasornata facilitasornatus levis

(trinta e cinco figuras de dicccedilatildeo7 e dezenove figuras de pensamento8) ndash e por fim dos processos de conversatildeo

e determinaccedilatildeo A quinta seccedilatildeo (versos 1974-2034) eacute sobre a memoria a sexta (versos 2035-2069) sobre a

actiopronuntiatio e a uacuteltima (versos 2017-2120) um epiacutelogo em que tambeacutem se louva o Papa

Vinsauf trata sobre o uso do ridiculum ao versar sobre os meacutetodos de amplificaccedilatildeo e explicar como a

apoacutestrofe pode ser usada para criticar e ridicularizar os visados ldquoSe quiseres levantar-te plenamente contra

os ridiacuteculos levanta-te desta forma louva mas chistosamente acusa mas graciosamente sendo em tudo

apropriado [] E o que estava agraves escuras camuflado resplandeceraacute sob a luzrdquo (Poetria nova 432-436

4 Amplificaccedilatildeo por repeticcedilatildeo periacutefrase comparaccedilatildeo apoacutestrofe personificaccedilatildeo digressatildeo descriccedilatildeo e oposiccedilatildeo 5 Abreviaccedilatildeo por ecircnfase inciso ablativo absoluto implicaccedilatildeo fusatildeo de proposiccedilotildees e assiacutendeto 6 Metaacutefora onomatopeia antonomaacutesia metoniacutemia periacutefrase hipeacuterbato hipeacuterbole sineacutedoque catacrese e alegoria 7 Anaacutefora epiacutefora siacutemploce poliptoto antiacutetese apoacutestrofe interrogaccedilatildeo dialogismo ou raciociacutenio interrogativo sentenccedila contraacuterio membrum orationis inciso periacuteodo isoacutecolo homeoptoto homeoteleuto paronomaacutesia prolepse gradaccedilatildeo definiccedilatildeo transiccedilatildeo correccedilatildeo pretericcedilatildeo disjunccedilatildeo conjunccedilatildeo adjunccedilatildeo reduplicaccedilatildeo interpretaccedilatildeo comutaccedilatildeo concessatildeo indecisatildeo eliminaccedilatildeo assiacutendeto reticecircncia e conclusatildeo 8 Distribuiccedilatildeo repreensatildeo litote descriccedilatildeo divisatildeo acumulaccedilatildeo expoliccedilatildeo comoraccedilatildeo antiacutetese comparaccedilatildeo exemplo imagem retrato etopeia dialogismo prosopopeia alusatildeo concisatildeo demonstraccedilatildeo

[122]

traduccedilatildeo minha) Essas recomendaccedilotildees lembram por um lado aquelas referentes ao jugar de palabras

afonsino e tambeacutem por outro o recurso da equivocatio utilizado nas cantigas escarninhas galego-

portuguesas

Dado o rigor na elaboraccedilatildeo a Poetria nova alcanccedilou fama e foi utilizada por muitos estudantes e autores da

eacutepoca convertendo-se no ldquomanual baacutesico de introduccedilatildeo sobre a arte poeacutetica como manifestam os quase

duzentos manuscritos que foram sendo encontrados pela Europa cinquenta no seacuteculo XIII setenta no XIV e

sessenta no seacuteculo XVrdquo (CALVO REVILLA 2008 p 20 traduccedilatildeo minha) tendo sido muito citada como o foi

ldquopor Erasmo que numa carta a Cornelius Gerard a coloca na companhia de Horaacutecio e Quintilianordquo

(MONGELLI VIEIRA 2003 p 79) e copiada ateacute o seacuteculo XVII E o fato de a Poetria ter circulado com alguma

frequecircncia unida agrave Ars poetica horaciana e a obras literaacuterias como as de Boeacutecio e de Virgiacutelio e o fato de

Vinsauf ter residido por um periacuteodo na Espanha aumentam a chance de as cortes reais e senhoriais

peninsulares terem tomado conhecimento dos seus tratados

Os trovadores provenccedilais tiveram acesso a uma formaccedilatildeo musical e retoacuterica teoacuterica e praacutetica nas cortes e

nos centros culturais em que se estudavam as disciplinas do Trivium e do Quadrivium o que fica patente na

anaacutelise das cantigas uma vez que as letras das canccedilotildees trovadorescas com o grande nuacutemero de recursos

gramaticais e estiliacutesticos nelas empregados ldquorevelam de modo indubitaacutevel que os poetas que as compuseram

tinham uma soacutelida base retoacuterica que corresponde aos e se encaixa com os dados que possuiacutemos sobre o

ensino de poeacutetica e da ars bene dicendi de seu tempordquo (RIQUER 1992 t I p 71 traduccedilatildeo minha) Estudiosos

como Martin de Riquer ainda apontam a equivalecircncia entre a inventio e o trobar acenam para as semelhanccedilas

retoacutericas entre os trovadores provenccedilais e os poetas do Renascimento caroliacutengio destacam a traduccedilatildeo ao

romacircnico de conceitos retoacuterico-latinos e concluem que a arte dos trovadores reproduz os ensinamentos que

estes aprenderam nas escolas

[] uma parte de seu credo poeacutetico eacute no fundo uma transferecircncia para a liacutengua vulgar daquilo que vinham teorizando para a composiccedilatildeo latina nos tratados de retoacuterica que estudaram Assim vemos que expressotildees frequentes como ldquocolorir um cantordquo ldquopolir um cantordquo ldquopassar a limardquo ndash que se encontram entre outros em Cercamon Raimbaut drsquoAurenga Guiraut de Bornelh Arnaut Daniel ndash traduzem os conceitos de colores rhetorici verba polita inventio perpolita que as artes poeacuteticas medievais herdaram da retoacuterica latina e desenvolveram com assiduidade (RIQUER 1992 t I p 73 traduccedilatildeo minha)

Na Provenccedila o grande compecircndio do trovar satildeo as Leys drsquoamors redigidas pelo toulousano Guilhem

Molinier9 para a Compagnie du Gai Savoir10 Elas apresentam uma extensa prescriccedilatildeo de normas para a

9 Haacute trecircs redaccedilotildees das Leys A primeira eacute a de Molinier escrita em prosa entre 1328 e 1338 a partir desta Joan de Castellnou fez suas duas reescritas uma em verso entre 1337 e 1343 e outra em prosa entre 1355-1356 10 A companhia foi fundada em 1323 pelos ldquosete trovadores de Toulouserdquo Em 1694 alccedilou-se ao estatuto de academia passando a chamar-se Acadeacutemie des Jeux Floraux A academia ainda estaacute em atividade realiza periodicamente concursos e outros eventos e manteacutem um site com informaccedilotildees e arquivos diversos httpjeuxflorauxfr

[123]

composiccedilatildeo de poemas acompanhadas de exemplos considerando formas estilos correccedilatildeo gramatical e

adequaccedilatildeo agrave cortesia e agrave moral medievais com o objetivo de ensinar a compor agrave moda dos trovadores

provenccedilais As Leys drsquoamors satildeo assim uma compilaccedilatildeo orgacircnica e sistemaacutetica de

[] tudo que eacute preciso fazer e natildeo fazer [] tatildeo exaustiva que qualquer um de noacutes poderia ndash aplicando as normas ilustradas por Guilhem Molinier ndash armar-se em trovador e fazer de Bernart de Ventadorn ou Arnaut Daniel se a sua ambiccedilatildeo chegasse a tanto Poderia escolher entre 11 espeacutecies de versos e 28 de rima 11 geacuteneros poeacuteticos e 35 tipos de cobra mas teria que precaver-se dos 55 ldquoviacuteciosrdquo principais nos quais podem incorrer os poetas inexperientes e que nem sequer os mais famosos trovadores souberam evitar (TAVANI 1999 p 28)

Para se ter uma ideia da dilataccedilatildeo da ars de Molinier e de como o tratadista versou agrave exaustatildeo a mateacuteria

relacionada ao trovar provenccedilal basta folhear os iacutendices de rubricas dos trecircs tomos da ediccedilatildeo organizada

por Joseph Anglade e verificar se nossa contagem natildeo estiver equivocada nada menos que trezentas e doze

rubricas sumarizando os conteuacutedos das quase seiscentas paacuteginas do tratado Em seus ldquoEacutetudes sur les Leys

drsquoamorsrdquo Joseph Anglade analisou os livros I e II da sua ediccedilatildeo das Leys identificou que o toulousano valeu-

se de um sem-nuacutemero de citaccedilotildees e alusotildees agrave tradiccedilatildeo precedente (ANGLADE 1919 t IV p 145-163)11 e

concluiu que a doutrina das Leys eacute preponderantemente influenciada pela Retoacuterica a Herecircnio e pelo De

inventione de Ciacutecero mas tambeacutem por Aristoacuteteles Secircneca Donato Isidoro de Sevilha e outros pensadores

greco-latinos e latino-medievais pela Biacuteblia e pelas artes de trovar anteriores a Molinier (ANGLADE 1919

t IV p 53-108)

Na Peniacutensula Ibeacuterica por sua vez a Retoacuterica foi aprendida sobretudo por meio do ensino formal inicialmente

nas escolas romanas depois nas escolas monacais e finalmente nas universidades (LAUSBERG 2004 p 13-

14) Aleacutem disso sabe-se que a Retoacuterica influiu na mentalidade e na cultura do Medievo ibeacuterico o que se

comprova pela presenccedila de menccedilotildees diretas e indiretas ao conhecimento retoacuterico em documentos e

ldquocontextos aparentemente mais alheios a tal disciplinardquo (p 19) ndash mas de alguma forma relacionados ao

contexto de produccedilatildeo da liacuterica trovadoresca

O acesso aos conteuacutedos de arte poeacutetica pelos trovadores galego-portugueses foi fomentado por Afonso X

cuja corte era um verdadeiro centro cultural e de saber do Medievo Afonso X natildeo se dedicou

especificamente a um tratado de Retoacuterica mas contemplou-a em outras obras suas como o Setenario e Las

siete partidas No Setenario o rei Saacutebio trata da Retoacuterica como a arte que ensina a falar de maneira elegante e

digna de modo que aquele que vier a argumentar mova os coraccedilotildees dos ouvintes para levaacute-los mais ainda ao

ponto desejado E entre as estrateacutegias para falar de maneira elegante e digna o monarca recomenda os

11 O editor tambeacutem estudou os tratadistas trovadorescos que compuseram subsequentemente agraves Leys e tambeacutem verificou que eles muito se reportaram direta ou indiretamente aos conteuacutedos estabelecidos por Molinier (ANGLADE 1919 t IV p 108-120)

[124]

recursos do ornatus como relevantes natildeo soacute para o falar ffermoso que desvelava a cortesia como tambeacutem

para a eficaacutecia da persuasio

A quem usar dessa arte muito conveacutem procurar que a razatildeo seja ornada (ldquoque a colorerdquo) de

modo a causar boa impressatildeo nas vontades dos que a ouvirem E conveacutem ainda que seja

elegante para que leve ao desejo de aprendecirc-la e de saber argumentaacute-la E que se exponha

com dignidade nem muito depressa nem muito devagar E que se apresente cada razatildeo onde

conveacutem de acordo com aquilo de que se quer falar E que se exponha amorosamente nem

muito rijo ou muito bravo nem tampouco muito frouxo mas em bom som comedido sem

elevar ou abaixar demais a voz E haacute de procurar que a expressatildeo que usar esteja de acordo com

a razatildeo que disser (Setenario 38-47)

Percebe-se portanto que assim como o fizeram os tratadistas das artes poetriae em seu Setenario Afonso X

distinguiu os ornamentos como importantes recursos para a ars bene dicendi e contemplou a correccedilatildeo

gramatical a persuasio e o ornatus de maneira estritamente relacionada

Na ldquoPartida segundardquo de Las siete partidas Afonso X se utiliza de seus conhecimentos retoacutericos ao expor as

praacuteticas discursivas da corte intertextualizando com noccedilotildees da disciplina claacutessica Pela Lei 29 do tiacutetulo IX

sabemos que quando o monarca se reuacutene no palaacutecio para falar com os homens pode fazecirc-lo com trecircs

objetivos distintos para deliberar os pleitos para comer ou para fablar en gasaiado (Las siete partidas 2929)

O fablar en gasaiado era o momento quando o rei se encontrava com seus suacuteditos para conversar

agradavelmente e nesse fablar poderiam ser trecircs os modos discursivos utilizados o departir o retraer e o jugar

de palabras12 para os quais o rei prescreveu normas de conveniecircncia e de caraacuteter retoacuterico que devem ser

seguidas pelos que quisessem ser bem acolhidos e permanecer na corte Aqueles que natildeo agissem conforme

as saacutebias leis seriam penalizados com a expulsatildeo do palaacutecio e da corte (Las siete partidas 2929) Assim

conforme a Lei 29 ao departir eacute preciso considerar o entendimento dos ouvintes ldquofalando das coisas com

razatildeo para chegar agrave verdade delasrdquo (Las siete partidas 2929 traduccedilatildeo minha) Na sequecircncia a Lei 30 define

o retraer como a narraccedilatildeo de fatos ldquocomo foram ou satildeo ou pode vir a serrdquo (Las siete partidas 2930 traduccedilatildeo

minha) e destaca a recepccedilatildeo o modo o tempo e o lugar do retraer13 num eco do conceito retoacuterico de narraccedilatildeo

presente na Retoacuterica a Herecircnio14 e tambeacutem das liccedilotildees de Ciacutecero que no De oratore (2008) destaca a

importacircncia de se observarem as circunstacircncias de lugar e tempo de niacutevel estilo e decoro durante a

12 Montoya Martiacutenez relaciona o departir o retraer e o jugar de palabras aos modos dialeacutetico narrativo e satiacuterico respectivamente (1991 p 366) 13 ldquoRetraer en los fechos o en las cosas commo fueron o son o pueden seer es grant bien estanccedilia a los que ello saben abenir E para esto seer fecho commo conviene deven y seer catadas tres cosas tienpo e lugar e manera tienpo deven catar que convenga a la cosa sobre que quier rretraer mostrando por buena palabra o por buen enxenplo o por buena fazanna otra que semeje con aquella para alabar la buena o para desatar la mala e otrosy deven catar lugar de guysa que lo que rretrayeren que lo digan a tales omnes que se aprovechen dello asy commo sy quisieren castigar a omne escaso diziendole enxenplos de omnes grandes e al cobarde de los esforzados e manera deven catar para rretraer de guysa que digan por palabras conplidas e apuestas lo que dixieren e que semege que saben bien aquello que dizen otrosy que aquellos a quien lo dixieren ayan sabor de lo oyr e de lo aprenderrdquo (Las siete partidas 2930) 14 ldquoNarraccedilatildeo eacute a exposiccedilatildeo das coisas como ocorreram ou como poderiam ter ocorridordquo (Auct ad Her 14)

[125]

elaboraccedilatildeo do discurso Por fim na Lei 30 o rei traz agrave baila o jugar de palabras que consistia em apresentar

fatos e exemplos agraves avessas sem desonra ou fuacuteria de modo que os homens os aproveitassem rindo-se e

alegrando-se ndash uma estrateacutegia retoacuterica de produccedilatildeo escarninha muito pertinente agrave saacutetira galego-portuguesa

O tratado trovadoresco do acircmbito galego-portuguecircs que conhecemos eacute uma poeacutetica anocircnima e fragmentaacuteria

que nos chegou apensa ao Cancioneiro da Biblioteca Nacional e eacute habitualmente designada como Arte de trovar

Apesar de sua relevacircncia o que nos restou dessa poeacutetica eacute aleacutem de lacunar muito sinteacutetico e generalizante

pois os preceitos normatizados natildeo satildeo descritos em minuacutecias natildeo satildeo apresentados exemplos de como

empregar os recursos descritos as questotildees relativas ao campo da moral natildeo satildeo desenvolvidas de forma

suficiente natildeo se considera a performance das cantigas as definiccedilotildees e descriccedilotildees arroladas muitas vezes

natildeo correspondem ao que na praacutetica foi realizado pelos trovadores e jograis Por conseguinte a Arte de trovar

possui um caraacuteter mais descritivo e menos didaacutetico servindo portanto mais como uma breve apresentaccedilatildeo

de artifiacutecios empregados pelos trovadores e jograis e menos como meacutetodo que ensina a compor agrave moda

trovadoresca galego-portuguesa Por conta disso natildeo deve ser considerada ldquouma obra destinada agrave instruccedilatildeo

de futuros trovadores mas um guia informativo para o admirador de cantigas trovadorescas proacuteprio como

tal a introduzir o leitor na magniacutefica antologia que acaba de abrirrdquo (DrsquoHEUR 1975 p 380 traduccedilatildeo minha)

A despeito do pouco rigor no tratamento da mateacuteria eacute possiacutevel perceber que junto com as prescriccedilotildees

esteacuteticas trovadorescas o anocircnimo autor cultiva a moral eacutetica da conveniecircncia cortesatilde Conforme DrsquoHeur o

recorrente uso de ldquoconveacutemrdquo e ldquonatildeo conveacutemrdquo ao lado de ldquodevemrdquo e ldquopodemrdquo eacute significativo nesse sentido por

representar na redaccedilatildeo do tratadista uma moral de respeito e sujeiccedilatildeo agraves convenccedilotildees jaacute estabelecidas

(1975 p 384)

Conquanto o tratadista anocircnimo escuse-se de fazer referecircncias diretas ao sistema retoacuterico antigo e ao

medieval natildeo trovadoresco a menccedilatildeo agrave equivocatio (Arte de trovar 35) como marcador constitutivo e

distintivo das cantigas de escaacuternio revela segundo Lausberg uma niacutetida ligaccedilatildeo com a ars claacutessica segundo

a qual os verba aequivoca podiam servir agrave dissimulatio retoacuterica encobrindo no contexto satiacuterico galego-

portuguecircs uma ironia propositada (2004 p 19) Nota-se que permanecem valorizados na Arte teacutecnicas e

recursos que os demais tratados medievais tomavam como pertinentes para se alcanccedilar a elegacircncia e a

eficaacutecia do discurso como destacado no subcapiacutetulo anterior pois se apresentam questotildees relativas agrave

correccedilatildeo gramatical agrave escolha vocabular e ao emprego de ornamentos

No que tange particularmente ao tratamento da elocutio eacute importante mencionar primeiro o resultado do

levantamento feito por Simone Marcenaro para identificar os ornamentos de estilo presentes nas cantigas

satiacutericas Entre os expedientes mais utilizados estatildeo a repeticcedilatildeo a ironia e algumas figuras da argumentatio

como a prosopopeia a etopeia e a amplificatio entre outras aleacutem de cores da Retoacuterica como a acumulaccedilatildeo

a metoniacutemia a sineacutedoque a periacutefrase a metaacutefora a hipeacuterbole a similitude a antiacutetese o epiacuteteto a sentenccedila e

[126]

a interrogaccedilatildeo retoacuterica (2010 p 105) Considerando-se esse saldo resulta natildeo soacute curioso como sobretudo

relevante questionar por que da extensa gama de ornamentos de estilo que poderiam ser ou foram utilizados

nas cantigas trovadorescas pelos trovadores e jograis o anocircnimo autor da Arte se limitou a descrever

modalidades relacionadas agrave repeticcedilatildeo com destaque para o dobre e o mozdobre

Ponderando a concisatildeo com que a poeacutetica foi elaborada tal seleccedilatildeo poderia revelar que o tratadista

reconheceu a relevacircncia dos recursos de repeticcedilatildeo na poesia trovadoresca galego-portuguesa ou ao menos

a sua recorrecircncia pois na leitura das cantigas e tenccedilotildees observa-se o acesso a diversos tipos de repeticcedilatildeo

foneacutetico-fonoloacutegica morfossintaacutetica e semacircntico-discursiva Essa curiosidade torna-se ainda mais

significativa se concordarmos com Seacuteveacuterine Abiker que em seu Lrsquoeacutecho paradoxal ndash eacutetude stylistique de la

reacutepeacutetition dans les reacutecits brefs en vers XIIegrave-XIVegrave siegravecles afirma que a repeticcedilatildeo estaacute presente em toda obra da

Idade Meacutedia evidenciando uma espeacutecie de estilo medieval e merece por isso ser investigada nas produccedilotildees

literaacuterias da eacutepoca (2008 p 9 28)

Assim apoacutes a anaacutelise destes e de outros diversos tratados latino-medievais e trovadorescos pude observar

que os medievais valorizavam a aproximaccedilatildeo e a complementaccedilatildeo entre inventio dispositio e elocutio com a

beleza do pensamento sendo sustentada pela beleza da expressatildeo por sua vez sustentada pelas palavras

bem escolhidas e ornamentos bem adequados Eles concediam atenccedilatildeo especial aos recursos elocutivos e

recomendavam que persuasio e ornatus fossem trabalhados de maneira estritamente relacionada na

elaboraccedilatildeo do texto poeacutetico pois a ornamentaccedilatildeo elaborada apropriadamente era considerada elemento

decisivo para o cumprimento das finalidades retoacutericas de docere delectare e movere Entre os recursos

elocutivos os tratadistas medievais em suas teorias e os trovadores e jograis em sua praacutetica davam lugar

de destaque aos que funcionam por meio de processos e mecanismos iterativos que se tornaram uma das

fortes marcas do estilo medieval conformando uma espeacutecie de esteacutetica da repeticcedilatildeo Como jaacute dito na

retoacuterica medieval foi a amplificaccedilatildeo o procedimento que mais atenccedilatildeo captou e que mais extensamente foi

tratado nas artes poetriae e dentro da amplificaccedilatildeo se estudaram os distintos meacutetodos dos quais podia o

escritor servir-se para realccedilar um tema desenvolvendo-o por meio da reiteraccedilatildeo das mesmas ideias ou

conceitos sob diferentes aspectos

Esse efeito da repeticcedilatildeo sobre o receptor do discurso tambeacutem foi observado pelos gregos e latinos e os

procedimentos iterativos foram classificados e recomendados pela Retoacuterica antiga Para essa disciplina a

repeticcedilatildeo eacute um mecanismo que atua em todas as operaccedilotildees retoacutericas e funciona como recurso de persuasatildeo

servindo como incrementum agrave execuccedilatildeo da amplificatio na realizaccedilatildeo intelectual e afetiva da persuasio ndash

processo que jaacute explicamos antes Natildeo eacute agrave toa pois que Ciacutecero no Orator inclui a repeticcedilatildeo entre os recursos

de retoacuterica mais importantes que devem ser aprendidos e empregados pelo perfeito orador (Orat 39135)

[127]

Ainda no ldquoDe ridiculisrdquo (De oratore) de Ciacutecero e no ldquoDe risurdquo (Institutio oratoria) de Quintiliano a repeticcedilatildeo

participa como mecanismo para o riso em alguns dos gecircneros do ridiculum que os autores elencam15

A Retoacuterica claacutessica organiza diversas formas e processos iterativos especialmente no conjunto das figuras de

palavras (figurae elocutionis) e de pensamento (figurae sententiae) As figuras de repeticcedilatildeo foram consagradas

pelas poeacuteticas latino-medievais que muito valorizaram os procedimentos iterativos e tambeacutem satildeo

aproveitadas pelas poeacuteticas trovadorescas conquanto estas tenham vestido tais expedientes de uma nova

nomenclatura

Na Poetria nova de Geoffrey de Vinsauf a repeticcedilatildeo estaacute presente em vaacuterios processos estudados e

recomendados participa do mecanismo de uma figura de pensamento a expolitio e de quinze figuras de

dicccedilatildeo anaacutefora (repetitio) epiacutefora (conversio) siacutemploce (complexio) poliptoto (traductio) isoacutecolo (compar)

homeoptoto (similiter cadens) homeoteleuto (similiter desinens) paronomaacutesia (adnomnatio) gradaccedilatildeo

(gradatio) transiccedilatildeo (transitio) correccedilatildeo (correctio) disjunccedilatildeo (disjunctio) polissiacutendeto (conjunctio)

reduplicaccedilatildeo (conduplicatio) interpretaccedilatildeo (interpretatio) quiasmo (commutatio) eacute um dos meacutetodos da

amplificatio com o uso da interpretatio e da expolitio enquanto meio de dizer o mesmo vaacuterias vezes de modo

diferente participa da conversatildeo cujo mecanismo ndash substituiccedilatildeo de uma categoria gramatical por outra com

o fim de escolher uma forma mais agradaacutevel e assim alcanccedilar a beleza do ornatus ndash relaciona-se com o da

paronomaacutesia e corresponde ao do poliptoto

Nas Leys drsquoamors occitacircnicas o artifiacutecio da repeticcedilatildeo eacute referido em dois momentos na seccedilatildeo sobre as

construccedilotildees viciosas e na seccedilatildeo sobre estrofaccedilatildeo No primeiro momento Molinier condena a replicacio (ou

replicacioacute ou replicatio) enumeraccedilatildeo contiacutenua de palavras com siacutelabas iguais e de mesmo som porquanto

geradora de cacossiacutenteto (construccedilatildeo viciosa gerada por colocaccedilatildeo inadequada de palavras)16 Contudo

Molinier enfatiza que a repeticcedilatildeo natildeo eacute considerada incorreta se houver intercalaccedilotildees ldquoDizemos da

repeticcedilatildeo contiacutenua Porque se haacute a repeticcedilatildeo descontiacutenua de uma palavra ou de uma siacutelaba o viacutecio da

replicacio deixa de existirrdquo (Leys drsquoamors 352 traduccedilatildeo minha) Aleacutem disso a repeticcedilatildeo sequencial eacute

permitida17 se for decorrente do emprego de artigos pronomes preposiccedilotildees nomes proacuteprios proveacuterbios

15 Conforme Ivan Neves Marques Jr os gecircneros do ridiacuteculo considerados por Ciacutecero e Quintiliano em seus De ridiculis

(De oratore) e De risu (Institutio oratoria) respectivamente satildeo anedotas metaacutefora ironia alegoria ambiguidade

hipeacuterboles repreensatildeo de estultice simulaccedilatildeo maliacutecia interpolaccedilatildeo de versos adaptaccedilatildeo ou uso de proveacuterbios frases

absurdas quebra de expectativa paronomaacutesia dissimulatiosimulatio dissimulatio ex ambiguitas ambiguidade que se

aproxima do enigma similitude com ambiguidade fictio ex ironia (MARQUES JR 2008 p 151) 16 Como nos seguintes exemplos citados ldquoPrestres prezican provizetzrdquo ldquoVerges vergiers verdejans vergenalsrdquo ldquoDona donans donam dos divinalsrdquo ldquoRogiers rugish ravial raviosrdquo ldquoRestauramens restauram restauransrdquo ldquoLos peccadors per peccatz pecz peccansrdquo ldquoBonas noelas lauzaretz Las avols cascus calaretzrdquo ldquoDieus dona nos nostra vianda Laqual cascus fizels demandardquo ldquocor ferms fay far faytz francz e fis el flaaelig fals fols vils et aclisrdquo (Leys drsquoamors 352-58) 17 Curiosamente a despeito de a menccedilatildeo agrave replicacio estar inserida na parte das Leys que trata dos viacutecios a lista de exemplos condenados (Leys drsquoamors 352-58) eacute menos extensa que a dos exemplos abonados (Leys drsquoamors 358-68)

[128]

refratildees citaccedilotildees etc ou constituinte das quaysh replicacios18 Molinier tambeacutem aprova o uso das figuras de

repeticcedilatildeo da Retoacuterica claacutessica desde que seu uso seja feito com propriedade O tratadista toulousano

encerra a discussatildeo concluindo que ldquosatildeo refinadas e engenhosas as composiccedilotildees em que a repeticcedilatildeo eacute

elaborada intencional e arrazoadamenterdquo (Leys drsquoamors 362 traduccedilatildeo minha)

No outro passo das Leys os mecanismos de figuras de repeticcedilatildeo satildeo acessados como marcadores

constitutivos e distintivos de algumas modalidades de cobla O mecanismo da anaacutefora estaacute presente nas

coblas capdenals que ocorrem quando ldquocada verso comeccedila com a(s) mesma(s) palavra(s) ou a mesma frase

ou quando cada estrofe comeccedila com a(s) mesma(s) palavra(s) ou a mesma fraserdquo (Leys drsquoamors 3282 traduccedilatildeo

minha) O mecanismo da epiacutefora estaacute nas coblas retronchadas que ocorrem ldquoquando eacute repetida a mesma

palavra no final de cada verso ou de dois em dois ou de trecircs em trecircs ou mais de acordo com a vontade do

poeta ou quando no final de cada estrofe eacute repetido o mesmo verso ou dois mesmos versosrdquo (Leys drsquoamors

3286 traduccedilatildeo minha) O da siacutemploce que eacute a combinaccedilatildeo de anaacutefora e epiacutefora estaacute nas coblas duplicativas

que seriam assim a combinaccedilatildeo de coblas capdenals e retronchadas ldquoA cobla duplicativa se faz quando cada

verso comeccedila com a(s) mesma(s) palavra(s) ou a mesma frase e termina com a(s) mesma(s) palavra(s) ou a

mesma fraserdquo (Leys drsquoamors 3288 traduccedilatildeo minha) O mecanismo da epanadiplose estaacute nas coblas

recordativas que ocorrem ldquoquando a primeira palavra do verso eacute repetida no final do mesmo verso ou quando

o primeiro verso de uma estrofe eacute repetido ao final dessa mesma estroferdquo (Leys drsquoamors 3284 traduccedilatildeo

minha) E o da anadiplose nas coblas capfinidas e capcaudadas ldquoA cobla eacute chamada capfinida porque a palavra

siacutelaba ou oraccedilatildeo que termina a estrofe torna-se o iniacutecio da proacuteximardquo a cobla capcaudada (Leys drsquoamors 3280

traduccedilatildeo minha)

Na Arte de trovar galego-portuguesa destacam-se como formas de repeticcedilatildeo o dobre e o mozdobre como

vimos O dobre consiste em repetir certa palavra uma ou duas vezes ao longo de uma estrofe sendo

conveniente que apareccedila a mesma palavra ou outra que forme um dobre na mesma posiccedilatildeo em todas as

estrofes e tambeacutem na finda

Dobre eacute o recurso que consiste em dizer uma palavra duas vezes ou mais em cada estrofe

Devem usaacute-lo com moderaccedilatildeo e se o fizerem em uma estrofe conveacutem que o faccedilam em todas

as outras podendo variar as palavras dobradas em cada estrofe mas sempre na mesma

posiccedilatildeo e da mesma maneira em todas as estrofes E devem igualmente usar o dobre nas

findas da mesma forma (Arte de trovar 45 traduccedilatildeo minha)

18 As quaysh replicatios satildeo pseudorrepeticcedilotildees natildeo viciosas como nos seguintes exemplos citados ldquopatz platzrdquo ldquocambra bassardquo ldquonegra garsardquo ldquobel hlatrdquo ldquocambra belardquo ldquoplen punhrdquo ldquopren pardquo ldquotray tostrdquo ldquolaysha saysha seguramenrdquo ldquoPestre tutorrdquo ldquoPolpra planardquo ldquoQuar clucardquo ldquoTutritz testardardquo ldquopupils prepauzardquo ldquocascus cloquiersrdquo ldquoTursquo afolas lrsquoaybrerdquo ldquoMola lima Amara raba Cara rima Causa sanctardquo ldquoara rira aquel srsquoafola la lenguardquo ldquotrastot es plerdquo ldquotot es talatrdquo ldquoe tant es tramrdquo ldquoou tant es tristardquo ldquoclar lumrdquo ldquosucre rozatnzegre razimrdquo ldquoflac layronatrdquo (Leys drsquoamors 358-62)

[129]

O dobre eacute a repeticcedilatildeo simples portanto sem variaccedilotildees morfoloacutegicas como nas figurae elocutionis de

repeticcedilatildeo por igualdade formal completa E quando utilizado em posiccedilatildeo de rima o dobre eacute equivalente ao

mot refranh provenccedilal

O mozdobre segundo a Arte ldquoeacute igual ao dobre quanto ao entendimento das palavras mas estas variam pois

mudam os tempos verbais E como jaacute vos disse do dobre igualmente o mozdobre deve ser empregado em

todas as estrofes e findas na mesma posiccedilatildeo e da mesma maneira para ficar melhor elaboradordquo (Arte de trovar

46 traduccedilatildeo minha) Assemelhado ao poliptoto e agrave figura etimoloacutegica o mozdobre eacute portanto a repeticcedilatildeo

que apresenta variaccedilotildees morfoloacutegicas e assim como o dobre pode aparecer no iniacutecio interior ou fim de um

verso desde que seja precisa a correspondecircncia entre os versos que se ligam pelo mozdobre E quando

empregado em posiccedilatildeo de rima o mozdobre eacute equivalente agrave rim derivatiu provenccedilal

Na praacutetica trovadoresca aleacutem do dobre e do mozdobre os trovadores e jograis utilizaram ainda outros

procedimentos por exemplo o enjambement os conectores (e que pero ca ndash quando fazem a articulaccedilatildeo

sintaacutetica de um verso a outro ou de uma estrofe a outra) e o leixa-pren ndash equivalente agrave anadiplose o leixa-pren

eacute um mecanismo de repeticcedilatildeo da ldquomesma palavra no fim dum verso ou estrofe e no comeccedilo do seguinte ou

na repeticcedilatildeo do mesmo verso no fim duma estrofe e no comeccedilo da outra que segue imediatamente ou

atraveacutes de uma estrofe interpostardquo (BELTRAN 2000 p 386)

Do mesmo modo que as figuras de repeticcedilatildeo contempladas pela Retoacuterica antiga as formas de repeticcedilatildeo

presentes nas cantigas e tenccedilotildees satiacutericas galego-portuguesas contribuem para o ornatus e funcionam na

realizaccedilatildeo intelectual e afetiva da persuasio sendo aplicaacutevel aos trecircs genus servindo ao ensinar e provar ao

deleitar e ao comover A repeticcedilatildeo pode obrar ainda como provocadora de riso o que por sua vez tambeacutem

colabora com o processo retoacuterico de ensinar provar deleitar e comover No caso da repeticcedilatildeo por exemplo

pode-se buscar a adesatildeo do puacuteblico por meio de repeticcedilotildees semanticamente baseadas esse jogo de

associaccedilotildees ainda pode provocar o ridiacuteculo essa comicidade igualmente conquista a atenccedilatildeo da audiecircncia

manteacutem sua adesatildeo e consequentemente colabora para o seu convencimento Mesmo os ecos sonoros das

repeticcedilotildees as aliteraccedilotildees assonacircncias e rimas podem relacionar-se ao jogo da persuasatildeo ao organizarem ao

longo da cantiga uma mnemocircnica e expressiva seacuterie de apelos focircnicos e semacircnticos aos ouvintes Percebe-

se com isso que os recursos de repeticcedilatildeo satildeo multifuncionais e ateacute mais significativos quando operam em

niacuteveis interligados

Como se vecirc a retoacuterica claacutessica influiu na elaboraccedilatildeo dos tratados de arte poeacutetica latino-medievais e

trovadorescos e essa permanecircncia atualizada igualmente marcou presenccedila na praacutetica poeacutetica medieval e

trovadoresca De fato em um estudo em que analisei as tenccedilotildees de Lourenccedilo (FALCAtildeO 2015) por exemplo

constatei que o segrel natildeo somente teve a ldquocapacidade de descobrir o que eacute adequado a cada caso com o fim

de persuadirrdquo (Arist Rh 121355b) como tambeacutem construiu uma retoacuterica da impertinecircncia realizada textual

[130]

e discursivamente por meio de ferramentas iterativas Tal estrateacutegia retoacuterica era adequada agrave atuaccedilatildeo de

Lourenccedilo nas tenccedilotildees pois estas deveriam ser marcadas por traccedilos de oposiccedilatildeo de acordo com a Arte de

trovar e tambeacutem porque a perseveranccedila eacute um dos cinco fundamentos da Retoacuterica de acordo com as Leys

drsquoamors De tal modo se os trovadores lhe vinham frequentemente travar para taxaacute-lo de incompetente o

segrel deveria para defender-se e debater de acordo com os preceitos valorizados em seu meio

trovadoresco contrapor-se aos interlocutores persistindo no autoelogio para afirmar sua capacidade O

modus faciendi de Lourenccedilo em suas tenccedilotildees aproxima-se nesse sentido das noccedilotildees aristoteacutelicas de

inconveniecircncias convenientes e de despropoacutesitos a propoacutesito (Arist Poet 1454a) muito adequadas ao texto

satiacuterico desde os tempos antigos segundo Joatildeo Adolfo Hansen (2011 p 151)

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VINSAUF G de Poetria nova Ed y trad A M Calvo Revilla Madrid Arco 2008 (Coleccioacuten Perspectivas Textos)

A

carta-prefaacutecio

da Utopia de Thomas More encenaccedilatildeo textual de uma arte poeacutetica

Ana Claacuteudia Romano Ribeiro

acrribeirounifespbr

A carta-prefaacutecio que Thomas More endereccedila a Pieter Gillis

antecede os livros I e II da Utopia publicada em finais de 1516 em

Lovaina sob o tiacutetulo Libellus vere aureus nec minus salutaris quam

festiuus de optimo reip statu deque noua insula Vtopia authore

clarissimo viro Thoma Moro inclytae ciuitatis Londinensis ciue amp

vicecomite cura M Petri Aegidii Antuerpiensis amp arte Theodorici

Martini Alustensis Typographi almae Louaniensium Academiae nunc

primum acuratissime editus (Um livrinho verdadeiramente de ouro natildeo

menos salutar que divertido sobre a melhor forma de repuacuteblica e sobre

a nova ilha de Utopia por Thomas More autor e homem ilustriacutessimo

cidadatildeo da iacutenclita cidade de Londres e xerife aos cuidados do mestre

antuerpiense Pieter Gillis e pelas artes de Dieryck Martens de Alost

tipoacutegrafo da veneraacutevel academia de Lovaina agora acuratissimamente

editado pela primeira vez) Ela natildeo foi enviada ao seu remetente mas

a Erasmo que estava cuidando da ediccedilatildeo da Utopia juntamente com

Pieter Gillis More a expediu em 3 de setembro de 1516 juntamente

com o manuscrito do libellus aureus e uma carta para o proacuteprio

Erasmo (Opus epist 2 ep 461 p 339 ll 1-2) na qual escreve

ldquoEnvio-te nosso lsquoNenhum lugarrsquo (Nusquama) em nenhum lugar

(nusquam) bem escritordquo

A carta-prefaacutecio talvez seja o paratexto mais publicado nas ediccedilotildees

da Utopia Ela precede o grande diaacutelogo dos livros I e II que trazem

[133]

respectivamente uma discussatildeo sobre o funcionamento das instituiccedilotildees poliacuteticas sociais e econocircmicas da

Inglaterra quinhentista e em seguida e em contraponto a descriccedilatildeo da repuacuteblica utopiana feita por Rafael

Hitlodeu um marinheiro-filoacutesofo portuguecircs Antecede agrave narraccedilatildeo de acontecimentos ndash citados numa ordem

cronoloacutegica natildeo linear nos livros I e II ndash que comeccedilam em 1497 na casa do cardeal Morton passam por uma

das viagens de Amerigo Vespucci e pela estadia de Hitlodeu na Utopia para terminar em 1515 em um jardim

em Antueacuterpia O espaccedilo geograacutefico correspondente a esse iacutenterim eacute mais extenso do que o que se conhecia

entatildeo o leitor passa da Europa (Inglaterra Beacutelgica e Franccedila) agrave Iacutendia e ao Novo Mundo de fronteiras

desconhecidas onde se encontra a ilha de Utopia e outras terras incoacutegnitas

Pieter Gillis secretaacuterio-geral de Antueacuterpia1 a partir de 1510 conheceu More em setembro de 1515 na

missatildeo diplomaacutetica e comercial nos Paiacuteses Baixos citada no comeccedilo do livro I da Utopia2 Ele foi o primeiro

editor das cartas de Erasmo junto ao impressor Dieryck Martens na cidade de Lovaina Aleacutem disso tambeacutem

preparou ediccedilotildees de obras de Poliziano (1510) Rodolphus Agricola (1511) Esopo (1513) Luciano de

Samoacutesata (1518) e uma Summa legum diversorum imperatorum (1517) sobre as fontes do coacutedigo justiniano

A carta-prefaacutecio eacute publicada nas quatro primeiras ediccedilotildees acrescida de anotaccedilotildees marginais que tambeacutem

seratildeo acrescentadas aos livros I e II Natildeo se sabe ao certo se essas notas marginais foram elaboradas apenas

por Erasmo ou se Gillis tambeacutem colaborou com isso3

Na primeira ediccedilatildeo ela traz o tiacutetulo PRAEFATIO in opus de optimo reipublicae statu (ldquoPrefaacutecio agrave obra sobre a

melhor forma de repuacuteblicardquo) suprimido a partir da segunda ediccedilatildeo Na terceira e quarta ediccedilotildees (de marccedilo e

novembro de 1518 publicadas em Basileia por Johann Froben) suas primeiras linhas seratildeo enquadradas

com a mesma moldura que encontramos no frontispiacutecio da quarta ediccedilatildeo ornada com anjos-bebecircs (os putti)

de Hans Holbein A repeticcedilatildeo da moldura daacute agrave carta-prefaacutecio uma posiccedilatildeo de destaque entre os demais

paratextos que natildeo satildeo enquadrados e cria um ritmo tipograacutefico que daacute um caraacuteter de retomada agrave carta-

prefaacutecio

Elizabeth McCutcheon (1983 p 5) mostrou que a carta-prefaacutecio tambeacutem pode ser lida como um guia poeacutetico

e hermenecircutico da Utopia uma ars poetica participando de uma esteacutetica do engano honesto que se funda no

1 Aires Nascimento lembra que eacute no porto de Antueacuterpia ldquocentro das novidades do Novo Mundordquo que chegam especiarias trazidas pelos navios portugueses que tinham nesta cidade uma feitoria de onde distribuiacuteam as mercadorias ldquoA feitoria portuguesa [em Antueacuterpia] data de 1499 e a lsquonaccedilatildeorsquo que a compotildee tem reconhecimento desde 1511 com casa na rua Kipdorp posta agrave disposiccedilatildeo do feitor pela cidade tem um estatuto de favorecimento o feitor eacute simultaneamente diplomata e agente econocircmicordquo (MORVS 2006 p 373 n 31) 2 Sobre esta missatildeo ver Surtz ldquoSt Thomas More and his utopian embassy of 1515rdquo (1953) e Hexter ldquoMorersquos visit to Antwerp in 1515rdquo em CW4 ndash esta sigla designa doravante o volume 4 de The Complete Works of St Thomas More (ver a referecircncia completa em MORE 1965) Sobre Gillis ver o artigo de Nauwelaerts (1967) 3 Gillis em sua carta a Busleyden informa tecirc-las adicionado agrave ediccedilatildeo da Utopia juntamente com o tetraacutestico e o alfabeto utopiano sem dizer explicitamente se as teria elaborado ele mesmo o frontispiacutecio da segunda ediccedilatildeo publicada em Paris em 1517 nas prensas de Gilles de Gourmond informa que elas satildeo de autoria de Erasmo

[134]

paradoxo e visa ldquoexercitar a mente a imaginaccedilatildeo e o senso moral do leitorrdquo De fato a carta-prefaacutecio introduz

ao leitor agrave poeacutetica geral do livro que mescla real e potencial o que foi o que eacute e o que poderia ter sido O

gecircnero utoacutepico ldquoescapa agraves categorias claacutessicasrdquo ldquosegue uma loacutegica e possui uma coerecircncia que lhe satildeo

proacutepriasrdquo ldquomistura incessantemente detalhes plausiacuteveis ao relato fictiacutecio e ao inverossiacutemilrdquo (PREacuteVOST

2015 p 439) artifiacutecios semacircnticos e sintaacuteticos como a dupla negaccedilatildeo que despista o espiacuterito do leitor e tem

como resultado o embaccedilamento das fronteiras entre o objetivo e o subjetivo a verdade e a quimera o preciso

e o ambiacuteguo a realidade e o sonho (PREacuteVOST 2015 p 442)

A loacutegica e a poeacutetica da Utopia aparecem no uso de ldquopalavras-enigma e conceitos auto-destrutoresrdquo

(PREacuteVOST 2015 p 440) e ldquoconceitos negativos que estouram como bolhas de sabatildeordquo (PREacuteVOST 2015 p

441) a comeccedilar por Utopia ndash palavra cunhada por More que indica o natildeo-lugar que mesmo sendo um natildeo-

lugar seraacute descrito em detalhes no livro II Antes de chamar sua ilha de Utopia More pensou em Nusquama

ndash topocircnimo certamente menos adequado ao elogio da cultura grega que percorre a obra A capital da ilha eacute

Amaurota forma criada a partir do substantivo ἀμαυρός ldquodifiacutecil de enxergarrdquo ldquoobscurordquo na segunda carta a

Gillis More a define como ldquocidade evanescenterdquo (urbem evanidam) Na primeira ediccedilatildeo da Utopia Amaurota

se chamava Mentiranum Outros vocaacutebulos criados a partir do grego satildeo Anidro ldquosem aacuteguardquo nome do rio

que atravessa Amaurota acorianos povos ldquosem territoacuteriordquo alaopolitas ldquocidadatildeos sem naccedilatildeordquo nefelogetas

ldquocidadatildeos nascidos de uma nuvemrdquo polileacuteritas ldquomuitos absurdosrdquo anemolianos que derivam seu nome de

ἄνεμος ldquoventordquo Todos esses nomes de lugares e de povos e outros espalhados pelos livro I II e tambeacutem

pelos paratextos ldquoreafirmam sem cessar o quinhatildeo de inanidade que entra na Utopiardquo (PREacuteVOST 2015 p

440) e que jaacute estaacute anunciado na carta-prefaacutecio

Vale lembrar que o relato da descriccedilatildeo da Utopia foi feito por Rafael Hitlodeu marinheiro-filoacutesofo portuguecircs

cujo nome eacute marcado pelo paradoxo Satildeo Rafael pode aludir ao nome da embarcaccedilatildeo de Vasco da Gama que

abriu a rota para as Iacutendias em 1498 ao nome do anjo que daacute a receita para Tobias curar seu pai da cegueira

(Tobias 10) e em hebreu Rafael quer dizer ldquoDeus curourdquo A este nome marcado pela referecircncia biacuteblica e pela

referecircncia agraves navegaccedilotildees junta-se um sobrenome cuja etimologia sugere um personagem haacutebil em contar

lorotas ou bagatelas (hythlos que resultaraacute num verbo significando ldquofalar bobagensrdquo e daios ldquohaacutebilrdquo) ldquoque faz

brilhar invenccedilotildeesrdquo ldquocelui qui fait briller des inventionsrdquo na traduccedilatildeo de Delcourt (MORE 1936 p 22)

ldquoespecialista em disparatesrdquo e ldquomercador de disparatesrdquo traduccedilatildeo de nonsense peddler na ediccedilatildeo da Martins

Fontes por Camargo e Cipolla (MORE 2009) ou ainda ldquomensageiro sem noccedilatildeordquo na traduccedilatildeo de Gouvecirca

Junior (MORE 2017) Poreacutem daios tambeacutem significa ldquodestruidor exterminadorrdquo aquele que eacute hostil a algo

portanto Hitlodeu seria tambeacutem algueacutem hostil agraves tolices ou seja um saacutebio

Eacute o relato desse personagem de nome paradoxal e de ethos paradoxal como mostrou Sylvester (1968) que

More-personagem na carta a Pieter Gillis diz ter transcrito

[135]

A carta-prefaacutecio natildeo escapa do modelo retoacuterico amplamente difundido agrave sua eacutepoca nela podemos encontrar

salutatio exordium narratio petitio e conclusatildeo A linguagem da carta eacute semelhante agrave dos livros I e II

apresentando por exemplo figuras de som variadas repeticcedilotildees e paralelismos liacutetotes enargeia metaacuteforas

ironia humor e tom satiacuterico em uma linguagem variada4

Ela comeccedila com uma salutatio simples sem epiacutetetos (Thomas Morus Petro Aegidio salutem dicit Thomas More

sauacuteda Pieter Gillis TIN 2005 p 48-49) Segue-se o exordium que mescla o toacutepos da modeacutestia com a captatio

benevolentia

Sinto-me quase envergonhado meu cariacutessimo Pieter Gillis por enviar-te este livrinho sobre a repuacuteblica utopiana depois de praticamente um ano sendo que (natildeo duvido) tu o esperavas em um mecircs e meio porque sabias que para este trabalho aliviado da preocupaccedilatildeo com a invenccedilatildeo e natildeo precisando pensar na disposiccedilatildeo dos assuntos era preciso apenas repetir o que junto contigo ouvi contar Rafael e por isso nem havia porque me preocupar com o modo de dizer jaacute que o relato dele natildeo podia ser elegante tendo sido em primeiro lugar feito de improviso e sem preparaccedilatildeo e depois por uma pessoa como sabes natildeo tatildeo douta em latim quanto em grego assim quanto mais perto minha escrita chegar da simplicidade negligente dele mais perto estaraacute da verdade que eacute a uacutenica coisa agrave qual devo e devoto meu empenho

Neste trecho da carta de More a Gillis ldquoinvenccedilatildeo [] disposiccedilatildeo [] modo de dizerrdquo operaccedilotildees retoacutericas que

o talento de Hitlodeu havia executado traduzem inueniendi [] dispositione [] eloquendo enumeradas no

quinto livro da Instituiccedilatildeo oratoacuteria de Quintiliano no qual ele diz que ldquoa retoacuterica eacute a ciecircncia de inventar dispor

e dizer adequadamente com boa memoacuteria e atitude dignardquo ndash ldquoRhetorice est inueniendi recte et disponendi et

eloquendi cum firma memoria et cum dignitate actionis scientiardquo (Inst 51054) Dizendo o que natildeo elaborou e o

que natildeo fez More-personagem chama a atenccedilatildeo do leitor para o que More-autor de fato elaborou e fez

Liacutetotes e ironia que construiratildeo todo o edifiacutecio ficcional da Utopia mediante formulaccedilotildees obliacutequas marcam

a carta-prefaacutecio desde seu iniacutecio e retomam a negaccedilatildeo ambiacutegua jaacute anunciada no nome da ilha do natildeo-lugar e

no nome de Rafael Hitlodeu

More-personagem atribui a simplicidade de sua tarefa de mero transcritor ao fato de Hitlodeu ter feito um

relato que ldquonatildeo podia ser eleganterdquo pois foi feito ldquode improviso e sem preparaccedilatildeordquo e em uma liacutengua que ele

dominava menos que o grego o que resultou em um estilo de ldquonegligente simplicidaderdquo No iniacutecio do livro I

Gillis apresenta Hitlodeu ldquonatildeo eacute ignorante em liacutengua latina e eacute doutiacutessimo na gregardquo ndash ldquolatinae linguae non

indoctus amp graecae doctissimusrdquo (4832-335) A imprecisatildeo expressa pela liacutetotes sobre o quanto Hitlodeu sabe

latim mascara a complexidade do discurso latino do marinheiro portuguecircs cuja variedade estiliacutestica foi

demonstrada por Edward Surtz e Elizabeth McCutcheon6

4 Para uma traduccedilatildeo completa da carta-prefaacutecio seguida do original latino ver Ribeiro (2018) 5 Estes nuacutemeros referem-se agrave paacutegina e linhas da jaacute citada CW4 6 Ver por exemplo Surtz (1967) e McCutcheon (1971 1983 2015a 2015b)

[136]

ldquoNatildeo ser ignorante em latimrdquo parece apontar para a insuficiecircncia no manejo da liacutengua mais do que para a

excelecircncia imprecisatildeo que sugere um efeito de ironia porque se opotildee agrave proacutepria escrita do livro utoacutepico e a

observaccedilotildees como a de Quintiliano e Erasmo acerca da capacidade de improvisar ldquocertamente o maior fruto

dos estudosrdquo ndash ldquomaximus uero studiorum fructus est [] ex tempore dicendi facultasrdquo (Inst 1071) ndash ou ainda

algo que se consegue com muito exerciacutecio e bons modelos como afirma Erasmo (TIN 2005 p 114) Para

Erasmo ldquopureza e propriedade de estilo satildeo alcanccedilados pelo diligente exerciacutecio de escrita acompanhado pela

cuidadosa revisatildeo e o estudo em profundidade de diversos escritoresrdquo (TIN 2005 p 52) Ou seja o discurso

improvisado de Hitlodeu soacute pode ser fruto de muito estudo informaccedilatildeo que nuanccedila o fato de ele natildeo ser ldquotatildeo

douto em latim quanto em gregordquo

Por outro lado eacute certo que o tom de conversa domina e emoldura a Utopia que eacute um longo coloacutequio e

predomina tambeacutem nas cartas que compotildeem os paratextos Podemos aproximaacute-lo do que explica Erasmo em

sua Breviacutessima e muito resumida foacutermula de elaboraccedilatildeo epistolar a carta ldquoum coloacutequio entre ausentesrdquo (ele cita

Libacircnio) ldquonada traz que a difira de uma conversaccedilatildeo do cotidiano em linguagem comumrdquo (TIN 2005 p 51)

Vale notar que a mesma expressatildeo que qualifica o discurso de Hitlodeu feito ldquode improviso e sem

preparaccedilatildeordquo (ldquosubitarius atque extemporalisrdquo) aparece na Breviacutessima foacutermula na qual Erasmo aconselha que

ldquoo estilo epistolar deve ser simples e mesmo bastante descuidado no sentido de um descuido estudadordquo para

que pareccedila ldquonatildeo trabalhado e quase improvisado e sem preparaccedilatildeordquo (ldquopaene subitus atque extemporariusrdquo)

Quintiliano nas Instituiccedilotildees oratoacuterias (9437) cita uma passagem de Ciacutecero que se refere a uma non ingratam

neglegentiam indicando um discurso que se atenta mais para o que quer dizer do que para a forma com que

se diz (eacute um trecho que trata de ditongos e hiatos)

Enfim eacute importante perceber que o discurso utoacutepico como notaram McCutcheon e Surtz (1983 p 37) natildeo

eacute homogecircneo sua forma varia alternando trechos elaborados e formulaccedilotildees simples Como percebeu

Erasmo

o estilo oratoacuterio que [More] alcanccedilou se inclina mais agrave estrutura isocraacutetica e agrave sutileza dialeacutetica do que agravequela fluente correnteza do estilo ciceroniano ainda que natildeo seja inferior a Marco Tuacutelio em elegacircncia E uma vez que quando jovem dedicou-se por muito tempo a escrever poesia reconheceraacutes o poeta em sua prosa (ERASMO DE ROTTERDAM 2013 p 175 trad de Elaine Sartorelli)

Voltemos agrave carta Thomas More continua

Confesso meu caro Pieter que por estarem prontas essas coisas de fato subtraiacuteram boa parte de minhas preocupaccedilotildees porque quase nada ficou por fazer em caso contraacuterio imaginaacute-las e organizaacute-las poderia demandar um engenho nem iacutenfimo nem completamente indouto aleacutem de natildeo pouco tempo e aleacutem de aplicaccedilatildeo Mas se me fosse exigido que escrevesse natildeo somente com verdade mas tambeacutem com eloquecircncia para fazer isso na verdade natildeo poderia dispor nem de tempo nem de aplicaccedilatildeo Eacute verdade poreacutem que suprimidas estas tarefas que me fariam tanto suar restaria apenas isto escrever o que ouvi de modo simples ndash um negoacutecio de nada

[137]

A toacutepica da modeacutestia se mescla agrave toacutepica do relato que se diz ser mera transposiccedilatildeo o que eacute recorrente nas

descriccedilotildees de paiacuteses utoacutepicos seja por motivaccedilatildeo luacutedica seja para escapar da censura No acircmbito da

literatura inglesa vale lembrar um trecho do proacutelogo dos Contos da Cantuaacuteria

Natildeo julgueis minha falta de fineza Pois hei de descrever falas e feitos De maneira veraz e sem rodeios Conforme eu ouvi as frases eu repito Conveacutem reproduzir dito por dito Numa histoacuteria que envolve tanta gente As coisas como foram fielmente A grossura das falas respeitando Nenhuma sordidez amenizando Do contraacuterio a verdade morre expira E o conto eacute sem sabor pura mentira7

Este trecho tambeacutem relaciona mutatis mutandis a transposiccedilatildeo do relato de outrem agrave fidelidade agrave

simplicidade do estilo e agrave veracidade Voltemos agrave carta Depois de explicar o quanto e por que eacute injustificaacutevel

seu atraso no envio da Utopia o personagem More se desculpa argumentando falta de tempo que lhe eacute

requerido pelas obrigaccedilotildees do trabalho da casa e pelas necessidades do corpo Ele diz o seguinte

[] mesmo tratando-se de um negoacutecio tatildeo de nada meus outros negoacutecios me deixaram tempo para praticamente menos que nada Tantas vezes haacute processos forenses conduzo alguns defendo alguns arbitro alguns como advogado sentencio alguns como juiz tantas vezes visito este por uma obrigaccedilatildeo aquele por um negoacutecio tantas vezes fora dedico quase todo o meu dia a alguns e o que resta aos meus que para mim isto eacute para as letras nada resta Sim pois quando volto para casa tenho que confabular com a minha esposa brincar com as crianccedilas conversar com os criados ndash todas essas coisas eu coloco na categoria dos negoacutecios pois satildeo necessaacuterias (e tecircm que ser necessaacuterias a natildeo ser que queiras ser um estranho em tua casa) e eacute preciso dar total atenccedilatildeo aos teus companheiros de vida sejam os que a natureza proveio sejam os que o acaso produziu sejam os que escolheste a quem tratas com a maior amabilidade mas sem que teu companheirismo os corrompa e a indulgecircncia natildeo transforme os criados em senhores Nessas ocupaccedilotildees que mencionei vatildeo-se dias meses anos Logo em que momento escreveriacuteamos E natildeo disse o que quer que seja a respeito do sono e nem tampouco da comida que a muitos natildeo consome menos tempo que o sono que some com quase metade da nossa vida Tempo para mim poreacutem eu consigo somente quando de vez em quando o furto ao sono e agrave comida e como ele eacute pouco e porque isso jaacute eacute alguma coisa lenta e finalmente terminei a Utopia e a ti meu caro Pieter a envio para que a leia e me avise caso algo nos tenha escapado

Minha traduccedilatildeo tem repeticcedilotildees que buscam reproduzir as figuras de som do texto latino figuras que

parecem sublinhar a longa enumeraccedilatildeo das obrigaccedilotildees do narrador Chamo a atenccedilatildeo para este trecho em

particular Em poucas linhas soam as aliteraccedilotildees e assonacircncias em s em o em m e n sono consome sono

some somente sono (somno absumit somnus adsumit solum somno) Em outras ocasiotildees jaacute chamei a atenccedilatildeo

para a presenccedila de figuras de som na Utopia e o sentido dessa presenccedila no contexto das relaccedilotildees entre

7 Proacutelogo geral dos Contos da Cantuaacuteria na traduccedilatildeo de Joseacute Francisco Botelho em Chaucer (2013 p 45)

[138]

humanistas e escolaacutesticos no seacuteculo XVI e para o fato de que elas marcam posiccedilatildeo quanto ao uso da

linguagem sabedoria e eloquecircncia poesia e histoacuteria podem coexistir num mesmo discurso8

A carta-prefaacutecio continua alternando narratio e petitio com a confissatildeo de um possiacutevel lapso de memoacuteria

[] se natildeo desconfio de mim (oxalaacute eu tivesse tanto de engenho e conhecimento quanto de memoacuteria da qual seguramente natildeo sou destituiacutedo) natildeo confio poreacutem com seguranccedila para crer que nada tenha podido me escapar

More explica que seu pajem John Clement ldquoque comeccedilou a verdejar nas letras latinas e gregasrdquo discorda

dele quanto ao tamanho da ponte ldquoque se estende sobre o rio Anidrordquo e corta a capital Amaurota (CW4

4020) Preocupado pede a Gillis que verifique essa informaccedilatildeo

Se com ele consentes eu tambeacutem assentirei e aceitarei meu lapso mas se natildeo te acordas escreverei o que me pareccedila eu mesmo me recordar []

O narrador diz estar cuidando ldquopara que natildeo haja falsidades no livrordquo Ele continua ldquose houver algo de

ambiacuteguo prefiro dizer uma mentira sem querer que mentir de propoacutesito porque prefiro ser honesto a ser

espertordquo A distinccedilatildeo entre mentir sem querer e mentir de propoacutesito eacute uma citaccedilatildeo de Aulo Geacutelio (NA XI 11

1-4) autor muito apreciado pelos humanistas Nesta passagem afirma-se o pacto de leitura da Utopia a

convenccedilatildeo irocircnica e humoriacutestica que permitiraacute ao leitor ler uma imensa mentira que poreacutem trataraacute de uma

imensa verdade ou seja da concretude cotidiana do viver associado

A carta tambeacutem pede a Gillis que confira com Hitlodeu natildeo apenas essa informaccedilatildeo mas tambeacutem que lhe

pergunte a localizaccedilatildeo precisa da ilha de Utopia jaacute que More natildeo teve a ideia de perguntar e um ldquodevoto e

teoacutelogo de profissatildeordquo (CW4 425-6) foi apontado para ser bispo dos utopianos Por fim uma uacuteltima

solicitaccedilatildeo que Gillis pergunte ao marinheiro portuguecircs se ele natildeo gostaria de revisar Utopia ou se natildeo

preferiria ele mesmo escrever seu relato ldquocom seus proacuteprios esforccedilosrdquo (CW4 4221-22)

Termino com a apresentaccedilatildeo do final da carta-prefaacutecio que traz um verdadeiro cataacutelogo caricato de maus

leitores diametralmente opostos aos bons leitores da repuacuteblica das letras que se delineia no conjunto dos

paratextos das quatro primeiras ediccedilotildees da Utopia A carta se encerra com a promessa de que o trabalho de

redaccedilatildeo seraacute revisado e com uma saudaccedilatildeo final a Gillis assim como uma evocaccedilatildeo ao bom conselho dos

amigos e agrave amizade que os unia O cataacutelogo comeccedila depois que More diz que natildeo sabe se conseguiraacute publicar

seu livro

porquanto satildeo tatildeo variados os gostos dos mortais tatildeo difiacuteceis de contentar o caraacuteter de alguns tatildeo desagradaacuteveis os espiacuteritos tatildeo absurdos os juiacutezos que aqueles que alegres e contentes satildeo indulgentes com seu estro parecem ser natildeo pouco mais felizes do que quem se atormenta com preocupaccedilotildees para publicar algo que possa ser uacutetil e prazeroso para outros desdenhosos e ingratos Tantos ignoram o conhecimento muitos o menosprezam

8 Ver Ribeiro (2015a 2015b 2016 2018)

[139]

Os baacuterbaros rejeitam como sendo aacuterduo o que quer que natildeo seja completamente baacuterbaro os sabichotildees desprezam como sendo trivial o que quer que natildeo abunde em palavras obsoletas haacute a quem soacute agrade o que eacute antigo e agrave maioria apenas o que eacute seu Este eacute tatildeo severo que natildeo admite brincadeiras aquele tatildeo insulso que natildeo suporta o sal [Chama de ldquonarizes chatosrdquo os homens sem nariz] Alguns satildeo tatildeo narizes-chatos que temem qualquer nariz assim como teme a aacutegua toda pessoa mordida por um catildeo raivoso Outros satildeo voluacuteveis a tal ponto que aprovam uma coisa sentados e outra coisa em peacute [Proveacuterbio] Estes se sentam nas tavernas e entre copos julgam o engenho dos escritores e com grande autoridade e a seu bel-prazer como se os puxassem pelos cabelos condenam cada um de seus escritos

enquanto eles proacuteprios ficam seguros ἒξω βέλους (ldquofora da mirardquo) como se costuma dizer porque satildeo tatildeo lisos e raspados por toda parte que natildeo tecircm nenhum fio de homem honesto por onde possam ser apanhados Haacute ainda quem seja tatildeo ingrato que mesmo deleitando-se ao extremo com a obra natildeo por isso ame mais o autor [Admiraacutevel comparaccedilatildeo] natildeo satildeo dessemelhantes aos convidados sem educaccedilatildeo que recebidos generosamente com um suntuoso banquete laacute se fartando voltam ao lar sem terem agradecido agravequeles que os convidaram Vai agora prepara agraves tuas expensas um banquete para esses homens de tatildeo delicado paladar tatildeo variados gostos e aleacutem do mais de espiacuterito tatildeo inclinado a lembrar e a agradecer

De toda forma meu caro Pieter faccedila como disse em relaccedilatildeo a Hitlodeu depois disso seraacute conveniente deliberar novamente sobre essas coisas Mas se o livro estiver de acordo com a vontade dele como o trabalho da escrita estaacute terminado e agora estaacute tarde para ser saacutebio [esta expressatildeo eacute um proveacuterbio explicado por Erasmo em um dos Adaacutegios]9 quanto ao que resta editar seguirei o conselho dos amigos e em primeiro lugar o teu Adeus dulciacutessimo Pieter Gillis e tua excelente esposa Ama-me como de costume pois eu o amo ainda mais que costumo

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ERASMO DE ROTTERDAM Elogio da loucura Traduccedilatildeo de E C Sartorelli Satildeo Paulo Hedra 2013

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McCUTCHEON E Mendacium dicere and mentiri ndash A Utopian crux Moreana v 52 n 201-202 p 51-63 deacutecembre 2015a

McCUTCHEON E Puns paradoxes and heuristicinquiry The ldquoDe servisrdquo section of Morersquos Utopia 1991 Moreana v 52 n 201-202 p 91-100 deacutecembre 2015b

McCUTCHEON E The ars poetica and hermeneutics for Morersquos Utopia Angers Moreana 1983

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[140]

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MORE T Utopia Organizaccedilatildeo G M Logan e R M Adams Traduccedilatildeo J L Camargo e M B Cipolla Ediccedilatildeo revista e ampliada Satildeo Paulo Martins Fontes 2009

MORVS T Vtopia ou A melhor forma de governo Estudo introdutoacuterio agrave Utopia moriana por J V de Pina Martins Ediccedilatildeo fac-similada Basileia Ioannes Froben novembro 1518 Ediccedilatildeo criacutetica traduccedilatildeo e notas de comentaacuterio por A A Nascimento Lisboa Calouste Gulbenkian 2006

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Antiguidade claacutessica e judaica em Joseacute de Siguenza e Luis Cabrera de Coacuterdoba (Espanha seacutec XVI-XVII)

Camila Cristina Souza Lima

tamicalegmailcom

Nos reinos ibeacutericos ao longo do seacuteculo XVI a arquitetura reacutegia e

religiosa era edificada seguindo o que seus contemporacircneos

chamavam de ldquoarquitetura modernardquo e em menor quantidade

tambeacutem era realizada uma arquitetura ldquoagrave maneira antigardquo A origem

dos artiacutefices para se realizar as obras de uma ou outra forma

variava sendo que no caso da antiga muitos deles vinham da

Peniacutensula Itaacutelica atraveacutes de italianos ou ateacute mesmo portugueses ou

castelhanos que passavam por uma estadia de aprendizagem em

que a arquitetura antiga romana era redescoberta e formava novo

referencial para as edificaccedilotildees a serem realizadas Esse meacutetodo natildeo

substituiacutea completamente a arquitetura moderna que indicava

continuidade em relaccedilatildeo agraves obras realizadas em fins da Idade

Meacutedia

Segundo Fernando Marias o seacuteculo XVI era marcado por um

bilinguismo dos mestres nos canteiros de obra pois ainda que o

retorno agrave antiguidade fosse uma novidade reconhecida a

arquitetura moderna ainda respondia bem agraves necessidades e aos

interesses dos comitentes Em suas palavras ldquo[] el goacutetico

[arquitetura moderna] continuoacute dando satisfaccioacuten a unas

demandas representativas concretas a las que daba solucioacuten sus

formas habiacutean sido identificadas a unas funciones y unos

significados especiacuteficos []rdquo (MARIAS 1992 p 9)

[142]

A escolha entre a arquitetura agrave maneira moderna ou agrave maneira antiga nesse momento vinculava-se ao

discurso que se pretendia transmitir em tais construccedilotildees agrave imagem de poder pretendida e agrave narrativa que

legitimava a construccedilatildeo daqueles reinos justificados pela defesa da feacute Esse contexto eacute a base para a

discussatildeo que propomos nas paacuteginas que se seguem Devido agraves particularidades do processo de

fortalecimento do poder real nos reinos ibeacutericos em princiacutepios da Idade Moderna a maneira como a

antiguidade seria apresentada pelos autores aqui em questatildeo Joseacute de Siguenza (1544-1606) e Luis Cabrera

de Coacuterdoba (1559-1623) ao escreverem sobre a edificaccedilatildeo do Monasterio de San Lorenzo El Real del

Escorial desenvolveria argumentos que dialogavam com os autores italianos que valorizavam a antiguidade

em detrimento da arquitetura moderna que se realizava ateacute entatildeo mas com aspectos que reforccedilavam o

discurso religioso Nossa intenccedilatildeo natildeo eacute comparar os dois autores aos autores italianos mas traccedilar algumas

caracteriacutesticas mais marcantes em seus argumentos sobre a valorizaccedilatildeo da antiguidade romana Antes de

tratar especificamente das palavras de Siguenza e Cabrera de Coacuterdoba apresentaremos brevemente

algumas consideraccedilotildees sobre a importacircncia da arquitetura moderna ateacute o seacuteculo XVI em Castela

A arquitetura moderna tambeacutem chamada de ldquogoacuteticardquo na historiografia foi introduzida a sul dos Pirineus a

partir de modelos do Norte da Franccedila nos seacuteculos XIII e XIV Era a expressatildeo arquitetocircnica da influecircncia

francesa em tempos de reconquista como tambeacutem tinha sido a romacircnica introduzida pelos monasteacuterios e

abadias cluniacenses no seacuteculo XII em Leatildeo e Castela Ainda que em fins da Idade Meacutedia as lutas contra os

muccedilulmanos tenham sido conduzidas predominantemente pelo clero e pela nobreza local e os edifiacutecios

religiosos tenham incorporado em seu processo construtivo matildeo de obra versada na arquitetura de

influecircncia muccedilulmana chamada na historiografia muitas vezes como ldquomudejarrdquo os prelados e abades

cistercienses proacuteximos dos monarcas Alfonso VIII (1155-1214) e Fernando III (1199-1252) ainda preferiam

edificar seus mosteiros sob a influecircncia francesa (LAMBERT 1990)

Dessa forma o goacutetico e o mudeacutejar que lembravam a presenccedila cristatilde e islacircmica conviviam assim como

cristianismo judaiacutesmo e islamismo tinham convivido na Peniacutensula Ibeacuterica durante boa parte da Idade Meacutedia

O conviacutevio entre religiotildees e maneiras de se edificar natildeo desapareceria apoacutes a subida ao poder dos Reis

Catoacutelicos ainda que suas expressotildees fossem abandonadas progressivamente em benefiacutecio de uma imagem

de um reino cristatildeo em construccedilatildeo

A mudanccedila de postura em favor de uma arquitetura que apresentasse em sua escolha a imagem de uma

monarquia cristatilde se deveu entre outros motivos agrave necessidade de se vincular agrave Cristandade sem levantar

suspeitas sobre a ortodoxia dos reis e dos reinos ibeacutericos construiacutedos apoacutes as guerras contra os muccedilulmanos

Fazem parte desse processo a instalaccedilatildeo da Inquisiccedilatildeo para forccedilar os conquistados agrave conversatildeo e para a

fiscalizaccedilatildeo dessa conversatildeo bem como a expulsatildeo dos judeus em 1492 decisatildeo tomada pelos Reis Catoacutelicos

em resposta agrave forte pressatildeo das populaccedilotildees urbanas cristatildes e dos pregadores franciscanos (MARTIacuteNEZ

MILAN 2007)

[143]

Isabel de Castela (1451-1504) e Fernando de Aragatildeo (1452-1516) encomendavam seus edifiacutecios em

ldquoarquitetura modernardquo com influecircncia flamenca e germacircnica o que continuaria a ser realizado ateacute o seacuteculo

XVI Nesse momento de consolidaccedilatildeo do cristianismo na peniacutensula durante o reinado dos Reis Catoacutelicos os

artiacutefices que trabalhavam em suas obras eram na maioria de origem flamenga (MARIAS 1992) Ainda que

existisse um pequeno nuacutemero de artiacutefices versados na arquitetura antiga a monarquia se mantinha mais

apegada agrave moderna A aristocracia ainda que reafirmasse valores tradicionais sobretudo de pertencimento

a uma famiacutelia que justificava seus privileacutegios e seu papel poliacutetico formou a clientela preferencial na

introduccedilatildeo de elementos italianos na arquitetura imprimindo certa aparecircncia de modernidade em suas

iniciativas Em 1488 segundo Victor Nieto Alcaide pela primeira vez um edifiacutecio foi construiacutedo agrave maneira

antiga na Espanha sob a iniciativa do cardeal Don Pedro Gonzaacuteles de Mendonza o Coleacutegio de Santa Cruz de

Valladolid (NIETO ALCAIDE MORALES CHECA CREMADES 1993)

Poreacutem com a mudanccedila de dinastia no seacuteculo XVI dos Trastamaras aos Habsburgos e o reinado de Carlos I

de Espanha (1500-1558) que tambeacutem acumularia o imponente tiacutetulo imperial de Rei dos Romanos1 como

Imperador Carlos V a arquitetura agrave maneira antiga ganhou espaccedilo no mecenato reacutegio Eacute fundamental nesse

sentido lembrar o palaacutecio construiacutedo por Pedro Machuca para o rei anexo agrave Alhambra O monarca visitou a

Alhambra em suas nuacutepcias com Maria de Portugal em 1526 o que teria feito o casal real desejar edificar

tambeacutem em Granada optando por construir um palaacutecio anexo ao suntuoso edifiacutecio muccedilulmano de

arquitetura romana

Segundo Frommel (2018) apesar do imperador natildeo ser muito versado em arquitetura e conhecer muito

melhor a edificaccedilatildeo agrave maneira moderna em detrimento da antiga havia importantes homens em sua corte na

Alhambra que influenciariam sua decisatildeo sobre seu novo palaacutecio Estavam junto ao rei em sua estadia na

cidade Luis Hurtado de Mendoza (1489-1566) governador da Alhambra que conhecia a Itaacutelia e era homem

de confianccedila do rei e Francisco de los Cobos (1477-1547) que demonstrava interesse pela arquitetura

antiga Tambeacutem acompanhava o imperador Baldassare Castilione (1478-1529) embaixador do papa cujo

interesse pelas construccedilotildees da Roma Antiga se expressava em sua provaacutevel participaccedilatildeo na redaccedilatildeo da Carta

de Rafael ao papa Leatildeo X sobre as ruiacutenas romanas texto que engrandecia os antigos construtores e colocava

seus edifiacutecios ndash que passavam a ser conhecidos a partir dos estudos e das escavaccedilotildees das ruiacutenas no entorno

da cidade papal ndash como novos modelos para engrandecer o territoacuterio pontifiacutecio reforccedilando a imagem do

Papa como herdeiro dos antigos imperadores Nesse texto a arquitetura antiga eacute apresentada como

referencial para aleacutem dos limites dos territoacuterios papais Outro nome importante era o embaixador veneziano

Andrea Navageno (1483-1529) que fora pintado por Rafael Sanzio (1483-1520) e visitara com ele o Teatro

Mariacutetimo em 1516

1 Carlos V se tornou rei da Espanha em 1516 e imperador do Sacro Impeacuterio em 1519

[144]

Esses homens devem ter desempenhado papel fundamental na escolha do arquiteto que deveria levar a cabo

o desejo do rei de construir seu palaacutecio anexo agrave Alhambra Pedro Machuca (1490-1550) e dessa forma em

edificar agrave maneira antiga Frommel traccedila paralelos desse palaacutecio com outros edifiacutecios construiacutedos na Itaacutelia

naquele momento e que eram marcados pela presenccedila do paacutetio circular em seu interior como o Palazzo

Gravina em Naacutepolis ou a Vila Madama dos Meacutedicis

Com a construccedilatildeo desse palaacutecio a arquitetura agrave antiga dialoga com o passado islacircmico Nesse momento

como jaacute mencionado Rafael Sanzio escrevia sua Carta a Leatildeo X sobre as ruiacutenas de Roma a qual deveria

acompanhar uma seacuterie de desenhos realizados a partir de suas observaccedilotildees das reliacutequias da antiga capital do

impeacuterio que sobreviveram As palavras de Rafael satildeo muito importantes para se compreender como se dava

a valorizaccedilatildeo do passado romano em detrimento da arquitetura que se realizava ateacute entatildeo

Haacute muitos Santiacutessimo Padre que medindo com seu pequeno juiacutezo as coisas grandiacutessimas que se escrevem dos romanos sobre suas faccedilanhas militares e sobre a cidade de Roma o que diz respeito a admiraacutevel arte riqueza ornamentos e grandezas dos edifiacutecios acham que estas sejam mais fabulosas que verdadeiras Mas comigo costuma acontecer o contraacuterio pois considerando a divindade daquelas almas antigas a partir dos vestiacutegios que ainda vemos das ruiacutenas de Roma opino natildeo ser mais aleacutem da razatildeo acreditar que muitas coisas que parecem impossiacuteveis para noacutes para elas eram faciacutelimas (SANZIO 2010 p 45)2

Em suas palavras eacute expressa a defesa da Roma antiga como um ambiente aacuteureo de homens e conhecimentos

louvaacuteveis que se encontravam distantes daqueles tempos mas que poderiam e deveriam ser resgatados

como heranccedila aos homens de princiacutepios da Idade Moderna marcando claramente a existecircncia de um hiato

que separa o passado imperial romano do momento em que se escreve esse elogio Essa postura que foi

amplamente discutida na historiografia e que seria fundamental para compreender a Europa Moderna eacute

retomada por diversos autores da eacutepoca Rafael (2010 p 45) continua sua valorizaccedilatildeo de Roma

No entanto pareceu que o tempo sendo invejoso da gloacuteria dos mortais natildeo confiando totalmente apenas em suas proacuteprias forccedilas acordou-se com a fortuna e com os baacuterbaros profanos e celerados os quais agrave lima voraz e agrave mordida venenosa daquele acrescentaram sua iacutempia forccedila o ferro e o fogo e todas as maneiras aptas de arruinaacute-la

A apresentaccedilatildeo da decadecircncia do mundo romano devido aos povos baacuterbaros que se instalaram nos

territoacuterios do impeacuterio que se desagregavam tambeacutem eacute bastante recorrente nos autores Queremos ressaltar

isso para indicar as particularidades da escrita sobre a arquitetura agrave antiga que surgiria na Espanha conforme

a arquitetura moderna sedia espaccedilo agraves influecircncias que vinham da Itaacutelia

A iniciativa de Carlos V eacute um marco importante nesse processo de abertura do mecenato reacutegio para a

arquitetura agrave antiga pois seu palaacutecio construiacutedo por Machuca ao lado da Alhambra indicava a possibilidade

da arquitetura romana ser adequada e decorosa para comunicar a imagem do rei em seus edifiacutecios Tafuri

2 Carta ao Papa Leatildeo X Manuscrito de Mantua Traduccedilatildeo de Luciano Migliaccio e Maria Luiza Zanatta

[145]

(1993) ao estudar esse palaacutecio reforccedila o discurso de Carlos V atraveacutes desse palaacutecio que voltado agrave

valorizaccedilatildeo da arquitetura antiga reforccedilava a imagem de seu poder universal como Rei dos Romanos

aproximando-se do discurso papal de sua eacutepoca

Se Carlos V tinha como importante mensagem expressar na arquitetura o seu poder imperial enquanto

herdeiro de Roma seu filho Felipe II (1527-1598) teria outras mensagens a transmitir Seu reinado foi

marcado pelo reforccedilo da imagem de pertencimento da Espanha agrave Cristandade e do papel de seus

governantes como importantes defensores da feacute catoacutelica seja contra seus inimigos internos (reformas

religiosas e heresias) bem como seus inimigos externos (avanccedilo turco) aleacutem do papel missionaacuterio

evangelizador nas colocircnias americanas que colocavam os reinos ibeacutericos como os continuadores da obra dos

apoacutestolos de Cristo de levar a palavra a todos os cantos da Terra Diferentemente de seu pai Felipe II era

conhecedor da arquitetura antiga e tinha em sua biblioteca os principais tratados daquele momento

(PARKER 2004)

Aleacutem disso Felipe II passou a governar todos os reinos peninsulares com a incorporaccedilatildeo de Portugal em

1580 devido agrave morte do rei cardeal Dom Henrique (1512-1580) que sucedera Dom Sebastiatildeo (1554-1578)

apoacutes seu desaparecimento no norte da Aacutefrica e conduzira a questatildeo sucessoacuteria que acabaria por coroar o

monarca castelhano tambeacutem como rei lusitano Na arquitetura a principal obra realizada para sintetizar a

mensagem de poder religioso desse monarca eacute o Monasterio de San Lorenzo El Real del Escorial tambeacutem

chamado apenas de Escorial e o responsaacutevel pela traccedila geral do edifiacutecio e da execuccedilatildeo da faacutebrica tambeacutem

chamado para se ocupar das construccedilotildees reais em termos gerais como arquiteto do rei foi Juan Bautista de

Toledo (c 1515-1567) espanhol que tinha atuado em Roma junto a Michelangelo homem versado na

arquitetura antiga especialmente nas obras edificadas sob patrociacutenio papal

Nossa intenccedilatildeo em fazer essas primeiras consideraccedilotildees eacute explicitar o contexto em que a arquitetura antiga

ganha relevacircncia junto aos monarcas espanhoacuteis chegando inclusive ao principal espaccedilo de expressatildeo da

monarquia na Idade Moderna o Escorial que ainda hoje eacute o local de enterramento dos membros da famiacutelia

real Pretendemos reforccedilar a importacircncia da escolha de Felipe II em construir um palaacutecio para si junto a um

monasteacuterio onde tambeacutem seria o panteatildeo dinaacutestico trazendo artiacutefices da Itaacutelia ou versados na arquitetura

antiga quando ainda se edificava consideravelmente em arquitetura agrave maneira moderna a qual tinha

importante apelo agraves questotildees religiosas e agrave lembranccedila da Reconquista aleacutem de relacionar-se agrave imagem de

pertencimento agrave Cristandade Nesse momento o discurso de legitimaccedilatildeo do poder real ainda reforccedilava a

lembranccedila das guerras contra os muccedilulmanos Devemos lembrar que Felipe II incentivava a escrita da

Histoacuteria valorizando esses eventos colocando-se como continuador de seus antepassados na defesa da feacute

catoacutelica contra o Islatilde quando aconteciam as lutas contra os turcos em Lepanto (GARCIA CARCEL 2003)

[146]

O monarca tambeacutem empreendia avanccedilos contra as populaccedilotildees remanescentes dos muccedilulmanos Segundo

Martiacutenez Pentildeas e Herreros Cepeda (2011) a situaccedilatildeo dessas populaccedilotildees mudou drasticamente entre o

reinado de Carlos V e Felipe II de forma que a relativa toleracircncia aos seus costumes fosse substituiacuteda por

uma incorporaccedilatildeo dessas pessoas ao modo de viver dos cristatildeos sobretudo apoacutes o Conciacutelio de Trento Em

1566 o monarca elaborou uma pragmaacutetica em que os mouriscos deveriam aprender castelhano abandonar

sua liacutengua vestes instrumentos e cacircnticos em ateacute trecircs anos aleacutem de criar uma comissatildeo que averiguaria os

tiacutetulos das terras em que viviam as quais poderiam ser confiscadas caso a documentaccedilatildeo natildeo estivesse

adequada o que acabou por gerar uma onda de revoltas iniciadas em Granada na noite de Natal de 1568

que avanccedilou para o norte de Maacutelaca e se prolongou ateacute o veratildeo de 1571 quando foram sufocadas pelas

tropas lideradas por Don Juan irmatildeo bastardo do rei

Devido a essas particularidades do territoacuterio espanhol a maneira como a relaccedilatildeo entre arquitetura antiga e

moderna foi apresentada no discurso de valorizaccedilatildeo do Escorial se construiu de maneira particular sem

perder de vista a questatildeo religiosa e o paganismo dos antigos Dois homens que serviram ao monarca e

acompanharam a faacutebrica do Escorial tiveram papel fundamental na construccedilatildeo dessa imagem escrita

O primeiro deles foi Joseacute de Siguenza monge jerocircnimo e importante nome dessa ordem religiosa que

habitou o Escorial desde sua fundaccedilatildeo aleacutem de ter sido cronista da ordem e ter desempenhado importantes

cargos nessa que se tornaria a principal casa jerocircnima (ASENJO PELEGRINA 1979) Tomaremos como base

para nossas consideraccedilotildees apenas algumas de suas obras sobre a construccedilatildeo do Escorial e sua Historia de la

Orden de San Jeroacutenimo

O segundo autor de que trataremos eacute Luis Cabrera de Coacuterdoba proveniente de uma famiacutelia nobre dedicada

agraves armas Seu pai tinha sido o responsaacutevel pelos pagamentos daqueles que trabalharam na faacutebrica do

Escorial o que permitiu a ele proximidade com o rei a quem serviu desde cedo como enviado a outros reinos

Apoacutes a morte de Felipe II Cabrera passou a servir agrave rainha Dona Margarida de Aacuteustria quando comeccedilou a

escrever obras de caraacuteter histoacuterico como a Historia de Felipe II Historia para entenderla y escribirla Advertencia

sobre la educacioacuten del Priacutencipe Elogium Rui Gomenzeii Relactio vitae mortisque Caroli infantis Philippi II

Relaciones de las cosas sucedidas en las cortes de Espantildea desde 1599 hasta 1614 e o poema Laurentina (PEREZ

BLANCO 1975) Tomamos como referecircncia sua Historia de Felipe II e o poema Laurentina

Os dois autores tratam do peso da imagem religiosa desse edifiacutecio poreacutem no discurso de Siguenza esse

aspecto eacute ainda mais presente pois a histoacuteria da construccedilatildeo do Escorial eacute apresentada pelo autor como parte

importante da histoacuteria da proacutepria ordem Como Siguenza foi cronista da Ordem de Satildeo Jerocircnimo a

construccedilatildeo do Escorial eacute narrada como parte de uma Histoacuteria maior que comeccedilaria nas obras do monge

sobre a vida de Satildeo Jerocircnimo passando pelo surgimento da ordem e chegando ao seu aacutepice de

desenvolvimento com a fundaccedilatildeo de San Lorenzo el Real del Escorial Por isso suas palavras datildeo ecircnfase

[147]

sobretudo agrave edificaccedilatildeo espiritual com a vinda dos monges diante da possibilidade de se alojarem onde seria

aquela grande casa aos rituais de consagraccedilatildeo dos espaccedilos da igreja agrave participaccedilatildeo dos monges em todo o

processo e agrave presenccedila do monarca no local sobretudo destacando a narraccedilatildeo dos uacuteltimos dias de vida do rei

e seu exemplo de homem de feacute perante a morte

Esses dois autores indicaram que o Escorial foi construiacutedo para responder a diversos desejos do governante

Em primeiro lugar era a memoacuteria da primeira vitoacuteria do monarca em 10 de agosto de 1557 na Batalha de

San Quintin contra o rei francecircs

Fue eacutesta la primera de la victorias que tuvo Felipe II y acerto por celestial acuerdo aacute ser en 10 diacuteas de Agosto fiesta del glorioso maacutertir San Lorenzo espantildeol aacute quien su nintildeez tuvo este piadoso Priacutencipe singular devocioacuten entendioacute que un principio tan ilustre de sus cosas le veniacutea por su favor e intercesiones en el cielo y asiacute desde aquel punto concibioacute en su pecho un alto propoacutesito de hacerle alguacuten sentildealado servicio (SIGUENZA 2003 p 13)

Era tambeacutem o local de sepultura do imperador Carlos V que acabaria por se converter em panteatildeo dinaacutestico

Como apresentou Cabrera no testamento de Carlos V outorgado em Flandres em 6 de junho de 1554 o

imperador tratava de seu funeral e de sua esposa a imperatriz que estava sepultada na Capilla Real de

Granada sem deixar um edifiacutecio definido para seu sepultamento ldquoConfiaba de su obediecircncia [de Felipe II] y

piedad se le daria con tal pompa y suntuoso edifiacutecio que ningun griego itaacutelico oacute aleman emperador le haya

tenido semejante []rdquo (CABRERA 2009-2010 p 370) A funccedilatildeo de ser sepulcro digno de um imperador

aparece com destaque nos dois autores reforccedilando a imagem de Felipe II como herdeiro de Carlos V

sobretudo na defesa da feacute

Aleacutem disso o Escorial deveria servir como monasteacuterio e como palaacutecio proacuteximo de Madrid para que o rei

pudesse se retirar inclusive quando estivesse preparando-se para a vida eterna no local em que seu corpo

repousaria na Terra O edifiacutecio ndash cuja primeira plana foi traccedilada por Juan Bautista de Toledo (c 1515-1567)

espanhol que retornava da Itaacutelia sendo depois finalizado por Juan de Herrera (1530-1597) ndash era marcado

pela sobriedade e austeridade grandioso em suas dimensotildees e na implantaccedilatildeo em solo seco e plano rodeado

de montanhas que davam destaque ao monasteacuterio na paisagem poreacutem sem ornamentos apresentando-se

como uma fortaleza da feacute onde se fundiam a imagem de um rei austero e piedoso ao reino que havia se

colocado no centro do palco das lutas religiosas em defesa do papa

Nas palavras de Cabrera o papel do edifiacutecio de guardar a memoacuteria das gloacuterias militares eacute reforccedilado em

retomada agrave tradiccedilatildeo antiga Nesse sentido o Escorial deveria ser a imagem das vitoacuterias do monarca ao longo

de seu reinado No interior do edifiacutecio nas dependecircncias do palaacutecio real havia pinturas de duas importantes

batalhas vencidas por Felipe II contra os turcos em Lepanto (1571) e nos Accedilores (1583) durante as guerras

contra D Antoacutenio prior do Crato que questionava seu direito de sucessatildeo ao trono lusitano

[148]

Ao apresentar a relaccedilatildeo entre a tradiccedilatildeo antiga e a necessidade de se guardar a memoacuteria das batalhas

Cabrera demonstra que sua postura em relaccedilatildeo ao passado romano natildeo era de pura admiraccedilatildeo e reverecircncia

pois a Antiguidade eacute vista com ressalvas devido ao aspecto religioso daquele tempo Cabrera de Coacuterdoba

reforccedila o costume antigo de se celebrar vitoacuterias militares que deveriam ser eternizadas e relembradas ano

a ano argumento que eacute apresentado tanto em sua Historia de Felipe II como em seu poema Laurentina em

homenagem a Satildeo Lourenccedilo maacutertir espanhol em cujo dia de celebraccedilatildeo se realizou a primeira vitoacuteria de

Felipe II que seria eternizada no Escorial Apesar de se rememorar agrave Antiguidade o costume antigo eacute

rebaixado por ser guiado por uma religiatildeo que eacute qualificada pelo autor como ldquocega e profanardquo

Y para dar las gracias inmortales seguacuten su religioacuten ciega y profana a quien tenian por dioses principales venerados con pompa soberana y para que adelante los mortales no confiasen en su gloria vana viendo que sus mayores fenecieron los que la fiesta y causa instituyeron (CABRERA DE COacuteRDOBA 1975 p 102)

Na Laurentina reforccedila-se a necessidade de memoacuteria atraveacutes da lembranccedila de momentos que foram objeto

de festas e de comemoraccedilotildees como o iniacutecio da Repuacuteblica de Roma ldquoEl refugio cuando desterrados los

Tarquinos por Bruto el sabio fueron y los primeros coacutensules criadosrdquo (CABRERA DE COacuteRDOBA 1975 p

102-103) Tambeacutem se relembra a fuga dos hebreus do Egito ldquolos de Israel de Egipto libertados una fiesta a

su Dios siempre hicieron ofrecieacutendole en ella sacrificio por tan inmenso y raro beneficiordquo (CABRERA DE

COacuteRDOBA 1975 p 103) A escolha de eventos que retomavam as gloacuterias dos romanos e dos antigos

hebreus buscando referecircncias nos autores latinos e no Antigo Testamento apontava que esses dois modelos

de Antiguidade deveriam ser fonte de inspiraccedilatildeo para seus contemporacircneos

Na sequecircncia Cabrera de Coacuterdoba (1975 p 103) reafirma a superioridade de seu tempo pela religiatildeo

De alliacute recibioacute en uso nuestra gente que estaacute con el bautismo aventajada el celebrar las fiestas comuacutenmente por alguna victoria sentildealada templos instituyendo santamente do queda la memoria eternizada para gloria de Dios y honra del mundo y confusioacuten y pena del profundo

Para lembrar as vitoacuterias eternizadas por edifiacutecios religiosos satildeo apresentados o Mosteiro de Alcobaccedila

construiacutedo por D Afonso I de Portugal para celebrar a vitoacuteria que levou agrave fundaccedilatildeo do reino a construccedilatildeo de

Santa Maria de Tudia por Don Diego Loacutepez de Haro em homenagem agrave vitoacuteria contra os mouros e a igreja

de Toledo em que satildeo celebradas diversas vitoacuterias contra o islatilde (Navas de Tolosa Muradal Salado expugnacioacuten

de Oraacuten) Por tudo isso a primeira vitoacuteria de Felipe II natildeo poderia deixar de ser lembrada com um edifiacutecio

digno desse rei

Aleacutem de suas proacuteprias conquistas o Escorial tambeacutem deveria fazer justiccedila ao passado glorioso que Felipe II

herdava dos antigos reis dos territoacuterios que naquele momento estavam sob seu governo Assim como seus

antecessores tinham lutado contra os infieacuteis o novo rei continuava esse legado lutando contra os

muccedilulmanos e contra os protestantes na Europa Por isso eacute dada tanta importacircncia agrave memoacuteria desses

[149]

antigos reis no proacutelogo do poema reforccedilando o viacutenculo de Portugal a essa heranccedila mediante a fundaccedilatildeo de

Lisboa e das ordens militares em Portugal bem como a morte prematura de Dom Sebastiatildeo sobrinho de

Felipe II Natildeo apenas a unidade geograacutefica peninsular tinha sido restaurada mas a unidade religiosa pois

eram herdeiros dos antigos visigodos Todos os reinos cristatildeos estavam unidos sob o comando daquele que

se colocava como maior defensor da Cristandade em momento de quebra da unidade religiosa na Europa

apoacutes as Reformas Religiosas Por isso a ilustraccedilatildeo do frontispiacutecio da Historia de Felipe II de Cabrera

apresentava o Escorial ao fundo com Felipe II armado protegendo a Igreja apresentando-se alegoricamente

contra as heresias O autor usa os termos ldquoheresiardquo e ldquoheregesrdquo para qualificar aqueles que seguiam Lutero

Calvino e a igreja reformada por Henrique VIII da Inglaterra

Siguenza em sua Histoacuteria sobre a fundaccedilatildeo do Escorial tambeacutem apresenta o argumento de que os edifiacutecios

deveriam guardar feitos gloriosos poreacutem os uacutenicos feitos dignos de memoacuterias seriam aquelas em que a

providecircncia divina se manifesta na accedilatildeo dos reis Natildeo apenas as batalhas deveriam ser lembradas ndash

argumento muitas vezes apresentado por Cabrera para tratar dos grandes feitos de Felipe II ndash mas ainda

mais deveria ser valorizada a feacute do governante vitorioso Dessa forma o edifiacutecio deveria se apresentar como

um sinal da fidelidade do monarca agrave religiatildeo catoacutelica

Reconociendo los muchos y grandes benefiacutecios que de Dios Nuestro Sentildeor hemos recebido y cada diacutea recibimos y cuando Eacutel ha sido servido de encaminhar y guiar los nuestros hechos y los nuestros negoacutecios a su santo servicio y de sostener o mantener estos nuestros reinos en su santa fe y religion y en paz y justicia entendendo con esto cuaacutento sea delante de Dios pia y agradable obra y grato testimonio y reconocimiento de los dichos benefiacutecios el edificar y fundar iglesias y monasteacuterios donde su santo nombre se bendisse y alaba y su santa fe con la doctrina y ejemplo de los religiosos siervos de Dios se conserva y aumenta y para que asiacute mismo se ruegue e interceda a Dios por nos y por los Reyes nuestros antecessores y sucessores y por el bien de nuestras animas y la conservacioacuten de nuestro Estado real [] (SIGUENZA 2003 p 12-13)

Outro aspecto importante na maneira com que Siguenza e Cabrera tratam do passado romano eacute a escolha

que fazem sobre quem deveria ser considerado culpado pela decadecircncia do Impeacuterio Romano Na Peniacutensula

Ibeacuterica ndash que foi marcada pelo longo periacuteodo de domiacutenio muccedilulmano e pelas guerras entre cristatildeos e

islacircmicos na origem da formaccedilatildeo de seus reinos em fins da Idade Meacutedia ndash os godos representavam a

lembranccedila de uma presenccedila cristatilde anterior agrave conquista dos mouros Essa memoacuteria justificava as guerras de

reconquista de um territoacuterio que antes fora cristatildeo e que deveria voltar a ser governado por monarcas que

professassem essa religiatildeo Dessa forma os autores satildeo cuidadosos em apresentar os godos como baacuterbaros

atrasados e causadores do decliacutenio da Antiguidade Por isso Siguenza e Cabrera costumavam representar

os muccedilulmanos como responsaacuteveis pela decadecircncia em que o territoacuterio ibeacuterico se encontrava a qual deveria

ser superada com o estudo e o conhecimento sobre os antigos romanos

Siguenza em sua Histoacuteria da Orden de San Jeroacutenimo (1907) explica o surgimento da Ordem de Satildeo Jerocircnimo

como um renascer nesse caso da religiatildeo de Satildeo Jerocircnimo Nessa obra o autor indica que a origem da ordem

[150]

deveria ser buscada atraveacutes dos primeiros seguidores de Satildeo Jerocircnimo entre os seacuteculos IV e V Apoacutes a morte

do santo segundo Siguenza seus seguidores aos poucos teriam descuidado dos costumes permitindo que

assim dois seacuteculos apoacutes sua morte o islamismo conseguisse destruir o legado do santo A maneira como se

refere ao islamismo eacute bastante pejorativa ldquo[] salio del infierno al mundo el maldito Mahoma con su secta

prevalecio increyblemente en estos siglos miserables tan llenos de carne y sangre []rdquo (SIGUENZA 1907 p

5) Siguenza entatildeo apresenta a histoacuteria dos jerocircnimos por meio da imagem de um rio ldquocaudaloso que se

esconde por lo secreto de sus entrantildeas largo espacio y torna despues con nueva claridad y frescura a

aparecer a nuestros ojos ansi torno al mundo cerca de los antildeos de 1350 esta sagrada religionrdquo (SIGUENZA

1907 p 5)

Por isso o retorno da ordem era esperado e tinha sido prenunciado por inuacutemeros profetas de fins da Idade

Meacutedia dentre os quais se destacam uma princesa Santa Briacutegida que vivia proacuteximo ao papa Gregoacuterio XI e

Tomassucio que motivara a vinda de homens da Itaacutelia para a Peniacutensula Ibeacuterica para viverem como eremitas

experiecircncia que depois desembocaria no surgimento da nova ordem religiosa

Apesar de natildeo tratar especificamente da queda do Impeacuterio Romano a imagem de um passado a ser

retomado associado agrave ideia de decliacutenio e renascimento presente nos discursos de valorizaccedilatildeo da

Antiguidade romana aparece de forma semelhante na maneira com que Siguenza constroacutei sua histoacuteria da

ordem de Satildeo Jerocircnimo

Quanto aos edifiacutecios Siguenza tende a valorizar a localizaccedilatildeo e a salubridade do espaccedilo escolhido pelos

religiosos jerocircnimos para edificarem seus monasteacuterios a possibilidade de recolhimento e afastamento do

mundo que esse espaccedilo escolhido poderia propiciar e a maneira como eram edificados propiciando

seguranccedila aos monges se fossem duraacuteveis e pouco sujeitos agraves intempeacuteries climaacuteticas Mesmo os edifiacutecios

mais simples eram valorizados como obra dos monges ndash sobretudo quando determinavam o estabelecimento

em um certo local ndash devendo eles serem acima de tudo adequados agrave vida monaacutestica Em Guadalupe em um

dos mais ceacutelebres mosteiros de Satildeo Jerocircnimo ndash junto ao santuaacuterio mariano que recebia inuacutemeros peregrinos

de toda a peniacutensula ndash a obra do edifiacutecio ndash construiacutedo antes dos jerocircnimos se estabelecerem no local ndash mais

elogiada foi um aqueduto construiacutedo durante o priorado de Toribio Fernandez apresentado como ldquodigna de

que se ponga a par con cualquier outra de las famosas antiguasrdquo (SIGUENZA 1975 p 235) Dessa forma uma

boa obra estaacutevel bem edificada poderia ser comparada a uma obra da Antiguidade para que fossem

explicitadas suas qualidades

Ainda assim quando se trata especificamente do Escorial Siguenza (2003 p 264) destaca a relaccedilatildeo do

edifiacutecio com o passado romano e o coloca como um representante da superaccedilatildeo da arquitetura produzida

durante a Idade Meacutedia

[151]

Luego en poniendo los pies en los umbrales de la puerta principal [do Escorial] se comienza a discubrir una majestade grande y desusada en los edifiacutecios de Espantildea que habia tantos siglos que estaba sepultada en la barbaacuterie oacute groseriacutea de los godos y aacuterabes que sentildeoreaacutendose de ella por nuestro pecado apenas nos dejaron luz de cosa buena ni de primor ni en letras ni en las artes

Nesse trecho o autor coloca lado a lado os godos mas o motivo principal da decadecircncia que poderia ser vista

nas artes e na escrita desse periacuteodo eram os pecados daqueles homens

Siguenza provavelmente tinha conhecimentos de arquitetura e toma como referecircncia do bem edificar as

obras e conhecimentos dos antigos Ainda assim quando em sua Historia de la Orden de San Jeroacutenimo

apresenta edifiacutecios frequentemente realizados em arquitetura moderna anteriores agrave construccedilatildeo de San

Lorenzo el Real del Escorial faz criacuteticas mesmo que ainda valorize o que foi construiacutedo por considerar que satildeo

resultado do limite de conhecimento dos homens daquele tempo Dessa maneira tenta valorizar o que

poderia ser melhor realizado na arquitetura moderna considerada inferior em relaccedilatildeo agraves obras antigas Por

exemplo quando a Ordem de Satildeo Jerocircnimo passou a habitar junto ao santuaacuterio de Guadalupe em 1389

durante o reinado de D Juan I e os monges edificaram ali um mosteiro Siguenza (1975 p 237) fez a seguinte

avaliaccedilatildeo da arquitetura

Lo primero que edifico [o frei Fernado de Yaacutentildeez] fue um claustro grande no muy vistoso ni de buena proporcion en los anchos y largos porque sabian poco los maestros de aquel tempo de las buenas architeturas de que usaron los antigos y se han tornado a resucitar agora con todo esso el claustro es devoto y religioso []

A arquitetura dos antigos eacute a boa arquitetura para Siguenza As consideraccedilotildees sobre a arquitetura moderna

sempre a colocam como limitada e de menor qualidade o que pode ser percebido em seus comentaacuterios sobre

diferentes mosteiros jerocircnimos Tambeacutem eacute significativo ressaltar as palavras que utilizou para fazer seu

elogio ao arquiteto Juan Bautista de Toledo que tinha sido trazido da Itaacutelia para ser o arquiteto do rei ou

seja para atuar nas diferentes intervenccedilotildees que o monarca realizaria nos seus edifiacutecios jaacute existentes bem

como nas faacutebricas que seriam construiacutedas a partir de novas iniciativas Assim escreve Siguenza (2003 p 38)

Juan Bautista de Toledo arquitecto mayor que ya aacute este tempo iba haciendo la idea y el disentildeo de esta faacutebrica hombre de muchas partes escultor y que entendia bien el dibujo sabiacutea lengua latina y griega tenia mucha noticia de filosofia y matemaacuteticas hallandose al fin en el nuchas de las partes que Vitruacutevio priacutencipe de los arquitectos quiere que tengan los que han de ejercitar la arquitectura y llamarse maestro en ella

Saber sobre desenho escultura matemaacutetica filosofia liacutengua grega e latina e conhecer os ensinamentos de

Vitruacutevio eram as qualidades que faziam de Juan Bautista de Toledo arquiteto digno de edificar o Escorial

Ainda assim quando Cabrera e Siguenza explicam a escolha da planta desse edifiacutecio natildeo eacute um templo ou

outro edifiacutecio admiraacutevel da Antiguidade imperial romana que eacute exaltada como inspiraccedilatildeo para o arquiteto

nem a planta eacute justificada em termos tratadiacutesticos Cabrera indica na Laurentina que a organizaccedilatildeo dos

claustros do edifiacutecio forma uma grelha o que teria como intenccedilatildeo relembrar o martiacuterio de Satildeo Lourenccedilo

[152]

assado por natildeo ter revelado ao imperador romano onde se encontrava a riqueza dos cristatildeos segundo a

Legenda Aacuteurea (VARAZZE 2003) ldquo[] que todo una parilla ha parecido en que el patroacuten Laurencio fuera

usado [hellip]rdquo (CABRERA 1975 p 150)

Para Siguenza Felipe II se apresentava como um novo Salomatildeo ao edificar o Escorial pelo empenho em fazer

uma obra digna para ser ofertada a Deus

[] la maneira de fabricar esta iglesia y labor de ella imito mucho aacute la del mismo Salomon la traza e ingenio fueacute que la piedra toda se labrase en las canteras de surte que al pie de la obra ni en el templo apenas se oyese el golpe del pico ni martillo [] (SIGUENZA 2003 p 105)

O Escorial seria muitas vezes associado agrave arquitetura do Templo de Salomatildeo poreacutem este natildeo eacute apresentado

como modelo para o monasteacuterio de Felipe II mas retomado em funccedilatildeo do estabelecimento de uma imagem

bastante valorizada em princiacutepios da Idade Moderna por meio da qual se elogiam monarcas que edificam

casas admiraacuteveis como retrato de sua devoccedilatildeo religiosa agrave memoacuteria do rei Salomatildeo o rei construtor do Antigo

Testamento Os Trastacircmaras membros da dinastia que antecedeu agrave dos Habsburgos na Espanha jaacute

utilizavam a iconografia salomocircnica para representar seus monarcas dentre os quais estatildeo Afonso X (1221-

1284) Enrique II (c 1333-1379) Juan I (1358-1390) e Enrique IV (1425-1474) (MIacuteNGUEZ 2007) Essa

imagem continuaria a ser utilizada pela monarquia

Natildeo apenas a escrita sobre o Escorial evoca a lembranccedila do rei Salomatildeo mas o proacuteprio edifiacutecio apresenta a

imagem desse antigo rei em destaque Na entrada principal do mosteiro haacute uma estaacutetua de Satildeo Jerocircnimo e

das armas reais Ao adentrar por esse portatildeo principal avista-se um pequeno paacutetio que marca uma transiccedilatildeo

entre o exterior do edifiacutecio e a entrada para a basiacutelica espaccedilo sagrado do conjunto Esse paacutetio chamado de

Patio de los Reyes eacute marcado pela presenccedila de estaacutetuas de antigos reis judeus na fachada da igreja a saber

Davi Salomatildeo Ezequiacuteas Josafat Manaseacutes e Josiacuteas

Segundo Martiacuten Gonzaacutelez (1994) cada um dos reis foi pensado por conta de sua relaccedilatildeo com o Templo de

Salomatildeo buscando dessa forma fortalecer a imagem do Escorial como novo Templo de Salomatildeo Essa

interpretaccedilatildeo eacute reforccedilada pelas palavras de Cabrera ao descrever a fachada da igreja do Escorial em seu

poema Laurentina Davi recebeu a incumbecircncia de construir um templo para ser morada divina e segundo

Cabrera (1975 p 157) tambeacutem tinha reunido os materiais para a construccedilatildeo do edifiacutecio

Fijardo estaacute David al diestro lado porque los materiales ha traiacutedo para el templo que el hijo ha edificado porque Dios que eacutel le hiciese no ha querido que la inocente sangre ha derramado tiene su arpa y cetro esclarecido el denuedo mostrando en el semblante con que la horrenda muerto dio al gigante

A segunda estaacutetua eacute a de Josafat lembrado como rei ldquoque del sagrado templo fue devotordquo (CABRERA 1975

p 157) e pelos sacrifiacutecios que ofereceu Segundo Martiacuten Gonzaacutelez (1994) Josafat seria lembrado por

[153]

destruir os bosques dos povos idoacutelatras e por restaurar as funccedilotildees do templo e por isso leva na matildeo a naveta

instrumento para se guardar os incensos de uso lituacutergico

A terceira estaacutetua mencionada por Cabrera na Laurentina eacute de Ezequias ldquoque los iacutedolos falsos derribarardquo

(CABRERA 1975 p 157) Ezequias eacute lembrado tambeacutem por ter enriquecido o templo ldquocon muy preciadas

joyas que le dierardquo (CABRERA 1975 p 158) Na sequecircncia eacute apresentada a figura central Salomatildeo indicado

como instrumento para que Deus atraveacutes de sua accedilatildeo realizasse um templo segundo seus desejos e

sabedoria

Estaacute el primero en la siniestra mano el saacutebio Salomoacuten hijo querido del divino profeta soberano que el templo celebrado ha construido En potencia y saber no hombre humano sino del cielo al suelo conducido para mostrarnos Dios de su potencia alguna partecilla en su sapiecircncia

Ao lado de Salomatildeo eacute apresentado Manaseacutes que apoacutes o periacuteodo de cativeiro na Babilocircnia ao se encontrar

livre e de volta a sua terra ldquoun fuerte muro en la cuidad fundara que de David el nombre conservarardquo

(CABRERA 1975 p 158) Cabrera explica que por fortalecer o templo e protegecirc-lo sua estaacutetua eacute

apresentada com um compasso Por fim eacute apresentado Josias que traz um pergaminho na matildeo direita

representando o texto do Deuteronocircmio ldquopor quien la ley al Pueblo publicarardquo (CABRERA 1975 p 158) e

que tambeacutem teria realizados obras no templo

A imagem do Templo de Salomatildeo eacute fundamental pois funde os argumentos de Siguenza e Cabrera sobre a

principal mensagem deixada no Escorial Se o edifiacutecio deveria guardar as vitoacuterias militares que soacute tinham

valor porque se relacionavam a um rei que agia em favor da providecircncia divina colocando-se como defensor

da Igreja Catoacutelica o principal edifiacutecio a ser lembrado na Antiguidade deveria ser o Templo de Salomatildeo por

representar a maior honra a Deus a quem Felipe II queria servir de forma destacada entre todos os demais

governantes da Europa de seu tempo

A relaccedilatildeo do monasteacuterio de Felipe II com o Templo de Salomatildeo era parte de uma seacuterie de referecircncias

apresentadas por Cabrera em que momentos e aspectos da Antiguidade romana satildeo relembrados

juntamente com o passado cristatildeo e judaico Ou seja para aleacutem do Impeacuterio Romano a Antiguidade a ser

emulada e valorizada era aquela dos tempos de Israel de onde nasceria o cristianismo As duas tradiccedilotildees se

fundem para formar o passado remoto que deveria ser relembrado como o embriatildeo dos reinos cristatildeos

Em sua Historia de Felipe II Cabrera apresenta as qualidades do monarca comparando-o aos reis do Antigo

Testamento a outros monarcas da cristandade e a imperadores romanos Dessa forma Felipe II deveria ser

lembrado como um governante justo como Josias honrado como Davi penitente e defensor da religiatildeo como

seu pai Carlos V Tambeacutem como jaacute apontado deveria ser associado a Salomatildeo por ter edificado o maior

templo a Deus Era semelhante a Constantino por favorecer a igreja grave como o imperador Nerva

prudente como Felipe da Macedocircnia piedoso como Antonino sendo ainda comparado a Afonso o Saacutebio a

[154]

Luis XI da Franccedila a Juacutelio Ceacutesar a Dom Joatildeo II de Portugal a Fernando e Isabel de Castela a Teodoacutesio a

Moiseacutes etc

Em resumo ainda que o Escorial tenha sido edificado segundo os preceitos apresentados pelos tratadistas

italianos que valorizavam a Antiguidade Romana o discurso sobre o valor e a memoacuteria desse edifiacutecio natildeo

poderiam apenas relembrar os tempos dos imperadores de Roma pois as necessidades de seu tempo

sobretudo no que diz respeito agrave forma como se legitimava o poder como defensor da cristandade precisava

valorizar um discurso cristatildeo Por isso os autores que tiveram destaque na escrita sobre esse edifiacutecio

Siguenza e Cabrera apresentam os costumes romanos a serem retomados pelos homens de seu tempo

sempre lembrando que seu tempo poderia ter perdido os conhecimentos do passado buscados na leitura dos

antigos e nas escavaccedilotildees de ruiacutenas mas que a religiatildeo cristatilde os fazia melhores que os saacutebios romanos Assim

natildeo apenas os godos seriam motivo da decadecircncia desse tempo aacuteureo mas os muccedilulmanos grandes inimigos

dos reinos ibeacutericos desde suas formaccedilotildees precisavam tambeacutem figurar como culpados ainda que fossem

muito posteriores aos tempos do Impeacuterio Romano

Dessa forma ainda que a arquitetura moderna fosse considerada pelos autores inferior agrave dos antigos ainda

deveria ser valorizada quando era sinal da devoccedilatildeo dos homens de seu tempo Por fim a valorizaccedilatildeo da

Antiguidade romana sempre era relembrada dando espaccedilo para a valorizaccedilatildeo do passado cristatildeo do tempo

dos Hebreus e do Antigo Testamento Portanto o discurso sobre o ressurgir do conhecimento sobre os

antigos foi adequado pelos autores aqui apresentados agraves necessidades discursivas de Felipe II de

apresentar-se no Monasterio de San Lorenzo El Real del Escorial como promotor da defesa da Igreja Catoacutelica

no contexto das Reformas das lutas contra os muccedilulmanos e da missionaccedilatildeo que marcaram o seu reinado

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A insocircnia como tema nas silvas de Estaacutecio (Silu 54) e Quevedo (Silva Segunda)

Luiza Helena R de Abreu Carvalho

luizahcarvalhogmailcom

As Siluae de Estaacutecio satildeo um conjunto de trinta e dois poemas de

caraacuteter elogioso-circunstancial divididos em cinco livros sendo os

quatro primeiros organizados pelo proacuteprio autor e o uacuteltimo

poacutestumo Nos quatro livros organizados pelo proacuteprio o autor a

seleccedilatildeo de vinte e sete poemas eacute acompanhada de prefaacutecios em

prosa em que Estaacutecio dedica os textos a nobres patronos ou amigos

e explica tambeacutem as suas escolhas poeacuteticas O uacuteltimo livro poreacutem

eacute composto por apenas cinco poemas completos e um fragmentado

Dessa forma as Siluae possuem sempre um destinataacuterio podendo

ser tanto o imperador Domiciano quanto qualquer outro membro-

patrono das elites das sociedades de Roma e de Naacutepoles regiatildeo na

qual Estaacutecio nasceu e para a qual tambeacutem se mudou no final de sua

vida Os poemas satildeo relacionados com a vida puacuteblica e poliacutetica mas

tambeacutem expressam aspectos ligados ao cotidiano da vida privada

(NAGLE 2004 p 14)

A coleccedilatildeo de poemas no entanto possui algumas questotildees

controversas que satildeo levantadas pelos estudiosos das silvas como

por exemplo a definiccedilatildeo do seu tiacutetulo Wray (2007 p 127) explica

que enquanto alguns criacuteticos enxergam o tiacutetulo dos poemas

estacianos como um problema interpretativo outros o incorporam

[157]

na discussatildeo O termo que significa ldquoflorestardquo1 pode se referir agraves temaacuteticas variadas que a obra comporta2

ou assumindo uma complexidade metafoacuterica pode remeter agrave madeira natildeo polida crua ou seja agrave mateacuteria-

prima da obra literaacuteria (WRAY 2007 p 128-129)3 Assumimos na anaacutelise que fizemos no mestrado e

portanto neste capiacutetulo que eacute um recorte do trabalho inicial a primeira concepccedilatildeo do que pode significar o

termo silva pois acreditamos na incorporaccedilatildeo dessa produccedilatildeo na tradiccedilatildeo liacuterica devido principalmente na

heterogeneidade das temaacuteticas4

Natildeo apenas a heterogeneidade dos assuntos tratados as silvas de Estaacutecio tambeacutem possuem outra

caracteriacutestica especiacutefica quanto agrave temaacutetica elas satildeo sempre elogiosas e por isso satildeo desenvolvidas a partir

do gecircnero retoacuterico epidiacutetico5 Outro ponto relevante acerca da adequaccedilatildeo dos poemas de Estaacutecio agrave retoacuterica

epidiacutetica se encontra nas ocasiotildees explicitadas por Menandro Retor no seacuteculo IV para compor um elogio eou

vitupeacuterio Na obra Sobre o epidiacutetico o retor grego divide os discursos de acordo com determinados eventos

explica como louvar e em quais pontos o orador deve tocar a fim de tecer seu elogio A sistematizaccedilatildeo

menandrina no entanto eacute entendida como uma compilaccedilatildeo da praacutetica oratoacuteria e poeacutetica elogiosa da qual

Estaacutecio participa Desse modo observamos na heterogeneidade temaacutetica estaciana situaccedilotildees que foram

mais tarde compiladas por Menandro como o elogio ao imperador (Men Rhet 22368) nas Siluae 21 e 22

o epitalacircmio (Men Rhet 26399) no poema 12 o louvor de aniversaacuterio (Men Rhet 28 412 Silu 27) louvor

a viagens (Men Rhet 25395 Silu 32) assim como tambeacutem lamentaccedilotildees e consolaccedilotildees (Men Rhet 29413-

414 211418-422 216434-437 Silu 21 26 33 34 55)

1 Aleacutem da acepccedilatildeo de ldquoflorestardquo e elementos relacionados aos bosques o termo silva aparece no Dicionaacuterio Etimoloacutegico Latino-Portuguecircs de Francisco Saraiva como ldquomultidatildeordquo ldquogrande nuacutemerordquo ldquoabundacircnciardquo e remetendo especificamente agrave produccedilatildeo de Estaacutecio aparecem as acepccedilotildees ldquocoleccedilatildeordquo ldquomiscelacircneardquo e ldquovariedaderdquo 2 Para Charles McNelis (2007 p 279) ldquonada eacute como as Siluae na literatura romana restante em termos de diversidade e variaccedilatildeo Os trinta e dois poemas de Estaacutecio contecircm por exemplo envios emocionados ndash tanto tristes como celebratoacuterios ndash para a famiacutelia e amigos elogio de objetos fiacutesicos (estaacutetuas banhos vilas e uma estrada) e pessoas incluindo o imperador Domiciano e discussotildees de animais (e ateacute mesmo uma aacutervore) Essa ampla variedade de temas implica em toacutepicos como o jantar a natureza o poder imperial a vida familiar a sexualidade o patronato o casamento a morte a retoacuterica a educaccedilatildeo e as artes apenas para citar alguns Os poemas entatildeo contecircm pontos de interesse para quase todos os interessados na Roma imperial e consequentemente merece a atenccedilatildeo e o interesse de muitos criacuteticosrdquo ldquoThere is nothing else like the Silvae in extant Roman literature in terms of diversity and range Statiusrsquos thirty-two poems contain for example emotional addresses mdash both sad and celebratory mdash to family and friends praise of physical objects (statues baths villas and a road) and people including the emperor Domitian and discussions of animals (and even a tree) Such a wide variety of themes implicates topics such as dining nature imperial power family life sexuality patronage marriage death rhetoric education and the arts just to name a few The poems then contain points of interest for almost anyone interested in imperial Rome and consequently deserve the attention and interest of many criticsrdquo 3 Wray (2007 p 139-142) interpreta a acepccedilatildeo de silva como mateacuteria-prima e como relativa ao engenho ao talento natural em oposiccedilatildeo agravequilo que necessita de ser trabalhado pela arte Para o criacutetico Estaacutecio escreve as Siluae para mostrar o seu dom natural assim como tambeacutem escreveu a Tebaida para mostrar sua arte 4 Para saber mais sobre o desenvolvimento geneacuterico da silva cf Carvalho (2018) 5 Natildeo trataremos aqui sobre as especificidades da retoacuterica e seus gecircneros discursivos mas para saber mais cf Aristoacuteteles (Rh 1358b)

[158]

Essa heterogeneidade dos temas nos poemas estacianos se tornou uma marca na permanecircncia das silvas no

Renascimento e na Modernidade inicial aleacutem do seguimento desses poemas com a retoacuterica epidiacutetica ndash seja

na vertente elogiosa ou vituperante Neste trabalho analisamos duas silvas uma de Estaacutecio autor romano

do seacuteculo I e a outra de Francisco de Quevedo localizado na Espanha do seacuteculo XVII considerando alguns

dos oitos pontos de intertextualidade explicados por Barchiesi (2001 p 142-145) para o entendimento do

texto literaacuterio Esses pontos satildeo especialmente a) a noccedilatildeo de que a intertextualidade eacute um evento natildeo um

objeto logo natildeo eacute algo fixo mas dinacircmico e por isso passiacutevel de mutaccedilotildees b) a compreensatildeo de que

primeiramente eacute produzido o modelo e depois o texto por ele imitado e a interpretaccedilatildeo requer do leitor uma

anaacutelise de ambos os textos e c) a dupla via de perspectiva que o intertexto abrange ou seja o texto mais

novo pode afetar a interpretaccedilatildeo do modelo e natildeo apenas o contraacuterio em outras palavras a

intertextualidade pressupotildee uma ldquopossibilidade de reverter a direcionalidade de uma referecircncia

intertextualrdquo (FOWLER 1997 p 20)6

Sabendo dessas consideraccedilotildees observamos que a emulaccedilatildeo das silvas estacianas por Francisco de Quevedo

se daacute de maneira complexa natildeo sendo dessa forma uma coacutepia simples e descuidada dos poemas do primeiro

autor Por exemplo se Estaacutecio utiliza a temaacutetica da viagem (os propemptikagrave) para louvar o destinataacuterio na

Silua 32 jaacute Quevedo na Silva Quinta tambeacutem faz uso do mesmo tema poreacutem a finalidade se difere daquela

antiga pois o autor censura nesse poema a ganacircncia daqueles que partem para as Grandes Navegaccedilotildees

seguindo entatildeo a vertente do vitupeacuterio da retoacuterica epidiacutetica Outra temaacutetica usada por Estaacutecio que tambeacutem

eacute emulada pelo autor moderno espanhol eacute a descriccedilatildeo de lugares como as vilas por exemplo representando

respectivamente as silvas de nuacutemeros 22 e Silva XXI ambas composiccedilotildees de caraacuteter elogioso cujos

personagens louvados satildeo membros das elites romana e espanhola Poacutelio e Gonzalo Chaacutecon7 Neste trabalho

escolhemos tratar das silvas que possuem uma temaacutetica relativamente abstrata que eacute o sonho mas que

tambeacutem satildeo claramente emulaccedilotildees que Quevedo faz do autor romano

Sono e insocircnia na Silua 54 de Estaacutecio e Silva Segunda de Quevedo

Os poemas de Quevedo sobre a temaacutetica do sono8 ndash ou melhor de seu contraacuterio a insocircnia ndashsatildeo chamados

por Candelas Colodroacuten (1997 p 197) de ldquosilvas da noiterdquo ou de poemas noturnos9 A Silva Segunda que conta

com a epiacutegrafe El Suentildeo eacute uma imitaccedilatildeo da Silva 5410 de Estaacutecio que tem como o tiacutetulo posterior Somnus

Inicialmente destacamos que o poema de Estaacutecio conta com um nuacutemero significativamente menor de versos

6 ldquoThe possibility of reversing the directionality of intertextual referencerdquo 7 Para saber mais sobre a emulaccedilatildeo quevediana das silvas descritivas cf Carvalho amp Leite (2020) 8 Sobre poemas que tecircm como tema o sono cf Teraacuten Elizondo (2009) e Cacho Casal (2003) 9 A temaacutetica da insocircnia na composiccedilatildeo de Quevedo eacute trabalhada por Gonzalo Sobejano (1982) que tece comparaccedilotildees acerca da circunstacircncia em duas silvas ldquoA voacutes estrelasrdquo e ldquoCom que culpa tatildeo graverdquo 10 Utilizamos a traduccedilatildeo ineacutedita da Silva 54 feita por Leni Ribeiro Leite em versatildeo cedida pela autora

[159]

ndash apenas dezenove ndash em relaccedilatildeo ao de Quevedo que possui oitenta e dois versos Diferente de todo o resto

das Siluae de Estaacutecio esse poema se destaca pela especificidade da extensatildeo Cabe lembrar que essa

produccedilatildeo por pertencer ao quinto livro lanccedilado apoacutes a morte do poeta latino natildeo foi selecionada pelo

proacuteprio autor para publicaccedilatildeo podendo ter sido ou natildeo da vontade dele o seu conhecimento puacuteblico (NAGLE

2004 p 4)11

Observamos na exposiccedilatildeo dos aspectos intertextuais da recepccedilatildeo da silva e as caracteriacutesticas conceptistas

quevedianas que a dispositio eacute a propriedade que mais se assemelha entre os poemas Dessa forma

especificamente esse poema do escritor espanhol sobre o sonho pode ser considerado como uma amplificatio

daquele estaciano (CANDELAS COLODROacuteN 1997 p 199) Ambas as composiccedilotildees como afirma Leite

(2017 p 535) possuem como proecircmios a aproximaccedilatildeo da imagem do poeta que natildeo consegue dormir com

algum culpado ou criminoso ldquoPor que crime mereci jovem Sono mais gentil dos deuses ou por que erro

que soacute eu pobre de mim carecesse de teus donsrdquo (Silu 54 1-2)12 e ldquoCom que culpa tatildeo grave Sono brando

e suave Pude em largo desterro merecer Que se afaste de mim o teu esquecimento mansordquo13 Nos dois

poemas o questionamento pelo motivo da insocircnia funciona como abertura das composiccedilotildees sendo

acrescentada ainda por Quevedo a razatildeo de buscar o sono que natildeo eacute para descansar mas para alcanccedilar

uma imagem da morte ldquoPois eu natildeo te busco por ser descanso Mas por ser muda imagem da morterdquo14

Imediatamente apoacutes o questionamento introdutoacuterio do poema de Estaacutecio o eu-liacuterico daacute iniacutecio agrave toacutepica do

locus amoenus apropriando-se de elementos da natureza para indicar que eles tambeacutem adormecem ou ficam

menos agitados com o cair da noite Alude desse modo agrave tranquilidade noturna do local

Todo o rebanho estaacute em silecircncio e os paacutessaros e as feras e as copas curvadas simulam sonos cansados e os rios selvagens diminuem seu som morre o tremor das aacuteguas e aquietam-se os mares reclinados sobre os litorais (Stat Silu 543-6) 15

O eu-liacuterico da silva quevediana utiliza o mesmo lugar-comum do poeta latino com propoacutesito semelhante O

intertexto presente estaacute relacionado agrave tranquilidade do local pois em ambos os textos eacute construiacuteda a mesma

11 Natildeo nos interessa todavia buscar o intuito editorial de Estaacutecio ndash ateacute porque acreditamos na impossibilidade deste percurso ndash mas elencar questotildees singulares da Silua 54 a fim de identificarmos os elementos intertextuais entre esse poema com a Silva Segunda do poeta moderno Esse fato eacute aqui destacado apenas como uma das possibilidades de compreender a especificidade dessa silva e de certo descolamento formal que ela possui em relaccedilatildeo ao restante da obra 12 Crimine quo merui iuvenis placidissime divum quove errore miser donis ut solus egerem Somne tuis 13 iquestCon queacute culpa tan grave Suentildeo blando y suave Puede en largo destierro merecerte Que se aparte de miacute tu olvido manso 14 Pues no te busco yo por ser descanso Sino por muda imagen de la muerte 15 tacet omne pecus volucresque feraeque et simulant fessos curvata cacumina somnos nec trucibus fluviis idem sonus occidit horror aequoris et terris maria adclinata quiescunt

[160]

imagem na qual os elementos naturais descansam junto com o sol poente os riachos e rios adormecem

juntamente com os prantos do poeta que por sua vez tambeacutem caem em simultaneidade com a noite

De sossego os tens desconhecidos De tal maneira que ao morrer o dia Com luz enferma vi que permitia O Sol que se dirige ao Poente Com os peacutes torpes ao ponto cega e fria Caiu das estrelas brandamente Os riachos puros Se adormecem ao som do meu pranto E ao seu modo tambeacutem dorme o rio (Quevedo Silva Segunda 18-26) 16

Apoacutes essa ambientaccedilatildeo introdutoacuteria sobre a condiccedilatildeo do insone ambos os poetas lanccedilam matildeo de

personificaccedilotildees mitoloacutegicas para efetuar uma contraposiccedilatildeo entre noite e dia em cujo intervalo o episoacutedio

de insocircnia ocorre O sujeito-liacuterico do poema de Estaacutecio utiliza metonimicamente a figura da deusa Febe

(Phoebe) que representa as noites de lua cheia de Eetes (Oetaeae) como personificaccedilatildeo do dia jaacute que eacute filho

de Heacutelio personificaccedilatildeo do Sol de Pafos (Paphiae) que eacute filho de Aurora com Ceacutefalo e utilizado para

representar o amanhecer bem como de Titocircnia (Tithonia)

Jaacute retornando pela seacutetima vez Febe observa meus olhos cansados a fitar Tantas vezes as luzes do Eeta e de Pafos me veem novamente E tantas vezes Titocircnia passa diante de nossos queixumes E comiserada nos esparge com seu chicote geacutelido (Stat Silu 54 7-10) 17

Na Silva Segunda de Quevedo o poeta manteacutem a personificaccedilatildeo de Aurora para referir-se ao amanhecer

como nos versos 12-14 ldquoMadrugam mais em mim do que nas Auroras Laacutegrimas nesta planiacutecie Que

amanhece para o mal sempre cedordquo18 Tambeacutem nos versos seguintes a personificaccedilatildeo do Sono com letra

maiuacutescula aproxima a composiccedilatildeo quevediana da estaciana Gibson (1996 p 462) analisa a Silua 54 de

Estaacutecio como um hino19 pois identifica os elementos desta composiccedilatildeo a partir da deificaccedilatildeo do Sono

ldquoobjetivando persuadir um deus para exercer o seu poder de modo favoraacutevelrdquo20 A silva El Suentildeo de Quevedo

pode ser interpretada de modo semelhante a de Estaacutecio ou seja como uma suacuteplica do vigilanteviacutegil ao Sono

16 De sosiego los tienes ignorantes De tal manera que al morir el dia Con luz enferma viacute que permitia El Sol que le mirasen em Poniente Con pies torpes al punto ciega y friacutea Cayoacute de las estrellas blandamente Los arroyuelos puros Se adormecen al soacuten del llanto mio Y aacute su modo tambien se duerme el rio 17 Septima iam ridens Phoebe mihi respicit aegras stare genas totidem Oetaeae Paphiaeque revisunt lampades et totiens nostros Tithonia questus praeterit et gelido spargit miserata flagello 18 Madrugan mas en miacute que em las Auroras Laacutegrimas aacute este llano Que amanece aacute mi mal siempre temprano 19 Menandro (11331) explica que as composiccedilotildees nomeadas como hinos satildeo aquelas que se dirigem aos deuses podendo ser chamadas ainda de maneira especiacutefica dependendo do deus para o qual se referem como melhor explicado no capiacutetulo primeiro No caso da Silu 54 os elementos encomiaacutesticos possuem a funccedilatildeo de mostrar a bondade do destinataacuterio para que a prece do autor seja atendida 20 ldquoaims to persuade a god to exercise his power favourablyrdquo

[161]

para que o visite durante a noite pois seus olhos jaacute estatildeo muito cansados (ldquoE tanto que persuade a tristeza

A meus dois olhos que nasceram antes Para chorar do que para ver-te oacute Sonordquo)21

O entendimento de ambos os poemas como uma suacuteplica ao Sono se confirma no final das duas composiccedilotildees

O sujeito-liacuterico do poema de Estaacutecio de modo mais sucinto (v 14-19) pede ao Sono que se aproxime dele

tocando-o com a sua varinha a fim de que o auxilie a dormir Jaacute o de Quevedo utiliza alguns versos a mais

para a sua suacuteplica final Apesar da ampliaccedilatildeo dos versos do poeta moderno os elementos intertextuais com

o poema estaciano que caracterizam a solicitaccedilatildeo satildeo claros o eu-poeacutetico tambeacutem pede que o Sono o toque

com o mesmo objeto ou seja a sua vara e que ele se aproxime daquele que sofre com a insocircnia ainda que de

maneira branda e suave

Mas agora ai se algueacutem durante longa noite contido nos braccedilos entrelaccedilados da amada te expulsa sono para longe vem de laacute para mim nem exijo que tu lances sobre os meus olhos todas as tuas asas (que peccedilam isso os mais afortunados) toca-me com a ponta de tua varinha eacute suficiente ou passa por mim levemente com os joelhos no ar (Stat Silu 54 14-19)22 Toca-me com a ponta da sua vara Ouviratildeo ao menos o ruiacutedo de tuas plumas Minhas desventuras sumas Que eu natildeo quero ver-te cara a cara Nem que faccedilas mais caso De mim que ateacute passar por mim brandamente [] Me tire brando sonho desta insocircnia Ou de alguma parte E te prometo enquanto vejo o Ceacuteu Acordarei apenas para louvaacute-lo (Quevedo Silva Segunda 80-86 91-94)23

Apesar dos elementos semelhantes que aproximam os dois poemas sobre o Sono haacute visotildees que afastam os

motivos impliacutecitos nas composiccedilotildees Candelas Colodroacuten (1997 p 199) discute alguns desses aspectos e

constroacutei uma aproximaccedilatildeo do eu-poeacutetico do poema de Quevedo com um amante Nesse caso o sofrimento

do sujeito-liacuterico seria atribuiacutedo a razotildees amorosas que estariam indicadas em trechos como ldquocuidados

vigilantesrdquo ldquominhas doresrdquo ldquomeu gemidordquo Natildeo acreditamos no entanto que os termos identificados sejam

suficientes para responsabilizar o amor pelo sofrimento do sujeito-poeacutetico

21 Y tanto que persuade la tristeza A mis ojos que nacieron antes Para llorar que para verte Suentildeo 22 at nunc heu si aliquis longa sub nocte puellae brachia nexa tenens ultro te Somne repellit inde veni nec te totas infundere penas luminibus compello meis++hoc turba precatur laetior extremo me tange cacumine virgae sufficit aut leviter suspenso poplite transi 23 Toacutecame con el cuento de tu vara Oiraacuten siquiera el ruido de tus plumas Mis desventuras sumas Que yo no quiero verte cara aacute cara Ni que hagas mas caso De miacute que hasta pasar por mi de passo [] Quiacutetame blando suentildeo este desvelo O de eacutel alguna parte Y te prometo mientras viere el Cielo De desvelarme soacutelo en celebrarte

[162]

Candelas Colodroacuten (1997 p 199) ao continuar comparando as composiccedilotildees antiga e moderna afirma

inclusive que aquela natildeo parece ter motivo para ter sido escrita pois natildeo existe a circunstacircncia amorosa O

livro cinco de Estaacutecio no entanto eacute uma obra carregada de lamentaccedilotildees Dos cinco poemas existentes trecircs

satildeo lamentos o 51 eacute um epiceacutedio agrave Priscila o 53 eacute um epiceacutedio ao pai de Estaacutecio e o 55 ao seu filho as outras

duas silvas satildeo a 52 um elogio a Crispino e a 54 sobre o Sono Com exceccedilatildeo da silva 52 portanto que eacute um

encocircmio os outros poemas satildeo queixas pela memoacuteria de eventos tristes como a morte dos familiares do

poeta e da esposa de seu amigo O enredo da silva 54 que eacute a insocircnia do eu-liacuterico estaacute portanto em

consonacircncia com a temaacutetica do livro como um todo pois as causas dos lamentos dos poemas do livro cinco

tambeacutem podem ser lidas como motivos pelos quais o sujeito-poeacutetico permanece inquietamente vigilante

Consideraccedilotildees finais

Tentamos mostrar nesse curto capiacutetulo que as composiccedilotildees analisadas possuem elementos intertextuais que

as aproximam assim como que as afastam No exemplo das silvas sobre o sono (Silu 54 e Silva Segunda) a

extensatildeo dos poemas eacute um dos pontos que os afastam jaacute que o poema estaciano eacute menor e portanto menos

detalhado sobre o tema sendo a silva de Quevedo considerada uma amplificaccedilatildeo da de Estaacutecio Jaacute os pontos

de aproximaccedilatildeo tambeacutem giram em torno dos lugares-comuns utilizados por ambos os poetas sendo o

primeiro deles a indagaccedilatildeo de qual falta eou crime os poetas estatildeo pagando por natildeo conseguir adormecer

No decorrer do poema ambos os autores fazem uso da toacutepica do locus amoenus a fim de demonstrar a

tranquilidade dos elementos da natureza que tambeacutem repousam das personificaccedilotildees mitoloacutegicas buscando

ornamentar antiteticamente os versos contrapondo dia e noite e por fim a motivaccedilatildeo dos dois autores

parece ser semelhante ambos suplicam ao deus Sono para fazecirc-los uma visita

Aleacutem dessas caracteriacutesticas intertextuais observadas no par de poemas acima consideramos que a

instituiccedilatildeo geneacuterica da silva se deu na Antiguidade com Estaacutecio Alguns aspectos de imitaccedilatildeo e emulaccedilatildeo da

produccedilatildeo de silvas de Quevedo ilustram essa permanecircncia do gecircnero como eacute o caso da heterogeneidade

temaacutetica das composiccedilotildees ndash natildeo explicitada nesse trabalho jaacute que eacute apenas um recorte analiacutetico de um dos

poemas de ambos os autores ndash da utilizaccedilatildeo de elementos mitoloacutegicos que coloca cada autor como

participante de uma tradiccedilatildeo erudita e da retoacuterica epidiacutetica como vetor temaacutetico A permanecircncia da silva

como produccedilatildeo iniciada na Antiguidade se daacute tambeacutem devido agrave importacircncia da nomenclatura utilizada pelos

autores que pode enfatizar ainda a mescla de temas presentes na obra A partir da conceituaccedilatildeo teoacuterica

acerca da intertextualidade e da Recepccedilatildeo dos claacutessicos e a via de matildeo dupla interpretativa a qual estatildeo

abertos os textos de maneira geral e as composiccedilotildees em silva de maneira especiacutefica entendemos a

importacircncia das silvas renascentistas e modernas para a constituiccedilatildeo e solidificaccedilatildeo do gecircnero estaciano

[163]

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A ecirccfrase como artifiacutecio retoacuterico em Sermotildees de Antonio Vieira

Barbara Faria Tofoli

barbarafariatgmailcom

A partir de uma pesquisa sobre a recepccedilatildeo da ecirccfrase nas praacuteticas

letradas modernas pretendemos neste artigo compreender os

diversos sentidos atribuiacutedos a essa figura retoacuterica aleacutem de analisar

seu uso como recurso linguiacutestico em alguns sermotildees do jesuiacuteta

Antonio Vieira cujo discurso delineado pela Retoacuterica Claacutessica

serve-se da ecirccfrase para legitimar ou construir uma argumentaccedilatildeo

Diante disso primeiramente satildeo apresentadas algumas noccedilotildees

vinculadas agrave Recepccedilatildeo dos Claacutessicos assim como agrave Retoacuterica Antiga

para que entatildeo sejam discutidas definiccedilotildees vinculadas agrave ecirccfrase A

anaacutelise consistiraacute em delimitaccedilatildeo e discussatildeo de trechos ecfraacutesticos

presentes no Sermatildeo de Santo Inaacutecio (1669) e no Sermatildeo de Santo

Antocircnio (aos Peixes) (1654) a fim de que nesses a ecirccfrase seja

associada ao caraacuteter retoacuterico presente nos escritos do autor

A Recepccedilatildeo dos Claacutessicos se configura de forma a confrontar o

caraacuteter fixo e tradicional vinculado aos estudos claacutessicos a fim de

que estes sejam mantidos para aleacutem do autotelismo

(MARTINDALE 2006 p 2) Compreendida desta maneira a

recepccedilatildeo seria uma forma de diaacutelogo com o passado claacutessico em

que natildeo se prioriza nenhum dos lados de modo que natildeo se faccedila

ldquouma leitura canocircnica do modelo claacutessico em detrimento de sua

recepccedilatildeordquo (BAKOGIANNI 2016 p 116) Sobre a teoria da

recepccedilatildeo compreende-se ainda que essa

[165]

rejeita a existecircncia de um texto uacutenico original objetivo e fixo que tem de ser examinado como uma forma de arte pura como argumentariam o neocriticismo e muitos teoacutericos poacutes-modernos Em vez disso na recepccedilatildeo noacutes falamos em ldquotextosrdquo no plural porque a cada vez que um texto eacute lido ele estaacute sendo recebido e interpretado de uma nova maneira Isso tem se mostrado ser de especial valor para o estudo dos claacutessicos em que os textos e a cultura material do mundo antigo sobrevivem apenas de forma fragmentaacuteria Textos claacutessicos satildeo em geral incompletos controversos recuperados de uma variedade de fontes e reinterpretados por cada geraccedilatildeo de estudiosos de Claacutessicas A recepccedilatildeo dos claacutessicos concentra-se na forma como o mundo claacutessico eacute recebido nos seacuteculos subsequentes e em particular nos aspectos das fontes claacutessicas que satildeo alterados marginalizados ou negligenciados (BAKOGIANNI 2016 p 115)

O padre Antonio Vieira leitor dos preceptistas antigos recupera princiacutepios claacutessicos em seus escritos a fim

de comover seus ouvintes em favor da Corte portuguesa e da Igreja Catoacutelica Propomos agrave vista disso a

leitura de sermotildees vieirianos de forma que os entendamos como textos constituiacutedos por aspectos retoacutericos

da Antiguidade Claacutessica recepcionados e interpretados em sua posteridade

De acordo com Martindale (2006 p 11-2) a recepccedilatildeo se associa agrave pluralidade estando o presente e o

passado sempre imbricados um no outro Assim ao escrever no Brasil do seacuteculo XVII o padre Antonio Vieira

transforma elementos da Antiguidade Claacutessica muito presentes em sua obra em elementos vivos do seu

presente estabelecendo uma instacircncia de recepccedilatildeo do mundo claacutessico ndash no que nos interessa aqui da Arte

Retoacuterica Antiga ndash em seu presente O imbricamento passado-presente de Antonio Vieira pode ser lido

atraveacutes dos usos de elementos teoacutericos e praacuteticos da Retoacuterica Claacutessica em seus sermotildees Neste artigo

observaremos a recuperaccedilatildeo de um elemento especiacutefico a ecirccfrase isto eacute uma descriccedilatildeo detalhada e viacutevida

que expotildee aos olhos o que eacute descrito (Theoacuten Prog 118-20) como expediente retoacuterico na produccedilatildeo

sermoniacutestica do padre Antonio Vieira como exemplo de sua constante e criativa recepccedilatildeo da Retoacuterica

Claacutessica a partir da noccedilatildeo de que a construccedilatildeo da histoacuteria seiscentista se daacute em retomada agrave Antiguidade

greco-romana (SINKEVISQUE 2013 p 47) Vieira faz uso da elocuccedilatildeo em seus sermotildees para persuadir e

mesmo porque jesuiacuteta se aproxima dos ditames da Retoacuterica (DE MARTINI 2011 p 94) a partir da

manipulaccedilatildeo de artifiacutecios linguiacutesticos diversos como a ecirccfrase sendo esta utilizada natildeo somente enquanto

procedimento ornamental conforme compreendido modernamente mas como importante instrumento

argumentativo de apoio a pretensotildees poliacutetico-religiosas

Para alcanccedilar o objetivo proposto seratildeo primeiramente tecidas consideraccedilotildees em torno da Retoacuterica Antiga

e da ecirccfrase assim como de funccedilotildees e elementos a ela vinculados a fim de que posteriormente possamos

delimitar passagens que contenham descriccedilotildees ecfraacutesticas em sermotildees vieirianos analisando-as de forma a

compreender como esse artifiacutecio retoacuterico foi posto em uso pelo autor 1 Os sermotildees examinados satildeo o Sermatildeo

1 Em relaccedilatildeo a obras dos seacuteculos XVII e XVIII natildeo se tem acesso aos escritos originais mas a textos retocados para publicaccedilatildeo o que leva agrave existecircncia de diferentes versotildees para um mesmo texto (MAINGUENEAU 2010 p 103) Portanto os textos do padre Vieira podem apresentar distintas versotildees o que nos leva agrave necessidade de escolha de corpus por ediccedilatildeo

[166]

de Santo Inaacutecio (1669) e Sermatildeo de Santo Antocircnio (aos Peixes) (1654) consultados na compilaccedilatildeo organizada

por Alcir Peacutecora (2001) de sermotildees do padre Antonio Vieira

A Retoacuterica entendida na Antiguidade Claacutessica como ldquoa arte de falar bemrdquo natildeo se define a partir da

gramaacutetica da eacutetica ou da dialeacutetica mas pela perspectiva de utilizar o que for necessaacuterio para persuadir o

receptor em funccedilatildeo de uma causa proacutepria (HANSEN 2012 p 164) de forma a questionar ou defender um

argumento Essas satildeo as proacuteprias proposiccedilotildees da natureza retoacuterica como afirma Aristoacuteteles (Rh 11354a)

Ainda segundo Aristoacuteteles (Rh 11355b) a Retoacuterica estaria vinculada agrave capacidade de se alcanccedilar o que seja

adequado a determinado caso com o intento de persuadir Quintiliano no prefaacutecio do Livro I da Instituiccedilatildeo

Oratoacuteria incorpora agrave qualidade elocutiva o eacutethos2 do enunciador ao declarar que a fim de que se suceda o

convencimento preza-se pela formulaccedilatildeo do discurso assim como pelo caraacuteter daquele que o enuncia ou

seja pelo eacutethos Nesse sentido a confluecircncia entre artifiacutecios linguiacutestico-argumentativos e a demonstraccedilatildeo

virtuosa do orador se acentua enquanto recurso persuasivo natildeo podendo portanto ser o enunciador

desvinculado de sua enunciaccedilatildeo ou sua causa desprendida de seus atributos Buscamos assim conduzir o

olhar aos sermotildees do padre Antonio Vieira para aleacutem de seu aspecto linguiacutestico jaacute que o autor demonstra

estar imerso nos acontecimentos temas e questotildees de seu tempo (PEacuteCORA 1994 p 39) Nossa

argumentaccedilatildeo portanto vai ao encontro do que acrescenta Peacutecora

Nessa perspectiva natildeo apenas seria inoacutecuo considerar a qualidade de seus [de Vieira] textos fora de sua propriedade retoacuterico-poliacutetica como ainda mais natildeo seria possiacutevel caracterizar corretamente uma e outra isentando-as de seu peso teoloacutegico e com ele de seu vetor teoloacutegico Retoacuterica e esteacutetica (e jaacute o termo ldquoesteacuteticardquo eacute aiacute anacrocircnico) para ele natildeo valeriam mais que como efeito e multiplicaccedilatildeo desse efeito cujo sentido e causa natildeo eacute o coacutedigo linguumliacutestico ou o gosto literaacuterio mas a manifestaccedilatildeo da vontade divina entre os homens (PEacuteCORA 1994 p 41)

A proposta de examinar escritos do padre Antonio Vieira a partir do uso da ecirccfrase natildeo suprime o

reconhecimento dos componentes poliacuteticos e religiosos amalgamados agrave sua produccedilatildeo sermoniacutestica

Relevante seria entatildeo assumir tal entroncamento a fim de que a dedicaccedilatildeo disposta agrave retomada de

preceitos retoacutericos nos sermotildees vieirianos natildeo permita anacronismos ldquoestetizantesrdquo e ldquolaicizantesrdquo

(PEacuteCORA 1994 p 44) ou ainda a dispersatildeo do motivo pelo qual Vieira se utiliza desses recursos para

persuadir Destarte os ditames da instituiccedilatildeo retoacuterica cuja durabilidade se deu desde o ldquotempo de Platatildeo e

Aristoacuteteles ateacute a revoluccedilatildeo romacircntica na segunda metade do seacuteculo XVIIIrdquo (HANSEN 2012 p 159) satildeo

recuperados nos sermotildees de Vieira de forma a fundamentar sua argumentaccedilatildeo em favor das causas do

Estado portuguecircs e da Igreja Catoacutelica

2 Para Quintiliano (Inst 628) o termo eacutethos que natildeo tem correspondente em latim se vincula ao caraacuteter e agrave moral exigindo que o orador nesse sentido apresente boa iacutendole para que seu discurso seja legitimado

[167]

Segundo consta na Retoacuterica (31404b) de Aristoacuteteles conveacutem ao discurso produzir uma linguagem natildeo

familiar poreacutem clara elaborando-se de uma maneira solene que promova admiraccedilatildeo e convenccedila mediante

as provas de persuasatildeo que residem no ldquocaraacutecter moral do oradorrdquo no proacuteprio discurso e no ldquomodo como se

dispotildeerdquo o ouvinte sendo este levado a sentir emoccedilatildeo diante do enunciado (Rh 11356a) Observa-se na

Retoacuterica a Herecircnio (12) convir ao orador discorrer sobre os elementos instituiacutedos pelo costume e pelas leis

conservando o ldquoassentimento dos ouvintesrdquo e atingindo sua atenccedilatildeo ao estimular o paacutethos3 de modo a

agradaacute-los e persuadi-los a favor de sua causa No caso de Vieira como este mesmo sugere no Sermatildeo da

Sexageacutesima para se converter uma alma por meio de um sermatildeo

haacute de haver trecircs concursos haacute de concorrer o pregador com a doutrina persuadindo haacute de concorrer o ouvinte com o entendimento percebendo haacute de concorrer Deus com a graccedila alumiando (VIEIRA Sermatildeo da Sexageacutesima 31)

Dessa maneira para aproximar o ouvinte do discurso levando-o ao entendimento e agrave emoccedilatildeo e assim

persuadindo-o com o amparo da graccedila divina os recursos retoacutericos satildeo admitidos natildeo enquanto meros

elementos ornamentais mas como constituintes da elegantia sermonis a partir da qual os artifiacutecios claacutessicos

serviam a uma ldquotradiccedilatildeo discursiva professada pela eloquecircncia contrarreformistardquo (SILVA OLIVEIRA 2014

p 58) assim como ao convencimento

No Sermatildeo da Sexageacutesima (43) Vieira nos adverte sobre a relevacircncia da imagem para o aspecto persuasivo

do sermatildeo jaacute que a ldquoalma rende-se muito mais pelos olhos que pelos ouvidosrdquo Imagem nesse sentido seria

ldquoa evocaccedilatildeo pelas palavras de uma percepccedilatildeo sensorialrdquo e um recurso capaz de estimular a imaginaccedilatildeo

(SARAIVA 1980 p 31-2) No discurso de Vieira eacute a imagem amalgamada ao conteuacutedo daquilo que se diz

valendo-se por seu contexto (SARAIVA 1980 p 42) Esta preceptiva eacute proacutepria da Retoacuterica Antiga na

Retoacuterica a Herecircnio (337) o autor afirma ser importante construir imagens capazes de aderir agrave memoacuteria e no

De Oratore (286) Ciacutecero diz ser preciso fazer imagens daquilo que se queira guardar Dessa maneira a

composiccedilatildeo de imagens por meio do enunciado contribui como procedimento persuasivo ao deslocar

componentes textuais de seu aspecto verbal para o natildeo-verbal a partir da visualizaccedilatildeo dos objetos do

discurso

Ainda o auctor ad Herennium (3357) destaca a visatildeo como o sentido mais agudo jaacute que se reteacutem mais

facilmente o que eacute trazido ao espiacuterito a partir do olhar mesmo que o objeto retido natildeo possa ser visto mas

memorizado por meio de imagens o que se vincula agrave fantasia como termo teacutecnico da Retoacuterica ao demandar

ldquoa visualizaccedilatildeo de imagens ausentesrdquo (RODOLPHO 2012 p 127) Segundo Quintiliano (Inst 6229) fantasia

eacute o meio pelo qual as coisas ausentes satildeo representadas na imaginaccedilatildeo com tanta vividez como se as

3 De acordo com Quintiliano (Inst 628-10) paacutethos estaacute associado ao termo latino adfectus (emoccedilatildeo) sendo acionado ao estimular uma reaccedilatildeo emocional no ouvinte comovendo-o

[168]

tiveacutessemos diante do olhar Logo a fantasia parece se relacionar aos mecanismos ecfraacutesticos (RODOLPHO

2012 p 141) como um elemento de assimilaccedilatildeo visual do que estaacute sendo lido o que contribui para o

convencimento do que se enuncia no discurso Quanto agrave enargia Quintiliano (Inst 8361) a identifica como

o procedimento que expotildee diante dos olhos ao tornar claro natildeo soacute enquanto ornato mas em funccedilatildeo da

argumentaccedilatildeo de uma causa pois contribui para que ela pareccedila mais verdadeira (RODOLPHO 2012 p 154)

A ecirccfrase como elemento textual se situa como desencadeador da enargia que seria a figura retoacuterica que

estimula o visual por meio de uma descriccedilatildeo detalhada e viacutevida Rodolpho (2012 p 176) classifica fantasia

como a ldquovisualizaccedilatildeo de uma imagem ausenterdquo enargia como a ldquofigura que dispotildee diante dos olhosrdquo e

ecirccfrase como um ldquoprocesso utilizado para produzir tal resultadordquo o que aponta para a indissociabilidade de

tais elementos

Entendemos assim a ecirccfrase em seu sentido amplo como um fenocircmeno retoacuterico-poeacutetico que realccedila o

escrito por meio de uma descriccedilatildeo verbal detalhada e viacutevida em que se compotildee um quadro do objeto descrito

e a partir da qual se gera a enargia ou evidecircncia figuras de pensamento que conferem vivacidade agrave imagem

verbal (RODOLPHO 2011 p 188) ou ainda como um procedimento elocutivo utilizado na descriccedilatildeo e

evidenciaccedilatildeo de toacutepicos narrativos como os de lugar pessoa espaccedilo fiacutesico accedilotildees ou caraacuteter de modo a

amplificar o discurso sendo ela disposta como ornato instrutivo vinculado agrave narraccedilatildeo (SINKEVISQUE 2013

p 47) Eacute um elemento constituinte da Retoacuterica Antiga que chega com algumas modificaccedilotildees agrave

modernidade4 Na ecirccfrase expotildee-se algo a partir da opiniatildeo comum que se tem sobre aquilo com

ldquoautoridade clareza e nitidezrdquo efetuando-se um discurso engenhoso e digno de encocircmio (HANSEN 2006 p

87) Por meio desse recurso o autor se situa como inteacuterprete de uma cena atribuindo ldquoqualidades elocutivas

agrave imagem descritardquo (HANSEN 2006 p 86) aleacutem de causar a impressatildeo de que essa imagem esteja proacutexima

do receptor gerando assim uma vividez responsaacutevel por articular no destinataacuterio a assimilaccedilatildeo do que eacute

enunciado no discurso (HANSEN 2012 p 171)

Enquanto estrutura mimeacutetica a ecirccfrase se relaciona aos modelos retoacutericos da imitaccedilatildeo de toacutepoi oratoacuterios e

poeacuteticos (HANSEN 2006 p 88) Mimetizando o toacutepos de acordo com a opiniatildeo tida como verdadeira em

relaccedilatildeo agravequilo que se diz o autor faz recorrer agrave memoacuteria do leitor que possivelmente apresenta a mesma

opiniatildeo e se maravilha com o conhecido sendo exposto por meio de um enunciado ecfraacutestico (HANSEN

2006 p 88) Nos sermotildees de Vieira isso acontece natildeo soacute como uma consonacircncia de perspectivas mas

tambeacutem para reforccedilar a opiniatildeo desejada no ouvinte

A educaccedilatildeo claacutessica a que se submeteu o padre Vieira eacute clara em sua obra pois este aleacutem de citar inuacutemeros

autores antigos ndash como Oviacutedio e Luciacutelio (Sermatildeo de Santo Antocircnio 51) ndash e princiacutepios retoacutericos ndash como jaacute

4 A ecirccfrase em seu sentido moderno eacute compreendida como descriccedilatildeo de uma obra de arte (pintura ou escultura) associando-se assim agrave representaccedilatildeo verbal de uma imagem visual (WEBB 2009 p 1)

[169]

demonstrado ndash os incorpora agrave sua proacutepria maneira de escrever Durante a leitura dos sermotildees encontramos

em diversos momentos pequenas ecirccfrases isoladas utilizadas em funccedilatildeo da legitimaccedilatildeo de algum

comentaacuterio do autor em outros ecirccfrases mais extensas que se vinculam agrave temaacutetica do sermatildeo como um

todo A ecirccfrase enquanto figura retoacuterica se situa nesses sermotildees como elemento persuasivo ao deleitar e

orientar a compreensatildeo do leitorouvinte tornando-o favoraacutevel agrave causa defendida pelo autor Eacute portanto

com base nas noccedilotildees retoacutericas da Antiguidade Claacutessica que se verificaratildeo trechos ecfraacutestiscos em sermotildees

do padre Antonio Vieira natildeo os isentando contudo de sua configuraccedilatildeo poliacutetica e religiosa jaacute que a

utilizaccedilatildeo desse procedimento retoacuterico por Vieira se daacute em funccedilatildeo dessas duas instacircncias

Pesquisas literaacuterias atuais sobre o discurso religioso costumam ser escassas segundo Maingueneau (2010

p 100) devido ao enfraquecimento da cultura religiosa o qual faz com que se estudem textos religiosos

apenas para verificar seu entorno e suas interferecircncias sendo descartados seus possiacuteveis aspectos literaacuterios

De acordo com o autor o sermatildeo se encaixa na categoria de ldquoenunciaccedilatildeo monologal oralrdquo (MAINGUENEAU

2010 p 104-105) tendo como objetivo aperfeiccediloar a compreensatildeo da doutrina e provocar uma conduta

adequada por parte dos fieacuteis Em relaccedilatildeo ao pregador este deve dar a impressatildeo de falar naturalmente como

se fosse direcionado pelo Espiacuterito Santo assumindo um eacutethos inspirado (MAINGUENEAU 2010 p 108) Em

qualquer eacutepoca o ldquodispositivo do sermatildeo catoacutelico articula trecircs lugaresrdquo sendo esses o dos ouvintes o do

pregador e acima de todos a niacutevel celestial o da divindade (MAINGUENEAU 2010 p 110)

O Sermatildeo de Santo Inaacutecio (1669) proferido em Lisboa no Real Coleacutegio de Santo Antatildeo se inicia com a

passagem biacuteblica de Lucas 1236 ldquoEt vos similes hominibus expectantibus Dominum suumrdquo5 O sermatildeo expotildee a

multiplicidade de figuras representadas por Santo Inaacutecio fundador da Companhia de Jesus sendo ele

associado a diversos outros santos e considerado ldquosiacutentese de todos os patriarcas das demais ordens

religiosasrdquo segundo afirma Alcir Peacutecora (2001 p 120) ao introduzir o texto Nos dois paraacutegrafos iniciais

tem-se a descriccedilatildeo de Inaacutecio de Loiola ao ler um livro sobre a vida dos Santos dispostos diante dos olhos de

Inaacutecio de Loiola como exemplos a serem seguidos como sugere o proacuteprio Vieira

Toma Inaacutecio o livro nas matildeos lecirc-o ao princiacutepio com dissabor pouco depois sem fastio ultimamente com gosto e dali por diante com fome com acircnsia com cuidado com desengano com devoccedilatildeo com laacutegrimas

[]

Lia Inaacutecio as vidas dos confessores e comeccedilando como eles pelo desprezo da vaidade tira o colete despe as galas e assim como se ia despindo o corpo se ia armando o espiacuterito Lia as vidas dos anacoretas e jaacute suspirava pelos desertos e por se ver metido em uma cova de Manresa onde sepultado acabasse de morrer ao mundo e comeccedilasse a viver ou a ressuscitar a si mesmo Lia as vidas dos doutores e pontiacutefices e ainda que o natildeo afeiccediloaram as mitras nem as tiaras delibera-se a aprender para ensinar e a comeccedilar os rudimentos da gramaacutetica entre os meninos conhecendo que em trinta e trecircs anos de corte e guerra ainda

5 ldquoE sejais voacutes semelhantes aos homens que esperam seu Senhorrdquo (Traduccedilatildeo nossa)

[170]

natildeo comeccedilara a ser homem Lia as vidas ou as mortes valorosas dos maacutertires e com sede de derramar o sangue proacuteprio quem tinha derramado tanto alheio sacrifica-se a ir buscar o martiacuterio a Jerusaleacutem oferecendo as matildeos desarmadas agraves algemas os peacutes aos grilhotildees o corpo agraves masmorras e o pescoccedilo aos alfanjes turquescos Lia finalmente as vidas e as peregrinaccedilotildees dos apoacutestolos e soando-lhe melhor que tudo aos ouvidos as trombetas do Evangelho toma por empresa a conquista de todo o mundo para dilatar a feacute para o sujeitar agrave Igreja e para levantar novo edifiacutecio sobre os alicerces e ruiacutenas do que eles tinham fundado (VIEIRA Sermatildeo de Santo Inaacutecio 11-2)

Santo Inaacutecio enquanto lecirc sobre as vidas dos confessores dos anacoretas dos maacutertires e dos apoacutestolos as

integra agrave sua proacutepria vida reunindo em seu ser as diversas qualidades presentes em outros santos A

enargia neste caso eacute destacada jaacute que essas vidas satildeo expostas diante dos olhos de Santo Inaacutecio o qual ao

formular fantasiosamente imagens associadas aos santos as recolhe como constituintes de si mesmo Lendo

por exemplo sobre os anacoretas imaginava-se no deserto e em uma cova de Manresa e sobre os maacutertires

via-se derramar o proacuteprio sangue Se o proacuteprio Inaacutecio fantasiosamente formulava imagens a partir daquilo

que lia fez o mesmo Vieira com seus ouvintes apropriando-se da ecirccfrase para expor-lhes os atributos dos

santos Sendo Inaacutecio fundador da Companhia de Jesus eacute como se esses diversos atributos fossem da mesma

maneira componentes da proacutepria instituiccedilatildeo o que acabaria por enaltececirc-la aleacutem de dignificar os jesuiacutetas

como um todo Essas questotildees podem ser alcanccediladas ainda no seguinte excerto

Pocircs Deus diante dos olhos a Inaacutecio estampados naquele livro os mais famosos e os mais formosos originais da santidade natildeo de um reino ou de uma idade senatildeo de todas as idades e de toda a Igreja e copiando Inaacutecio em si mesmo de um a humildade de outro a penitecircncia de um a temperanccedila de outro a fortaleza de um a paciecircncia de outro a caridade e de todos e cada um aquela virtude e graccedila em que foram mais eminentes saiu Inaacutecio com quecirc Com um Santo Inaacutecio com uma imagem da mais heroacuteica virtude com uma imagem da mais consumada perfeiccedilatildeo com uma imagem da mais prodigiosa santidade enfim com um santo natildeo semelhante e parecido a um soacute santo senatildeo semelhante e parecido a todos Et vos similes hominibus (VIEIRA Sermatildeo de Santo Inaacutecio 24)

Os santos satildeo colocados diante dos olhos de Inaacutecio de forma que ele possa fantasiosamente imaginar e

assimilar suas virtudes (humildade penitecircncia temperanccedila fortaleza paciecircncia caridade) integrando-as a

si mesmo Dessa maneira eacute Santo Inaacutecio composto por esses diversos atributos enquanto lecirc sobre os santos

estruturando-se assim como imagem que por seu caraacuteter compoacutesito natildeo pode ser representada de uma

uacutenica maneira Enfermo Inaacutecio vem um pintor retrataacute-lo e a cada olhar que lanccedila ao santo o percebe de

maneira distinta tendo de recomeccedilar o desenho ateacute abandonar o trabalho por perceber que Inaacutecio natildeo

possuiacutea uma imagem singular mas representava as diversas figuras que lhe serviram de exemplo

Potildee-se encoberto o pintor olha para Santo Inaacutecio forma ideacuteia aplica os pinceacuteis ao quadro e comeccedila a delinear-lhe as feiccedilotildees do rosto Toma a olhar (coisa maravilhosa) o que agora viu jaacute natildeo era o mesmo homem jaacute natildeo era o mesmo rosto jaacute natildeo era a mesma figura senatildeo outra muito diferente da primeira Admirado o pintor deixa o desenho que tinha comeccedilado lanccedila segundas linhas comeccedila segundo retrato e segundo rosto olha terceira vez (nova maravilha) o segundo original jaacute tinha desaparecido e Santo Inaacutecio estava outra vez transtornado com novo aspecto com novas feiccedilotildees com nova cor com nova proporccedilatildeo com nova figura Jaacute o pintor se pudera desenganar e cansar mas a mesma maravilha o instigava a insistir Insta repetidamente olha e toma a olhar desenha e toma a desenhar mas sendo o

[171]

objeto o mesmo nunca pode tomar a ver o mesmo que tinha visto porque quantas vezes aplicava e divertia os olhos tantos eram os rostos diversos e tantas as figuras novas em que o santo se lhe representava Pasmou o pintor e desistiu do retrato pasmaram todos vendo a variedade dos desenhos que tinha comeccedilado e eu tambeacutem quero pasmar um pouco agrave vista deste prodiacutegio (VIEIRA Sermatildeo de Santo Inaacutecio 31)

Esse incidente eacute retratado por meio de uma ecirccfrase cujo conteuacutedo simboliza a temaacutetica principal do sermatildeo

Temos o uso dos verbos no presente (potildee deixa olha) as caracterizaccedilotildees constantes (encoberto

maravilhosa admirado transtornado) e o encadeamento de accedilotildees Por conta da descriccedilatildeo eacute como se

acompanhaacutessemos o pincel em sua tentativa de retratar Santo Inaacutecio os primeiros traccedilos delineados e as

conseguintes percepccedilotildees de que aquele semblante jaacute natildeo era mais o mesmo por conter um ldquonovo aspecto

com novas feiccedilotildees com nova cor com nova proporccedilatildeo com nova figurardquo Apesar disso o pintor maravilhado

insiste e retornando o olhar a Santo Inaacutecio o percebe ainda assim de maneira diferente ficando a pintura

portanto composta por muacuteltiplas faces as quais representam o proacuteprio caraacuteter multifacetado do santo em

questatildeo jaacute que como nos apresenta Vieira ldquoEra Inaacutecio um mas semelhante a muitos e quem era semelhante

a muitos soacute se podia retratar em muitas figurasrdquo (Sermatildeo de Santo Inaacutecio 32)

Um pouco adiante vemos uma nova descriccedilatildeo de Inaacutecio desta vez em uma cova observado por Ezequiel

que o percebe tambeacutem a partir de uma imagem natildeo uniforme retratando diversos outros santos (Sermatildeo de

Santo Inaacutecio 36) Potildee Ezequiel os olhos em Santo Inaacutecio e primeiramente o vecirc perseguido pensando ser ele

entatildeo Satildeo Clemente Depois enxerga nele Satildeo Jerocircnimo

Toma a olhar para se firmar mais no que via e jaacute a representaccedilatildeo era outra Viu a Inaacutecio em uma cova com uma cruz e uma caveira diante lanccedilado em terra cingido de ciliacutecios chorando infinitas laacutegrimas jejuando vigiando orando disciplinando-se com cadeias de ferro lutando fortemente contra as tentaccedilotildees e ferindo os peitos nus com uma pedra dura persuadiu-se Ezequiel que era S Hierocircnimo

As diversas imagens associadas ao santo satildeo expostas de forma que da mesma maneira que o enxerga

Ezequiel consigamos avistaacute-lo devido aos mecanismos ecfraacutesticos neste trecho acionados a descriccedilatildeo

espacial (cova terra cadeias) os materiais (cruz ferro pedra) o choro (infinitas laacutegrimas) e o encadeamento

de accedilotildees (chorar jejuar vigiar orar disciplinar-se lutar ferir)

Pensa entatildeo Inaacutecio ser Santo Atanaacutesio ao vecirc-lo poreacutem ldquovestido em ornamentos sacerdotais e com um

Menino Jesus vivo nas matildeosrdquo o associa a Santo Simeatildeo Ateacute que o vecirc como Satildeo Martinho ndash ldquotrajado de galas

e plumas tinha junto a si um pobre mendigo tirava o chapeacuteu tirava a capa e despojando-se das proacuteprias

roupas cobria com elas o pobre soldado e despindo-se a si para cobrir o pobrerdquo Estando contudo Inaacutecio

ldquoarrebatado no ar com os braccedilos caiacutedos com o rosto inflamado com os olhos pregados no ceacuteu acusando com

suspiros a brevidade da noite e dando queixas ao solrdquo Ezequiel o percebe como Santo Antocircnio Inaacutecio eacute pois

percebido como Satildeo Lourenccedilo ateacute ser reconhecido

[172]

Viu subitamente um incecircndio que chegava da terra ao ceacuteu e no meio dele a Inaacutecio abrasado em vivas chamas de fogo e zelo de amor de Deus de fogo e zelo de amor do proacuteximo E ainda que Ezequiel parecendo-lhe que seria S Lourenccedilo formou um L foram tantas as transfiguraccedilotildees e tatildeo diversas as figuras em que Inaacutecio variou o rosto o gesto as accedilotildees que acabaram de se desenganar os olhos do profeta como se tinham desenganado os do pintor Ali ficaram ambos os retratos suspensos e imperfeitos e acabou de conhecer o ceacuteu e a terra que o retrato de Inaacutecio senatildeo podia reduzir a uma soacute figura e que natildeo podia ser copiado em uma soacute imagem como os outros santos quem era feito agrave semelhanccedila de todos Et vos similes hominibus

As imagens associadas agraves visotildees que Ezequiel tem de Santo Inaacutecio satildeo descritas de forma que as percebamos

no ato de leitura a partir da pormenorizaccedilatildeo de especificidades tais quais localizaccedilatildeo espacial (cova terra

ceacuteu) vestimentas (plumas chapeacuteu capa) materiais (ferro pedra fogo) ou ateacute mesmo expressotildees faciais do

santo (choro laacutegrimas suspiro) que conferem maior vividez agrave cena

A partir do capiacutetulo quinto do sermatildeo Vieira tece consideraccedilotildees sobre ldquoo verdadeiro retrato de Santo

Inaacuteciordquo sendo apresentadas diversas de suas caracteriacutesticas assim como expostas de quais santos ele as

herdou para se tornar ldquosemelhante sem semelhanterdquo Neste caso ldquoSemelhante porque tomou os gecircneros

sem semelhante porque acrescentou as diferenccedilas Semelhante porque imitou a semelhanccedila de cada um

sem semelhante porque uniu em si as semelhanccedilas de todosrdquo (Sermatildeo de Santo Inaacutecio 55) O discurso se finda

demonstrando como em Santo Inaacutecio foram ajuntadas as perfeiccedilotildees de todos os santos sendo ele ldquoum fruto

que conteacutem em si todos os saboresrdquo (Sermatildeo de Santo Inaacutecio 71) e seu fruto a Companhia de Jesus instituiccedilatildeo

favorecida por todos esses atributos

Outro sermatildeo do padre Vieira o Sermatildeo de Santo Antocircnio (aos Peixes) (1654) pregado em Satildeo Luiacutes do

Maranhatildeo apresenta uma alegoria6 de peixes de forma a demonstrar as caracteriacutesticas boas e ruins que

pode ter um pregador Nele consta primeiramente a passagem de Lucas 513 Vos estis sal terrae (voacutes sois sal

da terra) em referecircncia aos pregadores que sendo sal da terra devem mantecirc-la conservada Dispondo

assim de um discurso alegoacuterico Vieira faz uma apresentaccedilatildeo de viacutecios e virtudes humanas

Diante da proposta de que salguem a terra os pregadores e natildeo se deixando a terra salgar Vieira decide fazer

como Santo Antocircnio ndash que foi sal na terra e no mar ndash e ao inveacutes de pregar agraves pessoas prega aos peixes (Sermatildeo

de Santo Antocircnio aos Peixes 1) Primeiramente Vieira lanccedila o olhar agraves virtudes dos peixes para que

posteriormente possa destacar seus viacutecios Dentre as virtudes pois estatildeo a obediecircncia e a dedicaccedilatildeo agrave

palavra divina (Sermatildeo de Santo Antocircnio aos Peixes 24) assim como o distanciamento dos humanos que Santo

Antocircnio tambeacutem praticara (Sermatildeo de Santo Antocircnio aos Peixes 25-6) Discorre entatildeo Vieira sobre o santo

peixe de Tobias

6 Assumindo a concepccedilatildeo de alegoria vinculada agrave de tropo temos ldquoa transposiccedilatildeo semacircntica de um signo em presenccedila para um signo em ausecircncia A transposiccedilatildeo baseia-se na relaccedilatildeo possiacutevel entre um ou mais traccedilos semacircnticos dos significadosrdquo (HANSEN 1986 p 14)

[173]

Ia Tobias caminhando com o Anjo S Rafael que o acompanhava e descendo a lavar os peacutes do poacute do caminho nas margens de um rio eis que o investe um grande peixe com a boca aberta em accedilatildeo de que o queria tragar Gritou Tobias assombrado mas o anjo lhe disse que pegasse no peixe pela barbatana e o arrastasse para terra que o abrisse e lhe tirasse as entranhas e as guardasse porque lhe haviam de servir muito Fecirc-lo assim Tobias e perguntando que virtude tinham as entranhas daquele peixe que lhe mandara guardar respondeu o Anjo que o fel era bom para sarar da cegueira e o coraccedilatildeo para lanccedilar fora os Democircnios (VIEIRA Sermatildeo de Santo Antocircnio aos Peixes 31)

Nesse trecho percebemos uma descriccedilatildeo do acontecido com Tobias de forma que acompanhemos suas

accedilotildees desde a caminhada ao rio ateacute a captura do peixe cujo fel eacute vinculado agrave cura da cegueira ndash fiacutesica ou

espiritual ndash e agrave expulsatildeo de democircnios Os mecanismos ecfraacutesticos satildeo acionados por meio da localizaccedilatildeo

espacial (margens de um rio) da descriccedilatildeo do peixe (grande boca aberta barbatana) e do encadeamento de

accedilotildees

Adiante Vieira passa a enaltecer a resistecircncia da reacutemora ndash ldquopeixezinho tatildeo pequeno no corpo e tatildeo grande

na forccedila e no poder que natildeo sendo maior de um palmo se se pega ao leme de uma nau da Iacutendiardquo (Sermatildeo de

Santo Antocircnio aos Peixes 32) ndash e a autoridade do torpedo cujos efeitos podemos perceber por meio da

descriccedilatildeo de um quadro que nos eacute apresentado

Estaacute o pescador com a cana na matildeo o anzol no fundo e a boacuteia sobre a aacutegua e em lhe picando na isca o Torpedo comeccedila a lhe tremer o braccedilo Pode haver maior mais breve e mais admiraacutevel efeito De maneira que num momento passa a virtude do peixezinho da boca ao anzol do anzol agrave linha da linha agrave cana e da cana ao braccedilo do pescador (VIEIRA Sermatildeo de Santo Antocircnio aos Peixes 33)

Os mecanismos ecfraacutesticos acionados nesse trecho se vinculam aos verbos conjugados no presente (estaacute

pode passa) responsaacuteveis por conferir maior vividez agrave narraccedilatildeo assim como agraves especificidades espaciais

por conta da localizaccedilatildeo dos objetos (cana na matildeo anzol no fundo boacuteia na aacutegua) e ao excerto final em que

observamos a vibraccedilatildeo do peixe do anzol ao pescador Deve-se elaborar uma pregaccedilatildeo dessa maneira seu

alcance deve se assemelhar agrave vibraccedilatildeo do torpedo Para finalizar o discurso dos louvores Vieira fala sobre

outra espeacutecie de peixe

Navegando de aqui para o Paraacute (que eacute bem natildeo fiquem de fora os peixes da nossa costa) vi correr pela tona da aacutegua de quando em quando a saltos um cardume de peixinhos que natildeo conhecia e como me dissessem que os Portugueses lhe chamavam Quatro-Olhos quis averiguar ocularmente a razatildeo deste nome e achei que verdadeiramente tecircm quatro olhos em tudo cabais e perfeitos

[]

Filosofando pois sobre a causa natural desta Providecircncia notei que aqueles quatro olhos estatildeo lanccedilados um pouco fora do lugar ordinaacuterio e cada par deles unidos como os dois vidros de um reloacutegio de areia em tal forma que os da parte superior olham direitamente para cima e os da parte inferior direitamente para baixo (VIEIRA Sermatildeo de Santo Antocircnio aos Peixes 34-5)

[174]

Temos nesse excerto uma pequena descriccedilatildeo do peixe quatro-olhos que possui distinta visatildeo Quando se

inicia entatildeo o vitupeacuterio aos viacutecios desaprova-se o fato de que os peixes comem uns aos outros isto eacute os

grandes comem os pequenos (Sermatildeo de Santo Antocircnio aos Peixes 41-7) o que tambeacutem acontece entre os

humanos quando prejudicam uns aos outros Em seguida Vieira discorre sobre a ignoracircncia dos peixes

facilmente enganados

Toma um homem do mar um anzol ata-lhe um pedaccedilo de pano cortado e aberto em duas ou trecircs pontas lanccedila-o por um cabo delgado ateacute tocar na aacutegua e em o vendo o peixe arremete cego a ele e fica preso e boqueando ateacute que assim suspenso no ar ou lanccedilado no conveacutes acaba de morrer Pode haver maior ignoracircncia e mais rematada cegueira que esta Enganados por um retalho de pano perder a vida (VIEIRA Sermatildeo de Santo Antocircnio aos Peixes 48)

Nesse trecho tem-se uma narraccedilatildeo que alcanccedila nosso olhar por meio de mecanismos ecfraacutesticos como o uso

do tempo presente (toma lanccedila arremete) as especificidades atribuiacutedas aos objetos (pedaccedilo de pano

cortado e aberto cabo delgado) e o encadeamento de accedilotildees

Em seguida fala Vieira sobre os pegadores parasitas comparados aos aduladores pois ficam na companhia

de peixes grandes a fim de garantirem seu sustento e proteccedilatildeo Ainda sobre eles diz que da mesma forma

que se mantecircm vivos nas proximidades de um tubaratildeo com ele tambeacutem padecem

Rodeia a nau o Tubaratildeo nas calmarias da Linha com os seus Pegadores agraves costas tatildeo cerzidos com a pele que mais parecem remendos ou manchas naturais que os hoacutespedes ou companheiros Lanccedilam-lhe um anzol de cadeia com a raccedilatildeo de quatro Soldados arremessa-se furiosamente agrave presa engole tudo de um bocado e fica preso Corre meia companha a alaacute-lo acima bate fortemente o conveacutes com os uacuteltimos arrancos enfim morre o Tubaratildeo e morrem com ele os Pegadores (VIEIRA Sermatildeo de Santo Antocircnio aos Peixes 54)

A descriccedilatildeo nos eacute oferecida ao olhar devido ao uso de verbos no presente (rodeia lanccedilam engole) agraves

caracteriacutesticas dadas aos pegadores (cerzidos remendos manchas) por estarem tatildeo proacuteximos dos tubarotildees

aos adveacuterbios (furiosamente fortemente) que auxiliam na visualizaccedilatildeo da cena e ao encadeamento de

accedilotildees Enfim de forma a finalizar o discurso repreensivo formando uma imagem Vieira descreve o polvo

como oportunista traidor e hipoacutecrita

O Polvo com aquele seu capelo parece um Monge com aqueles seus raios estendidos parece uma Estrela com aquele natildeo ter osso nem espinha parece a mesma brandura a mesma mansidatildeo E debaixo desta aparecircncia tatildeo modesta ou desta hipocrisia tatildeo santa testemunham constantemente os dois grandes Doutores da Igreja Latina e Grega que o dito Polvo eacute o maior traidor do mar Consiste esta traiccedilatildeo do Polvo primeiramente em se vestir ou pintar das mesmas cores de todas aquelas cores a que estaacute pegado As cores que no Camaleatildeo satildeo gala no Polvo satildeo maliacutecia as figuras que em Proteu satildeo faacutebula no polvo satildeo verdade e artifiacutecio Se estaacute nos limos faz-se verde se estaacute na areia faz-se branco se estaacute no lodo faz-se pardo e se estaacute em alguma pedra como mais ordinariamente costuma estar faz-se da cor da mesma pedra (VIEIRA Sermatildeo de Santo Antocircnio aos Peixes 510)

[175]

O polvo assim nos eacute apresentado por meio de uma ecirccfrase que o descreve enquanto o compara a outros

seres (monge estrela camaleatildeo) destacando suas caracteriacutesticas fiacutesicas de forma metafoacuterica (capelo raios

vestir-se de cores) Os verbos estatildeo no tempo presente de forma a aproximar a descriccedilatildeo do ouvinte e ao

evidenciar a camuflagem do polvo Vieira o faz de maneira com que acompanhemos suas transiccedilotildees

pigmentaacuterias entre verde branco pardo e rochoso

O sermatildeo se finda com uma despedida aos peixes em que se destaca seus privileacutegios por natildeo serem humanos

(Sermatildeo de Santo Antocircnio aos Peixes 6) Mediante um discurso alegoacuterico Vieira se utiliza de particularidades

dos peixes para representar virtudes e viacutecios humanos e a fim de trazer ao olhar dos ouvintes seus dizeres

persuadindo emprega a ecirccfrase enquanto recurso retoacuterico integrante de um modelo de convencimento o

qual busca imitar

De acordo com Hansen (2000 p 322) verifica-se que os princiacutepios que regimentam a doutrina da agudeza

seiscentista recuperam autores claacutessicos e seus ensinamentos sendo esses dispersados tambeacutem atraveacutes da

ordem dos jesuiacutetas da qual Vieira era integrante A retomada agrave Antiguidade Claacutessica era convenccedilatildeo entre

autores dos seacuteculos XVII que formulavam seus discursos em retorno agrave Retoacuterica Antiga O padre Antonio

Vieira retoma diversos autores e artifiacutecios antigos incorporando-os agrave sua escrita de forma a convencer seu

auditoacuterio a favor das causas do Estado Portuguecircs e da Igreja Catoacutelica

Deste modo deve-se considerar que as formas de expressatildeo do seacuteculo XVII atuam alinhadas aos topoi teoloacutegicos sem assentir por outro lado que o olhar pragmaacutetico as restrinja evitando assim que natildeo se eliminem certas arguacutecias produzidas especialmente por Vieira dentro dos sermotildees (SILVA OLIVEIRA 2014 p 55)

Vieira para persuadir em favor de suas causas vinculadas ao Estado portuguecircs e agrave Igreja Catoacutelica lanccedilou

matildeo dos ditames retoacutericos e utilizou a ecirccfrase enquanto recurso capaz de gerar enargia por serem os olhos

o meio pelo qual se rende uma alma Assim ldquosobem os pregadores ao puacutelpito potildeem-nos diante dos olhos

tantas vezes a Lei de Deusrdquo (Sermatildeo da Quinta Quarta-Feira da Quaresma 34)

Os sermotildees Sermatildeo de Santo Inaacutecio (1669) e Sermatildeo de Santo Antocircnio (aos Peixes) (1654) apresentam

descriccedilotildees ecfraacutesticas dispostas no discurso em funccedilatildeo de uma proposiccedilatildeo No Sermatildeo de Santo Inaacutecio temos

ecirccfrases mais isoladas e longas utilizadas para dignificar Santo Inaacutecio e a Companhia de Jesus perante outras

instituiccedilotildees religiosas No Sermatildeo de Santo Antocircnio (aos Peixes) as ecirccfrases satildeo menores e dispersas por todo

o discurso de forma a apresentar alegoricamente os viacutecios e as virtudes humanas que podem atingir os

pregadores

Os trechos ecfraacutesticos apresentados para aleacutem de uma ornamentaccedilatildeo sermoniacutestica satildeo evidenciados como

integrantes da argumentaccedilatildeo de Vieira ldquoDistanciando-nos das leituras anacrocircnicas eacute possiacutevel perceber que

o ornato linguiacutestico natildeo eacute portanto o alvo da desaprovaccedilatildeo de Vieirardquo (SILVA OLIVEIRA 2014 p 58) mas

[176]

um recurso utilizado para atingir seu leitorouvinte sendo que um dos artifiacutecios linguiacutesticos manipulados por

Vieira eacute a ecirccfrase cuja vividez descritiva aproxima o escrito do destinataacuterio e fortalece a argumentaccedilatildeo

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O Republicanismo claacutessico e a Cultura Poliacutetica na Revoluccedilatildeo Americana (1775-1783)

Julio Morguetti Neto

jmorguettinetogmailcom

Este texto foi desenvolvido a partir de um estudo em que

analisamos o desenvolvimento do pensamento poliacutetico de John

Adams (1735-1826) um dos pais fundadores do processo

revolucionaacuterio americano e idealizador de um projeto poliacutetico

republicano pautado em concepccedilotildees que remontam aos ideais

claacutessicos romanos Apoiamos nossa pesquisa nos modelos

propostos pelos Estudos da Recepccedilatildeo uma corrente teoacuterica que

visa discutir como determinadas ideias conceitos e interpretaccedilotildees

discutidas e localizadas em uma dada temporalidade foram

transmitidas recebidas e apropriadas em um contexto diverso da

sua proposiccedilatildeo inicial

Diante disso nosso intuito eacute analisar como o pensamento do

poliacutetico e orador romano Marco Tuacutelio Ciacutecero (106-43 aC) eacute

resgatado e apropriado na elaboraccedilatildeo das concepccedilotildees poliacuteticas de

John Adams no contexto do processo da Revoluccedilatildeo Americana

Propomo-nos a discutir como o pensamento claacutessico permanecia

relevante ao debate poliacutetico do momento e como Adams pauta suas

concepccedilotildees sobre republicanismo e o desenvolvimento das

atividades puacuteblicas e ciacutevicas que deveriam nortear os rumos da

nascente repuacuteblica americana

Para analisar o pensamento de Adams e a influecircncia de Ciacutecero na

sua trajetoacuteria poliacutetica exploramos a publicaccedilatildeo epistolar do

[179]

advogado americano principalmente as cartas trocadas com sua esposa Abigail Adams e com Thomas

Jefferson outro dos fundadores do processo revolucionaacuterio sendo ainda companheiro rival e amigo de

Adams Buscando uma delimitaccedilatildeo melhor de nosso corpus de anaacutelise utilizamos as correspondecircncias com

Abigail que foram produzidas desde o momento da participaccedilatildeo no Congresso Continental da Filadeacutelfia em

1775 ateacute o final de seu mandato enquanto presidente em 1801 Jaacute as correspondecircncias com Jefferson satildeo

aquelas trocadas a partir de 1812 quando ambos retomam a amizade apoacutes o fim do mandato de Jefferson

e continuam a trocar cartas ateacute o fim de suas vidas em 1826 O paralelo que traccedilamos com Ciacutecero se daacute

tambeacutem atraveacutes das cartas Devido agrave vasta produccedilatildeo do orador romano utilizamos como apoio para

criarmos uma anaacutelise da recepccedilatildeo de suas ideias as epiacutestolas Ad familiares em que Ciacutecero se comunicava com

a esposa o filho e o irmatildeo e as Ad Atticum nas quais Ciacutecero se comunica com seu amigo Tito Pompoacutenio Aacutetico

Por fim apresentamos algumas proposiccedilotildees pensadas a partir do conceito de Cultura Poliacutetica e guiamos

nosso debate baseados nas formulaccedilotildees inicialmente desenvolvidas por Serge Berstein (1992) Tecemos

ainda algumas propostas de abordagem sobre esse conceito como possibilidades de estudo sobre a

formaccedilatildeo do pensamento poliacutetico republicano nos Estados Unidos e o desenvolvimento de uma cultura

poliacutetica americana

A Revoluccedilatildeo Americana eacute um evento de grande impacto nos rumos do pensamento poliacutetico durante o seacuteculo

XVIII Os colonos americanos

sabiam que eram um experimento mas estavam confiantes de que pelos proacuteprios esforccedilos

poderiam refazer sua cultura recriar o que eles pensavam e acreditavam Sua Revoluccedilatildeo

contou a eles que o nascimento de uma pessoa natildeo limitaria o que ela poderia se tornar

Repentinamente tudo parecia possiacutevel Os liacutederes Revolucionaacuterios se deparavam com a

incriacutevel tarefa de criar fora de sua heranccedila britacircnica sua proacutepria identidade nacional Eles

tiveram a oportunidade de realizar um mundo ideal de colocar em praacutetica os princiacutepios

amplos e tolerantes do Iluminismo [] (WOOD 2009 p 3-4)1

Situando-se no continente americano e sendo uma naccedilatildeo ainda natildeo reconhecida perante os Estados

europeus o pensamento poliacutetico norte-americano permanecia agraves margens das discussotildees e debates centrais

como o pensamento Iluminista mas isso natildeo significava que essas ideias natildeo pudessem escapadas da Europa

alcanccedilar tambeacutem a Ameacuterica

1 ldquoAmericans knew they were an experiment but they were confident they could by their own efforts remake their

culture re-create what they thought and believed Their Revolution told them that peoplersquos birth did not limit what they

might become

Suddenly everything seemed possible The Revolutionary leaders were faced with the awesome task of creating out of

their British heritage their own separate national identity They had an opportunity to realize an ideal world to put the

broadminded and tolerant principles of the Enlightenment into practice [hellip]rdquo

[180]

Uma das principais obras historiograacuteficas a aprofundar os fatores que levaram ao rompimento dos colonos

com sua metroacutepole e o desenvolvimento de um pensamento poliacutetico colonial americano foi a do historiador

Bernard Bailyn The ideological origins of the American Revolution (1967) Ele analisa a produccedilatildeo panfletaacuteria

desenvolvida nas Treze Colocircnias durante o seacuteculo XVIII passando pelos eventos que levaram a eclosatildeo do

conflito com a Inglaterra e chegando ateacute a formaccedilatildeo da constituiccedilatildeo americana

Sua tese eacute centrada em como esses panfletos representaram as origens ideoloacutegicas da Revoluccedilatildeo Americana

(BAILYN 1992 p x) Esse movimento natildeo foi espontacircneo ou fruto de uma situaccedilatildeo momentacircnea que acabou

se desenvolvendo em um conflito

O argumento as reivindicaccedilotildees e contra reivindicaccedilotildees os medos e as apreensotildees que

preenchiam os panfletos cartas jornais e papeacuteis do estado durante os anos revolucionaacuterios

foram de fato ouvidos atraveacutes do seacuteculo O problema natildeo aparecia para mim ser por que

aconteceu uma Revoluccedilatildeo mas sim como um explosivo amaacutelgama poliacutetico e ideoloacutegico

primeiro veio a ser agravado por que permaneceu tatildeo potente durante anos de

tranquilidade superficial e por que finalmente foi detonado no momento em que foi

(BAILYN 1992 p xv)2

O pensamento que motivou as accedilotildees e insatisfaccedilotildees coloniais foram sendo fomentados nas colocircnias pelo

proacuteprio pensamento poliacutetico inglecircs Isso se deve aos desdobramentos posteriores agrave Revoluccedilatildeo Gloriosa

(1688-1689) que efetivou a supremacia do Parlamento sobre os desiacutegnios do monarca intensificando os

debates acerca das novas disposiccedilotildees poliacuteticas que se apresentavam Para Bailyn a influecircncia do

pensamento poliacutetico inglecircs ndash principalmente do pensamento mais radical desenvolvido durante a Guerra

Civil Inglesa (1642-1649) e o periacuteodo Republicano inglecircs (1649-1660) ndash e as criacuteticas de poliacuteticos e opositores

ao governo britacircnico da virada para o seacuteculo XVIII (BAILYN 1992 p 34) seriam as principais influecircncias para

o movimento revolucionaacuterio americano

Precisamos evidenciar que mesmo que esse pensamento poliacutetico de origem inglesa seja a principal fonte de

inspiraccedilatildeo Bailyn natildeo deixa de citar outras influecircncias como o pensamento religioso de matriz puritana

(BAILYN 1992 p 32) os pensadores iluministas muito citados e discutidos nas rodas europeias (BAILYN

1992 p 26) e claro a influecircncia constante do pensamento claacutessico provenientes de textos gregos e latinos

(BAILYN 1992 p 23)

Essa obra de Bernard Bailyn se torna uma das bases para a compreensatildeo do pensamento poliacutetico norte-

americano sendo assim as prerrogativas dessas formulaccedilotildees poliacuteticas se encontram no radicalismo do

2 ldquoThe argument the claims and counter-claims the fears and apprehensions that fill the pamphlets letters newspapers

and state papers of the Revolutionary years had in fact been heard throughout the century The problem no longer

appeared to me to be simply why there was a Revolution but how such an explosive amalgam of politics and ideology

first came to be compounded why it remained so potent through years of surface tranquility and why finally it was

detonated when it wasrdquo

[181]

seacuteculo XVII chegando ateacute os opositores poliacuteticos no parlamento inglecircs do iniacutecio do seacuteculo XVIII Sem deixar

de constatar as influecircncias de outras correntes de pensamento que se apresentavam na geraccedilatildeo

revolucionaacuteria como as abstraccedilotildees iluministas a teologia puritana e as analogias claacutessicas (BAILYN 1992 p

53-54)

As anaacutelises de Bailyn sobre o uso dos panfletos trouxeram uma nova perspectiva para o debate da Histoacuteria

Poliacutetica dos Estados Unidos incentivando outros projetos que trabalhassem essa temaacutetica aleacutem de buscar

nas influecircncias inglesas uma prerrogativa para secessatildeo colonial Sob a luz da contribuiccedilatildeo que buscamos

desenvolver com nossa pesquisa trazendo as discussotildees que tecircm crescido acerca dos Estudos da Recepccedilatildeo

(MARTINDALE THOMAS 2006) suas aplicaccedilotildees dentro do contexto da Histoacuteria ameacuterica e pautados na

influecircncia da tradiccedilatildeo claacutessica (KALLENDORF 2007) apresentamos a criacutetica feita por Carl J Richard em sua

obra The founders and the classics Greece Rome and the American Enlightenment (1995) sobre o texto de

Bernard Bailyn

Richard alega que deixar a influecircncia do pensamento claacutessico fora das anaacutelises das origens do pensamento

poliacutetico americano eacute negligenciar um relevante aspecto de composiccedilatildeo social sobre a produccedilatildeo histoacuterica dos

Estados Unidos e dos principais membros da geraccedilatildeo revolucionaacuteria A criacutetica de Richard (1995 p 2) pode

ser definida sob duas premissas equivocadas de Bailyn

Uma foi a da total dependecircncia dos pais fundadores3 sobre os Whigs4 britacircnicos do seacuteculo

XVII e iniacutecio do XVIII em relaccedilatildeo agrave interpretaccedilatildeo da histoacuteria antiga motivado pelo

conhecimento claacutessico daqueles ser ldquosuperficialrdquo Existem evidecircncias abundantes de que

Thomas Jefferson John Adams James Madison James Wilson John Dickinson Patrick

Henry e numerosos outros fundadores leram e interpretaram obras claacutessicas por eles

mesmos Segundo Bailyn assume que a interpretaccedilatildeo Whig da histoacuteria antiga foi totalmente

proacutepria de seus membros Mas de fato essa interpretaccedilatildeo era largamente (ou totalmente)

a criaccedilatildeo de historiadores gregos e romanos aristocratas nostaacutelgicos descontentes pelas

disputas monaacuterquicas e democraacuteticas sobre o poder de suas classes Permanentes no cacircnon

claacutessico que dominou o mundo ocidental desde a Idade Meacutedia esses historiadores claacutessicos

foram efetivamente a uacutenica fonte de conhecimento sobre a histoacuteria antiga disponiacutevel no

seacuteculo XVIII5

3 Forma comum utilizada pela historiografia americana para chamar os principais envolvidos no processo de

Independecircncia das Treze Colocircnias e na formaccedilatildeo das estruturas poliacuteticas da nascente repuacuteblica 4 Uma das maneiras de denominar o grupo mais liberal de poliacuteticos presentes no parlamento inglecircs apoacutes a consolidaccedilatildeo

da Revoluccedilatildeo Gloriosa (1688-1689) Esse termo eacute muito utilizado na cultura anglo-saxocircnica para enfatizar grupos

liberais 5 ldquoOne was that the founders were entirely dependent upon seventeenth ndash and early eighteenth - century British Whigs

for their interpretation of ancient history because their own classical learning was ldquosuperficialrdquo But there is abounding

evidence that Thomas Jefferson John Adams James Madison James Wilson John Dickinson Patrick Henry and

numerous other founders read and interpreted classical works for themselves Second Bailyn assume that the Whig

interpretation of ancient history was entirely their own creation But in fact this interpretation was largely (though not

entirely) the creation of Greek and Roman historians nostalgic aristocrats disgruntled by monarchical and democratic

[182]

A obra de Bailyn considera a influecircncia do pensamento claacutessico apenas como um apoio como uma

sustentaccedilatildeo do pensamento radical inglecircs do seacuteculo XVII Mesmo tendo acertado que o pensamento inglecircs

norteia alguns temas e assuntos priorizados pelos revolucionaacuterios ele falha ao natildeo identificar que os

proacuteprios escritos claacutessicos foram os influenciadores do pensamento radical inglecircs

O pensamento claacutessico passou pelo que poderiacuteamos chamar de ldquoPermanecircnciardquo ou ldquoRecepccedilatildeordquo durante

seacuteculos chegando ao pensamento humanista do periacuteodo renascentista moderno e servindo de modelo para

os debates nos seacuteculos seguintes Na visatildeo de Charles Martindale (2006 p 1-2) podemos trabalhar com a

Recepccedilatildeo em diversas aacutereas das humanidades

Recepccedilatildeo dentro dos claacutessicos engloba todos os trabalhos relacionados com o material poacutes-

claacutessico muito do qual em outros departamentos de humanidades podem ser descritos com

outras denominaccedilotildees por exemplo histoacuteria acadecircmica histoacuteria do livro estudos de cinema

e miacutedia histoacuteria da performance estudos de traduccedilatildeo resposta do leitor e criacutetica da voz

pessoal estudos poacutes-coloniais medievais ou de neolatim []6

Os pensadores gregos e latinos se configuraram como canocircnicos na literatura europeia sendo identificados

como siacutembolos de virtude e de elevaccedilatildeo social por aqueles que podiam adentrar aos ciacuterculos de debates

Os studia humanitatis visavam natildeo apenas o domiacutenio de um estilo especiacutefico do Latim mas a

reivindicada superioridade dos antigos romanos sobre os estrangeiros (barbari) e na

Renascenccedila dos letrados sobre os natildeo-letrados ndash uma superioridade que era de uma soacute vez

econocircmica social e cultural (SCHEIN 2008 p 78)7

Em suma um texto natildeo fica limitado ao seu periacuteodo histoacuterico jaacute que a complexa cadeia de recepccedilotildees faz com

que esse texto seja compreendido de diversas maneiras atraveacutes da Histoacuteria (MARTINDALE 2006 p 4)

As matrizes para o desenvolvimento de um pensamento poliacutetico americano satildeo influenciadas ou ateacute mesmo

adaptadas pelo pensamento poliacutetico claacutessico atraveacutes por exemplo das noccedilotildees de democracia e da repuacuteblica

romana Ideias de organizaccedilatildeo poliacutetica virtude liberdade e representatividade permeiam por toda a

literatura revolucionaacuteria americana trazendo como modelos as concepccedilotildees da antiguidade Os conceitos

natildeo se mantiveram estaacuteveis por todos esses seacuteculos outras linhas e vertentes de epistemologia se

encroachments upon the power of their class Fixtures in the classical canon which had dominated the western world

since the Middle Ages these classical historians were virtually the sole source of the knowledge concerning ancient

history available in the eighteenth centuryrdquo 6 ldquoReception within classics encompasses all work concerned with postclassical material much of which in other

humanities departments might well be described under different rubrics for example history of scholarship history of

the book film and media studies performance history translation studies reader response and personal voice criticism

postcolonial studies medieval and Neo-Latin []rdquo 7 ldquoThe studia humanitatis aimed not only at mastery of a particular style of Latin but at a superiority claimed by the

ancient Romans over foreigners (barbari) and in the Renaissance by the educated over the uneducated ndash a superiority

that was at once economic social and culturalrdquo

[183]

desenvolveram e como natildeo haacute produccedilatildeo de discurso sem outras vozes sobrepostas novas linhas e correntes

surgiram e influenciaram outras uma vez que se pode ldquocompreender o discurso como objeto cultural

produzido a partir de certas condicionantes histoacutericas em relaccedilatildeo dialoacutegica com outros textosrdquo (FIORIN

2016 p 10)

Quando utilizamos o conceito de Recepccedilatildeo natildeo o fazemos de maneira estaacutetica como se o seu sentido fosse

transmitido de uma maneira imutaacutevel e como se aos colonos daquela eacutepoca bastasse compreender o seu

significado e aplicaacute-lo Trabalhamos os Estudos da Recepccedilatildeo de uma forma ativa por se tratar de um conceito

que tal qual o de ldquotradiccedilatildeordquo natildeo pode ser enclausurado de uma modo inflexiacutevel pois

No estudo da recepccedilatildeo assim como em qualquer lugar ldquotradiccedilatildeordquo natildeo deve ser invocada

defendida ou atacada como uma ideia Platocircnica mas deve ser vista como uma ferramenta

flexiacutevel para sugerir novas perspectivas em diferentes ocasiotildees e formas O conceito estaacute aiacute

para ser utilizado (BUDELMAN HAUBOLD 2008 p 25)8

Nosso objeto de anaacutelise se concentra sobre a figura de John Adams um dos pais fundadores dos Estados

Unidos da Ameacuterica indiviacuteduo extremamente atuante nos eventos que levaram agrave separaccedilatildeo das colocircnias e ao

desenvolvimento das estruturas governamentais propostas na constituiccedilatildeo de 1787 Adams eacute um

personagem histoacuterico complexo como muitos dos pais fundadores Sua trajetoacuteria poliacutetica eacute vasta sendo um

renomado advogado de Boston e criacutetico agraves posturas inglesas frente agraves colocircnias como quando escreveu A

dissertation on the Canon and the Feudal law e Instructions of the town of Braintree to their representatives ambas

no ano de 1765 advertindo sobre os perigos da retirada de direitos e do principal fundamento da

constituiccedilatildeo inglesa o consenso (THOMPSON 2000 p 28) Adams foi um membro importante do

Congresso Continental da Filadeacutelfia realizado no ano de 1775 com o intuito de organizar as representaccedilotildees

das colocircnias frente aos ingleses Ele foi um dos principais articuladores da aprovaccedilatildeo da Declaraccedilatildeo de

Independecircncia sendo que suas falas foram consideradas providenciais para o convencimento dos outros

representantes Adams registrou em seu diaacuterio que sua eloquecircncia nesses debates seria comparada somente

a de Demoacutestenes durante as Filipiacutecas9 e aos discursos de Ciacutecero nas Catilinaacuterias10 (FARREL 1989 p 520)

Durante os anos da Guerra de Independecircncia Adams serviu de diplomata na Franccedila Holanda e

posteriormente para os acordos de paz Inglaterra Foi eleito vice-presidente de George Washington por oito

anos sendo eleito em seguida como segundo presidente dos Estados Unidos Nesse momento sua carreira

8 ldquoIn the study of reception as indeed elsewhere lsquotraditionrsquo should not be invoked defended or attacked as a Platonic

idea but should be seen as a pliable tool for suggesting new perspectives in different ways on different occasions The

concept is there for the takingrdquo 9 Um conjunto de discursos proferidos por Demoacutestenes contra Felipe II da Macedocircnia conclamando os atenienses a

lutar contra ele jaacute que representava uma ameaccedila agrave Greacutecia 10 Uma seacuterie de quatro discursos ceacutelebres de Ciacutecero pronunciados em 63 aC Satildeo uma denuacutencia contra a conspiraccedilatildeo

pretendida pelo senador Luacutecio Seacutergio Catilina

[184]

poliacutetica encontra uma seacuterie de entraves Adams perde a disputa presidencial para Thomas Jefferson e no

ano de 1812 decide se retirar da vida puacuteblica John Adams11 dedicou sua vida aos debates puacuteblicos e

poliacuteticos formando junto com uma seacuterie de outros homens a chamada geraccedilatildeo revolucionaacuteria como aponta

a obra Revolutionary Characters What made the founders different (2006) de Gordon Wood

A geraccedilatildeo revolucionaacuteria foi o ponto de partida para o desenvolvimento da repuacuteblica americana e

consequentemente de uma corrente poliacutetica que se estruturou a partir de meados do seacuteculo XVIII e

continuou durante o XIX Essa corrente de pensamento poliacutetico tem como fundamento as concepccedilotildees da

repuacuteblica romana Para essa geraccedilatildeo a Repuacuteblica Romana

representa o primeiro exemplo em nossa histoacuteria de um governo constitucional operando

em larga escala durante seacuteculos Teve que lidar com problemas e dilemas poliacuteticos e sociais

sem precedentes em estilo e magnitude Produziu novos modelos de lei de governo que

permanentemente afetou as caracteriacutesticas das democracias ocidentais Seu legado eacute uma

das mais duradouras influecircncias da antiguidade (MITCHEL 2001 p 128)12

A construccedilatildeo desse pensamento poliacutetico norte-americano e sua fundaccedilatildeo passam pelos elementos claacutessicos

devido ao processo de formaccedilatildeo educacional O sistema de ensino do seacuteculo XVIII americano eacute a base dessa

influecircncia sendo que sua origem se relaciona aos sistemas desenvolvidos pelos ingleses durante o seacuteculo

XVI permanecendo imutaacuteveis ateacute o seacuteculo XIX (MAHONEY 1958 p 93 RICHARD 1995 p 12)

O acesso agrave educaccedilatildeo naquela eacutepoca natildeo era algo simples dava-se de uma maneira privada muitas vezes com

um tutor ou escolas gramaticais e posteriormente poderia ser aprimorado nas universidades sendo a base

de todos os estudos o conhecimento e aprendizado do latim e em alguns casos do grego (RICHARD 1995

p 13) Muitos dos pais fundadores passaram por esses mesmos sistemas educacionais O curriacuteculo era

basicamente o mesmo sendo a retoacuterica e a oratoacuteria dois pontos centrais na difusatildeo das obras claacutessicas desde

o periacuteodo colonial combinando-se com o desenvolvimento de uma cultura americana e levando agrave

compactaccedilatildeo dos valores poliacuteticos e sociais que viriam a ser discutidos nos anos revolucionaacuterios como

aponta James Farrell (2011 p 416)

Teoria e praacutetica da retoacuterica claacutessica eram fundamentadas na suposiccedilatildeo de que um discurso

puacuteblico eloquente era uma necessidade praacutetica para uma sociedade livre Tais modelos e

11 Para um aprofundamento maior sobre a vida e os feitos de John Adams conferir a obra de McCullough (2001) 12 ldquoIn summary the Roman Republic represents the first example in our history of constitutional government operated

on a grand scale and extending over centuries It had to contend with social and political issues and dilemmas

unprecedented in kind and in magnitude It produced new modes of law and government that have permanently affected

the character of Western democracies Its legacy is one of the most enduring influences of antiquityrdquo

[185]

doutrinas apelavam para uma comunidade poliacutetica construiacuteda sobre a afirmaccedilatildeo de uma

independecircncia nacional e liberdade pessoal13

A influecircncia das obras claacutessicas era perpetrada por diversas razotildees fossem por motivos acadecircmicos

poliacuteticos ou ateacute mesmo pelo lazer elas eram comuns e faziam parte de um certo condicionamento social

dessa eacutepoca Toda a geraccedilatildeo revolucionaacuteria foi influenciada de maneira direta ou indireta ativa ou passiva

por obras da antiguidade grega e latina Dessa maneira as interpretaccedilotildees desses homens sobre os conceitos

e ideias principalmente acerca da repuacuteblica romana influenciaram as construccedilotildees poliacuteticas que se

desenvolveram nas Treze Colocircnias nos anos seguintes Essa construccedilatildeo social levou os envolvidos nos

eventos revolucionaacuterios tendo eles reconhecido isso ou natildeo agrave ideia de que

eles mesmos foram condicionados pela sua sociedade como um todo pelo sistema

educacional em particular a venerar os claacutessicos Os fundadores foram condicionados ainda

crianccedilas a associar as obras de certos autores republicanos agrave virtude social e pessoal Esse

condicionamento social foi tatildeo bem-sucedido que deixou muitos dos fundadores incapazes

de imaginar o ensinamento da virtude independente do ensino dos claacutessicos e

consequentemente fez a transmissatildeo dessa heranccedila claacutessica um assunto urgente Ateacute

mesmo na ldquoEra da Razatildeordquo a tradiccedilatildeo triunfou (RICHARD 1995 p 38)14

Importante salientar apoacutes essa anaacutelise de Richard que tendemos a enxergar o termo ldquotradiccedilatildeordquo sendo

utilizado como uma fonte de conhecimentos acessiacuteveis aos criadores das configuraccedilotildees poliacuteticas americanas

ndash como jaacute propomos com Budelman e Haubold (2008 p 25) ndash e natildeo como uma acepccedilatildeo fechada que foi

transmitida atraveacutes dos seacuteculos de uma maneira imutaacutevel ateacute ser compreendida em sua essecircncia pelos pais

fundadores

O foco de nossa pesquisa nos leva a abordar os caminhos da Recepccedilatildeo dos pensamentos claacutessicos na

Revoluccedilatildeo Americana com o foco direcionado para a influecircncia de Ciacutecero em John Adams Tendo visto o

desenvolvimento dessa base claacutessica no desenrolar de um pensamento poliacutetico americano refletimos sobre

o desdobrar de uma Cultura Poliacutetica que se forma nos Estados Unidos no seacuteculo XVIII Ao pensarmos nessa

cultura poliacutetica estamos nos baseando nas anaacutelises iniciadas por Serge Berstein (1992) de forma que

pensemos as possibilidades de aplicaccedilatildeo e ampliaccedilatildeo das anaacutelises sobre a formaccedilatildeo histoacuterica de um

pensamento poliacutetico proacuteprio norte-americano

13 ldquoClassical rhetorical theory and practice were grounded on the assumption that eloquent public speech was a practical

necessity in a free society Such doctrines and models appealed to a political community built upon the assertion of

national independence and personal libertyrdquo 14 ldquo[hellip] That they themselves had been conditioned by their society as a whole and by their educational system in

particular to venerate the classics The founders were conditioned as children to associate the works of certain ancient

republican author with personal and societal virtue This social conditioning was so successful that it left many of the

founders unable to imagine the teaching of virtue independent of the teaching of the classics and consequently made

the transmission of the classical heritage an urgent concern Even in the lsquoAge of Reasonrsquo tradition triumphedrdquo

[186]

Ao traccedilarmos uma linha da construccedilatildeo das definiccedilotildees sobre Cultura Poliacutetica podemos partir das deacutecadas de

1950 e 1960 nas quais o conceito passa a ser empregado com a motivaccedilatildeo de que era preciso ldquocompreender

melhor a origem dos sistemas poliacuteticos democraacuteticos partindo da percepccedilatildeo da insuficiecircncia dos paradigmas

iluministas que viam o homem como ator poliacutetico racionalrdquo (MOTTA 2009 p 16) Esses questionamentos

partem do campo das ciecircncias sociais tendo Gabriel Almod e Sidney Verba como seus principais porta-vozes

nesse contexto O conceito de Cultura Poliacutetica passa a ser utilizado pelos historiadores por volta dos anos

1980 e 1990 com os debates em torno das criacuteticas feita agrave escola dos Annales O historiador Reneacute Remond

em sua obra Por uma Histoacuteria Poliacutetica (1996) propotildee um retorno do campo do poliacutetico para as anaacutelises

historiograacuteficas portanto

esse movimento de recuperaccedilatildeo e renovaccedilatildeo da histoacuteria poliacutetica implicou a incorporaccedilatildeo de

novas ideias e conceitos que afirmavam a natildeo limitaccedilatildeo do poliacutetico ao fato agrave dimensatildeo do

tempo curto Eacute justamente neste sentido que a apropriaccedilatildeo do conceito de cultura poliacutetica eacute

apresentada como ldquorenovadorardquo para a histoacuteria poliacutetica na medida em que lhe possibilita

superar o fato e entrar em contato com fenocircmenos duradouros e estaacuteveis no tempo

(NEacuteSPOLI 2015 p 363)

Essa nova perspectiva natildeo pretendia se manter atrelada aos assuntos pertinentes agraves questotildees do Estado ou

das suas instituiccedilotildees passando assim a abordar as massas as associaccedilotildees civis os meios de comunicaccedilatildeo

enfim o poder definido principalmente em suas bases sociais e culturais (NEacuteSPOLI 2015 p 365

RONSANVALLON 1995)

Essas novas perspectivas abrem a exploraccedilatildeo do campo do poliacutetico e no centro dessas novas abordagens

estaacute o conceito de Cultura Poliacutetica Para nos aprofundarmos nas abordagens sobre esse conceito e

debatermos possibilidades de uma breve anaacutelise sobre o contexto norte-americano trabalhamos com a

definiccedilatildeo proposta por Serge Berstein (2009 p 31) de que

Os historiadores entendem por cultura poliacutetica um grupo de representaccedilotildees portadoras de

normas e valores que constituem a identidade das grandes famiacutelias poliacuteticas e que vatildeo muito

aleacutem da noccedilatildeo reducionista de partido poliacutetico Pode-se concebecirc-la como uma visatildeo global

do mundo e de sua evoluccedilatildeo do lugar em que ocupa o homem e tambeacutem da proacutepria

natureza dos problemas relativos ao poder visatildeo que eacute partilhada por um grupo importante

da sociedade num dado paiacutes e num dado momento da sua histoacuteria

Eacute uma definiccedilatildeo bastante ampla sobre as possibilidades de se trabalhar com tal conceito por isso algumas

ressalvas precisam ser feitas A noccedilatildeo de Cultura Poliacutetica estaacute em conexatildeo com a cultura global de uma

sociedade poreacutem natildeo se confunde totalmente com ela jaacute que seu campo de accedilatildeo se pauta sobre as questotildees

poliacuteticas (BERSTEIN 1998 p 352) Ao utilizarmos essa conceituaccedilatildeo natildeo podemos cair na perspectiva de

alcanccedilar uma cultura poliacutetica nacional No interior de um paiacutes existe uma gama de culturas poliacuteticas que

possuem valores compartilhados mas representam uma variedade de discursos em disputa (BERSTEIN

1998 p 354)

[187]

Uma outra ressalva que devemos fazer eacute natildeo pensarmos no conceito como uma categoria de hierarquizaccedilatildeo

entre as culturas poliacuteticas dentro de um paiacutes ou ateacute mesmo em comparaccedilatildeo com outros Principalmente

quando colocamos em perspectiva uma anaacutelise que pode nos encaminhar para uma visatildeo em que as

democracias ocidentais seriam modelos idealizados e representantes da modernizaccedilatildeo das sociedades

como se existisse uma escala entre as diversas concepccedilotildees poliacuteticas e o modelo democraacutetico ocidental

representasse seu objetivo uacuteltimo (BERSTEIN 1998 p 352)

Por ser um conceito com uma acepccedilatildeo bem diversa natildeo podemos pensar que as diferentes culturas poliacuteticas

dentro de uma sociedade satildeo estanques ldquocomo se estivessem encerradas dentro de si mesmas e imunes ao

contato com as outras concorrentes na disputa pelo espaccedilo puacuteblico e pelo controle do Estadordquo (MOTTA

2009 p 22)

O foco para analisar a formaccedilatildeo de uma determinada cultura poliacutetica reside principalmente em

compreender como determinado comportamento poliacutetico se configurou e prevaleceu em um determinado

contexto a partir de questionamento como que possibilidades levaram a essas determinaccedilotildees e quais foram

as suas consequecircncias Assim a formaccedilatildeo de uma cultura poliacutetica acaba por se definir como um fenocircmeno

individual interiorizado pelo homem e um fenocircmeno coletivo partilhado por grupos numerosos (BERSTEIN

1998 p 360)

Enquanto fenocircmeno poliacutetico natildeo podemos enxergar a Revoluccedilatildeo Americana como um evento

monocromaacutetico Jaacute apontamos brevemente duas perspectivas para se analisar as origens do pensamento

poliacutetico americano uma pelo vieacutes da influecircncia do pensamento radical inglecircs do seacuteculo XVII e da virada para

o XVIII como foi apontado por Bernard Bailyn (1967) em contraposiccedilatildeo com a predominacircncia da influecircncia

do pensamento republicano claacutessico como a obra de Carl J Richard (1995) busca nos orientar

Pensando em outras perspectivas de anaacutelises evidenciando uma das perspectivas apontadas tanto por

Berstein quanto por Motta haveria uma determinada mudanccedila de paradigma entre o periacuteodo revolucionaacuterio

e os primeiros anos da formaccedilatildeo das estruturas poliacuteticas nacionais dos Estados Unidos As obras de Joyce

Appleby (1992) e Gordon S Wood (1969) apontam que houve nos anos inicias da naccedilatildeo uma ldquovirada do

lsquorepublicanismo claacutessicorsquo que enfatizava cidadania e coesatildeo social para um lsquoliberalismorsquo (ou lsquorepublicanismo

modernorsquo) que ansiava por direitos individuais e um mercado autorreguladordquo (RICHARD 1995 p 3)15

mostrando como as caracteriacutesticas de uma cultura poliacutetica mais predominante podem adaptar-se agraves

mudanccedilas experimentadas pelas sociedades ao longo do tempo (MOTTA 2009 p 22)

15 ldquoa shift from lsquoclassical republicanismrsquo which emphasized civic duty and social cohesion to lsquoliberalismrsquo (or lsquomodern

republicanismrsquo) which stressed individual rights and the self-regulating marketplacerdquo

[188]

Devido agrave efervescecircncia das questotildees poliacuteticas durante a segunda metade do seacuteculo XVIII nas Treze Colocircnias

a possibilidade de se trabalhar com o conceito de Cultura Poliacutetica eacute vasta Uma das propostas apontadas por

Motta eacute ldquoa existecircncia de vetores sociais responsaacuteveis pela reproduccedilatildeo das culturas poliacuteticasrdquo (MOTTA 2009

p 23) A pesquisa que temos em andamento sobre como o pensamento do estadista romano Ciacutecero foi

determinante para o desenvolvimento das concepccedilotildees poliacuteticas e ciacutevicas de John Adams perpassa pela

anaacutelise desses vetores sociais Serge Berstein (1998 p 356) chama esses vetores de ldquocanais da socializaccedilatildeo

da poliacutetica tradicionalrdquo por meio dos quais ele aponta possiacuteveis exemplos da manifestaccedilatildeo desses canais

em primeiro lugar a famiacutelia onde a crianccedila recebe mais ou menos um conjunto de normas

de valores de reflexotildees que constituem sua primeira bagagem poliacutetica que conservaraacute

durante a vida ou rejeitaraacute quando adulto Depois outros como escola liceu universidades

Quando analisamos o contexto em que John Adams viveu percebemos claramente essas influecircncias O

aspecto da religiatildeo junto com o da famiacutelia se apresenta como um possiacutevel elemento para essa formulaccedilatildeo

poliacutetica de Adams Seu pai foi um diaacutecono na cidade de Braintree mas cumpriu com sua participaccedilatildeo

enquanto cidadatildeo Em uma carta escrita ao amigo Benjamin Rush no ano de 1812 Adams16 se questiona

O que preservou essa raccedila dos Adams em todas as suas ramificaccedilotildees em nuacutemeros sauacutede

paz conforto e mediocridade Eu acredito que a religiatildeo sem a qual teriam se tornado

libertinos presunccedilosos eacutebrios apostadores passariam fome congelariam com o frio

escalpelado pelos iacutendios etc etc etc teriam sucumbido e desaparecidohellip (MCCULLOUGH

2001 p 30)17

O pensamento dos pais fundadores eacute complexo alguns inclusive ldquoalgumas vezes interpretavam a virtude

claacutessica pela luz do cristianismordquo (RICHARD 1995 p 7) e essa complexidade se transmite no entendimento

que podemos levar sobre o desenrolar de culturas poliacuteticas estadunidenses na segunda metade do seacuteculo

XVIII

As perspectivas abertas pela Nova Histoacuteria Poliacutetica satildeo vastas ao nos depararmos com um periacuteodo tatildeo feacutertil

quanto o processo que culminou na Revoluccedilatildeo Americana e no desenvolvimento das suas estruturas e

instituiccedilotildees poliacuteticas que serviram de exemplo para diversos modelos republicanos a posteriori O campo da

Histoacuteria Poliacutetica agora renovado possui possibilidades a serem exploradas inclusive quando buscamos

outras perspectivas de possibilidades teoacutericas como as propostas pelos Estudos da Recepccedilatildeo seguindo as

perspectivas propostas por Charles Martindale (1992 2006) Esboccedilamos apenas alguns apontamentos que

precisam de uma maior profundidade em um trabalho de focirclego uma vez que as possibilidades para essas

anaacutelises satildeo diversas

16 John Adams to Benjamin Rush July 19 1812 Adams Papers Massachusetts Historical Society 17 ldquoWhat has preserved this race of Adamses in all their ramifications in such numbers health peace comfort and

mediocrity I believe it is religion whitout wich they would have been rakes fops sots gamblers starved with hunger

or frozen with cold scalped by Indians etc etc etc been melted away an disappearedhelliprdquo

[189]

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NESPOacuteLI J H S Cultura poliacutetica Histoacuteria Poliacutetica

e Historiografia Histoacuteria e Cultura Franca v 4 n

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Carolina 1969

WOOD G S Revolutionary characters what made the founders different Nova York Penguin 2009

As Musas

de Heroacutedoto foram o Rāmāyana

da Heacutelade o helenismo de Friedrich Max Muumlller

Matheus Vargas de Souza

matheussagravgmailcom

A citaccedilatildeo que daacute nome a esta apresentaccedilatildeo e tiacutetulo a este texto foi

extraiacuteda de uma das muitas obras de Friedrich Max Muumlller (1860

p 17) Agrave medida em que os temas deste volume satildeo a traduccedilatildeo e a

recepccedilatildeo parece relevante trazer para a discussatildeo uma figura tatildeo

proliacutefica nos estudos relativos agrave cultura indiana Eacute verdade que o

autor em questatildeo foi responsaacutevel pela divulgaccedilatildeo de dezenas de

textos em sacircnscrito bem como pela cristalizaccedilatildeo de determinadas

visotildees a respeito da cultura indiana da Antiguidade e por esta

razatildeo natildeo parece pertinente a um compecircndio dedicado aos

Estudos Claacutessicos ao menos imediatamente Esperamos mostrar

no entanto que foi entre outras coisas atraveacutes da recepccedilatildeo dos

claacutessicos que Muumlller estabeleceu suas interpretaccedilotildees a respeito da

Iacutendia Antiga e atraveacutes delas empenhou-se em divulgar traduccedilotildees

dos textos indianos para o Ocidente europeu do seacuteculo XIX Para

nosso objetivo limitar-nos-emos a discutir as ideias apresentadas

por Muumlller em um de seus textos que mais dialogam com a cultura

claacutessica no qual ele evidencia muitas das perspectivas que

acompanharam toda sua produccedilatildeo e a de seus seguidores

[191]

Friedrich Max Muumlller nasceu em Dessau na Alemanha no ano de 1823 Tinha aptidatildeo para a muacutesica mas foi

dissuadido de seguir a carreira por Felix Mendelssohn Decidiu entatildeo se dedicar agraves Letras Claacutessicas Estudou

na Universidade de Leipzig onde teve contato com disciplinas como Hebraico Aacuterabe Psicologia

Antropologia mas por intermeacutedio de Hermann Brockhauss ndash primeiro a ocupar a cadeira de Sacircnscrito

naquela universidade ndash Muumlller foi persuadido a se dedicar aos textos da Iacutendia Antiga Aos vinte anos de

idade motivado em seus estudos por Brockhauss publicou uma traduccedilatildeo do Hitopadesha compecircndio de

faacutebulas indianas Chegou a frequentar as aulas de Franz Bopp fundador da filologia comparada e as do

filoacutesofo Friedrich Schelling Em 1845 quando foi de Berlim a Paris Eugegravene Burnouf o encorajou a produzir

uma editio princeps do Rig Veda como de fato o fez alguns anos depois com a ajuda de Hayman Wilson e o

apoio da Companhia das Iacutendias Orientais Dali por diante Muumlller se dedicou agrave vasta produccedilatildeo a respeito da

cultura indiana sendo o responsaacutevel pela ediccedilatildeo da monumental coleccedilatildeo The Sacred Books of the East atraveacutes

da qual foram divulgadas traduccedilotildees de dezenas de textos da Iacutendia Antiga entre meados do seacuteculo XIX e o

iniacutecio do XX vale reforccedilar que a atuaccedilatildeo intelectual de Muumlller se deu quase em sua totalidade no espaccedilo do

Impeacuterio Britacircnico tendo lecionado nas universidades de Glasgow e Oxford recusando inclusive convite para

lecionar na receacutem-criada Universidade de Estrasburgo (MACDONELL 1901 p 151-157)

Por enquanto estabelecemos entatildeo que Max Muumlller foi uma autoridade na aacuterea de estudos indianos

atuando como filoacutelogo acima de tudo Foi tambeacutem o responsaacutevel por um vasto processo de traduccedilatildeo e

divulgaccedilatildeo da cultura indiana em um primeiro momento para o Impeacuterio Britacircnico e na sequecircncia com alcance

ampliado Escreveu sobre a literatura indiana e sua histoacuteria bem como foi responsaacutevel pela criaccedilatildeo de um

novo meacutetodo de estudos sobre a religiatildeo antiga enquanto Ciecircncia da Religiatildeo atraveacutes da chamada Mitologia

Comparada (ELIADE 2010 [1957] p 11 RIES 2017 [1982] p 111-113) Haacute muito mais que poderiacuteamos

falar sobre Max Muumlller para aleacutem dessa resumida biografia mas as informaccedilotildees de que dispomos jaacute satildeo

suficientes para nosso propoacutesito Neste artigo olharemos com bastante atenccedilatildeo para apenas um de seus

textos

Em 1859 Muumlller publicou sua Histoacuteria da Antiga Literatura Sacircnscrita na qual buscou fazer um balanccedilo das

fontes disponiacuteveis para tentar construir uma histoacuteria coerente para a literatura da Iacutendia Antiga No livro

elaborou um vasto capiacutetulo introdutoacuterio em que esclareceu seu pensamento a respeito da literatura e

cultura indiana dentro do que entendia pela categoria de raccedila ariana Efetivamente Muumlller se dedicou a

pensar a respeito dos povos indo-europeus arianos em sua nomenclatura comparando algumas culturas e

lanccedilando maior atenccedilatildeo agrave indiana no intuito de melhor classificaacute-la Perceberemos que nesse texto Muumlller

revela de forma mais niacutetida o uso dos ldquoclaacutessicosrdquo especialmente dos gregos como modelo comparativo

categorizante Eacute atraveacutes desse criteacuterio claacutessico logo ocidental logo europeu logo civilizado que a leitura da

cultura indiana fica necessariamente comprometida seja deliberadamente ou natildeo

[192]

Max Muumlller inicia o texto relembrando o trabalho de William Jones e a importacircncia de seus esforccedilos como

pioneiro nas traduccedilotildees do Sacircnscrito no mundo europeu esforccedilos que Muumlller denomina como ldquoponto de

partida da filologia sacircnscritardquo (MUumlLLER 1860 [1859] p 1) Aleacutem disso ele comenta como uma profusatildeo de

intelectuais ndash divididos entre historiadores filoacutelogos e filoacutesofos ndash havia se voltado para a bem preservada

literatura indiana a seu tempo e que a presenccedila de tal literatura jaacute oferecia por si soacute um impulso para os

estudos a seu respeito assim como a presenccedila de uma ampla produccedilatildeo a seu respeito impulsionava os

esforccedilos no campo da filologia comparada (MUumlLLER 1860 [1859] p 1-2)

Em pouco menos de meio seacuteculo o sacircnscrito ganhou seu proacuteprio lugar na repuacuteblica do ensino lado a lado com o grego e o latim Os privileacutegios que essas duas liacutenguas gozam no sistema educacional da Europa moderna vatildeo gradualmente ser compartilhados com o sacircnscrito Mas [] ningueacutem que deseje estudar a histoacuteria daquele ramo da humanidade da qual noacutes mesmos pertencemos e descobrir nos primeiros germes da linguagem religiatildeo e mitologia de nossos antepassados a sabedoria drsquoEle que natildeo eacute o Deus apenas dos judeus pode no futuro dispensar algum conhecimento a respeito da liacutengua e da antiga literatura da Iacutendia (MUumlLLER 1860 p 2-3)1

Muumlller desta forma procurava reafirmar seu campo de estudos em rivalidade com as Letras Claacutessicas mas

algo que demonstra jaacute desde o princiacutepio de suas reflexotildees eacute seu intenso envolvimento pessoal com a religiatildeo

e a ponte direta e nada mascarada que evidenciava em seu estudo da literatura e religiatildeo indiana Muumlller era

um protestante bastante assiacuteduo e se propunha a desvendar saberes milenares de povos antigos em parte

para encontrar a sabedoria divina no fazer humano e as raiacutezes da histoacuteria humana dentro de uma linha cristatilde

(OLIVEIRA 2010 p 24-25)2 Mais adiante veremos com muita clareza que a relaccedilatildeo de Muumlller com suas

pesquisas era natildeo apenas cientiacutefica ou erudita mas espiritual

Seguindo em seu raciociacutenio Max Muumlller procurou defender que os esforccedilos sobre o Sacircnscrito eram ainda

recentes e maiores dado que as Letras Claacutessicas vinham sendo estudadas haacute mais tempo e que os

renascentistas aleacutem de serem homens extraordinaacuterios tiveram o auxiacutelio de gregos refugiados na Itaacutelia no

estudo da literatura helecircnica Curiosamente Muumlller fez uma comparaccedilatildeo direta entre esses gregos

refugiados e os bracircmanes de seu tempo estes dificilmente estavam dispostos a auxiliar com traduccedilotildees e

informaccedilotildees valiosas quando natildeo eram enganadores incapazes de conduzir um sentido histoacuterico agrave literatura

1 Todas as traduccedilotildees de Muumlller aqui apresentadas satildeo de nossa autoria ldquoIn little more than half a century Sanskrit has gained its proper place in the republic of learning side by side with Greek and Latin The privileges which these two languages enjoy in the educational system of modern Europe will scarcely ever be shared by Sanskrit But [] no one who desires to study the history of that branch of mankind to which we ourselves belong and to discover in the first germs of the language religion and mythologie of our forefathers the wisdom of Him who is not the God of the Jews only can for the future dispense with some knowledge of the language and ancient literature of Indiardquo 2 Muumlller chegou a defender ldquoque Jafeacute filho de Noeacute teria partido rumo agrave Iacutendia depois da dispersatildeo das naccedilotildees apoacutes a construccedilatildeo da Torre de Babel Para fazer jus agraves genealogias biacuteblicas e considerando que o Buddha histoacuterico propagou sua filosofia aproximadamente em 500 aC restava-lhe datas os Vedas entre 1500 e 500 aC para fazer valer a histoacuteria biacuteblicardquo (OLIVEIRA 2010 p 25) perspectiva que natildeo se sustenta uma vez que Muumlller se valeu de um meacutetodo especulativo de sobreposiccedilotildees de camadas linguiacutesticas (glottochronology) que natildeo eacute aceito atualmente pela constataccedilatildeo de que as liacutenguas mudam aleatoriamente sem sistemas esquematizados preacute-definidos (OLIVEIRA 2010 p 25)

[193]

mas apenas filosoacutefico-religioso Segundo ele aleacutem disso a literatura grega tambeacutem contava por si soacute com

Homero Heroacutedoto e Tuciacutedides o que naturalmente facilitaria os estudos a seu respeito (MUumlLLER 1860

[1859] p 3-4) Sem esclarecer muito bem o que quer dizer com isso mas dando a entender jaacute de antematildeo

algum valor maior conferido agraves obras dos autores gregos dentro de uma perspectiva histoacuterica ele criticou a

ausecircncia de estudos sistemaacuteticos da literatura sacircnscrita e retomou as colocaccedilotildees de Niebuhr como exemplo

de que a filologia deveria ser amplamente empregada nos estudos relativos agraves fontes antigas indianas O

ponto de Muumlller eacute que diferentemente de Niebuhr que se absteve de falar da Iacutendia por conta da ausecircncia de

criacutetica filoloacutegica consistente das fontes outros historiadores de seu tempo eventualmente se propunham a

fazer consideraccedilotildees sobre dado momento da histoacuteria da Iacutendia utilizando fontes que natildeo necessariamente

pertenciam ao periacuteodo que estudavam (MUumlLLER 1860 [1859] p 4-6) Eacute neste momento que o autor

estabelece uma maacutexima verdadeiramente tragicocircmica ldquoNenhuma naccedilatildeo foi a este respeito tratada mais

injustamente que a Iacutendiardquo (MUumlLLER 1860 [1859] p 6)3 O ponto eacute coerente muito foi dito sobre a Iacutendia sem

qualquer precisatildeo histoacuterica sem qualquer estudo concreto das fontes No entanto veremos que Muumlller natildeo

foi tatildeo mais justo com os indianos quanto pensava

Sua criacutetica entatildeo se volta aos acadecircmicos

[] nos estudos do grego e do latim a distinccedilatildeo entre conhecimento uacutetil e inuacutetil quase desapareceu e os objetos reais do estudo destas antigas liacutenguas tem sido quase totalmente perdido Mais da metade das publicaccedilotildees dos classicistas tecircm tratado apenas de impedir nosso acesso agraves grandes obras [master-works] dos antigos [] Um espiacuterito similar infectou a filologia sacircnscrita [] Conhecimento que natildeo tem objetivo para aleacutem de si mesmo eacute na maioria dos casos mero pretexto para vaidade [] A teste de um verdadeiro acadecircmico eacute ser capaz de encontrar o que eacute realmente importante [] O objetivo e alvo da filologia em seu mais elevado sentido eacute apenas um - aprender o que o homem eacute aprendendo o que o homem tem sido (MUumlLLER 1860 p 7-8)4

Eacute a partir daqui que Max Muumlller comeccedila a desenhar o cerne de seu pensamento a respeito da proacutepria

produccedilatildeo e do sentido do estudo dos antigos indianos Com efeito o que ele defende eacute que a filologia tem um

compromisso de aproximar o ser humano de suas origens e deste modo de sua natureza Tornamos a ver os

transbordos da relaccedilatildeo espiritual e religiosa que Max Muumlller tinha com seu proacuteprio trabalho os estudos das

sociedades antigas natildeo podem se perder em questotildees demasiado especiacuteficas e pontuais mas devem

responder a demandas universalizantes e edificantes da sociedade moderna O que estaacute por traacutes destas

colocaccedilotildees no entanto eacute que ele estaacute se referindo a si proacuteprio como modelo Desta forma os estudos do

sacircnscrito assim como os do grego e do latim deveriam seguir os meacutetodos de Muumlller segundo sua loacutegica E

3 ldquoNo nation has in this respect been more unjustly treated than the Indiardquo 4 ldquo[] in Greek and Latin scholarship the distinction between useful and useless knowledge has almost disappeared and the real objects of the study of these ancient languages have been well nigh forgotten More than half of the publications of classical scholars have tended only to impede our access to the master-works of the ancients [] A similar spirit has infected Sanskrit philology [] Knowledge which has no object beyond itself is in most cases but a pretext for vanity [] The test of a true scholar is to be able to find out what is really important [] The object and aim of philology in its highest sense is but one - to learn what man is by learning what man has beenrdquo

[194]

que meacutetodos satildeo estes Aqueles que foram aparecendo pouco a pouco e todas as suas obras quando

continuamente sequestrava os textos da Antiguidade indiana e os cristalizava como fontes para o estudo das

relaccedilotildees espirituais do homem com o mundo e em uacuteltima anaacutelise com Deus Em um momento futuro

pretendemos nos dedicar com mais afinco agrave ideia que adiantamos de que Max Muumlller foi um dos principais

responsaacuteveis pelo estigma filosoacutefico-religioso que circunscreveu a literatura sacircnscrita dentro dos estudos de

mitologia comparada e afins ao menos no mundo moderno porque se natildeo foi de longe o primeiro a difundir

a ideia de que os indianos natildeo tecircm Histoacuteria e historiografia impulsionou fortemente tal ideia atraveacutes de suas

dezenas de obras e alunos Retomando nosso objetivo limitamo-nos a esclarecer que Muumlller se propocircs a

trabalhar de maneira histoacuterica e tal qual um Tuciacutedides a depurar a literatura sacircnscrita disponiacutevel no intuito

de extrair a Histoacuteria da Antiguidade indiana possiacutevel atraveacutes de uma cronologia para a literatura veacutedica

(MUumlLLER 1860 [1859] p 8-10 64)

O principal objetivo dos ensaios seguintes seraacute colocar a antiguidade do Veda em sua luz proacutepria Por antiguidade no entanto eacute entendido natildeo apenas a distacircncia cronoloacutegica da eacutepoca do Veda para nossa proacutepria [] mas tambeacutem e ainda mais a distacircncia entre o estado intelectual moral e religioso dos homens como representado a noacutes durante a eacutepoca veacutedica comparada com aquela de outros periacuteodos da histoacuteria - uma distacircncia que pode ser medida apenas pelas revoluccedilotildees e o progresso da mente humana (MUumlLLER 1860 [1859] p 11)5

Curiosamente apoacutes se reportar agrave ideia de diferentes grupos eacutetnico-linguiacutesticos ou em seus termos

diferentes raccedilas (arianos semitas e turanianos) Muumlller defendeu que o grupo hindu subdivisatildeo da chamada

raccedila ariano teria sido o uacuteltimo a dispersar (MUumlLLER 1860 [1859] p 14) Defendemos que isso gera

automaticamente a primeira impressatildeo de que seus membros seriam estaacuteticos inertes atrasados desde os

primoacuterdios mais originais Ele tambeacutem defendeu que hindus gregos e alematildees seriam um ramo agrave parte no

grupo indo-europeu dadas as supostas particularidades de suas linguagens que Muumlller natildeo expotildee de

maneira clara para logo em seguida fazer longas consideraccedilotildees sobre a grandeza da raccedila ariana (MUumlLLER

1860 [1859] p 14-15) ldquoEm disputa contiacutenua entre si e com as raccedilas semiacutetica e turaniana estas naccedilotildees

arianas se tornaram os senhores da histoacuteria e parece ser sua missatildeo ligar todas as partes do mundo atraveacutes

dos clamores de civilizaccedilatildeo comeacutercio e religiatildeordquo (MUumlLLER 1860 [1859] p 15)6

Natildeo impressiona que Max Muumlller tenha sido um dos nomes apropriados pelos nazistas em tempos futuros7

mas no que compete ao seacuteculo XIX o que Muumlller estaacute defendendo de antematildeo eacute que haacute um sentido da

5 ldquoThe principle object of the following essays will be to put the antiquity of the Veda in its proper light By antiquity however is meant not only the chronological distance of the Veda age from our own [] but also and still more the distance between the intellectual moral and religious state of men as represented to us during the Vedic age compared with that of other periods of history - a distance which can only be measured by the revolutions and the progress of the human mindrdquo 6 ldquoIn continual struggle with each other and with Semitic and Turanian races these Aryan nations have become the rulers of history and it seems to be their mission to link all parts of the world together by the claims of civilisation commerce and religionrdquo 7 Baijayanti Roy relembra que ainda que criticado em certa medida por seu ecletismo por sua perspectiva de uma religiatildeo futura de caraacuteter mais ecleacutetico Friedrich Max Muumlller foi a referecircncia por exemplo de Paul Deussen Leopold

[195]

Histoacuteria e uma posiccedilatildeo privilegiada dos alematildees (incluindo ele mesmo) nesse sentido progressista Ele

poreacutem comenta que o grupo que formou os indianos natildeo faz parte deste ramo de arianos destinado agrave

civilizaccedilatildeo este ramo eacute composto por gregos e romanos a justificativa os indianos contaram com fronteiras

naturais quase intransponiacuteveis que mantiveram sua cultura distanciada do mundo greco-romano (MUumlLLER

1860 [1859] p 15-16) Haacute aqui um argumento impliacutecito de que soacute haacute civilizaccedilatildeo por via grega e

posteriormente romana Uma vez que os indianos permaneceram apartados do contato com este mundo

natildeo contribuiacuteram com a grandeza dos arianos do primeiro escalatildeo Para o autor satildeo relevantes para a

Histoacuteria porque satildeo arianos e natildeo podem ser ignorados mas satildeo tambeacutem inferiores e atrasados

Muumlller entatildeo chega ao cliacutemax para nossa anaacutelise uma comparaccedilatildeo direta entre os indianos e os gregos Em

linhas gerais defende que a Iacutendia assim como a Greacutecia passou por disputas internas e conflitos mas que

seus efeitos foram infinitamente distintos Para ele se na Greacutecia haacute o fim das tiranias e a organizaccedilatildeo de

novas repuacuteblicas ndash cuja fonte natildeo eacute citada mas eacute provavelmente Tuciacutedides (Histoacuteria da Guerra do Peloponeso

I 18) ndash na Iacutendia os xaacutetrias satildeo derrotados pelos bracircmanes mas estes apenas impotildeem novo modelo de

dominaccedilatildeo moral que Muumlller posteriormente tentaria utilizar como justificativa para desqualificar os

Purānās enquanto fonte histoacuterica etc (MUumlLLER 1860 [1859] p 17 61) Portanto estaria aqui o primeiro

momento em sua concepccedilatildeo em que a Iacutendia teria ficado para traacutes O segundo momento diz ele eacute quando as

duas culturas se encontram com o Outro e eacute aqui que ele escreve a frase que tomamos emprestada para o

tiacutetulo de nossa apresentaccedilatildeo Sua comparaccedilatildeo das Histoacuterias8 de Heroacutedoto com o Rāmāyana de Valmiki eacute o

penuacuteltimo passo desse esforccedilo de parear gregos e indianos com perfeiccedilatildeo Ele encerra essa comparaccedilatildeo com

o conflito interno entre dois grupos rivais mediante uma comparaccedilatildeo entre Tuciacutedides e Vyasa com seu

Mahābhārata (MUumlLLER 1860 [1859] p 17-18) Esse esforccedilo de comparaccedilotildees eacute apenas mais uma das

evidecircncias do imperium das referecircncias ldquoclaacutessicasrdquo sobre os estudos do Oriente construindo

necessariamente uma Iacutendia idealizada limitada atrasada estanque primitiva ainda que complexa pior

ainda com os meacutetodos da filologia e da histoacuteria como ferramenta principal da produccedilatildeo de um saber senatildeo

falso equivocado Como em um efeito dominoacute ter os claacutessicos como paracircmetro (em funccedilatildeo de um

pensamento ocidental) eacute o golpe que derruba a primeira peccedila do dominoacute

Muumlller comeccedila a elaborar comparaccedilotildees cada vez mais extensas entre a Greacutecia e a Iacutendia e devemos ter em

mente que ele jaacute se colocou como intimamente relacionado com as duas afinal o alematildeo pertenceria a um

ramo especial do indo-europeu juntamente com o grego e o sacircnscrito Ele posteriormente apenas mostra a

von Shroumlrder e Houston Stewart Chamberlain intelectuais que se converteram ao culto do ldquoCristianismo Germacircnicordquo no qual havia o discurso da superioridade ariana como alicerce este grupo posteriormente seria um aliado do nazismo (ROY 2016 p 226 MARCHAND 2009 p 309 319) Aleacutem disso Muumlller teria desempenhado notaacutevel influecircncia sobre o intelectual proacute-nazista Hans Guumlnther (ROY 2016 p 227 ARVIDSSON 2006 p 41) 8 ldquoAs Musas de Heroacutedotordquo como Max Muumlller coloca eacute uma referecircncia agrave divisatildeo alexandrina das Histoacuterias em nove livros intitulados com os nomes das Musas

[196]

ordem na escala sendo pressuposto que como alematildeo estaacute acima de todos buscando demonstrar que os

indianos satildeo especiais mas que permaneceram inferiores em relaccedilatildeo aos gregos dos quais ele Max Muumlller

assim como a Europa de seu tempo era mais proacuteximo e herdeiro direto

Greacutecia e Iacutendia satildeo em verdade dois poacutelos opostos no desenvolvimento histoacuterico do homem ariano Para os gregos a existecircncia eacute plena de vida e realidade para os hindus ela eacute um sonho uma ilusatildeo O grego estaacute em casa onde ele nasce todas as suas energias pertencem a seu paiacutes ele resiste e cai juntamente com os seus e estaacute pronto para sacrificar ateacute mesmo sua vida pela gloacuteria e independecircncia da Heacutelade O hindu entra neste mundo como um estranho todos os pensamentos de sua vida satildeo direcionados para outro mundo ele natildeo toma partido mesmo onde ele eacute conduzido a agir e quando ele sacrifica sua vida isto natildeo eacute para nada aleacutem de ser levado dela (MUumlLLER 1860 [1859] p 18)9

Eacute evidente a enxurrada de generalizaccedilotildees idealizadas e seletivas que Muumlller propotildee em seu texto No que

tange aos gregos por exemplo a primeira pergunta que poderiacuteamos fazer a Max Muumlller seria que gregos

Afinal dizer que todo grego estaacute atrelado a sua cidade e que vive e morre por sua naccedilatildeo ou que ldquotodas as suas

energias pertencem a seu paiacutesrdquo eacute ignorar a existecircncia de mercenaacuterios gregos servindo inclusive aos persas

fato a respeito do qual Xenofonte nos ofereceu um testemunho bastante claro em sua Anaacutebase Aleacutem disso

a respeito do sentido filosoacutefico dado agrave vida pelos indianos em total oposiccedilatildeo ao dos gregos o autor comete

um pequeno deslize se levarmos em conta a existecircncia da crenccedila na μετεμψύχωσις metempsyacutechosis na

transmigraccedilatildeo da alma para outro corpo apoacutes a morte presente em diversas obras filosoacuteficas gregas e

entendida por diversas perspectivas10 Isso nos daacute brecha a pensar que o entendimento dos gregos a esse

respeito natildeo era necessariamente uniforme

Adiante Muumlller ainda completa ldquoNatildeo impressiona que uma naccedilatildeo como a indiana se importou tatildeo pouco com

histoacuteriardquo (MUumlLLER 1860 [1859] p 18)11 Haveria nos indianos uma aura de profunda espiritualidade

filosoacutefica incapaz de pensar a respeito dos problemas mundanos das questotildees praacuteticas Esse discurso tem

suas bases na literatura eacute claro mas eacute escandalosa a ausecircncia de um questionamento simples como viveram

esses anos todos as pessoas comuns da Iacutendia Afinal sabemos que nem todos os gregos eram Soacutecrates ou

9 ldquoGreece and India are indeed the two opposite poles in the historical development of the Aryan man To the Greeks existence is full of life and reality to the Hindu it is a dream an illusion The Greek is at home where he is born all of his energies belong to his country he stands and falls with his party and is ready to sacrifice even his life to the glory and independence of Hellas The Hindu enters this world as a stranger all his life thoughts are directed to another world he takes no part even where he is driven to act and when he sacrifices his life it is but to be delivered from itrdquo 10 A tiacutetulo de exemplo ver Platatildeo Feacutedon 81b Menecircxino 81a A Repuacuteblica 614 Fedro 248d Goacutergias 525c Plotino Eneacuteades 1111-12 296 10-28 342 439 7141-8 Dioacutegenes Laeacutercio tambeacutem fala a respeito da crenccedila de Pitaacutegoras na transmigraccedilatildeo da alma (Vidas e Doutrinas dos Filoacutesofos Ilustres 836) existem muitos outros exemplos que poderiacuteamos debater com maior profundidade em um outro momento mas reforccedilamos desde jaacute que natildeo ignoramos os debates a respeito da relevacircncia da ideia da transmigraccedilatildeo da alma dentro do sistemas filosoacuteficos de pensadores gregos como o caso de Plotino que ora tem a transmigraccedilatildeo diminuiacuteda em seu sistema por determinadas interpretaccedilotildees ora a tem levada em maior consideraccedilatildeo por outro grupo de acadecircmicos (STAMELLOS 2016 p 49-50) Para aleacutem da filosofia o relato de Heroacutedoto eacute bastante significativo a alma seria imortal e habitaria outro corpo apoacutes a morte do corpo anterior dentro das crenccedilas egiacutepcias o que Heroacutedoto (Histoacuterias 2123) revela em seguida eacute que houvera gregos os quais ele natildeo nomeia que partilharam dessa crenccedila 11 ldquoNo wonder that a nation like the Indian cared so little for historyrdquo

[197]

Heroacutedoto da mesma forma como nem todos os indianos eram Vyasa Muumlller despreocupado com esse tipo

de questionamento se deixou levar exclusivamente pela carga espiritual que carregava consigo e se

maravilhava com os indianos dizendo ldquoSua existecircncia na Terra era para eles um problema sua vida eterna

uma certezardquo (MUumlLLER 1860 [1859] p 19)12 O que eacute relevante no entanto nessa constataccedilatildeo da

perspectiva religiosamente enviesada de Muumlller eacute que isso era um dos pilares de um sistema epistemoloacutegico

ao qual estava alinhado os pilares eram o cristianismo e a heranccedila claacutessica como alicerces do Ocidente e

consequentemente da civilizaccedilatildeo Foi dessa forma que Muumlller manipulou diferentes tipos de informaccedilotildees

para criar uma perspectiva estanque e simultaneamente exoacutetica da Iacutendia Antiga

Muumlller segue sua comparaccedilatildeo entre gregos e indianos por vaacuterias frentes Em dado momento compara a

expressatildeo sacircnscrita परिय आतमा priya ātmā (Vyasa Bhāgavata Purāṇa 32538)13 que ele traduz por ldquoteu

querido Eurdquo (MUumlLLER 1860 [1859] p 20)14 com a expressatildeo grega φίλον ἧτορ fiacutelon heacutetor (Homero Iliacuteada

5670 Odisseia 160 4804 7269 etc) No trecho da Iliacuteada para natildeo nos estendermos demais neste ponto

a expressatildeo eacute traduzida por Frederico Lourenccedilo de maneira mais literal como ldquoseu querido coraccedilatildeordquo

enquanto Carlos Alberto Nunes traduziu apenas por ldquona almardquo e Augustus Taber Murray por ldquowithin himrdquo

O que transcende as traduccedilotildees no entanto eacute um sentido de iacutentimo e de subjetividade portanto haveria uma

correspondecircncia direta entre a expressatildeo grega e a sacircnscrita ambas se referem ao caro querido Ser do

indiviacuteduo Adiante compara tambeacutem a expressatildeo आतमान आतमना पशय ātmānam ātmanā paśya que Max Muumlller

traduz por ldquove-te a ti mesmordquo (MUumlLLER 1860 [1859] p 21-22)15 com o aforismo γνῶθι σεαυτόν

(Xenofonte Ditos e feitos memoraacuteveis de Soacutecrates 42 Platatildeo Caacutermides 164d Protaacutegoras 343a-343b Fedro

229e Filebo 48c Leis II 923a Alcibiacuteades I 124a 129a 132c Aristoacutefanes As Nuvens 842 Pausacircnias

Descriccedilatildeo da Greacutecia 1024) o ldquoconheccedila-serdquo ou de forma mais empertigada ldquoconhece-te a ti mesmordquo famoso

proveacuterbio deacutelfico popularizado como conduta de Soacutecrates Muumlller ainda completa essa segunda comparaccedilatildeo

defendendo que a expressatildeo sacircnscrita teria um sentido ainda mais profundo que a grega (MUumlLLER 1860

[1859] p 21-22)

12 ldquoTheir existence on earth was to them a problem their eternal life a certaintyrdquo 13 A expressatildeo natildeo foi inserida no texto de Muumlller escrita no abugida devanaacutegari mas apenas transliterada Buscamos oferecer a grafia correta dos termos individualmente para garantir mais visibilidade ao devanaacutegari mas reforccedilamos que a grafia pode mudar de acordo com certas regras de formaccedilatildeo de palavras compostas No trecho que utilizamos como referecircncia e que natildeo eacute citado por Muumlller os termos satildeo grafados agrave maneira como escrevemos sendo inclusive sequenciais O Bhāgavata Purāṇa tambeacutem eacute comumente chamado de Śrīmad Bhāgavatam 14 ldquothy dear selfrdquo 15 ldquosee [thy]self by [thy]selfrdquo Os colchetes foram empregados por Max Muumlller Novamente o texto de Muumlller natildeo incluiacutea grafia em devanaacutegari mas apenas uma transliteraccedilatildeo Disponibilizamos a grafia correta das palavras quando escritas individualmente Dentro das limitaccedilotildees atuais de nossa pesquisa natildeo encontramos a expressatildeo grafada desta maneira em nenhum dos textos sacircnscritos antigos ainda assim haacute uma passagem da Bhagavad Gītā que traz todos os termos no

mesmo verso चवातमनातमान पशयननातमपरन तषयपरत caivātmanātmānam paśyannātmani tuṣyati traduzido como ldquoe onde se contenta no si-mesmo observando o si-mesmo por meio do si-mesmordquo (Vyasa Bhagavad Gītā 620 Trad Carlos Eduardo G Barbosa) O sentido eacute portanto similar agrave expressatildeo que Muumlller utilizou na forma de epigrama

[198]

Ainda que apresentando um contiacutenuo deslumbramento com a cultura indiana isso natildeo conduz a nada

diferente da submissatildeo de tal cultura ao teacutelos eurocecircntrico Muumlller joga a comparaccedilatildeo para o campo histoacuterico

efetivamente o contato entre os gregos e os indianos Suas fontes satildeo Estrabatildeo e Megaacutestenes Atraveacutes do

primeiro reforccedila que a filosofia indiana tem por meta central natildeo permitir ao indiviacuteduo pender para os

prazeres ou para a dor16 Eacute atraveacutes do segundo no entanto que procura justificar melhor seu argumento

Assim o relato que Megaacutestenes oferece a respeito dos indianos nos mostra o mesmo personagem abstrato e passivo que noacutes encontramos atraveacutes de toda a literatura poacutes-veacutedica dos bracircmanes e que em grande medida explica a ausecircncia de qualquer coisa similar a uma literatura histoacuterica nesta naccedilatildeo de filoacutesofos [] Um povo de tatildeo peculiar traccedilo mental jamais estaria destinado a tomar um partido significativo no que eacute chamado de histoacuteria do mundo (MUumlLLER 1860 [1859] p 28-29)17

Quase como se estivesse desculpando Muumlller emenda ldquoNenhum povo certamente causou uma impressatildeo

mais favoraacutevel sobre os gregosrdquo (MUumlLLER 1860 [1859] p 29)18 Eacute evidente que boa parte do que citamos

satildeo afirmaccedilotildees profundamente arbitraacuterias Natildeo iremos entrar no meacuterito de qual cultura gerou maior impacto

positivo nos gregos ainda que reforcemos que isso pode ser bastante difiacutecil de afirmar Em todo caso o que

importa eacute que onde Muumlller escreveu ldquosobre os gregosrdquo ele em verdade deveria ter escrito ldquosobre mimrdquo

Muumlller natildeo pocircde deixar de justificar sua paixatildeo pela Iacutendia da mesma forma como natildeo conseguiu submetecirc-la

a uma classificaccedilatildeo em que permanecia inevitavelmente abaixo dos claacutessicos (gregos em especial) dos quais

Muumlller seria um herdeiro A respeito da passividade do abstratismo que ele menciona natildeo deveriacuteamos levar

em consideraccedilatildeo que foram os indianos que impuseram um limite ao exeacutercito de Alexandre19 Devemos

desconsiderar de igual forma a complexidade da literatura sacircnscrita que natildeo se limita Muumlller bem sabia a

textos filosoacutefico-religiosos Isso eacute suficiente para natildeo caracterizarmos o indiano antigo de maneira

homogecircnea e universalizada como se todos fossem verdadeiros eremitas O proacuteprio Muumlller reconheceu

16 A leitura europeia de relatos como o de Estrabatildeo e dos proacuteprios modernos especialistas na cultura indiana aleacutem da tradiccedilatildeo que se formava em entender que a filosofia oriental continuamente pende para a religiatildeo foi o que possibilitou uma fixaccedilatildeo da ideia da filosofia indiana em um atrelamento contiacutenuo com o campo religioso Desconsiderando colocaccedilotildees como a de Cornford (1912 p 261-263) a respeito da percepccedilatildeo de que a filosofia natildeo se tornou tatildeo menos religiosa no mundo grego muitos historiadores da filosofia chegaram a estigmatizar a filosofia heleniacutestica julgando que tal pensamento eacute produto de uma decadecircncia do pensamento grego na medida de seus contatos com o pensamento oriental a filosofia heleniacutestica teria deixado de procurar a resoluccedilatildeo de questotildees universais e passado a ser utilizada

como meacutetodo de conduta com fins agrave ἀταραξία ataraxiacutea (CHAUIacute p 18-26 34-36) 17 ldquoThus the account which Megasthenes gives of the Indians shows us the same abstract and passive character which we find throughout the whole post-Vedic literature of the Brahmans and which to a great extent explains the absence of anything like historical literature among this nation of philosophers [] A people of this peculiar stamp of mind was never destined to act a prominent part in what is called the history of the worldrdquo 18 ldquoNo people certainly made a more favourable impression upon Greeks than the Indiansrdquo 19 A respeito disso o proacuteprio Megaacutestenes reproduzido por Diodoro comenta que Alexandre teria desistido de cruzar o Ganges por receio do confronto com os gandaridae (Biblioteca Histoacuterica 235-42) Plutarco tambeacutem relatou que apoacutes o embate contra o rei Poro o exeacutercito de Alexandre se tornou arredio e perdeu a motivaccedilatildeo para prosseguir (Vida de Alexandre 62) Ora um homem como Max Muumlller poderia dar mais atenccedilatildeo ao fato de Poro ter sido derrotado e ter se tornado um Saacutetrapa mas eacute necessaacuterio notarmos que a luta contra Poro ter sido suficiente para diminuir o moral do exeacutercito se o relato for real eacute algo bastante significativo e indica minimamente que os indianos antigos natildeo seriam tatildeo passivos para os gregos como eram para Muumlller

[199]

adiante que os indianos natildeo eram tatildeo submissos a conquistadores mas essa constataccedilatildeo natildeo modificou o

sistema bem montado que tinha em sua reflexatildeo e ele prosseguiu

O gecircnio da naccedilatildeo grega deve seu crescimento feliz e saudaacutevel agrave liberdade e agrave independecircncia nacional As canccedilotildees homeacutericas eram endereccediladas a um povo orgulhoso de seus heroacuteis reais ou lendaacuterios Se a Peacutersia tivesse esmagado o cavalheirismo da Greacutecia nunca teriacuteamos ouvido os nomes de Heroacutedoto Eacutesquilo Soacutefocles Fiacutedias e Peacutericles Onde o sentimento de nacionalidade foi despertado o poeta se orgulha de ser ouvido por sua naccedilatildeo e uma naccedilatildeo se orgulha de ouvir seu poeta Mas em tempos de degradaccedilatildeo nacional o gecircnio dos grandes homens se afasta das realidades da vida e encontra seu uacutenico consolo na busca da verdade na ciecircncia e na filosofia Soacutecrates Platatildeo e Aristoacuteteles surgiram quando a naccedilatildeo grega comeccedilou a declinar e sob o peso do primeiro domiacutenio macedocircnio da tirania romana a vida do gecircnio grego desapareceu enquanto suas produccedilotildees imortais continuaram na memoacuteria de outras naccedilotildees mais livres O indiano nunca conheceu o sentimento de nacionalidade e seu coraccedilatildeo nunca tremeu na expectativa de aplausos nacionais Natildeo havia heroacuteis para inspirar um poeta ndash nenhuma histoacuteria convocar um historiador A uacutenica esfera em que a mente indiana se encontrava em liberdade para agir criar e adorar era a esfera da religiatildeo e da filosofia [] os hindus eram uma naccedilatildeo de filoacutesofos Suas lutas eram as lutas do pensamento seu passado o problema da criaccedilatildeo seu futuro o problema da existecircncia [] como um todo a histoacuteria natildeo fornece uma segunda instacircncia onde a vida interior da alma absorveu tatildeo completamente todas as faculdades praacuteticas de um povo inteiro e de fato quase destruiu aquelas qualidades pelas quais uma naccedilatildeo ganha seu lugar na histoacuteria Por conseguinte poderia ser justamente dito que a Iacutendia natildeo tem lugar na histoacuteria poliacutetica do mundo [] Uma expediccedilatildeo como a de Alexandre nunca poderia ter sido concebida por um rei indiano e a ambiccedilatildeo dos conquistadores nativos nos poucos casos em que existia nunca ultrapassou os limites da proacutepria Iacutendia [] Mas se a Iacutendia natildeo tem lugar na histoacuteria poliacutetica do mundo certamente tem o direito de reivindicar seu lugar na histoacuteria intelectual da humanidade Quanto menos a naccedilatildeo indiana participasse das lutas poliacuteticas do mundo e gastasse suas energias nas faccedilanhas da guerra e na formaccedilatildeo de impeacuterios mais ela assentava e concentrava todos os seus poderes para o cumprimento da importante missatildeo reservada a ele na histoacuteria do Oriente A histoacuteria parece ensinar que toda a raccedila humana necessitava de uma educaccedilatildeo gradual antes que pudesse na plenitude dos tempos confessar as verdades do cristianismo (MUumlLLER 1860 [1859] p 30-32)20

20 ldquoThe genius of the Greek nation owes its happy and healthy growth to liberty and national independence The Homeric songs were addressed to a people proud of its heroes whether real or legendary If Persia had crushed the chivalry of Greece we should never have heard the names of Herodotus Aeschylus Sophocles Phidias and Pericles Where the feeling of nationality has been roused the poet is proud to be listened to by his nation and a nation is proud to listen to her poet But in times of national degradation the genius of great men turns away from the realities of life and finds its only consolation in the search after truth in science and philosophy Socrates Plato and Aristotle arose when the Greek nation began to decline and under the heavy grasp first of Macedonian swayrsquo then of Roman tyranny the life of the Greek genius ebbed away while its immortal productions lived on in the memory of other and freer nations The Indian never knew the feeling of nationality and his heart never trembled in the expectation of national applause There were no heroes to inspire a poet mdash no history to call forth a historian The only sphere where the Indian mind found itself at liberty to act to create and to worship was the sphere of religion and philosophy [] The Hindus were a nation of philosophers Their struggles were the struggles of thought their past the problem of creation their future the problem of existence [] taken as a whole history supplies no second instance where the inward life of the soul has so completely absorbed all the practical faculties of a whole people and in fact almost destroyed those qualities by which a nation gains its place in history It might therefore be justly said that India has no place in the political history of the world [] An expedition like- that of Alexander could never have been conceived by an Indian king and the ambition of native conquerors in those few cases where it existed never went beyond the limits of India itself [] But if India has no place in the political history of the world it certainly has a right to claim its place in the intellectual history of mankind The less the Indian nation has taken part in the political struggles of the world and expended its energies in the exploits of war and the formation of empires the more it has fitted itself and concentrated all its powers for the fulfilment of the

[200]

Eacute evidente a demonstraccedilatildeo de um projeto poliacutetico de cogniccedilatildeo do mundo colonial Muumlller se vale de uma certa

concepccedilatildeo do mundo grego A partir dessa concepccedilatildeo defende que o mundo do ramo ariano eacute aquele que

seguiu na direccedilatildeo da Histoacuteria Poliacutetica da humanidade e portanto determinou os rumos para a estratificaccedilatildeo

social as formas de governo os conceitos poliacuteticos baacutesicos de um futuro mundo universal universalizado

pelo Ocidente Ora Muumlller jaacute havia determinado que o ramo ao qual pertencia era este o ramo das accedilotildees

poliacuteticas o ramo merecedor de pertencer agrave Histoacuteria Poliacutetica Ainda que tenha afirmado que Kant teria

norteado sua obra ao longo de toda sua carreira Max Muumlller se mostrou um verdadeiro hegeliano quando

pensou sobre a Histoacuteria Universal Dentro desse pensamento limitou os indianos agrave Histoacuteria Intelectual da

humanidade Muumlller seguindo seu proacuteprio raciociacutenio seria superior em duas medidas Primeiro por ser

supostamente um herdeiro direto da cultura claacutessica segundo por ser germacircnico e assim desfrutar de uma

proximidade maior com os gregos e os hindus em relaccedilatildeo a outros povos europeus modernos

Aqui eacute claro fica evidente a atitude duacutebia de Muumlller em relaccedilatildeo a seu posicionamento discursivo no jogo

poliacutetico dos impeacuterios europeus Por um lado ele se coloca como um indiviacuteduo dotado de maior aptidatildeo para

lidar com seus temas de estudo e de maior proximidade com as sociedades mais desenvolvidas da

Antiguidade Por outro no entanto torna-se uma espeacutecie de representante do Impeacuterio Britacircnico ele

categoriza e torna cognosciacutevel o indiano conferindo a ele um espaccedilo limitado na Histoacuteria alijando-o da

Histoacuteria Poliacutetica da posiccedilatildeo de mando e limitando-o agrave Histoacuteria Intelectual da humanidade Resumidamente

o que Muumlller disse atraveacutes de seu trabalho mutatis mutandis foi ldquotemos muito a aprender com eles estes

pobres coitados tatildeo exoacuteticos e maravilhosos que precisam do nosso direcionamento que ficam melhor

governados pelo ramo mais legiacutetimo da raccedila ariana aprenderemos com eles sobre o pensamento humano

mas quando o tema for a poliacutetica e as relaccedilotildees de dominaccedilatildeo ele deve ser verbalizado em nossos termos

afinal pertence apenas a noacutesrdquo Embora tenhamos pretensotildees de discutir essa questatildeo mais a fundo em um

momento futuro da pesquisa gostariacuteamos de propor que natildeo foi por acaso que Muumlller recusou o convite para

lecionar na Universidade de Estrasburgo permanecendo atuando no interior do Impeacuterio Britacircnico A

produccedilatildeo de Muumlller segue a loacutegica do colonialismo natildeo apenas por ele ser um intelectual europeu mas

tambeacutem para que dispusesse de espaccedilo na ordem do discurso do Impeacuterio Britacircnico que tinha a Iacutendia como

uma de suas possessotildees

E quanto ao helenismo O ldquohelenismordquo de Friedrich Max Muumlller ao qual nos referimos desde o princiacutepio

consistiu precisamente na construccedilatildeo de um modelo idealizado de Greacutecia em parte inspirado na produccedilatildeo

intelectual do seacuteculo XIX mas em parte motivado pela retoacuterica do proacuteprio Muumlller Desta forma a partir desse

modelo idealizado que conferia sentido ao proacuteprio mundo de Muumlller construir entatildeo um modelo oposto que

correspondesse agrave Iacutendia Assim o resultado era duplo Max Muumlller legitimava sua condiccedilatildeo e a do proacuteprio

important mission reserved to it in the history of the East History seems to teach that the whole human race required a gradual education before in the fullness of time it could be admitted to the truths of Christianityrdquo

[201]

Impeacuterio Britacircnico por ser herdeiro legiacutetimo do ramo mais poderoso do grupo chamado ariano (indo-

europeu) e assegurava a aceitaccedilatildeo de suas conclusotildees como verdadeiras pela comunidade acadecircmica e pela

elite de sua eacutepoca agrave medida que respeitava a ordem do discurso vigente para pensarmos um pouco nos

termos de Foucault o que incluiacutea a utilizaccedilatildeo da Antiguidade ldquoclaacutessicardquo para a fundamentaccedilatildeo de uma

retoacuterica especiacutefica Essa praacutetica recorrente na eacutepoca foi demonstrada nos escritos de Marx Engels Weber

Adam Smith Nietzsche e Hegel por Neville Morley (MORLEY 2009 p 141-161)

Podemos reconhecer que as culturas grega e indiana eram absolutamente diferentes Sim podemos Isso

estaacute expliacutecito nas fontes de que dispomos sejam escritas iconograacuteficas arqueoloacutegicas No entanto natildeo

podemos deixar de notar que as interpretaccedilotildees conferidas a essa constataccedilatildeo por vezes vecircm dotadas de

certa maacute feacute de maneira consciente ou natildeo Haacute que se notar que as afirmaccedilotildees precipitadas de Muumlller pecam

pela idealizaccedilatildeo exacerbada de um mundo grego livre autocircnomo nacionalista mas o fazem propositalmente

para relegar aos indianos as caracteriacutesticas imediatamente opostas servis desprovidos de uma vida poliacutetica

complexa e saudaacutevel desprovidos de identidade nacional A ldquonaccedilatildeo de filoacutesofosrdquo de Muumlller eacute uma retoacuterica

criada lado a lado com a idealizada sociedade grega do mesmo Muumlller A recepccedilatildeo dos claacutessicos eacute desta

forma moldada de acordo com o proacuteprio posicionamento poliacutetico (LEONARD PRINS 2010 p 1-2) e com a

intenccedilatildeo clara de produzir um argumento plausiacutevel para uma ideia enviesada Atraveacutes dessa operaccedilatildeo

fundamentada em retoacuterica pura Muumlller exclui o mundo indiano da Histoacuteria Poliacutetica seguindo na esteira de

Hegel e desta forma o manteacutem imediatamente acorrentado agrave tutela europeia Um povo desprovido de

Histoacuteria Poliacutetica natildeo teria assim muito o que fazer a natildeo ser aceitar a dominaccedilatildeo e acima de tudo se

regozijar preparando-se para as verdades do Cristo e para uma vida civilizada de acordo com os termos do

proacuteprio Max Muumlller A contribuiccedilatildeo do Oriente dos indianos acima de tudo seria apenas no que se refere agrave

religiatildeo ao pensamento estando portanto longe do campo da accedilatildeo No campo da accedilatildeo deveriam apenas

ficar quietos passivos E suas ideias caminhariam seguindo essa loacutegica em direccedilatildeo ao engrandecimento da

complexidade intelectual do Ocidente esse grande desbravador libertador de primitivos Essa conclusatildeo

nos faz recordar as palavras jaacute citadas aqui do proacuteprio Muumlller que se julgava tatildeo preciso em seu estudo a

respeito dos indianos ldquonenhuma naccedilatildeo foi a este respeito tratada mais injustamente que a Iacutendiardquo (MUumlLLER

1860 [1859] p 6)

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Marihaacute Barbosa e Castro

marihacastrogmailcom

A partir do seacuteculo XX os estudos sobre a teoria da recepccedilatildeo

ganharam notoriedade entre criacuteticos e teoacutericos de literatura Essas

investigaccedilotildees se preocupam em analisar a participaccedilatildeo do receptor

na interpretaccedilatildeo de uma obra partindo do princiacutepio de que a leitura

eacute um consenso entre os elementos trazidos pelo texto e pelo seu

inteacuterprete Entretanto mais do que atentar para o exerciacutecio

corriqueiro de leitura a teoria da recepccedilatildeo se volta para a anaacutelise

das obras de arte (literaacuterias ou natildeo) como confluecircncia de textos e

multiplicidade de influecircncias apropriando-se dos conceitos de

intertextualidade propostos por Julia Kristeva e de dialogismo de

Mikhail Bakhtin Ao assumir a dinacircmica existente no exerciacutecio de

interpretaccedilatildeo delegando relevacircncia tambeacutem ao papel do

inteacuterprete a teoria da recepccedilatildeo assume que a obra de arte natildeo

possui um significado uacutenico e estaacutetico encerrado em si mesmo pois

seu sentido se modificaraacute a cada leitura em cada contexto Existem

portanto diversas possibilidades de leitura para todo o texto Essa

maneira de compreender a recepccedilatildeo estaacute fundamentada no

modelo proposto por Hans Robert Jauss que considera os aspectos

histoacutericos e formais de uma obra trabalhando com teorias

antagocircnicas como o Formalismo Russo e o Marxismo A teoria da

recepccedilatildeo sendo assim traz a novidade do enfoque no leitor

[205]

Essa nova corrente teoacuterica tambeacutem atingiu os Estudos Claacutessicos provocando um redimensionamento

significativo da aacuterea A tendecircncia de enxergar o claacutessico ndash entendido aqui como a cultura a literatura e as

obras de arte produzidas durante a Antiguidade grega e romana ndash como algo fixo e que pode ser

compreendido em seus proacuteprios termos tem sido bastante criticada A publicaccedilatildeo do livro Redeeming the text

(2003) de Charles Martindale configura-se como um marco da reflexatildeo sobre os Estudos Claacutessicos

associados agrave teoria da recepccedilatildeo aleacutem de observar a rede intertextual existente entre as obras da

Antiguidade claacutessica ndash que envolve conceitos como imitatio e aemulatio ndash propotildee que tambeacutem as

interpretaccedilotildees posteriores dos textos claacutessicos e a literatura em outros momentos do tempo tenham grande

influecircncia sobre a literatura grega e romana Afinal o olhar que lanccedilamos sobre a Antiguidade estaacute sempre

marcado por nossa maneira de enxergar o mundo por mais que tentemos nos posicionar fora de nossas

caracteriacutesticas eacute impossiacutevel assumir o olhar do leitor grego ou romano primeiros destinataacuterios dos claacutessicos

Aleacutem disso nossa leitura carrega diversas outras sendo influenciada por uma longa trajetoacuteria de

interpretaccedilotildees e recepccedilotildees de uma mesma obra A leitura da Eneida atualmente eacute amplamente influenciada

por obras como Os Lusiacuteadas de Camotildees e A divina comeacutedia de Dante Alighieri O modo como enxergamos o

mundo claacutessico passa pelo Renascimento europeu Entende-se portanto que a Antiguidade e a

Modernidade estatildeo sempre relacionadas em constante diaacutelogo para compreender uma eacute necessaacuterio pensar

sobre a outra William W Batstone ao analisar os estudos sobre recepccedilatildeo aponta que Charles Martindale

ldquo[] encontra na teoria da recepccedilatildeo tanto o enriquecimento do significado atraveacutes da recepccedilatildeo do passado

como a libertaccedilatildeo do significado para o leitor individual no presenterdquo (BATSTONE 2008 p 14)1 Martindale

portanto rompe com o pensamento que enxerga a anaacutelise histoacuterica da recepccedilatildeo da Eneida como uma

distorccedilatildeo da visatildeo original da obra Incluir a recepccedilatildeo como assunto a ser explorado pelos Estudos Claacutessicos

permite ainda ampliar o campo de trabalho dos classicistas e renovar o interesse pela literatura grega e

romana

Enfraquece-se portanto a ideia de que o mundo claacutessico soacute poderia ser estudado e compreendido por meio

da remissatildeo aos textos e materiais produzidos na Antiguidade (manuais de retoacuterica tratados poeacuteticos etc)

Embora muitos elejam esse procedimento como meacutetodo de anaacutelise a possibilidade de utilizar conceitos e

teorias contemporacircneas para refletir sobre a Antiguidade se torna cada vez menos estranha aos classicistas

O incentivo a novas anaacutelises das obras da Modernidade em que o elemento claacutessico se faz presente eacute outro

aspecto em que a teoria da recepccedilatildeo procura trabalhar Para esse tipo de anaacutelise eacute imprescindiacutevel o

conhecimento sobre a cultura e a literatura dos antigos e por isso os classicistas seriam os estudiosos com a

melhor condiccedilatildeo para trabalhar a recepccedilatildeo dos claacutessicos

1 Todas as traduccedilotildees apresentadas neste estudo satildeo nossas ldquo[hellip] finds in reception theory both the enrichment of meaning by the reception of the past and the liberation of meaning for the individual reader in the presentrdquo

[206]

A teoria da recepccedilatildeo associada aos Estudos Claacutessicos eacute ainda uma aacuterea recente e em desenvolvimento Natildeo

se pode falar sobre uma metodologia e nem mesmo sobre uma terminologia estabelecida Natildeo haacute consenso

sequer sobre o uso da palavra ldquorecepccedilatildeordquo para designar o processo de assimilaccedilatildeo de outros textos e

culturas outros termos como ldquoapropriaccedilatildeordquo jaacute foram sugeridos entretanto Martindale (2007 p 300)

reforccedila a utilizaccedilatildeo de ldquorecepccedilatildeordquo

Alguns se queixam de que lsquorecepccedilatildeorsquo sugere um papel passivo para o leitor (isso deve em parte refletir as outras associaccedilotildees da palavra em inglecircs) e preferem ldquoapropriaccedilatildeordquo Mas devemos nos lembrar de que lsquorecepccedilatildeorsquo foi adotada justamente por sublinhar o caraacuteter dinacircmico e dialoacutegico do exerciacutecio de leitura (de fato lsquoapropriaccedilatildeorsquo tomar posse de algo minimiza a possibilidade de diaacutelogo a capacidade do texto de resistir agraves nossas tentativas de dominaacute-lo sua capacidade de modificar nossa sensibilidade)2

Trabalhos como ldquoReception and Traditionrdquo (BUDELMANN HAUBOLD 2008) de Felix Budelmann e

Johannes Haubold se dedicam agrave reflexatildeo sobre as diferenccedilas entre tradiccedilatildeo recepccedilatildeo e permanecircncia ndash

fenocircmenos que natildeo possuem limites bem marcados entre si e que sempre estiveram presentes no jogo

literaacuterio atraveacutes de procedimentos como a imitatio e a aemulatio ndash procurando fixar noccedilotildees claras sobre esses

conceitos e ainda estabelecer qual seria a dinacircmica existente entre eles e como poderiam ser explorados

pelos estudos de recepccedilatildeo do claacutessico

Martindale (2007 p 298) afirma que o termo ldquotradiccedilatildeordquo carrega uma conotaccedilatildeo passiva contrastando com

o sentido de ldquorecepccedilatildeordquo ldquoa etimologia de lsquotradiccedilatildeorsquo por exemplo do latim lsquotraderersquo sugere transmissatildeo do

material do passado para o presente lsquoRecepccedilatildeorsquo por contraste pelo menos segundo o modelo da Escola de

Constance opera com uma temporalidade diferente envolvendo uma participaccedilatildeo ativa dos leitoresrdquo3 A

tradiccedilatildeo estaria relacionada agrave noccedilatildeo de estabilidade e fixidez mas nem sempre indicaria uma relaccedilatildeo de

submissatildeo do presente ao passado por traacutes da palavra ldquotradiccedilatildeordquo haacute muitos significados tornando difiacutecil a

fixaccedilatildeo de um conceito Aleacutem de ser facilmente verificaacutevel que natildeo existe somente uma tradiccedilatildeo e mesmo

compreendendo que o conceito se baseia na ideia de constacircncia natildeo podemos ignorar o movimento de

transmissatildeo que fundamenta toda tradiccedilatildeo Para Martindale (2007 p 300) esse movimento se

caracterizaria pelo seu estabelecimento confortaacutevel e natildeo contestado que torna possiacutevel a continuidade de

uma tradiccedilatildeo ldquolsquoTradiccedilatildeordquo por contraste poderia implicar que o processo de transmissatildeo eacute confortavelmente

incontestadordquo4 Jaacute Felix Budelmann e Johannes Haubold (2008 p 25) defendem que ldquono estudo da recepccedilatildeo

2 ldquoSome complain that ldquoreceptionrdquo suggests a passive role for the reader (this may in part reflect the other associations of the word in English) and prefer ldquoappropriationrdquo (eg Hall 2004 61) But we should remember that ldquoreceptionrdquo was adopted precisely to underline the dynamic and dialogic character of reading (indeed ldquoappropriationrdquo making onersquos own downplays the possibility of dialogue the capacity of the text to resist our attempts to master it its capacity to modify our sensibility)rdquo 3 ldquoThe etymology of ldquotraditionrdquo for example from the Latin tradere suggests a ndash usually benign ndash handing down of material from the past to the present ldquoReceptionrdquo by contrast at least on the model of the Constance school operates with a different temporality involving the active participation of the readersrdquo 4 ldquolsquoTraditionrsquo by contrast might imply that the process of transmition is comfortably uncontestedrdquo

[207]

como em qualquer outro lsquotradiccedilatildeorsquo natildeo deve ser invocada defendida ou atacada como uma ideia platocircnica

mas deve ser vista como uma ferramenta flexiacutevel para sugerir novas perspectivas em diferentes caminhos e

em diferentes ocasiotildees5 Uma das preocupaccedilotildees dos estudos de recepccedilatildeo dos claacutessicos seria justamente

tentar compreender esse movimento em diversos momentos da histoacuteria ldquoRecepccedilatildeordquo se diferenciaria de

ldquotradiccedilatildeordquo por conjugar noccedilotildees de dinamismo dialogismo e leitura trabalhando com a ideia do consenso A

permanecircncia do elemento claacutessico se torna possiacutevel atraveacutes da coexistecircncia e da interaccedilatildeo entre recepccedilatildeo e

tradiccedilatildeo ldquonoacutes precisamos manter a tradiccedilatildeo em vista quando estudamos a recepccedilatildeo e vice e versardquo

(BUDELMANN HAUBOLD 2008 p 24)6 A recepccedilatildeo traz ao claacutessico sempre algo novo eacute possiacutevel que a

atualizaccedilatildeo do interesse por muitas obras da Antiguidade tenha como referencial a presenccedila destas na

literatura posterior

A maneira como a literatura antiga se estabeleceu nas sociedades posteriores se fundamenta em uma

tradiccedilatildeo que idealiza o mundo grego e romano O termo ldquoclaacutessicordquo que passou por vaacuterios deslocamentos de

significado atraveacutes dos anos inicialmente relacionado a uma noccedilatildeo de estratificaccedilatildeo social passou a designar

o conjunto de melhores autores da Antiguidade os modelos oficiais de excelecircncia literaacuteria Essa ideologia se

apoiava em um discurso que legitimava certos valores e determinadas ordens sociais O claacutessico era

portanto uma instituiccedilatildeo com seus mecanismos de manutenccedilatildeo Durante os seacuteculos XIV e XV a fluecircncia em

latim claacutessico era um recurso de ascensatildeo social tendo sido o ensino da liacutengua obrigatoacuterio em qualquer

escola voltada para a educaccedilatildeo de jovens da nobreza As instituiccedilotildees de ensino se esforccedilavam por ensinar a

seus alunos as Humanidades por considerarem que a leitura dos claacutessicos e o aprendizado do latim e do

grego eram condiccedilotildees indispensaacuteveis para o refinamento cultural e para a formaccedilatildeo de homens civilizados

O claacutessico pois era muito visado por seu valor socioeconocircmico e mercadoloacutegico tendo sido um elemento de

diferenciaccedilatildeo entre os indiviacuteduos Nos seacuteculos seguintes sobretudo a partir do comeccedilo do seacuteculo XX o

claacutessico passa por uma gradativa perda de seu estatuto fruto das profundas mudanccedilas estruturais da

sociedade O cacircnone que antes incluiacutea apenas obras da Antiguidade jaacute contemplava autores

contemporacircneos e novas classes passam a ter acesso agrave escola provocando uma modificaccedilatildeo dos curriacuteculos

escolares Essa trajetoacuteria do termo e de sua posiccedilatildeo social faz parte do que hoje chamamos de uma tradiccedilatildeo

claacutessica Estudiosos como Seth L Schein (2008) defendem que eacute responsabilidade dos classicistas refletir

sobre esse processo e ajudar os estudantes a compreendecirc-lo ao lanccedilar olhares criacuteticos por todo o trajeto

percorrido pelo claacutessico Schein (2008 p 84) faz uma anaacutelise da recepccedilatildeo da literatura antiga observando os

lugares por ela ocupados em diferentes momentos da histoacuteria ldquoNoacutes classicistas a professores temos a

oportunidade e a responsabilidade de compreender e resistir agrave construccedilatildeo institucional de uma literatura

5 ldquoIn the study of reception as indeed elsewhere lsquotraditionrsquo should not be invoked defended or attacked as a Platonic idea but should be seen as a pliable tool for suggesting new perspectives in different ways on different occasionsrdquo 6 ldquoWe need to keep tradition in view when studying reception and vice versardquo

[208]

canocircnica e de uma tradiccedilatildeo claacutessica autossuficiente e ajudar os estudantes a compreender o processo

histoacuterico pelo qual textos satildeo apropriados e transformados7

Surge portanto outra questatildeo como investigar e que aproveitamento obter da anaacutelise literaacuteria pautada nos

estudos de recepccedilatildeo e permanecircncia do claacutessico Talvez seja esse o ponto mais incerto entre os estudiosos

afinal a aacuterea eacute ainda recente e natildeo se propotildee a encontrar uma metodologia que sirva para todas as ocasiotildees

cada contexto necessitaraacute de uma abordagem especiacutefica Entretanto eacute possiacutevel dizer que os trabalhos que

se apoiarem nessa maneira de compreender o claacutessico e a interaccedilatildeo entre o presente e o passado deveratildeo

ultrapassar a simples constataccedilatildeo de que uma obra conversa com a outra Eacute preciso transpor a abordagem

superficial e redutora atraveacutes de uma metodologia consistente que reflita sobre o como e o porquecirc da

permanecircncia claacutessica Parece ser uma saiacuteda razoaacutevel analisar os trabalhos que se proponham a refletir sobre

a recepccedilatildeo em vaacuterios aspectos que relacionem duas obras ou dois autores que observem a trajetoacuteria de um

texto ou de um conjunto de textos de um mesmo autor que analisem as alusotildees e citaccedilotildees encontradas na

obra de um uacutenico autor dentre outros procedimentos

No Brasil livros como Permanecircncia claacutessica visotildees contemporacircneas da antiguidade greco-romana (2010) de

Bruno Vieira e Maacutercio Thamos marcam o despertar para esse novo encaminhamento dos Estudos Claacutessicos

Haacute ainda outros trabalhos que comeccedilam a trilhar o caminho dos estudos de recepccedilatildeo dos claacutessicos como ldquoA

Greacutecia de Machado de Assisrdquo (2001) de Jacyntho Lins Brandatildeo ldquoShakespeare e o drama satiacutericordquo de Erick

Ramalho e a dissertaccedilatildeo de mestrado de Priscila Maria Mendonccedila Machado Vrbs no Cosme Velho anaacutelise da

presenccedila da literatura latina em Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas (2010) Este trabalho pretende se juntar a

tais colaboraccedilotildees empreendendo uma breve anaacutelise do romance Esauacute e Jacoacute de Machado de Assis

Destacamos inicialmente que o nuacutemero de referecircncias claacutessicas encontradas em Esauacute e Jacoacute (1904) eacute

substancialmente maior do que em Memorial de Aires (1908)8 Essa comparaccedilatildeo nos parece proveitosa uma

vez que ambos os romances estatildeo ligados pelo personagem-narrador-autor Joseacute da Costa Marcondes Aires

o conselheiro mas foram estruturados de maneira diversa Esauacute e Jacoacute eacute narrado em terceira pessoa

enquanto o Memorial de Aires um livro de memoacuterias como evidencia o proacuteprio tiacutetulo estaacute escrito em

primeira Ao abrirmos as paacuteginas de Esauacute e Jacoacute deparamo-nos em primeiro lugar com uma ldquoAdvertecircnciardquo

Quando o conselheiro Aires faleceu acharam-se-lhe na secretaacuteria sete cadernos manuscritos rijamente encapados em papelatildeo Cada um dos primeiros seis tinha o seu

7 ldquoWe classical scholars and teachers have a particular opportunity and responsibility to understand and resist the institutional construction of a self-serving literary Canon and classical tradition and to help students grasp the historical process by which texts are de-historicized appropriated and transformed so that they lose their Power to criticize and call into questionrdquo 8 Ao todo verificamos 34 referecircncias ao mundo claacutessico em Esauacute e Jacoacute enquanto em Memorial de Aires encontramos 16

[209]

nuacutemero de ordem por algarismos romanos I II III IV V VI escritos agrave tinta encarnada O seacutetimo trazia este tiacutetulo Uacuteltimo

A razatildeo desta designaccedilatildeo especial natildeo se compreendeu entatildeo nem depois Sim era o uacuteltimo dos sete cadernos com a particularidade de ser o mais grosso mas natildeo fazia parte do Memorial diaacuterio de lembranccedilas que o conselheiro escrevia desde muitos anos e era a mateacuteria dos seis Natildeo trazia a mesma ordem de datas com indicaccedilatildeo da hora e do minuto como usava neles Era uma narrativa e posto que figurasse aqui o proacuteprio Aires com o seu nome e tiacutetulo de conselho e por alusatildeo algumas aventuras nem assim deixava de ser a narrativa estranha agrave mateacuteria dos seis cadernos Uacuteltimo por quecirc (ASSIS 2018 p 49)

Aires ainda que escondido pelo veacuteu de um narrador onisciente eacute autor de Esauacute e Jacoacute Essa imbricada

operaccedilatildeo articulada pelo autor-empiacuterico Machado de Assis estaacute refletida tambeacutem nos diferentes niacuteveis de

elaboraccedilatildeo intertextual dos dois romances O Memorial em que o narrador fala de si em tom confessional

como se natildeo tivesse preparado a princiacutepio as paacuteginas para o puacuteblico leitor possui uma quantidade menor de

alusotildees ao mundo claacutessico quando comparado a Esauacute e Jacoacute construiacutedo como narrativa agrave parte que visava

provavelmente agrave publicaccedilatildeo

A hipoacutetese de que o desejo do finado fosse imprimir este caderno em seguida aos outros natildeo eacute natural salvo se queria obrigar agrave leitura dos seis em que tratava de si antes que lhe conhecessem esta outra histoacuteria escrita com um pensamento interior e uacutenico atraveacutes das paacuteginas diversas Nesse caso era a vaidade do homem que falava mas a vaidade natildeo fazia parte dos seus defeitos Quando fizesse valia a pena satisfazecirc-la Ele natildeo representou papel eminente neste mundo percorreu a carreira diplomaacutetica e aposentou-se Nos lazeres do ofiacutecio escreveu o Memorial que aparado das paacuteginas mortas ou escuras apenas daria (e talvez de) para matar o tempo da barca de Petroacutepolis (ASSIS 2018 p 49)

Na ldquoAdvertecircnciardquo de Memorial de Aires por sua vez ldquoM de Ardquo alega natildeo possuir habilidade semelhante agrave de

Aires para redigir a narrativa agrave maneira de Esauacute e Jacoacute tendo por isso apenas editado o Memorial para

transformaacute-lo em uma narraccedilatildeo seguida ldquoapesar da forma de diaacuterio que temrdquo

Quem me leu Esauacute e Jacoacute talvez reconheccedila estas palavras do prefaacutecio Nos lazeres do ofiacutecio escrevia o Memorial que apesar das paacuteginas mortas ou escuras apenas daria (e talvez decirc) para matar o tempo da barca de Petroacutepolis Referia-me ao Conselheiro Aires Tratando-se agora de imprimir o Memorial achou-se que a parte relativa a uns dous anos (1888-1889) se for decotada de algumas circunstacircncias anedotas descriccedilotildees e reflexotildees pode dar uma narraccedilatildeo seguida que talvez interesse apesar da forma de diaacuterio que tem Natildeo houve pachorra de a redigir agrave maneira daquela outra ndash nem pachorra nem habilidade Vai como estava mas desbastada e estreita conservando soacute o que liga o mesmo assunto O resto apareceraacute um dia se aparecer algum dia (ASSIS 2009 p 51)

Diante disso parece-nos razoaacutevel afirmar que a disparidade entre as referecircncias ao mundo claacutessico

encontradas em Esauacute e Jacoacute e Memorial de Aires tenha sido uma operaccedilatildeo consciente do autor empiacuterico que

buscou atribuir aos romances o jogo intertextual mais adequado ao contexto de cada um a narrativa

preparada por Aires para a publicaccedilatildeo possui maior abundacircncia de alusotildees do que o diaacuterio pretensamente

iacutentimo do conselheiro A preacute-suposiccedilatildeo expliacutecita de um leitor traz para o texto uma aposta maior no jogo

intertextual e a proacutepria discrepacircncia entre a quantidade de referecircncias ao mundo claacutessico dos dois romances

pode ser compreendida como um jogo empreendido pelo autor empiacuterico

[210]

Entretanto este trabalho concentrar-se-aacute nas referecircncias do romance Esauacute e Jacoacute elegendo aquelas que

oferecem mais frutos para uma anaacutelise da obra que tenha como princiacutepio os estudos recentes sobre a

recepccedilatildeo do claacutessico (evitando portanto a mera constataccedilatildeo da existecircncia de uma alusatildeo citaccedilatildeo ou

referecircncia ao mundo claacutessico no romance) Ainda na jaacute referida ldquoAdvertecircnciardquo de Esauacute e Jacoacute uma explicaccedilatildeo

sobre a escolha do tiacutetulo eacute apresentada ldquoQuanto ao tiacutetulo foram lembrados vaacuterios em que o assunto se

pudesse resumir Ab ovo por exemplo apesar do latim venceu poreacutem a ideia de dar estes dois nomes que o

proacuteprio Aires citou uma vez ESAUacute E JACOacuterdquo

A expressatildeo Ab ovo foi utilizada por Horaacutecio na Arte Poeacutetica em uma exposiccedilatildeo sobre o estilo mais adequado

para uma narrativa

Non fumum ex fulgore sed ex fumo dare lucem cogitat ut speciosa dehinc miracula promat Antiphaten Scyllamque et cum Cyclope Charybdim Nec reditum Diomedis ab interitu Meleagri nec gemino bellum Troianum orditur ab ouo semper ad euentum festinat et in medias res non secus ac notas auditorem rapit et quae desperat tractata nitescere posse relinquit atque ita mentitur sic ueris falsa remiscet primo ne medium medio ne discrepet imum (Hor Ars P 143-152) Que natildeo tira fumo das luzes mas lume do fumo para daiacute mostrar o espetaacuteculo pleno em prodiacutegios seja Antiacutefates Cila e Cariacutebdis junto ao Ciclope Nem inicia em morrer de Meleagro ao voltar Diomedes nem de um ovo gecircmeo comeccedila a guerra de Troia mas vai sempre direto ao assunto e no meio das coisas como se jaacute conhecidas pega o ouvinte e aquilo sem esperanccedila de brilho no trato deixa de lado eacute assim que ele mente mistura verdade no falso sem que do iniacutecio destoe o meio e do meio o arremate (Trad de Guilherme Gontijo Flores)9

Segundo a recomendaccedilatildeo de Horaacutecio eacute desnecessaacuterio que as narrativas tenham sempre como iniacutecio as

origens que engendraram um enredo a histoacuteria da guerra de Troia natildeo precisa ser contada a partir do

nascimento de Helena A guerra pode ser narrada in medias res ou seja comeccedilando pelo meio da histoacuteria

como de fato ocorre na Iliacuteada Entretanto o conselheiro Aires iniciaraacute sua narraccedilatildeo ab ovo contando a

histoacuteria dos irmatildeos Pedro e Paulo desde a gestaccedilatildeo

A referecircncia agrave Arte Poeacutetica natildeo aproveita apenas o conceito de narrativa Ab ovo ndash a que narra desde as

origens ndash mas tambeacutem o mito do nascimento de Helena Leda transformada em gansa potildee dois ovos de

onde nascem os gecircmeos Helena e Poacutelux filhos de Zeus em um ovo e Clitemnestra e Castor filhos de Tiacutendaro

em outro A referecircncia aos ovos gecircmeos (geminum ovum segundo a designaccedilatildeo de Horaacutecio no verso 7) que

9 Gostariacuteamos aqui de agradecer ao Dr Guilherme Gontijo Flores que gentilmente nos ofereceu a sua traduccedilatildeo antes mesmo de publicaacute-la

[211]

originaram dois pares de irmatildeos gecircmeos eacute ainda mais rica se pensarmos que Castor e Poacutelux constituem na

Antiguidade exemplo de amor fraterno tendo sido transformados na constelaccedilatildeo de Gecircmeos Entretanto o

tiacutetulo escolhido para o romance eacute Esauacute e Jacoacute tambeacutem uma referecircncia biacuteblica de briga e desentendimento

entre irmatildeos Esauacute e Jacoacute portanto oferecem um modelo muito distinto de fraternidade daquele

proporcionado por Castor e Poacutelux

Eacute possiacutevel sugerir que Machado de Assis ao recorrer ao conceito Ab ovo em um contexto de nascimento de

gecircmeos aproveita natildeo soacute a ideia de que sua narrativa teria iniacutecio nas origens das vidas de seus protagonistas

A possibilidade de narrar a histoacuteria da guerra de Troia desde o nascimento da mulher que gerou o conflito

entre gregos e troianos soacute existe porque ab ovo Helena estava destinada a engendrar a guerra Da mesma

forma os gecircmeos Pedro e Paulo desde a gestaccedilatildeo estatildeo destinados ao conflito ab ovo repetem o exemplo

dos irmatildeos Esauacute e Jacoacute (muito diferente da histoacuteria de uniatildeo entre irmatildeos de Castor e Poacutelux) Logo apoacutes o

anuacutencio da escolha do tiacutetulo para o romance uma citaccedilatildeo direta de um verso da Divina Comeacutedia de Dante

Alighieri (2009 p 60) chama a atenccedilatildeo e reforccedila a nossa leitura ldquoDigo que quando a alma malfadadardquo10 O

narrador anuncia atraveacutes dessa epiacutegrafe que vai contar a histoacuteria de duas almas mal nascidas que brigaram

e se odiaram desde o uacutetero segundo a cabocla Baacuterbara A questatildeo colocada ab ovo e que atravessaraacute e

concluiraacute a histoacuteria de Esauacute e Jacoacute eacute o oacutedio reciacuteproco dos dois irmatildeos

O capiacutetulo CXXI intitulado como Uacuteltimo encerra o romance e traz em primeiro lugar a referecircncia a Castor

e Poacutelux A uniatildeo momentacircnea de Pedro e Paulo diante do juramento recente feito para a matildee no leito de

morte rende aos irmatildeos a alcunha dos gecircmeos filhos de Leda Entretanto apesar da conciliaccedilatildeo temporaacuteria

ldquoo olho dos amigos natildeo tardou em descobrir que natildeo viviam bem pouco depois que se detestavamrdquo (ASSIS

2018 p 206 grifos nossos) Diante do burburinho dos deputados impressionados com a mudanccedila dos

irmatildeos que antes pareciam tatildeo amigos o conselheiro Aires afirma que Pedro e Paulo ldquosatildeo os mesmosrdquo (ASSIS

2018 p 206) A conclusatildeo de que tivessem brigado pela heranccedila natildeo recebeu resposta do conselheiro (que

tinha teacutedio agrave controveacutersia e portanto preferiu evitar debate) mas este conclui em pensamento que ldquoeles

eram os mesmos desde o uacuteterordquo (ASSIS 2018 p 206 grifos nossos)

Assim a conclusatildeo do romance retoma e reforccedila o conceito Ab ovo que o autor apontou antes mesmo de

anunciar a epiacutegrafe a aversatildeo reciacuteproca entre Pedro e Paulo era ldquopersistente no sangue como necessidade

virtualrdquo (ASSIS 2018 p 206) A visatildeo da profetisa Baacuterbara dessa briga fraternal reforccedila a nossa leitura No

primeiro capiacutetulo do romance intitulado Coisas futuras o autor sugere a releitura das Eumecircnides de Eacutesquilo

Relecirc Eacutesquilo meu amigo relecirc as Eumecircnides laacute veraacutes Piacutetia chamando os que iam agrave consulta ldquoSe haacute aqui Helenos venham aproximem-se segundo o uso na ordem marcada pela

10 ldquoDico che quando lrsquoanima mal natardquo (Trad de Italo Eugenio Mauro)

[212]

sorterdquo[] A sorte outrora a numeraccedilatildeo agora tudo eacute que a verdade se ajuste agrave prioridade e ningueacutem perca a sua vez de audiecircncia (ASSIS 2018 p 54-55)

No trecho acima o narrador refere-se agrave visita de Natividade e Perpeacutetua ao morro do Castelo onde morava

a cabocla Baacuterbara que conforme se dizia poderia prever o futuro A pequena cabocla eacute comparada agrave Piacutetia

sacerdotisa do templo de Apolo que previa sinas e destinos A alusatildeo ao antigo oraacuteculo justifica a consulta agrave

cabocla segundo o narrador um costume ldquovelho e velhiacutessimordquo (ASSIS 2018 p 54) Ao longo da obra muitas

outras referecircncias aos oraacuteculos antigos satildeo feitas e a cabocla do castelo eacute constantemente comparada com

sibilas e Piacutetia

As Eumecircnides encerram a trilogia de Eacutesquilo conhecida como Oresteia Orestes eacute levado a julgamento contra

as Fuacuterias que reclamam o seu direito de vingar os crimes cometidos entre consanguiacuteneos Orestes eacute

perseguido por elas apoacutes assassinar a sua proacutepria matildee Clitemnestra e Egisto para vingar o homiciacutedio de seu

pai Agamecircmnon O ambiente em que se desenvolve a Oresteia eacute marcado pela maldiccedilatildeo de Miacutertilo contra

Peacutelops e toda a sua descendecircncia Peacutelops eacute pai de Atreu e Tiestes que protagonizam um dos mais terriacuteveis

incidentes de crimes consanguiacuteneos da mitologia grega Atreu ao descobrir que sua esposa o traiacutea com seu

irmatildeo Tiestes o expulsa de Argos Tempos depois simula uma reconciliaccedilatildeo e faz com que Tiestes coma as

carnes de seus proacuteprios filhos em um banquete repetindo em alguma medida o exemplo de seu avocirc Tacircntalo

que servira aos deuses a carne de seu filho Peacutelops cuja vida foi restituiacuteda pelas divindades piedosas

A linhagem dos atridas marcada pela maldiccedilatildeo protagoniza diversas histoacuterias em que atridas fazem jorrar o

sangue de atridas Agamecircmnon imola Ifigecircnia para obter bons ventos em direccedilatildeo agrave Troia Clitemnestra torna-

se amante de Egisto ndash filho de Tiestes ndash e com ele assassina Agamecircmnon Orestes vinga o pai e tira a vida da

matildee e de Egisto tambeacutem seu consanguiacuteneo A Oresteia narra o assassinato de Agamecircmnon (Agamecircmnon) o

matriciacutedio vingativo de Orestes e o iniacutecio da perseguiccedilatildeo das Fuacuterias que desejam vinganccedila pela morte de

Clitemnestra (Coeacuteferas) e o julgamento seguido de absolviccedilatildeo de Orestes (Eumecircnides) Nas Eumecircnides

portanto a sucessatildeo de assassiacutenios entre os atridas tem fim com o julgamento de Orestes O ressentimento

das Fuacuterias diante da impossibilidade de vingar o matriciacutedio de Clitemnestra eacute aplacado por Atena que as

convence a renunciarem ao direito de vinganccedila e a assumirem uma nova funccedilatildeo As Fuacuterias transformam-se

em Eumecircnides natildeo mais deusas da vinganccedila e do sangue mas sim da beneficecircncia e do perdatildeo Destacamos

aqui o seguinte trecho do discurso persuasivo de Atena para convencer as Fuacuterias a aceitarem a absolviccedilatildeo

de Orestes

Tambeacutem espero que natildeo seja vosso intuito exacerbar como se os homens fossem galos a coacutelera no coraccedilatildeo dos cidadatildeos e neles instilar a sede de homiciacutedios

[213]

que lanccedila irmatildeos insanamente contra irmatildeos ateacute levaacute-los ao extermiacutenio reciacuteproco deixai que eles preservem sua valentia para lutar contra inimigos estrangeiros sempre ao alcance de quem traz no coraccedilatildeo um desejo febril de gloacuteria verdadeira mas natildeo queremos ter notiacutecia em tempo algum de paacutessaros lutando na mesma gaiola (Aesch Eum 1138-1149 Trad Maacuterio da Gama Kury)

Ao reler as Eumecircnides portanto o leitor natildeo apenas encontraraacute Piacutetia cuja fala Machado de Assis traz para o

seu romance mas tambeacutem uma trama cujo eixo principal eacute justamente aquilo que Atena natildeo mais deseja

ouvir em notiacutecias irmatildeos insanamente contra irmatildeos paacutessaros lutando na mesma gaiola As receacutem-tornadas

Eumecircnides confirmam os anseios da deusa

Jamais possa a discoacuterdia insaciaacutevel vociferar possessa na cidade e o poacute da terra nunca mais absorva o sangue escuro de seus proacuteprios filhos por causa de paixotildees inspiradoras de lutas fratricidas oriundas da acircnsia irresistiacutevel de vinganccedila que leva os homens agrave destruiccedilatildeo (Aesch Eum 1283-1290 Trad Maacuterio da Gama Kury)

As deusas beneacutevolas reiteram o temor das lutas fratricidas que levam os homens agrave destruiccedilatildeo Podemos

supor portanto que Machado de Assis natildeo queria que viacutessemos apenas Piacutetia e a fila de helenos aguardando

suas prediccedilotildees segundo os usos da sorte mas tambeacutem a maldiccedilatildeo dos atridas que levou Atreu e Tiestes a

disputarem Micenas de forma violenta e cruel Em alguma medida a disputa entre irmatildeos que marca a

maldiccedilatildeo dos atridas encontra eco em muitas histoacuterias biacuteblicas Caim e Abel Isaac e Ismael e Esauacute e Jacoacute

Machado de Assis representa em seu romance uma tensatildeo que atravessou as trageacutedias gregas e habita o

imaginaacuterio ocidental atraveacutes de todas as histoacuterias que nos constituem os conflitos entre consanguiacuteneos as

disputas entre irmatildeos os fratriciacutedios Natildeo por acaso os irmatildeos ganham os nomes dos apoacutestolos Pedro e

Paulo que protagonizam um conflito em Antioquia registrado no Novo Testamento (Gl 2 11-16) As

desavenccedilas entre os gecircmeos Pedro e Paulo encarnam ainda o embate poliacutetico de um tempo vivido por

Machado de Assis o conflito entre a monarquia e a repuacuteblica Consolidada a Repuacuteblica os gecircmeos tornam-

se deputados mas permanecem dissidentes poliacuteticos Esse conflito que atravessa o livro e perdura no uacuteltimo

capiacutetulo fora identificado pela primeira vez pela ldquoPiacutetia do Norterdquo (ASSIS 2018 p 262) a cabocla Baacuterbara

Assim Esauacute e Jacoacute repetindo o uso de muitas das antigas trageacutedias demonstra que as palavras do oraacuteculo se

cumprem natildeo importando quais tenham sido os esforccedilos dos heroacuteis e heroiacutenas para fugir do Destino

Percebemos portanto que as referecircncias claacutessicas de Esauacute e Jacoacute aqui analisadas produzem sentidos

significativos para a construccedilatildeo do romance

[214]

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Mulheres Travestidas do Parlamento de Aristoacutefanes ao Sertatildeo das Gerais de Rosa

Edinaura Linhares Ferreira Lima

edinaura01gmailcom

Neste artigo visamos discutir o processo de travestimento de

personagens masculinas em femininas em duas obras que apesar

de cronologicamente distantes possuem questotildees que mantecircm um

diaacutelogo intertextual e se cruzam em tempos diversos com

questionamentos humanos pertencentes a diferentes eacutepocas mas

que refletem os mecanismos de poder pertinentes ao ser humano

Nesse contexto o comedioacutegrafo grego Aristoacutefanes com sua peccedila

As mulheres no parlamento (393-392 aC) apresenta diaacutelogos que se

cruzam com a obra Grande Sertatildeo Veredas (1956) do escritor

brasileiro Joatildeo Guimaratildees Rosa

Decerto precisa-se entender um pouco do contexto no qual viveu

o comedioacutegrafo Aristoacutefanes isto eacute a Atenas do seacuteculo V aC Sabe-

se que nesse periacuteodo histoacuterico o teatro tinha um papel importante

na vida dos gregos e por esse motivo o poeta participou de

concursos de peccedilas teatrais Aristoacutefanes participou de vaacuterios

concursos entretanto essas competiccedilotildees eram incentivadas no

governo do tirano Pisiacutestrato como um subterfuacutegio para continuar e

se manter no poder e o estratagema foi usar as artes para a

manipulaccedilatildeo das camadas populares Aleacutem da arte ele tambeacutem

usou da religiatildeo e do culto de adoraccedilatildeo das massas aos deuses para

conseguir prestiacutegio popular e fazer com que as famiacutelias

aristocraacuteticas perdessem influecircncia diante dos mais pobres ldquo[]

afirmou-se que o grande desenvolvimento das festas religiosas e o

[216]

interesse pelas artes traccedilo caracteriacutestico dos tiranos gregos brotavam apenas do desiacutegnio de afastar da

poliacutetica as massas inquietas e distraiacute-las sem perigordquo (JAEGER 2013 p 278)

Desse modo diante de um contexto poliacutetico de falso interesse pelas artes e pela religiatildeo estas que foram

usadas para desviar a atenccedilatildeo da populaccedilatildeo da poliacutetica surgiram alguns comedioacutegrafos sendo Aristoacutefanes

um deles Estima-se que ele tenha escrito em torno de quarenta peccedilas durante sua vida O poeta chegou ateacute

a ganhar alguns dos concursos mas infelizmente poucas de suas peccedilas permaneceram e chegaram ateacute a

contemporaneidade pois muitas se perderam e de outras restaram apenas fragmentos ficando desse modo

onze peccedilas como As Nuvens As Vespas Lisiacutestrata As ratildes As mulheres no parlamento Os paacutessaros As

Tesmofariantes Os acarnienses Os Cavaleiros A paz As aves

Segundo Jaeger (2013 p 278)

Nenhuma exposiccedilatildeo da cultura do uacuteltimo terccedilo do Seacuteculo V pode passar por cima de um fenocircmeno para noacutes tatildeo estranho quanto atraente a comeacutedia aacutetica Eacute certo que os antigos a denominaram ldquoespelho da vidardquo nela se pensavam na natureza humana sempre igual e nas suas fraquezas

Aleacutem disso eacute importante ressaltar que o teatro representava uma determinada realidade cheia de conflitos

que no caso das comeacutedias ainda continuam sendo vaacutelidas O teatro grego representava a vida do cotidiano

grego junto ao contexto religioso isto eacute trata-se de segundo Vernant (2006 p 79-80) ldquo[] o jogo e a festa

a mascarada e o disfarce a experiecircncia de um desterro em relaccedilatildeo ao curso de norma das coisas enfim

fundar o teatro em que no palco a ilusatildeo ganha corpo e se anima e o fictiacutecio se mostra como se fosse

realidaderdquo

Desse modo o teatro estava no acircmbito religioso como uma forma de culto ao deus Dioniacutesio ocasiatildeo em que

havia a encenaccedilatildeo de peccedilas para os cidadatildeos gregos com um concurso de representaccedilotildees a serem exibidas

no festival de teatro Para um poeta da eacutepoca era um grande prestiacutegio ganhar o festival nas Dionisiacuteas pois

ldquoas trageacutedias e comeacutedias antes exibidas diante de incontaacuteveis multidotildees no vasto teatro ao ar livre eram

feitas para impressionar os estrangeiros com riqueza espiacuterito puacuteblico e supremacia artiacutestica de Atenasrdquo

(HAIGH 1907 p 8 traduccedilatildeo nossa)

Por isso precisa-se perceber que os comedioacutegrafos desse periacuteodo histoacuterico passaram a refletir sobre sua

democracia sobre a realidade que os cercava como cidadatildeos e sobre os problemas que poderiam refletir em

sua comunidade

A comeacutedia visa as realidades do seu tempo mais do que qualquer arte Por mais que isso a vincule a uma realidade temporal e histoacuterica eacute importante natildeo perder de vista que o propoacutesito fundamental eacute apresentar aleacutem da efemeridade das suas representaccedilotildees certos aspectos eternos do Homem que escapam agrave elevaccedilatildeo poeacutetica da epopeia e da trageacutedia (JAEGER 2013 p 415)

[217]

Para isso o comedioacutegrafo serviu-se do poder da palavra passando a usaacute-lo nas peccedilas como uma forma de

censurar essa sociedade A palavra construiria o discurso e ele era importante para persuadir as pessoas

Desse modo o poeta coacutemico colocou na performance do ator e na oratoacuteria advinda de seus textos uma

maneira de natildeo somente persuadir mas de provocar o riso ao mesmo tempo em que criticava os problemas

pouco discutidos e ignorados pela maioria do povo grego As peccedilas de teatro ldquocoincidem com o triunfo da

democracia a hegemonia de Atenas o nascimento da histoacuteria e a estatutaacuteria de Fiacutedias Eacute o seacutec V o seacuteculo de

Peacutericles o seacuteculo claacutessicordquo (BARTHES 1990 p 61)

Durante muito tempo a comeacutedia natildeo foi tatildeo estudada porque trata de assuntos constrangedores

escandalizadores que causam o risiacutevel no puacuteblico por ridicularizarem as pessoas e principalmente

debocharem de uma parte da populaccedilatildeo Segundo Jaeger (2013 p 415) ldquoa origem da comeacutedia se encontra

no incoerciacutevel impulso das naturezas mais comuns poderiacuteamos ateacute dizer na tendecircncia popular realista

observadora e criacutetica que escolhe como predileccedilatildeo imitar o que eacute mau censuraacutevel indignordquo

Desse modo na peccedila As mulheres no parlamento Aristoacutefanes mostra-nos por meio de um grupo de mulheres

que querem tomar o poder por meio da apropriaccedilatildeo poliacutetica a imitaccedilatildeo do discurso ou da retoacuterica masculina

isto eacute mediante a palavra o convencimento a incitaccedilatildeo do puacuteblico que estava na assembleia Aleacutem disso as

mulheres pegam as roupas dos maridos durante agrave noite colocam barbas falsas esforccedilam-se para andar e

falar como homens e datildeo um jeito de sair de casa durante alguns dias para tomarem sol e natildeo parecerem tatildeo

brancas jaacute que as mulheres gregas tomavam pouco sol pois natildeo saiacuteam da casa com frequecircncia Assim o plano

de tomada do poder seria concretizado na Assembleia um local puacuteblico proacuteprio dos homens gregos do qual

a mulher grega ateniense natildeo participava pois aquele local de fala era dado somente ao cidadatildeo grego

Aleacutem disso a personagem Praxaacutegora e as outras mulheres ficam insatisfeitas com o governo estabelecido

pelos homens gregos tambeacutem se encontram fartas da maacute administraccedilatildeo puacuteblica corrupta por meio da qual

se estabelecia a grande desigualdade social entre a aristocracia e o povo e entatildeo elas se irritam com o ganho

advindo de interesses particulares e natildeo coletivos Por isso a personagem convoca todas as mulheres

esposas de gregos para insuflarem o ambiente da assembleia com o discurso de tomada de poder sendo este

passado para as mulheres que saberiam administraacute-lo melhor

Ademais Praxaacutegora justifica os motivos que levariam as mulheres a exercerem um governo bem melhor do

que o dos homens Ela discursa mostrando os problemas existentes na sociedade grega acerca das mulheres

e a maneira conservadora de que as viviam dentro da sociedade ateniense elas cuidariam do governo da

mesma maneira cuidadosa que administram suas casas por serem mais conservadoras do que os homens

elas fariam tudo da mesma maneira que sempre fizeram poupariam a vida dos jovens pois por serem matildees

natildeo gostariam que seus filhos participassem de guerras e nem que eles morressem acabariam com os

[218]

conflitos e lutas entre os gregos Decerto elas saberiam lidar melhor com o dinheiro puacuteblico dividiriam de

modo mais igualitaacuterio e natildeo seriam enganadas jaacute que elas mesmas cuidariam da despesa e organizaccedilatildeo de

seus lares Eram aleacutem disso haacutebeis em enganar seus maridos cotidianamente

Apesar do discurso eloquente da assembleia e da tomada do poder questiona-se os detalhes dessa

administraccedilatildeo puacuteblica como funcionaria esse novo governo Assim eacute explicado que tudo seria repartido

todos deveriam entregar suas posses individuais e materiais todos os dias haveria um jantar coletivo para

todas as pessoas e a comida seria repartida de forma igualitaacuteria os filhos seriam do grupo natildeo haveria um

pai em particular apenas saberiam quem eacute a matildee isso o que colaboraria para que cada jovem tratasse os

mais velhos de forma justa pois qualquer um poderia ser seu pai Todos teriam relaccedilatildeo sexual com quem

quisessem tendo os velhos e as velhas e os feios e as feias prioridade na escolha dos parceiros mais jovens e

bonitos e em terem saciadas os seus desejos sexuais Em suma haveria a busca por uma sociedade mais

igualitaacuteria para todos mas ainda se apresentava resistecircncia de alguns contra o novo governo pois estes

estavam acostumados a terem privileacutegios individuais e a roubarem do povo Apesar de a peccedila ser irreal para

a eacutepoca a mulher ateniense casada com o cidadatildeo grego ateniense foi colocada como foco em uma lideranccedila

da poacutelis (πόλις)

Sob um ponto de vista similar agrave peccedila As mulheres no parlamento na obra Grande Sertatildeo Veredas do escritor

Joatildeo Guimaratildees Rosa aborda-se o travestimento feminino atraveacutes da personagem Diadorim que eacute uma

mulher travestida de homem O seu intuito era viver como um jagunccedilo dos sertotildees das Gerais seguindo seu

pai Joca Ramiro que era o maior liacuteder de um grupo de jagunccedilo dessa regiatildeo

A palavra ldquojagunccedilordquo e a instituiccedilatildeo da jagunccedilagem revestem-se assim de importacircncia estrateacutegica para se compreender o fenocircmeno da violecircncia e do crime no Brasil Ao retratar o paiacutes sob o acircngulo da jagunccedilagem Guimaratildees Rosa traz agrave tona o componente da violecircncia que estaacute na origem de todo poder constituiacutedo (BOLLE 2004 p 91-92)

Sem duacutevidas houveram inuacutemeros contextos para a criaccedilatildeo dos heroacuteis em Grande sertatildeo Veredas Diadorim eacute

jagunccedilo masculino valente desbravador destemido Diadorim eacute a proacutepria dualidade do ser partindo de

seus vaacuterios nomes e significados existentes ao longo da narrativa Primeiro em sua adolescecircncia eacute

apresentado ao leitor como Reinaldo que significa rei ou aquele que governa segundo conselhos Anos

depois quando jaacute homem eacute lhe dado o nome Diadorim que sendo esmiuccedilado abriga segmentos como Diaacute

que remete semanticamente ao Diabo a dea a Deus ao dia em suas conotaccedilotildees de tempo luz dor durar e

por fim ao uacuteltimo de todos os nomes Maria Deodorina da Feacute Bettancourt Marins

Os traccedilos baacutesicos da personagem mantecircm sempre uma mesma configuraccedilatildeo privilegiadora de algumas aacutereas da personalidade Sua posiccedilatildeo eacute numinosa na seacuterie filial como primogecircnita ou unigecircnita [] o pai natildeo tem filhos homens adultos ou natildeo os tem de todo Ela corta os cabelos enverga trajes masculinos abdica das fraquezas femininas - faceirice esquivanccedila sustos - cinge os seios e as ancas trata seus ferimentos em segredo assim como se banha

[219]

escondido Costuma ser descoberta quando ferida o corpo eacute desvendado guerreia morre (GALVAtildeO 1998 p 12)

Dessa maneira Diadorim natildeo eacute incrustado somente no romance Grande sertatildeo Veredas mas refaz-se

historicamente no Brasil no indiviacuteduo que habita o sertatildeo no homem que foi menosprezado pelos poderosos

da eacutepoca mas que mostrou que o sertanejo queria seu lugar de direito no sertatildeo Mesmo que fosse por meio

da forccedila da arma era assim que o homem sertanejo lidava matava e morria na base da faca e do fazer sangrar

do modo como fizeram Diadorim e seu inimigo Hermoacutegenes Esfaquearam-se e sangraram ateacute a morte de

ambos morrendo Diadorim com bravura e honra e cumprindo sua vinganccedila contra a morte de seu pai

Sangue Cortavam toucinho debaixo de couro humano esfaqueavam carnes Vi camisa de baetilha e vi as costas de homem remando no caminho para o chatildeo como corpo de porco sapecado e rapado [] Ao ferreio as facas vermelhas no embrulhaacutevel A faca a faca eles se cortaram ateacute os suspensoacuterios O diabo na rua no meio do redemunho Assim ah ndash mirei e vi ndash o claro claramente ai Diadorim cravar e sangrar o HermoacutegenesAh cravou ndash no vatildeo ndash e ressurtiu o alto esguicho de sangue porfiou para bem matar (ROSA 1994 p 855)

Decerto para apresentar o heroacutei Diadorim eacute necessaacuterio tambeacutem mostrar um dos contextos de criaccedilatildeo da

obra jaacute que eacute propagado o conhecimento que Rosa tinha do Brasil o autor era um homem que observava e

transmutava o paiacutes em suas obras o que tambeacutem fez em Grande Sertatildeo Veredas O criacutetico Antocircnio Cacircndido

(2002 p 122) jaacute mostrava em seu ensaio O homem dos avessos a enorme inspiraccedilatildeo que o escritor buscava

no povo brasileiro e na observaccedilatildeo documentaacuteria refletida em suas obras

a experiecircncia documentaacuteria de Guimaratildees Rosa a observaccedilatildeo da vida sertaneja a paixatildeo pela coisa e pelo nome da coisa a capacidade de entrar na psicologia do ruacutestico - tudo se transformou em significado universal graccedilas agrave invenccedilatildeo que subtrai a matriz regional para fazecirc-lo exprimir os grandes lugares comuns sem as quais a arte natildeo sobrevive dor juacutebilo oacutedio amor morte - para cuja oacuterbita nos arrasta a cada instante mostrando que o pitoresco eacute acessoacuterio e que na verdade o sertatildeo eacute o mundo

Com o intuito de adentrar na subjetividade da vida sertaneja Rosa colocou heroacuteis diferentes em seu

romance que natildeo habitavam espaccedilos urbanos e movimentados das grandes metroacutepoles mas nos apresentou

heroacuteis do sertatildeo que falavam viviam e mostravam um povo pouco conhecido do resto do Brasil Assim

tambeacutem jaacute salientava o tambeacutem escritor brasileiro Euclides da Cunha (1982 p 91) em sua obra Os Sertotildees

O sertanejo eacute antes de tudo um forte Natildeo tem o raquitismo exaustivo dos mesticcedilos neurastecircnicos do litoral [] Agrava-o a postura normalmente abatida num manifestar de displicecircncia que lhe daacute um caraacuteter de humildade deprimente [] Entretanto toda esta aparecircncia de cansaccedilo ilude [] Basta o aparecimento de qualquer incidente exigindo-lhe o desencadear das energias adormidas O homem transfigura-se [] e da figura vulgar do tabareacuteu canhestro reponta inesperadamente o aspecto dominador de um titatilde acobreado e potente num desdobramento surpreendente de forccedila e agilidade extraordinaacuterias

Indubitavelmente natildeo poderia ausentar-se a historicidade em suas narrativas Assim Rosa com o propoacutesito

de apresentar ao leitor o lugar comum de uma parcela excluiacuteda da sociedade retratou a figura de jagunccedilo ou

de cangaceiro Para Facoacute (1991) natildeo havia distinccedilatildeo entre os dois ambos representavam o sertanejo

[220]

valente tatildeo bem descrito no romance de Rosa este que criticou em seu livro e descreveu com minuacutecias o

contexto de violecircncia marginalidade e opressatildeo pelas quais passava o sertanejo

O Cangaccedilo fenocircmeno que reverberou no sertatildeo brasileiro na deacutecada de 30 foi uma resposta ao menosprezo

da elite dominante da figura do sertanejo pobre miseraacutevel castigado com a seca no sertatildeo Nordestino

desprovido de riquezas uma figura simploacuteria e cansada das injusticcedilas sociais Foi com a revolta dos

sertanejos que os jagunccedilos se fincaram no Nordeste revoltaram-se e pegaram em armas surgindo os

temidos cangaceiros

[] o presidente [] vangloriava-se de ter eliminado o cangaceirismo em todo o Cearaacute Perseguira-o eacute verdade prendera centenas de sertanejos insubmissos matara muitos destroccedilara grupos inteiros Mas a base fundamental a matriz do cangaceiro e do jagunccedilo permanecia intocada o monopoacutelio da terra onde o trabalhador vivia com o um semi-servo O latifuacutendio produzia o mal e o alimentava Provocava a miseacuteria entre os despossuiacutedos em cujo seio nasciam os bandoleiros que se voltavam contra o latifuacutendio ainda que de maneira inconsciente Mas a forccedila deste era tatildeo grande ainda que conseguia corrompecirc-los desviaacute-los do seu caminho de rebeliatildeo contra a ordem dominante e colocaacute-los a seu serviccedilo aliciando-os com os jagunccedilos para sua proacutepria defesa [] Eacute o capanga ou jagunccedilo na fazenda de um grande proprietaacuterio Os proacuteprios bandos autocircnomos se vecircem enredados nas malhas do latifundiaacuterio Para fugir agraves perseguiccedilotildees da poliacutecia ocultam-se [] numa grande fazenda abrigo em geral inviolaacutevel (FACOacute 1991 p 173)

Entatildeo do humilde e aparente subserviente homem que tirava o chapeacuteu de palha na presenccedila de pessoas

importantes desse homem sertanejo e nordestino surgiram os cangaceiros insubmissos Haacute ldquoa formaccedilatildeo de

grupos de cangaceiros que lutam de armas nas matildeos assaltando fazendas saqueando comboios e armazeacutens

de viacuteveres nas proacuteprias cidades e vilasrdquo (FACOacute 1991 p 34)

Decerto o jagunccedilo foi instituiacutedo em um contexto patriarcal e conservador Esses homens trabalhavam para

fazendeiros e poliacuteticos sendo em alguns momentos vistos como ladrotildees em outros como heroacuteis Eles

tinham no meio de outros sertanejos o seu lugar que tinha um papel masculino definido Assim Rosa

retratou em sua obra a sociedade patriarcal existente no Sertatildeo na deacutecada de 50 A sociedade retratada nos

sertotildees das Gerais era similar agrave do sertatildeo Nordestino

O nordestino eacute definido como um homem que se situa na contramatildeo do mundo moderno que rejeita suas superficialidades sua vida delicada artificial histeacuterica Um homem de costumes conservadores ruacutesticos aacutesperos masculinos O nordestino eacute definido como um macho capaz de resgatar aquele patriarcalismo em crise um ser viril capaz de retirar sua regiatildeo da situaccedilatildeo de passividade e subserviecircncia em que se encontrava (ALBUQUERQUE JUacuteNIOR 2013 p 150)

Dessa maneira Rosa criou seus jagunccedilos agrave moda dos bravos homens jaacute existentes na Caatinga brasileira Os

chamados cangaceiros foram comuns no Sertatildeo Nordestino e assim como os jagunccedilos dos sertotildees das

Gerais eram homens regidos por leis proacuteprias Em sua grande maioria eram homens viris que adentraram a

Caatinga na deacutecada de 30

[221]

Os maiores cangaceiros entendidos estes como os chefes de grupo de maior expressatildeo gostavam da vida do cangaccedilo Num sertatildeo profundamente conturbado pelas disputas entre chefes poliacuteticos lutas de famiacutelias ausecircncia de manifestaccedilotildees riacutegidas e eficazes de um poder puacuteblico longinquamente litoracircneo sertatildeo povoado por um tipo especial de homem individualista sobranceiro autocircnomo desacostumado a prestar contas de seus atos [] A figura do cangaceiro homem sem patratildeo vivendo das armas infenso a curvaturas era razoavelmente bem aceita naquele meio (MELLO 2004 p 116-117)

Assim os jagunccedilos de Rosa assemelhavam-se a tantos outros que existiram no paiacutes mas o personagem

Diadorim com seu travestimento tinha o intuito de criticar mostrando agrave sociedade que mesmo em uma

conjuntura patriarcal existem Diadorins seres androacutegenos ambiacuteguos que deixam agrave mostra aspectos da

sociedade brasileira natildeo visiacuteveis para a grande maioria dos brasileiros

A fumaccedila dos ticcedilotildees deu na cara de Diadorim ndash ldquoFumacinha eacute do lado ndash do delicadordquo [] Aquilo lufou De rempe tudo foi um atildeo e um catildeo mas o que havia de haver eu jaacute sabia Oap o assoprado de um refugatildeo e Diadorim estava de encontro no Fancho-Bode arrumou matildeo nele meteu um sopapo - um safano nas queixadas e uma sobarbada e calccedilou o peacute se fez em fuacuteria Deu com Fancho-Bode todo no chatildeo e jaacute se curvou encima e o punhal parou ponta diantinho da goela do dito bem encostado no gogoacute [] Diadorim mandou tambeacutem que Fancho se levantasse que puxasse tambeacutem da faca viesse melhor se desempenhar Mas o Fancho-Bode se riu amistoso []- ldquooxente Tu eacute manu velho patriacuteciordquo (ROSA 1994 p 219-220)

Conforme a personagem de Diadorim as mulheres gregas na peccedila As mulheres no Parlamento tambeacutem

utilizaram como subterfuacutegio o travestimento para que alcanccedilassem uma possiacutevel visibilidade e lideranccedila em

suas sociedades

Tanto na peccedila de Aristoacutefanes como no romance de Rosa as mulheres tinham seu lugar estabelecido Na

Greacutecia Antiga as funccedilotildees sociais da mulher eram a casa e os ritos religiosos Entatildeo os contextos de maior

permanecircncia das mulheres atenienses eram a famiacutelia o silecircncio o lar ou a casa (οἶκος) ou seja o seu lugar

era o privado natildeo lhes sendo possiacutevel andar nas ruas gregas desacompanhadas Segundo Ferraz Juacutenior

(1993 p 27) ldquoa palavra privado tinha o sentido deprivus de ser privado de daquele acircmbito em que o homem

submetido agraves necessidades da natureza buscava a sua utilidade no sentido de meios de sobrevivecircncia Nese

espaccedilo natildeo havia liberdaderdquo Por outro lado o lugar destinado ao homem era a poacutelis (πόλις) ao homem ao

puacuteblico ao cidadatildeo poliacutetico (πολίτικος) era permitido andar livremente pelas ruas atenienses

Tanto quanto em uma sociedade patriarcal agrave mulher era permitido o silecircncio tendo em vista que havia a

desconexatildeo com a famiacutelia no momento do casamento existindo uma ruptura completa entre a mulher e seus

laccedilos consanguiacuteneos Segundo Coulanges (1998 p 42) ldquoo casamento deu-lhe segundo nascimento

Doravante estaraacute colocada no lugar de filha de seu maridordquo

Assim a mulher ateniense era dada agrave famiacutelia do marido sendo deslocada do seu lugar de conviacutevio e afetos

com o qual natildeo teria mais contato A casa era a sede da famiacutelia e as relaccedilotildees familiares eram baseadas na

[222]

diferenccedila relaccedilatildeo de comando e de obediecircncia donde a ideia do pater famiacutelias do pai do senhor de sua

mulher seus filhos e seus escravos (FERRAZ JUacuteNIOR 1993 p 27) Isto eacute o pater famiacutelias era o homem que nas

sociedades antigas detinha para si o poder sobre o que houvesse de material escravo e feminino Segundo

Aristoacuteteles (Pol 1253b) apresentando uma definiccedilatildeo distinta e realista para o conceito o pater famiacutelias envolvia ldquoo

poder do senhorio [despotikecirc] sobre seus escravos marital [gamikecirc] o do marido sobre a mulher paternal [patrikecirc]

o do pai sobre os filhosrdquo

Na sociedade descrita pelo escritor Joatildeo Guimaratildees Rosa assim como na representada por Aristoacutefanes estaacute

enraizado o patriarcado contexto em que a mulher respeitada eacute a que habita os lares Para o leitor eacute colocada

claramente a visatildeo machista dos jagunccedilos no momento em que o heroacutei narra que as mulheres existem para a

satisfaccedilatildeo sexual do homem e que para poucas eacute dado um lar apenas agraves escolhidas para serem esposas

Aleacutem disso eacute colocado que natildeo existiam mulheres na vida de jagunccedilagem

[] Com natildeo terem mulher nenhuma laacute eles sacolejavam bestidades ndash ldquoSaindo por aiacuterdquo ndash dizia um ndash ldquoqualquer uma que seja natildeo me escapolerdquo Ao que contavam casos de mocinhas ensinadas por eles aproveitavelmente de seguida em horas safadas ndash ldquoMulher eacute gente tatildeo infelizrdquo ndash me disse Diadorim uma vez depois que tinha ouvido as estoacuterias (ROSA 1994 p 237)

Consoante o romance roseano o poder constituiacutedo pelos jagunccedilos brasileiros natildeo permitia que houvessem

mulheres lutando junto com os homens nas contendas e guerras que aconteciam nas lutas pelo poder

instituiacutedo dentro dos grupos de jagunccedilos Por esse motivo Diadorim ou Maria Diadorina apresentou-se

como homem para poder ser aceita e respeitada como um igual sendo de linhagem nobre e herdeira do

bando tendo tido como pai um liacuteder de um grande bando de jagunccedilos Assim era Diadorim uma mulher

escondida em meio a homens Segundo Galvatildeo (1998 p 12)

Essa personagem frequenta a literatura as civilizaccedilotildees as culturas a histoacuteria a mitologia Filha de pai sem concurso de matildee seu destino eacute assexuado natildeo pode ter amante nem filho Interrompe a cadeia das geraccedilotildees como se fosse um desvio de tronco central e a natureza a abandonasse por inviabilidade Sua potecircncia vital eacute voltada para traacutes para o pai natildeo tomaraacute outro homem Mulher maior de um lado acima da determinaccedilatildeo anatocircmica menor de outro suspensa do acesso agrave maturidade presa do laccedilo paterno mutilada nos muacuteltiplos papeacuteis que a natureza e sociedade lhe oferecem

Outro ponto em comum entre as obras eacute a grande oratoacuteria das personagens possuindo tanto Diadorim como

Praxaacutegoras o dom da oratoacuteria de convencer e incitar as outras personagens envolvidas Assim Diadorim

convence incita durante boa parte da trama do romance jaacute Praxaacutegoras faz incitaccedilatildeo agraves mulheres e depois

tenta convencer na Assembleia Segundo Ferreira (2010 p 15)

O termo persuadir origina-se de persuadere (per + suadere) Per como prefixo significa lsquode modo completorsquo Suadere equivale a lsquoaconselharrsquo [] Persuadir conteacutem em si o convencer (cum + vincere) [] Persuadir mover pelo coraccedilatildeo pela exploraccedilatildeo do lado emocional (as paixotildees) [] Convencer mover pela razatildeo pela exposiccedilatildeo de provas loacutegicas []

[223]

Sob o mesmo ponto de vista a peccedila As mulheres no parlamento e o livro Grande Sertatildeo Veredas trazem

reflexotildees sobre as accedilotildees do homem e o poder destinado ao masculino e a necessidade de travestimento do

feminino para conseguir ter vez e voz dentro de sociedades patriarcais As personagens criadas por

Aristoacutefanes e por Rosa fizeram-se ouvir mesmo que por meio de um estratagema Assim as mulheres usaram

de ardis para contornarem os mecanismos de poder presentes em suas sociedades

Portanto os escritores nos deixaram como legado o ensinamento de que a mulher pode participar de

determinados segmentos da sociedade aos quais anteriormente era vetado o puacuteblico feminino mostrando

ainda os autores que independentemente do tempo transcorrido entre as obras as mulheres devem

continuar a infringir as normas estabelecidas pelo patriarcado e que no final de suas trajetoacuterias elas podem

tomar para si um lugar que lhes eacute de direito retomando a voz em contextos prioritariamente masculinos

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ROSA J G Grande Sertatildeo Veredas Rio de Janeiro Nova Aguillar 1994

Cantaacuteteis de Chico Ceacutesar a poesia nordestina com um peacute na elegia latina

Sonia Aparecida dos Santos

ssantoscpsgmailcom

O presente trabalho foi realizado com

apoio do Conselho Nacional de

Desenvolvimento Cientiacutefico e Tecnoloacutegico

(CNPq)

Em um dos versos de Possessatildeo do ontem Jorge Luiacutes Borges afirma

que ldquotodo poema eacute com o tempo uma elegiardquo Eacute nessa concepccedilatildeo

lato sensu que muitas vezes modernamente se entende o gecircnero

que em sua origem era definido sobretudo por uma questatildeo

formal a presenccedila de diacutesticos formados por hexacircmetros e

pentacircmetros sucessivamente modelo que teve como uacuteltimo

representante em Roma o poeta Oviacutedio Apesar disso eacute fato que a

elegia atravessou o tempo e o espaccedilo e foi se transformando

reinventando-se e perpassou praticamente toda a produccedilatildeo liacuterica

ocidental chegando aos nossos dias Levando em conta essa

questatildeo o presente estudo se dedica agrave anaacutelise de alguns poemas

que compotildeem o livro Cantaacuteteis Cantos elegiacuteacos de amozade do

poeta e compositor paraibano Chico Cesar Em nossa anaacutelise

buscaremos perceber de que modo aspectos da elegia amorosa

romana sobretudo a ovidiana satildeo retomados e remodelados na

obra moderna atraveacutes de alusotildees agrave obra Amores

[225]

Introduccedilatildeo

ldquoTodo poema com o tempo eacute uma elegiardquo o verso de Jorge Luiacutes Borges presente no poema ldquoPossessatildeo do

ontemrdquo1 remete a uma concepccedilatildeo comumente utilizada acerca da definiccedilatildeo da esteacutetica elegiacuteaca isto eacute como

produccedilatildeo cuja temaacutetica se refere a assuntos lamentosos de ausecircncia luto e desengano

Sabemos que na Greacutecia do seacuteculo VII aC poreacutem a poesia elegiacuteaca natildeo se assentava sobre este ou aquele

tema quer de lamento ou natildeo mas versava sobre os mais diversos assuntos Aleacutem disso seu criteacuterio de

definiccedilatildeo era o meacutetrico sua forma tiacutepica era o diacutestico elegiacuteaco formado pela uniatildeo de um hexacircmetro seguido

de um pentacircmetro ambos de base datiacutelica2

Em Roma eacute notoacuterio que aleacutem de Corneacutelio Galo (aprox 69 aC ndash 26 aC) considerado o primeiro elegiacuteaco

romano e de Catulo (aprox 87-57 ou 54 aC) terem produzido elegias eacute uma triacuteade de poetas do periacuteodo

augustano Tibulo (aprox 60-19 a C) Propeacutercio (aprox 50-16 a C) e Oviacutedio (43 a C-17 d C) que

desenvolve a mais consistente produccedilatildeo desse tipo poeacutetico Tais autores foram aleacutem dos antecessores em

quem se inspiraram consolidando a elegia como um gecircnero literaacuterio propriamente dito dotando-a de uma

consistecircncia temaacutetica o que levou ao nascimento da elegia eroacutetica

Puacuteblio Oviacutedio Nasatildeo tido como o uacuteltimo dos elegiacuteacos augustanos deixa claro natildeo ter o viacutecio da modeacutestia

aleacutem de manifestar a certeza da proacutepria fama em seus epiacutelogos como ocorre por exemplo nos Amores em

que ao final do livro I ao mencionar a notoriedade de Galo e Tibulo bem como a expansatildeo e sobrevivecircncia

do metro elegiacuteaco coloca-se como parte de uma estirpe que jamais seraacute esquecida

Tityrus et fruges Aeneiaque arma legentur 25

Roma triumphati dum caput orbis erit

Donec erunt ignes arcusque Cupidinis arma

Discentur numeri culte Tibulle tui

Gallus et Hesperiis et Gallus notus Eois

Et sua cum Gallo nota Lycoris erit 30

Ergo cum silices cum dens patientis aratri

Depereant aeuo carmina morte carent

Cedant carminibus reges regumque triumphi

Cedat et auriferi ripa benigna Tagi

Vilia miretur uolgus mihi flauus Apollo 35

Pocula Castalia plena ministret aqua

Sustineamque coma metuentem frigora myrtum

Tiacutetiro e a ceifa e as armas de Eneacuteias cantadas

enquanto Roma reger o orbe

e enquanto houver armas fogo e arco para Cupido

se ensinaratildeo teus metros oacute Tibulo

Galo na Hespeacuteria e no Oriente haacute de ser

conhecido e com Galo sua Liacutecoris

Pois perecendo as rochas e os dentes do arado

com o tempo aos versos morte faltaraacute

Rendam-se aos versos reis e os triunfos dos reis

renda-se do Tejo a margem auriacutefera

Admire o vulgo o que eacute vil que o louro Apolo

taccedilas plenas me decirc de aacutegua castaacutelide

sustente eu nos cabelos o mirto que teme

1 O poema de Borges apresenta uma espeacutecie de definiccedilatildeo moderna de elegia aleacutem de referecircncias agrave morte e agrave perda ldquoSoacute o que morreu eacute nosso soacute eacute nosso o que perdemosrdquo traz ainda uma menccedilatildeo direta agrave Antiguidade ldquoIacutelion foi poreacutem Iacutelion perdura no hexacircmetro que a plangerdquo (BORGES 2016) 2 O diacutestico elegiacuteaco consiste em dois versos sendo um hexacircmetro e um pentacircmetro (mais precisamente chamado hexacircmetro duplamente cataleacutectico) O primeiro verso compotildee-se de seis peacutes daacutectilos (siacutelaba longa mdash siacutelaba breve mdash siacutelaba breve ou siacutelaba longa mdash siacutelaba longa) ao passo que o segundo verso eacute como o primeiro exceto pela falta das duas breves no terceiro e sexto peacutes Para mais informaccedilotildees sobre a questatildeo cf West (1974)

[226]

Atque ita sollicito multus amante legar

Pascitur in uiuis Liuor post fata quiescit

Cum suus ex merito quemque tuetur honos 40

Ergo etiam cum me supremus adederit ignis

Viuam parsque mei multa superstes erit

o frio e leia-me o inquieto amante

Pasta a Inveja entre os vivos descansa na morte

e a cada um a proacutepria honra assiste

Assim ao consumir-me o fogo derradeiro

de mim a grande parte ficaraacute

(Ov Am 11525-42 Trad Guilherme Horst Duque)

Ou ainda no final do Livro III em que ao se despedir pede a Vecircnus que procure um novo vate pois chegou

ao marco final de suas elegias Ademais evoca agora Virgiacutelio e Catulo e se coloca ao lado destes aleacutem de

referir-se agrave sua pequena cidade natal Sulmona que por gerar tamanho poeta tambeacutem torna-se grande

Quaere nouum uatem tenerorum mater Amorum 1

Raditur hic elegis ultima meta meis

Quos ego conposui Paeligni ruris alumnus

(Nec me deliciae dedecuere meae)

Siquid id est usque a proauis uetus ordinis heres 5

Non modo militiae turbine factus eques

Mantua Vergilio gaudet Verona Catullo

Paelignae dicar gloria gentis ego

Quam sua libertas ad honesta coegerat arma

Cum timuit socias anxia Roma manus 10

Atque aliquis spectans hospes Sulmonis aquosi

Moenia quae campi iugera pauca tenent

ldquoQuae tantum dicet potuistis ferre poetam

Quantulacumque estis uos ego magna uocordquo

Culte puer puerique parens Amathusia culti 15

Aurea de campo uellite signa meo

Corniger increpuit thyrso grauiore Lyaeus

Pulsanda est magnis area maior equis

Inbelles elegi genialis Musa ualete

Post mea mansurum fata superstes opus 20

Busca matildee dos Amores ternos novo vate

eis o marco final das elegias

as quais eu filho dos Pelignos escrevi

(minhas deliacutecias natildeo me denegriram)

e se isto conta equestre desde o bisavocirc

natildeo feito haacute pouco no tropel de guerras

Macircntua estima Virgiacutelio Verona a Catulo

Diratildeo que sou a gloacuteria dos pelignos

a quem levou a liberdade agraves justas armas

quando Roma temeu as matildeos amigas

Que algum turista ao ver os muros desta aquosa

Sulmona que tatildeo poucos campos tem

diga ldquoa ti que geraste tamanho poeta

por pequena que sejas chamo granderdquo

Belo menino e a amatuacutesia genitora

dos meus campos levai as aacuteureas flacircmulas

com tirso mais pesado abala-me o Lieu

pista maior reclamam meus cavalos

Imbeles elegias Musa alegre adeus

obra e vestiacutegio meu apoacutes a morte

(Ov Am 3151-20 Trad Guilherme Horst Duque)

Apesar de tanta confianccedila eacute de se supor todavia que Oviacutedio natildeo pudesse ter imaginado que para aleacutem de

2000 anos apoacutes a sua morte a elegia permaneceria tatildeo viva ainda que metamorfoseada quanto agrave forma

Assim na voz de poetas das mais diversas eacutepocas esse gecircnero literaacuterio vai ldquomudando de pele e

transformando-se em sonetos odes eacuteclogas baladas ou ateacute epiacutestolasrdquo (LAGE 2010 p 15)

Isso porque fossem ou natildeo inspirados direta ou indiretamente pelos poemas elegiacuteacos romanos

versejadores de todos os tempos imprimiram em seus poemas o cantar doloroso pela perda de um ente

querido de um amor da paacutetria ou ainda da proacutepria poesia Seria um tanto impreciso concordar totalmente

com Lage para quem mesmo que o termo ldquoelegiardquo tenha desaparecido em determinados periacuteodos3 sua

3 Sobre a questatildeo cf Lage (2010 p 15)

[227]

essecircncia se manteve sempre presente tomando outras formas poeacuteticas Mas sem duacutevidas no seacuteculo XVIII

o poeta e filoacutesofo Friedrich Schiller ao propor um resgate das formas poeacuteticas claacutessicas reaviva o referido

gecircnero E ele o faz mais uma vez relacionando a elegia ao sofrimento sentimento que segundo o autor

referido deveria ser transformado a partir de entatildeo de uma perda real em uma perda ideal4

Dessa forma mesmo que se tenha duacutevidas sobre a origem histoacuterica e sobre a definiccedilatildeo desse tipo de

produccedilatildeo na Antiguidade essa concepccedilatildeo de elegia como perda ou lamento pela perda (referida por poetas

antigos como Oviacutedio) atravessou o seacuteculo XIX apoacutes se consolidar no Romantismo mantendo-se em autores

modernos do seacuteculo XX e permanecendo ateacute os nossos dias

Muitos foram os poetas brasileiros modernos que resgataram a elegia (natildeo necessariamente no metro

elegiacuteaco) em suas obras Melhor dizendo resgataram o tom elegiacuteaco lamentoso soacute para mencionar alguns

exemplos Carlos Drummond de Andrade Viniacutecius de Moraes Manuel Bandeira Ferreira Gullar Ainda que

natildeo nomeiem seus poemas de elegias no fazer poeacutetico destes autores a temaacutetica da perda e do lamento daacute

um tom lutuoso agraves produccedilotildees Dentre esses versejadores estaacute Chico Cesar poeta compositor e muacutesico

paraibano que diferentemente dos seus antecessores e tambeacutem dos seus contemporacircneos da deacutecada de

1990 busca se aproximar da elegia claacutessica

Em seu livro Cantaacuteteis Cantos elegiacuteacos de Amozade somos apresentados a uma obra na qual ecoam natildeo

apenas aspectos da poesia amorosa e eroacutetica romana (sobretudo dos Amores de Oviacutedio) como tambeacutem

alusotildees por vezes diretas a escritores e obras de diversas esteacuteticas Com isso para usar uma expressatildeo com

a qual Isabelle Jouteur se refere a Oviacutedio Chico Ceacutesar cria um caleidoscoacutepio que a cada leitura revela uma

nova camada de interpretaccedilatildeo e instiga o leitor a decifraacute-la

Levando em conta essa cor inusitada que o poeta nordestino imprime agraves suas elegias em Cantaacuteteis

buscaremos analisar alguns elementos da poesia romana amorosa sobretudo ovidiana que satildeo retomados

na obra referida e de que maneira Chico Cesar atraveacutes de uma espeacutecie de antropofagia literaacuteria termina por

resgataacute-la e incorporaacute-la ao seu versejar moderno e nordestino

Chico Cesar e a poesia caleidoscoacutepica de Cantaacuteteis

Em Cantaacuteteis Cantos elegiacuteacos de amozade obra composta por 141 poemas todos compostos por 11 versos

com sete siacutelabas poeacuteticas cada somos apresentados a uma persona poeacutetica apaixonada que se declara para

uma musa da qual sequer sabemos o nome de modo direto descrevendo-se primeiro a si e ao seu versejar

para em seguida falar das qualidades sobretudo as intelectuais da puella docta

4 Para Schiller (2011 p 51) a perda ideal representaria ldquoa tristeza suscitada por alegrias que jaacute natildeo satildeo pelo desaparecimento da idade de ouro do mundo pela perda da felicidade dos anos da infacircncia do amor etcrdquo

[228]

Ao revelar seu suposto caso amoroso o poeta lanccedila matildeo de um tom brejeiro e por vezes jocoso e cria imagens

aparentemente desconexas mas que vatildeo se completando num mosaico plenamente compreensiacutevel mdash por

isso caleidoscoacutepico mdash sobretudo se levarmos em conta a referecircncia quase cronoloacutegica a autores e obras

tambeacutem da literatura brasileira e universal5 Aqui evocamos Achcar (1994 p 15) para quem ldquoa

lsquoliterariedadersquo de uma obra sua pertinecircncia a um gecircnero mesmo sua novidade satildeo necessariamente

produto de suas relaccedilotildees com obras anteriores presentes nela em alusotildees impliacutecitas ou expliacutecitas

intencionais ou natildeordquo

Eacute justamente a partir de alusotildees que o leitor eacute iccedilado para dentro do livro de Chico Cesar e pode compartilhar

com ele o prazer de reconhecer numa relaccedilatildeo de intertextualidade (CONTE BARCHIESI 2010 p 87)

passagens de obras que satildeo suas conhecidas e que foram ldquoantropofagizadasrdquo para compor Cantaacuteteis

Dessa forma estabelece-se desde o tiacutetulo um jogo de sentidos proposto ao leitor pelo poeta que seraacute

bastante recorrente nos poemas que compotildeem a obra6 Ao realizarmos uma anaacutelise percebemos que o

neologismo ldquocantaacuteteisrdquo pode denotar a uniatildeo do radical do verbo ldquocantarrdquo com a palavra ldquotaacuteteisrdquo (referecircncia

ao tato ou ao verbo tatear) abrindo a possibilidade para a leitura da referida palavra como cantos (poemas)

que podem ser tocados ou por que natildeo que tocam (tateiam) outros textos de outros poetas

Aleacutem disso a presenccedila do adjetivo ldquoelegiacuteacosrdquo qualificando o substantivo ldquocantosrdquo demonstra que Chico

Cesar faz uma referecircncia direta agrave elegia recorrendo nesse momento agrave bagagem cultural do leitor para

estabelecer com este uma relaccedilatildeo dialoacutegica a partir da evocaccedilatildeo de experiecircncias literaacuterias anteriormente

vividas elementos que conforme Jauss (1976 p 68) satildeo necessaacuterios para que o processo de recepccedilatildeo de

uma obra em particular se realize

Haacute finalmente o neologismo ldquoamozaderdquo que pode trazer numa camada menos oacutebvia de leitura a referecircncia

agraves cantigas de amigo medievais que denotavam justamente um eu-liacuterico neste caso feminino que ansiava

pelo ser amado como faz o nosso cantador paraibano Tais referecircncias e mesmo outras agraves Heroacuteides ovidianas

tambeacutem com vaacuterios poemas de eu-liacuterico feminino precisariam ser analisadas com mais cautela o que

pretendemos realizar em momento posterior de nossa investigaccedilatildeo

Em nosso estudo para aleacutem dessas questotildees mencionadas interessa-nos sobremaneira analisar alguns

poemas de Cantaacuteteis procurando perceber de que forma alguns elementos tiacutepicos da elegia amorosa romana

principalmente dos Amores de Oviacutedio satildeo remodelados no contexto moderno Certamente tais questotildees natildeo

5 Satildeo diversas as vezes em que Chico Cesar alude a obras e a autores conhecidos em algumas delas trazendo natildeo apenas temas mas trechos quase ipsis litteris de poemas ou de romances canocircnicos cf por exemplo CESAR 2005 p 14171923 Tal aspecto seraacute abordado por noacutes em um momento posterior uma vez que nosso foco neste artigo eacute a questatildeo da elegia ovidiana e sua recepccedilatildeo em Cantaacuteteis 6 Acreditamos que seria bastante revelador um trabalho que se debruccedilasse sobre os neologismos criados por Chico Cesar ao longo de Cantaacuteteis o que certamente traria agrave tona aspectos que passam despercebidos numa leitura artificial

[229]

se esgotariam no espaccedilo deste artigo e por isso escolhemos apenas uma delas para a nossa discussatildeo a

questatildeo metapoeacutetica

Os metapoemas em Cantaacuteteis

A metapoesia ou seja a referecircncia dentro de um poema aos gecircneros ao poeta agraves formas de produccedilatildeo

poeacutetica agraves obras jaacute consagradas eacute um elemento bastante presente na produccedilatildeo poeacutetica desde a Antiguidade

Assim por meio de metaacuteforas ou mesmo de menccedilotildees diretas sobretudo desde o periacuteodo alexandrino poetas

trouxeram agrave baila discussotildees acerca das caracteriacutesticas e importacircncia das obras que produzem Oviacutedio se

notabilizou por lanccedilar matildeo da metalinguagem em praticamente todas as suas obras Em Amores objeto de

nossa discussatildeo isso ocorre desde o epigrama de abertura que leremos na traduccedilatildeo de Lucy Ana De Bem

Qui modo Nasonis fueramus quinque libelli

tres sumus hoc illi praetulit auctor opus

Vt iam nulla tibi nos sit legisse uoluptas

at leuior demptis poena duobus erit

Tiacutenhamos sido haacute pouco cinco livrinhos de Nasatildeo

trecircs agora somos o autor preferiu esta agravequela obra

Se por acaso natildeo tiveres prazer algum em nos ler

ao menos retirados dois a pena seraacute mais leve

(Ov Am epigramma ipsius)

Ademais como costuma acontecer os poemas que abrem os livros I II e III satildeo de modo expliacutecito

programaticamente metapoeacuteticos Lucy Ana de Bem (2011 p 186) em sua excelente tese de doutoramento

A Metapoesia e confluecircncia geneacuterica nos Amores de Oviacutedio vai aleacutem e defende que ldquoa maior parte das elegias

dos Amores discorre sobre poesia enquanto nos fala de amorrdquo Assim para a estudiosa a questatildeo metapoeacutetica

tem na referida obra a mesma importacircncia que o amor

Acreditamos que algo semelhante aconteccedila em Cantaacuteteis Ali quando Chico Cesar lanccedila matildeo de alusotildees

diversas a textos literaacuterios ao longo da obra ele o faz natildeo apenas para descrever sua persona poeacutetica mas

tambeacutem a musa a quem canta elencando um conjunto de referecircncias prontas isto eacute lugares-comuns ou toacutepoi

a serem acessados pelo leitor que aceitar o jogo proposto pelo poeta (ISER 2002 p 105-18) e participar com

ele da construccedilatildeo natildeo apenas de um mas de diversos sentidos

Em seu primeiro ldquocantaacutetilrdquo7 Chico Cesar (2005 p 13) apresenta-nos um metapoema no qual um poeta

apaixonado confessa-se para uma musa de quem pouco saberemos ao longo da obra

seu poeta preferido

bem antes de ser ferido

jaacute era ferido antes

natildeo visitou as bacantes

as nereidas e as ninfas

7 Utilizaremos neste trabalho o neologismo cantaacutetil para nos referirmos aos poemas que compotildeem o livro de Cesar

[230]

quis beber de sua linfa

esperou e natildeo morreu

esse poeta sou eu

de lira desgovernada

deliro musa amada

oacuterfatildeo bisneto de orfeu (grifo nosso)

Curiosamente nos primeiros versos do poema haacute a utilizaccedilatildeo do pronome possessivo ldquoseurdquo de terceira

pessoa do singular o qual constroacutei uma ambiguidade podendo tanto se referir em terceira pessoa ao poeta

que fala quanto a uma tradiccedilatildeo de poetas que cantaram o fato de estarem feridos pelo amor dentre eles

Oviacutedio A persona poeacutetica que fala em Amores 1125-6 assim como o eu liacuterico de Cantaacuteteis estaacute tomada pelo

sentimento amoroso apoacutes ser flechado pelo deus Cupido

Me miserum certas habuit puer ille sagitas

Vror et in uacuo pectore regnat Amor

Desgraccedilado de mim Certeiras foram as setas daquele menino

Todo eu me inflamo e no coraccedilatildeo vazio passa a reinar o Amor

(Ov Am 1125-26 Trad Carlos Ascenso Andreacute)

Na sequecircncia do poema a utilizaccedilatildeo que Chico Cesar faz do adjetivo ldquopreferidordquo bem como os dois versos

que o sucedem mostram um jogo de sentido que aleacutem de revelar a escolha do poeta pela musa mostra que

natildeo eacute a primeira vez que o eu-liacuterico se encontra em estado de paixatildeo ldquoseu poeta preferido bem antes de ser

ferido jaacute era ferido antesrdquo Essa afirmaccedilatildeo nos lembra por exemplo a persona de Oviacutedio que tanto em Amores

quanto em Ars Amatoria estaacute menos preocupada em demonstrar exclusividade no amor por uma puella

somente que os elegiacuteacos anteriores

Haacute ainda outras chaves de leitura importantes no referido poema Ainda que de modo diferente dos antigos

poetas elegiacuteacos que recusavam gecircneros tomados como mais elevados como a eacutepica (ora alegando objeccedilatildeo

de algum deus ora ainda por alegarem que tal gecircnero estaria acima de suas forccedilas) o bardo paraibano deixa

claro que seu desejo eacute fazer elegias A referecircncia agraves bacantes neste caso personagens da trageacutedia homocircnima

de Euriacutepides as quais o eu-poeacutetico de Cantaacuteteis diz natildeo ter visitado parece representar ainda que de modo

indireto uma recusatio contra tal gecircnero elevado8 anaacuteloga agrave que faziam seus antecessores elegiacuteacos na

Antiguidade

No ldquocantaacutetilrdquo seguinte Chico Cesar (2005 p 14) prossegue com a construccedilatildeo da imagem do poeta

eu pra cantar natildeo vacilo

digo isso digo aquilo

digo tudo que se disse

digo veneza recife

8 A toacutepica da recusatio ou seja a recusa a cantar eacutepica e adesatildeo agrave elegia eacute segundo Bem (2011 p 90) uma invenccedilatildeo atribuiacuteda a Caliacutemaco e copiosa entre poetas augustanos e sobretudo entre os elegiacuteacos latinos

[231]

fortaleza que se abre

quero que o mundo se acabe

se natildeo disser o que sinto

digo a verdade minto

vertente me arrebata

minha voz eacute serenata

labareda e labirinto

Satildeo perceptiacuteveis neste caso referecircncias agrave tradiccedilatildeo as quais satildeo ancoradas em expressotildees que funcionam

como marcadores alusivos9 tais como ldquodigo tudo que se disse ou em vertente me arrebatardquo em que neste

caso o poeta marca sua filiaccedilatildeo natildeo apenas agrave corrente da literatura dita canocircnica mas tambeacutem agrave sua veia

nordestina Isso se daacute quando ele menciona espaccedilos geograacuteficos como Fortaleza ou Recife numa possiacutevel

alusatildeo ao Nordeste Aleacutem disso mostra-se no oitavo verso a utilizaccedilatildeo do fingimento poeacutetico em ldquodigo a

verdade mintordquo revelando a multiplicidade do eu poeacutetico (VASCONCELLOS 2016 p 85)

No ldquocantaacutetilrdquo 34 Chico Cesar aleacutem de continuar a descrever sua persona poeacutetica traz referecircncias diretas agrave

literatura antiga ao mencionar logo no primeiro verso Secircneca e em seguida Cupido e as Ninfas

secircneca natildeo sou - eu chico

rio tatildeo nordestinico

que tateia e se estatela

no peacute de sirigoela

plantado pelo cupido

performer impermitido

out-sider das baixadas

se ninfas apaixonadas

vecircm uivar na minha porta

uso a palavra que corta

ela tudo - vocecircs nadas (CEacuteSAR 2005 p 34)

O poeta inicia reforccedilando sua identidade nordestina visto que ao mesmo tempo em que parece negar

Secircneca diz ser Chico fundindo atraveacutes do duplo sentido seu nome ao rio Satildeo Francisco que atravessa o

Nordeste brasileiro Nessa imagem que remete agrave fluidez das formas nas Metamorfoses tambeacutem sua poesia

parece cruzar a produccedilatildeo literaacuteria de diversos periacuteodos mas desaguar em seu lugar de origem a tradiccedilatildeo

nordestina

A menccedilatildeo ao peacute de sirigoela planta oriunda do Nordeste brasileiro que neste caso foi plantada pelo Cupido

serve natildeo apenas para reforccedilar a imagem de nordestinidade da persona poeacutetica como tambeacutem alude aos

ceacutelebres de abertura do primeiro livro de Amores

9 Sobre a questatildeo cf Wills (1996) Hinds (1999) Vasconcellos (2001) e Prata (2002)

[232]

Arma gravi numero uiolentaque bella parabam

Edere materia conveniente modis

Par erat inferior versus risisse Cupido

Dicitur atque unum surripuisse pedem

Armas em ritmo pesado e combates violentos estava eu prestes

a cantaacute-los mdash o assunto assentava bem no metro

era igual o segundo verso [ao primeiro] Cupido soltou uma gargalhada

diz-se e surrupiou-lhe um peacute

(Ov Am 111-4 Trad Carlos Ascenso Andreacute)

Jaacute foi por demais discutido que na obra do poeta latino em que Cupido rouba um peacute do segundo verso (que

por isso natildeo teria mais seis e sim cinco peacutes) definindo a partir daiacute que Oviacutedio escreveria na forma tiacutepica da

produccedilatildeo elegiacuteaca Diferentemente eacute o que ocorre poreacutem no caso do poeta paraibano um peacute eacute ldquoplantadordquo

pelo deus do amor e curiosamente todos os ldquocantaacuteteisrdquo possuem natildeo seis mas sete siacutelabas poeacuteticas

Se nas palavras de Iser (2002 p 107) o texto eacute composto por jogo ldquo[] natildeo importa que novas formas o leitor

traz agrave vida todas elas transgridem mdash e daiacute modificam mdash o mundo referencial contido no textordquo

Eacute exatamente isso que Chico Cesar parece buscar um jogo de sentido com aqueles leitores que conhecem a

obra ovidiana e tambeacutem a poesia nordestina estabelecendo com esse puacuteblico uma espeacutecie de diaacutelogo a fim

de que seja possiacutevel interpretar e reinterpretar o texto de chegada para de algum modo acessar o texto de

partida

A musa de Cantaacuteteis entre a mulher e a proacutepria elegia

A imagem da amada musa inspiradora a quem os poetas elegiacuteacos antigos dedicavam seu canto era bastante

idealizada Nesse sentido muitas vezes tal mulher se encontrava acima das demais pelos seus dotes natildeo

apenas de beleza mas tambeacutem intelectuais passando a serem designadas como puella docta

Em Cantaacuteteis Chico Cesar se aproxima de Oviacutedio pois tal como jaacute se notou quanto agrave Corina em Amores Chico

Ceacutesar (2005 p 16) demora a mencionar o nome da amada a que se refere busca desenhaacute-la para o leitor

atraveacutes de descriccedilotildees tanto fiacutesicas quanto psicoloacutegicas

parecida pariceira

feiticcedilo de feiticeira

fetiche tabu e totem

que lha vejam e logo notem

a exterior beleza

e fato se tornem presa

da face rubra e as vistas

feito a sala de visitas

do castelo de sua alma

avistei perdi a calma

esqueci de outras conquistas

[233]

Eacute apenas no sexto ldquocantaacutetilrdquo que Chico Cesar apresenta-nos a amada a quem satildeo dedicados seus cantos

elegiacuteacos de ldquoamozaderdquo neste caso destacando os atributos fiacutesicos e a beleza dessa mulher que o enfeiticcedila

desejando que aqueles que a veem se tornem presas assim como ocorreu com ele O eu-liacuterico confessa que

ante tal visatildeo esquece outras conquistas ou seja a referida puella natildeo eacute a primeira por quem se apaixonou

mas eacute a partir desse momento a uacutenica que o interessa

Na sequecircncia em outro ldquocantaacutetilrdquo destaca agora suas qualidades intelectuais designando-a como detentora

de mil e uma artes leitora de Roland Barthes ou seja aleacutem de uma mulher de bastante beleza tambeacutem eacute

dotada de inteligecircncia e cultura

suas mil e uma artes

seus livros do roland barthes

que natildeo li natildeo sinto falta

seu beijo doce de flauta

seu olhar de pernilongo

sua danccedila rap jongo

clareiam minha cacircmara escura

escritora e escritura

li seus versos tonteci

e dessa tontice cai

na doenccedila que me cura (CEacuteSAR 2005 p 17)

Haacute ainda um jogo de sentido no oitavo verso escritora e escritura o qual pode fazer uma relaccedilatildeo entre a

mulher e a proacutepria poesia Esse jogo tambeacutem ocorre nos Amores de Oviacutedio em que a relaccedilatildeo ambiacutegua entre a

puella e a poesia muitas vezes aproxima o amor do proacuteprio fazer poeacutetico10

Essa relaccedilatildeo fica bastante direta no deacutecimo-primeiro ldquocantaacutetilrdquo de Chico Cesar (2005 p 21)

eacute a musa que elejo

na peleja em que pelejo

elemento de elegia

quentura na noite fria

vento brando em dia quente

iquestquanto ganha um gerente

para perguntar seu nome

quero ver se vocecirc some

quero embalar sua rede

tarde cedo seda sede

frame trama tremor fome

10 Sobre a questatildeo cf Bem (2011 p126) Ao discutir a questatildeo a estudiosa menciona Hardie para o qual comparaccedilotildees agrave jovem amada assim como agraves heroiacutenas da mitologia seratildeo apenas uma ldquopresenccedila discursivardquo um nome ligado a um corpo textual natildeo a um corpo fiacutesico Ainda nas palavras da autora ldquoNesse sentido a equivalecircncia entre a puella e a proacutepria elegia (a coleccedilatildeo elegiacuteaca dos Amores) fica ainda mais evidenterdquo

[234]

Jaacute no primeiro verso o poeta afirma que a musa eleita representa um elemento da proacutepria elegia ou seja

traz caracteriacutestica do referido gecircnero ademais alguns vocaacutebulos permitem verificar que essa mulher prende

o eu-liacuterico assim como Cupido faz com a voz que canta nos Amores ovidianos As palavras ldquorederdquo ldquotramardquo e a

polissemia entre ldquocedordquo (no sentido adverbial) e tambeacutem do verbo ldquocederrdquo ajudam a reforccedilar tal ideia

Consideraccedilotildees finais

Certamente haacute ainda muitos aspectos a serem investigados na obra aqui cotejada tanto no que diz respeito

aos poetas romanos antigos sobretudo Oviacutedio quanto agraves relaccedilotildees estabelecidas com obras da poesia e

literatura modernas Acreditamos que a anaacutelise de Cantaacuteteis natildeo apenas sob a luz da intertextualidade mas

tambeacutem das teorias da recepccedilatildeo pode vir a colaborar para que seja possiacutevel compreender de que modo

produccedilotildees aparentemente tatildeo distantes no tempo e no espaccedilo estabelecem com a participaccedilatildeo ativa do

leitor um diaacutelogo que nunca termina tornando possiacutevel por exemplo que a poesia nordestina tenha sim um

peacute (ou mais) na elegia latina

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SCHILLER F Do sublime ao traacutegico Belo Horizonte Autecircntica 2011

VASCONCELLOS P S de Efeitos intertextuais na Eneida de Virgiacutelio Satildeo Paulo Humanitas 2001

VASCONCELLOS P S de Persona poeacutetica e autor empiacuterico na poesia amorosa romana Satildeo Paulo Unifesp 2016

WEST M Studies in Greek Elegy and Iambus Leiden De Gruyter 1974

WILLS J Repetition in Latin Poetry figures of allusion Oxford Clarendon 1996

(paacutegina intencionalmente deixada em branco)

PARTE III

AS RELACcedilOtildeES (INTER)LINGUIacuteSTICAS

E A EXPERIMENTACcedilAtildeO CRIATIVA

NA TRADUCcedilAtildeO LUSOacuteFONA DOS CLAacuteSSICOS

Traduzindo a oralidade do grego claacutessico para o cearensecircs em A Paz de Aristoacutefanes

Ana Maria Ceacutesar Pompeu

amcpompeuhotmailcom

Manuela Maria Campos Sales

manu2fcgmailcom

Traduzimos com o Grupo de Estudos da Comeacutedia Aristofacircnica ndash

GECA a peccedila A Paz do grego para a linguagem matuta cearense o

Cearensecircs O texto grego primeiro foi traduzido da forma mais

literal possiacutevel cotejando outras traduccedilotildees da peccedila em portuguecircs

(em Portugal a de Maria de Faacutetima Silva 1989 e no Brasil as

dissertaccedilotildees de mestrado de Greice Drumond UFRJ 2002 e

Marcos Cardoso Gomes USP 1984) A seguir retraduzimos ou

traduzimos dentro da mesma liacutengua do portuguecircs formal para a

linguagem matuta que mais se aproxima da linguagem oral do

cotidiano a precisatildeo do verso grego bem como a expressividade e

a musicalidade das palavras e expressotildees Tal processo nos

proporcionou um entendimento muito mais aprofundado da liacutengua

e da cultura grega aleacutem de uma maior conscientizaccedilatildeo da nossa

proacutepria cultura e modo de falar quando buscamos as diversas

expressotildees regionais mais antigas ou mais recentes e o seu

contexto dentro do texto aristofacircnico Demostraremos parte do

resultado do nosso trabalho de traduccedilatildeo de A Paz de Aristoacutefanes

para o Cearensecircs

Em conjunto com os estudos realizados traduzimos A Paz de

Aristoacutefanes para a linguagem do cearense matuto promovendo

[239]

dessa forma um encontro da teoria do cocircmico com as suas origens instituiccedilotildees agraacuterias em Dioniso Nosso

trabalho de traduccedilatildeo utilizando da expressividade do falar matuto cearense faz adaptaccedilotildees dos termos

rurais gregos utilizados na peccedila que recria o nascimento agraacuterio da comeacutedia para os termos do falar

nordestino que eacute um aspecto fundamental do humor no Cearaacute divulgado em todo o Brasil atraveacutes de

diversos comediantes Tal expressividade eacute tiacutepica mesmo do homem ruacutestico do Nordeste brasileiro que

talvez natildeo se desgarre com facilidade de suas raiacutezes agraacuterias As expressotildees de maior teor cocircmico satildeo as

obscenas sejam elas sexuais ou escatoloacutegicas Verificamos durante a traduccedilatildeo de Lisiacutestrata a mais obscena

no sentido sexual dentre as peccedilas de Aristoacutefanes a larga utilizaccedilatildeo de termos relacionados agrave fauna e agrave flora

da zona rural grega E sendo tal peccedila especificamente urbana pois sua accedilatildeo eacute centrada na acroacutepole ateniense

os termos obscenos que trazem o campo para a cidade satildeo utilizados em abundacircncia em Lisiacutestrata

A primeira parte de Paz em que a Guerra reina no lugar dos deuses oliacutempicos eacute caracterizada por alimentos

improacuteprios e malcheirosos O escaravelho eacute um besouro que come fezes e Poacutelemos a Guerra prepara uma

mistura de todas as cidades gregas a serem trituradas em um pilatildeo Depois que a deusa Paz eacute libertada todos

os alimentos satildeo agradaacuteveis assim como os cheiros O escaravelho inverte sua situaccedilatildeo pois passa a puxar o

carro de Zeus e a comer a ambrosia de Ganimedes (Ar A Paz 722-4) da mesma forma que a situaccedilatildeo da

Greacutecia que era dominada pela guerra vista como sinocircnimo de morte passa a ser de alegrias da bebida da

comida da fartura no campo do sexo enfim da vida

No proacutelogo de A Paz dois servos amassam fezes para alimentar um escaravelho Um deles explica que o

patratildeo dos dois andava com uma mania de olhar para o ceacuteu e de se queixar a Zeus da guerra Jaacute havia tentado

subir degraus mas caiu e feriu a cabeccedila No dia anterior chegou com um escaravelho chamando-o de Peacutegaso

e dizendo que ele o levaria direto a Zeus E assim o vinhateiro Trigeu realmente monta o escaravelho e sobe

aos ceacuteus em busca de Zeus sob os olhares assustados de seus servos e filhas Ele explica a uma das filhas

que teve a ideia de montar um escaravelho por ter visto nas faacutebulas de Esopo que tal bicho foi o uacutenico a subir

agrave morada dos deuses O escaravelho tambeacutem parece representar a comeacutedia com todo o seu repertoacuterio

escatoloacutegico (e tambeacutem representa a anormalidade da guerra) dirigida por um servo de Dioniso Trigeu (de

Tryx ldquoborra de vinhordquo trygocircidia como komocircidia ldquocomeacutediardquo) vinhateiro e poeta cocircmico

Chegando laacute o vinhateiro bate agrave porta e quem atende eacute Hermes comunicando-lhe que Zeus e os outros

deuses estatildeo em uma parte mais elevada do ceacuteu e que deixaram Poacutelemos ldquoa Guerrardquo fazer o que quisesse

com os gregos pois os deuses estatildeo com eles irritados por estes preferirem a guerra tendo em vista que os

Oliacutempios tantas vezes lhes deram a oportunidade para a paz mas quem estava vencendo na ocasiatildeo natildeo a

queria Eirene ldquoa Pazrdquo foi presa por Poacutelemos numa caverna profunda Trigeu se oculta e vecirc o deus Guerra

com o seu pilatildeo pronto para transformar em poacute as cidades gregas Mas por falta de um pau de pilar ele chama

Tumulto Kydoimos para que vaacute pegar um em Atenas Este ao voltar informa ao deus que os atenienses

[240]

perderam o curtidor de couros que acabava com a Greacutecia numa referecircncia expliacutecita a Cleacuteon que morrera no

ano anterior ao da representaccedilatildeo desta peccedila na batalha de Anfiacutepolis Entatildeo o deus manda que Tumulto vaacute

conseguir o pau de pilar em Esparta Da mesma forma o servo do deus Guerra volta dizendo que tambeacutem

natildeo haacute mais tal instrumento entre os espartanos referindo-se certamente a Braacutesidas liacuteder que tambeacutem

morrera na mesma batalha que Cleacuteon Poacutelemos sai com Tumulto para fabricar um outro pau de pilar

Trigeu aproveita a ocasiatildeo e convoca o coro formado de gregos de todas as cidades que se unem para

libertar a deusa Paz enquanto Guerra estava ausente Hermes entatildeo aparece com predisposiccedilatildeo de

denunciar os propoacutesitos de Trigeu e do coro a Zeus mas Trigeu suplica-lhe que natildeo os denuncie lembrando-

lhe do pedaccedilo de carne que lhe trouxe como oferenda Depois diz que sabe de um complocirc que a Lua e o Sol

fazem contra os deuses oliacutempicos pois por serem os baacuterbaros os adoradores dos dois astros e os gregos os

outros deuses eles querem destruiacute-los para serem os uacutenicos a terem adoradores Hermes resolve entatildeo

ajudar orientando e incentivando uns e outros no trabalho de desobstruir a caverna para libertar a Paz

Desse modo Trigeu convence Hermes a ajudaacute-lo atraveacutes de um argumento coacutesmico os astros contra os

oliacutempios Os gregos natildeo trabalham da mesma forma os mais empenhados no trabalho satildeo os agricultores

aacuteticos que sentem muita falta da paz

Quando finalmente conseguem retirar a deusa da caverna ela traz junto de si Opora a deusa das colheitas

e Teoria a deusa das festividades A deusa Paz se mostra triste com os gregos pois a deixaram ser

aprisionada por tanto tempo e tambeacutem pela poliacutetica de Atenas Trigeu a conselho de Hermes desposaraacute a

deusa das colheitas Opora e entregaraacute aos Priacutetanes a deusa das festividades Teoria Na paraacutebase o coro

louva o poeta que livrou a comeacutedia das vulgaridades pois ele criou uma arte maior com belas palavras e

grandes ideias tambeacutem trouxe agrave cena os cidadatildeos mais poderosos e repete o que disse com as mesmas

palavras sobre Cleacuteon na comeacutedia anterior Vespas Trigeu volta para terra trazendo Opora e Teoria e daacute esta

uacuteltima aos Priacutetanes Depois ele sacrifica um cordeiro agrave deusa Paz e conta que viu no caminho do ceacuteu duas ou

trecircs almas dos poetas ditiracircmbicos Chega o adivinho Hieacuteracles que eacute recebido com indiferenccedila e que acusa

Trigeu de estar agindo contra a vontade dos deuses ao forccedilar a volta da paz Querendo comer os miuacutedos do

cordeiro sacrificado o adivinho eacute expulso por Trigeu que ordena a seu servo que o espanque

A segunda paraacutebase louva a vida no campo sob o reino da paz e maldiz aqueles que fazem a guerra obrigando

os camponeses a abandonarem seus lares Trigeu celebra suas bodas com Opora e recebe a visita dos agora

felizes fabricantes de foices e de jarras que lhe trazem muitos presentes de casamento Mas tambeacutem chegam

os entatildeo infelizes que estatildeo arruinados com o fim da guerra os fabricantes de penachos de capacetes de

couraccedilas de lanccedilas o vendedor de clarins pois natildeo tecircm para quem vender seus produtos Trigeu os insulta e

eles se vatildeo Entatildeo chegam dois garotos cantando o primeiro canta agrave guerra e diz ser filho de Lacircmaco Trigeu

manda-o embora O segundo garoto canta sobre o abandono do escudo e eacute o filho de Cleocircnimo o siacutembolo de

[241]

covardia sempre satirizado por Aristoacutefanes Trigeu o acolhe e convoca a todos a comerem agrave vontade e sai

carregado pelo coro como o feliz noivo que desposa a rainha dos frutos1

A permanecircncia no campo corresponde agrave vida feliz para a cidade na peccedila A Paz

Coro Pois nada eacute mais grato que jaacute estar semeando e o deus a garoar e um vizinho dizer ldquoDiz-me em tal tempo que faremos Comarquidesrdquo ldquoBeber me agrada enquanto o deus nos auxiliardquo Mulher potildee trecircs medidas de ervilha no fogo Mistura a elas gratildeos de trigo e pega os figos Que vaacute Sira chamar Manes do campo De modo algum se pode limpar vinhas hoje nem por-lhe terra que o chatildeo estaacute empapado De minha casa me tragam o tordo e os dois tentilhotildees Tinha um colostro laacute dentro e quatro nacos de lebre se eacute que natildeo os levou uma doninha ontem laacute dentro se mexia natildeo sei o quecirc e fuccedilava Traacutes trecircs deles pra noacutes oacute menino e o daacute pro pai ramos de mirto fresquinhos pedes a Esquinades E algueacutem do seu caminho chame Carinades que venha beber conosco enquanto refresca e ajuda o deus a nossa lavoura E quando a cigarra canta o doce canto alegra-me ir ver as vinhas de Lemnos se jaacute amadurecem ndash pois eacute a primavera que sazona ndash e o figo olhando crescido se jaacute estaacute maduro Eu apanho e como enquanto digo ldquoHoras amigasrdquo e o timo macerando faccedilo uma infusatildeo Entatildeo eu fico inchado sim com tanto veratildeo (Ar A Paz 1140-1169)2

Resolvemos descrever na proacutepria apresentaccedilatildeo da traduccedilatildeo como a nossa leitura em cearensecircs se faz a

partir do texto grego e como ela se expressa em uma escrita mais erudita para esclarecer as lacunas da

oralidade expressa na escrita da traduccedilatildeo matuta Desse modo sugerimos uma ediccedilatildeo triliacutengue de A Paz de

Aristoacutefanes Grego ndash Cearensecircs ndash Portuguecircs

Οἰκέτης Α αἶρ᾽ αἶρε μᾶζαν ὡς τάχιστα κανθάρῳ

Casecircro 1 Leva leva bolo ligerin pro rola-bosta

Criado 1 Leva leva bolo ligeiro para o escaravelho

1 O enredo da peccedila A Paz elaborado por noacutes na nossa tese de doutorado foi publicado em livro cf Pompeu (2011) 2 A traduccedilatildeo de Paz eacute de Marcos Cardoso Gomes (1984) presente em sua dissertaccedilatildeo de mestrado

[242]

ldquoCasecircrordquo eacute a transcriccedilatildeo da oralidade numa traduccedilatildeo de oikeacutetes que eacute formado pela mesma raiz de oicirckos casa

e eacute uma palavra comum ainda que normalmente natildeo se refira a um criado mas a algueacutem que toma conta de

uma casa para um patratildeo O mais apropriado talvez fosse ldquodomeacutesticordquo mas tambeacutem soacute eacute usado com a palavra

ldquoempregadordquo ldquoRola-bostardquo eacute a traduccedilatildeo mais apropriada para escaravelho que em grego eacute kaacutentharo

aludindo mais ao formato do inseto que se parece com um vaso de duas aselhas ou asas cacircntaro

ldquoEscaravelhordquo vem do latim Scarabaeu e jaacute deve se relacionar com a palavra grega skoacuter skatoacutes ldquoexcrementordquo

E por fim ldquoligerinrdquo eacute mais expressivo do que ldquoligeirordquo

Οἰκέτης Β ἰδού δὸς αὐτῷ τῷ κάκιστ᾽ ἀπολουμένῳ

Casecircro 2 Taiacute Daacute pra ele pra morrecirc da pioacute morte

Criado 2 Eis aiacute Daacute para ele para morrer da pior morte

ldquoTaiacuterdquo eacute um decircitico muito mais eficaz do que ldquoeis aiacuterdquo ou ldquoestaacute aiacuterdquo e da mesma forma que o grego idouacute eacute apenas

uma palavra natildeo duas ldquoPrardquo em vez de ldquoparardquo eacute uma reduccedilatildeo que daacute mais fluecircncia agrave fala ldquoMorrecircrdquo e ldquopioacuterdquo em

vez de ldquomorrerrdquo e ldquopiorrdquo isto eacute a retirada do ldquorrdquo final e a colocaccedilatildeo do acento traduzem a pronuacutencia mais

relaxada

καὶ μήποτ᾽ αὐτῆς μᾶζαν ἡδίω φάγοι

e nunca cumecirc bolo docin cuma esse

e nunca comer bolo docinho como esse

ldquoCumecircrdquo em vez de comer eacute apenas a expressatildeo da oralidade Consideramos ldquodocinrdquo mais expressivo do que

ldquodocinhordquo ou ldquoagradaacutevelrdquo e ldquocumardquo em vez de ldquocomordquo uma expressatildeo mais matuta

Οἰκέτης Α δὸς μᾶζαν ἑτέραν ἐξ ὀνίδων πεπλασμένην

Casecircro 1 Daacute ocircto bolo das bosta amassada dos burro

Criado 1 Daacute outro bolo das fezes amassadas dos burros

ldquoOcirctordquo em vez de ldquooutrordquo traduz a pronuacutencia de ou- por ocirc- e apresenta a reduccedilatildeo de -tro por -to Em ldquodas

bosta amassadardquo manteacutem-se o plural apenas em ldquodasrdquo e substitui-se ldquofezesrdquo por ldquobostardquo termo este muito

mais usado pelos camponeses cearenses Assim tambeacutem ocorre em ldquodos burrordquo sendo o plural mantido

apenas em ldquodosrdquo

Οἰκέτης Β ἰδοὺ μάλ᾽ αὖθις ποῦ γὰρ ἣν νῦν δὴ φερες

κατέφαγεν

Casecircro 2 Taiacute mais de novo Cadecirc o qui tu jaacute tava trazeno

Cumeu tudin

Criado 2 Eis aiacute mais de novo Pois onde estaacute o que tu agora trazias

Comeu tudo

ldquoCadecircrdquo eacute caracteriacutestico da linguagem oral O termo ldquotaiacuterdquo substitui ldquoeis aiacuterdquo Optou-se por ldquoquirdquo em vez de ldquoquerdquo

pois normalmente o ldquoerdquo final se pronuncia como ldquoirdquo e pela expressatildeo ldquotava trazenordquo em vez de ldquotraziardquo A forma

[243]

composta do imperfeito e a subtraccedilatildeo de partes das palavras (ldquoestavas trazendordquo para ldquotava trazenordquo) satildeo

muito mais utilizadas na fala comum Escolheu-se ldquotudinrdquo em vez de ldquotudordquo e ldquocumeurdquo em vez de ldquocomeurdquo

Οἰκέτης Α οὐ μὰ τὸν Δί᾽ ἀλλ᾽ ἐξαρπάσας

Casecircro 1 Natilde Pur Zeuzin feiz foi agarraacute

Criado 1 Natildeo por Zeus mas agarrou

Traduziu-se ldquonatildeordquo por ldquonatilderdquo ldquoNatilderdquo Eacute uma ecircnfase de negaccedilatildeo muito utilizada pelos cearenses Optou-se ldquopur

Zeuzinrdquo em vez de ldquopor Zeusrdquo enquanto apenas uma tentativa de expressar a linguagem matuta como ela

seria quando dirigida a Zeus jaacute que normalmente ouvimos ldquomeu Jesus Cristinrdquo ldquoPurrdquo eacute apenas a transcriccedilatildeo

da fala o ldquoordquo geralmente se torna ldquourdquo Por ldquofeiz foi agarraacuterdquo natildeo se pronuncia ldquofezrdquo mas ldquofeizrdquo e a

expressividade de ldquofez foirdquo eacute maior do que a fornecida por apenas ldquoagarrourdquo O termo ldquoagarraacuterdquo apenas perdeu

o ldquorrdquo e ganhou o acento

ὅλην ἐνέκαψε περικυλίσας τοῖν ποδοῖν

todin feiz uns bolin cuns peacutes e inguliu

todo fez uns bolinhos com as patas e engoliu

Optou-se ldquotodinrdquo em vez de ldquotodordquo pois o primeiro eacute mais sonoro e expressivo ldquoFezrdquo eacute substituiacutedo por ldquofeizrdquo

ldquobolinhosrdquo por ldquobolinrdquo ldquocom osrdquo por ldquocunsrdquo ldquoengoliurdquo por ldquoinguliurdquo

ἀλλ᾽ ὡς τάχιστα τρῖβε πολλὰς καὶ πυκνάς

Vai ligerin amassa uma ruma bem miudin

Mas ligeiro amassa muitos e compactos

Substituiu-se ldquoo mais raacutepido possiacutevelrdquo por ldquovai ligerinrdquo Utilizou-se ldquorumardquo pois eacute a forma mais utilizada para

expressar uma grande quantidade Em ldquobem miudinrdquo haacute duas ecircnfases sendo elas ldquobemrdquo e o -in Tal expressatildeo

substitui ldquocompactosrdquo forma muito elevada ldquoBem grandatildeordquo e bem piquininimrdquo satildeo expressotildees comuns para

o cearense

Οἰκέτης Β ἄνδρες κοπρολόγοι προσλάβεσθε πρὸς θεῶν

Casecircro 2 Homes ajuntadocirc dersquostrume ajude pelus deusu

Criado 2 Homens coletores de estrume ajudem pelos deuses

Optou-se por ldquohomesrdquo em vez de ldquohomensrdquo pois eacute apenas a transcriccedilatildeo da pronuacutencia mais comum por

ldquoajuntadocirc com a retirada do ldquorrdquo final e a colocaccedilatildeo do acento em vez de ldquocoletoresrdquo por ldquodrsquostrumerdquo em vez

de ldquoestrumerdquo pois eacute a forma reduzida reproduzida na fala ldquopelus deusurdquo no lugar de ldquopelos deusesrdquo na

tentativa de aproximaccedilatildeo do que seria ouvido se os camponeses cearenses invocassem os deuses como os

camponeses gregos

εἰ μή με βούλεσθ᾽ ἀποπνιγέντα περιιδεῖν

Srsquo ocecircs num quiseacute mim vecirc morrecirc sem forgo

Se vocecircs natildeo quiserem me ver morrer sem focirclego

[244]

Na passagem acima o termo ldquovocecircsrdquo eacute substituiacutedo por ldquosrsquoocecircsrdquo ldquonatildeordquo por ldquonumrdquo muito comum na linguagem

oral ldquoquiseremrdquo por ldquoquiseacuterdquo ldquome ver morrerrdquo por ldquomim vecirc morrecircrdquo e ldquofocirclegordquo por ldquoforgordquo pois normalmente

as palavras proparoxiacutetonas satildeo reduzidas na fala como no caso de substituiccedilatildeo de ldquolacircmpadardquo por ldquolampardquo

Οἰκέτης Α ἑτέραν ἑτέραν δός παιδὸς ἡταιρηκότος

Casecircro 1 Daacute ocircto e mais ocircto dum rapaz rapariga

Criado 1 Daacute outro e mais outro de um rapaz prostituto

Nesse trecho optou-se por Ocircto em vez de ldquooutrordquo ldquodumrdquo em vez ldquode umrdquo e ldquorapaz raparigardquo em vez de ldquorapaz

prostitutordquo O termo ldquoraparigardquo em cearensecircs significa ldquoprostitutardquo ldquoputardquo no feminino mas a expressatildeo eacute

amplamente utilizada a ponto de ser adjetivo para qualquer palavra ou expressatildeo como ocorre nesta

hipoteacutetica situaccedilatildeo ldquoMatildee - Menino cala essa bocardquo Menino - Rapariga de ldquocala essa bocardquo A palavra ainda

torna mais expressivo a passagem do texto que de alguma forma faz alusatildeo agrave passividade sexual do rapaz

prostituiacutedo

τετριμμένης γάρ φησιν ἐπιθυμεῖν

bem amassadinha ele diz que gosta

triturada pois ele diz apreciar

Optou-se por ldquobem amassadinhardquo ou ldquobem apertadinhardquo No trecho os escravos reclamam por terem que

fazer bolinhos de fezes para o rola-bosta

Οἰκέτης Β ἰδού

ἑνὸς μὲν ὦνδρες ἀπολελύσθαι μοι δοκῶ

Casecircro 2 Taiacute

Drsquouma coisa homes tocirc eacute livrin da silva

Criado 2 Eis aiacute

De uma coisa oacute homens penso estar livre

Nesse caso a expressatildeo ldquode umardquo eacute substituiacuteda por ldquodrsquoumardquo ldquoLivrin da Silvardquo eacute uma expressatildeo comum entre

os cearenses que expressa o fato de estar completamente livre O termo ldquolivrinrdquo jaacute designa ldquomuito livrerdquo

οὐδεὶς γὰρ ἂν φαίη με μάττοντ᾽ ἐσθίειν

Num tem quem diga qursquoeu como bolo amassano ele

Pois ningueacutem diria que eu como ao fazer o bolo

ldquoNum tem quem digardquo eacute uma expressatildeo comum na linguagem oral do cearense e eacute mais expressiva do que

ldquoningueacutem diriardquo Aleacutem disso optou-se por ldquoqursquoeurdquo em vez de ldquoque eurdquo e por ldquoamassano elerdquo em vez de

ldquoamassandordquo Em grego o termo eacute mesmo um particiacutepio

Οἰκέτης Α αἰβοῖ φέρ᾽ ἄλλην χἀτέραν μοι χἀτέραν

Casecircro 1 Ai ai Traz aiacute mais ocircto e ocircto e mais ocircto

Criado 1 Ai ai Traz mais outro e outro e mais outro

[245]

ldquoOutrordquo eacute substituiacutedo por ldquoocirctordquo estando a repeticcedilatildeo no texto grego e ldquotrazrdquo por ldquoTraz aiacuterdquo pois eacute mais

expressivo sendo o ldquoaiacuterdquo uma partiacutecula enfaacutetica

καὶ τρῖβ᾽ ἔθ᾽ ἑτέρας

e amassa mais ocirctos

e tritura mais outros

Traduziu-se nesse caso ldquooutrosrdquo por ldquoocirctosrdquo e ldquotriturardquo por ldquoamassardquo pois aquele primeiro termo eacute mais

comum do que o segundo

Οἰκέτης Β μὰ τὸν Ἀπόλλω γὼ μὲν οὔ

Casecircro 2 Deus alumiadocirc eu mermo natildeo

Criado 2 Por Apolo eu mesmo natildeo

Optou-se por ldquoDeus alumiadordquo com a retirada do ldquorrdquo final e a colocaccedilatildeo do acento em vez de ldquoPor Apolordquo

que eacute o deus representante da luminosidade do Sol que traz a peste e a cura e eacute pai de Ascleacutepio o deus da

Medicina Traduziu-se ainda ldquomesmordquo por ldquomermordquo porque o termo eacute muito comum na oralidade matuta

οὐ γὰρ ἔθ᾽ οἶός τ᾽ εἴμ᾽ ὑπερέχειν τῆς ἀντλίας

Eacute qui num guento mais natildeo o fedocirc da privada

Pois natildeo sou capaz de suportar o fedor do vaso

ldquoPoisrdquo que eacute uma forma mais elevada eacute substituiacuteda por ldquoeacute quirdquo ldquoNum guento mais natildeordquo eacute mais expressivo do

que ldquonatildeo sou capaz de suportarrdquo ldquoFedocircrdquo substitui ldquofedorrdquo e ldquoprivadardquo a palavra ldquovasordquo tendo em vista que a

primeira eacute mais popular do que a segunda Poderia tambeacutem ser ldquosentinardquo mas eacute um termo jaacute em desuso

Οἰκέτης Α αὐτὴν ἄρ᾽ οἴσω συλλαβὼν τὴν ἀντλίαν

Casecircro 1 Vocirc intatildeo eacute levaacute cum privada e tudo

Criado 1 Entatildeo levarei o proacuteprio vaso tomando-a

ldquoVocirc intatildeo eacute levardquo configura um modo expressivo de decisatildeo Na expressatildeo haacute a retirada do ldquorrdquo e colocaccedilatildeo do

acento substituindo ldquolevareirdquo ldquoComrdquo eacute substituiacutedo por ldquocumrdquo que eacute mais comum na linguagem oral dos

cearenses e ldquoo proacuteprio vasordquo por ldquocum privada e tudordquo

O enredo da peccedila trata da vida poliacutetica de Atenas trazendo novamente agrave discussatildeo os dilemas que

camponeses e citadinos sofriam em decorrecircncia da guerra e o que um indiviacuteduo eacute capaz de fazer para que a

paz seja estabelecida Diferente de Diceoacutepolis que negocia a paz somente para ele e sua famiacutelia em

Acarnenses Trigeu parte em busca da paz coletiva Ao tomar o escaravelho e sair do plano terreno dos

homens para adentrar no plano eteacutereo dos deuses Trigeu torna-se um heroacutei que transcende o espaccedilo em

prol da sociedade

[246]

Essa peccedila juntamente com Acarnenses e Cavaleiros formam o trio das peccedilas mais poliacuteticas de Aristoacutefanes

Lanccedilando-se um olhar sobre a peccedila aqui considerada pode-se observar uma dinacircmica entre opostos como

por exemplo Guerra versus Paz soldados versus agricultores astros versus olimpianos plano terrestre versus

plano eteacutereo fabricantes de armas versus fabricantes de instrumentos da lavoura o escaravelho no iniacutecio da

peccedila alimentando-se de fezes e apoacutes a libertaccedilatildeo da Paz saciando-se com ambrosia Ou seja o cenaacuterio eacute

controlado por um uacutenico elemento (Guerra ou Paz) e dependendo de quem estaacute no comando ele se modifica

Em A Paz um dos trechos que melhor representa a questatildeo dessa dicotomia eacute o trecho em que Trigeu

convoca todos gregos a se reunirem e se unirem em um uacutenico propoacutesito libertar a Paz que se encontrava

presa em uma caverna

Analisando os personagens envolvidos e ldquoempenhadosrdquo em libertar a deusa (soldados versus agricultores)

verificamos a presenccedila de atenienses megarenses beoacutecios argivos e posteriormente Trigeu e Hermes

convocados pelo coro Apoacutes longa tentativa Trigeu percebe que um grupo puxa para um lado e outro puxa

para o outro ou seja percebe que haacute entre aqueles que removem as pedras da caverna alguns que

atrapalham o serviccedilo ndash satildeo aqueles que fabricam armas ou que de algum modo lucram com a guerra e que

natildeo desejam seu fim O conselho de Hermes eacute que somente os lavradores removam as enormes pedras Com

o apoio do Coro os poucos agricultores os uacutenicos que queriam a Paz conseguem por fim libertar a Paz

juntamente com a Opora e a Teoria Outro trecho da peccedila que torna evidente o par ldquofabricantes de artefatos

de guerra versus fabricantes de instrumentos agraacuteriosrdquo ocorre logo apoacutes o resgate da Paz em que figuram

duas cenas os fabricantes de foices enxadas e demais objetos de lavoura e de argila que estatildeo

extremamente felizes pelo fim da guerra prontos a iniciar a produccedilatildeo de materiais para o comeacutercio em

oposiccedilatildeo aos fabricantes de armas que estatildeo a arrancar os cabelos

Hermes Tu natildeo vecircs aquele fabricante de penacho ali que arranca seus proacuteprios cabelos

Trigeu Este que faz as enxadas haacute pouco zombou daquele fabricante de espadas

Hermes Este fabricante de foices natildeo vecircs como tem prazer

Trigeu E como tratou mal o fabricante de lanccedilas (Ar A Paz 545-549)3

Em seguida como bem coloca Whitman (1964) os camponeses quando intimados por Trigeu que os convoca

como se estivessem no exeacutercito se preparam com seus instrumentos nas matildeos para o retorno ao campo

Trigeu Por Zeus a enxada era brilhante e preparada os tridentes brilham diante do sol (Ar

A Paz 568)4

Ainda segundo Whitman (1964) quando os que fabricam foices e enxadas celebram e consequentemente

zombam dos fazedores de armas que estatildeo arrancando os cabelos por natildeo haver mais compradores

3 A traduccedilatildeo de Paz eacute de Greice Ferreira Drumond (2002) 4 A traduccedilatildeo de Paz eacute de Greice Ferreira Drumond (2002)

[247]

interessados em suas mercadorias sugere-se um prenuacutencio das cenas finais quando Trigeu comeccedila sua

investida em tentar transformar elmos com penachos em espanadores espadas em enxadas ou as couraccedilas

em penicos por exemplo Esse confronto com as novas utilidades dadas por Trigeu aos artefatos de guerra

tornando-os utensiacutelios domeacutesticos tambeacutem faz parte dessa dicotomia Os mesmos objetos que antes eram

usados em batalhas se transformam em objetos de paz utilizados no cotidiano dos cidadatildeos Como as

mercadorias perdem o valor comercial os fabricantes de armas saem visivelmente transtornados diante do

protagonista com o prejuiacutezo em matildeos jaacute com os que fabricam foices por exemplo ocorre o inverso

Uma outra questatildeo a ser abordada eacute o figurino utilizado na performance Essa peccedila natildeo explora muito as

vestes dos personagens Na verdade de acordo com Compton-Engle (2015) em A Paz ocorre exatamente o

contraacuterio do que nas outras peccedilas Aristofacircnicas e haacute um silecircncio quanto agrave abordagem desse assunto haacute a

opccedilatildeo por citar somente duas vezes um traje espartano de guerra tambeacutem usado pelos taxiarcos atenienses

(v 303 e 1175) como bem explica Sousa e Silva (1984) Esse manto militar vermelho (φοινικίς phoinikis) era

usado por soldados espartanos e inserir um termo como esse apenas duas vezes em uma peccedila que tem como

tema central o fim da Guerra e o resgate e restituiccedilatildeo da Paz oferece uma interpretaccedilatildeo como propotildee

Compton-Engle (2015) isto eacute de que esse tipo de traje natildeo encontra espaccedilo nessa peccedila que soacute diz respeito

agrave paz Haacute uma outra suposiccedilatildeo que Whitman (1964) propotildee com relaccedilatildeo ao figurino afirmando o autor que

provavelmente o enredo tenha sido escrito em questatildeo de semanas o que pode justificar a escassez no que

concerne ao figurino das personagens

Conclusatildeo

O cearensecircs ou o portuguecircs matuto do Cearaacute foi apresentado em nosso estudo de Acarnenses de Aristoacutefanes

no livro Dioniso matuto uma abordagem antropoloacutegica do cocircmico na traduccedilatildeo de Acarnenses de Aristoacutefanes para

o cearensecircs

O falar matuto cearense consiste em usar apenas uma marca do plural (os priacutetane)

ldquoturdquo com o verbo na terceira pessoa (tu vai) retirar os erres finais e substituir por

acento na vogal anterior (aceitaacute embaixadocirc) o mesmo com as terminaccedilotildees em ndashou

(falocirc) cortar a siacutelaba inicial do verbo estaacute (tocirc taacute) repeticcedilotildees de natildeo mudando a

primeira forma (tu num taacute vendo natildeo) ldquohomerdquo por homem o ldquolhrdquo por ldquoirdquo (muieacute por

mulher aio por alho) falar no diminutivo substituindo ndashinho por ndashin40 (desse

tamanhin) ldquoprardquo ldquopros prasrdquo em vez de ldquoparardquo ldquopara osrdquo e ldquopara asrdquo usar

interjeiccedilotildees caracteriacutesticas(oxente Arre eacutegua Vixe) ecircnfases (euzin aqui oacute

abestaiadin vocirc eacute batecirc na porta) ldquomermordquo por ldquomesmordquo retirar o ldquolrdquo final de algumas

palavras (miserave por miseraacutevel terrive por terriacutevel) entonaccedilotildees caracteriacutesticas

(Pense numa sacudida grande) As alteraccedilotildees ou criaccedilotildees tecircm intuito expressivo

satildeo intensificadores do sentido Deixamos algumas palavras sem alteraccedilatildeo para

que se faccedilam entender melhor jaacute que natildeo haacute mais matuto que fale completamente

diferente dos citadinos e estes fazem graccedila imitando o falar matuto a ponto de

[248]

integrar alguns modos de expressotildees no cotidiano na comunicaccedilatildeo com os mais

proacuteximos que reconhecem o coacutedigo linguiacutestico tambeacutem natildeo exclusivo de uma

regiatildeo ou cidade Haacute sim o uso mais intenso de algumas caracteriacutesticas de falares

em determinadas regiotildees Os meios de comunicaccedilatildeo especialmente a telenovela

tecircm divulgado falares diversos dos matutos nordestinos ou natildeo do Brasil atraveacutes

do mundo (POMPEU 2014)

Propomos como conclusatildeo uma traduccedilatildeo contiacutenua como a linha que acrescentamos agrave nossa A Paz triliacutengue

em que cada um faccedila a sua sugestatildeo no dialeto de sua regiatildeo ampliando as possibilidades de expressividade

do camponecircs cearense ou de qualquer estado brasileiro para o enriquecimento da nossa pesquisa que jaacute

contou com variados dialetos dos integrantes do Grupo de Estudos da Comeacutedia de Aristoacutefanes ndash GECA

Referecircncias bibliograacuteficas

ARISTOacuteFANES Os Acarnenses Introduccedilatildeo versatildeo do grego e notas de M de F de Sousa e Silva Coimbra Instituto Nacional de Investigaccedilatildeo Cientiacutefica 1980

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BERMAN A A traduccedilatildeo e a letra ou o albergue do longiacutenquo Trad M H C Torres M Furlan A Guerini 2 ed Florianoacutepolis PGETUFSC 2013

COMPTON-ENGLE G Costume in the comedies of Aristophanes Cambridge Harvard University 2015

DOURADO O A MELO K A Dicionaacuterio de cearecircs e matutecircs Fortaleza Direitos Humanos 2013

DRUMOND G F A realidade ficcional em A Paz de Aristoacutefanes 2002 Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Liacutengua e Literatura Grega) ndash Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo da Faculdade de Letras Universidade Federal do Rio de Janeiro Rio de Janeiro 2002

GOMES M C Paz traduccedilatildeo e comentaacuterio Dissertaccedilatildeo (Mestrado) Universidade de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 1984

PLATTER C Aristophanes and the carnival of genres Baltimore Johns Hopkins University 2007

POMPEU A M C Aristoacutefanes e Platatildeo a justiccedila na poacutelis Satildeo Paulo Biblioteca 24 Horas 2011

POMPEU A M C Dioniso matuto uma abordagem antropoloacutegica do cocircmico na traduccedilatildeo de Acarnenses de Aristoacutefanes para o cearensecircs Curitiba Appris 2014

WHITMAN C H Aristophanes and the Comic Hero Cambridge Harvard University 1964

A gruta

da Inveja traduccedilatildeo e criacutetica em Metamorfoses 2760-782 de Oviacutedio

Raimundo N Barbosa de Carvalho

raycarvalhouolcombr

Dentro do campo dos Estudos Claacutessicos em liacutengua portuguesa

vimos acontecer nos uacuteltimos trinta anos pelo menos um grande

desenvolvimento da praacutetica de traduccedilotildees poeacuteticas de poesias

claacutessicas dentro de uma tradiccedilatildeo tradutiva que remonta no

miacutenimo ao seacuteculo XVIII Embora possamos afirmar que durante

todo esse periacuteodo sempre se assistiu ao surgimento de importantes

traduccedilotildees poeacuteticas de obras claacutessicas essa modalidade de traduccedilatildeo

sofreu desde os primoacuterdios do seacuteculo XX um processo de

arrefecimento em virtude da ascensatildeo de outro tipo de traduccedilatildeo

que vigorou como apecircndice dos estudos claacutessicos de natureza

filoloacutegica a traduccedilatildeo em prosa seja ela literal ou ligeiramente

adaptada agrave linguagem contemporacircnea dentro do padratildeo

linguiacutestico adotado pelo mercado editorial Paradoxalmente o

fortalecimento dos Estudos Claacutessicos no Brasil com a crescente

profissionalizaccedilatildeo da pesquisa acadecircmica colaborou para fazer

nascer um novo ciclo de traduccedilotildees poeacuteticas de poesia latina em

especial Natildeo satildeo mais poetas avulsos com pouca formaccedilatildeo claacutessica

a se aventurarem no traslado da poesia latina em moldes

experimentais Os tradutores atuais de poesia claacutessica satildeo em sua

maioria professores e pesquisadores universitaacuterios munidos de

aparato criacutetico filoloacutegico e das mais amplas reflexotildees sobre a

traduccedilatildeo poeacutetica uma teia de textos que remonta a Ciacutecero e Satildeo

[250]

Jerocircnimo perfazendo uma longa e ininterrupta tradiccedilatildeo que se adensa e ganha profundidade de reflexatildeo

sistemaacutetica com os romacircnticos alematildees dos quais o seminal texto A tarefa do Tradutor de Walter Benjamin

eacute tributaacuterio

Sob o domiacutenio atual da praacutetica de traduccedilotildees claacutessicas podemos dizer que estamos numa direccedilatildeo inequiacutevoca

de valorizaccedilatildeo da esteacutetica do traduzir Jaacute natildeo contenta mais a pedestre reproduccedilatildeo de conteuacutedo das

traduccedilotildees literais nem haacute mais lugar para a pura invencionice daqueles amadores desprovidos de aparato

Portanto cremos um longo e persistente caminho foi trilhado e muito haacute ainda por ser feito Atingiu-se um

padratildeo a balizar os futuros empreendimentos no campo da traduccedilatildeo poeacutetica tanto da poesia em geral como

da poesia claacutessica em particular O que eacute necessaacuterio agora eacute voltarmos a atenccedilatildeo agrave dimensatildeo criacutetica da

atividade tradutoacuteria Cada gesto esteacutetico corresponde a um gesto criacutetico O porquecirc de se traduzir dessa ou

daquela maneira eacute algo a ser seriamente pesquisado e refletido As traduccedilotildees poeacuteticas que jaacute conteacutem em si

essa dimensatildeo criacutetica necessitam tambeacutem elas de serem criticamente recebidas e avaliadas

Infelizmente no domiacutenio da criacutetica de traduccedilatildeo estamos a anos-luz atrasados dos progressos que foram

feitos no campo da traduccedilatildeo poeacutetica propriamente dita Vigora ainda entre noacutes a anacrocircnica leitura sinoacutetica

entre original e traduccedilatildeo superdimensionando a auctoritas do primeiro em detrimento da dimensatildeo criativa

e criacutetica do segundo Busca-se o cotejo para caacutelculo das perdas e danos e para ressaltar diferenccedilas episoacutedicas

e pontuais Em geral quase nunca a traduccedilatildeo eacute vista como traduccedilatildeo Ela eacute de certa forma ignorada e

invisibilizada Para estes estudiosos a traduccedilatildeo eacute pura transparecircncia do original e soacute se torna objeto de sua

atenccedilatildeo quando ela destoa da visatildeo que ele tem do original Aiacute entatildeo ela se torna mesmo visiacutevel objeto de sua

ira travestida de cuidados filoloacutegicos que soacute mascaram a sua falta de aparato criacutetico que decirc conta das

operaccedilotildees processadas pela traduccedilatildeo criativa outro nome para a traduccedilatildeo poeacutetica

Eacute preciso portanto que o criacutetico de traduccedilatildeo se profissionalize e tenha conhecimento da vasta tradiccedilatildeo de

textos reflexivos sobre o fazer tradutoacuterio agrave qual me referi Sem o conhecimento desse conjunto de reflexotildees

teoacutericas o trabalho do criacutetico seraacute tatildeo somente limitado a um desacerto de opiniotildees sem proveito criacutetico

meros anaacutetemas adornados por uma retoacuterica de termos e conceitos ultrapassados que natildeo datildeo conta dos

fatos esteacuteticos que enformam a cadeia de sentidos que fazem da traduccedilatildeo poeacutetica texto a ser lido e

interpretado na sua dimensatildeo criativa independente do cotejo com a matriz que lhe deu origem mas que ao

ser cotejado com ela coloca-se como par pari passu com original

Em Pour une critique des tradutions John Donne Antoine Berman apresenta seu projeto de uma criacutetica

produtiva afirmando que desde o iluminismo a criacutetica sempre realccedilou a negatividade No entanto para

ele a criacutetica deve ser essencialmente positiva Na esteira de Friedrich Schlegel fundador da criacutetica moderna

o termo criacutetica eacute reservado para a anaacutelise de obras de qualidade pois a criacutetica puramente negativa natildeo eacute

uma criacutetica real Para anaacutelise de obras mediacuteocres ou de baixa densidade esteacutetica usa-se o termo

[251]

caracterizaccedilatildeo A criacutetica seria antes de tudo uma exigecircncia das proacuteprias obras literaacuterias para se

manifestarem se completarem e se perpetuarem A criacutetica tal como ele compreende permite garante e

estimula a circulaccedilatildeo da obra ainda que por vezes tente obscurececirc-la sufocaacute-la ou mesmo mataacute-la Seja qual

for o perigo a criacutetica liga-se ontologicamente agrave obra Nesse sentido a traduccedilatildeo eacute tatildeo importante quanto a

criacutetica para disseminaccedilatildeo das obras e a ela se relaciona estruturalmente pois natildeo eacute raro que tradutores se

voltem a obras de criacutetica para traduzir um livro atuando portanto como criacutetico em todos os niacuteveis Quando

se trata inclusive de uma retraduccedilatildeo fica impliacutecita ou expliacutecita uma criacutetica das traduccedilotildees anteriores que

revela um determinado estado da cultura da liacutengua e da literatura da eacutepoca em que foram realizadas

apontando e contextualizando as deficiecircncias e as inatualidades delas (BERMAN 1995 p 38-40) mas

tambeacutem se apropriando de suas qualidades como forma de realccedilar os valores permanentes daquelas

traduccedilotildees que mesmo envelhecidas se mantecircm iacutentegras e legiacuteveis para um leitor empenhado como soacutei ser

o tradutor-poeta-criacutetico

Eacute portanto sob essa perspectiva bermaniana que gostariacuteamos de abordar criticamente o conjunto de

traduccedilotildees de Metamorfoses 2760-782 que ora apresentamos em apecircndice Como jaacute sugere o tiacutetulo deste

ensaio a traduccedilatildeo de Bocage eacute o foco em volta do qual haacute de girar toda a reflexatildeo que pretendemos

desenvolver aqui Bocage nomeou o trecho de A gruta da Inveja muito apropriadamente e isso serve bem

aos seus interesses de tradutor mas pode ser tambeacutem compreendido metaforicamente como uma referecircncia

ao trabalho mesmo de traduccedilatildeo pois na pulsatildeo de traduzir muita carga afetiva positiva eou negativa eacute

despendida Traduz-se aquilo que se considera belo e relevante de se traduzir e ao se proceder agrave traduccedilatildeo

esta se faz a partir da crenccedila de que se pode fazer igual ou melhor aquilo que jaacute encontrou a perfeiccedilatildeo em

outro territoacuterio linguiacutestico Traduzir eacute medir forccedilas outrar-se sendo si mesmo invejar e ser objeto de inveja

A muitos o tradutor parece invisiacutevel mas eacute a traduccedilatildeo que muitas vezes torna o original invisiacutevel O leitor

ingecircnuo quase sempre acha que estaacute lendo uma obra quando na verdade estaacute lendo outra saiacuteda da verve

natildeo do autor anunciado na capa mas do seu tradutor escondido na ficha teacutecnica A teacutecnica do ilusionismo

empregada na traduccedilatildeo eacute na melhor das hipoacuteteses uma espeacutecie de desdobramento do jogo ficcional em que

uma nova instacircncia enunciativa se soma a outras jaacute existentes para a produccedilatildeo de um texto novo que guarda

com o antigo uma relaccedilatildeo mais ou menos conflituosa de parentesco Ser um leitor consciente e criacutetico de uma

traduccedilatildeo eacute compreender e tirar partido desse desdobramento que eacute um desdobramento tambeacutem do proacuteprio

leitor

Pois entatildeo vejamos Que tipo de metamorfose Bocage produz ao traduzir o trecho em questatildeo da obra

maacutexima de Oviacutedio Antes de responder a essa questatildeo cabe fazer algumas observaccedilotildees a respeito do sentido

e da forma desse original Trata-se de uma sequecircncia de vinte dois versos cujo sentido para ser bem

estabelecido depende totalmente do que vem antes e depois do que nele eacute narrado No original e nas

[252]

traduccedilotildees integrais do Livro II das Metamorfoses o trecho funciona como uma pequena digressatildeo em que o

poeta se utiliza da teacutecnica da mise en abyme para contar uma histoacuteria dentro da outra e assim ir saciando a

sua pulsatildeo de narrar O trecho portanto narra a descida de Minerva ao antro malcheiroso de Inveja para

pedir que esta inocule o veneno da inveja em Aglauro uma das filhas de Ceacutecropis rei de Atenas (esse pedido

vem logo apoacutes o trecho selecionado - Met II 784-785 - como vinganccedila pela conduta cobiccedilosa de Aglauro que

exigiu quantidades de ouro de Mercuacuterio para favorecer o seu amor pela irmatilde Herse aleacutem da impertinecircncia

de ter descoberto um pouco antes um segredo de Minerva ndash Met 2749-751)

Como daacute para perceber o trecho em questatildeo lido isoladamente natildeo chega a constituir uma unidade de

sentido completo e depende tanto do que foi narrado como do que vai ser narrado logo em seguida O que

levou Bocage entatildeo a isolaacute-lo e traduzi-lo Eacute que Bocage viu ali a oportunidade de inovar fazer diferente O

proacuteprio tradutor informa em nota que a versatildeo eacute salteada (OVIacuteDIO amp BOCAGE 2000 p 65) Ele elidiu a

presenccedila de Minerva e tudo o que se refere a accedilotildees e reaccedilotildees da deusa e se concentrou nos pormenores da

descriccedilatildeo do local e da figura medonha da Inveja criando um novo texto autocircnomo a partir do texto de

Oviacutedio mas ao mesmo tempo muito ovidiano Trata-se de uma eacutecfrase ou evidecircncia figura de retoacuterica assim

definida no dicionaacuterio Houaiss descriccedilatildeo viva e minuciosa de um objeto realizada com a enumeraccedilatildeo de

suas particularidades sensiacuteveis reais ou fantasiosas

Eacute sintomaacutetico que o Livro II das Metamorfoses comece justamente com uma eacutecfrase da Morada do Sol (vv 1-

18) que Bocage natildeo se interessou em verter embora tenha vertido outro passo do episoacutedio que ele intitulou

Precipiacutecio de Faetonte (vv 161-183) Dentre os 20 textos extraiacutedos das Metamorfoses Bocage compocircs

ainda nos mesmos moldes A gruta do Sono (Met 11592-645) Em nota ele informa que o episoacutedio natildeo

foi traduzido seguidamente [] porque natildeo pretendia verter senatildeo a descriccedilatildeo da gruta do sono e de seus

ministros (OVIacuteDIO amp BOCAGE 2000 p 113) Eacute que ao traduzir Oviacutedio Bocage natildeo o fez de maneira

ordinaacuteria Ele traduz imitando emulando ou seja ele procura organicamente recriar o texto ovidiano

dentro do jargatildeo literaacuterio de sua eacutepoca No poema Pena do Taliatildeo dirigido a seu desafeto Macedo Bocage

assim reflete sobre a sua arte de traduzir

Verter com melodia ardor pureza

O metro peregrino em luso metro

Dos idiotismos aplanando o estorvo

De um doutro idioma discernindo os gecircnios

O caraacuteter do texto expor na glosa

Eacute ser bugio ou papagaio Elmiro (OVIacuteDIO amp BOCAGE 2000 p 24)

Aleacutem do mais as traduccedilotildees de Bocage atestam o modo como os leitores daquele periacuteodo tendiam a ler a

obra-prima de Oviacutedio natildeo como canto contiacutenuo mas como um repositoacuterio de faacutebulas isoladas Talvez por

isso ele tenha se omitido de traduzir o ceacutelebre proacutelogo (Met I 1-5) no qual Oviacutedio expotildee o assunto e o

formato do poema As Transformaccedilotildees de Cacircndido Lusitano (pseudocircnimo do aacutercade Francisco Joseacute Freire)

[253]

embora se pretendam uma traduccedilatildeo completa (ainda que expurgadas das partes licenciosas) das

Metamorfoses de Oviacutedio jaacute indicam essa tendecircncia de leitura fragmentada em faacutebulas1 que no original latino

o poeta costurou com grande mestria umas e de forma um tanto quanto artificiosa outras mas natildeo deixando

nenhuma ponta delas fora dessa grande costura que constitui a estrutura dinacircmica do seu eacutepico De certa

forma a traduccedilatildeo dos quatro primeiros livros das Metamorfoses empreendida por Almeno outro aacutercade

contemporacircneo de Bocage manteacutem idealmente a forma ininterrupta do original De Almeno (pseudocircnimo

do Padre Joseacute do Coraccedilatildeo de Jesus) disse o prefaciador da ediccedilatildeo poacutestuma de sua traduccedilatildeo

Que diremos das virtudes da Locuccedilatildeo parte uacutenica em que pode ser mais seu

engenho a eloquecircncia e o gosto de um Tradutor Com ser Traduccedilatildeo em verso e de

um Poema tatildeo mimoso e delicado e ela tatildeo fiel e chegada ao texto eacute ao mesmo passo

mui pura e limpa nas palavras mui proacutepria e escolhida nos termos faacutecil e natural nas

expressotildees correta na gramaacutetica elegante na dicccedilatildeo luzida e airosa na frase

poeacutetica e rica em todos os primores e aticismo da Liacutengua sendo mui formosa coisa

ver substituiacutedas com todo garbo e ufania as maneiras polidas finas e engraccediladas de

Oviacutedio por outras equivalentes em nossa liacutengua e reproduzidas gentilmente na

coacutepia todas as galhardias e donaires da locuccedilatildeo todas as variaccedilotildees e floreios de

estilo do original

Assim trabalhava Almeno competindo a desafio com Oviacutedio e emparelhando com

ele em todos os seus extremos e gentilezas de seu Poema e felizmente para o Poeta

Romano teve a gloacuteria da invenccedilatildeo sem o que seria difiacutecil decidir do merecimento

entre os dois rivais (OVIacuteDIO 1805 p 18-19)

Estamos diante de trecircs tradutores poetas aacutercades que partem de uma poeacutetica comum e complementar cada

qual com seu desempenho concreto no exerciacutecio da traduccedilatildeo De Cacircndido Lusitano Castilho disse que era

erudito ldquotrabalhador incansaacutevel mas natildeo um poetardquo (PREDEBON 2006 p 112) Por outro lado tinha

Bocage em alta conta e agrave sua traduccedilatildeo das Metamorfoses colou versos inteiros do aacutercade notaacutevel como pode

observar o leitor ao comparar os dois textos Esse eacute um caso sui generis de retraduccedilatildeo em que o tradutor mais

recente traduz contra e a favor ao mesmo tempo do tradutor anterior Castilho como que restaura a

integridade do texto ovidiano aproveitando os estilhaccedilos da traduccedilatildeo fragmentaacuteria de Bocage

E isso ao inveacutes de obnubilar a poeacutetica tradutiva de Bocage a ressalta Castilho tenta se ombrear com Bocage

mas sabe que natildeo eacute paacutereo para ele na fatura do decassiacutelabo mesmo porque se trata de sensibilidades

poeacuteticas diferentes A utilizaccedilatildeo da teacutecnica da colagem eacute uma soluccedilatildeo intermediaacuteria e uma forma de desler e

reler o gesto criativo de Bocage ao traduzir de forma livre o texto das Metamorfoses como que

1 A divisatildeo do poema em faacutebulas enumeradas e com tiacutetulo natildeo demonstra somente didatismo mas mudanccedila de gecircnero jaacute que sob a perspectiva das poeacuteticas de Aristoacuteteles e Horaacutecio seguidas por Cacircndido Lusitano na elaboraccedilatildeo de sua proacutepria Arte Poeacutetica natildeo se contemplava a disposiccedilatildeo das Metamorfoses como um poema contiacutenuo o que direciona a leitura da obra como um conjunto de poemas de subgecircnero metamorfose Tambeacutem os expurgos indicam como a poeacutetica incorpora a censura e justifica a autoridade do tradutor para alterar o texto (PREDEBON 2006 p 74-75)

[254]

desentranhando dela aquilo que a sua mente destaca A essa gruta gruta da Inveja que o tradutor Bocage

esculpiu com os materiais selecionados do original Castilho faz entrar de novo Minerva refazendo dessa

forma a integridade do texto ovidiano A traduccedilatildeo de nossa lavra que tambeacutem vai disposta abaixo se

apropria dessa tradiccedilatildeo de traduccedilotildees das obras latinas procurando manter criacutetica e criativamente viva a

pulsatildeo do traduzir Ao inveacutes de nos mantermos dentro da linhagem decassilaacutebica agrave qual se ligam as quatro

traduccedilotildees aqui elencadas buscamos inovar traduzindo cada um dos hexacircmetros latinos por um verso

dodecassilaacutebico em portuguecircs o que permite a igualdade numeacuterica com o original A concisatildeo atingida pelos

antecessores eacute tambeacutem um estiacutemulo agrave busca de efeito semelhante As formas os torneios frasais o

vocabulaacuterio as vaacuterias camadas de linguagem todo seu repositoacuterio de textos que para muitos natildeo passa de

velharias de antigos alfarraacutebios eacute material para a reflexatildeo criacutetica que subjaz agrave atividade pensante da

traduccedilatildeo criativa Essa atividade pensante que se verifica no movimento da linguagem na traduccedilatildeo tambeacutem

ela quer capturar a atenccedilatildeo do leitor reflexivo e criacutetico capaz de distinguir os miacutenimos jogos de linguagem

que envolvem a operaccedilatildeo tradutoacuteria e faz disso um encanto paralelo e agrave parte distinto do encanto proacuteprio

da obra originaacuteria

Oviacutedio Metamorfoses 2760-782

Protinus Inuidiae nigro squalentia tabo 760

tecta petit domus est imis in uallibus huius

abdita sole carens non ulli peruia uento

tristis et ignaui plenissima frigoris et quae

igne uacet semper caligine semper abundet

Huc ubi peruenit belli metuenda uirago 765

constitit ante domum (neque enim succedere tectis

fas habet) et postes extrema cuspide pulsat

Concussae patuere fores Videt intus edentem

uipereas carnes uitiorum alimenta suorum

Inuidiam uisaque oculos auertit at illa 770

surgit humo pigre semesarumque relinquit

corpora serpentum passuque incedit inerti

utque deam uidit formaque armisque decoram

ingemuit uultumque una ac suspiria duxit

Pallor in ore sedet macies in corpore toto 775

nusquam recta acies liuent robigine dentes

pectora felle uirent lingua est suffusa ueneno

risus abest nisi quem uisi mouere dolores

nec fruitur somno uigilantibus excita curis

sed uidet ingratos intabescitque uidendo 780

successus hominum carpitque et carpitur una

suppliciumque suum est

[255]

Traduccedilatildeo de Cacircndido Lusitano (1771)

Sem demora

Busca da Inveja a habitaccedilatildeo imunda

Eacute esta em fundo vale uma medonha

Caverna que jamais o Sol visita 1075

Jamais nela entra vento ao frio inerte

Somente entrada daacute por isso sempre

Carece de Calor abunda em trevas

Apenas chega a Varonil Deidade

Paacutera fora da entrada (que entrar dentro 1080

Permitido natildeo lhe eacute) na porta bate

Crsquoo conto drsquoalta lanccedila aos golpes se abre

E aos olhos se lhe mostra o feio Monstro

Viacuteboras devorando de seus viacutecios

Mantimento comum Firmar a vista 1085

Nela natildeo pode volta-lhe o semblante

Do aspecto horrorizada Mas a Inveja

Assim que a vecirc da terra se levanta

E larga as serpes meias laceradas

Caminha a lentos passos e da Deusa 1090

Ao ver a fermosura e ricas armas

Suacutebito geme e aflitos ais arranca

Vive em seu rosto palidez medonha

E em todo o corpo lacircnguida fraqueza

O seu olhar nunca eacute direito os dentes 1095

Ferrugiacuteneos estatildeo liacutevidos sempre

De verde fel mostra pintado o peito

E em veneno mortal nadando a liacutengua

Nela jamais haacute riso senatildeo quando

Ao ver males alheios se deleita 1100

De cuidados soliacutecitos movida

Sempre o sono afugenta e estaacute agrave mira

Dos sucessos alegres que a devoram

Quer vecirc-los de contiacutenuo e o ver a dana

Sempre quer afligir e eacute afligida 1105

Sendo perpeacutetua pena de si mesma

[256]

Traduccedilatildeo de Almeno (1795)

Da inveja logo

agrave casa vai que negra peste escorre

A casa estaacute metida nos profundos

vales duma caverna nunca vista

do sol dos ventos nunca bafejada

sombria e aonde o ignavo gelo mora

falta-lhe sempre o fogo e abunda a treva

sempre Mal a virago belicosa

tremenda aqui chegou ante o aposento

para que nem lhe entrar se lhe concede

na cova e agraves portas com o conto bate

da lanccedila as portas ao bater se abriram

Vecirc dentro a Inveja a devorar as carnes

das viacuteboras que os seus furores nutrem

E vista aparta os olhos Mas da terra

preguiccedilosa ela se levanta e os meio

comidos corpos das serpentes deixa

E a passos lentos anda E com em armas

e aspecto viu gentil a Deusa geme

E de internos suspiros cobre a face

No rosto habita a palidez nos membros

a fome todos daacute olhado a tudo

Os dentes caacuterdeos de ferrugem tinha

Do fel verdeja o peito a liacutengua verte

veneno Foge o riso natildeo aquele

que alheias maacutegoas datildeo nem de cuidados

veladores chamada sono colhe

Mas vecirc com dor felizes os humanos

e vendo se definha e de parelha

morde e morde-se faz-se seu verdugo

[257]

Traduccedilatildeo de Bocage (1800)

Eacute a estacircncia da Inveja em gruta enorme

Laacute nuns profundos vales escondida

Aonde o Sol natildeo vai nem vai Favocircnio

Reina ali rigoroso eterno frio

De uacutemidas grossas neacutevoas sempre abunda

O monstro vive de vipeacutereas carnes

Dos seus tartaacutereos viacutecios alimento

Da morte a palidez lhe estaacute no aspecto

Magreza e corrupccedilatildeo nos membros todos

Olha sempre ao reveacutes ferrugem torpe

Nos asquerosos dentes lhe negreja

Vecirc-se o fel verdejar no peito imundo

Espumoso veneno a liacutengua verte

Longa o riso lhe jaz dos negros laacutebios

Soacute se nos mais haacute pranto haacute nela riso

Em natildeo vendo chorar lhe acode o choro

Natildeo goza de repouso um soacute momento

Os cuidados que a roem natildeo sofre sono

Mirra-se de pesar ao ver nos homens

Qualquer bem rala e rala-se a maligna

Eacute verdugo de si oacutedio de todos

[258]

Traduccedilatildeo de Feliciano de Castilho (1841)

Parte corre da Inveja ao lar soturno

ao lar que escorre em puacutetrido veneno

Eacute a estacircncia da Inveja em gruta enorme

Laacute nuns profundos vales escondida

Aonde o sol natildeo vai nem vai favocircnio

Reina ali rigoroso eterno frio

De uacutemidas grossas neacutevoas sempre abunda

Chegara ao siacutetio infesto a Deusa invicta

Ante a morada atroz suspende o passo

Que natildeo lhe eacute dado penetrar laacute dentro

Fere a porta coa lanccedila abriu-se a porta

vecirc-a ao fundo a comer vipeacutereas carnes

De seus tartaacutereos viacutecios alimento

Vecirc-a e para a natildeo ver desvia os olhos

Deixando em meio as serpes que tragava

Se ergue a custo da terra o monstro feio

Com tardo passo vem e ao ver Tritocircnia

formosa nas feiccedilotildees gentil nas armas

Gemeu ao seu gemido a encara a Deusa

Da morte a palidez lhe estaacute no aspeto

Magreza e corrupccedilatildeo nos membros todos

Olha sempre ao reveacutes ferrugem torpe

Nos asquerosos dentes lhe negreja

Vecirc-se o fel verdejar no peito imundo

Espumoso veneno a liacutengua verte

Longe o riso lhe estaacute dos negros laacutebios

Soacute se nos mais haacute pranto haacute nela riso

Natildeo goza de repouso um soacute momento

Os cuidados que a roem natildeo sofrem sonos

Mirra-se de pesar ao ver nos homens

Qualquer bem rala e rala-se a maldita

Eacute verdugo de si oacutedio de todos

[259]

Traduccedilatildeo de Raimundo Carvalho (2017)

Suacutebito busca o teto da Inveja infecto 760

de negro pus seu lar no mais profundo vale

escondido carente de sol e de vento

triste e farto de torpe frio e sempre falto

de fogo estaacute repleto de caligem sempre

Chegando laacute temiacutevel guerreira a virago 765

parou na porta entrar no teto era interdito

e com a ponta da lanccedila o batente golpeia

Ao golpe as portas se abrem vecirc dentro comendo

vipeacutereas carnes alimento de seus viacutecios

Inveja e vendo-a a vista desvia Mas esta 770

se ergue da esteacuteril terra e deixa mal roiacutedos

os corpos de serpente e em passo lento avanccedila

e quando viu a deusa em forma e ornada de armas

gemeu e o rosto em fundos suspiros franziu

A palidez lhe toma a face e o magro corpo 775

nunca eacute direto o olhar e o sarro borra os dentes

de fel verdeja o peito em liacutengua flui veneno

riso natildeo tem soacute quando vecirc a dor de algueacutem

nem frui do sono em vigilante afatilde desperta

mas vecirc com desagrado e se consome ao ver 780

o sucesso dos homens roacutei e se corroacutei

eacute seu supliacutecio

Referecircncias bibliograacuteficas

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Donne Paris Gallimard 1995

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1994

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Hedra 2000

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Castilho Rio de Janeiro Orgs Simotildees 1959

OVIacuteDIO Os quatro primeiros livros da

Metamorphose de P Ovidio Nasatildeo poeta romano

Traduzidos em verso solto portuguez por Almeno

Lisboa Typografia Lacerdina 1805 p 120-121

PREDEBON A Ediccedilatildeo do manuscrito e estudo das

Metamorfoses de Oviacutedio traduzidas por Francisco

Joseacute Freire Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Letras

Claacutessicas) ndash Faculdade de Filosofia Letras e

Ciecircncias Humanas Universidade de Satildeo Paulo

Satildeo Paulo 2006

O Satyricon

de Petrocircnio traduzido para o portuguecircs do Brasil uma anaacutelise das notas do tradutor

Liacutevia Mendes Pereira

liviamendesletrasgmailcom

No presente estudo seratildeo analisados trechos do Satyricon de

Petrocircnio em duas traduccedilotildees para a liacutengua portuguesa do Brasil por

meio da anaacutelise comparativa Utilizarei o texto latino na versatildeo da

Garnier (1934) e as traduccedilotildees publicadas de Paulo Leminski (1985)

e de Sandra Braga Bianchet (2004)

Pensando que a traduccedilatildeo assim como o original estatildeo abertos ao

interdiscurso e agraves possibilidades de dizer produzindo diversos

sentidos para um mesmo texto retomarei a definiccedilatildeo de ldquofunccedilatildeo

tradutorrdquo discutida por Solange Mittmann (2000) em que o

tradutor tenta criar a ldquoilusatildeordquo de que quem fala no texto da

traduccedilatildeo eacute o autor do original tentando mostrar uma ldquoidentificaccedilatildeo

total com o originalrdquo Evidenciaremos a presenccedila da ldquofunccedilatildeo

tradutorrdquo presente na construccedilatildeo das Notas de Tradutores

(doravante NT) as quais Solange Mittmann considera ldquonatildeo como

um discurso paralelo mas como um discurso extensivo ao discurso

do texto da traduccedilatildeordquo (MITTMANN 2000 p 2) Para a autora haacute

um distanciamento entre as duas vozes nas NT que criam a ilusatildeo

de que quem fala no texto ldquotraduccedilatildeordquo eacute o autor e de que quem fala

no texto ldquoNTrdquo eacute o tradutor

[261]

Friedrich Pretendo destacar que na traduccedilatildeo ldquotranscriaccedilatildeordquo de Paulo Leminski ao inveacutes de o tradutor tentar

criar a ilusatildeo de transparecircncia ele retoma a opacidade do texto de partida no texto de chegada em liacutengua

portuguesa ou seja ele recria o ldquojaacute opacordquo do texto original Trata-se assim de uma opccedilatildeo diferente das

traduccedilotildees filoloacutegicas e acadecircmicas que tentam criar a ldquoilusatildeo de transparecircnciardquo total do texto de partida

com uma interpretaccedilatildeo ldquodita como certardquo alicerccedilada em dicionaacuterios ou com a utilizaccedilatildeo das NT

O Satyricon de Petrocircnio e suas traduccedilotildees para liacutengua portuguesa do Brasil

O que eacute conhecido atualmente como Satyricon trata-se provavelmente do fragmento referente a trecircs livros

consecutivos XIV XV e XVI que faziam parte de uma obra mais ampla que natildeo chegou completa ateacute noacutes Satildeo

poucos os registros que falam sobre o suposto escritor do Satyricon os dados histoacutericos baseiam-se

principalmente no texto do ceacutelebre historiador Taacutecito (55-117 dC cf Anais XVI 18-19) que menciona uma

personalidade da corte do imperador Nero denominada Gaius Petronius arbiter elegantiae (ldquoCaio Petrocircnio

aacuterbitro da elegacircnciardquo) a quem se tem atribuiacutedo a autoria do texto

No Satyricon Petrocircnio retrata as manifestaccedilotildees sociais e o panorama cotidiano dos romanos A histoacuteria eacute

baseada nas peripeacutecias de Encoacutelpio narrador e personagem principal ndash que havia profanado o culto a Priapo

ndash Gitatildeo um rapaz por quem Encoacutelpio se apaixona e Ascilto com quem formam um triacircngulo amoroso sendo

que este uacuteltimo depois seraacute substituiacutedo por Eumolpo poeta de peacutessima categoria

A obra petroniana possui cinco traduccedilotildees em liacutengua portuguesa do Brasil A traduccedilatildeo de Paulo Leminski

lanccedilada em 1985 pela editora Brasiliense eacute a terceira delas A primeira foi editada em 1970 pela Editora

Atenas e relanccedilada no ano seguinte pela Ediouro Depois foi editada a traduccedilatildeo indireta do francecircs feita por

Marcos Santarrita no ano de 1981 pela editora Abril Apoacutes a traduccedilatildeo de Leminski surgiram soacute mais

recentemente outras duas traduccedilotildees Em 2004 lanccedilada pela editora Crisaacutelida a traduccedilatildeo de Sandra Braga

Bianchet foi a primeira ediccedilatildeo biliacutengue publicada no Brasil A mais recente eacute a de Claudio Aquati lanccedilada em

2008 pela editora Cosac Naify No presente trabalho como jaacute havia destacado utilizarei como corpora de

anaacutelise as traduccedilotildees de Paulo Leminski e Sandra Braga Bianchet

Eacute importante realccedilar pensando no contexto de produccedilatildeo de cada traduccedilatildeo que a versatildeo mais recente

produzida pela professora e pesquisadora de liacutengua latina Sandra Braga Bianchet (professora doutora da

UFMG) possui um caraacuteter acadecircmico e filoloacutegico e acompanha estudo importante da obra petroniana para

os estudos greco-romanos no Brasil Diferentemente dessas duas versotildees e como foi indicado pelo proacuteprio

poeta Paulo Leminski natildeo estava preocupado com questotildees filoloacutegicas em sua traduccedilatildeo O poeta declarou

que lhe interessava propor uma traduccedilatildeo com um ldquoolhar criativordquo seguindo um modelo tradutoacuterio que

dialogava com as ideias de Eliot e Pound

[262]

Anaacutelise dialoacutegica as notas do tradutor

Em sua maioria as traduccedilotildees acadecircmicas ainda possuem uma visatildeo tradicional e pretendem ocultar o

processo tradutoacuterio criando a ilusatildeo de que o texto traduzido carrega sem contaminaccedilatildeo o significado

transparente do texto original Poreacutem com o acesso agraves teorias da traduccedilatildeo agrave literatura comparada e agrave anaacutelise

do discurso jaacute natildeo podemos conceber a traduccedilatildeo simplesmente como transporte de significados de uma

liacutengua para outra Assim como estabeleceu Pecirccheux (1993 p 82) a traduccedilatildeo se resume na transmissatildeo de

um ldquoefeito de sentidordquo entre os pontos A e B ndash texto de partida e texto de chegada Dessa forma a estudiosa

Solange Mittmann (1999 p 223) destaca a noccedilatildeo de discurso partindo dessa perspectiva e contesta toda a

ldquoilusatildeordquo de que o texto carrega uma mensagem que faraacute transparecer as intenccedilotildees do autor do original

Segundo Mittmann (1999 p 223)

natildeo haacute uma via de matildeo uacutenica do autor para o leitor com o tradutor servindo de instrumento neutro intermediaacuterio capaz de apagar os obstaacuteculos de comunicaccedilatildeo eliminando as diferenccedilas entre os coacutedigos mas haacute produccedilatildeo de sentidos pelo autor pelo tradutor pelos leitores ou ainda entre todos os participantes do processo

Nesse sentido natildeo eacute o texto de partida que serve de base para que se produza um texto traduzido mas a

imagem que o tradutor faz desse texto do autor desse texto dos seus leitores da imagem que faz de si

proacuteprio dos outros discursos que atravessam esse texto e assim por diante portanto ldquoo processo tradutoacuterio

eacute um processo de produccedilatildeo do discurso da traduccedilatildeo que se materializaraacute no texto da traduccedilatildeordquo

(MITTMANN 1999 p 225) Seguindo esse pensamento podemos afirmar que cada traduccedilatildeo de um mesmo

texto teraacute suas especificidades e diferenccedilas pois seraacute resultado de diferentes condiccedilotildees de produccedilatildeo de

discurso e de diferentes relaccedilotildees de sentido Natildeo podemos nos esquecer que os textos traduzidos satildeo

direcionados a leitores diferentes em contextos linguiacutesticos e culturais diferentes assim nunca devemos ter

a ilusatildeo de que ler um texto eacute resgatar a mensagem precisa de seu autor ou seja possuir a ldquoilusatildeo de unidade

e homogeneidade do textordquo Muitas vezes os tradutores acadecircmicos tentam transferir essa ldquoilusatildeo de

unidade e homogeneidaderdquo para o texto traduzido como aponta Mittmann (1999 p 228) o sentido dado ao

texto pelo tradutor eacute determinado pelo interdiscurso ndash na leitura do original e na escrita da traduccedilatildeo A

heterogeneidade do discurso da traduccedilatildeo remete agrave constituiccedilatildeo de todo discurso ldquosempre outras vozes o

atravessam como um discurso transverso e lhe datildeo sustentaccedilatildeo como um preacute-construiacutedordquo essa pluralidade

aparece na presenccedila de outros discursos de outras vozes tanto no texto original como na traduccedilatildeo

Um bom exemplo desses discursos transversos e das diferentes vozes que o atravessam eacute a utilizaccedilatildeo pelos

tradutores das NT Como apontou Barros (2009 p 200) as NT passam a ser um local de visibilidade do

tradutor como profissional e ele consegue a partir delas ganhar uma marca proacutepria Mittmann tambeacutem

destaca que as NT funcionam como um ldquolugar em que o tradutor apresenta suas duacutevidas dialoga com o

leitor e com o autor apresenta os caminhos que percorreu e mostra sua visatildeo a respeito do processo em que

ele mesmo se encontrardquo (MITTMANN 2003 p 43) Na produccedilatildeo de notas o tradutor consegue aparecer

[263]

como produtor de um discurso explicitamente seu e tambeacutem adquiri a liberdade de dar suas opiniotildees fazer

correccedilotildees mostrar seus conhecimentos e interferir de alguma forma no texto Poreacutem muitas vezes essas

notas vatildeo sendo utilizadas para criar uma ilusatildeo de transparecircncia do texto original na traduccedilatildeo isso parte da

visatildeo tradicional de traduccedilatildeo vista como um processo de transposiccedilatildeo de um texto de uma liacutengua para outra

em que natildeo se admite o texto traduzido como outro original sendo entatildeo que a voz do tradutor apenas se

destaca por meio de notas

Retomando a noccedilatildeo de ldquofunccedilatildeo autorrdquo de Foucault como a funccedilatildeo que organiza a diversidade de posiccedilotildees-

sujeito criando o efeito de unidade e coerecircncia Mittmann (1999 p 232) propotildee estendecirc-la em uma ldquofunccedilatildeo

tradutorrdquo considerando-a

como a funccedilatildeo que organiza a heterogeneidade de vozes como a posiccedilatildeo sujeito do tradutor a posiccedilatildeo-sujeito do autor (ou a imagem que o tradutor tem dela) aleacutem das outras vozes vindas do interdiscurso e que entram no texto da traduccedilatildeo ou nas NT seja como preacute-construiacutedo (o Outro) seja como discurso transverso (o outro) como no caso de discursos de dicionaacuterios

Esta ldquofunccedilatildeo tradutorrdquo faz portanto com que se crie um ldquoefeito de responsabilidaderdquo por parte do tradutor

em reproduzir ou imitar o original assim o tradutor fica responsaacutevel pela produccedilatildeo ou pelo silenciamento de

sentidos Segundo Mittmann (2003 p 106) a ldquofunccedilatildeo-tradutorrdquo parte da tentativa de controlar os sentidos

do texto traduzido seguindo a interpretaccedilatildeo que o tradutor realizou do original Nessa perspectiva esta

funccedilatildeo tambeacutem tem o poder de criar a ldquoilusatildeordquo de que o tradutor estaacute apenas reproduzindo a voz do autor do

original Para a estudiosa essa ldquoilusatildeordquo jaacute estaacute arraigada nos leitores antes mesmo de efetuarem a leitura e eacute

exatamente esses efeitos de ldquoilusatildeordquo que pretendo desconstruir no decorrer da anaacutelise

Eacute evidente no processo tradutoacuterio que os tradutores busquem dicionaacuterios enciclopeacutedias e livros

especializados o que faz com que a relaccedilatildeo de sentidos do tradutor natildeo seja a mesma que a do autor do

original Poreacutem nas traduccedilotildees acadecircmicas como destacou Mittmann (2003 p 67) os tradutores recorrem

a esses discursos para garantir ao seu leitor que a traduccedilatildeo transfira o verdadeiro sentido expresso pelo

autor e muitas vezes o leitor da traduccedilatildeo acaba por aceitar os sentidos impostos pelos tradutores diante de

um discurso cientiacutefico visto como verdadeiro e especializado Interessa-nos portanto refletir sobre o

processo de produccedilatildeo desses sentidos instaurados especificamente nas NT considerando a subjetividade

nelas presente

As perspectivas diante dos objetivos das NT em processos tradutoacuterios satildeo muitas e podem ser divididas em

duas vertentes a que acredita que as NT servem para auxiliar na compreensatildeo do texto de chegada e por

outro lado a que acredita que as NT funcionam como uma abertura em que o tradutor demonstra de forma

decisiva sua participaccedilatildeo na criaccedilatildeo de um novo texto Paulo Roacutenai por exemplo eacute adepto da primeira

vertente e registrou que as notas satildeo fundamentais e devem ser utilizadas ldquoquando o texto

[264]

insuficientemente claro para os leitores de outra naccedilatildeo exige explicaccedilotildeesrdquo (ROacuteNAI 1981 p 100) Para ele

as notas devem ser exclusivamente explicativas e natildeo eacute permitido ao tradutor discutir ou contradizer o autor

do original sendo que as NT satildeo apenas um ldquofacilitador de leiturardquo Jaacute outra pesquisadora Dawn Alexis Duke

(1993) acredita na segunda vertente para ela toda traduccedilatildeo eacute recriaccedilatildeo portanto o tradutor tem um papel

ativo na interpretaccedilatildeo do original e este papel estaraacute presente tambeacutem nas formulaccedilotildees das NT ldquoEacute o mesmo

sujeito operando na traduccedilatildeo e na N do T e os dois textos refletiratildeo a leitura realizada por elerdquo (DUKE 1993

p 42) Para a estudiosa a primeira vertente mais tradicional considera as NT como um texto marginal

servindo apenas para acrescentar informaccedilotildees isso faz com que o tradutor tenha apenas ldquouma funccedilatildeo de

apresentador de informaccedilotildees a partir do lsquooriginalrsquo e natildeo de produtor de sentidos surgidos de sua leitura

particularrdquo (DUKE 1993 p 45) Mittmann (2003 p 120) resume essa questatildeo ao dizer que as NT

manifestam o resultado de uma interpretaccedilatildeo particular do tradutor que eacute diferente da realizada pelo autor

e se fazem em condiccedilotildees especiacuteficas e se dirigem a um puacuteblico tambeacutem diferente

Portanto demonstrarei diante da anaacutelise comparativa entre duas traduccedilotildees do Satyricon de Petrocircnio para

o portuguecircs do Brasil a realizada por Paulo Leminski em confronto com a realizada por Sandra Braga

Bianchet quais destas vertentes sobre a construccedilatildeo das NT cada tradutor se aproxima e quais as

consequecircncias dessa diferenciaccedilatildeo na formulaccedilatildeo das NT em cada texto traduzido

Efeitos de opacidade e transparecircncia em duas traduccedilotildees do Satyricon de Petrocircnio

Como jaacute foi destacado anteriormente as duas traduccedilotildees em questatildeo a de Paulo Leminski e a de Sandra Braga

Bianchet possuem uma diferenciaccedilatildeo essencial no objetivo do projeto tradutoacuterio de cada tradutor o que

considero como ponto de partida da anaacutelise Em seu trabalho Paulo Leminski poeta e tradutor objetivou

realizar uma traduccedilatildeo criativa renovando o texto petroniano imprimindo nela suas caracteriacutesticas poeacuteticas

e pretendendo um puacuteblico amplo Por outro lado Sandra Braga Bianchet professora universitaacuteria

pesquisadora sobre a Antiguidade claacutessica e tradutora realizou sua traduccedilatildeo como parte de investigaccedilatildeo

acadecircmica sobre o Satyricon de Petrocircnio como fonte para o estudo do latim vulgar incluso na aacuterea de

estudos linguiacutesticos e filoloacutegicos e voltada para um puacuteblico especializado

Partindo entatildeo desses pressupostos veremos logo na catalogaccedilatildeo geral das NT oferecidas pelos dois

tradutores que Leminski produz mais que o dobro de NT apresentadas por Bianchet totalizando 54 notas

nas quais haacute uma maior diversificaccedilatildeo comparadas agraves criadas pela tradutora Diante disso as NT formuladas

por Leminski podem ser classificadas em quatro tipos diferentes 1) notas explicativas que abrangem

conhecimentos sobre a sociedade e a cultura da Antiguidade romana e sobre especificidades de liacutengua latina

totalizando 29 notas 2) notas que destacam neologismos criados por Petrocircnio totalizando 8 notas 3) notas

que comentam caracteriacutesticas do texto de Petrocircnio totalizando 11 notas 4) notas que comentam o proacuteprio

processo tradutoacuterio totalizando 6 notas

[265]

Diferente de Leminski Bianchet apresenta um nuacutemero reduzido de NT 17 no total das quais todas elas satildeo

de caraacuteter estritamente explicativo subdividindo-se em quatro tipos 1) referecircncias agraves palavras gregas

presentes no texto latino totalizando 4 notas 2) destaque para neologismos criados por Petrocircnio

totalizando 3 notas 3) explicaccedilatildeo de termos e expressotildees que abrangem conhecimentos sobre cultura e

sociedade romana totalizando 8 notas 4) referecircncias a obras de outros autores citados por Petrocircnio

totalizando 2 notas

Assim sendo das notas formuladas pelos dois tradutores apenas cinco delas coincidem e fica evidente como

cada tradutor apesar de destacarem nestes momentos os mesmos toacutepicos o fazem de forma diferenciada

Primeiramente focalizando as notas referentes aos neologismos criados por Petrocircnio veremos que dos

quatro termos citados por Bianchet e dos nove termos por Leminski apenas um deles eacute coincidente A nota

coincidente entre as duas traduccedilotildees trata-se do neologismo latino fulcipedia que aparece no capiacutetulo LXXV

em uma das falas de Trimalquiatildeo A forma explicativa para o termo latino eacute formulada de forma diferente em

cada caso Retomemos entatildeo o texto latino1 [] sed Fortunata vetat Ita tibi videtur fulcipedia Suadeo bonum

tuum concoquas milva et me non facias ringentem amasiuncula aliquando experieris cerebrum meum (Sat LXXV

5-6 grifos nossos) Neste trecho Trimalquiatildeo estaacute em meio a um de seus discursos durante o banquete e

utiliza o termo em destaque para adjetivar sua esposa Fortunata enquanto dirige sua fala a ela Assim seraacute

observado como cada tradutor transpocircs este trecho e a forma como utilizou a nota para explicaacute-lo fazendo

referecircncia ao neologismo

Bianchet traduz o trecho da seguinte forma ldquo[] Mas Fortunata se opotildee Assim parece bom para vocecirc sua

escora-peacutes Eacute melhor vocecirc aproveitar a boa-vida sua fecircmea de abutre e natildeo me fazer mostrar os dentes de

raiva minha queridinha senatildeo vocecirc experimentaraacute minha coacutelerardquo (PETROcircNIO 2004 p131 grifos nossos)

Percebe-se que a tradutora escolhe transpor o termo para ldquoescora-peacutesrdquo em portuguecircs do Brasil e entatildeo

formula uma nota que diz ldquoescora-peacutes neologismo formado pelo verbo fulcio (escorar sustentar) + pes pedis

(os peacutes)rdquo (PETROcircNIO 2004 p 287) Dessa forma Bianchet indica o neologismo baseado em teor filoloacutegico

indicando a origem da formaccedilatildeo do termo apoiada provavelmente em dicionaacuterios Como apurado o

dicionaacuterio Faria (1994 p 233) indica o termo como ldquoApoio dos peacutes (Petr 756)rdquo e o Oxford (1968 p 743)

indica a formaccedilatildeo do termo ldquo[fulcio+pes+-ivis]rdquo oferecendo o seguinte significado ldquoa term of abuse applied

app to a person standing on her dignityrdquo Jaacute no comentaacuterio de Shmeling (2011 p 316) o estudioso oferece a

traduccedilatildeo do termo ldquomy high stepping (high-heeled)rdquo e comenta que Trimalquiatildeo faz nessa passagem uma

referecircncia ao passado de Fortunata como danccedilarina Embasando-se por essas definiccedilotildees pode-se perceber

que o termo eacute entendido de forma ampla e com diversos significados Maurice Rat (1934 p 491) tambeacutem

1 Os textos latinos aqui citados satildeo referentes agrave versatildeo editada por Maurice Rat (1934 Garnier) a qual se aproxima da utilizada pelo tradutor Paulo Leminski Indicarei eventuais divergecircncias caso haja com a versatildeo de A Ernout (1950 Belles Lettres) utilizada por Sandra Bianchet

[266]

destaca o termo em sua traduccedilatildeo para o francecircs e diz ser um ldquoinsulto obscurordquo apresentando sua formaccedilatildeo

filoloacutegica ldquo(Le mot fulcipedia vient de fulcio lteacutetayer calergt et de pes ltpiedgt)rdquo o tradutor sugere que

Trimalquiatildeo talvez esteja falando que Fortunata estaacute cambaleante Na traduccedilatildeo de Bianchet a tradutora

escolhe a forma literal do termo em portuguecircs do Brasil e utiliza simplesmente a junccedilatildeo do verbo ldquoescorarrdquo

com o substantivo ldquopeacutesrdquo os quais faz referecircncia em nota sem realizar uma interpretaccedilatildeo do contexto do

termo latino

De outro modo Leminski interpreta o contexto em que o termo estaacute inserido utilizando um vocaacutebulo que

natildeo remete especificamente ao significado filoloacutegico da palavra latina e explica em nota da seguinte forma

ldquoMas Monetaacuteria me reprime Aqui pra vocecirc decreacutepita Roacutei o osso que eu atiro sua gralha e natildeo me provoque

demais minha amaacutesia ou eu vou perder a cabeccedila com vocecircrdquo NT ldquoFulcipedia literalmente ldquoque natildeo se

aguenta em seus peacutesrdquo composto exclusivo de Petrocircniordquo (PETROcircNIO 1985 p 100-1 grifos nossos) Leminski

interpreta o termo como uma espeacutecie de xingamento jaacute que no contexto Trimalquiatildeo estaacute de certa forma

desclassificando sua companheira e utiliza o adjetivo ldquodecreacutepitardquo que segundo Caldas Aulete pode ter as

seguintes definiccedilotildees ldquoQue estaacute muito idoso fisicamente envelhecido e depauperado (pessoa decreacutepita) Diz-

se de animal muito velho e fraco Diz-se daquilo que foi gasto pelo uso ou exposiccedilatildeordquo O tradutor portanto

entende que ldquoalgo que natildeo se aguenta nos peacutesrdquo seria algo velho ou muito utilizado Diferente de Bianchet

Leminski natildeo traz a explicaccedilatildeo filoloacutegica da formaccedilatildeo do termo latino pautando-se apenas em apresentar o

termo como aparece no texto latino e oferecendo sua traduccedilatildeo como ele mesmo aponta ldquoliteralrdquo Essa

referecircncia agrave traduccedilatildeo literal na NT de Leminski eacute uma forma de indicar que no texto ldquotraduccedilatildeordquo haacute uma

interpretaccedilatildeo uma criaccedilatildeo e os termos natildeo aparecem em sua forma precisa de dicionaacuterio Leminski indica

ainda que o termo eacute um ldquocomposto exclusivo de Petrocircniordquo sua maneira de dizer que se trata de um

neologismo

Outra caracteriacutestica relevante da narrativa petroniana que os tradutores escolhem destacar em notas eacute a

apariccedilatildeo de palavras gregas em meio ao texto latino Como informado anteriormente quatro das notas

formuladas por Bianchet satildeo referecircncias agraves palavras gregas assim como cinco das notas elaboradas por

Leminski Uma dessas notas satildeo coincidentes no que se refere ao capiacutetulo XLVIII 8 no trecho em que

Trimalquiatildeo em um de seus soliloacutequios faz referecircncia agrave fala da Sibila de Cumas a qual supostamente o

personagem tinha visto com seus proacuteprios olhos Nam Sibyllam quidem Cumis ego ipse oculis meis vidi in ampulla

pendere et cum illi pueri dicerent Σίβυλλα τί θέλεις respondebat illa ἀποθανεῖν θέλω (Sat XLVIII 8 grifos

nossos) Petrocircnio grafa a fala da Sibila em grego mesclando a liacutengua grega ao texto latino Bianchet opta por

manter as palavras em grego em sua traduccedilatildeo ldquoEu mesmo vi com meus proacuteprios olhos a autecircntica Sibila de

Cumas suspensa em um vaso de barro e quando os garotos diziam a ela Σίβυλλα τί θέλεις ela respondia

ἀποθανεῖν θέλω (PETROcircNIO 2004 p 81 grifos nossos) E assim como esclarecimento das palavras gregas

em meio ao texto em portuguecircs a tradutora oferece a nota com a traduccedilatildeo destes termos ldquo- Sibila o que

[267]

queres ndash Quero morrerrdquo (PETROcircNIO 2004 p 287) Diferente disso Leminski traduz as palavras gregas

diretamente no texto da traduccedilatildeo ldquoE vi com meus proacuteprios olhos a sibila de Cumas suspensa dentro de uma

ampola e quando as crianccedilas perguntavam a ela - Sibila que queres Ela respondia - Eu quero morrerrdquo

(PETROcircNIO 1985 p 68 grifos nossos) E entatildeo o tradutor oferece a nota que apenas aponta que as palavras

no original aparecem em grego ldquoNo original a pergunta das crianccedilas e a resposta da Sibila estatildeo em gregordquo

(PETROcircNIO 1985 p 68) Neste exemplo vecirc-se novamente a diferenciaccedilatildeo entre a traduccedilatildeo filoloacutegica e a

recriaccedilatildeo Leminski natildeo escolhe grafar a palavra em grego na traduccedilatildeo ou oferecer sua referenciaccedilatildeo em

nota em nenhum dos casos em que ocorre o uso de palavras gregas na narrativa Por outro lado Bianchet

opta mais de uma vez em oferecer na traduccedilatildeo palavras grafadas em grego ou em latim e elucidar seus

significados por meio de notas Essa distinccedilatildeo nas escolhas dos dois tradutores esclarece o projeto tradutoacuterio

de cada um sendo que Leminski ambiciona um puacuteblico amplo que muito provavelmente natildeo conhece as

liacutenguas grega e latina e diferente disso Bianchet pretende falar com um puacuteblico especializado ou que tenha

um miacutenimo de conhecimento dessas liacutenguas antigas

Esta diferenccedila de escolhas aparece em mais um exemplo em que as notas satildeo coincidentes Trata-se da

expressatildeo madeia perimadeia presente no capiacutetulo LII 9 em ocasiatildeo do Banquete de Trimalquiatildeo em que o

personagem estimula os escravos a danccedilar Segundo Oxford (1968 p 1059) esta expressatildeo aparece

unicamente em grafia grega e se trata de ldquounexplained words used in a refrainrdquo utilizada exclusivamente no

Satyricon Shmeling (2011 p 216) tambeacutem destaca o termo em seu comentaacuterio e supotildee que estas duas

palavras sejam utilizadas em um tipo de muacutesica de encanto Na ediccedilatildeo da Garnier a expressatildeo aparece em

grego Atque ipse erectis supra frontem manibus Syrum histrionem exhibebat concinente tota familia Мάδεια

περιμάδεια (Sat LII 9 grifos nossos) e Maurice Rat apenas aponta em nota que se trata de uma expressatildeo

com sentido obscuro Leminski incorpora o sentido da cena em questatildeo na narrativa e traduz com uma

espeacutecie de canto religioso que provavelmente eacute uma das origens da expressatildeo ldquoE ei-lo braccedilos levantados

imitando os gestos do bufatildeo Syros enquanto a escravaria gritava - Meu Deus eacute lindo meu Deus que

maravilhardquo (PETROcircNIO 1985 p 72 grifos nossos) O tradutor apenas se limita a indicar em nota que esta

expressatildeo ou canto popular aparece grafado em grego no texto original latino ldquoEm grego no originalrdquo

(PETROcircNIO 1985 p 72) Diferente da Garnier na ediccedilatildeo da Belles Lettres a expressatildeo aparece

transliterada para o latim ldquomadeia perimadeiardquo e eacute a forma que Bianchet adota em sua traduccedilatildeo jaacute que eacute esta

ediccedilatildeo do texto latino que a tradutora tem como referecircncia Assim ela natildeo traduz a expressatildeo

apresentando-a em latim no texto traduzido e optando por explicaacute-la em nota ldquoE ele proacuteprio com as matildeos

erguidas sobre a testa imitava o ator Siro enquanto todos os criados cantavam em coro madeia perimadeiardquo

(PETROcircNIO 2004 p 85 grifos nossos) NT ldquoMadeia perimadeia tipo de refratildeo que acompanha uma danccedila

de origem e sentidos desconhecidos A ocorrecircncia da expressatildeo eacute atestada apenas neste trecho de Petrocircnio

(Ernaut)rdquo (PETROcircNIO 2004 p 287) Bianchet portanto prefere novamente manter os termos de liacutengua

latina no texto traduzido e apoia sua explicaccedilatildeo em comentaacuterio do tradutor e editor francecircs da Belles Lettres

[268]

Ernaut Mais uma vez fica expresso na comparaccedilatildeo das duas traduccedilotildees como a traduccedilatildeo filoloacutegica de

Bianchet pretende revelar o maacuteximo de transparecircncia do texto latino seguindo seus objetivos tradutoacuterios e

seu puacuteblico leitor especializado em oposiccedilatildeo agrave recriaccedilatildeo de Leminski que prefere sempre traduzir os termos

mesmo que sejam obscuros buscando uma equivalecircncia mesmo que seja apenas aproximada ao sentido do

texto latino Na traduccedilatildeo como recriaccedilatildeo o tradutor procura aproximar-se de um puacuteblico mais amplo natildeo

conhecedor das liacutenguas antigas e oferecer um efeito mais espontacircneo para o texto traduzido

Na sequecircncia mais um excerto em que Petrocircnio utiliza uma palavra advinda do grego e que possui um

sentido incerto pode ser destacado para elucidar essa diferenciaccedilatildeo entre as duas traduccedilotildees Trata-se do

termo embasicoetas presente no capiacutetulo XXIV 1 em que Encoacutelpio estaacute na festa da matrona Quartila e

quando jaacute estaacute cansado das brincadeiras dos animadores e danccedilarinos da festa pergunta pela embasicoetas

que a matrona lhe havia prometido lsquoQuaeso inquam domina certe embasicoetam2 jusseras darirsquo Complausit

illa tenerius manus et lsquoO inquit hominem acutum atque urbanitatis frontem3 Quid tu non intellexeras cinaedum

embasicoetam vocari (Sat XXIV 1 grifos nossos) Percebe-se que no texto latino esse termo causa um

efeito de estranhamento e ao mesmo tempo um tom irocircnico agrave cena Na realidade Petrocircnio brinca com o

termo latino embasicoetas que eacute um termo advindo do grego embasikoiacutetas que segundo o dicionaacuterio Greek-

english lexicon (LIDDEL SCOTT 1996) significa ldquoname of a cuprdquo e que o dicionaacuterio Grec-Franccedilais (BAILLY

2000) traz o significado ldquosorte de couperdquo e apresenta a variaccedilatildeo da palavra embasikoiacutetos como ldquoqui fait

entrer dans le litrdquo Assim o significado primeiro do termo grego refere-se somente a um copo de bebida e

sua variaccedilatildeo sugere algo ou algueacutem que estaacute na cama Jaacute o termo latino recebeu uma outra significaccedilatildeo na

narrativa petroniana segundo o dicionaacuterio Saraiva citando a partir da passagem de Petrocircnio o significado do

termo seria ldquocorruptorrdquo para o Oxford (1968 p 602) citando tambeacutem de Petrocircnio seria ldquoa pathic (in quot

also taken in a second sense perh = a sleeping-draught nightcap)rdquo ou seja no trecho petroniano o termo

latino incorporou o sentido tanto de uma bebida afrodisiacuteaca quanto de um homossexual passivo Nesse

sentido o Thesaurus Linguae Latinae (vol V p 450) indica o termo embasicoetas (-ae) advindo do termo grego

com o significado referente ao latino poculo ou seja um copo de bebida encantada filtro amoroso ou bebida

envenenada e tambeacutem relaciona o termo ao trecho da obra petroniana referindo-se nesse contexto ao

cinaedo Schmeling em seu comentaacuterio indica o termo etimologicamente como algo referente a ldquoir para camardquo

e indica aiacute o duplo sentido (a) ldquosomething like a lsquonight-cuprsquo lsquosleeping draughtrsquo and (b) cinaedusrdquo

(SCHMELING 2011 p 71) O estudioso cita a utilizaccedilatildeo do termo por Athenaeus como um tipo de copo e

por Juvenal referente a um copo em forma de falo como uma brincadeira sobre a fellatio que pode ser

relacionada agrave cena Pode-se sugerir portanto que Petrocircnio aproveitou essa dualidade do termo para inserir

um tom irocircnico ao diaacutelogo entre Encoacutelpio e Quartila unindo o estranhamento de um termo de origem grega

2 Na versatildeo Les Belles Lettres (1950) grafado embasicoetan 3 Na versatildeo Les Belles Lettres (1950) grafado urbanitatis vernaculae fontem

[269]

ao desconhecimento e confusatildeo do personagem que natildeo sabia seu significado e pensou ser o nome de um

tipo de bebida ou comida logo foi advertido por Quartila que se tratava de uma ldquobicha travestidardquo do latim

cinaedus

Primeiramente Bianchet escolhe em sua traduccedilatildeo apenas um dos sentidos do termo latino embasicoetas

voltado para o significado da palavra grega ou seja ldquouma taccedila especialrdquo mantendo com essa escolha a ideia

da confusatildeo feita pelo personagem que natildeo tinha entendido o que Quartila havida dito Ela traduz da

seguinte forma

ldquoPor favor minha senhora vocecirc natildeo me havia prometido uma taccedila especialrdquo Ela aplaudiu muito delicadamente e disse ldquoMas que homem perspicaz e que exemplo de educaccedilatildeo romana Por que vocecirc estaacute perguntando Vocecirc ainda natildeo percebeu que essa bicha eacute sua taccedila especialrdquo (PETROcircNIO 2004 p 41 grifos nossos)

Bianchet opta entatildeo por explicar o jogo de palavras criado por Petrocircnio inserindo uma NT ldquoEm todo esse

capiacutetulo e no XXVI Petrocircnio faz um jogo com o significado da palavra embasicoetas utilizando-a ora para se

referir ao nome de uma taccedila de formato obsceno ora como sinocircnimo de cinaedusrdquo (PETROcircNIO 2004 p 287)

Assim por meio da nota a tradutora consegue uma maneira de transferir ao leitor o humor existente na cena

Diferentemente na traduccedilatildeo de Leminski consegue-se perceber desde o iniacutecio a transposiccedilatildeo da brincadeira

instaurada por Petrocircnio no texto latino presente no proacuteprio texto traduzido em liacutengua portuguesa do Brasil

O tradutor escolhe preservar o jogo de palavras e traduz a primeira ocorrecircncia do termo latino por

ldquoHermafroditardquo que designa segundo Caldas Aulete (2007) ldquopessoa que possui os oacutergatildeos peculiares aos dois

sexosrdquo A traduccedilatildeo leminskiana se apresenta da seguinte forma

- E aquela tal de Hermafrodita que a senhora prometeu me dar

Ela bateu as matildeos com delicadeza

- Olha soacute como ele eacute esperto esse garotinho com educaccedilatildeo de escravo O que eacute que foi

gatinho Natildeo sabia que hermafrodita aqui quer dizer homossexual ativo

(PETROcircNIO 1985 p 40 grifos nossos)

Nesse sentido percebe-se que Leminski recria o texto em liacutengua portuguesa buscando o mesmo

procedimento utilizado pelo autor latino ao empregar uma palavra tambeacutem de origem grega que da mesma

forma causa o estranhamento e a confusatildeo do personagem Encoacutelpio que natildeo percebe de pronto que haacute uma

referecircncia oculta a um homem efeminado nas palavras do tradutor um ldquohomossexual ativordquo Segundo os

estudos de Richlin (1978 p287) o termo cinaedus refere-se geralmente ao ldquohomossexual passivordquo Na cena

em questatildeo trata-se de uma zombaria ao efeminado e na pretensatildeo de Quartila em assustar o jovem

Encoacutelpio daiacute a escolha de Leminski em traduzir por ldquohomossexual ativordquo reafirmando em liacutengua portuguesa

a ameaccedila zombeteira da anfitriatilde

[270]

Prosseguindo o tradutor tambeacutem utiliza uma nota para demarcar o jogo de palavras poreacutem a NT de

Leminski diferente de Bianchet natildeo funciona exatamente como uma explicaccedilatildeo filoloacutegica mas como parte

estiliacutestica da ironia que este pretende recuperar do trecho latino A nota diz o seguinte ldquoNo original

Embasicoetam palavra de origem grega que nosso pobre heroacutei pensa ser nome de uma mulherrdquo (PETROcircNIO

1985 p 40) Percebe-se que o tradutor natildeo utiliza a NT apenas para explicar a brincadeira advinda do texto

latino mas tambeacutem como uma nota esteacutetica que conversa com o restante do texto de forma que sua

interpretaccedilatildeo como tradutorleitorautor fique exposta Na traduccedilatildeo e com a formulaccedilatildeo da NT Leminski

faz com que o leitor volte ao texto de partida percebendo a brincadeira do autor latino ao utilizar um termo

grego de duplo sentido poreacutem acaba por modificar o espiacuterito da brincadeira para que essa obtenha o mesmo

efeito na liacutengua de chegada Em liacutengua latina a brincadeira eacute instaurada na confusatildeo entre ldquotaccedila de bebidardquo e

ldquohomossexual passivordquo ou ldquohomem efeminadordquo jaacute em liacutengua portuguesa Leminski joga com a ambiguidade

entre o ldquonome de uma mulherrdquo e um ldquohomossexual ativordquo Assim Leminski retoma o sentido latino do termo

cinaedus causando a desconfianccedila no jovem personagem que natildeo consegue identificar o sexo do

Embasicoetas ou para Leminski ldquoHermafroditardquo Nesse sentido na NT Leminski consegue recuperar sua

ldquofunccedilatildeo tradutorrdquo ao explicar para o leitor que no original se trata de uma palavra de origem grega e ao

mesmo tempo inclui sua ldquoidentidaderdquo e manteacutem a ldquoopacidaderdquo do texto de partida no texto de chegada

explicando a brincadeira que ele mesmo como tradutor criou ou seja mostrar a confusatildeo do personagem

diante da palavra ldquoHermafroditardquo pensando se tratar de um nome de mulher

Finalmente a uacuteltima nota coincidente entre os dois tradutores refere-se mais uma vez a um jogo de palavras

instaurado por Petrocircnio no capiacutetulo XLI 7 com a palavra liber Na ocasiatildeo do Banquete de Trimalquiatildeo foi

servido um grande javali vestindo um chapeacuteu de liberto4 pois ele havia sido rejeitado no banquete do dia

anterior e entatildeo recebida a liberdade retornando para o banquete desse dia narrado por Encoacutelpio Logo em

seguida entrou no salatildeo um jovem escravo atuando como Baco5 cantando e distribuindo uvas Ateacute que

Trimalquiatildeo resolve libertaacute-lo e o escravo transfere o chapeacuteu do javali para sua proacutepria cabeccedila Esta narrativa

eacute apresentada por Petrocircnio da seguinte maneira

Dum haec loquimur puer speciosus vitibus hederisque redimitus modo Bromium interdum Lyaeum Euhiumque confessus calathisco uvas circumtulit et poemata domini sui acutiacutessima vocecirc traduxit Ad quem sonum conversus Trimalchio lsquoDionyse inquit liber estorsquo Puer detraxit pileum apro capitique suo imposuit Tum Trimalchio rursus adjecit lsquoNon negabitis me inquit habere Liberum patremrsquo (Sat XLI 7 grifos nossos)

Como assinalou Schmeling (2011 p 161) em um primeiro niacutevel eacute faacutecil perceber o jogo de palavras que

Petrocircnio realiza com a palavra liber6 indicando liberdade na primeira ocorrecircncia sendo liberto o tal escravo

4 ldquoIt is a symbol of freedom which a slave upon becoming a freedman places on his headrdquo (SCHMELING 2011 p 157) 5 Deus do vinho tambeacutem chamado Dioniacutesio 6 ldquoLivre de condiccedilatildeo livre (socialmente falando)rdquo (FARIA 1994 p 314)

[271]

que como siacutembolo veste o chapeacuteu de liberto e a palavra Liber7 na segunda ocorrecircncia que faz referecircncia ao

deus Baco A brincadeira estaacute no fato de Trimalquiatildeo libertar um escravo chamado Dioniacutesio e fazer

referecircncia como uma forma de trocadilho com o nome primordial do deus Baco Como apontou Grimal

(1966 p 121) este deus eacute identificado em Roma com o antigo deus itaacutelico Liber Pater e refere-se

essencialmente ao deus da vinha do vinho e do deliacuterio miacutestico Para Schmeling (2011 p 161) haacute ainda uma

interpretaccedilatildeo mais aprofundada da cena que revela o desejo insatisfeito de Trimalquiatildeo em ter nascido livre

O personagem natildeo nasceu livre ele ganhou a liberdade de seu antigo dono mas no trocadilho ele procura se

colocar como ldquopai da liberdaderdquo poreacutem na verdade Liber pater eacute apenas a brincadeira em possuir e poder

libertar um escravo chamado Dionysus

Sendo assim a partir desses comentaacuterios observa-se como cada tradutor resolve o trocadilho em liacutengua

latina transposto para o portuguecircs do Brasil Primeiramente Bianchet como tem feito em todo texto

traduzido escolhe uma forma literal

Enquanto estaacutevamos conversando sobre essas coisas um escravo de bela aparecircncia coroado com ramos de videira e de hera mostrando que era um Dioniso ora barulhento ora relaxado ora exaltado serviu-nos uvas em um pequeno cesto e interpretou composiccedilotildees em verso de seu senhor com sua voz extremamente aguda Virando-se na direccedilatildeo do som Trimalquiatildeo disse Dioniso esteja livrerdquo O escravo tirou o barrete do javali e colocou-o em sua proacutepria cabeccedila Entatildeo Trimalquiatildeo mais uma vez acrescentou Vocecircs natildeo podem negar que a liberdade me acompanha desde que nasci pois eu tenho Liacuteber como pairdquo (PETROcircNIO 1985 p 67 grifos nossos)

Dessa maneira ela traduz a primeira ocorrecircncia do termo como ldquolivrerdquo referenciando agrave liberdade e a

segunda ocorrecircncia do termo como ldquoLiacuteberrdquo fazendo referecircncia ao deus Baco Nesta segunda ocorrecircncia a

tradutora utiliza a NT para explicar a referecircncia mitoloacutegica ldquoLiacuteber eacute uma antiga divindade latina que era

confundida com Bacordquo (PETROcircNIO 1985 p 287) O trocadilho presente no texto latino natildeo fica muito

evidente na traduccedilatildeo realizada por Bianchet que fez referecircncia apenas a Dioniacutesio na apresentaccedilatildeo do

escravo depois apenas explicou a referecircncia mitoloacutegica de Liber Poreacutem o sentido no que se refere agravequele

demonstrado por Schmeling foi apresentado na uacuteltima frase de Trimalquiatildeo traduzida por ela ldquoVocecircs natildeo

podem negar que a liberdade me acompanha desde que nascirdquo

Mais uma vez diferente de Bianchet Leminski prefere natildeo fazer uma traduccedilatildeo literal e transpotildee um sentido

que esteja ligado ao contexto da cena em questatildeo

Enquanto isso um jovem escravo beliacutessimo coroado com folhas de parreira se atribuindo os nomes de Baco Bromius Lyaeus e Evius dava volta agraves mesas com uma cesta de uvas que distribuiacutea a todos enquanto cantava com voz agudiacutessima os versos que seu senhor tinha composto A esse som voltou-se Trimalciatildeo - Dioniacutesio ndash disse ndash seja livre O escravo tirou o

7 ldquoAntiga divindade latina mais tarde confundida com Baco deus do vinhordquo (FARIA 1994 p 314)

[272]

chapeacuteu do javali e o colocou sobre a proacutepria cabeccedila Entatildeo Trimalciatildeo ndash Isso eacute que eacute ser um pai liberalrdquo (PETROcircNIO 1985 p 58 grifos nossos)

Uma primeira diferenciaccedilatildeo entre as duas traduccedilotildees estaacute no fato de que Leminski faz referecircncia aos

diferentes nomes oferecidos a Baco como ldquoBromius Lyaeus e Eviusrdquo os quais natildeo aparecem na traduccedilatildeo de

Bianchet Como apontou Schmeling (2011 p 160) essas referecircncias dizem respeito aos trecircs aspectos do

deus Dioniacutesio (Bromius Lyaeus e Euhius) os quais o escravo tambeacutem chamado Dioniacutesio e representando o

deus como o liacuteder de um ritual dionisiacuteaco iraacute incorporar mais adiante como Liber Leminski tambeacutem muito

diferente de Bianchet traduz a segunda ocorrecircncia de maneira espontacircnea demonstrando a sua proacutepria

interpretaccedilatildeo da fala de Trimalquiatildeo em um sentido como se o personagem estivesse se vangloriando de

estar libertando um escravo o que na verdade tambeacutem faz parte da brincadeira realizada por Petrocircnio Na

primeira ocorrecircncia da palavra liber do trecho Leminski formula uma nota ldquoEm latim lsquoLiber estorsquo trocadilho

intraduziacutevel sendo que Liber eacute um dos nomes do deus do vinho Dioniacutesio Baco Bromius Lyaeus e Evius Seria

ao mesmo tempo ldquoesteja livrerdquo e ldquoseja Bacordquo (PETROcircNIO 1985 p 58) Percebe-se portanto que Leminski

faz referecircncia ao trocadilho presente no texto latino e aproveita para expor o seu processo tradutoacuterio

comentando que este trocadilho eacute ldquointraduziacutevelrdquo O tradutor tambeacutem faz referecircncia agrave ligaccedilatildeo do deus Liacuteber

ao deus Baco e aproveita para explicar que aqueles outros nomes que aparecem no iniacutecio do trecho satildeo da

mesma forma referentes ao mesmo deus Por fim Leminski oferece duas traduccedilotildees possiacuteveis para a

expressatildeo Fica evidente mais uma vez a liberdade com que Leminski trabalha no texto da traduccedilatildeo em

correlaccedilatildeo com as NT por ele formuladas natildeo estando preso agrave tentativa de transparecircncia expondo-se como

tradutor e criador do texto traduzido Jaacute no caso de Bianchet ela segue o padratildeo acadecircmico e filoloacutegico

principalmente nas notas limitando-se a apresentar os termos de forma teoacuterica buscando a maacutexima

transparecircncia textual

Consideraccedilotildees finais

No caso dos exemplos destacados quando Bianchet escolhe dizer em nota que o autor do texto original faz

um jogo com certo termo esclarece os possiacuteveis significados deste termo amparada em dicionaacuterios e

escolhe traduzir apenas um desses significados ou somente referendaacute-lo com uma transcriccedilatildeo do termo

original ela deixa impliacutecito que todo o texto traduzido eacute transparente e soacute pontualmente haacute uma certa

opacidade Para ela essa opacidade pontual motivou a colocaccedilatildeo de uma nota na tentativa de retomar o

ldquosentido originalrdquo do texto de partida levando em consideraccedilatildeo os pressupostos do autor Cria-se entatildeo

uma ilusatildeo de homogeneidade na qual se insere o heterogecircneo quando na realidade ocorre o contraacuterio nas

palavras de Mittmann (2000 p 2) ldquoo heterogecircneo eacute constitutivo do discurso da traduccedilatildeo ndash como o era do

discurso original ndash e eacute sobre ele que se daacute o efeito de unidade atraveacutes da funccedilatildeo tradutorrdquo

[273]

Em outro sentido diferentemente disso na traduccedilatildeo de Paulo Leminski haacute a criaccedilatildeo de um outro efeito em

que o tradutor se apropria da ldquofunccedilatildeo tradutorrdquo e manteacutem a heterogeneidade do discurso do texto de partida

apresentando uma pluralidade de identidades e mantendo sua proacutepria identidade Hattnher (1994)

considera esse tipo de tradutor como um ldquotransmorfordquo ou seja ldquoo tradutor assume traccedilos e feiccedilotildees do autor

(ou autores) que traduz imprimindo na escrita do Outro sua proacutepria caligrafiardquo (HATTNHER 1994 p 33)

Hattnher comenta as notas de Leminski da traduccedilatildeo feita pelo poeta do romance Ask the Dust de John Fante

sendo que nesta traduccedilatildeo o poeta tambeacutem utiliza notas esteacuteticas Segundo o estudioso ldquoas notas de Leminski

comentam interpretam e questionam o texto original estabelecendo-lhes extensotildees e ampliando para o

leitor as possibilidades de desvendamento textualrdquo (HATTNHER 1994 p 35)

Assim como definiu Reacutegine Robin (1977 p 29) a ldquoopacidaderdquo maacutexima aparece na poesia em que o enunciado

eacute modalizado de maneira especiacutefica e o sujeito da enunciaccedilatildeo estaacute agrave disposiccedilatildeo de cada leitor que se

transforma tambeacutem num sujeito da enunciaccedilatildeo que assume um enunciado Parece-me portanto que Paulo

Leminski por ser poeta e por definir um projeto tradutoacuterio preacute-estabelecido de retomada da literalidade da

obra petroniana consegue assumir o papel de leitorautor e assumir-se como sujeito enunciador Pelo

contraacuterio como definiu Reacutegine Robin (1977 p 29) haacute a maacutexima ldquotransparecircnciardquo no enunciado do tipo

ldquomaacuteximardquo que eacute particular dos enunciados cientiacuteficos em que o sujeito do enunciado eacute como que apagado

Por essa razatildeo acredito que as traduccedilotildees acadecircmicas procuram uma maior transparecircncia e o apagamento

do sujeito enunciador poreacutem como em todo discurso haacute vozes que ocupam diferentes posiccedilotildees-sujeitos e

na traduccedilatildeo natildeo eacute diferente esse apagamento eacute apenas aparente causando uma ldquoilusatildeo de transparecircnciardquo

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[274]

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SCHMELING G A Commentary on the Satyrica of Petronius Oxford Oxford University 2011

TACITO Annales Trad H Goelzer Paris Les Belles Lettres 1938

A traduccedilatildeo como possibilidade de compreender mundos que natildeo satildeo meus

Augusto B de Carvalho Dias Leite

augustobrunoleitegmailcom

Apresentaccedilatildeo da questatildeo principal

a traduccedilatildeo demarca o limite do conhecimento

A traduccedilatildeo ou o ato de traduzir eacute uma evidente marca das relaccedilotildees

humanas Desde a accedilatildeo teacutecnica de verter um texto escrito para

outra liacutengua cuja conexatildeo se constroacutei entre a originalidade e a

coacutepia traduzida ao ato mais amplo e abstrato de compreender um

outro a traduccedilatildeo se exibe como limite e limiar simultaneamente

sempre disponibilizando a relaccedilatildeo entre um par de opostos um si

mesmo e um outro mdash um estranho ou estrangeiro A traduccedilatildeo nesse

sentido mais rico teoacuterico e abstrato natildeo eacute o simples fato ou ato de

transformar uma liacutengua em outra mas eacute a afirmaccedilatildeo da

possibilidade de um mesmo pensar o mundo a partir de outra liacutengua

quer dizer atraveacutes de outra linguagem isto eacute de outras

representaccedilotildees espirituais culturais Traduccedilatildeo portanto natildeo diz

respeito a uma teacutecnica apenas mas poderiacuteamos inicialmente dizer

refere-se agrave natureza mesma da linguagem em geral pois a traduccedilatildeo

eacute antes de mais nada a simples compreensatildeo

A partir desse panorama geral sobre a linguagem e a traduccedilatildeo como

compreensatildeo a pergunta teoacuterica a ser respondida por este breve

ensaio eacute a seguinte a traduccedilatildeo limita ou expande o conhecimento

Para tornar exequiacutevel a tarefa de elaborar hipoacuteteses sobre esse

[276]

questionamento parto do princiacutepio proposto na conclusatildeo da obra Warheit und Methode (1960) de Hans-

Georg Gadamer o qual afirma que o ser que pode ser compreendido eacute linguagem Ou seja a hermenecircutica eacute um

aspecto universal da filosofia e natildeo somente a base metodoloacutegica das chamadas ciecircncias do espiacuterito como

propuseram Johann Gustav Droysen e especialmente Wilhelm Dilthey1

Da traduccedilatildeo ou compreensatildeo como a natureza da linguagem

Wilhelm von Humboldt considerado o pai da filosofia moderna da linguagem destaca-se precisamente por

sua investigaccedilatildeo sobre a individualidade das liacutenguas como expressatildeo das culturas agraves quais se referem mdash

teoria que mais recentemente ganha o nome de relativismo linguiacutestico (ou hipoacutetese Sapir-Whorf) A partir de

suas investigaccedilotildees sobre o tema2 as liacutenguas seriam modulaccedilotildees peculiares dos espiacuteritos locais Nesse

sentido no que se refere ao tema da teoria da traduccedilatildeo em particular a linguagem se constitui como um limite

especial que se situa em cada cultura mdash ou cada naccedilatildeo povo nos termos tipicamente modernos de Von

Humboldt Haveria um mundo linguiacutestico proacuteprio em que se vive e este mundo seria meu anaacutelogo o meu

mundo que me cerca [Umwelt] e que por definiccedilatildeo limita ou condiciona a minha existecircncia minha visatildeo do

mundo [Weltanschauung] de acordo com Von Humboldt

O que nomeamos como cultura seria assim em larga medida representada por sua linguagem A linguagem

entatildeo seria uma composiccedilatildeo de representaccedilotildees de preconceitos mdash os conceitos previamente estabelecidos

mdash que me foram transmitidos e que me permitem interagir com o meu mundo Desse modo a traduccedilatildeo para

Humboldt exibe-se como um dos meios fundamentais de nos sentir estrangeiros quer dizer a traduccedilatildeo seria

entatildeo uma das peccedilas para a construccedilatildeo inequiacutevoca das fronteiras entre dois lados ou antiacutepodas o eu e o

outro Ao se traduzir a traduccedilatildeo evidenciaria portanto as diferenccedilas natildeo as semelhanccedilas

Em Orientalism (1978) Edward Said argumenta por exemplo que as traduccedilotildees foram um dos elementos

fundamentais para operar a ldquoorientalizaccedilatildeordquo o processo de delimitaccedilatildeo entre uma cultura ocidental e outra

oriental A traduccedilatildeo seria uma teacutecnica orientalista particular nas palavras de Said que serviu agrave tarefa de

evidenciar as fronteiras metafiacutesicas e fiacutesicas entre ocidente e oriente cujo material fora a simples linguagem

Em contrapartida a essa perspectiva sobre o problema das potecircncias da linguagem e mais especificamente

do papel da traduccedilatildeo Hans-Georg Gadamer em suas conclusotildees da obra jaacute citada interfere precisamente

nesse debate para nos esclarecer algo aparentemente banal mas que possui implicaccedilotildees importantes Para

Gadamer o mundo linguiacutestico proacuteprio em que se vive natildeo eacute uma barreira que impede todo conhecimento do ser em

1 Droysen em sua Historik (1882) e Dilthey em Einleitung in die Geisteswissenschaften (1882) e Der Aufbau der geschichtlichen Welt in den Geisteswissenschaften (1910) 2 Notadamente em Uumlber die Natur der Sprache im allgemeinen (1807) e Uumlber die Verschiedenheit des menschlichen Sprachbaues (1836)

[277]

si mas abarca fundamentalmente tudo aquilo a que pode expandir-se e elevar-se a nossa percepccedilatildeo Isto eacute assim

como afirma Walter Benjamin em Die Aufgabe des Uumlbersetzers (1923) a traduccedilatildeo eacute pensada por Gadamer

primeiramente como a expressatildeo da possibilidade de expandir os sentidos natildeo de encerraacute-los pois o ato de

traduzir nos diz Benjamin apresenta novos e diferentes modos de visar o mesmo aumentando assim as

maneiras de se compreender A vista disso a traduccedilatildeo antes de evidenciar as fronteiras culturais que

existiriam entre cada mundo linguiacutestico expressa a possibilidade proacutepria agrave linguagem de suprassumir essas

mesmas fronteiras e conhecer mundos que natildeo satildeo os meus A linguagem igualmente e portanto natildeo seria

expressatildeo de um limite de seu proacuteprio mundo mas eacute o meio atraveacutes do qual o sentido pode continuar sua

efetividade entre um mesmo e outro e a traduccedilatildeo como possibilidade efetiva eacute sua manifestaccedilatildeo mais proacutepria

Linguagem eacute toda e qualquer manifestaccedilatildeo do espiacuterito humano algo que natildeo se restringe agraves liacutenguas naturais

E a caracteriacutestica principal da linguagem seria para Gadamer a abertura para continuar o sentido ou melhor

a linguagem se caracterizaria por possuir a potecircncia de significar e ressignificar continuamente Esta

potecircncia que Gadamer resume no conceito de liguisticidade [Sprachlichkeit] encontra um anaacutelogo em Walter

Benjamin que em suas investigaccedilotildees sobre a teoria da linguagem aplicada ao problema da traduccedilatildeo mdash

particularmente no texto sobre a tarefa do tradutor mdash epitomiza esse mesmo aspecto da linguagem no termo

traduzibilidade [Uumlbersetzbarkeit] Porque traduccedilatildeo e compreensatildeo satildeo de modo igual uma disposiccedilatildeo do

espiacuterito humano que se exibe atraveacutes da linguagem linguisticidade e traduzibilidade guardam uma identidade

teoacuterica fundamental

Na linguagem haacute sempre traduzibilidade a liacutengua conteacutem os dispositivos de se abrir para o outro e natildeo se

ensimesmar ou absorver-se em si mesma a traduccedilatildeo Compreender eacute entatildeo perviver fazer continuar a viver

um determinado sentido Mas sobretudo eacute descolar-se dos preconceitos do meu mundo em direccedilatildeo a outros

A traduzibulidade enfim seria uma caracteriacutestica da linguagem que diz que haacute sentido disponiacutevel Trata-se de

um sinal ou marca da vida da linguagem que teria algo a dizer ou um sentido a emprestar sobretudo para uma outra

linguagem outro que natildeo eacute o mesmo Esse fato nos leva ateacute a definiccedilatildeo da traduccedilatildeo como um ato de

conhecimento do outro traduccedilatildeo como sugere Paul Ricœur seria assim hospedar o outro o estrangeiro

A linguagem que possui a potecircncia da traduzibilidade que em outras palavras eacute a possibilidade de dizer outras

coisas ou mais coisas eacute um organismo psicoloacutegico vivo que se exibe assim somente porque sua natureza eacute a

traduccedilatildeo De outra forma se traduzir natildeo fosse possibilidade mdash o que de fato eacute mdash seriacuteamos necessariamente

limitados por uma linguagem que se configuraria como somente nossa mdash o que de fato natildeo eacute

Os limites da minha linguagem denotam os limites de meu mundo

Os limites da minha linguagem denotam os limites de meu mundo afirma Ludwig Wittgenstein em seu

afamado Tractatus Logico-philosophicus (1921) Essa afirmativa transformada em uma interrogaccedilatildeo pode

[278]

receber tanto um laquosimraquo quanto um laquonatildeoraquo como resposta Sim porque haacute evidentemente uma identidade

entre a linguagem e a cultura que se retroalimentam tal como Von Humboldt demonstrou Natildeo porque

assim como Friedrich Schleiermacher afirma que compreender um autor melhor do que ele de si mesmo pode se

dar conta eacute a tarefa da hermenecircutica pode-se tambeacutem afirmar que superar o meu proacuteprio mundo (Umwelt)

ultrapassar a mim mesmo eacute a tarefa da linguagem que eacute a tarefa do tradutor tal como Benjamin nos ensina

Reconhecer os limites da minha linguagem eacute ao mesmo tempo o reconhecimento da situaccedilatildeo hermenecircutica em que

me encontro Mas reconhecer a traduzibilidade da linguagem eacute assumir a possibilidade que ela nos empresta de

superarmos o nosso mundo a partir da relaccedilatildeo com o outro expandindo ou continuando o sentido que assumimos

tambeacutem como nosso Haacute diferenccedilas (linguiacutesticas culturais e existenciais gerais) mas haacute tambeacutem um fator

comum que permite as liacutenguas comunicarem umas com as outras O fator comum pode ser chamado de

mundo ou experiecircncia e a traduccedilatildeo seria sua mais alta testemunha Portanto na traduccedilatildeo natildeo se trata

exatamente de ter empatia com o outro mas de continuar o sentido disponibilizado pelo outro de modo a

realizar o encontro ou relaccedilatildeo entre o mesmo e o outro

Traduzir diz respeito agrave continuidade dos sentidos disponiacuteveis naquilo que Benjamin chamou de

traduzibilidade E a linguagem portanto natildeo se encerra como a expressatildeo de uma cultura ou ponto de vista

(Von Humboldt) mas eacute uma cultura expressando o mundo de um ponto de vista que se expande em direccedilatildeo

a outros mundos na medida em que o fundamento da linguagem eacute a traduccedilatildeo (Gadamer) A traduccedilatildeo eacute o que

nos permite ampliar o nosso ponto de vista fundindo o meu horizonte o meu ponto de vista com um outro

apropriando-me de outros preconceitos que natildeo satildeo apenas meus pois a apropriaccedilatildeo de outros pontos de

vista isto eacute a compreensatildeo eacute a proacutepria natureza da linguagem que indiscutivelmente se refere

substancialmente agrave cultura A elaboraccedilatildeo da situaccedilatildeo hermenecircutica significa entatildeo a obtenccedilatildeo do horizonte de

questionamento correto para as questotildees que se colocam frente agrave tradiccedilatildeo mdash aquilo que nos foi transmitido

Um dilema colocado pelo fato da traduccedilatildeo o problema da alteridade

A muito conhecida paraacutebola biacuteblica de Babel (Gen 111-9) segundo a qual poderes divinos confundem3 as

liacutenguas da humanidade tornando as barreiras ou fronteiras comunicativas uma de suas condiccedilotildees

existenciais antes de introduzir a cataacutestrofe ou a trageacutedia da confusatildeo insoluacutevel entre as liacutenguas e culturas

segundo Ricœur a alegoria babeacutelica anuncia o chamado agrave traduccedilatildeo A traduccedilatildeo eacute apresentada

alegoricamente em Babel como condiccedilatildeo humana Traduzir ou melhor o trabalho de compreender o outro

ou de compreender (n)as diferenccedilas eacute um projeto eacutetico da humanidade do qual natildeo se pode desviar sem

contabilizar os prejuiacutezos

3 Babel compartilha a mesma raiz proto-semita de balal [confusatildeo]

[279]

Em termos teoacutericos e abstratos dispotildee-se dois lados opostos em contato necessaacuterio um eu e um outro

Atualiza-se a antiga questatildeo entre o Uno e o Muacuteltiplo entre a identidade e a diferenccedila cuja elaboraccedilatildeo

moderna mais relevante se encontra na Phaumlnomenologie des Geistes (1907) de G W F Hegel Na

fenomenologia hegeliana a finalidade da consciecircncia mdash ou o seu termo mdash eacute o reconhecimento ou o saber-se

consciente ou a superaccedilatildeo da solidatildeo espiritual Em termos eacuteticos tal finalidade estaacute enredada em uma

condiccedilatildeo ontoloacutegica de estranhamento que se opera entre a mesmidade e a diferenccedila internamente em

relaccedilatildeo agrave consciecircncia pois os diferentes momentos do movimento proacuteprio ao pensar satildeo simultaneamente

diferentes entre si estrangeiros um em relaccedilatildeo ao outro mas tambeacutem pertencem agrave unidade do movimento

ao se reconhecerem como tal Ou seja eacute proacuteprio ao movimento da consciecircncia porque eacute fundamentalmente

um movimento mdash devir mdash o estranhamento entre momentos diferentes Muacuteltiplos que contudo compotildeem

um mesmo Uno o movimento como fenocircmeno unitaacuterio e cujas singularidades satildeo estrangeiras uma em

relaccedilatildeo agraves outras Parmecircnides de Eleacuteia quem de fato inicia essa questatildeo admoesta ldquonatildeo separe o ser da

continuidade de seu proacuteprio serrdquo (DK28 B4) isto eacute o Muacuteltiplo [polla] eacute sempre Uno [hen] enquanto existecircncia

ou assim como se encontra em Platatildeo no diaacutelogo dedicado ao mestre da escola eleaacutetica ldquonem antes nem

depois o Uno eacute ao mesmo tempo com os outrosrdquo (Pl Prm 153e)

Em outras palavras visando transportar a reflexatildeo fenomenoloacutegica hegeliana e ontoloacutegica de Parmecircnides

para a teorizaccedilatildeo da traduccedilatildeo trata-se de um movimento especulativo que objetiva uma teoria da

hospitalidade mdash da acolhida do outro Com Hegel poderiacuteamos afirmar que eu mesmo sou estrangeiro em

relaccedilatildeo a mim e necessito me reconhecer em diferentes e muacuteltiplos momentos do movimento unitaacuterio da

consciecircncia Por isso faz parte dessa consciecircncia o acolhimento ou a hospitalidade do outro mdash ainda eu

mesmo mdash como momento insuperaacutevel o mesmo ou o proacuteprio eacute tambeacutem o estrangeiro do outro bem como o

outro eacute estrangeiro do mesmo pois hoacutespede eacute tanto quem acolhe como quem eacute acolhido Por fim pode-se

pensar em uma contrapartida filosoacutefica dessa questatildeo em relaccedilatildeo agrave linguagem e agrave traduccedilatildeo pois se traduzir

eacute uma tarefa fundamental da humanidade mdash da pluralidade existencial ou do reconhecimento enquanto

humano mdash conforme o mito de Babel hospedar o estrangeiro mdash sua liacutengua sua cultura sua histoacuteria sua

existecircncia mdash deve ser igualmente um imperativo eacutetico a natildeo se evitar

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WEBER S Benjaminrsquos abilities London Harvard University 2008

Este volume foi diagramado utilizando-se as famiacutelias tipograacuteficas Lato amp Raleway

Eacute permitida a reproduccedilatildeo parcial desta obra desde que citada a fonte e que natildeo seja

para qualquer fim comercial em contraacuterio constitui violaccedilatildeo da LDA 961098

Page 2: Natan Henrique Taveira Baptista Luiza Helena Rodrigues de ......Clássicas pela Universidade de São Paulo. Fez um estágio pós-doutoral na Universidade de Coimbra, em Portugal, em

Estu do s em

d o s Claacutess ico s

copy Cop yrig ht do s autores Vitoacuteria 2020

U NIVER S ID AD E F ED ER AL D O E S P IacuteR IT O S ANT O

R eitor P aul o Seacutergi o de P aul a V argas

V ice - r eitor Roney P i gnat on da Si l v a

Proacute - reito r de Pesq u isa e Poacute s - Gradu accedilatildeo N ey v al C ost a Rei s J uacuteni or

Diretor a do Centro de Ciecircncias Humanas e Naturais Edi net e M ari a Rosa

Coo rdenad or do Prog rama de Poacutes - Gradu accedilatildeo em L etras V i t or C ei Sant os

Coo rdenad or do Prog rama de Poacutes - Gradu accedilatildeo em H istoacuteria Bel c hi or M ont ei ro L i ma N et o

Editoraccedilatildeo N at an H enri que T av ei ra Bapt i st a

R evisatildeo de Tex to O s aut ores

Projeto Graacutef ico e Diag ramaccedilatildeo Eletrocircn ica N at an H enri que T av ei ra Bapt i st a

Cap a N at an H enri que T av ei ra Bapt i st a

R evisatildeo F inal Barbara F ari a T o fol i D rey kon F ernandes N asc i ment o e F abri zi a N i c ol i D i as

P R OG R AM A D E P OacuteS - G R AD UACcedilAtildeO E M L ET R AS ģU F ES

Telef on e ( 27) 4009 - 2515

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D AD OS I N T ER N ACION AIS D E C AT ALOG ACcedilAtildeO - N A - P UB LIC ACcedilAtilde O ( CIP)

(B i bl i otec a Setori al do Centro de Ci ecircnc i as H umanas e N aturai s da U ni versi dade F ederal do Espiacute ri to Santo ES B rasi l )

El aborado por Saul o de J esus Peres ģCRB - 6 ES - 676O

E828 Estudos em traduccedil atildeo amp rec epccedil atildeo dos c laacutessic os [rec urso elet rocircnic o] Natan Henrique

T aveira Baptista L uiza Helena R odrigues de Abreu Carvalho L eni R ibeiro L eite

organizadores ģDados elet rocircnic os ģVitoacuteria ES L et ras - Ufe s 2020

280 p il

ISBN 978 - 65 - 88916 - 00 - 1

M odo de ac esso lthtt p let rasufesbrpt - brperiodicos - e - publicac oesgt

1 Civilizaccedil atildeo c laacutessic a ģdisc ursos ensaios c onferecircnc ias 2 L ite ratura - Histoacuteria e

c riacutetic a 3 T raduccedil atildeo e inte rpretaccedil atildeo na lite ratura I Baptista Natan Henrique T aveira

1991 - II Carvalho L uiza Helena R odrigues de Abreu 1992 - III L eite L eni R ibeiro 1979 -

IV Universidade F ederal do Espiacuterito Santo Program a de Poacutes - Graduaccedil atildeo em L et ras

CDU 82

Natan Henrique Taveira Baptista

Luiza Helena Rodrigues de Abreu Carvalho

Leni Ribeiro Leite

O R G A N I Z A D O R E S

Vitoacuter ia 2 0 2 0

Estu do s em

d o s Claacutess ico s

PARTE I

A ANTIGUIDADE CLAacuteSSICA

Agrave LUZ DOS ESTUDOS DE RECEPCcedilAtildeO

ALUSAtildeO E INTERTEXTUALIDADE

Um possiacutevel diaacutelogo entre o Poema de Parmecircnides e o Tratado do natildeo-ser de Goacutergias

Daniela Brinati Furtado

danibrinatifgmailcom

Faacutebio da Silva Fortes

fabiosfortesyahoocombr

O objetivo deste estudo eacute apresentar uma reflexatildeo sobre a filosofia

parmeniacutedica acerca do ser e em que medida esta pode ter

viabilizado o pensamento de Goacutergias desenvolvido no Tratado do

natildeo-ser Em seu tratado Goacutergias apresenta a hipoacutetese de que as

coisas externas ao discurso [loacutegos] natildeo satildeo traduziacuteveis em palavras

portanto natildeo satildeo comunicaacuteveis Ao fazecirc-lo o sofista impede que

qualquer discurso fale fielmente da realidade atitude que

inviabiliza tratar o Poema de Parmecircnides realmente do ser Feito

isso Goacutergias daacute ao nosso conhecimento apenas acesso ao

discurso o qual receberaacute o poder de atribuir sentido agrave realidade

que seraacute um constante fluxo de discursos pontuais E ao

refletirmos sobre a questatildeo do sofista nos perguntaremos se o ser

parmeniacutedico ndash na medida em que este eacute confundido com o

pensamento presente em seu Poema ndash possivelmente abriu espaccedilo

para os postulados gorgianos

[11]

Introduccedilatildeo

No Tratado do natildeo-ser Goacutergias parece limitar a possibilidade de o loacutegos1 expressar fielmente tudo aquilo que

natildeo seja classificado como uma palavra em um discurso Tal movimento de limitaccedilatildeo do loacutegos parece ir de

encontro com o Poema acerca da natureza de Parmecircnides a saber um discurso sobre como se daacute a realidade

o ser ndash que seria a condiccedilatildeo de possibilidade de todas as coisas que satildeo

Diante disso nos propomos refletir sobre em que medida o Tratado de Goacutergias dialoga com o Poema de

Parmecircnides Para realizaacute-lo propomo-nos primeiro a fazer uma reflexatildeo sobre o poema para entatildeo

ponderar sobre o tratado e acerca de que medida podemos levantar a possibilidade de seu diaacutelogo com o

poema

Com relaccedilatildeo ao Poema refletimos que Parmecircnides atraveacutes da deusa indica o ser como a condiccedilatildeo de

possibilidade das coisas que satildeo ou seja as coisas apenas satildeo porque antes o ser eacute assim como tal ser

tambeacutem parece ser o uacutenico objeto de pensamento Ao fazecirc-lo Parmecircnides parece revelar como

consequecircncia de suas postulaccedilotildees uma realidade simples ou seja uma vez que o ser permeia tudo aquilo que

eacute e portanto na medida em que pensamos algo tal pensamento passa a ser isto eacute passa a ser permeado

pelo ser

Ora Goacutergias parece pensar que se assim o fosse os pensamentos seriam congruentes com relaccedilatildeo ao ser e

portanto natildeo seria possiacutevel pensar o natildeo ser Poreacutem Goacutergias insinua ser capaz de pensar um tratado que

menciona o natildeo ser e assim ele levanta a questatildeo de a realidade natildeo ser simples ndash permeada por apenas um

ser que igualaria a natureza de todas as coisas que permeia ndash mas sim uma realidade complexa na qual pode

existir algo de uma natureza diferente do loacutegos poreacutem natildeo suscetiacutevel de ser conhecida ou se conhecida natildeo

possiacutevel de ser enunciada

O ser parmeniacutedico

Em seu poema Parmecircnides atraveacutes da deusa nos apresenta duas possibilidades de composiccedilatildeo do todo da

realidade ou tudo eacute ser ou tudo eacute natildeo ser ldquoassim ou totalmente eacute necessaacuterio ser ou natildeordquo (DK 28 B811)2

Temos aqui a apresentaccedilatildeo daquilo que Sedley (2008 p 170) chama de ldquoPrimeira lei Natildeo haacute meias-verdades

1 Como nos indica o verbete de um dos mais conceituados dicionaacuterios da liacutengua grega antiga (LIDDELL SCOTT JONES 1996 [1843]) a palavra loacutegos tem vaacuterias traduccedilotildees possiacuteveis dentre elas palavra discurso pensamento 2 οὕτως ἢ πάμπαν πελέναι χρεών ἐστιν ἢ οὐχί Em todas as citaccedilotildees do Poema utilizamos a traduccedilatildeo de Joseacute

Cavalcante de Souza (1973)

[12]

Nenhuma proposiccedilatildeo eacute verdadeira e falsa A nenhuma pergunta se pode coerentemente responder lsquosim e

natildeorsquordquo ou seja quando se trata da verdade ou eacute ou natildeo eacute natildeo haacute como ser ambos

A deusa exclui a possibilidade do natildeo ser como aquele a partir do qual toda a realidade se desdobra na medida

em que este natildeo possui atributos proacuteprios dele nada pode-se afirmar que eacute apenas o que natildeo eacute o que o

impossibilitaria ser condiccedilatildeo de possibilidade daquilo que eacute relaccedilatildeo (SEDLEY 2008)

Jaacute o ser por ter atributos proacuteprios natildeo precisa de um diferente para ser caracterizado ndash dizemos isso porque

em uma negativa noacutes precisariacuteamos de um ldquoBrdquo para dizer que ldquoArdquo natildeo eacute ele A afirmaccedilatildeo por outro lado

permitiria somente a identidade ldquoArdquo eacute ldquoArdquo Ora se a deusa postulou no iniacutecio do poema que o todo eacute ou natildeo

eacute uma vez que o natildeo ser precisa de um diferente para caracterizar-se ele natildeo poderia ser o todo Isso porque

para ser pensado o natildeo ser natildeo o faz identificando-se consigo mesmo mas diferenciando-se de algo e

portanto se ele fosse o todo ele natildeo o seria sozinho mas precisaria de outro para receber atributos O ser

por outro lado identifica-se consigo mesmo podendo ser apenas ele o todo Isso permite um discernimento

do ser um pensamento claro deste e por ter caracteriacutesticas proacuteprias e inteligiacuteveis eacute capaz de ser o motivo

das coisas serem ou seja as coisas satildeo porque fazem parte do ser (KIRK 1983 p 258)

Depois disso estabelecido e o sujeito do verbo ldquoserrdquo ter sido colocado como o ente (CASSIN 2015) a deusa

segue para demonstrar os quatro atributos do ser natildeo gerado e impereciacutevel um todo uacutenico imoacutevel e que o-

que-eacute eacute esfeacuterico A primeira caracteriacutestica trata da atemporalidade do ser Tal caracteriacutestica se apresenta

como fundamental uma vez que ldquose alguma coisa existe natildeo pode nascer nem perecer transformar-se ou

mover-se nem estar sujeita a nenhuma imperfeiccedilatildeordquo (KIRK 1983 p 251) ou seja para nos enganarmos

entendendo que as coisas vecircm a ser no tempo tem de haver algo atemporal espacial de onde tais coisas

possam se desdobrar este algo eacute o ser

Na medida em que nos encaminhamos para a proacutexima caracteriacutestica podemos perceber a

complementaridade entre elas uma vez que o ser eacute impereciacutevel e condiccedilatildeo de existecircncia das coisas

pereciacuteveis este seraacute um uno contiacutenuo que permeia todas as coisas que satildeo ldquoo que estaacute sendo eacute

lsquocompletamente homogecircneo uno e contiacutenuorsquo e natildeo pode ser de outro modo jaacute que estaacute presente em tudo o

que eacuterdquo (CORDERO 2011 p 100)

Se o ser eacute uno contiacutenuo homogecircneo e permeia todas as coisas que existem e se para que as coisas sejam

tem de haver um ser entatildeo no momento em que um pensamento emerge este encontra sua condiccedilatildeo de

possibilidade no ser e quando ele passa a ser efetivamente ele tambeacutem eacute permeado pelo ser ldquoeacute lsquotodo igual a

sirsquo de modo a que nele natildeo se possam encontrar intervalos ou distinccedilotildeesrdquo (SEDLEY 2008 p 174) Ou seja

natildeo haacute como ter um intervalo no ser que permita que algo seja sem ser permeado por este e portanto quando

um pensamento passa a ser segue-se que este eacute permeado pelo ser

[13]

Tal caracteriacutestica pode levar-nos a pensar o ser como muacuteltiplo Poreacutem para evitar tal pensamento de

multiplicidade que engendraria uma certa ilusatildeo acerca da realidade Parmecircnides iraacute introduzir a ideia do

todo como um e quando Parmecircnides postula a realidade como um ser uno ele exclui a possibilidade da

multiplicidade uma vez que mesmo que tenhamos a ilusatildeo de uma realidade muacuteltipla eacute patente o fato de o

ser tudo permear e dar a possibilidade de existecircncia agraves coisas que satildeo portanto a realidade eacute uma uacutenica

existecircncia a do ser (KIRK 1983 p259)

Tal colocaccedilatildeo de que o ser eacute uno e homogecircneo nos leva agrave proacutexima caracteriacutestica que a complementaraacute o ser

eacute imoacutevel Isso porque uma vez que consideramos o ser como atemporal e impereciacutevel e natildeo gerado ele natildeo

realiza um movimento natildeo podemos falar o que ele foi ou seraacute pois ele eacute sempre o mesmo estaacute em um estado

constante ele eacute sempre presente A partir disso podemos pensar o ser como um eterno contiacutenuo ldquocontudo

eacute provaacutevel que o argumento de 296 tenha jaacute negado sua existecircncia no tempordquo (KIRK 1983 p 261) pois se

ele fosse um contiacutenuo dentro do tempo poderiacuteamos dizer que ele foi o mesmo que ele eacute hoje e seraacute sempre

o mesmo mas natildeo devemos falar do ser em comparaccedilatildeo com as coisas que ele natildeo eacute tratamos dele apenas

de forma afirmativa e dizer o que foi seu passado que natildeo eacute mais presente natildeo estaacute de acordo com tal

postulaccedilatildeo

Portanto parece-nos que Parmecircnides pensa em um ser que eacute e que ocupa a dimensatildeo espacial ldquolsquoimoacutevelrsquo eacute

aqui frequentemente interpretado como lsquoimutaacutevelrsquo tomando-se o limite como siacutembolo de lsquoinvariacircnciarsquordquo

(SEDLEY 2008 p 174) Tal dimensatildeo espacial nos leva agrave uacuteltima caracteriacutestica mencionada a sua

esfericidade O ser por ser uno atemporal e homogecircneo natildeo poderia ser carente de nada e por isso

Parmecircnides designa a este limites ldquopreenchendo-se todo espaccedilo disponiacutevel ateacute esse limite natildeo haacute espaccedilo

para esse movimentordquo (SEDLEY 2008 p 174) Portanto colocando um limite espacial Parmecircnides tira do

ser essa caracteriacutestica temporal do movimento

Devemos interpretar esses limites como uma forma tanto metafoacuterica quanto literal de apresentar o

acabamento do ser Literal porque quando se trata de tal acabamento este seraacute esfeacuterico uma vez que a

esfera natildeo permitiraacute uma assimetria e portanto natildeo permitiraacute uma definiccedilatildeo de suas partes por comparaccedilatildeo

agraves outras nas suas diferentes caracteriacutesticas (SEDLEY 2008) Poreacutem haacute objeccedilotildees a essa limitaccedilatildeo do ser a

saber que se o ser eacute limitado e esfeacuterico nada impede que no seu exterior esteja o natildeo-ser (SEDLEY 2008)

Eacute nesse momento que introduzimos a interpretaccedilatildeo metafoacuterica da esfericidade do ser segundo a qual

podemos entender que Parmecircnides ao designar o ser como limitado talvez esteja pensando este como

limitante aquilo que permitiraacute as coisas serem E por este ser uno e todo coloca limite agraves coisas que satildeo

existentes e natildeo permite a existecircncia do natildeo ser ou seja do natildeo existente - ele limitaraacute a existecircncia agraves coisas

que satildeo (KIRK 1983)

[14]

Entatildeo pois limite eacute extremo bem terminado eacute de todo lado semelhante a volume de esfera bem redonda do centro equilibrado em tudo pois ele nem algo maior nem algo menor eacute necessaacuterio ser aqui ou ali pois nem natildeo-ente eacute que o impeccedila de chegar ao igual nem eacute que fosse a partir do ente aqui mais e ali menos pois eacute todo inviolado pois a si de todo igual igualmente em limites se encontra (DK 28 B841-49)3

Podemos perceber nessa passagem do Poema que a deusa coloca o ser como limitado e circular Podemos

pensar que assim ela o faz uma vez que o ciacuterculo impediria uma comparaccedilatildeo negativa ndash a partir da qual uma

parte teria atributos que outra natildeo tem ndash excluindo a possibilidade de o natildeo ser ser de dentro do ser Isso

resulta em um ser todo idecircntico a si mesmo e que impossibilita a diferenccedila dentro de seus limites

Na medida em que o ser eacute homogecircneo e condiccedilatildeo de possibilidade de tudo aquilo que eacute ele permite a

existecircncia das coisas que satildeo uma vez que estas derivam dele Podemos a partir de tal pensamento deparar-

nos com a consequecircncia de que no momento em que um pensamento surge ou que um discurso eacute proferido

eles tambeacutem satildeo derivaccedilotildees do ser e portanto natildeo dizem o natildeo ser ndash pois este eacute impensaacutevel ndash mas mesmo

que diferente da forma que a deusa o apresenta eles expressam o ser e portanto natildeo haveria o falso

Resumidamente vimos que no Poema atraveacutes da deusa Parmecircnides apresenta duas vias possiacuteveis uma que

eacute (a do ser) e outra que natildeo eacute (a do natildeo ser) Uma vez que a via do natildeo ser mostrou-se contraditoacuteria ela natildeo

poderia ser a via do conhecimento nos restando apenas a via do ser A deusa caracteriza o ser que compotildee a

realidade como uno imutaacutevel homogecircneo e circular e devido a tais atributos o ser natildeo poderia ser carente

abrangendo assim todas as coisas que satildeo inclusive o pensamento e portanto pensar se confunde com o

ser

O ser e o loacutegos no Tratado do natildeo ser

Na versatildeo do Tratado ao qual temos acesso atraveacutes do Anocircnimo MXG nos eacute apresentada primeiro a

conclusatildeo para depois serem desenvolvidos os argumentos que levaram Goacutergias a ela

3 αὐτὰρ ἐπεὶ πεῖρας πύματον τετελεσμένον ἐστί

πάντοθεν εὐκύκλου σφαίρης ἐναλίγκιον ὄγκωι

μεσσόθεν ἰσοπαλὲς πάντηιmiddot τὸ γὰρ οὔτε τι μεῖζον

οὔτε τι βαιότερον πελέναι χρεόν ἐστι τῆι ἢ τῆι

οὔτε γὰρ οὐκ ἐὸν ἔστι τό κεν παύοι μιν ἱκνεῖσθαι

εἰς ὁμόν οὔτ᾿ ἐὸν ἔστιν ὅπως εἴη κεν ἐόντος

τῆι μᾶλλον τῆι δ᾿ ἧσσον ἐπεὶ πᾶν ἐστιν ἄσυλονmiddot

οἷ γὰρ πάντοθεν ἶσον ὁμῶς ἐν πείρασι κύρει

[15]

Nada diz Goacutergias eacute Se eacute eacute incognosciacutevel se eacute e eacute cognosciacutevel natildeo pode ser mostrado a outros (Tratado do natildeo-ser sect1)4

Inicialmente percebemos nessa passagem que Goacutergias apresenta-se em desacordo do que foi revelado pela

deusa de Parmecircnides Ao anunciar que ldquonada eacuterdquo Goacutergias parece ir de encontro agrave filosofia de Parmecircnides

desafiando-a e derrubando a seguranccedila que essa tinha diante de sua consequecircncia ndash a relaccedilatildeo direta entre

pensamento e realidade ndash em sua realidade uma (CASERTANO 2010) Tal movimento parmeniacutedico tem

como consequecircncia a impossibilidade de o discurso falar coisas que satildeo diferentes do ser e portanto

apresentar algo diferente deste Poreacutem no trecho apresentado Goacutergias parece impossibilitar a traduccedilatildeo do

ser parmeniacutedico em palavras Ao fazecirc-lo Goacutergias acaba por indicar que haacute como dizer e portanto pensar

aquilo que eacute diferente do ser ou seja nessa passagem o sofista parece indicar a possibilidade de dizer o natildeo

ser e portanto exclui a homogeneidade do ser

Goacutergias provavelmente seguindo os passos da deusa (CASSIN 2015) pensa que se a realidade eacute toda ser ou

toda natildeo ser e se o fato de se poder pensarfalar o natildeo ser ndash como ele o fez anunciando que nada eacute ndash exclui a

possibilidade do ser como todo entatildeo resta ao natildeo ser a posiccedilatildeo de reger a realidade Mas ainda assim se haacute

natildeo ser e este exclui a possibilidade do ser Goacutergias concorda que para que haja natildeo ser para se dizer que natildeo

eacute seria necessaacuterio o desdobramento das coisas deste natildeo ser assim como em Parmecircnides do ser se

desdobravam os entes em Goacutergias do natildeo ser deveriam se desdobrar os natildeo entes (CASSIN 2015) Mas para

que isso aconteccedila o natildeo ser deveria ter atributos proacuteprios como o ser o que natildeo eacute o caso uma vez que o natildeo

ser eacute contraditoacuterio - ele eacute natildeo ser - ele eacute idecircntico e diferente de si ao mesmo tempo E se o natildeo ser permite

contradiccedilatildeo nada impede o ser - que seria o oposto do natildeo ser com o qual coexiste na contradiccedilatildeo - de existir

em uma realidade dominada por natildeo ser Afinal eacute necessaacuterio o ser para afirmar que o natildeo ser eacute

Concluiacutemos entatildeo que provavelmente para Goacutergias o todo natildeo pode ser o ser sozinho uma vez que o natildeo ser

foi colocado na primeira frase do tratado Mas tambeacutem natildeo pode ser o natildeo ser sozinho uma vez que este eacute

contraditoacuterio natildeo tendo atributos proacuteprios e precisando do ser para ser identificado E ainda que ser e natildeo

ser fossem o mesmo nada seria pois ser seria natildeo ser e este uacuteltimo natildeo eacute (Tratado do natildeo-ser sect2)

Goacutergias portanto se vecirc em um impasse ao tentar conhecer o ser parmeniacutedico ele acabou se encontrando

em uma realidade que natildeo eacute simples e composta apenas pelo ser Ele se viu pelo contraacuterio em uma realidade

complexa e composta pelo ser e pelo natildeo ser Isso dificultou a pesquisa do sofista pois durante sua tentativa

de conhecer o ser ele se deparou com o diferente deste e por ter encontrado algo sobre o que a deusa diz

natildeo ser possiacutevel pensar ele tenta distinguir esse diferente ndash o natildeo ser ndash do ser da deusa poreacutem ldquodesde que se

4 Οὐκ εἶναί φησίν οὐδέν εἰ δrsquo ἔστιν ἄγνωστον εἶναι εἰ δὲ καὶ ἔστι καὶ γνωστόν ἀλλrsquo οὐ δηλωτὸν ἄλλοις Tal passagem pode ser encontrada no Tratado sobre o natildeo-ser em sua versatildeo do MXG (De Melisso Xenophane Gorgia) escrita por um doxoacutegrafo anocircnimo da qual seguimos a ediccedilatildeo de Cassin (2005)

[16]

tente garantir a distinccedilatildeo das duas vias elas se confundemrdquo (CASSIN 2015 p 70) Ou seja ao tentar

identificar o natildeo ser com ele mesmo ndash natildeo ser eacute natildeo ser ndash ele encontrou o ser junto do natildeo ser este uacuteltimo

precisando do primeiro para identificar-se consigo mesmo Isso deixa Goacutergias com duas opccedilotildees ou tudo eacute

(ser e natildeo ser satildeocoexistem) ou nada eacute (nem ser nem natildeo ser satildeoexistem)

O sofista se vecirc na posiccedilatildeo de fazer uma escolha e decide ser fiel agrave deusa dizendo que nada eacute pois se ele

optasse pelo tudo eacute ser e natildeo ser coexistiriam e de acordo com a deusa eles natildeo coexistem Segue-se entatildeo

que diferente da deusa Goacutergias natildeo percebe o caminho do ser como persuasivo o que vai levaacute-lo a dizer que

nem ser nem natildeo ser satildeo ou seja nada eacute (CASSIN 2015)

Em seguida Goacutergias recua de sua posiccedilatildeo radical Ele o faz ou melhor permite-se fazecirc-lo uma vez que eacute

indiferente ao conteuacutedo do discurso - natildeo importa se o ser eacute ou natildeo pois mesmo que seja natildeo haacute como ser

dito Entatildeo natildeo haacute porque o discurso ocupar-se do ser (SALLES 2018)

Goacutergias entatildeo recua um pouco de sua hipoacutetese inicial - de que ldquonada eacuterdquo - e anuncia a hipoacutetese de que ldquose eacute eacute

incognosciacutevelrdquo hipoacutetese que estabelece a indiferenccedila mencionada (CASSIN 2015) Isso porque com relaccedilatildeo

a essa realidade objetiva apresentada por Parmecircnides natildeo importa para ele se o ser realmente eacute porque se

ele for natildeo haacute como o conhecermos e portanto produzir um discurso sobre ele como Parmecircnides o fez

Goacutergias ao recuar um pouco da sua hipoacutetese inicial radical parece mostrar que quando se trata do discurso

natildeo haacute um criteacuterio objetivo que indique qual a verdade que se deve defender eacute uma escolha arbitraacuteria que

natildeo segue necessariamente regras loacutegicas Isso porque uma vez que ele abre matildeo da sua tese inicial e

considera a possibilidade de ser ele deixa de mostrar provas objetivas que justifiquem que nada eacute e permite

que o interlocutor decida se eacute ou natildeo pois independente da escolha deste natildeo haacute como dizer se ele estaacute

certo ou natildeo porque isso que ele diz ser ou natildeo eacute incognosciacutevel

Isso nos leva entatildeo ao segundo recuo em direccedilatildeo agrave sua terceira hipoacutetese conforme a qual Goacutergias apresenta

a seguinte sentenccedila ldquose eacute e eacute cognosciacutevel natildeo pode ser mostrado a outrosrdquo (Tratado do natildeo-ser sect1) Ao dizer

que o que eacute natildeo pode ser mostrado aos outros Goacutergias impossibilita que o discurso fale sobre objetos

externos a ele a saber objetos que natildeo satildeo palavras organizadas em um discurso Logo Goacutergias impede que

o discurso [loacutegos] tenha conteuacutedo se tornando apenas forma (CASSIN 2015) E quando o sofista logifica o

ser - ou seja quando o sofista faz o movimento de impossibilitar a atribuiccedilatildeo de um conteuacutedo objetivo a um

discurso fazendo do ser ao qual ele se refere apenas uma palavra ndash o discurso seraacute a uacutenica realidade que

temos acesso e a partir dele criamos o sentido da realidade objetiva

Sobre aquilo que natildeo eacute parece-nos uma reflexatildeo que evidencia bem a complexidade e relatividade de todo discurso que queira propor-se como um nosso discurso cognoscitivo sobre a realidade exterior a noacutes A complexidade eacute fornecida pelo inevitaacutevel entrelaccedilamento entre o niacutevel do nosso discurso sobre a realidade e o niacutevel da realidade que permanece fora

[17]

do nosso discurso e ao mesmo tempo da necessidade de ter bem distintos esses dois planos mesmo na dificuldade em fazer isso coerentemente (CASERTANO 2010 p 68)

Ou seja Goacutergias mostra como a relaccedilatildeo entre pensamentolinguagem [loacutegos] e a realidade eacute complexa e de

acordo com o sofista inconciliaacutevel Enquanto para Parmecircnides era algo simples (uno) ndash permitindo o

pensamento ser considerado criteacuterio do real uma vez que o que eacute eacute pensado e o que natildeo eacute eacute impensaacutevel

Portanto se o ser eacute e para que seja ele precisa ser pensado apenas enquanto uno imutaacutevel homogecircneo e

fechado Mas se eacute possiacutevel pensar sobre o ser diferente do que ele eacute ndash o nada por exemplo entatildeo o ser natildeo

pode ser o todo

Portanto eacute nessa uacuteltima colocaccedilatildeo que o leontino inaugura uma cisatildeo entre realidade e linguagem que natildeo

era problematizada no Poema e que impossibilita qualquer discurso de carregar consigo a verdade

(CORDERO 2011 p 139) Ele limita todo discurso agrave sua discursividade ou seja o discurso apenas anunciaraacute

palavras ele seraacute sempre sua proacutepria referecircncia nunca lhe seraacute possiacutevel anunciar uma realidade objetiva que

eacute de uma natureza diferente da sua E portanto como natildeo haacute nenhum ponto de diaacutelogo entre o loacutegos e uma

possiacutevel realidade objetiva perde-se o criteacuterio de verdade desse loacutegos uma vez que natildeo haacute nada externo a

ele que pode ser referecircncia como confirmaccedilatildeo ou negaccedilatildeo do hipoteacutetico conteuacutedo de tal loacutegos

O ser parmeniacutedico e o loacutegos gorgiano

Escolhemos o ser parmeniacutedico pelo aparente diaacutelogo que o Tratado faz com o Poema Dizemos isso pelo fato

de que Goacutergias parece estar discutindo exatamente a relaccedilatildeo entre as coisas que satildeo e os limites da

linguagem quando se trata de expressar tais coisas enquanto o poema apresenta-se como um discurso que

trata daquilo que eacute

Enquanto Parmecircnides discute sobre o que eacute o ser faz deste o uacutenico objeto do pensamento e impossibilita

que o natildeo ser seja pensado Goacutergias por sua vez parece-nos identificar o natildeo ser no loacutegos na medida em que

consegue dizer que ldquonada eacuterdquo questionando a relaccedilatildeo entre o pensamento e o ser Isso porque uma vez que

Parmecircnides apresenta uma realidade composta apenas pelo ser e o pensamento acaba sendo permeado por

este ser a relaccedilatildeo desses dois pode ser interpretada como paciacutefica ndash uma vez que ambos satildeo o ser ou

derivaccedilotildees deste Ora se o ser permeia todas as coisas natildeo haacute como surgir um pensamento diferente do ser

Poreacutem o questionamento colocado no Tratado leva Goacutergias a pensar que haacute como pensar o diferente do ser

portanto haveria a possibilidade do natildeo ser ndash este como o diferente do ser ndash colocando em questatildeo assim o

monismo parmeniacutedico que sustenta a equivalecircncia de pensamento e ser na medida em que a realidade natildeo

seria mais simples (apenas composta pelo ser) mas complexa (podendo haver a existecircncia de algo diferente

do ser)

[18]

Goacutergias o faz primeiro dizendo que ldquonada eacuterdquo e apenas com esta frase inicial o sofista apresenta seu

engajamento no Tratado se as coisas satildeo e o ser eacute o todo natildeo deixando espaccedilo para o natildeo ser como eacute possiacutevel

anunciar que nada eacute Tal questatildeo poderia ser resolvida dizendo que haacute intervalos no ser e a partir de um

deles teria sido possiacutevel que Goacutergias pensasse que algo diferente de tal ser - o nada - eacute Poreacutem se assim fosse

a deusa estaria enganada no Poema uma vez que neste ela diz ser o todo o ser ndash sem intervalos

Diante entatildeo da possibilidade da existecircncia do natildeo ser no logos ndash uma vez que este permitiu Goacutergias dizer

algo diferente do que eacute ndash o sofista parece assumir uma posiccedilatildeo semelhante agrave da deusa com relaccedilatildeo agrave

realidade poreacutem com consequecircncias diferentes enquanto a deusa ao assumir que o todo ou eacute ser ou eacute natildeo

ser considera persuasivo o ser assumir o posto de totalidade Goacutergias por sua vez parece-nos tambeacutem

considerar que o todo ou eacute ou natildeo eacute Poreacutem o sofista ao explorar a via do ser ndash que tambeacutem abrangeria o

loacutegos ndash encontra a possibilidade de pensar o diferente deste o natildeo ser e por considerar que ser e natildeo ser natildeo

poderiam coexistir ndash como a deusa o postulou ndash ele assume esse todo como o que nada eacute nem ser nem natildeo

ser

Consideramos esse momento do Tratado no qual Goacutergias parece apresentar uma posiccedilatildeo com relaccedilatildeo ao

todo uma passagem de diaacutelogo entre o pensamento do sofista e o de Parmecircnides Poreacutem o que nos eacute

apresentado em seguida pelo sofista parece ser o verdadeiro objetivo do tratado

Logo depois de apresentar uma posiccedilatildeo radical sobre a composiccedilatildeo da realidade ndash a de que nada eacute ndash Goacutergias

recua de tal concepccedilatildeo levantando a possibilidade de ser mas fazendo a ressalva de que natildeo seria conhecido

Tal movimento nos parece ser de grande importacircncia na medida em que diferencia o tratado do poema Isso

porque apesar de a deusa considerar a possibilidade do natildeo ser antes de descartaacute-lo depois que eacute definido o

ser como aquele que compotildee a realidade o poema passa a dedicar-se a argumentos que fundamentariam tal

posiccedilatildeo Goacutergias por sua vez abre matildeo da sua posiccedilatildeo inicial com relaccedilatildeo agrave realidade abstendo-se assim de

uma palavra final acerca dessa realidade

Depois do primeiro recuo o sofista realiza outro segundo o qual ele considera a possibilidade de ser e de ser

conhecido poreacutem com a ressalva de que natildeo pode ser comunicado E eacute esse movimento que consideramos o

principal quando se trata do Tratado e de sua relaccedilatildeo com o Poema Isso porque quando Goacutergias realiza esse

terceiro recuo ele parece justificar o porquecirc de ele se permitir fazecirc-lo aleacutem de tambeacutem parecer justificar o

porquecirc de seu texto natildeo se dedicar a argumentos que fundamentam o nada ser Dizemos que isso tambeacutem

poderia ser um ponto de diaacutelogo com o poema pois na medida em que Goacutergias impossibilita o loacutegos de

traduzir o que eacute ele apesar de considerar a possibilidade de existir o ser e de algueacutem o conhecer ele impede

que algueacutem fale fielmente deste E portanto mesmo que haja o ser e que Parmecircnides o tenha conhecido

Goacutergias exclui a possibilidade de o Poema ser o texto que trata desse ser Nenhum texto eacute capaz de fazecirc-lo

nem o de Goacutergias ou o de Parmecircnides

[19]

Conclusatildeo

Parece-nos portanto que em seu Tratado Goacutergias manteacutem um diaacutelogo com o Poema de Parmecircnides natildeo

porque Goacutergias faz uma colocaccedilatildeo sobre a realidade que vai de encontro com a do filoacutesofo ndash ao dizer que

nada eacute em contrapartida com o ser eacute da deusa mas sim pelo fato de Goacutergias se permitir duvidar da sua

colocaccedilatildeo inicial por ter como objetivo mostrar a falha do loacutegos ao tentar traduzir as coisas que natildeo satildeo

palavras em palavras

Chegamos a tal conclusatildeo tendo em vista que se Goacutergias impossibilita o loacutegos de falar do ser ele entatildeo retira

do Poema a autoridade de ser aquele que apresenta a realidade como esta se mostra Eacute pelo fato de Goacutergias

parecer levantar essa problemaacutetica da dificuldade de o loacutegos tratar do ser que suspeitamos que tal reflexatildeo

pareccedila partir do Poema o que nos levou a optar por levantar a possibilidade de o pensamento de Parmecircnides

ter sido um ponto de partida de Goacutergias

Referecircncias bibliograacuteficas

CASERTANO G Sofista Traduccedilatildeo de J Bortolini Satildeo Paulo Paulus 2010

CASSIN B Se Parmecircnides O tratado anocircnimo de Melisso Xenophane Gorgia Traduccedilatildeo de C Oliveira Belo Horizonte Autecircntica 2015

CORDERO N L A invenccedilatildeo da Filosofia uma introduccedilatildeo agrave filosofia antiga Traduccedilatildeo de E Wolf Satildeo Paulo Odysseus 2011

GOacuteRGIAS Testemunhos e Fragmentos Traduccedilatildeo de M Barbosa e I de Ornellas e Castro Lisboa Colibri 1993

KIRK G S RAVEN J E SCHOFIELD M Os filoacutesofos preacute-socraacuteticos Traduccedilatildeo de C A L Fonseca Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 2013

LIDDELL H G SCOTT R JONES H S A Greek-English Lexicon 9 ed rev e amp New York Oxford University 1996

PARMEcircNIDES Da natureza Traduccedilatildeo de J C de Souza In Os Preacute-Socraacuteticos Coleccedilatildeo ldquoOs Pensadoresrdquo Satildeo Paulo Abril Cultural 1973

SALLES L L B M Raiacutezes Sofiacutesticas Sobre a escrita como phaacutermakon para a fala ou da tradiccedilatildeo gorgiana ateacute Alcidamante de Eleia Tese (Doutorado em Filosofia) ndash Instituto de Filosofia e Ciecircncias Sociais Universidade Federal do Rio de Janeiro Rio de Janeiro 2018

SEDLEY D Parmecircnides e Melisso In LONG A A (org) Primoacuterdios da filosofia grega Traduccedilatildeo de P Ferreira Aparecida Ideias e Letras 2008 p 167-189

Liacutengua e recepccedilatildeo o caso de uelim + subj em um comentaacuterio agraves Filiacutepicas de Ciacutecero

Alex Mazzanti Jr

alexmazzantijrgmailcom

Essa pesquisa teve o apoio da

Fundaccedilatildeo de Amparo agrave Pesquisa do

estado de Satildeo Paulo (FAPESP) processos

n 201526060-5 e 201706554-9

Ao se deparar com um texto antigo leitores frequentemente

recorrem a comentaacuterios os quais teriam a funccedilatildeo de oferecer

conhecimento suplementar auxiliando (e mediando) a

interpretaccedilatildeo Assim eles ajudam o leitor a completar lacunas que

ele possa julgar ter em relaccedilatildeo agrave histoacuteria agrave tradiccedilatildeo agrave recepccedilatildeo

interpretaccedilatildeo e uso do texto por autores antigos e tambeacutem em

relaccedilatildeo a aspectos linguiacutesticos que podem gerar duacutevida ou

hesitaccedilatildeo no leitor A construccedilatildeo de uelim + subjuntivo natildeo

mediado por ut eacute objeto do comentaacuterio de Ramsey (2003) agrave Filiacutepica

I de Ciacutecero Seguindo Gildersleeve amp Lodge (1903) ele afirma que a

ausecircncia de ut torna o desejo mais enfaacutetico Uma anaacutelise focada nos

dados disponiacuteveis nos revela que nas cartas de Ciacutecero 98 dos

exemplares de uelim + subjuntivo satildeo sem a conjunccedilatildeo e nas obras

filosoacuteficas e discursos quinze exemplares satildeo sem a conjunccedilatildeo e

nenhum com ela Do ponto de vista da linguiacutestica funcional a

ausecircncia da conjunccedilatildeo eacute a forma natildeo marcada e portanto natildeo

enfaacutetica O leitor assim pode ser levado a caminhos diversos a

partir da disputa proacutepria do processo histoacuterico por criteacuterios de

validaccedilatildeo que vatildeo ou natildeo ser considerados em um comentaacuterio

[21]

O comentaacuterio e a recepccedilatildeo dos claacutessicos

Ao ler um texto antigo em grego ou latim o leitor atual tem ao seu dispor uma seacuterie de ferramentas

especialmente se considerarmos os textos mais buscados diversas traduccedilotildees (como as das seacuteries Loeb e

Belles Lettres) ediccedilotildees criacuteticas (como as da Teubner ou da seacuterie Oxford Classical Texts) ferramentas digitais

(como o site Perseus a ferramenta Dioacutegenes o Thesaurus Linguae Graecae o Thesaurus Linguae Latinae)

manuscritos digitalizados (como os da Bibliotheca Palatina) Tradicional e muito uacutetil ferramenta tambeacutem satildeo

os comentaacuterios obras que fazem glosas de um texto literaacuterio remontando a antiga tradiccedilatildeo (primeiros

seacuteculos aC) aleacutem de uma forma especial os escoacutelios que satildeo comentaacuterios exegeacuteticos escritos ao lado do

texto agraves margens dos manuscritos medievais e atestados desde o seacuteculo VI dC (CANCIK SCHNEIDER

2002- sv ldquoCommentaryrdquo e ldquoScholiardquo)

Gumbrecht (2003 p 41) nos oferece um resumo sobre o que motiva a necessidade de fazermos e lermos

comentaacuterios

o principal problema que ele ou ela [ie leitor inteacuterprete] enfrenta estaacute na assimetria entre a gama de conhecimentos gerais e especializados que o texto pressupotildee ndash como uma condiccedilatildeo para a identificaccedilatildeo de seu sentido (ldquopretendidordquo ldquooriginalrdquo ldquohistoacutericordquo ldquoadequadordquo ou ldquoautecircnticordquo) ndash e o conhecimento que o inteacuterprete tem a sua disposiccedilatildeo [] Tem sido sempre a tarefa do comentador e a funccedilatildeo do comentaacuterio superar tal assimetria e entatildeo mediar os diferentes contextos culturais (aquele que o autor do texto compartilhava com sua audiecircncia primaacuteria e aquele dos leitores que pertencem a tempos histoacutericos posteriores ou a diferentes culturas)1

Essas assimetrias podem ser de vaacuterias ordens dependendo do julgamento do comentador a respeito das

possiacuteveis necessidades de conhecimento suplementar que o leitor precisaraacute para ler e interpretar o texto

Nesse sentido veja o que diz Gumbrecht (2003 p 42) ldquoUm comentaacuterio em oposiccedilatildeo [agrave interpretaccedilatildeo]

parece ser um discurso que quase por definiccedilatildeo nunca atinge seu fim [] um comentador nunca tem certeza

das necessidades (ie as lacunas no conhecimento) daqueles que usaratildeo o comentaacuteriordquo2

Pode-se falar de contexto histoacuterico uacutetil para entendermos referecircncias a fatos e acontecimentos que

estavam ao dispor do interlocutor original do texto e que satildeo pressupostos biografia de personagens

(histoacutericos ou fictiacutecios) permitindo que noacutes entendamos melhor quem satildeo os sujeitos que produziram os

1 Todas as traduccedilotildees oferecidas nesse estudo satildeo da lavra do autor ldquoThe main problem he or she [ie reader interpreter] faces lies in an asymmetry between the range of general and specialized knowledge that the text presupposes ndash as a condition for the identification of its (ldquointendedrdquo ldquooriginalrdquo ldquohistoricalrdquo ldquoadequaterdquo or ldquoauthenticrdquo) meaning ndash and the knowledge that the interpreter has at his or her disposal [hellip] It has always been the task of the commentator and the function of the commentary to overcome such asymmetry and to thus mediate between different cultural contexts (between that which the textrsquos author shared with a primary readership and that of readers who belong to later historical times or to different cultures)rdquo 2 ldquoCommentary in contrast [to interpretation] appears to be a discourse that almost by definition never reaches its end [hellip] a commentator is never sure of the needs (ie the lacunae in the knowledge) of those who will use the commentaryrdquo

[22]

textos transmissatildeo do texto indicando quais foram os percalccedilos ao longo dos seacuteculos por que os

manuscritos passaram ateacute que chegassem a noacutes aleacutem de indicar quais partes satildeo mais bem atestadas pela

tradiccedilatildeo manuscrita e quais satildeo sujeitas agrave controveacutersia trechos intertextuais com suas fontes um recurso

muito utilizado e que enriquece o texto ao promover diaacutelogos gerando novas camadas de sentido que

escapam aos que ignoram esse recurso aleacutem de fatos linguiacutesticos que podem impedir o pleno entendimento

do texto considerando no caso dos estudos claacutessicos que se trata de liacutenguas antigas cujo estudo eacute demorado

e sempre lacunar por natildeo serem mais a liacutengua materna de ningueacutem

Uma consequecircncia disso tudo eacute que para a recepccedilatildeo de um texto antigo o comentaacuterio tem uma natureza

dupla Por um lado ele eacute um auxiliador da recepccedilatildeo do texto na medida em que incentiva e facilita sua leitura

por suprir elementos que poderiam impedir (agraves vezes completamente) a sua compreensatildeo ao mesmo tempo

em que pode oferecer elementos suplementares que potencializem leituras impensadas dado um repertoacuterio

sociocultural limitado do leitor fruto por vezes da proacutepria distacircncia soacutecio-histoacuterica entre leitor e texto Nesse

sentido o comentaacuterio permite que o conhecimento acumulado por geraccedilotildees de estudiosos seja replicado e

multiplicado Por outro lado o comentaacuterio eacute um mediador da recepccedilatildeo na medida em que direciona e

potencialmente exclui leituras natildeo abonadas pela tradiccedilatildeo Este aspecto limitador eacute amplificado se

considerarmos que muitos comentaacuterios se baseiam na opiniatildeo de outros comentadores e estudiosos de

modo que certas ideias sejam transmitidas antes pela autoridade do que pela (re)anaacutelise cuidadosa

Do ponto de vista dos estudos de recepccedilatildeo esse caraacuteter ambivalente do comentaacuterio eacute relativizado na

medida em que natildeo haacute uma leitura ldquocorretardquo e ldquopermanenterdquo do texto pois cada leitura se daacute em um novo

contexto e cada novo confronto entre texto e leitor eacute capaz de gerar sentidos natildeo previstos originalmente

Quando textos satildeo relidos em novas situaccedilotildees eles tecircm novos sentidos noacutes natildeo devemos privilegiar sentidos que eles tinham em seus contextos primeiros e lsquooriginaisrsquo (mesmo pressupondo que eles sejam em princiacutepio recuperaacuteveis) (MARTINDALE 2007 p 298)3

Natildeo haacute uma leitura permanentemente lsquocorretarsquo de um texto mas uma lsquofusatildeo de horizontesrsquo (na metaacutefora um tanto estranha de Gadamer) sempre em transformaccedilatildeo entre texto e inteacuterprete (MARTINDALE 2007 p 301)4

Nesse sentido o leitor imerso num contexto soacutecio-histoacuterico e com caracteriacutesticas individuais uacutenicas seria

um fator fundamental na recepccedilatildeo Ainda assim devemos considerar a seguinte advertecircncia

Mas a recepccedilatildeo natildeo alega que a consumidora tem sempre a razatildeo somente que ela eacute sempre parte da transaccedilatildeo Validaccedilatildeo permanece uma questatildeo para os estudiosos da recepccedilatildeo como para outros inteacuterpretes (de fato desde que criteacuterios de validaccedilatildeo satildeo historicamente

3 ldquoWhen texts are reread in new situations they have new meanings we do not have to privilege the meanings that they had in their first lsquooriginalrsquo contexts (even assuming these to be recoverable in principle)rdquo 4 ldquoThere is no permanently lsquocorrectrsquo reading of a text but an ever-changing lsquofusion of horizonsrsquo (in Gadamerrsquos somewhat awkward metaphor) between text and interpreterrdquo

[23]

situados e sempre em disputa eles podem ser eles mesmos vistos como parte crucial do processo de recepccedilatildeo) (MARTINDALE 2007 p 302)5

Eacute na busca por validaccedilatildeo que a natureza dupla dos comentaacuterios que comentaacutevamos acima atua O

conhecimento acumulado agraves vezes de muitos seacuteculos que eacute transmitido por comentaacuterios ao congregar

incontaacuteveis inteligecircncias de modo resumido eacute um uacutetil e eficaz instrumento de validaccedilatildeo de leituras

especialmente no que se refere agraves lacunas que todo leitor tem

Ainda assim gostaria de ressaltar que Martindale natildeo deixa de apontar que criteacuterios de validaccedilatildeo estatildeo

sempre em disputa No caso de conhecimentos linguiacutesticos de liacutenguas antigas ponto em que focaremos nas

proacuteximas seccedilotildees a questatildeo tem complexidades proacuteprias Por um lado a tradiccedilatildeo de leituras remonta agraves vezes

a testemunhos de pessoas que tinham o latim ou o grego como liacutengua materna e que por isso satildeo capazes de

nos oferecer impressotildees e ideias que nenhum leitor moderno que intente se aproximar do texto na liacutengua

original seria capaz de ter Por outro lado a linguiacutestica (ou a filologia) como uma ciecircncia com meacutetodo

descritivo mais do que normativo eacute recente (natildeo mais de dois seacuteculos) ou seja muitas novas descobertas

foram feitas recentemente por conta de novas abordagens a textos tradicionais Acresce que nos uacuteltimos

cem anos dezenas de teorias muitas vezes conflitantes acirram as disputas entre os criteacuterios de validaccedilatildeo agrave

disposiccedilatildeo dos leitores

Tendo esse panorama em vista nas proacuteximas seccedilotildees vou trazer um exemplo de comentaacuterio feito sobre um

fato linguiacutestico de um discurso de Ciacutecero evidenciando a disputa de descriccedilotildees de algumas gramaacuteticas sobre

o fato em questatildeo Em seguida apresento alguns dados sobre o fenocircmeno e os analiso a partir de um conceito

do funcionalismo corrente linguiacutestica que vem se desenvolvendo desde as uacuteltimas deacutecadas do seacuteculo XX

O caso de um comentaacuterio agraves Filiacutepicas de Ciacutecero

O trecho referente ao comentaacuterio que discutiremos estaacute em Cic Phil 113

sed hoc ignoscant di immortales uelim et populo Romano qui id non probat et huic ordini qui decreuit inuitus

Mas gostaria de que os deuses imortais perdoassem tanto o povo romano que natildeo aprova isso quanto esta ordem que aprovou o decreto contra sua vontade

Realccediladas estatildeo as palavras que mais nos interessam uelim primeira pessoa do singular subjuntivo presente

com valor potencial do verbo uolo ldquoquererrdquo sintaticamente verbo principal do periacuteodo e ignoscant terceira

5 ldquoBut reception does not claim that the customer is always right just that she is always a party to the transaction Validity remains an issue for reception scholars as for other interpreters (indeed since criteria of validity are historically situated and always in dispute they can themselves be seen as a crucial part of the processes of reception)rdquo

[24]

pessoa do plural subjuntivo presente do verbo ignosco ldquoperdoarrdquo verbo subordinado a uelim dentro de uma

oraccedilatildeo substantiva ou oraccedilatildeo completiva6

Dada a padronizaccedilatildeo e normatizaccedilatildeo por que passou a liacutengua latina entre o periacuteodo arcaico e o periacuteodo

claacutessico7 a regra padratildeo do latim claacutessico o que inclui a liacutengua de Ciacutecero seria a introduccedilatildeo de oraccedilotildees

substantivas com a conjunccedilatildeo ut (uelim ut di immortales ignoscant)8 A ausecircncia da conjunccedilatildeo frequente no

latim de Plauto e Terecircncio (seacutec III e II aC) ocorre nos autores claacutessicos mas em limitados contextos9

Vejamos o que o comentaacuterio de Ramsey sobre o trecho de Ciacutecero citado acima diz

15 ignoscant aqui tanto com o acusativo de coisa perdoada (hoc a medida sacriacutelega honrando Ceacutesar) quanto com o dativo dos ofensores (populo e ordini consistente com o familiar Senatus Populusque Romanus) O desejo se torna mais enfaacutetico pela omissatildeo de ut para unir o jussivo ignoscant ao subjuntivo potencial uelim (Gildersleeve amp Lodge sect546 R2) ldquoEu gostaria de que os deuses imortais perdoassemhelliprdquo (RAMSEY 2003 p 115 comentaacuterio ao sect 13)10

O autor atribui agrave presenccedila ou agrave ausecircncia da conjunccedilatildeo o sentido de ecircnfase e baseia essa afirmaccedilatildeo na

gramaacutetica de Gildersleeve amp Lodge Ao tratar de ldquoComplementary Final Sentencesrdquo (sentenccedilas completivas

finais) e especificamente de ldquoVerbs of Will and Desirerdquo (verbos de vontade e desejo) os autores da gramaacutetica

fazem a seguinte colocaccedilatildeo

Quando a ideia de querer eacute enfaacutetica o simples subjuntivo sem ut eacute empregado e a restriccedilatildeo de sequecircncia [de tempos] a presente e imperfeito eacute removida (GILDERSLEEVE LODGE 1903 sect 546)11

O problema aparece quando consultamos outras gramaacuteticas e a afirmaccedilatildeo sobre qual situaccedilatildeo eacute enfaacutetica se

inverte completamente A gramaacutetica de Bennett tem como foco o latim arcaico mas o comentaacuterio a seguir

sobre a presenccedila da conjunccedilatildeo em oraccedilotildees completivas eacute feito de forma ampla Vejamos

6 Sobre esse tipo de oraccedilatildeo veja por exemplo Cart et al (2007 p 130-135) Allen amp Greenough (1903 sect 560) e Hofmann amp Szantyr (1965 p 644-647) 7 Sobre o processo de normalizaccedilatildeo da liacutengua latina veja eg Clackson amp Horrocks (2011 p 90 ss) Para uma sugestatildeo de periodizaccedilatildeo da histoacuteria da liacutengua latina veja Weiss (2009 p 23) que chama o latim arcaico (seacuteculos III e II aC) de ldquoOld Latinrdquo 8 Veja por exemplo Hofmann amp Szantyr (1965 p 530) ldquoDie vollendete klassiche Diktion bevorzugt die vollstaumlndige Durchfuumlhrung der Hypotaxe mittels der Konjunktionenrdquo Em traduccedilatildeo minha ldquoA plena dicccedilatildeo claacutessica prefere a realizaccedilatildeo completa da hipotaxe por meio de conjunccedilotildeesrdquo 9 Dados podem ser encontrados em Durham (1901) e Bennett (1982 [1910-1914]) Um estudo pormenorizado sobre a presenccedila e ausecircncia da conjunccedilatildeo ut na complementaccedilatildeo dos verbos facio e uolo em Plauto Terecircncio e Ciacutecero incluindo os contextos que determinam seu uso e o desenvolvimento desse uso entre o latim preacute-histoacuterico e claacutessico pode ser encontrado em minha dissertaccedilatildeo de mestrado (MAZZANTI JR 2018) 10 ldquo15 ignoscant here with both the acc of the thing pardoned (hoc the sacrilegious measure honouring Caesar) and the dat of the offenders (populo and ordini standing for the familiar SPQR) The wish is made more emphatic by the omission of ut to link the jussive ignoscant to the potential subj uelim (GndashL sect546 R2) ldquoI should wish the immortal gods to pardonhelliprdquo 11 ldquoWhen the idea of Wishing is emphatic the simple Subjv without ut is employed and the restriction of sequence to Pr and Impf is removedrdquo

[25]

A diferenccedila original entre tibi impero hoc mihi des e tibi impero ut hoc mihi des mal poderia ser mais do que aquela entre lsquoEu ordeno me decirc issorsquo e lsquoEu ordeno soacute me decirc issorsquo Provavelmente mesmo essa distinccedilatildeo logo se perdeu e as duas formas de expressatildeo passaram a serem sentidas praticamente equivalentes em forccedila (BENNETT 1982 [1910-1914] p 210)12

Em outras palavras Bennett por entender que antes de se tornar conjunccedilatildeo ut era um adveacuterbio afirma que

eacute justamente a presenccedila desse adveacuterbio que gerava ecircnfase e natildeo sua ausecircncia como vimos em Gildersleeve

amp Lodge Bennett ainda compreende que em algum momento posterior nenhuma diferenccedila haveria ou

seja com ou sem conjunccedilatildeo natildeo haveria diferenccedila de ecircnfase

Haacute portanto uma contradiccedilatildeo entre as afirmaccedilotildees das gramaacuteticas Para o leitor que recepciona textos em

latim e que se vale da mediaccedilatildeo de comentaacuterios e gramaacuteticas haacute justamente aquele tipo de disputa entre

criteacuterios de validaccedilatildeo mencionado por Martindale dependendo de qual autor se vale esse leitor eacute

direcionado a entendimentos opostos e diante de ambos a perplexidade seria natural

O que os dados mostram

A abordagem que apresentarei em seguida parte de alguns princiacutepios Em primeiro lugar a ideia de que

podemos recolher dados sobre um certo fenocircmeno quantificaacute-lo e analisando o comportamento dessa

quantificaccedilatildeo extrair alguns princiacutepios sobre o funcionamento da liacutengua

Evidentemente esse tipo de abordagem tem pontos negativos ao resumir fenocircmenos que satildeo uacutenicos em

cada realizaccedilatildeo perdemos justamente as peculiaridades de cada uso individual e todas as nuances

potenciais Dito de outro modo os dados aqui satildeo palavras usadas por um certo falante que tem

caracteriacutesticas soacutecio-histoacutericas estaacute escrevendo em um certo gecircnero para um interlocutor especiacutefico

Simplificados numa quantificaccedilatildeo os dados perdem essa complexidade Por conseguinte datildeo certos tipos de

informaccedilatildeo mas natildeo outros (veja mais agrave frente um exemplo de anaacutelise mais detalhada cujas informaccedilotildees

satildeo perdidas parcialmente no processo de quantificaccedilatildeo)

Por outro lado ao recolhermos uma quantidade grande de dados conseguimos ter uma visatildeo geral sobre a

informaccedilatildeo que estamos estudando ou seja temos acesso a de que modo tal fenocircmeno linguiacutestico foi mais

usado de que modo foi usado ldquona meacutediardquo qual era a regra geral de uso independente dos ambientes uacutenicos

e particulares em que de fato foi utilizado nos textos remanescentes Para se chegar a esse tipo de

informaccedilatildeo a anaacutelise de cada exemplar eacute necessaacuteria e pressuposta mas o que nos interessa eacute o que de

comum esses exemplares tecircm posto um elemento de anaacutelise especiacutefico como no caso a presenccedila ou

ausecircncia da conjunccedilatildeo ut A quantificaccedilatildeo portanto nos mostra quais satildeo as tendecircncias globais de uso de

12 ldquoThe original difference between tibi impero hoc mihi des and tibi impero ut hoc mihi des could hardly have been more than that between lsquoI command you give me thisrsquo and lsquoI command you just give me thisrsquo Probably even this distinction soon passed away and the two forms of expression came to be felt as practically equivalent in forcerdquo

[26]

certa construccedilatildeo por um autor ou num determinado gecircnero algo inacessiacutevel se nos valemos somente da

anaacutelise particular de exemplares

Ter em mente essas questotildees metodoloacutegicas eacute fundamental para sabermos o que os dados tais como foram

recolhidos e tais como satildeo apresentados de fato podem nos informar e o que eacute calado

Posto isso apresento dados recolhidos por Patzner (1910) nas cartas de Ciacutecero que indicam os usos do

verbo uolo completado por subjuntivo introduzido ou natildeo pela conjunccedilatildeo ut A elaboraccedilatildeo das tabelas a

seguir eacute minha e a apresentaccedilatildeo dos dados como distribuiccedilatildeo (porcentagens em que certo fenocircmeno ocorre)

natildeo estatildeo nas obras de onde os extraiacute As colunas indicam as formas do verbo principal (uolo uelim ou uellem)

mais usadas e as contagens as ocorrecircncias da complementaccedilatildeo de subjuntivo Vejamos a Tabela 1

Tabela 1 - Formas de uolo seguido de subjuntivo mais usadas nas cartas de Ciacutecero

uolo uelim uellem Total

Com justaposiccedilatildeo 7 10000 358 9781 31 9394 396 9754

Com ut 0 000 8 219 2 606 10 246

Total 7 10000 366 10000 33 10000 406 10000

Fonte Patzner (1910)

O verbo uolo nas cartas de Ciacutecero quando complementado por subjuntivo eacute quase em cem por cento dos

casos justaposto ao verbo subordinado sem mediaccedilatildeo da conjunccedilatildeo tal como no trecho Cic Phil 113

comentado por Ramsey que vimos acima Em outras palavras a ausecircncia da conjunccedilatildeo nesse tipo de

complementaccedilatildeo parece ser a regra Chama a atenccedilatildeo a quantidade destoante de usos de uelim (366

ocorrecircncias) em oposiccedilatildeo a uolo e uellem (7 e 33 ocorrecircncias respectivamente) Agrave frente veremos o que isso

significa para a forma uelim especificamente

Vejamos que essa tabela natildeo daacute conta de toda a realidade ora seria difiacutecil de se imaginar que em todas as

cartas de Ciacutecero (e satildeo muitas) a forma uolo fosse usada tatildeo pouco Vejamos a Tabela 2

Tabela 2 - Formas de uolo seguido de subjuntivo ou de infinitivo mais usadas nas cartas de Ciacutecero

uolo uelim uellem Total

Com justaposiccedilatildeo 7 886 358 8230 31 5254 396 6911

Com ut 0 000 8 184 2 339 10 175

Infinitivo 72 9114 69 1586 26 4407 167 2914

Total 79 10000 435 10000 59 10000 573 10000

Fonte Patzner (1910)

[27]

Aleacutem da complementaccedilatildeo com subjuntivo a tabela 2 traz a complementaccedilatildeo de infinitivo tambeacutem possiacutevel

Vemos que a forma uolo em geral prefere a complementaccedilatildeo de infinitivo (91 dos casos) e a forma uellem

se divide entre ambas as complementaccedilotildees (53 com subjuntivo justaposto 3 com ut mais subjuntivo e

44 com infinitivo) Em seu turno a forma uelim ainda apresenta uma quantidade muito elevada de

subjuntivos complementando-a 82 justapostos e 2 com ut enquanto somente 16 satildeo complementados

por infinitivos

A conclusatildeo a que podemos chegar eacute a seguinte o verbo uolo pode ser complementado tanto por infinitivo

quanto por subjuntivo e durante seacuteculos houve uma competiccedilatildeo entre essas possibilidades enquanto a

forma uolo passou a ser complementada principalmente por infinitivos a forma uelim ldquose especializourdquo na

complementaccedilatildeo de subjuntivo

Vejamos agora os dados das outras obras de Ciacutecero nomeadamente seus discursos e textos filosoacuteficos Os

dados foram recolhidos dos lexica de Merguet (1877-1884 1887-1894) e estatildeo compilados na Tabela 3

Tabela 3 - Verbo uolo + subjuntivo nas obras filosoacuteficas e nos discursos de Ciacutecero

Outras obras de Ciacutecero

Com justaposiccedilatildeo 39 6964

Com ut 17 3036

Total 56 10000

Fonte Elaborado pelo autor a partir de Merguet (1877-1884 1887-1894)

Agrave primeira vista podemos imaginar que em seus outros textos Ciacutecero utilizou outra regra para decidir se

introduzia ou natildeo o subjuntivo subordinado com a conjunccedilatildeo ut A anaacutelise dos exemplares nos indica que natildeo

eacute o caso Dentre os exemplares justapostos temos como verbo principal uellem (20) uelim (15) uisne (3) e

uolo (1) Dentre os exemplares com ut temos uolo (5) uelitis (3) uelle (3) uellem (2) uolumus (2) uoluit (1) e

uult (1) Em outras palavras temos distribuiccedilotildees muito proacuteximas das das cartas Para nossos interesses basta

notarmos que a forma uelim soacute eacute seguida por subjuntivos justapostos

Voltando ao ponto principal que estamos discutindo a partir desses dados eacute possiacutevel saber se a presenccedila ou

ausecircncia de ut indica ecircnfase

Em primeiro lugar vejamos que ecircnfase eacute um termo geneacuterico que indica o realce de importacircncia de algo o

destaque de algo Utilizamos recursos de ecircnfase quando queremos ldquochamar a atenccedilatildeordquo para o que julgamos

precisar de atenccedilatildeo especial do interlocutor

[28]

Para tentar responder agrave questatildeo vou utilizar um conceito da linguiacutestica funcional desenvolvida

principalmente pelo linguista Dik Trata-se do conceito de marcaccedilatildeo (markedness em inglecircs) Vejamos

Um tipo de construccedilatildeo eacute mais marcado na medida em que eacute menos esperado e portanto exige mais atenccedilatildeo quando ocorre Em geral quanto menos frequente mais raro um item linguiacutestico eacute tanto maior eacute seu valor de marcaccedilatildeo (DIK 1997 p 41)13

Em outras palavras uma forma marcada eacute uma forma raramente usada que quando empregada chama a

atenccedilatildeo do interlocutor por romper suas expectativas Assim podemos entender que quando queremos dar

ecircnfase a algo geralmente utilizamos uma forma que seja marcada Por exemplo na fala podemos pronunciar

uma palavra mais lentamente ou com mais vigor de modo que ao quebrar a expectativa do que seria a

pronuacutencia meacutedia (aquela que ocorre na maior parte do tempo) esses modos de falar sejam marcados e

conferimos ecircnfase ou outro efeito similar (devemos ter em mente que uma forma marcada natildeo

necessariamente expressa ecircnfase) O mesmo ocorre quando usamos uma palavra em desuso arcaica ou um

termo teacutecnico em meio a um discurso natildeo teacutecnico

Se aplicarmos esse conceito aos dados das tabelas acima temos que o subjuntivo sem a mediaccedilatildeo da

conjunccedilatildeo (justaposto) configura 98 da complementaccedilatildeo de subjuntivo de uelim nas cartas de Ciacutecero e

100 em seus outros textos trata-se assim do uso natildeo marcado do uso que natildeo quebra a expectativa do

interlocutor e que portanto natildeo pode segundo essa abordagem linguiacutestica conferir ecircnfase

Seria no miacutenimo estranho que nas 358 vezes em que uelim + subjuntivo aparece nas cartas Ciacutecero quisesse

ser enfaacutetico Se se quer ser enfaacutetico em quase 100 das vezes natildeo se gera o contraste exigido para que de

fato se o seja Segundo o conceito de marcaccedilatildeo eacute a presenccedila do ut introduzindo a complementaccedilatildeo de

subjuntivo de uelim que poderia eventualmente ser a construccedilatildeo enfaacutetica

Como indicado no iniacutecio desta seccedilatildeo anaacutelises quantitativas perdem uma grande quantidade de informaccedilotildees

Uma outra metodologia de anaacutelise demandaria a leitura e interpretaccedilatildeo de cada uma das ocorrecircncia de uelim

+ (ut) subjuntivo em Ciacutecero a fim de se verificar se havendo outros elementos de ecircnfase em cada um dos

exemplares poderiacuteamos conferir agrave presenccedila ou agrave ausecircncia da conjunccedilatildeo algum valor enfaacutetico como por

exemplo semacircntica enfaacutetica dos verbos e das palavras presenccedila de adveacuterbios de intensidade presenccedila de

construccedilotildees estruturadas como paralelismo dentre outras

Haacute o risco de que esse tipo de anaacutelise se torne muito subjetiva jaacute que eacute muito difiacutecil de aferir se uma partiacutecula

tatildeo diminuta como ut de fato teria algum valor aleacutem do gramatical de introduzir oraccedilotildees subordinadas Natildeo

havendo espaccedilo para uma anaacutelise desse tipo que seja completa me restrinjo a um exemplo Vejamos Cic Att

21

13 ldquoA construction type is more marked to the extent that it is less expectable and therefore commands more attention when it occurs In general the less frequent the more rare a linguistic item is the higher its markedness valuerdquo

[29]

et cum Graecos tum uero Latinos diligenter ut conserues uelim

E gostaria de que zelosamente vocecirc conservasse tanto os [livros] Gregos como com efeito os Latinos

Esse eacute um dos exemplares em que o subjuntivo (no caso conserues) eacute introduzido por ut Notemos que o

periacuteodo tem uma seacuterie de elementos estruturais que conferem algum tipo de ecircnfase haacute o par correlativo

cum tum (tanto quanto) os adveacuterbios uero (com efeito) e diligenter (zelosamente) Nesse caso o uso de ut

poderia ser um elemento adicional que considerados os outros elementos da frase poderia conferir ecircnfase

extra

Essas informaccedilotildees (outros elementos da frase) acabaram perdidas quando o exemplar foi quantificado

conforme discutimos no comeccedilo desta seccedilatildeo restando somente a informaccedilatildeo essencial ldquopresenccedila e ausecircncia

da conjunccedilatildeordquo Ainda assim esse tipo de anaacutelise tem um caraacuteter subjetivo elevado e creio seja muito difiacutecil

afirmar categoricamente que o ut em Cic Att 21 acima contribua ao efeito geral de ecircnfase que a frase tem

embora como disse haja elementos que indiquem uma acumulaccedilatildeo da qual o ut poderia ser parte

Revisitando o comentaacuterio e a recepccedilatildeo dos claacutessicos

Como vimos acima os comentaacuterios como importantes auxiliadores na recepccedilatildeo de textos tatildeo afastados na

histoacuteria e na liacutengua tecircm um caraacuteter ambivalente e natildeo estatildeo isentos das disputas por criteacuterios de validaccedilatildeo

que permeiam natildeo somente os estudos de recepccedilatildeo como a ciecircncia em geral Satildeo essas disputas inclusive

um dos elementos que justificam que novos comentaacuterios ainda hoje sejam editados natildeo obstante a

existecircncia de outros sobre um mesmo texto

No que se refere agrave presenccedila e agrave ausecircncia da conjunccedilatildeo ut na complementaccedilatildeo de subjuntivo da forma uelim

(primeira pessoa do singular do verbo uolo no presente do subjuntivo) a abordagem da linguiacutestica funcional

por meio do conceito de marcaccedilatildeo (markedness) apresentado em Dik (1997) adiciona novos elementos agrave

disputa

Antes de irmos aos dados discutimos numa das seccedilotildees acima as vantagens e desvantagens de se abordar

um fenocircmeno linguiacutestico a partir de uma quantificaccedilatildeo O principal benefiacutecio em se utilizar tal meacutetodo eacute que

podemos verificar tendecircncias gerais de uso de fenocircmenos sujeitos agrave variaccedilatildeo tais quais os fenocircmenos

sintaacuteticos

A partir da anaacutelise dos dados que noacutes temos sobre como uelim foi complementado nos textos de Ciacutecero (suas

cartas textos filosoacuteficos e discursos) que satildeo em grande quantidade e tecircm alta probabilidade de serem

representativos de sua liacutengua como um todo a justaposiccedilatildeo agrave forma uelim de um subjuntivo subordinado natildeo

pode ser enfaacutetica Isso ocorre pois a justaposiccedilatildeo eacute segundo o conceito de marcaccedilatildeo a forma natildeo marcada

ou seja a forma esperada e que natildeo demanda atenccedilatildeo especial do interlocutor jaacute que ocorre em quase 100

[30]

dos casos Na realidade a presenccedila da conjunccedilatildeo eacute que poderia o ser (embora natildeo necessariamente expresse

ecircnfase) pois uelim ut + subjuntivo por apresentar miacutenimas ocorrecircncias seria a forma marcada Sendo esse

raciociacutenio aceito o comentaacuterio de Ramsey (2003) precisaria de ser alterado ou pelo menos indicar que a

questatildeo natildeo eacute paciacutefica e demanda maiores estudos

Ao se fazer comentaacuterios como o de Ramsey ou outros tipos de estudo que precisam abordar fatos

linguiacutesticos do latim valemo-nos de gramaacuteticas tradicionais como a de Allen amp Greenough (1903)

Gildersleeve amp Lodge (1903) Bennett (1982 [1910-1914]) Todavia como discutimos no iniacutecio deste texto

ao citar Martindale (2007) os criteacuterios de validaccedilatildeo utilizados por estudiosos e leitores estatildeo sempre em

disputa e novos estudos com outras metodologias podem colocar nova luz quer sobre pontos antes

consensuais nas gramaacuteticas tradicionais do latim quer sobre pontos controversos

Os uacuteltimos anos tecircm sido muito proliacuteficos nesse tipo de pesquisa Exemplifico com o estudo pioneiro de

Adams (1984) que estuda a partir das comeacutedias de Plauto e Terecircncio como algumas expressotildees e palavras

do latim satildeo caracteriacutesticas ou de falantes femininos ou de falantes masculinos Risselada (1993) que estuda

o uso de diretivos (formas de dar ordem) em latim a partir da anaacutelise interacional (teoria relativamente

recente) Barrios-Lech (2016) que estuda algumas formas linguiacutesticas utilizadas na interaccedilatildeo em latim de

Melo (2007) que estuda as formas extra-paradigmaacuteticas do latim arcaico como faxo faxim duim Weiss

(2009) que apresenta o latim dentro do quadro indo-europeu do ponto de vista da linguiacutestica histoacuterica a

partir dos avanccedilos bibliograacuteficos do uacuteltimo seacuteculo e um ganho importantiacutessimo para a bibliografia de

referecircncia a nova sintaxe de Pinkster (2015) a qual tambeacutem congrega estudos do uacuteltimo seacuteculo sobre a

sintaxe da liacutengua latina em variada abordagem

Enfim os recursos disponiacuteveis hoje em dia sejam eles digitais ou impressos satildeo incontaacuteveis Resta que o

leitor por sua vez vetor da recepccedilatildeo de um texto dispondo de sua proacutepria razatildeo possa ser levado a caminhos

diversos diante da pluralidade de criteacuterios de validaccedilatildeo que vatildeo ou natildeo ser considerados em uma disputa

proacutepria do processo histoacuterico

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WEISS M Outline of the Historical and Comparative

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Stave 2009

O claacutessico

no claacutessico recepccedilatildeo e intertexto entre Heroides e Metamorfoses de Oviacutedio

Fabrizia Nicoli Dias

fnicolidiasgmailcom

As narrativas mitoloacutegicas da tradiccedilatildeo claacutessica foram

frequentemente exploradas por poetas ao longo dos seacuteculos em

suas composiccedilotildees Puacuteblio Oviacutedio Nasatildeo escritor romano antigo

que viveu no principado augustano pode ser enquadrado no rol de

autores que se empenharam em verter em um trabalho de arte

literaacuteria o material mitoloacutegico existente Para aleacutem de se apropriar

dos manuais mitoloacutegicos Oviacutedio para a construccedilatildeo de seu proacuteprio

material opera com modelos literaacuterios o que torna viaacutevel o estudo

do intertexto via recepccedilatildeo de episoacutedios mitoloacutegicos entre duas

obras ovidianas as Heroides e as Metamorfoses que empregam de

maneira evidente o material mitoloacutegico antigo Antes poreacutem de o

efetivar importa resgatar brevemente algumas discussotildees sobre

as noccedilotildees dos estudos de recepccedilatildeo recepccedilatildeo dos claacutessicos e

estudos de intertextualidade

Os estudos de recepccedilatildeo serviram-se das teorias alematildes em esteacutetica

da recepccedilatildeo da deacutecada de 1960 que sendo decorrentes em

especial dos estudos de Hans Robert Jauss Wolfgang Iser e

posteriormente de Hans-Georg Gadamer dedicam-se ao

protagonismo do leitor na atribuiccedilatildeo de sentido de maneira a

receber cada leitor um texto de modo particular a depender de sua

educaccedilatildeo suas experiecircncias e seus anseios pessoais

(BAKOGIANNI 2016 p 115) Esse lugar de relevo concedido ao

leitor no processo de apreciaccedilatildeo de um texto pode ser verificado no

[33]

duplo horizonte proposto por Jauss (2002 p 73) para quem eacute necessaacuterio distinguir e ao mesmo tempo

vincular os dois lados da relaccedilatildeo texto-leitor isto eacute entre o efeito proporcionado pelo texto e a recepccedilatildeo

facultada pelo destinataacuterio a fim de que se materialize o duplo horizonte que compreende aquilo que eacute

interno ao acircmbito literaacuterio envolvido pela obra e a vivecircncia de mundo oferecida pelo leitor pertencente a

determinado contexto social Pelas teorias em esteacutetica da recepccedilatildeo o leitor foi natildeo somente incluiacutedo na

atribuiccedilatildeo do sentido textual mas ainda considerado participante ativo e indispensaacutevel desse processo

A atividade e indispensabilidade concedidas ao leitor pela teoria alematilde eacute entatildeo aproveitada pelos estudos

claacutessicos que nelas encontram respaldo para a consideraccedilatildeo do conceito de claacutessico A obra Redeeming the

text de Charles Martindale publicada em 1993 eacute considerada por muitos o trabalho inaugural de reflexatildeo

dos estudos claacutessicos vinculada aos estudos de recepccedilatildeo O autor no capiacutetulo introdutoacuterio do livro esclarece

o ponto teoacuterico comum agraves vaacuterias versotildees da teoria da recepccedilatildeo o de natildeo pode ser a interpretaccedilatildeo de um

texto dissociada das maneiras que os textos satildeo recebidos pelos leitores afirmando posteriormente o que

tem sido um mantra nas pesquisas que abordam a teoria ldquoO sentido [] sempre se realiza no ponto de

recepccedilatildeordquo (MARTINDALE 1993 p 2-3)1 Tambeacutem para Bakogianni (2016 p 115) a possibilidade de um

texto ser recebido e interpretado de novos modos a cada momento de leitura eacute de grande valor para o estudo

dos claacutessicos uma vez que a cultura material e os textos antigos tecircm sobrevivecircncia fragmentaacuteria sendo os

textos claacutessicos incompletos controversos resgatados de vaacuterias fontes e ressignificados por diferentes

geraccedilotildees de classicistas

A noccedilatildeo de recepccedilatildeo contudo natildeo soacute eacute oportuna ao estudo do claacutessico pela dificuldade do estabelecimento

do texto claacutessico uma vez que segundo Martindale (2006 p 4) ateacute o mesmo leitor romano diante de um

texto original como uma ode de Horaacutecio por exemplo poderia a ler de modo muito diferente em cenaacuterios

histoacutericos distintos na medida em que os textos possuem diferentes sentidos em diferentes contextos A

variabilidade de leituras existente mesmo na Antiguidade tambeacutem eacute reconhecida por Budelmann e Haubold

(2008 p 17) que entendem ser os trabalhos renascentistas e modernos com a Antiguidade orientados por

um longo tempo de outros trabalhos anteriores comeccedilando na proacutepria Antiguidade Se portanto ateacute mesmo

o leitor antigo que estaacute diante da obra antiga pode a examinar de variadas formas natildeo seria em vatildeo a busca

por uma leitura mais autorizada de determinado trabalho antigo Afinal como reflete Batstone (2006 p 14)

ecoando Martindale (1993) ldquoque sentido existe que ainda natildeo eacute um sentido recebidordquo2

Empenhar-se portanto em resgatar uma versatildeo mais fidedigna do texto antigo significa crer que ela tenha

de fato existido e que tenha sido um modelo autossuficiente e mais verdadeiro a partir do qual suas

apropriaccedilotildees passam fatalmente a ser julgadas como meras deturpaccedilotildees Por outro lado se entendemos que

1 ldquoMeaning [] is always realized at the point of receptionrdquo 2 ldquoWhat meaning is there that is not already a received meaningrdquo

[34]

ldquoos claacutessicos natildeo pertencem meramente ao passado mas ao presente e ao futurordquo como considera

Martindale (2006 p 8) passaremos com tranquilidade a deixar de conceber o texto antigo como material

mais autecircntico diante dos posteriores e reconheceremos entatildeo a legitimidade das recepccedilotildees que dele

realizam os diferentes leitores ao longo dos seacuteculos

Como se constatou pode-se considerar como ponto paciacutefico das vaacuterias teorias da recepccedilatildeo a compreensatildeo

de ser a leitura de um texto estritamente associada aos modos como ele eacute recebido pelos leitores No

entanto haacute inuacutemeras dissidecircncias entre os autores que justificam a existecircncia da pluralidade de teorias da

recepccedilatildeo comeccedilando inclusive pelo uso do proacuteprio termo ldquorecepccedilatildeordquo Determinados teoacutericos defendem

que a nomenclatura implica uma funccedilatildeo passiva relegada ao leitor optando entatildeo pelo termo ldquoapropriaccedilatildeordquo

(MARTINDALE 2007 p 300) Sob a oacutetica de Martindale (2007 p 300) devemos recordar que o termo

ldquorecepccedilatildeordquo foi empregado exatamente com o objetivo de destacar o aspecto dinacircmico e dialoacutegico da leitura

entendendo o autor ainda que a categoria ldquoapropriaccedilatildeordquo mdash realizar o proacuteprio mdash diminui a possibilidade de

diaacutelogo

Embora inexista um conceito consensual de ldquorecepccedilatildeordquo e por conseguinte de ldquorecepccedilatildeo dos claacutessicosrdquo

Hardwick e Stray (2008 p 1) arriscam-se na proposta de uma definiccedilatildeo ldquoPor lsquorecepccedilotildeesrsquo consideramos as

maneiras pelas quais o material grego e romano foi transmitido traduzido extraiacutedo interpretado reescrito

re-imaginado e representadordquo3 Os autores adotam o termo ldquorecepccedilatildeordquo fornecendo ainda agrave terminologia um

sentido que embora seja amplo mdash por abarcar a esfera da transmissatildeo agrave representaccedilatildeo passando por outras

como ateacute mesmo a imaginaccedilatildeo mdash eacute delimitado auxiliando-nos em um esclarecimento inicial acerca do

conceito Neste estudo munir-nos-emos assim do conceito aplicado por Hardwick e Stray (2008) agrave

nomenclatura ldquorecepccedilatildeordquo

O eco dos estudos de recepccedilatildeo nos estudos claacutessicos natildeo se restringe contudo agrave revisatildeo do conceito do

claacutessico estendendo-se tambeacutem agraves proacuteprias consequecircncias desencadeadas pelo novo vieacutes lanccedilado ao

material antigo Da compreensatildeo do texto claacutessico como material passiacutevel de releituras posteriores

legiacutetimas decorre um novo olhar para o conceito de tradiccedilatildeo De acordo com Martindale (2006 p 4) nesse

modelo de compreensatildeo do claacutessico dissolve-se a delimitada distinccedilatildeo entre a proacutepria Antiguidade e sua

recepccedilatildeo efetuada no decorrer do tempo Segundo Hardwick e Stray (2008 p 5) essa sensibilidade agrave

possibilidade de um viacutenculo mais estreito entre o antigo e o moderno proporcionou um enfoque tambeacutem no

diaacutelogo entre a tradiccedilatildeo e a recepccedilatildeo Se a noccedilatildeo de tradiccedilatildeo enquanto algo natildeo simplesmente herdado mdash

mas sempre a se fazer e refazer mdash eacute acolhida a recepccedilatildeo e a tradiccedilatildeo podem ser concebidas como partes

associadas (HARDWICK STRAY 2008 p 5)

3 ldquoBy lsquoreceptionsrsquo we mean the ways in which Greek and Roman material has been transmitted translated excerpted interpreted rewritten re-imaged and representedrdquo

[35]

Se no entanto em termos conceituais haacute um certo consenso sobre a relativizaccedilatildeo ou dissoluccedilatildeo do

discernimento entre o mundo antigo e a maneira como eacute recebido posteriormente ao longo do tempo nos

estudos de recepccedilatildeo no niacutevel terminoloacutegico existem dissensos entre os usos das categorias ldquotradiccedilatildeordquo e

ldquorecepccedilatildeordquo Segundo Martindale (2007 p 298)

A etimologia da lsquotradiccedilatildeorsquo por exemplo do latim tradere sugere uma transmissatildeo mdash geralmente benigna mdash de material do passado para o presente A recepccedilatildeo pelo contraacuterio [] opera com uma temporalidade diferente envolvendo a participaccedilatildeo ativa de leitores (incluindo leitores que satildeo artistas criativos) em um processo de duas vias tanto para traacutes quanto para frente em que o presente e o passado estatildeo em diaacutelogo um com o outros4

Logo na visatildeo de Martindale (2007) a categoria ldquotradiccedilatildeordquo distintamente do termo ldquorecepccedilatildeordquo indica um

viacutenculo com o passado e como o autor acrescenta posteriormente o termo ldquolsquotradiccedilatildeorsquo [] pode implicar que

o processo de transmissatildeo eacute incontestavelmente confortaacutevelrdquo (MARTINDALE 2007 p 300)5 Eacute preciso

atentar que essa distinccedilatildeo entre os termos delimitada pelo autor natildeo indica contudo que o teoacuterico defenda

o conceito de tradiccedilatildeo como algo riacutegido ao qual se submete o presente estando o autor apenas a esclarecer

a conotaccedilatildeo passiva que a terminologia ldquotradiccedilatildeordquo transmite em sua perspectiva

Outros autores no entanto como Felix Budelmann e Johannes Haubold (2008 p 25) natildeo compartilham do

mesmo entendimento concebendo que ldquono estudo da recepccedilatildeo como em outros lsquotradiccedilatildeorsquo natildeo deve ser

invocada defendida ou atacada como uma ideia platocircnica mas deve ser vista como uma ferramenta flexiacutevel

para sugerir novas perspectivas de maneiras diferentes em diferentes ocasiotildeesrdquo6 Nesse caso eacute sugerido

pelos teoacutericos que o entendimento da tradiccedilatildeo como algo maleaacutevel deve ser indicado pelo proacuteprio uso da

categoria ldquotradiccedilatildeordquo de maneira a atualizar o sentido da terminologia

Essa dissoluccedilatildeo da legitimidade de uma leitura das obras claacutessicas restritiva exclusivamente ao passado

claacutessico eacute tambeacutem discutida nas reflexotildees suscitadas por estudiosos do fenocircmeno intertextual como

Barchiesi (2001 p 142) que considera ser uma ilusatildeo o entendimento de que determinados modelos podem

acima de tudo ser um modo de limitar e orientar o sentido de um texto concebendo o autor ainda que

delinear viacutenculos intertextuais torna a leitura mais rica e complexa Um oportuno esclarecimento sobre a

possibilidade de ressignificaccedilatildeo do modelo pode ser obtido se considerarmos que jaacute na Antiguidade o

diaacutelogo intertextual era realizado como procedimento de escrita no proacuteprio processo de imitatio Para aleacutem

do sentido de imitatio enquanto imitaccedilatildeo direta da natureza para o tratamento de um novo tema antes natildeo

abordado Horaacutecio (Ars P 119-135) ao afirmar que o escritor deve seguir a tradiccedilatildeo apresenta tambeacutem o

4 ldquoThe etymology of lsquolsquotraditionrsquorsquo for example from the Latin tradere suggests a ndash usually benign ndash handing down of material from the past to the present lsquolsquoReceptionrsquorsquo by contrast [] operates with a different temporality involving the active participation of readers (including readers who are themselves creative artists) in a two-way process backward as well as forward in which the present and past are in dialogue with each otherrdquo 5 ldquorsquotraditionrsquo [] might imply that the process of transmission is comfortably uncontestedrdquo 6 ldquoin the study of reception as indeed elsewhere lsquotraditionrsquo should not be invoked defended or attacked as a Platonic idea but should be seen as a pliable tool for suggesting new perspectives in different ways on different occasionsrdquo

[36]

sentido de imitatio enquanto imitaccedilatildeo da natureza via textos anteriores modelos jaacute existentes na tradiccedilatildeo Eacute

preciso atentar para a recomendaccedilatildeo horaciana de que caso se opte por reportar aos textos da tradiccedilatildeo

deve-se ser coerente com os traccedilos das personagens tais como jaacute foram constituiacutedos na tradiccedilatildeo e ao mesmo

tempo no entanto evitar tanto as trajetoacuterias comuns adotadas por outros escritores quanto a imitaccedilatildeo

passiva (Hor Ars P 119-135) Logo a referecircncia a um texto da tradiccedilatildeo mdash a imitatio para usar o termo latino

mdash eacute na perspectiva do poeta um dos tipos de estrateacutegia inerentes agrave criaccedilatildeo literaacuteria o que tambeacutem pode ser

verificado por Quintiliano (Inst 10 21-2 trad de Antocircnio Rezende)

Com efeito como o inventar acontece primeiro e eacute o mais importante assim eacute proveitoso secundar aquelas coisas que foram bem inventadas Aleacutem disso consta como de ordem natural da vida de cada um que queiramos fazer noacutes mesmos tudo aquilo que aprovamos nos outros Assim os meninos acompanham os sulcos das letras para que se adquira a habilidade do escrever de maneira semelhante os muacutesicos imitam a voz de seus docentes os pintores reproduzem as obras dos antecessores os camponeses tomam para exemplo o cultivo comprovado pela experiecircncia enfim constatamos que o comeccedilo de toda disciplina se forma segundo um modelo estabelecido anteriormente a si7

O retor tambeacutem situa a remissatildeo de uma obra a outra no momento de composiccedilatildeo estendendo a importacircncia

do procedimento para a vida em geral como na caligrafia na voz na arte plaacutestica e mesmo nos preceitos

agriacutecolas Essa remissatildeo a paradigmas literaacuterios jaacute presentes na tradiccedilatildeo tambeacutem eacute verificada sob a oacutetica

moderna do processo intertextual Segundo Barchiesi (2001 p 145) a alusatildeo opera mesmo quando se trata

de uma escolha entre possibilidades jaacute existentes na tradiccedilatildeo e natildeo apenas quando acresce um desvio A

relaccedilatildeo paralela entre o processo de imitaccedilatildeo latina com enfoque no momento de criaccedilatildeo e o fenocircmeno

intertextual eacute tambeacutem identificada se considerarmos implicar toda alusatildeo quando reconhecida o olhar

sobre a produccedilatildeo do texto e a figura do autor uma vez que a intenccedilatildeo do autor eacute um dos aspectos dentre

outros ldquoem um jogo de forccedilas que tambeacutem inclui a recepccedilatildeo textualrdquo (BARCHIESI 2001 p 142)

Pelo viacutenculo paralelo constatado entre os testemunhos dos autores latinos mencionados e os entendimentos

modernos de Barchiesi (2001) podemos inferir portanto que na Antiguidade concebia-se o fenocircmeno que

atualmente denominamos intertextual como uma referecircncia de um escritor a outro sendo uma relaccedilatildeo

existente entre os autores no momento de criaccedilatildeo Tendo em vista que contudo haacute uma lacuna temporal

entre os teoacutericos antigos e os do seacuteculo XX a terminologia imitatio eacute atualmente substituiacuteda por outros

termos mais condizentes com outras categorias enfocadas na modernidade no estudo do fenocircmeno

intertextual como as de texto e de leitor (CESILA 2013 p 14)

7 ldquoNam ut invenire primum fuit estque praecipuum sic ea quae bene inventa sunt utile sequi Atque omnis vitae ratio sic constat ut quae probamus in aliis facere ipsi velimus Sic litterarum ductus ut scribendi fiat usus pueri sequuntur sic musici vocem docentium pictores opera priorum rustici probatam experiment culturam in exemplum intuentur omnis denique disciplinae initia ad propositum sibi praescriptum formari videmusrdquo

[37]

Logo o fenocircmeno de diaacutelogos entre um texto e outro embora natildeo entendido sob a denominaccedilatildeo

ldquointertextualidaderdquo era reconhecido jaacute na Antiguidade na medida em que um texto claacutessico podia ser

resgatado na composiccedilatildeo de outro texto tambeacutem claacutessico Puacuteblio Oviacutedio Nasatildeo aleacutem de empregar manuais

mitoloacutegicos na composiccedilatildeo de sua obra apropria-se de outras fontes literaacuterias existentes (KENNEY 2009 p

146) O escritor latino transforma em diversos de seus trabalhos como nas Heroides e nas Metamorfoses

obras aqui estudadas o material mitoloacutegico existente em um trabalho literaacuterio Ao considerar o manuseio

ovidiano das narrativas mitoloacutegicas Graf (2006 p 110) entende que o poeta concebe os mitos enquanto

textos poeacuteticos escritos por poetas especiacuteficos ou ateacute mesmo desconhecidos da tradiccedilatildeo

Do comentaacuterio do teoacuterico podemos inferir que o trabalho operado por Oviacutedio com a tradiccedilatildeo mitoloacutegica em

suas obras pressupotildee uma referecircncia a textos anteriores A textualidade do conteuacutedo mitoloacutegico eacute tambeacutem

confirmada por Volk (2010 p 51) para quem as passagens mitoloacutegicas satildeo caracteriacutesticas e altamente

intertextuais tendo em vista que respondem e recriam tratamentos anteriores da mesma histoacuteria Tambeacutem

para Graf (2006 p115) a tradiccedilatildeo narrativa miacutetica designa o processo intertextual no sentido de que um

texto posterior se apoia e reage a um anterior Uma vez que nas Heroides e nas Metamorfoses o material

mitoloacutegico eacute empregado de maneira evidente e ainda que ndash como entende Carvalho (2010 p 27) sob uma

perspectiva que considere a produccedilatildeo ovidiana em geral ndash Oviacutedio realiza uma constante releitura de seu

proacuteprio trabalho configura-se uma possibilidade de estudo examinar os intertextos existentes entre duas

obras ovidianas as Heroides e as Metamorfoses objetivo que se busca atingir ao longo deste texto

Diante dos tipos de viacutenculos intertextuais elencados e definidos por Vasconcellos (2001) em seu texto

ldquoFormas e processos alusivos na Eneidardquo constituinte da obra Efeitos intertextuais na Eneida de Virgiacutelio

observou-se que todas as alusotildees reconhecidas neste estudo satildeo autotextuais Segundo Vasconcellos (2001

p 148) a autotextualidade consiste na evocaccedilatildeo em uma determinada obra de passagens pertencentes a

outra obra de mesmo autor Uma vez que os diaacutelogos foram reconhecidos entre duas obras ovidianas pode-

se portanto consideraacute-los autotextuais

Antes contudo de se apresentar os diaacutelogos existentes julga-se necessaacuteria uma breve exposiccedilatildeo das obras

ovidianas Emprestando sua voz a heroiacutenas mitoloacutegicas que dirigem cartas aos seus respectivos amados

queixando-se de sua ausecircncia ou abandono Oviacutedio compotildee as Heroides vinte e uma epiacutestolas em que

personagens mitoloacutegicas femininas comportam-se como remetentes e as masculinas enquanto destinataacuterias

salvo trecircs cartas-resposta destas agravequelas como as missivas 6 18 e 20 de Paacuteris a Helena de Leandro a Hero

e de Acocircncio a Cidipe respectivamente Ao reivindicarem o retorno de seus estimados as remetentes

rememoram episoacutedios mitoloacutegicos de conhecimento comum dos leitores antigos que envolvem a partida de

seus amados

[38]

As Metamorfoses por sua vez constituem-se de poemas narrativos que contam episoacutedios de mudanccedilas de

forma da mitologia grega e romana Apesar de Oviacutedio questionar os limites do gecircnero eacutepico na obra ainda

podemos a ele vincular a produccedilatildeo eacutepica uma vez que ela conjuga o aspecto etioloacutegico pois a maior parte

das metamorfoses explica a origem de um fenocircmeno por meio de um mito caracteriacutestico da tradiccedilatildeo eacutepica

heleniacutestica com o caraacuteter mais histoacuterico proacuteprio da tradiccedilatildeo eacutepica romana (LEITE 2016 p 38)

Realizadas tais consideraccedilotildees passamos entatildeo a alguns dos diaacutelogos reconhecidos entre fragmentos das

Metamorfoses e das Heroides O trecho 13624-627 da primeira obra pode ser ecoado intertextualmente na

leitura do trecho 85-86 da missiva de Dido a Eneias

[] sacra et sacra altera patrem

fert umeris venerabile onus Cythereius heros 625

de tantis opibus praedam pius eligit illam

Ascaniumque suum []

[] Aos ombros o heroacutei da Citereacuteia

traz imagens sacras e outra coisa sacra o pai veneraacutevel carga

de tantas outras riquezas o pio heroacutei escolheu soacute tais despojos

e o seu amado Ascacircnio []

(Ov Met 13624-627)

Si quaeras ubi sit formosi mater Iuli 85

Occidit a duro sola relicta viro

Se queres saber onde estaacute a matildee do pequeno Iulo morreu

abandonada pelo cruel esposo

(Ov Her 785-86)

Ambas as passagens se vinculam cada qual agrave sua maneira ao momento em que Eneias parte de Troia em sua

missatildeo de formaccedilatildeo de uma nova cidade Em ambas menciona-se a imagem do filho do troiano sendo sob a

forma acusativa Ascanium no primeiro trecho e sob o termo no genitivo Iuli no segundo As proximidades

existentes entre os excertos funcionam como uma espeacutecie de sinal alusivo conduzindo-nos portanto a

comparaacute-los Se nas Metamorfoses Eneias eacute representado como homem pio por ter escolhido levar em sua

empreitada dentre todas as coisas os deuses penates seu pai Anquises e seu filho Iulo nas Heroides Dido

lembra que na partida o troiano abandona Creuacutesa a matildee de Iulo e sua entatildeo esposa Da leitura intertextual

surge portanto um efeito de contraste que sugere o questionamento da imagem benevolente e piedosa de

Eneias

Agrave representaccedilatildeo tradicional da personagem mitoloacutegica de Jasatildeo novas camadas de sentido podem ser

tambeacutem acrescidas via uma leitura intertextual ou de maneira mais especiacutefica autotextual entre os

seguintes trechos

si facere hoe aliamue potest praeponere nobis

occidat ingratus sed non is vultus in illo

non ea nobilitas animo est ea gratia formae

ut timeam fraudem meritique oblivia nostri 45

Se tiver a coragem de o fazer se preferir a mim a outra mulher

que morra o ingrato mdash Mas natildeo Ele tem uma tal expressatildeo

no rosto uma nobreza de alma uma figura tatildeo graciosa

que natildeo receio traiccedilatildeo ou o esquecimento dos meus serviccedilos

(Ov Met 742-45)

[39]

Est aliqua ingrato meritum exprobare voluptas

Hac fruar haec de te gaudia sola feram

Eacute como que um prazer recordar ao ingrato o benefiacutecio recebido

Deixa-me tecirc-lo soacute este terei de ti

(Ov Her 1221-22)

Eacute comum agraves duas passagens a menccedilatildeo agrave memoacuteria de Jasatildeo quanto aos auxiacutelios a ele concedidos por Medeia

Em termos lexicais observa-se um paralelismo entre ingratusmeriti nas Metamorfoses e ingratomeritum nas

Heroides Na primeira passagem cede-se voz agrave princesa da Coacutelquida que afastando a conjectura de ser

preterida por parte de Jasatildeo a outra mulher desconsidera a partir da apreciaccedilatildeo da imagem nobre e graciosa

do filho de Esatildeo o medo de uma possiacutevel deslealdade ou ingratidatildeo relativa ao amparo por ela prestado A

leitura da missiva em que Medeia agora como remetente aposta na notificaccedilatildeo agrave Jasatildeo da ajuda ofertada

como uacutenico meio de obter dele algum reconhecimento de seus esforccedilos coloca-nos diante de uma mudanccedila

da perspectiva acerca da figura de Jasatildeo na medida em que a proacutepria alteraccedilatildeo do ponto de vista da princesa

da Coacutelquida verificada entre um excerto e outro desmantela o caraacuteter heroico atribuiacutedo a Jasatildeo A partir da

leitura do trecho epistolar a imagem heroacuteica de Jasatildeo constituiacuteda por Medeia nas Metamorfoses eacute submetida

a uma reinterpretaccedilatildeo jaacute que na carta por traacutes do caraacuteter heroico do filho de Esatildeo satildeo evidenciados ao leitor

os esforccedilos efetuados pela princesa

A passagem 783-85 das Metamorfoses tambeacutem pode ser ressignificada pelo excerto 31-35 da mesma carta

das Heroides antes mencionada

ut vidit iuvenem specie praesentis inarsit

et casu solito formosior Aesone natus

illa luce fuit posses ignoscere amanti 85

mal viu o jovem se reacende agrave vista de sua linda presenccedila

E por acaso naquele dia o filho de Eacuteson estava mais belo

que de costume ateacute lhe perdoarias por estar apaixonada

(Ov Met 783-85)

Tunc ego te vidi tunc coepi scire quid esses

Illa fuit mentis prima ruina meae

Ut vidi ut perii Nec notis ignibus arsi

Ardet ut ad magnos pinea taeda deos

Et formosus eras et me mea fata trahebant 35

Entatildeo te vi Comecei a saber o que eras Esse foi o princiacutepio da

ruiacutena de minha vida Completei-te e sucumbi Inflamei-me com

estranha paixatildeo como ardem as lascas de pinho junto aos altares

dos deuses excelsos Tu eras belo e minha sina arrastava-me

(Ov Her 1231-35)

Na passagem das Metamorfoses eacute narrado o momento em que Medeia enquanto vai ao altar de Heacutecate

sentindo-se forte e praticamente isenta da paixatildeo volta a ser acometida pelo sentimento ao avistar Jasatildeo O

mesmo momento do mito eacute representado na deacutecima segunda epiacutestola das Heroides Ocupando a posiccedilatildeo de

remetente na carta a princesa da Coacutelquida narra a ocasiatildeo lembrando-se de como avistar Jasatildeo

desencadeou em si uma paixatildeo ardente e ao mesmo tempo o iniacutecio de sua decadecircncia Satildeo representadas

em ambas as passagens o cenaacuterio em que Medeia se apaixona por Jasatildeo por com ele se deparar a beleza de

Jasatildeo como elemento que a atrai e a paixatildeo como sentimento ardente Haacute ainda algumas proximidades

lexicais entre os excertos viditvidi inarsitarsit formosiorformosus nas Metamorfoses e Heroides

[40]

respectivamente Essas paridades existentes entre os trechos podem estimular o leitor a realizar no

momento de recepccedilatildeo uma leitura intertextual entre as produccedilotildees Observa-se que enquanto no primeiro

caso um narrador em um momento de onisciecircncia conta que Medeia afetada por Jasatildeo poderia lhe

perdoar no segundo texto a proacutepria Medeia assume a palavra e relata a ocasiatildeo em que vecirc Jasatildeo como

momento inicial de sua perdiccedilatildeo A identificaccedilatildeo do fenocircmeno alusivo suscita mais uma vez um efeito de

contraste na medida em que a partir da leitura da missiva a figura de Medeia presente no trecho das

Metamorfoses como mera mulher que age em funccedilatildeo de um homem sem ter consciecircncia de sua inclinaccedilatildeo e

das fatais consequecircncias de tal ato eacute ressignificada e relativizada

Os diaacutelogos alusivos reconhecidos podem confirmar o entendimento de alguns autores sobre o tratamento

caracteristicamente ovidiano dado agraves narrativas mitoloacutegicas nas obras literaacuterias que as abordam Volk

(2010 p 56) por exemplo evidencia a apreciaccedilatildeo ovidiana pelo fornecimento de uma nova versatildeo de mitos

antigos jaacute consagrados em textos literaacuterios da tradiccedilatildeo Ao considerar algumas das funccedilotildees assumidas pelas

narrativas mitoloacutegicas Graf (2006 p 112) entende que uma delas consiste em fornecer uma determinada

linguagem para falar das relaccedilotildees e experiecircncias humanas Tal entendimento eacute tambeacutem pontuado por

Barchiesi (2001 p 18) que dedicando-se agrave reflexatildeo de aspectos gerais da poeacutetica ovidiana considera a

alusatildeo organizada em retrospectiva o modo de operaccedilatildeo distintivo do intertexto de Oviacutedio afirmando o

autor que em certos casos a personagem lembra e retoma seu eu passado fazendo referecircncia a outro texto

como elemento de suas recordaccedilotildees subjetivas O papel do mito como um recurso discursivo sobre a emoccedilatildeo

e a experiecircncia tornou a narrativa mitoloacutegica ideal para viabilizar um paradigma de expressatildeo de novas

experiecircncias (GRAF 2006 p 112)

Da recepccedilatildeo dos trechos selecionados via leitura intertextual ou de modo especiacutefico autotextual entre as

Metamorfoses e as Heroides satildeo manifestados acreacutescimos de sentido agraves representaccedilotildees das personagens

mitoloacutegicas Nas epiacutestolas os mitos satildeo constituiacutedos de maneira a se introduzirem em um momento temporal

especiacutefico da narrativa mitoloacutegica tradicional que pode ser resgatada pelo leitor familiarizado com as

intertextualidades ovidianas (VOLK 2010 p 60) Ao dar as suas proacuteprias versotildees dos mitos tradicionais as

rementes incitam os leitores a se reportarem aos textos mitoloacutegicos da tradiccedilatildeo de modo a os impelir a uma

interpretaccedilatildeo das missivas que considere as relaccedilotildees alusivas que elas estabelecem com outras composiccedilotildees

mitoloacutegicas

Por munirem-se dos mitos como uma maneira de expressatildeo de suas subjetividades as heroiacutenas preenchem

as narrativas mitoloacutegicas realizadas nas Metamorfoses com detalhes pessoais As representaccedilotildees de Ulisses

de Eneias como pio e de Jasatildeo como heroico passam a ser ressignificadas pela identificaccedilatildeo das alusotildees

Pode-se considerar que as relaccedilotildees paralelas entre as duas composiccedilotildees aqui consideradas sejam

convergentes ou divergentes funcionam para o leitor como um letreiro luminoso que o impele a recuperar

em seu repertoacuterio outras versotildees dos mitos e comparaacute-las As respostas fornecidas pelas proacuteprias heroiacutenas

[41]

aos mitos da tradiccedilatildeo nas passagens selecionadas convidam o leitor a ressignificar as representaccedilotildees

constituiacutedas nas Metamorfoses de maneira a natildeo soacute desmanchar o estatuto heroacuteico de personagens centrais

da tradiccedilatildeo eacutepica como Eneias e Jasatildeo mas o deslocar para as personagens mitoloacutegicas femininas como Dido

e Medeia respectivamente

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VOLK K Ovid New York Blackwell 2010

O leitor e o gecircnero epistolar no livro 2 das Epiacutestolas Morais de Secircneca

Ana Azevedo Bezerra Felicio

missanagreenhotmailit

Isabella Tardin Cardoso

itardincardosogmailcom

O presente artigo foi realizado com apoio

da Coordenaccedilatildeo de Aperfeiccediloamento

de Pessoal de Niacutevel Superior (CAPES) ndash

Coacutedigo de Financiamento 001

O presente texto visa a apresentar uma das questotildees levantadas

em nossa pesquisa de mestrado sobre a imagem do leitor no livro 2

das Epiacutestolas Morais de Luacutecio Aneu Secircneca A investigaccedilatildeo como um

todo propotildee-se a estudar uma instacircncia especial de recepccedilatildeo da

obra a imagem de destinataacuterio presente nas cartas endereccediladas a

Luciacutelio Juacutenior bem como a concepccedilatildeo de leitor ideal e de leitura dali

inferiacutevel Trataremos nesta ocasiatildeo do modo como a recepccedilatildeo do

gecircnero epistolograacutefico influi na interpretaccedilatildeo da obra senequiana

e do papel que nela tem o leitor Na histoacuteria da leitura das cartas

vemos por exemplo que para dar autoridade ao gecircnero ensaiacutestico

em que sua obra se inseria Francis Bacon (1612) aproxima-a das

cartas a Luciacutelio e traccedila uma longa tradiccedilatildeo de traduccedilatildeo e leitura das

Epiacutestolas como ensaios (BOYD 1867) A importacircncia da forma

especificamente epistolar para os fins da obra senequiana vem

[44]

sendo modernamente reconhecida (ALTMAN 1982 BRAREN 1999 WILSON 2001 SCHAFER 2011)

nesta comunicaccedilatildeo pretendemos aprofundar a discussatildeo direcionando-a para a imagem do leitor no corpus

em apreccedilo e observando alguns aspectos da histoacuteria da recepccedilatildeo desse gecircnero textual

Introduccedilatildeo

No entanto para ser classificado como uma carta um texto talvez exija um destinataacuterio (ou destinataacuterios) especiacutefico(s) O lugar do leitor eacute colocado em primeiro plano mais insistentemente em uma carta do que em qualquer outro tipo de escrita (ALTMAN 1982 p 87-88)1

As Epiacutestolas Morais (Epistulae Morales) de Luacutecio Aneu Secircneca (4 aC ndash 65 dC) 2 foram escritas para um uacutenico

destinataacuterio nominal Luciacutelio Sabe-se que as Epiacutestolas tecircm uma longa histoacuteria de leitura e recepccedilatildeo No

presente artigo privilegiaremos a recepccedilatildeo de Secircneca por parte do humanista Michel de Montaigne (1533-

1592) e discutiremos brevemente alguns dos efeitos dessa recepccedilatildeo para a compreensatildeo da obra ateacute os dias

de hoje Mais especificamente discutiremos se eacute possiacutevel aproximar o gecircnero ensaiacutestico (do qual o autor eacute

grande expoente) do gecircnero das Epiacutestolas e para tanto analisaremos possiacuteveis diferenccedilas e semelhanccedilas

entre ambos

Secircneca ndash principalmente com suas Epiacutestolas Morais ndash eacute considerado a influecircncia mais importante na escrita

de Montaigne3 conforme analisam Carneiro e Maerki (2018 p 214) Num quadro mais amplo eacute notoacuterio que

autores antigos como Ciacutecero (106-43 aC) Tito Liacutevio (59 aC ndash 17 dC) bem como Plutarco (46-125 dC) e

Lucreacutecio (94-56 aC) eram vistos como modelos a serem imitados para a formaccedilatildeo escolaacutestica do intelectual

seiscentista (MOSS 1989) Nesse contexto de programa escolaacutestico de educaccedilatildeo que notoriamente previa

o estudo do latim claacutessico Montaigne era ldquomarcado por uma ironia afaacutevel profundamente ceacutetica em relaccedilatildeo

ao programa humanistardquo (BLOOM 2005 p 143) Curiosamente ele citava os autores antigos sem reportar

agraves fontes segundo notam Carneiro e Maerki (2018 p 215) e esse era um dos aspectos pelos quais ele se

diferenciava dos seus colegas humanistas O escritor e meacutedico suiacuteccedilo Jean Starobisnky (2011 [1985] p 13)

em seu discurso em ocasiatildeo do recebimento do Precircmio Europeu do Ensaio em 1984 destaca que em meio agrave

obra de Montaigne os Essais tecircm uma grande fortuna criacutetica na Franccedila do seacuteculo XVI tanto que segundo

analisa o estudioso foram logo traduzidos para o inglecircs (em 1603) e assim recebidos na Inglaterra

1 ldquoNevertheless to be classed as a letter a text does perhaps require a specific addressee (or addressees) The place of the reader is more insistently foregrounded in a letter than in any other kind of writing)rdquo Salvo indicaccedilatildeo diferente eacute nossa a traduccedilatildeo de todos os trechos aqui citados em latim ou em liacutenguas modernas 2 Cf Conte (1994 p 408-409) 3 Cf Carneiro Maerki (2018)

[45]

Semelhanccedilas e dessemelhanccedilas entre Ensaios e Epiacutestolas ou entre Montaigne e Secircneca

Tendo contextualizado um pouco a obra do humanista francecircs chamaremos agora a atenccedilatildeo para a maneira

como Secircneca escreve i e para seu estilo As 124 Epiacutestolas tratam de diversos temas que podem ser lidos

como gatilhos para a discussatildeo filosoacutefica que o autor instaura com seu leitor e interlocutor Luciacutelio Por

exemplo Secircneca inicia uma carta comentando sobre sua ida agrave casa de campo (Ep 12) para refletir sobre o

tema da velhice e o passar do tempo em outra carta descreve as festividades de dezembro (a saber as festas

Saturnaacutelias) para discursar sobre a pobreza (Ep 18) O filoacutesofo romano faz isso poreacutem sem que cada carta

se configure monotemaacutetica ou desconectada do conteuacutedo das cartas que a antecedem ou a seguem Essa

rede complexa de relaccedilotildees pode parecer agrave primeira vista assistemaacutetica4 uma vez que as experiecircncias do

cotidiano como as exemplificadas acima satildeo associadas a citaccedilotildees de autores de diversas escolas filosoacuteficas

bem como a citaccedilotildees poeacuteticas e a exempla histoacutericos (Ep 1110 Ep 1314 Ep 14 Ep 214) tudo isso visaria agrave

edificaccedilatildeo moral do seu disciacutepulo-leitor Luciacutelio (SCHAFER 2011 p 50)5 Outra caracteriacutestica marcante da

escrita do filoacutesofo romano eacute o estilo aforiacutestico-sentencioso6 A recepccedilatildeo das Epiacutestolas ao longo dos seacuteculos

tem mostrado com notaacutevel relevacircncia o aspecto acima citado pois houve diversas obras com maacuteximas

senequianas ou pseudo-senequianas7 Mutatis mutandis percebemos que tambeacutem nos dias de hoje sua

recepccedilatildeo fora da academia tambeacutem eacute marcada pela popularizaccedilatildeo de maacuteximas publicadas e compartilhadas

por diversos veiacuteculos de miacutedia social em paacuteginas que frequentemente tratam de assuntos como liccedilotildees de

vida ldquoautoajudardquo e cuidados da sauacutede e da mente

Ora o estilo senequiano parece ser imitado por Montaigne como afirmam Carneiro e Maerki (2018 p 218)

ldquoas referecircncias montaignianas muitas vezes satildeo construiacutedas atraveacutes de um complexo mosaico de citaccedilotildees

que aproxima os Ensaios em muitas passagens dos chamados lsquocentotildeesrsquordquo Mas por que comparar a escrita dos

dois autores Porque a recepccedilatildeo das Epiacutestolas morais a Luciacutelio eacute marcada no mundo angloacutefono por uma forte

influecircncia do gecircnero ensaio a ponto de serem lidas como se fossem um ensaio por todo o seacuteculo XX

(WILSON 2001 p 64) Francis Bacon (1561-1626) em sua publicaccedilatildeo dos Ensaios datada de 1612 mais

precisamente na dedicatoacuteria ao priacutencipe Henry escreve

Algumas breves notas escritas de forma mais significativa que curiosa que eu chamei ldquoEnsaiosrdquo A palavra eacute tardia mas a coisa eacute antiga pois se vocecirc bem notar as Epiacutestolas a

4 Cf De Pietro (2013) para uma anaacutelise mais aprofundada sobre ldquosistemardquo e ldquosistematismordquo no estoicismo antigo 5 Schafer (2011 p 50) conclui que visto o irrestrito comprometimento com a virtude e o aperfeiccediloamento moral do seu disciacutepulo-destinataacuterio Luciacutelio Secircneca faz um retrato da educaccedilatildeo marcadamente variado e pluraliacutestico Ainda comenta que a educaccedilatildeo eacute como um edifiacutecio para o qual tudo pode ser usado os estudos filosoacuteficos a histoacuteria a poesia e as coisas do dia a dia ateacute mesmo as mais banais 6 A esse estilo Boella (1983 p 17) chama de ldquoepigramaacutetico (epigrammatico)rdquo 7 Florilegium Morales Oxoniense (DELHAYE TALBOT 1955) Auctoritates Aristoteleis Senecae Boethiihellip (Philosophes Medievaux v 17 p 273-296) Opus Magnum (BACON BRIDGES 2010 1900 p 299-365)

[46]

Luciacutelio de Secircneca natildeo satildeo nada mais que Ensaios ou seja meditaccedilotildees variadas embora transmitidas na forma de epiacutestolas8

Temos entatildeo por todo o seacuteculo XX na academia uma reclassificaccedilatildeo das Epiacutestolas como sendo ldquoensaios

curtosrdquo (ROSE 1949 p 369) ou ldquoensaios moraisrdquo (QUINN 1979 p 213) ldquoensaios filosoacuteficosrdquo (DUFF 1964

p 184) ou ainda ldquoensaios sobre assuntos especiacuteficosrdquo (COLEMAN 1974 p 288) Wilson observa como no

mundo angloacutefono essa leitura foi aleacutem da academia e passou a ser reproduzida por escritores mais

populares Um exemplo eacute Williamson (1951 p 194) que em The Senecan Amble menciona a ldquopraacutetica de

Secircneca de escrever ensaios sob a forma de cartasrdquo como se o ldquoensaiordquo propriamente dito jaacute existisse como

gecircnero no I seacutec dC Tambeacutem na ediccedilatildeo Penguin (CAMPBELL 1969 p 194) das cartas senequianas se

assevera que ldquoas Epiacutestolas Morais satildeo ensaios mascaradosrdquo E por fim vemos que a difundida traduccedilatildeo em

inglecircs de Gummere (1996) (publicada pela Loeb desde 1917) traz verdadeiros tiacutetulos no iniacutecio de cada carta

sugerindo uma certa autonomia temaacutetica agrave maneira dos ensaios baconianos9 tambeacutem numa ediccedilatildeo italiana

de grande prestiacutegio traduzida por Giuseppe Monti (1974 2018) notamos que as cartas figuram com tiacutetulos

com efeito anaacutelogo10 O caraacuteter precursor da obra senequiana no gecircnero ldquoensaiordquo eacute aventada ateacute mesmo em

estudos modernos sobre ensaios brasileiros como no de Guerini (2000 p 11) ao dizer que o ensaio pode

ldquoser colocado entre os mais antigos pois as suas origens se encontram nos Diaacutelogos de Platatildeo nas Epiacutestolas

de Secircneca nas Meditaccedilotildees de Marco Aureacutelio nas Confissotildees de Santo Agostinho nos discursos fuacutenebres etcrdquo

Essa recepccedilatildeo eacute pois um dos motivos pelos quais parece interessante comparar e com maior atenccedilatildeo do

que seria possiacutevel no presente estudo a maneira de Secircneca escrever com a escrita montaigniana Poreacutem

parece-nos necessaacuterio tambeacutem observar mais de perto o que mais assemelharia o gecircnero epistolar ao ensaio

Para Starobinsky (2018 p 17) o ensaio tem sempre um ldquoar de comeccedilordquo ou seja eacute literalmente um coup drsquoessai

uma tentativa ldquoapenas uma aproximaccedilatildeo preliminarrdquo Desse ponto de vista efetivamente algumas das

cartas do ldquoestoico livrerdquo11 apenas pincelam os assuntos como vemos o modo como tema da amizade eacute tratado

na Ep 3 No entanto jaacute na Ep 6 e 9 e em seguida 109 o mesmo assunto seraacute aprofundado do ponto de vista

filosoacutefico trazendo questotildees claacutessicas sobre a amizade filosoacutefica como por exemplo a tensatildeo entre a

autossuficiecircncia do saacutebio e a necessidade de o saacutebio ter amigos

8 ldquoCertain brief notes set down rather significantly than curiously which I have called lsquoEssaysrsquo The word is late but the thing is ancient for Senecarsquos Epistles to Lucilius if you mark them well are but Essays that is dispersed meditations though conveyed in the form of epistlesrdquo Encontramos a ediccedilatildeo jaacute de domiacutenio puacuteblico de James R Boyd D D Lordrsquos Baconrsquos Essays with a sketch of his life and character reviews of his philosophical writings critical estimates of his essas analysis notes and queries for students and select portion of the lsquoannotationsrsquo of Archibishop Whately Ali o historiador Henry Hallam (JAMES BOYD 1867 p 52-53) traz a sua criacutetica dos ensaios e reporta essa citaccedilatildeo da ediccedilatildeo dos Essays publicada em 1612 9 A tiacutetulo de exemplo ldquoOn Brawn and Brainsrdquo Ep 15 ldquoOn Festivals and Fastingrdquo Ep 18 ldquoOn the Renown which my writings will bring yourdquo Ep 21 (GUMMERE 1965 p iii) 10 Por exemplo ldquoBisogna esercitare lo spirito piugrave che il corpordquo Ep 15 ldquoElogio della povertagraverdquo Ep 18 ldquoLa vera Gloriardquo Ep 21 (MONTI 2018 p 1082) 11 Usamos a expressatildeo de Carneiro e Maerki (2011 p 220)

[47]

Aleacutem desse ldquoar de comeccedilordquo parece-nos que ainda um outro aspecto talvez aproxime as duas modalidades de

escrita o desprestiacutegio que ambas recebem em sua histoacuteria Isso porque no seacutec XVII aparece pela primeira

vez a palavra ldquoensaiacutestardquo (ldquoessaystrdquo) em inglecircs e com matiz pejorativo12 O ceacutelebre escritor da Renascenccedila

inglesa Ben Jonson (1572-1637) escreve ldquoMeros ensaiacutestas um punhado de frases soltas e nada maisrdquo

(ldquoMere essayists a few loose sentences and thatrsquos allrdquo13) em 1845 o poeta francecircs Theacuteophile Gautier (1811-

1872)14 usa a palavra como sinocircnimo de ldquoautor de obras sem profundidaderdquo

Ora sabemos que as Epiacutestolas senequianas foram tambeacutem muito criticadas e de modo semelhante por

autores antigos Aleacutem da famosa passagem da Instituiccedilatildeo oratoacuteria (X 1125-131) de Quintiliano (35 dC ndash 95

dC) lemos no testemunho de Aulo Geacutelio (125 dC ndash 180 dC) que um seacuteculo depois da sua morte que

apesar de alguns admirarem o conhecimento ldquocientiacuteficordquo e seu ldquosaber teoacutericordquo (scientiam doctrinamque ei non

deesse dicunt NA 1221) Secircneca tinha uma fama negativa devido ao seu estilo pedestre e banal (oratio

uulgaria uideatur et protrita) de erudiccedilatildeo provinciana e plebeia (eruditio autem uernacula et plebeia) Wilson

natildeo cita a famosa passagem de Aulo Geacutelio mas lembramos que esse autor antigo em suma recomenda que

os jovens natildeo lessem Secircneca isso porque embora haja frases bem escritas na obra senequiana (ipse Seneca

bene dixerit 12213) natildeo conviria ao jovem aprender umas poucas coisas bem ditas no meio de tantas frases

ruins (multoque tanto magis si et plura sunt quae deteriora sunt NA 12214)

Segundo Wilson (2001 p 169) essa faacutecil associaccedilatildeo entre os Ensaios e as Epiacutestolas se deu tambeacutem pela falta

de uma teoria epistolar desenvolvida ausecircncia que se confirma mesmo em tempos modernos Wilson nota

tambeacutem que mais precisamente nos anos 90 do seacutec XX as pesquisas tenderam a abandonar essa

comparaccedilatildeo da obra senequiana com o gecircnero ldquoensaiordquo poreacutem tambeacutem assumiram tacitamente que natildeo era

importante considerar as Epiacutestolas em alguma categoria fundamental Para a discussatildeo da obra senequiana

tal postura resulta segundo o estudioso numa efetiva falta de discussatildeo criacutetica sobre vaacuterios aspectos ainda

atualmente15

No Brasil dentre as diversas caracteriacutesticas do gecircnero epistolar jaacute abordadas vale lembrar que Ingedore

Braren (1999 p 41-43) jaacute havia notado a importacircncia da forma (ie da escolha do gecircnero epistolar) para os

fins dessa obra filosoacutefica senequiana Jaacute Marcos Martinho Dos Santos (1999) explora a metalinguagem ie

12 Cf Starobinky (2011 p 15) Segundo o Oxford English Dictionary a palavra ldquoessayrdquo tem sua origem no seacutec XV como verbo e como substantivo no seacutec XVI 13 Cf ldquoEpicoene or The Silent Woman v 46-47rdquo (JONSON HOLDSWORTH 1979 p 42) 14 Eacute curiosa a perspectiva de Gautier contra os ldquoensaiacutestasrdquo ele que foi um dos primeiros articuladores do Esteticismo na Europa no seacutec XIX e que popularizou a expressatildeo ldquolrsquoart pour lrsquoartrdquo utilizada anteriormente por Benjamin Constant (1767-1830) Oxford Encyclopedia of British Literature v 5 p 14 15 Habinek (1992) e Yun Lee Too (1994) satildeo dois exemplos de estudiosos que propotildeem uma reclassificaccedilatildeo das Epiacutestolas poreacutem segundo Wilson (2011 p 169) a maneira como esses dois artigos reclassificam a obra senequiana faz com que alguns aspectos do texto sejam considerados falta de consistecircncia ou de sinceridade e ldquoa complexa relaccedilatildeo tripla entre Secircneca Luciacutelio e noacutes o puacuteblico leitor eacute simplificada e mal representadardquo (the complex three-way relations between Seneca Lucilius andu s the Reading public is simplified and misrepresented)

[48]

a tematizaccedilatildeo da arte dialoacutegica nas epiacutestolas como sendo uma tentativa de retomar o dialogismo presente

no estudo da filosofia desde Platatildeo Ambas as abordagens destacando aspectos tatildeo fundamentais da

epistolografia de nosso autor acabam por evidenciar ainda uma lacuna a nosso ver natildeo menos importante

a falta de atenccedilatildeo sistemaacutetica a um aspecto imprescindiacutevel ao gecircnero epistolar Trata-se de uma lacuna que

de certa forma jaacute foi mencionada por Berno (2006 p 15) ldquoas intervenccedilotildees atribuiacutedas a Luciacutelio ndash que por sua

vez estatildeo ainda agrave espera de um estudo analiacuteticordquo 16 Em que medida esse aspecto das epiacutestolas senequianas

destoa do gecircnero ensaiacutestico ou reforccedila a jaacute tradicional aproximaccedilatildeo com as cartas eacute um ponto de que

pretendemos tratar Antes disso observaremos de que modo o leitor se apresenta no texto em apreccedilo

Interlocuccedilatildeo nas Epiacutestolas

Para uma melhor compreensatildeo da importacircncia da forma epistolar para a leitura ou recepccedilatildeo da obra

senequiana traremos alguns exemplos ressaltando a construccedilatildeo do interlocutor das Epiacutestolas Estamos

interessados na presente anaacutelise natildeo na construccedilatildeo do Luciacutelio-personagem-histoacuterico mas de um Luciacutelio-

leitor cuja atenccedilatildeo pode levar agrave compreensatildeo das Epiacutestolas17 sob uma oacutetica diferente Ora natildeo raro Secircneca

se dirige a seu interlocutor em suas epiacutestolas ldquoTalvez vocecirc venha perguntar o que estou fazendo eu que lhe

dou tais prescriccedilotildees Vou falar com vocecirc francamente [hellip]rdquo18 ou tambeacutem lsquosoacute quersquo vocecirc diz lsquoora quero folhear

(euoluere) esse livro ora aquelersquordquo19

Vemos que em passos desse teor Secircneca muitas vezes infere ou sugere o que Luciacutelio perguntaria em

determinado ponto da argumentaccedilatildeo da carta Poreacutem em outras passagens (Ep 21-4) podemos ler palavras

que o proacuteprio Luciacutelio (a nos fiarmos em Secircneca) teria escrito em outra carta ao seu amigo filoacutesofo Muitas

vezes como lemos na quarta epiacutestola do primeiro livro as palavras de Luciacutelio satildeo natildeo apenas citadas mas

tambeacutem corrigidas e em seguida utilizadas para a introduccedilatildeo de algum ensinamento ou novo assunto na

carta

Epistulas ad me perferendas tradidisti ut scribis amico tuo deinde admones me ne omnia cum eo ad te pertinentia communicem quia non soleas ne ipse quidem id facere ita eadem epistula illum et dixisti amicum et negasti Itaque si proprio illo uerbo quasi publico usus es et sic illum amicum uocasti (Ep 41 grifos nossos)

Vocecirc entregou conforme me escreve a um amigo seu as cartas para serem trazidas a mim em seguida vocecirc me adverte a natildeo conversar com ele sobre nada a seu respeito porque nem vocecirc mesmo tem o costume de fazer tal coisa Assim numa mesma carta vocecirc tanto disse

16 ldquoGli interventi attribuiti a Lucilio ndash che peraltro attendono ancora uno studio analiticordquo Em nosso Mestrado procuramos tratar natildeo apenas da intervenccedilatildeo atribuiacuteda a Luciacutelio como tambeacutem mais amplamente da construccedilatildeo e efeito da imagem desse destinataacuterio 17 Salvo outra indicaccedilatildeo o texto latino das epiacutestolas senequianas eacute citado da ediccedilatildeo de Reynolds (1965) 18 Interrogabis fortasse quid ego faciam qui tibi ista praecipio Fatebor ingenue (Ep 14) 19 Sed modo inquis hunc librum euoluere uolo modo illumrsquo (Ep 24)

[49]

como negou que ele eacute seu amigo Logo vocecirc empregou essa palavra que eacute especiacutefica feito uma geneacuterica

Esse ldquobate-papordquo eacute feito de pergunta e resposta esses diaacutelogos satildeo ora interrompidos ora continuados

dentro das cartas e entre as cartas Trata-se de um aspecto constante nas Epiacutestolas que ao nosso ver eacute

exatamente favorecido pelo gecircnero em que se inserem e que embora adotaacutevel por outros gecircneros eacute tiacutepico

de uma epiacutestola ndash essa ldquoconversa entre amigos ausentesrdquo (amicorum conloquia absentium)20 Para darmos mais

um exemplo na Ep 44 eacute reportada uma frase atribuiacuteda a Luciacutelio e logo em seguida Secircneca responde agrave

maneira dialoacutegica ldquolsquoEacute difiacutecilrsquo vocecirc diz lsquoconduzir o espiacuterito ao desprezo pela vidarsquo Mas vocecirc natildeo vecirc por quais

motivos fuacuteteis ela jaacute eacute menosprezadardquo21

Um modelo de diaacutelogo contiacutenuo entre Epiacutestolas temos nas cartas 7 e 8 Ambas comeccedilam com uma citaccedilatildeo de

pergunta de Luciacutelio22 Mas na carta 8 ele questionaria precisamente o ensinamento enviado na anterior

Perceber essas nuances tambeacutem eacute possiacutevel em razatildeo de se ter uma seacuterie epistolar que hoje assume-se se

encontra em ordem cronoloacutegica Trata-se de uma ordenaccedilatildeo privilegiada segundo Gibson (2012 p 62) jaacute

que da Antiguidade claacutessica temos outras coleccedilotildees epistolares ordenadas por outros criteacuterios que natildeo o

cronoloacutegico23

Nas cartas senequianas Luciacutelio se mostra tambeacutem um leitor ativo ie natildeo passivo aos ensinamentos do

filoacutesofo estoico ldquolsquoEnviersquo vocecirc diz lsquotambeacutem para noacutes as ideias mais eficazes que vocecirc tiver experimentadorsquordquo24

Podemos pois da passagem senequiana em apreccedilo depreender a expectativa de um leitor ativo de um leitor

que jaacute chega a seu mestre com questionamentos e observaccedilotildees algueacutem intencionado a aprender Nesse

sentido segundo o trecho a seguir Secircneca sugere que Luciacutelio aprimora os aprendizados ao expressaacute-los

melhor

Hunc sensum a te dicis non pauco melius et adstrictius menini lsquonon es tuum fortuna quod fecit tuumrsquo (Ep 810 grifos nossos)

Lembro-me de que vocecirc mesmo expressa esta ideia de um modo que natildeo eacute pouco melhor e mais conciso ldquoNatildeo eacute teu o que a fortuna fez teurdquo

20 A definiccedilatildeo se encontra em Ciacutecero (Fil 274) 21 lsquoDifficile estrsquo inquis lsquoanimum perducere ad contemptionem animaersquo Non uides quam ex friuolis causis contemnatur (Ep 44) 22 ldquoVocecirc pergunta o que julgar que se deva evitar acima de tudo A multidatildeordquo (Quid tibi uitandum praecipue existimes quaeris Turbam Ep 71) ldquoVocecirc diz ldquoVocecirc me manda evitar a multidatildeo afastar-me e ficar contente em minha consciecircnciardquo (lsquoTu mersquo inquis lsquouitare turbam iubes secedere et conscientia esse contentum Ep 81) 23 Sobre a ordenaccedilatildeo das Epiacutestolas e tambeacutem de outras coleccedilotildees epistolares latinas na antiguidade cf Gibson (2012) O estudioso em seu artigo primoroso considera as coleccedilotildees de epiacutestolas de Ciacutecero Secircneca Pliacutenio o Jovem Frontatildeo Siacutemaco e Ambroacutesio Agostinho Jerocircnimo Paulino de Nola e de Sidocircnio Apolinaacuterio Em suma o autor chama a comunidade cientiacutefica para uma urgente ldquodesfamiliarizaccedilatildeo das coleccedilotildees epistolograacuteficas antigasrdquo Isso porque o leitor moderno frequentemente equipara as cartas antigas a uma biografia quase que a uma autobiografia Poreacutem com exceccedilatildeo de Ciacutecero e Secircneca nenhum dos demais autores acima citados tem suas coleccedilotildees ordenadas por criteacuterios cronoloacutegicos haacute outros como a organizaccedilatildeo por tema (Jerocircnimo eacute um exemplo) ou por destinataacuterio (Pliacutenio o Jovem) 24 lsquoMittersquo inquis lsquoet nobis ista quae tam efficacia expertus esrsquo (Ep 64)

[50]

Jaacute no segundo livro haacute algumas especificaccedilotildees sobre a maneira de escrever de Luciacutelio e sobre sua evoluccedilatildeo

e aprendizado como leitor de Secircneca ldquoVocecirc ndash e eu sei disso Luciacutelio vecirc claramente que ningueacutem pode ter uma

vida feliz e nem toleraacutevel sem o amor pela sabedoriardquo25 Ademais mais adiante na troca epistolar a carta 34

ndash que jaacute foi alvo de muitas discussotildees pela ceacutelebre frase ldquoOpus mihi esrdquo (ldquovocecirc [ie Luciacutelio] eacute minha obrardquo Ep

342)26 ndash tambeacutem conteacutem referecircncias agrave interlocuccedilatildeo entre os missivistas por meio da escrita e leitura das

cartas

Cresco et exulto et discussa senectute recalesco quotiens ex iis quae agis ac scribis intellego quantum te ipse ndash nam turbam olim reliqueras ndash superieceris (Ep 341)

Cresccedilo e exulto e tendo-me desprendido da velhice reanimo-me todas as vezes em que age como escreve entendo o quanto impeliu a si mesmo pois anteriormente vocecirc jaacute se havia retirado da multidatildeo

Segundo Wilson as Epiacutestolas Morais individualmente natildeo tecircm uma forma narrativa nem mesmo se lidas em

seacuterie como uma coleccedilatildeo Isso porque em seu entender natildeo tecircm narrador haacute poucas accedilotildees narradas e

muitas interrupccedilotildees da continuidade Poreacutem o estudioso ressalta

mas ler as cartas senequianas de uma certa forma eacute anaacutelogo ao que se experimenta ao ler um romance epistolar Elas contam uma histoacuteria de uma relaccedilatildeo crescente entre o escritor e o recipiente e da progressiva profundidade e a resoluccedilatildeo da filosofia de ambos (WILSON 2001 p 185)

Ora diz-se que nos Ensaios podemos perceber uma pintura de si (STAROBINSKY 2011 p 19) Se nos

servirmos da mesma imagem trata-se de mais uma aproximaccedilatildeo entre os gecircneros Isso porque nas Epiacutestolas

haacute efetivamente um retrato Contudo diferente do ensaio em geral retrata-se em geral a interlocuccedilatildeo entre

os missivistas esta natildeo eacute uniacutevoca e linear mas pode ser depreendida por meio de uma anaacutelise sistemaacutetica

das intervenccedilotildees atribuiacutedas a Luciacutelio ou mais em geral ao leitor

Conclusatildeo

Ao trazermos trechos de cartas do primeiro ateacute o quarto livro (Ep 34) estamos longe do fim do epistolaacuterio

pois a obra senequiana que chegou ateacute noacutes eacute composta por 124 epiacutestolas Poreacutem ao nos fiarmos na referida

carta 34 Luciacutelio jaacute progrediu o suficiente para ser admirado Monica Natali (2000 p 684-685) ao discorrer

sobre os destinataacuterios das Epiacutestolas Morais faz trecircs distinccedilotildees entre os possiacuteveis destinataacuterios das cartas

Luciacutelio os poacutesteros (Ep 82 e Ep 213-5) e por fim o proacuteprio Secircneca27 Haacute quem como faz Natali (2000) para

25 Liquere hoc tibi Lucili scio neminem posse beate uiuere ne tolerabiliter quidem sine sapientae studio (Ep 161) 26 A passagem jaacute foi discutida por Mazzoli (1989 p 1855) Rolim de Moura (2015 p 288) Edwards (1997 p 30) e Schafer (2011 p 45) 27 Eacute preciso ressaltar que a apreensatildeo de um efetivo diaacutelogo entre os missivistas natildeo eacute consensual Segundo Natali Luciacutelio torna-se um mero espectador de um soliloacutequio do filoacutesofo a Ep 5 seria um exemplo disso Essa visatildeo que nosso estudo natildeo corroborou ateacute o momento seraacute discutida no aprofundamento de nosso Mestrado

[51]

explicar o uacuteltimo ponto afirme que Luciacutelio se torna um mero espectador de um soliloacutequio do filoacutesofo Contra

essa abordagem pode-se natildeo apenas lembrar de passos como os que acima aventamos como tambeacutem

lembrar que por mais que muitas vezes Luciacutelio natildeo seja nem sequer mencionado no texto as proacuteprias cartas

natildeo existiriam sem sua imagem pois que precisamente natildeo seriam cartas

A afirmaccedilatildeo acima citada de Starobinsky (2011 p 19) sobre o ensaio ser uma ldquopintura de sirdquo lembra-nos de

uma imagem senequiana presente nas epiacutestolas 9 e 34 a de um artista elaborando sua obra Em nossa anaacutelise

percebemos de fato a elaboraccedilatildeo de um leitor que enquanto lecirc eacute representado citado interpelado e

elogiado trata-se de um leitor que pergunta critica argumenta Ora embora o aspecto inceptivo seja

efetivamente um importante aspecto comum ao gecircnero ensaiacutestico e ao gecircnero epistolar essa primeira

apreciaccedilatildeo das cartas nos indica que nelas tal aspecto eacute guiado por um processo muacuteltiplo de leitura que a

cada uma se re-instaura (FOWLER 1997 p 16) Luciacutelio eacute pois um leitor que estaacute sendo esculpido e pintado

a cada epiacutestola um leitor que pode ser silenciado ou ignorado em abordagens que natildeo levem em conta o

gecircnero epistolar com o qual afinal o autor escolheu escrever a uacuteltima obra que deixou agrave posteridade

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Diaacutelogos entre a gratiarum actio de Pliacutenio e o Panegiacuterico a Teodoacutesio de Pacato Drepacircnio

Kaacutetia Regina Giesen

katiagiesengmailcom

Este estudo propotildee examinar a recepccedilatildeo do texto da gratiarum actio

de Pliacutenio a Trajano no panegiacuterico a Teodoacutesio de Pacato Drepacircnio

com o objetivo de demonstrar como o diaacutelogo entre esses textos

participa do processo de constituiccedilatildeo de um gecircnero laudatoacuterio

proacuteprio do periacuteodo imperial o panegiacuterico latino Como primeiro

texto da coleccedilatildeo composta por outros onze panegiacutericos e o mais

antigo dentre eles o discurso de Pliacutenio eacute considerado modelar para

os demais e representa um novo tipo de oratoacuteria para Roma natildeo

apenas por seu contexto de realizaccedilatildeo na presenccedila do princeps

mas por seu caraacuteter simultaneamente elogioso e aconselhador

Com a metade da extensatildeo do texto pliniano o discurso de Pacato

apresenta uma estrutura argumentativa tanto na ordem e tipos

dos argumentos quanto nas figuras utilizadas quase

completamente anaacuteloga ao seu predecessor Se como afirma

Ciacutecero (Brut 163) a doutrina oratoacuteria pode ser extraiacuteda natildeo apenas

dos tratados mas tambeacutem dos discursos deixados por um orador a

imitaccedilatildeo estrutural temaacutetica e estiliacutestica feita por Pacato confirma

a praacutetica pliniana como principal registro de uma concepccedilatildeo latina

sobre o elogio agrave eacutepoca imperial que se consolida a partir do seacutec II

[54]

Afirmar a influecircncia do Panegiacuterico de Pliacutenio o Jovem a Trajano (100 dC)1 sobre algum dos discursos que

compotildeem o conjunto de panegiacutericos tardios conhecido como XII Panegyrici Latini (seacutec III-IV)2 natildeo eacute nem uma

novidade mdash uma vez que esse tem sido um tema debatido por estudiosos tanto da obra pliniana quanto dos

textos advindos da Antiguidade Tardia3 mdash nem uma tarefa simples dado que essa influecircncia natildeo eacute sempre

facilmente identificaacutevel4 Por outro lado as formas de interaccedilatildeo entre esses textos eacute muacuteltipla pois conforme

destacam Gibson e Rees (2013 p 154) ldquocomo modelo o Panegiacuterico poderia operar em um ou mais de vaacuterios

niacuteveis lexical retoacuterico estiliacutestico geneacuterico intelectual e ideoloacutegicordquo5 o que amplia as formas possiacuteveis de

leitura comparativa desses textos para aleacutem de uma intertextualidade mais restrita

Em vista dessa complexidade eacute proposto neste breve estudo o exame de alguns aspectos da recepccedilatildeo do

texto da gratiarum actio de Pliacutenio a Trajano em apenas um desses escritos elogiosos posteriores o panegiacuterico

a Teodoacutesio de Pacato Drepacircnio Tal proposta tem o objetivo de demonstrar como o diaacutelogo entre eles

participa do processo de constituiccedilatildeo de um gecircnero laudatoacuterio proacuteprio do periacuteodo imperial o panegiacuterico

latino especificamente em uma vertente laudatoacuteria pliniana Considerando as diversas possibilidades de

leitura jaacute mencionadas esta discussatildeo se concentra em observar como satildeo apropriados pelos autores dois

1 Conhecido desde o seacutec V dC (Sid Apoll Epist 8103) sob o nome de Panegiacuterico ade Trajano ou simplesmente Panegiacuterico essa obra eacute o resultado de uma gratiarum actio um discurso de agradecimento pronunciado por Pliacutenio ao Senado romano em setembro do ano 100 dC quando o orador foi nomeado consul suffectus Embora a ocasiatildeo tivesse como caracteriacutestica principal a gratidatildeo ao imperador o discurso pliniano se configura mormente como um elogio agraves virtudes e accedilotildees de Trajano que havia assumido o poder dois anos antes 2 Em 1433 foi descoberto em Mainz por Johannes Aurispa um manuscrito contendo o discurso de Pliacutenio e mais onze composiccedilotildees encomiaacutesticas oficiais de autoria diversa mdash algumas anocircnimas mas todas originaacuterias de escolas gaulesas de retoacuterica mdash e destinadas a diferentes imperadores que governaram entre os seacuteculos III e IV Nixon e Rodgers (1994 p 4) informam que esse manuscrito foi perdido poreacutem o conjunto foi preservado por coacutepias remanescentes e ficou conhecido desde entatildeo como XII Panegyrici Latini Para ediccedilotildees e comentaacuterios sobre eles cf Galletier (1949) Nixon e Rodgers (1994) e Rees (2012) 3 Garciacutea-Ruiz (2013 p 195) destaca a existecircncia de certa tradiccedilatildeo comeccedilada por Boissier (1984) em se considerar que os discursos elogiosos tardios possuiacuteam como modelo principal tanto em termos temaacuteticos quanto estruturais apenas o texto pliniano Para Pichon (1906 p 209-291) o posicionamento do discurso de Pliacutenio no iniacutecio da coleccedilatildeo torna inescapaacutevel a comparaccedilatildeo entre o elogio a Trajano e os demais Tambeacutem Klotz (1911 p 535) enumera uma seacuterie de ecos textuais entre os doze discursos Com o objetivo de fazer repensar essa posiccedilatildeo original estaacutetica e modelar do Panegiacuterico de Pliacutenio poreacutem Nixon e Rodgers (1994 p 3) destacam a existecircncia de uma tradiccedilatildeo de discursos elogiosos desde os tempos da Repuacuteblica e afirmam que ldquoO Panegiacuterico de Pliacutenio apenas aconteceu de ser o primeiro desses discursos que sobreviveurdquo (ldquoPlinyrsquos Panegyricus merely happens to be the first of such speeches to have survivedrdquo) Ainda sobre a complexidade dessas relaccedilotildees cf Rees (2011) Gibson Rees (2013) Henderson (2013) Gibson (2013) e Kelly (2015) 4 Rees (2011 p 183) argumenta que a influecircncia do texto pliniano nos panegiacutericos posteriores eacute de difiacutecil demonstraccedilatildeo pois natildeo haacute um processo de referecircncia ou intertextualidade expliacutecito O nome de Pliacutenio por exemplo natildeo eacute aludido por nenhum dos panegiristas tardios Similarmente Garciacutea-Ruiz (2013 p 196) observa que apenas o texto de Pacato (389 dC) segundo da coleccedilatildeo e o de Claacuteudio Marmentino (362 dC) posicionado como terceiro apresentam exemplos mais abundantes de ideias e expressotildees derivadas do elogio de Pliacutenio a Trajano Os outros nove textos da coleccedilatildeo apresentam de acordo com a analista um interesse variado poreacutem bastante mais limitado por essas formas de referenciar 5 ldquoas a model the Panegyricus could operate on one or more of several levels lexical rhetorical stylistic generic intellectual and ideologicalrdquo

[55]

temas principais fortemente interligados a construccedilatildeo discursiva da sinceridade nos contextos

encomiaacutesticos e o recurso da comparaccedilatildeo como ferramenta textual e argumentativa

O breve conjunto de reflexotildees que seraacute desenvolvido no decorrer deste ensaio possui uma dupla motivaccedilatildeo

De um lado ele participa de uma discussatildeo de nota de rodapeacute iniciada durante o desenvolvimento de um

artigo ainda em processo de publicaccedilatildeo escrito em coautoria com Natan Henrique Taveira Baptista sobre

as estruturas epidiacuteticas e as relaccedilotildees poliacuteticas no texto do panegiacuterico de Pacato Drepacircnio De outro mdash e na

verdade como consequecircncia da primeira mdash elas integram uma parte ainda natildeo completamente consolidada

da tese de doutorado em andamento em que se buscaraacute demonstrar que a praacutetica pliniana eacute o principal

registro de uma concepccedilatildeo teoacuterico-praacutetica latina sobre o elogio agrave eacutepoca imperial (para qual natildeo haacute em latim

textos teoacutericos contemporacircneos) e que se consolida como modelo a partir do seacutec II influenciando os

panegiristas posteriores Por isso os comentaacuterios realizados neste trabalho destacam os elementos

relacionados agrave sinceridade e agrave comparaccedilatildeo como sinalizadores de uma reflexatildeo em certo niacutevel

metadiscursiva a respeito da constituiccedilatildeo dos textos encomiaacutesticos ou seja eles satildeo interpretados

sobretudo no texto de Pliacutenio como indiacutecios de uma teorizaccedilatildeo sobre o proacuteprio panegiacuterico como gecircnero

Desse modo sua apariccedilatildeo e uso por Pacato configuram uma confirmaccedilatildeo dessas estruturas como

constituintes do gecircnero em desenvolvimento e do papel de Pliacutenio como principal modelo no contexto

imperial6

Embora haja um intervalo de quase trecircs seacuteculos entre o pronunciamento em setembro de 100 do

agradecimento de Pliacutenio em honra de Trajano e da realizaccedilatildeo em 389 do panegiacuterico de Pacato Drepacircnio ao

imperador Teodoacutesio haacute uma diversidade de fatores contextuais e cotextuais que fazem com que uma leitura

comparativa ou paralela entre eles seja quase inevitaacutevel Os paralelos entre esses dois discursos tecircm iniacutecio

na proacutepria conformaccedilatildeo de sua tradiccedilatildeo manuscrita uma vez que o conjunto dos Panegyrici Latini chegou ateacute

a atualidade em uma ordem natildeo cronoloacutegica de modo que o elogio a Teodoacutesio mesmo sendo temporalmente

o uacuteltimo ou seja o mais recente eacute alocado como segundo do conjunto logo apoacutes o texto de Pliacutenio que eacute

mantido nessa posiccedilatildeo inicial independentemente da cronologia7 Essa disposiccedilatildeo foi estabelecida muito

6 Natildeo se nega a presenccedila e a importacircncia dos textos de Ciacutecero sobretudo Pro Marcello e Pro lege Manilia ou mesmo do De clementia de Secircneca como modelos encomiaacutesticos que podem ter influenciado na constituiccedilatildeo do panegiacuterico latino como gecircnero retoacuterico (cf Nixon Rodgers 1994 p 1-4 Pernot 2005 p 171-181 Gibson 2011 p 105 Braund 2012) Todavia defendemos a especificidade da influecircncia pliniana dados os contextos condiccedilotildees e recursos especiacuteficos envolvidos na produccedilatildeo de seu discurso 7 De acordo com a disposiccedilatildeo dos manuscritos o primeiro discurso eacute o de Pliacutenio seguido pelo panegiacuterico de Pacato de Claacuteudio Mamertino de Nazaacuterio de alguns cujos autores satildeo desconhecidos e de Eumecircnio Com o objetivo de tornar mais clara a observaccedilatildeo e referecircncia do conjunto a criacutetica moderna buscou estabelecer uma ordem cronoloacutegica entre esses textos e com isso uma dupla numeraccedilatildeo foi proposta como convenccedilatildeo mais comum para as obras acadecircmicas (Rees 2012 p 23) os nuacutemeros colocados fora de parecircnteses ou colchetes indicam a ordem transmitida pela Antiguidade enquanto os nuacutemeros usados entre parecircnteses ou colchetes referem a posiccedilatildeo do texto cronologicamente estabelecida na antologia (cf Rees 2017 p 313-314)

[56]

provavelmente pelo proacuteprio Pacato Drepacircnio8 que ao fazecirc-lo natildeo apenas reafirma o texto de Pliacutenio como o

mais antigo da coleccedilatildeo mas tambeacutem o indica como o principal modelo para o gecircnero dos panegiacutericos latinos

posteriores9 Nessa mesma linha de raciociacutenio portanto o texto de Pacato seria o segundo mais importante

e por isso a ideia de uma comparaccedilatildeo e mesmo disputa entre os dois textos ganha mais forccedila A posiccedilatildeo de

segundo entre os panegiacutericos pode ser notada tambeacutem na proacutepria extensatildeo do discurso Com pouco menos

da metade de capiacutetulos que conteacutem o panegiacuterico pliniano que eacute o mais extenso da antologia o texto de

Pacato eacute entre os tardios o com maior nuacutemero de capiacutetulos

Outras semelhanccedilas entre os textos de Pliacutenio e Pacato podem ser encontradas nas condiccedilotildees gerais de sua

produccedilatildeo e pronunciamento Ambos os panegiristas por exemplo ascenderam na carreira puacuteblica sob

imperadores anteriores agravequeles que foram elogiados em seus discursos ambos fazem loas a priacutencipes

originaacuterios da Hispacircnia e ambos recebem novos cargos administrativos de importacircncia apoacutes realizarem seus

discursos laudatoacuterios10 (REES 2013 p 242-243) Desses aspectos talvez o mais importante seja a

percepccedilatildeo de que tanto Pliacutenio quanto Pacato elogiam em Roma imperadores que acabaram de ascender ao

poder em um contexto conturbado mas ambos os oradores jaacute estavam razoavelmente consolidados como

figuras puacuteblicas o que implica uma ascensatildeo pregressa desses oradores sob governantes discursivamente

opostos aos que agradecem e elogiam11 Pliacutenio louva Trajano que assumiu o comando sobre o impeacuterio em

98 dois anos apoacutes do assassinado de seu antecessor12 e antagonista Domiciano uacuteltimo dos imperadores

flavianos Pacato elogia Teodoacutesio que havia vencido no ano anterior o usurpador Magno Maacuteximo pelo

domiacutenio das Gaacutelias13

No que se refere ao contexto especiacutefico de recitaccedilatildeo desses discursos tambeacutem alguns paralelos podem ser

encontrados O panegiacuterico de Pliacutenio foi pronunciado no Senado estando Trajano presente como forma de

agradecimento pelo consulado recebido pelo orador Tais circunstacircncias satildeo referidas ao longo do proacuteprio

texto Pliacutenio caracteriza sua fala como um discurso de agradecimento em diferentes momentos (cf Pan 11

41 903) e se dirige diretamente aos senadores desde o iniacutecio quando afirma ldquoBem e sabiamente pais

8 Tal hipoacutetese eacute elencada por Pichon (1906 p 290-291) e permanece de acordo com Gibson e Rees (2013 p 218 nota 6) validada pela criacutetica posterior 9 Para Galletier (1949 pvii) le modegravele du genre para Roger Rees (2013 p 242) o primus o megaacutelito o imoacutevel 10 Tal ascensatildeo pode ser um dos indicativos do sucesso dos textos laudatoacuterios que eles apresentaram a seus governantes Apoacutes a entrega de sua laudatio as conexotildees com Ausocircnio e sua condiccedilatildeo de orador levaram Pacato a receber o proconsulado da Aacutefrica em 390 e tornar-se comes rei privatae em 393 (NIXON RODGERS 1994 p 439) Pliacutenio por sua vez que assumia o cargo de cocircnsul em 100 se manteve atuante em diferentes causas e tornou-se por volta de 110 governador da Bitiacutenia 11 Sobre os paradoxos da ascensatildeo pliniana sob Domiciano cf Kelly (2015 p 229) e Whitton (2015) Sobre a posiccedilatildeo de Pacato como parte dos comites de Maacuteximo cf Sordi (2002 p 315) 12 Natildeo se trata nesse caso de um antecessor direto uma vez que apoacutes o assassinato de Domiciano Nerva assumiu o poder poreacutem durante um periacuteodo bastante curto 13 A declamaccedilatildeo do panegiacuterico de Pacato ocorreu no momento da volta de Teodoacutesio agrave capital Roma para oficializar a posse das Gaacutelias ocupadas por Magno Clemente Maacuteximo que havia usurpado o poder sobre o Impeacuterio Romano ocidental desde 383 ateacute agosto de 388 quando foi derrotado por Teodoacutesio (KELLY 2015 p 215-217)

[57]

conscritos nossos antepassados instituiacuteram que deveriacuteamos iniciar com preces os discursos []rdquo (Plin Pan

11 Grifo nosso)14 Tambeacutem o imperador eacute referido em segunda pessoa ao longo do discurso como ocorre

em Pan 43 ldquoNos dois casos Ceacutesar Augusto ages com moderaccedilatildeo mdash tanto ao natildeo permitir que te demos

graccedilas em outro lugar quanto ao permitirrdquo15 O texto de Pacato por sua vez foi declamado na presenccedila de

senadores e do consilium do imperador (formado por altos membros da elite oficiais de alto escalatildeo e

comandantes militares) como parte das festividades triunfais de Teodoacutesio Tal contexto imediato tambeacutem eacute

anunciado ainda nos primeiros paraacutegrafos do discurso momento em que o orador busca pela exposiccedilatildeo de

sua modeacutestia captar a benevolecircncia de sua audiecircncia

Se houve um dia algueacutem Imperador Augusto que prestes a falar justamente tenha tremido em tua presenccedila por certo este sou eu e natildeo soacute eu mesmo o sinto mas tambeacutem vejo que assim pode parecer a estes que participam do teu conselho [] Para caacute veio o senado como ouvinte a quem por causa do amor em ti com o qual ele foi dotado eacute difiacutecil satisfazer a respeito de ti [hellip] (Pan Lat 2[12]12-3)16

Nesse caso se pode pensar que eacute como se Pacato observasse a si mesmo em uma conjuntura tanto de

produccedilatildeo quanto de recepccedilatildeo bastante proacutexima daquela em que se encontrava Pliacutenio e portanto recorresse

a muitos dos recursos discursivos desse seu predecessor assim como a estruturas lexicais frasais e mesmo

certos posicionamentos poliacuteticos (REES 2013 p 246) Para Gibson (2013 p 219) por exemplo a

justaposiccedilatildeo dos textos de Pliacutenio e Pacato natildeo evoca apenas e necessariamente um paralelo retoacuterico em

termos estruturais ou textuais em um sentido mais estrito Para o analista em concordacircncia com Garcia-Ruiz

(2013 p 205-215) essa sequecircncia suscita tambeacutem a comparaccedilatildeo entre os imperadores tardios e a figura

imperial de Trajano razatildeo pela qual algumas estrateacutegias discursivas tambeacutem satildeo imitadas

Diante desse quadro relativo agrave ascensatildeo de novos governantes o primeiro elemento de aproximaccedilatildeo entre

os dois discursos laudatoacuterios eacute a urgecircncia de ambos em declarar sua sinceridade logo no iniacutecio de sua

declamaccedilatildeo A aplicaccedilatildeo de teacutecnicas para o efeito de sinceridade eacute para Bartsch (1994 p 149) talvez o

principal aspecto do texto pliniano classificaacutevel pela autora como uma verdadeira obsessatildeo17 Embora para

Bartsch (1994) esse seja na verdade um indiacutecio de que nenhuma sinceridade eacute mais possiacutevel nos louvores

defendemos que o uso de tal recurso tem como finalidade a criaccedilatildeo discursiva de um novo campo para o

exerciacutecio do epidiacutetico pois o panegirista afirma apresentar diante de Trajano uma forma renovada de

discursos de agradecimento Nesse contexto Pliacutenio suplica a Juacutepiter da seguinte maneira ldquo[] que meu

14 ldquoBene ac sapienter patres conscripti maiores instituerunt ut rerum agendarum ita dicendi initium a precationibus capererdquo (Plin Pan 11) Todas as traduccedilotildees do Panegiacuterico citadas neste texto satildeo de autoria de Lucas Lopes Giron 15 ldquoVtrumque Caesar Auguste moderate et quod alibi tibi gratias agi non sinis et quod hic sinisrdquo (Plin Pan 43) 16 ldquoSi quis umquam fuit imperator Auguste qui te praesente dicturus iure trepidaverit eum profecto me esse et ipse sentio et his qui consilium tuum participant videri posse viacutedeo [] Huc accedit auditor senatus cui cum difficile sit pro amore quo in te praeditus est de te satis fieri []rdquo (Pan Lat 2[12]11-3) Todas as traduccedilotildees do texto de Pacato Drepacircnio satildeo de nossa autoria 17 ldquo[] a obsessatildeo do Panegiacuterico com as teacutecnicas de sinceridaderdquo [hellip] the Panegyricus obsession with the techniques of sincerityrdquo (BARTSCH 1994 p 149)

[58]

discurso seja digno de um cocircnsul digno do senado e digno do priacutencipe que em tudo o que for dito por mim

conste a liberdade a sinceridade e a verdade e que meu agradecimento esteja tatildeo distante da aparecircncia de

adulaccedilatildeo quanto estaacute de sua necessidaderdquo (Plin Pan 16)18

A primeira caracteriacutestica desse discurso eacute portanto a franqueza de suas palavras as quais o orador suplica

aos deuses que sejam primeiramente compatiacuteveis com sua condiccedilatildeo de cocircnsul com o senado e com o

priacutencipe19 e que sejam confirmadas pela verdade (veritas) pelo compromisso (fides) e pela liberdade (libertas)

A tal pedido o orador acrescenta que deseja que elas natildeo sejam interpretadas como adulaccedilatildeo algo que como

enfatiza Taacutecito (Hist 1112) conteacutem em si ldquoo vergonhoso crime de servidatildeordquo20 Nesse contexto importa

destacar que o panegirista quer afastar natildeo a adulaccedilatildeo em si mas a aparecircncia dela mdash species adulationis mdash

expressatildeo que denota natildeo a possibilidade de que o elogio seja de fato concebido como lisonja vazia ao

imperador mas que ele poderia ser assim mal interpretado pelos ouvintes

Para reforccedilar seu argumento Pliacutenio destaca que esse afastamento deve ser proporcional a sua falta de

necessidade expressatildeo que denota um elogio natildeo forccedilado pelo imperador mas realizado de boa vontade

pelo panegirista21 Desse modo Pliacutenio busca afirmar seu discurso como louvor sincero ante os deuses o

senado e o imperador isso porque os tempos satildeo outros livres como afirma logo em seguida

Quanto a mim penso que natildeo somente o cocircnsul mas todos os cidadatildeos devem se esforccedilar para natildeo dizer do nosso priacutencipe aquilo que pareccedila poder ser dito de outro Que saiam e afastem-se entatildeo aquelas palavras que o medo forccedilava Natildeo digamos nada como antes pois nada sofremos como antes Nem falemos em puacuteblico sobre o priacutencipe o mesmo que antes pois natildeo falamos em particular o mesmo que antes Que a mudanccedila dos tempos seja manifesta pelos nossos discursos e que se entenda a partir do proacuteprio modo do agradecimento quem e em que momento acontecem Que em nada como um deus que em nada como uma divindade o louvemos Pois natildeo falamos de um tirano mas de um cidadatildeo natildeo falamos de um amo mas de um pai (Plin Pan 21-3 Grifos nossos)22

De acordo com essa linha de raciociacutenio quanto mais a audiecircncia e o proacuteprio priacutencipe concordarem com a

liberdade do periacuteodo mais sincero e verdadeiro eacute o elogio De outra maneira interpretar o discurso de

18 ldquo[] ut mihi digna consule digna senatu digna principe contingat oratio utque omnibus quae dicentur a me libertas fides ueritas constet tantumque a specie adulationis absit gratiarum actio mea quantum abest a necessitaterdquo 19 Tais personagens colocados nessa ordem frasal enfatizam a importacircncia das instituiccedilotildees republicanas ao longo de todo agradecimento realizado por Pliacutenio 20 ldquoquippe adulationi foedum crimen servitutis [] inestrdquo (Taacutec Hist 1112) 21 O restante do trecho do panegiacuterico trata do mesmo assunto A caracterizaccedilatildeo desse discurso como livre tambeacutem eacute feita por Pliacutenio em uma das cartas em que comenta o processo de revisatildeo e reescrita do agradecimento a Trajano na qual afirma que seu discurso mereceu uma versatildeo escrita (scribitur) natildeo por ter sido elaborado com mais habilidade oratoacuteria (eloquentius) mas sim porque mais livremente (liberius) e de mais boa vontade (Plin Ep 3183) 22 ldquoEquidem non consuli modo sed omnibus ciuibus enitendum reor ne quid de priacutencipe nostro ita dicant ut idem illud de alio dici potuisse uideaturQuare abeant ac recedant uoces illae quas metus exprimebat Nihil quale ante dicamus nihil enim quale antea patimur nec eadem de principe palam quae prius praedicemus neque enim eadem secreto quae prius loquimur Discernatur orationibus nostris diuersitas temporum et ex ipso genere gratiarum agendarum intellegatur cui quando sint actae Nusquam ut deo nusquam ut numini blandiamur non enim de tyranno sed de ciue non de domino sed de parente loquimurrdquo

[59]

agradecimento como falso ou bajulaccedilatildeo servil implica acusar o novo governo de tirania23 Tal ideia eacute

confirmada pela oposiccedilatildeo entre ldquoantesrdquo e ldquoagorardquo e pela afirmaccedilatildeo de que a mudanccedila dos tempos eacute

manifestada por meio de um tipo novo de elogios24 Nesse contexto o segundo principal recurso do

panegiacuterico de Pliacutenio (que seraacute discutido mais longamente ainda neste trabalho) eacute a comparaccedilatildeo a partir da

qual a ideia mesma de sinceridade pode ser construiacuteda Os elementos constituintes desse confronto satildeo

tambeacutem sumarizados ainda nesse trecho inicial De um lado seraacute louvado Trajano como figura de cidadatildeo e

de pai de outro seraacute vituperado Domiciano descrito como tirano25

Em um trecho que pode ser classificado como algo entre paraacutefrase siacutentese ou glosa das ideias de Pliacutenio

Pacato ainda nos primeiros paraacutegrafos do elogio afirma que

E tambeacutem isto me impeliu a discursar porque ningueacutem obrigava que eu discursasse de fato natildeo mais o louvor forccedilado e as vozes pressionadas pelo medo livravam do perigo do silecircncio Que seja passada e afastada aquela triste obrigaccedilatildeo de eloquecircncia servil quando a aprovaccedilatildeo mentirosa afagava um tirano truculento que cativava toda celebridade dos aplausos puacuteblicos com uma popularidade vazia quando faziam agradecimentos os sofredores e natildeo ter elogiado o tirano se classificava como acusaccedilatildeo de tirania Haacute agora igual liberdade para falar e silenciar e eacute tatildeo seguro louvar abertamente o priacutencipe quanto ter silenciado sobre ele (Pan Lat 2[12]22-4 Traduccedilatildeo e grifo nossos)26

Como pode ser notado a ligaccedilatildeo intertextual mais evidente entre os dois discursos estaacute na sentenccedila que

menciona um tipo de louvor anterior que era compelido pelo medo Em ambas as passagens satildeo utilizados

os mesmos vocaacutebulos ainda que em ordem e formas diferentes ldquonon enim iam coacta laudatio et expressae

metu voces periculum silentii redimuntrdquo (Pan Lat 2[12]22) e ldquoQuare abeant ac recedant uoces illae quas metus

exprimebatrdquo (Plin Pan 21) Todavia a mesma seacuterie de ideias utilizada nos paraacutegrafos iniciais de Pliacutenio eacute

aplicada nesse trecho de Pacato

Em primeiro lugar estaacute o argumento de que o elogio natildeo eacute coagido pela forccedila poliacutetica do imperador mas

impulsionado pela proacutepria liberdade de dizer Em segundo a menccedilatildeo ao afastamento de uma eloquecircncia

servil legada a tempos anteriores marcados justamente pela ausecircncia de autonomia (Pan Lat 2[12]23 Plin

Pan 16) Nesses dois aspectos Pacato ao mesmo tempo parafraseia e sintetiza as teses elencadas por Pliacutenio

Em terceiro lugar eacute identificaacutevel a menccedilatildeo agrave figura do tirano com a qual por consequecircncia o elogiado deveraacute

23 Sobre essa atribuiccedilatildeo da responsabilidade interpretativa agrave audiecircncia cf Bartsch (1994 p 160-161) 24 De acordo com Christopher Kelly (2015 p 226) essa antiacutetese entre o periacuteodo anterior e o vigente eacute um dos dispositivos estruturais mais importantes de Pliacutenio 25 Nessa passagem nenhuma pessoa em particular eacute citada diretamente todavia a menccedilatildeo a ldquoum deusrdquo e em seguida a ldquoum amordquo remete agrave figura de Domiciano uma vez que dominus et deus eacute um tiacutetulo comumente atribuiacutedo a ele Sobre as evidecircncias dessas denominaccedilotildees cf Jones (1992 p 107-109) 26 ldquoQuin et illud me impulit ad dicendum quod ut dicerem nullus adigebat non enim iam coacta laudatio et expressae metu voces periculum silentii redimunt Fuerit abieritque tristis illa facundiae ancillantis necessitas cum trucem dominum auras omnes plausuum publicorum ventosa popularitate captantem mendax adsentatio titillabat cum grates agebant dolentes et tyrannum non praedicasse tyrannidis accusatio vocabatur Nunc par dicendi tacendique libertas et quam promptum laudare principem tam tutum siluisse de principerdquo

[60]

ser contraposto Por fim Pacato reafirma a franqueza de suas palavras por meio do argumento de que o

silecircncio natildeo eacute mais interpretado como traiccedilatildeo por isso poderia calar-se mas escolheu o fazer Nesses dois

uacuteltimos argumentos ideias que estavam presentes natildeo apenas no comeccedilo mas ao longo da gratiarum actio a

Trajano satildeo de certo modo desenvolvidas jaacute de iniacutecio no texto dedicado a Teodoacutesio A caracterizaccedilatildeo do

governante anterior como tirano truculento e sanguinaacuterio por exemplo ocorre em diferentes momentos ao

longo do texto pliniano (Plin Pan 204-6 483-5) enquanto a ponderaccedilatildeo sobre o silecircncio eacute feita na segunda

metade do discurso (Plin Pan 531-3)27

Natildeo se trata nesse caso de afirmar que Pacato se apoiou uacutenica e exclusivamente no texto de Pliacutenio ou que

natildeo modificou e adaptou muitas outras estrateacutegias advindas de sua formaccedilatildeo oratoacuteria no processo de

produccedilatildeo de seu discurso Para Rees (2013 p 244-247) os recursos estiliacutesticos sobretudo os tipos de

ornamentaccedilatildeo retoacuterica do texto de Pacato Drepacircnio satildeo bastante originais de origem poeacutetica e refletem as

transformaccedilotildees proacuteprias do periacuteodo Todavia pela observaccedilatildeo comparativa dos textos fica evidente que a

obra encomiaacutestica pliniana influenciou de maneira bastante direta as escolhas estruturais temaacuteticas e em

alguns casos textuais do panegirista tardoantigo Eacute a partir de tal interpretaccedilatildeo que se torna possiacutevel

localizar Pliacutenio como modelo e paradigma encomiaacutestico

No entanto o que faz com que se entenda haver uma recepccedilatildeo do texto pliniano no panegiacuterico a Teodoacutesio

natildeo eacute apenas a supracitada caracterizaccedilatildeo do elogio como sincero mas o fato de que nos dois discursos

muito dessa ficccedilatildeo de franqueza se constroacutei a partir da constante e insistente comparaccedilatildeo entre o atual

imperador e o governante (ou os governantes) que o antecedeu (antecederam) Tal estrutura textual e

argumentativa eacute uma das caracteriacutesticas mais marcantes do Panegiacuterico de Pliacutenio considerada ainda um fator

de diferenciaccedilatildeo de seu modelo laudatoacuterio em relaccedilatildeo agrave tradiccedilatildeo latina28 O indiacutecio da importacircncia desse

artifiacutecio retoacuterico eacute dado pela metalinguagem do proacuteprio texto da gratiarum actio onde o panegirista afirma

Tudo pais conscritos que eu digo ou disse de outros priacutencipes tem a intenccedilatildeo de mostrar por quanto tempo corromperam-se e depravaram-se os costumes do principado que nosso pai agora reforma e corrige Aleacutem disso natildeo se faz um elogio adequado sem uma comparaccedilatildeo (Plin Pan 531-3 Grifo nosso)29

27 No contexto da gratiarum actio a Trajano o silecircncio natildeo eacute sinocircnimo de liberdade tatildeo diretamente quanto no texto de Pacato Em outras duas menccedilotildees agrave possibilidade de silenciar-se o texto deixa impliacutecitos os riscos dessa accedilatildeo Em Pan 251 o panegirista justifica sua prolixidade pela afirmaccedilatildeo de que o silecircncio sobre qualquer feito do princeps poderia ser interpretado como desaprovaccedilatildeo enquanto em Pan 536 ao silecircncio sobre os males de tempos anteriores eacute atribuiacuteda tambeacutem uma criacutetica ao tempo presente 28 Sobre a recepccedilatildeo do modelo comparativo e antiteacutetico de elogio realizado por Pliacutenio em contextos posteriores cf Pailler 2003 29 ldquoOmnia Patres Conscripti quae de aliis principibus a me aut dicuntur aut dicta sunt eo pertinent ut ostendam quam longa consuetudine corruptos depravatosque mores principatus parens noster reformet et corrigat Alioqui nihil non parum grate sine comparatione laudaturrdquo

[61]

Natildeo eacute originalmente de Pliacutenio o Jovem a ideia de que elogio requer que dois ou mais elementos sejam

comparados pois ela eacute jaacute apontada por Aristoacuteteles (Rh1366a-1368b Trad de Manuel Alexandre Juacutenior et

alii) de acordo com quem

Deve-se poreacutem comparar com pessoas de renome pois resulta amplificado e belo se se mostrar melhor que os virtuosos [] A amplificaccedilatildeo enquadra-se logicamente nas formas de elogio pois consiste em superioridade e a superioridade eacute uma das coisas belas Pelo que se natildeo eacute possiacutevel comparar algueacutem com pessoas de renome eacute pelo menos necessaacuterio comparaacute-lo com as outras pessoas visto que a superioridade parece revelar a virtude

Semelhantemente Ciacutecero destaca que ldquotambeacutem a comparaccedilatildeo com outros homens notaacuteveis eacute ilustre num

elogiordquo (Cic De orat 2348 Trad de Maximiano Augusto Gonccedilalves)30 conselho obedecido pelo proacuteprio

orador no Pro Marcello (5) quando afirma equiparar (conferri) mentalmente ou em diaacutelogos privados os

feitos e virtudes de Ceacutesar aos homens mais ilustres de povos estrangeiros e concluir que seu elogiado eacute o

melhor entre eles Quintiliano tambeacutem registra a comparaccedilatildeo como um dos elementos essenciais da

amplificaccedilatildeo dos discursos ldquoconsidero que a amplificaccedilatildeo eacute composta por quatro gecircneros principais adiccedilatildeo

comparaccedilatildeo racionalizaccedilatildeo acumulaccedilatildeordquo (Quint Inst 843 Traduccedilatildeo nossa)31 Eacute diante de tal tradiccedilatildeo que

Lausberg (1998 p 191) afirma acertadamente que ldquo[] comparatio eacute especialmente adequada para o gecircnero

epidiacutetico em que caracteriacutesticas da histoacuteria poesia ou mito satildeo retratadas como tendo sido superadas pelo

sujeito que estaacute sendo elogiadordquo32

Todavia como fica evidente quando se observam as ponderaccedilotildees dos autores antigos sobre esse recurso a

comparaccedilatildeo eacute no contexto elogioso em geral definida pelo uso de exemplos positivos Contrariando essa

posiccedilatildeo poreacutem o agradecimento de Pliacutenio a Trajano se constroacutei mormente pelo confronto do novo

imperador natildeo com os precedentes mais ilustres mas com os exemplos anteriores qualificados se natildeo como

tiranos ao menos como governantes imperfeitos33 Desse modo a censura mais que o louvor eacute trazida para

o primeiro plano do discurso de agradecimento a Trajano Para aleacutem de afirmar as virtudes e feitos do

princeps grande parte do elogio de Pliacutenio se dedica a negar a possibilidade de que ele seja similar aos que

governaram antes Como destaca o texto do panegiacuterico ldquo[] eacute o primeiro dever dos cidadatildeos pios diante de

um imperador oacutetimo atacar os que natildeo lhe satildeo semelhantes pois natildeo teraacute amado suficientemente os bons

priacutencipes aquele que natildeo odeie os maus o bastanterdquo (Plin Pan 531-2 Grifos nossos)34

30 ldquoEst etiam cum ceteris praestantibus viris comparatio in laudatione praeclarardquo 31 ldquoQuattuor tamen maxime generibus video constare amplificationem incremento comparatione ratiocinatione congerierdquo 32 ldquoComparatio is especially suited to the epideictic genus in that features of history poetry or myth are portrayed as having been surpassed by the subject being praisedrdquo 33 Haacute no texto do Panegiacuterico tambeacutem exemplos positivos aos quais Trajano eacute comparado (cf Pan 134-5 291-2 354 556-7 574-5 804 841-2 e 886-8) poreacutem a relevacircncia deles eacute minorada pela contiacutenua oposiccedilatildeo ao passado funesto que eacute elaborado ao longo do discurso 34 ldquo[hellip] hoc primum erga optimum imperatorem piorum civium officium est insequi dissimiles Neque enim satis amarit bonos principes qui malos satis non oderitrdquo (Plin Pan 531)

[62]

A finalidade ou a funccedilatildeo dessa comparaccedilatildeo e consequente vitupeacuterio eacute destacada logo em seguida quando o

panegirista aconselha incluindo-se entre os aconselhados que

[] Devemos agir assim em nossas conversas privadas nas puacuteblicas e em nossas accedilotildees de graccedilas e lembremo-nos de que o melhor enaltecimento para um imperador vivo eacute repreender seus antecessores que mereceram Pois quando a posteridade se cala quanto a um mau priacutencipe eacute manifesto que o priacutencipe atual faz as mesmas coisas (Plin Pan 536)35

O exerciacutecio aberto da censura a anteriores eacute de acordo com esse argumento prova da sinceridade e da

legitimidade do elogio atual ainda que nesse caso o vitupeacuterio natildeo esteja contraposto ao elogio mas ao

silecircncio Tais elementos de antiacutetese satildeo evocados ao longo de todo o Panegiacuterico de Pliacutenio seja por meio da

construccedilatildeo de um modelo negativo mais geneacuterico geralmente caracterizado pelo uso da terceira pessoa do

singular de modo que parece referir a todos os predecessores (184 241-5 361-2 412-3 421-3 451-3

471-2 501-3 581-4 633-7 653 663 704-7 711-3 794-6 881-3 911-2) quanto pela menccedilatildeo

indireta a um modelo negativo poreacutem direcionada de modo que eacute possiacutevel identificar sobretudo a figura de

Domiciano (23 145 331-4 483-5 495-8 52 541-3 571-2 623 763-5 81-82 832-6 941-3)36

Esse recurso eacute utilizado tambeacutem por Pacato ainda que de maneira um pouco diversa Diferentemente de

Pliacutenio cujo exerciacutecio comparativo pode ser notado ao longo de todo o panegiacuterico de maneira que quase

todos os itens elogiados em Trajano satildeo em sequecircncia vituperados em outros Pacato concentra o vitupeacuterio

a Maacuteximo entrecortado pelo elogio a Teodoacutesio entre os capiacutetulos 21 e 29 aos quais acrescenta em

2(12)313 uma siacutentese comparativa entre eles ldquo[] por fim contigo o compromisso com ele a perfiacutedia

contigo as leis divinas com ele o sacrileacutegio contigo a justiccedila com ele a injuacuteria contigo a clemecircncia dececircncia

religiatildeo com ele a impiedade devassidatildeo crueldade e a combinaccedilatildeo de todos os crimes e dos piores viacutecios

[]rdquo37 Portanto embora partam como apresentado no exame dos seus capiacutetulos iniciais de um mesmo

princiacutepio comparativo o modo como cada um dos oradores dispotildeem essa antiacutetese em seus discursos eacute

diferente Ainda assim o trecho destinado ao confronto entre os imperadores eacute no texto de Pacato bastante

extenso de modo que ocupa parte relevante de sua argumentaccedilatildeo

35 ldquoHoc secreta nostra hoc sermones hoc ipsae gratiarum actiones agant meminerintque sic maxime laudari incolumem imperatorem si priores secus meriti reprehendantur Nam quum de malo principe posteri tacent manifestum est eadem facere praesentemrdquo 36 Como destaca Christopher Kelly (2015 p 227) ldquoo valor de Trajano sua generosidade sua prudecircncia financeira seu respeito pelas leis destacam-se muito mais claramente em comparaccedilatildeo com a covardia ganacircncia excesso e tirania de Domiciano []rdquo (ldquoTrajanrsquos valor generosity financial prudence and respect for the laws stand out all the more clearly in comparison to Domitianrsquos cowardice greed excess and tyranny [hellip]rdquo) 37 ldquoPostremo tecum fidem secum perfidiam tecum fas secum nefas tecum ius secum iniuriam tecum clementiam pudicitiam religionem secum impietatem libidinem crudelitatem et omnium scelerum postremorumque vitiorum [] collegiumrdquo

[63]

Como natildeo eacute propoacutesito deste estudo analisar exaustivamente todos os trechos comparativos em cada um dos

textos encomiaacutesticos destaca-se aqui uma passagem principal em que os elementos escolhidos para a

comparaccedilatildeo satildeo semelhantes em ambos os discursos Em Pan Lat 2(12)21 Pacato associa de modo

bastante proacuteximo ao que faz Pliacutenio em Pan 474-6 e 481 o espaccedilo fiacutesico das casas e da cidade agrave relaccedilatildeo do

imperador com os cidadatildeos Nesse contexto Teodoacutesio e Trajano satildeo relacionados a casas e cidades abertas

jaacute que querem mostrar sua face e seu interior Ambos natildeo temem sair agrave rua e serem vistos e abordados pelos

suacuteditos a quem segundo os panegiristas atendem sem inspirar medo Domiciano e Maacuteximo por outro lado

inflados por sua pretensa divindade se fecham em paredes e templos rodeados por soldados Ainda que natildeo

possa ser notada uma equivalecircncia vocabular ou frasal entre os trechos argumentos bastante semelhantes

satildeo empregados Nas palavras de Pacato Drepacircnio

Mas quatildeo diferente foi o costume dos nossos priacutencipes anteriores (de quais falo eacute sabido) os quais pensavam que a grandeza real era diminuiacuteda e tornada vulgar se eles natildeo estivessem confinados no interior do edifiacutecio Palatino tal qual um templo de Vesta para em segredo os consultar uma veneraccedilatildeo oculta (Pan Lat 2(12)213)38

Esse trecho iniciado por Quantum aliter illorum principum evoca uma estrutura razoavelmente comum no

texto pliniano que com frequecircncia inicia sua contraposiccedilatildeo com vocaacutebulos semelhantes (quantumquam

dissimilis quam diversum mdash Plin Pan 204 653 821) Tal arranjo poreacutem natildeo eacute utilizado no trecho em que

ideias semelhantes satildeo desenvolvidas por ele cujo indiacutecio de antiacutetese eacute fornecido por um Ille tamen cujo valor

expressivo eacute similar a ldquoaquele (cuja identidade vocecirc audiecircncia conhece)rdquo indireta tatildeo claramente

apresentada por Pacato

Ele poreacutem entre aquelas paredes e muros em que parecia proteger sua vida fechou consigo a trapaccedila as conspiraccedilotildees e o deus vingador dos crimes A Pena separou e quebrou as proteccedilotildees e entrou por caminhos apertados e obstruiacutedos como se por portas abertas e umbrais receptivos De nada servia entatildeo a sua pretensa divindade de nada serviam aqueles quartos secretos e crueacuteis esconderijos onde era tomado pelo temor pela soberba e pelo oacutedio aos homens (Plin Pan 491)39

Permanece portanto na relaccedilatildeo entre essas duas passagens a menccedilatildeo agraves paredes fechadas aos locais

escuros e secretos e agrave presunccedilatildeo de divindade dos imperadores Tais caracteriacutesticas em ambos os casos

todavia expressam natildeo apenas o risco que como tiranos representariam para os cidadatildeos mas o temor que

possuem de perderem sua grandeza por meio do contato com os demais

38 ldquoAt quanto aliter illorum principum mos fuit (quos loquar notum est) qui maiestatem regiam imminui et volgari putabant nisi eos intra repositum Palatinae aedis inclusos tamquam aliquod Vestale secretum veneratio occulta consuluisset nisi intra domesticam umbram iacentes solitudo provisa et silentia late conciliata vallassentrdquo 39 ldquoIlle tamen quibus sibi parietibus et muris salutem suam tueri videbatur dolum secum et insidias et ultorem scelerum deum inclusit Dimovit perfregitque custodias poena angustosque per aditus et obstructos non secus ac per apertas fores et invitantia limina irrupit longeque tunc illi divinitas sua longe arcana illa cubilia saevique secessus in quos timore et superbia et odio hominum agebaturrdquo

[64]

O segundo trecho em que se nota certa equivalecircncia entre os dois panegiacutericos eacute na verdade parte

constituinte dessa mesma reflexatildeo sobre o isolamento e desconfianccedila tiracircnica Tanto Pliacutenio quanto Pacato

ilustram esse argumento com a comparaccedilatildeo de seus respectivos priacutencipes a monstros que se escondem em

cavernas A respeito de Domiciano Pliacutenio afirma que

[] demoramos e permanecemos como em uma casa comum onde haacute pouco aquela crudeliacutessima besta havia cercado com muitiacutessimo terror quando como que fechada em uma caverna ora lambia o sangue dos familiares ora se entregava agrave carnificina e ao massacre dos cidadatildeos mais ilustres [] Ningueacutem ousava aproximar-se e dirigir-lhe a palavra sempre buscava as trevas e o misteacuterio e nunca saiacutea de sua solidatildeo senatildeo para causar a solidatildeo (Pan 483 e 5)40

Pacato por sua vez que reserva todo o capiacutetulo 26 para um vitupeacuterio direto e ininterrupto de Maacuteximo

nessa oportunidade explicita a comparaccedilatildeo do usurpador agrave figura mitoloacutegica de Cariacutebdis41

Aquele nosso pirata acumulava tudo aquilo que havia saqueado em todas as partes para a perda nossa e dele na caverna de sua Cariacutebdis Digo Cariacutebdis ela apoacutes ter tragado navios repletos diz-se que regurgita os naufraacutegios e coloca nos litorais de Taormina os navios retorcidos no fundo (Pan Lat 2[12]264)42

O aspecto de semelhanccedila nesse contexto eacute a monstruosidade de ambos os imperadores que de suas

respectivas cavernas figurativamente se alimentam dos cidadatildeos ou de seus bens Tal monstruosidade eacute em

ambos os discursos encomiaacutesticos parte da amplificaccedilatildeo que eacute o principal recurso da prosa epidiacutetica (Arist

Rh 1368a Quint Inst 8427) cujo efeito nesse caso eacute transformar Maacuteximo e Domiciano nos piores

exemplos de imperadores em relaccedilatildeo aos quais as imagens positivas de Teodoacutesio e Trajano satildeo cada vez mais

valorizadas

Mais uma vez estaacute evidente que as referecircncias entre os dois textos natildeo se datildeo frequentemente por meio de

menccedilotildees citaccedilotildees ou intertextos diretos mas pela apropriaccedilatildeo de estruturas argumentativas mais amplas

que verificadas e interpretadas colocam os textos em paralelo Desse modo o que se apresenta eacute a questatildeo

teoacuterica mais abrangente em torno dos discursos epidiacuteticos que natildeo se refere apenas agrave estrutura ou ao estilo

mas tambeacutem a como esse tipo de discurso precisaria ser pensado diante das diferentes condiccedilotildees de

produccedilatildeo e pronunciamento exigidas em ambiente imperial Pliacutenio e Pacato administram em seu texto na

40 ldquoRemoramur resistimus ut in communi domo quam nuper immanissima bellua plurimo terrore munierat quum velut quodam specu inclusa nunc propinquorum sanguinem lamberet nunc se ad clarissimorum civium strages caedesque proferret []on adire quisquam non adloqui audebat tenebras semper secretumque captantem nec unquam ex solitudine sua prodeuntem nisi ut solitudinem faceretrdquo 41 Conforme descreve Grimal (2005 p 74) Cariacutebdis era uma filha da Terra e de Poseidon que tendo devorado alguns animais do rebanho de Geacuterion foi punida por Zeus que a transformou em um monstro e a lanccedilou no fundo do mar Assim passou a viver no estreito de Messina onde ldquoabsorvia trecircs vezes por dia uma grande quantidade de aacutegua do mar arrastando para as suas fauces tudo que flutuava Deste modo engolia os navios que se encontravam nessas paragens Depois expelia a aacutegua que tinha absorvidordquo (GRIMAL 2005 p 74) 42 ldquoNoster ille pirata quidquid undecumque converrerat id nobis sibique periturum in illam specus sui Charybdim congerebat Charybdim loquor quae cum plena navigia sorbuerit dicitur tamen reiectare naufragia et contortas fundo rates Tauromenitanis litoribus exponererdquo

[65]

interligaccedilatildeo entre sinceridade e comparaccedilatildeo pelo negativo o que Kelly (2015 p 217) chamou de ldquoparadoxo

inevitaacutevel dos louvoresrdquo Trata-se de uma caracteriacutestica intriacutenseca aos textos de tipo epidiacutetico ocasionada

sobretudo por seu aspecto cerimonial Ao panegirista eacute requisitado que louve algueacutem mas ao mesmo

tempo seu louvor estaacute continuamente sob um olhar desconfiado que duvida natildeo soacute de sua importacircncia mas

de sua veracidade Nos panegiacutericos examinados neste trabalho os oradores constroem certas estruturas que

buscam garantir a legitimidade desse mesmo elogio Uma dessas estruturas eacute a admissatildeo do fato de que o

louvor pode de fato ser adulaccedilatildeo e que na verdade o foi no contexto anterior mas natildeo o eacute no contexto

presente em que eacute possiacutevel falar abertamente dos defeitos de um imperador anterior43 Essa eacute uma

problemaacutetica proacutepria do louvor imperial romano para a qual Pliacutenio parece encontrar uma soluccedilatildeo que Pacato

reconhece concorda adota e desenvolve Diante dessas aproximaccedilotildees as relaccedilotildees estabelecidas por Pliacutenio

e Pacato satildeo consistentemente explicadas por Kelly (2015 p 217) quando este afirma que ldquoo brilho de um

orador jaz natildeo na invenccedilatildeo de algo completamente novo [] mas em como elementos costumeiros do elogio

satildeo selecionados e costurados da maneira mais apropriada para as circunstacircncias presentesrdquo44

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43 Esse processo tem efetividade apenas diante de uma seacuterie de outros argumentos que satildeo tecidos ao longo dos discursos como os conselhos sejam abertos ou velados a esses imperadores presentes Nesse sentido mesmo alguns erros dos governantes elogiados satildeo admitidos em contexto retoacuterico Cf Pan Lat 2(12) 231 44 ldquoThe brilliance of an orator lay not in the invention of some startlingly novel argument [hellip] but in how customary elements of praise were selected and knitted together in a manner most appropriate to present circumstancesrdquo

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GIESEN K R BAPTISTA N H T ldquoet rei et famae bene consulit munificus imperatorrdquo as estruturas epidiacuteticas e as relaccedilotildees poliacuteticas no Panegiacuterico a Teodoacutesio de Pacato Drepacircnio (submetido agrave revista)

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WHITTON C Plinyrsquos Progress on a Toublesome Domitianic Career Chiron v 45 2015 p 1-22

Lector studiose o leitor nas Metamorfoses de Apuleio

Rayana da Costa Teles Barreto

grayana07007gmailcom

Isabella Tardin Cardoso

itardincardosogmailcom

O presente artigo que sumariza parte

da pesquisa de Mestrado em andamento no

Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Linguiacutestica

do IEL ndash Unicamp foi desenvolvido com

apoio da Coordenaccedilatildeo de Aperfeiccediloamento

de Pessoal de Niacutevel Superior (CAPES) ndash

Coacutedigo de Financiamento 001

(Processo n 888873348102019-00)

Este estudo trata das imagens e do papel atribuiacutedo ao leitor no

romance antigo Metamorphoses (Metamorphoseon Libri) de Apuleio

(125-170 dC) tambeacutem conhecido como O Asno de Ouro (Asinus

Aureus) desde sua recepccedilatildeo na Antiguidade tardia Com esse

enfoque pretende-se colaborar com interpretaccedilotildees mais recentes

que embora evidenciem a complexidade alusiva do texto apuleiano

(HARRISON 2003) ainda natildeo apontam para uma revisatildeo

sistemaacutetica do estatuto de um leitor que as reconheceria Ao

considerar as referecircncias expliacutecitas ao leitor vai-se apontar para

caracteriacutesticas nele inferidas que ao mesmo tempo apontam para

seu papel nas narrativas sobrepostas bem como no consequente

jogo de espelhamentos que conforme defendemos se fazem notar

na ficccedilatildeo apuleiana

[68]

Introduccedilatildeo

Escrito no seacuteculo II de nossa era1 as Metamorfoses (ou O Asno de Ouro)2 de Apuleio (125-170 dC) conta a

histoacuteria de um jovem abastado de nome Luacutecio que ao viajar para Tessaacutelia mdash uma cidade conhecida por ser o

antro da magia mdash acaba se metamorfoseando em asno Apoacutes a transformaccedilatildeo fatiacutedica motivada pela

curiosidade e o desejo de conhecer a ars magica o jovem protagonista passa a enfrentar diversos reveses ateacute

retornar agrave forma humana o que se deu atraveacutes da intervenccedilatildeo da deusa Iacutesis

Tratamos aqui de uma obra de ficccedilatildeo escrita em prosa mdash algo que se considera inovador para a Roma da

eacutepoca de Apuleio3 mdash e que modernamente ainda que natildeo sem polecircmica (HARRISON 1999 p xi) eacute

classificada no gecircnero ldquoromancerdquo antigo4 Ora a natureza episoacutedica do texto convida o leitor a apreciar

diferentes histoacuterias (as uariae fabulae que o narrador propotildee logo no iniacutecio da obra Apul Met 11) Todas

elas segundo salientamos podem ser alinhavadas na narrativa principal isto eacute nas aventuras de Luacutecio Essa

afirmaccedilatildeo nos parece necessaacuteria porque nas leituras que foram feitas ao longo dos seacuteculos estudiosos nem

sempre vislumbraram coesatildeo e coerecircncia no texto apuleiano

Ateacute o iniacutecio do seacuteculo XX a criacutetica sobre a ficccedilatildeo apuleiana pouco ou nada valorizava o caraacuteter fragmentaacuterio

da narrativa considerando-a sobretudo desarmocircnica Nesse sentido as Metamorfoses apresentariam uma

linha narrativa confusa e inconsistente em muito devido agrave referida sobreposiccedilatildeo de episoacutedios (PERRY 1967

HARRISON 2003)5 Dentre as criacuteticas agrave ficccedilatildeo apuleiana uma diz respeito mais diretamente agrave recepccedilatildeo as

Metamorfoses eram destinadas a um puacuteblico pouco exigente os leitores do tempo de Apuleio (CAVALLO

1997)

Hoje em dia se sabe que a ficccedilatildeo apuleiana superou sua eacutepoca e teve amplo impacto sobre autores ceacutelebres

posteriores como Petrarca (1304-1374) Boccaccio (1313-1375) Shakespeare (1564-1616) para citar

apenas alguns renascentistas mais famosos No portuguecircs destacam-se nada menos que Fernando Pessoa

(1888-1935) e Machado de Assis (1839-1908) Tudo isso evidencia a recepccedilatildeo bastante profiacutecua que teve a

obra em tempos modernos Eacute notoacuterio que as dificuldades em reconstituir o horizonte de expectativa

1 Sobre a dataccedilatildeo das Metamorfoses apuleianas cf Harrison (2000 p 9-10) e Barreto Cardoso (2018 p 27) 2 Vale notar que o duplo tiacutetulo da ficccedilatildeo apuleiana jaacute aparece em sua recepccedilatildeo na Antiguidade Tardia como testemunham leitores studiosissimi no seacuteculo IV Santo Agostinho (cf De Ciuitate Dei 18 18) se refere agrave ficccedilatildeo apuleiana como Asinus Aureus (SANDY 1997 p 233 HARRISON 1999 p xxvi-xxvii) Em seguida Fulgecircncio (seacuteculos V-VI dC) menciona ambos os tiacutetulos (Metamorfoses em Myth 36 e Expos Serm Ant 36 O Asno de Ouro em Expos Serm Ant 17 40) O tiacutetulo Metamorfoses (Metamorphoseon libri) eacute o uacutenico mencionado nos manuscritos no entanto a expressatildeo O Asno de Ouro costuma ser mais empregada cf discussatildeo em Harrison (2000 p 210-1) e Barreto Cardoso (2018 p 28) 3 Para um panorama dos leitores antigos das Metamorfoses apuleianas cf Barreto Cardoso (2018) 4 Dentre os ldquoromancesrdquo produzidos em Roma antiga a obra de Apuleio eacute a uacutenica transmitida integralmente uma vez que o Satyricon de Petrocircnio (seacuteculo I d C) apresenta trechos lacunares e corrompidos (CONTE 1994 p 559) Sobre o gecircnero ldquoromancerdquo antigo de modo geral cf Callebat (1998) Harrison (1999) 5 Para um panorama das criacuteticas cf Teixeira (2000) que analisa em especial o papel de Perry (1967) no debate sobre a obra Cf ainda Barreto Cardoso (2018 p 29)

[69]

previsto na Teoria de Recepccedilatildeo de Jauss (1967) de uma obra tal como as Metamorfoses de Apuleio se devem

agrave escassez de testemunhos acerca de sua recepccedilatildeo coeva algo comum agraves demais ficccedilotildees em prosa da

Antiguidade (HARRISON 2003 CARVER 2007) Aleacutem disso eacute verdade que o primeiro registro

remanescente sobre Apuleio uma carta escrita por Seacutetimo Severo (imperador de Roma entre 193 e 211 dC)

natildeo eacute nada elogioso para o leitor de Apuleio

Maior fuit dolor quod illum pro litterato laudandum plerique duxistis cum ille neniis quibusdam anilibus occupatus inter Milesias Punicas Apulei sui et ludicra litteraria consenesceret (Septimus Severus SHA Clod Alb 12 12 grifos nossos)

Foi uma dor maior para mim que muitos de vocecircs consideraram que ele merece louvor como homem de literatura ao passo que ele se ocupava com certos absurdos ou outras ninharias para mulheres velhas e estava ficando senil entre os contos puacutenicos milesianos de seu caro Apuleio e tais trivialidades literaacuterias (Traduccedilatildeo nossa)

Posteriormente o parecer de Macroacutebio (entre os seacuteculos IV-V dC) em O sonho de Cipiatildeo (Somnium Scipionis)

condena a ficccedilatildeo em prosa propriamente dita ao consideraacute-la mera provocaccedilatildeo destinada a um puacuteblico

menos instruiacutedo

Auditum mulcent hellipargumenta fictis casibus amatorum referta quibus vel multum se Arbiter exercuit vel Apuleium non nunquam lusisse miramur Hoc totum fabularum genus quod solas aurium delicias profitetur e sacrario suo in nutricum cunas sapientiae tractatus eliminat (Macrobius Somn 1 2 8)

Nossa audiccedilatildeo fica encantada por enredos cheios das vicissitudes fictiacutecias dos amantes sobre as quais Petrocircnio despendeu muito trabalho e com os quais nos surpreendemos que frequentemente mesmo Apuleio se tenha divertido Todo esse tipo de histoacuteria uma vez que serve apenas aos prazeres dos ouvidos o tratado da sabedoria expulsa de seu santuaacuterio e impele aos berccedilos das amas (Traduccedilatildeo nossa)

Referida como ldquoninharias para mulheres velhasrdquo e ldquoliteratura de berccedilos de amasrdquo uma menccedilatildeo francamente

pejorativa nas passagens acima referidas a ficccedilatildeo em prosa de Apuleio era desde seus primeiros registros

remanescentes apontada como sendo destinada a um puacuteblico menos instruiacutedo do que senadores e autores

dignos desse nome6 No entanto conforme sugerimos na proacutexima seccedilatildeo o texto apuleiano contava tambeacutem

com a possibilidade de ter um leitor um pouco mais sofisticado

O lector nas Metamorfoses

O leitor eacute abertamente referido pela narrativa ao longo dos onze livros que compotildeem as Metamorfoses de

Apuleio A seguir elencaremos uma amostra de passos em que a menccedilatildeo a tal puacuteblico eacute mais expliacutecita

Vejamos inicialmente como isso se daacute no proacutelogo da obra

6 Sobre a menccedilatildeo aos contos milesianos nessa passagem cf Barreto Cardoso (2018 p 32)

[70]

At ego tibi sermone isto Milesio uarias fabulas conseram auresque tuas beniuolas lepido susurro permulceam mdash modo si papyrum Aegyptiam argutia Nilotici calami inscriptam non spreueris inspicere mdash figuras fortunasque hominum in alias imagines conuersas et in se rursum mutuo nexu refectas ut mireris (Apul Met 11 grifos nossos)

Com esta minha narrativa mileacutesia eu gostaria de entrelaccedilar para ti histoacuterias variadas e afagar os teus bem-dispostos ouvidos com um elegante sussurro ndash desde que natildeo desdenhes lanccedilar os olhos sobre um papiro egiacutepcio escrito com a sutileza de um caacutelamo do Nilo Iraacutes apreciar com espanto as metamorfoses operadas na figura e na fortuna de seres humanos que assumiratildeo outras formas ateacute retomarem novamente a condiccedilatildeo inicial no termo de uma cadeia de reciacuteprocas ligaccedilotildees

No proacutelogo das Metamorfoses (11) mais precisamente na expressatildeo inicial at ego tibi (literalmente ldquomas eu a

tirdquo) jaacute se apontou que o emprego do dativo eacutetico tibi seguido do pronome ego logo no iniacutecio da narrativa

associa o falante do proacutelogo diretamente ao seu destinataacuterio7 No final desse passo lecirc-se

En ecce praefamur ueniam siquid exotici ac forensis sermonis rudis locutor offendero Iam haec equidem ipsa uocis immutatio desultoriae scientiae stilo quem accessimus respondet Fabulam Graecanicam incipimus Lector intende laetaberis (Apul Met 11 grifos nossos)

E desde jaacute apelo agrave tua benevolecircncia para o caso de te ofender a sensibilidade ao exprimir-me com pouca elegacircncia na liacutengua do foacuterum para mim estrangeira Aliaacutes estas variaccedilotildees de linguagem ateacute vecircm ao encontro do gecircnero que eu cultivo como um cavaleiro que salta de montada ndash pois eacute da Greacutecia que provem a histoacuteria que passarei a narrar Leitor presta atenccedilatildeo vais ficar deleitado (Trad de D Leatildeo 2007 grifos nossos)

Por meio das palavras lector intende laetaberis (isto eacute ldquoleitor presta atenccedilatildeo vais ficar deleitadordquo) conclui-

se portanto a promessa de entreter o leitor por meio de histoacuterias variadas (uarias fabulas) Por um lado tal

anuacutencio da variedade pode levar a pressupor num primeiro momento uma menor exigecircncia quanto agrave leitura

que poderia ser mais dispersa menos aprofundada mdash tal como a obra foi considerada por muito tempo pelos

estudiosos Mas por outro lado a riqueza de detalhes e uma cadeia complexa de possiacuteveis interpretaccedilotildees

presentes no proacutelogo tambeacutem exigem a atenccedilatildeo do leitor (lector intende) Essa passagem das Metamorfoses

efetivamente se tornou desde o seacuteculo XX objeto de grande interesse nas pesquisas sobre a obra

Apoacutes o proacutelogo a proacutexima menccedilatildeo direta ao leitor ocorre apenas no livro nove das Metamorfoses (9 30)

Sed forsitan lector scrupulosus reprehendens narratum meum sic argumentaberis Vnde autem tu astutule asine intra terminos pistrini contentus quid secreto ut adfirmas mulieres gesserint scire potuisti Accipe igitur quem ad modum homo curiosus iumenti faciem sustinens cuncta quae in perniciem pistoris mei gesta sunt cognoui (Apul Met 930 grifos nossos)

Mas talvez leitor escrupuloso tu venhas criticar a minha narraccedilatildeo com argumentos deste tipo ldquoE entatildeo como eacute que tu um burro tatildeo astuto mas que estava encerrado no interior do moinho conseguiste saber o que essas mulheres andavam a maquinar ainda por cima em segredo como tu mesmo afirmasrdquo Pois fica entatildeo a conhecer a forma como este homem

7 Para uma anaacutelise mais completa das referecircncias ao narrador e ao leitor no proacutelogo cf Barreto Cardoso (2018)

[71]

curioso disfarccedilado embora sob o aspecto de um jumento se inteirou de toda a trama urdida para causar a perdiccedilatildeo do meu moleiro (Trad de D Leatildeo 2007 grifos nossos)

O narrador Luacutecio nessa ocasiatildeo conta a histoacuteria de um adulteacuterio segundo a qual um moleiro apoacutes descobrir

as traiccedilotildees de sua mulher e pedir o divoacutercio eacute assassinado por uma feiticeira a pedido da esposa Em tal

passagem por um lado o leitor imaginado pelo narrador eacute caracterizado como escrupuloso (lector

scrupulosus) a ponto de poder questionar sobre a proacutepria coerecircncia ou verossimilhanccedila da narrativa Por

outro lado qualificar o narrador Luacutecio como curiosus (ldquoesse homem curioso disfarccedilado embora sob o aspecto

de um jumentordquo) em meio a tatildeo chamativo episoacutedio tem um efeito reciacuteproco de enfatizar a curiosidade do

leitor e despertar o interesse na narraccedilatildeo

Em outro passo a referecircncia a um leitor criacutetico se daraacute natildeo pelo substantivo lector e sim pelo pronome

indefinido nequis (mais precisamente nequis reprehendat isto eacute ldquoque ningueacutem me repreendardquo) Ali o

narrador interrompe sua digressatildeo filosoacutefica quando pressupotildee certa insatisfaccedilatildeo do puacuteblico (Apul Met

1033)

Contudo antes disso o leitor jaacute fora adjetivado e dessa vez eacute qualificado como um optime lector isto eacute um

leitor oacutetimo ldquobenignordquo (lector optime Apul Met 102) Nesta menccedilatildeo o lector eacute convidado pelo narrador a

ldquotrocar os socos rasteiros pela elevaccedilatildeo do coturnordquo (a socco ad coturnum ascendere) Com referecircncia aos

calccedilados emblemaacuteticos de cada gecircnero dramaacutetico (o soco para o cocircmico e o coturno para o traacutegico) o leitor

eacute advertido que leraacute daquele trecho em diante algo proacuteximo de uma ldquotrageacutediardquo (tragoedia em que se usavam

coturnos) natildeo mais uma peccedila ou histoacuteria (fabula) qualquer

Eacute na uacuteltima passagem em que o termo lector eacute mencionado que se pressupotildee seu interesse (isto eacute seu studium

referido pelo adjetivo studiosus) Trata-se de um interesse quanto a novos acontecimentos ocorridos na

ocasiatildeo em que Luacutecio havia sido convertido agrave religiatildeo Isiacuteaca e retomado sua forma humana Nesse momento

novamente se interrompe a narrativa dos fatos o que evoca uma possiacutevel intervenccedilatildeo do leitor

Quaeras forsitan satis anxie studiose lector quid deinde dictum quid factum dicerem si dicere liceret cognosceres si liceret audire Sed parem noxam contraherent et aures et lingua ltista impiae loquacitatisgt illae temerariae curiositatis (Apul Met 1123 grifos nossos)

Talvez oacute leitor desejoso de aprender tu te perguntes com ansioso interesse o que depois se disse e se fez Di-lo-ia se fosse liacutecito dizecirc-lo e tu ficarias a saber se te fosse liacutecito escutar Poreacutem tanto a liacutengua como os ouvidos iriam incorrer em falta idecircntica aquela por iacutempia loquacidade estes por temeraacuteria curiosidade (Trad de D Leatildeo 2007 levemente modificada por noacutes grifos nossos)

Esta derradeira menccedilatildeo ao lector na obra Metamorfoses contrasta com o que se diz daquela no proacutelogo da

obra trecho em que notadamente se evoca os ouvidos do leitor A ldquotemeraacuteria curiosidaderdquo (illae temerariae

curiositatis) eacute um elemento que como apontamos em estudo anterior (BARRETO CARDOSO 2017)

caracteriza natildeo apenas o narrador Luacutecio como tambeacutem a personalidade de Psiquecirc Para aleacutem dos possiacuteveis

[72]

significados que o termo curiositas possa evocar dentro da narrativa8 tal analogia mostra-se expressiva Isso

porque a curiositas eacute a nosso ver o fio condutor das Metamorfoses que permite precisamente costurar os

pequenos episoacutedios que as compotildeem Essa analogia entre o narrador principal e a personagem de um dos

episoacutedios mais importantes dentre os que integram o romance como um todo eacute aqui estendida ao proacuteprio

leitor Conforme DeFillipo (1999 p 276 traduccedilatildeo nossa) afirma

O fato de que Luacutecio e o scrupulosus lector teriam recebido uma puniccedilatildeo igual por meio da curiositas sugere que ambos satildeo igualmente culpados por ela Mas eacute difiacutecil compreender se a curiositas eacute mera curiosidade pois ao narrar acerca dos ritos isiacuteacos Luacutecio natildeo estaria satisfazendo seu proacuteprio desejo de conhecer mas antes os nossos como leitores do romance 9

Consideraccedilotildees finais

Ao tratar dos excertos referentes ao leitor no texto das Metamorfoses eacute possiacutevel constatar que a curiositas

mdash tema fundamental e recorrente no enredo mdash eacute tambeacutem associada ao processo narrativo Isso ocorre

quanto agrave sua produccedilatildeo (embasando mais de uma vez a verossimilhanccedila relativa agrave autoridade do narrador)

mas tambeacutem quanto agrave sua recepccedilatildeo na medida em que tambeacutem assim o lector eacute caracterizado Ocorre pois

a identificaccedilatildeo do leitor com o proacuteprio narrador-personagem esse eacute um dos efeitos da proximidade entre

Luacutecio Psiquecirc e o lector (scrupulosus studiosus optimus) ressaltada pelo vieacutes da curiosidade

Eacute tentador reconhecer que haveria aqui mdash nos moldes do que defendem teoacutericos modernos na linha da

Teoria da Recepccedilatildeo (JAUSS 1994 ISER 2002 [1989]) ou da ldquoReader-response criticismrdquo (FISH 1992) mdash um

aceno para o reconhecimento da funccedilatildeo que o leitor teria na narrativa do romance apuleiano Eacute de se

perguntar se tal reconhecimento apontaria mesmo para uma dependecircncia do papel do leitor isto eacute para se

inferir que Apuleio reconhecia que a tal leitor caberia dar coesatildeo ele mesmo agraves mais frouxas relaccedilotildees entre

as fabulae

Esses aspectos mereceratildeo ainda uma investigaccedilatildeo mais aprofundada em nossa pesquisa levando em conta

tambeacutem referecircncias menos diretas ao leitor ao longo do texto apuleiano e em outra fase o papel do tradutor

como leitor privilegiado da obra No entanto por ora dentre os efeitos da identificaccedilatildeo narradorndash

personagensndashleitor na estrutura e interpretaccedilatildeo desse romance antigo jaacute podemos constatar um aspecto

bastante significativo para sua recepccedilatildeo ao transferir tal caracteriacutestica para o leitor a ficccedilatildeo apuleiana

tematiza o proacuteprio ato de leitura e sua permanente metamorfose

8 Cf Barreto Cardoso (2017) 9 ldquoThe fact that Lucius and the scrupulosus lector would contract an equal punishment for curiositas suggests that they are both equally guilty of it But this is difficult to understand if curiositas is mere curiosity for in telling about the Isiac rites Lucius would not be satisfying his own desire to know but rather ours as readers of the novelrdquo

[73]

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A

construccedilatildeo do eacutethos do autor no Octavius de Minuacutecio Feacutelix

Marcela da Penha Coco

marcelapcocogmailcom

Neste estudo discutimos alguns aspectos da construccedilatildeo do eacutethos

de Minuacutecio Feacutelix no preacircmbulo de sua obra Octavius Nosso

objetivo ao analisar como Minuacutecio Feacutelix articula as relaccedilotildees de

amizade entre as personagens apresentadas no diaacutelogo Octavius eacute

demonstrar que tornando as personagens modelos claramente

dicotocircmicos o autor constroacutei de forma sutil sua posiccedilatildeo em relaccedilatildeo

ao discurso apologeacutetico cristatildeo enunciado ao longo da obra de

modo a utilizar de estruturas retoacuterico-discursivas claacutessicas

conhecidas e esperadas do puacuteblico letrado do periacuteodo e portanto

a expressar uma autoridade persuasiva Visamos aleacutem disso

demostrar que o eacutethos construiacutedo ao longo do preacircmbulo de

Octavius tem uma premissa clara ser compatiacutevel com o objetivo de

criar uma identidade cristatilde para os adeptos do cristianismo

primitivo no final do seacuteculo II e iniacutecio do III de nossa era Para esse

fim nos embasaremos estudos da Retoacuterica Antiga parte essencial

da educaccedilatildeo ou paideia antiga e dos Estudos do Discurso

contemporacircneos nossos

A partir do seacuteculo IV os entrelaccedilamentos de Estado Romano e

Igreja cristatilde se tornam mais amplos e complexos se por um lado

haacute o interesse em manter relaccedilotildees e posiccedilotildees por aqueles

pertencentes agrave Igreja por outro existiam perspectivas adversas a

esses interesses Das Como defende Cameron (1991 p 129-130)

escrever acerca do governo imperial nos seacuteculos IV e V era versar

[75]

sobre o imperador daiacute a produccedilatildeo de diversos panegiacutericos praacutexis que natildeo foi ignorada no desenvolvimento

da retoacuterica cristatilde que por sua vez antes de optar por uma via de confronto fez a escolha por uma que

minimizava as tensotildees demostrando a importacircncia do apoio imperial para a Igreja cristatilde Tal esforccedilo pode

ser observado no empenho para equalizar as praacuteticas cristatildes aos interesses da poliacutetica imperial

principalmente no governo de Constantino I Por isso podemos dizer que no seacuteculo IV jaacute havia um

determinado aparato que permitia posiccedilotildees menos veladas e mais consistentes no sentido da possibilidade

de manifestaccedilotildees independentes da posiccedilatildeo ocupada pelo indiviacuteduo que tomasse para si a tarefa de emitir

um discurso fosse ele favoraacutevel ou contraacuterio agrave Igreja cristatilde tendo isso se dado sem duacutevida atraveacutes do uso

da formaccedilatildeo educacional retoacuterica compartilhada por cristatildeos e politeiacutestas (CAMERON 1991 p 129-130)

No entanto o contexto do seacuteculo IV eacute radicalmente distinto de periacuteodos anteriores como o que circundou a

produccedilatildeo da obra Otaacutevio de Minuacutecio Feacutelix Nosso objeto de pesquisa foi produzido em um contexto de

distintas praacuteticas religiosas entre os seacuteculos II e III no qual Minuacutecio Feacutelix se esforccedilou na tentativa por

equilibrar o peso da tradiccedilatildeo politeiacutesta muito presente na sociedade romana frente agrave nova praacutetica religiosa

cristatilde Para Marta Alesso (2006 p 32) o seacuteculo II eacute significativo no que diz respeito a um esforccedilo mais

concentrado para a produccedilatildeo de discursos de cunho apologeacutetico cristatildeo em funccedilatildeo das querelas fruto das

imagens discursivas produzidas tanto por cristatildeos acerca dos praticantes da religio1 politeiacutesta quanto por

estes em relaccedilatildeo aos primeiros Nesse sentido argumenta Alesso (2016 p 32) foi imperativo aos apologistas

cristatildeos adequarem seus discursos ao ambiente e aos ouvintes para evidenciarem uma imagem do

cristianismo contraacuteria agrave produzida pelos autores pagatildeos

Para Moreschini e Norelli (2014 p 442) a proviacutencia romana da Aacutefrica teve elevada importacircncia nos seacuteculos

II e III no contexto do desenvolvimento da literatura cristatilde tendo o processo de difusatildeo do cristianismo

exigido o enfrentamento da ldquonecessidade de dirigir-se a uma classe social elevada e interessada na culturardquo

(MORESCHINI NORELLI 2014 p 442) Na perspectiva dos autores (MORESCHINI NORELLI 2014 p

442) a principal caracteriacutestica da proviacutencia era a ldquoforte romanizaccedilatildeordquo elemento que foi expresso nas

1 O termo latino religio traduzido com frequecircncia por religiatildeo exige a tentativa de tornar mais niacutetido as distinccedilotildees de seu uso na Antiguidade Claacutessica sob o ponto de vista dos praticantes dos cultos politeiacutestas e o uso proposto pelos autores cristatildeos Para Cristiane Azevedo (2010 p 91-92) o deslocamento que ocorre no significado do termo religio foi importante para atender o anseio de demarcar fronteiras entre os cultos politeiacutestas e cristatildeos Nelson Bondioli (2014 p 21) aponta que ldquoo termo podia apresentar duas acepccedilotildees dependendo do autor que o utilizava uma conectando-o ao termo religare no sentido da existente ligaccedilatildeo entre os homens e os deuses e outra ao termo religere enfatizando a necessidade da devida observacircncia religiosardquo Portanto religere estaacute intrinsicamente ligado ao sentido defendido por Ciacutecero no diaacutelogo De Natura Deorum obra na qual ele afirma a superioridade dos romanos na observacircncia dos cultos aos deuses (Cic Nat Deo II 8) Em contraponto os autores cristatildeos optaram pelo uso na acepccedilatildeo religere Para Carlo Prandi (1999 p 256) os escritores cristatildeos como Lactacircncio (240-320 EC) buscaram ldquoredirecionar o termo religio de modo que fosse capaz de exprimir tanto o conceito de transcendecircncia segundo o pensamento cristatildeo quanto ndash mais do que o comportamento do crente ndash a natureza da relaccedilatildeo de feacute instaurada pelo cristianismo entre o humano e o niacutevel divinordquo Dessa maneira o uso cristatildeo do termo religio se distancia da acepccedilatildeo que prima pelo zelo aos ritos associados aos cultos deslocando-se para a ligaccedilatildeo que os cristatildeos deveriam ter ou desenvolver com a divindade cristatilde

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manifestaccedilotildees literaacuterias cristatildes uma vez que ldquoa retoacuterica percorre profundamente as obras de todos os

escritores africanos do seacuteculo III os quais a possuiacuteam decerto jaacute antes da conversatildeordquo de modo que

O seacuteculo III dC eacute o periacuteodo em que eacute preponderante na vida cultural cristatilde a proviacutencia romana da Aacutefrica esse fato natildeo passa do natural prosseguimento em acircmbito cristatildeo de uma evoluccedilatildeo da cultura latina pagatilde que no seacuteculo II tinha sido essencialmente africana Tertuliano Minuacutecio e Cipriano satildeo equivalentes naturais no plano da cultura e da literatura cristatilde de Frontatildeo e Apuleio (MORESCHINI NORELLI 2014 p 426)

Em contraste com o final do seacuteculo II e iniacutecio do III periacuteodo estimado da escrita de Octavius no seacuteculo IV ldquoos

escritores cristatildeos tinham ousado em quase todos os gecircneros da literatura tradicionalrdquo (LEMOS 2009 p 93)

Emular os autores tradicionais natildeo deixou de ser algo valorado de forma positiva contudo

As formas tradicionais ganharam novos conteuacutedos para expressar a doutrina cristatilde polemizar comunicar dogmas [] e especialmente preservar por escrito uma memoacuteria que dava aos seguidores de Cristo um passado comum referecircncias para organizar a vida suas praacuteticas cotidianas e se posicionarem no Impeacuterio e em relaccedilatildeo ao monarca (LEMOS 2009 p 93)

O diaacutelogo Octavius tem sido classificado por muitos autores como uma apologia Johannes Quasten (2004 p

460) defende ser essa a primeira apologia produzida em Roma e situa Minuacutecio Feacutelix ao lado de importantes

nomes da histoacuteria do cristianismo como Hipoacutelito de Roma (170 ndash 235) conhecido por sua erudiccedilatildeo e

Novaciano (200 ndash 258) o primeiro teoacutelogo a escrever em liacutengua latina Quasten ainda aponta que o diaacutelogo

Octavius faz uma defesa esmerada da feacute cristatilde mas busca natildeo ser ofensivo aos praticantes dos cultos

politeiacutestas Victor Sanz Santacruz (2000 p 23) em concordacircncia com o teor apologeacutetico da obra afirma que

uma das caracteriacutesticas mais expressivas de Octavius satildeo as influecircncias literaacuterias greco-romanas de Minuacutecio

Feacutelix notaacuteveis em meio ao diaacutelogo estando entre elas Platatildeo e Ciacutecero

Argentino Cescon (2015 p 25) tambeacutem eacute categoacuterico na defesa do caraacuteter filosoacutefico religioso da obra de

Minuacutecio Feacutelix e aponta que seu objetivo eacute ldquoapologeacutetico missionaacuteriordquo Em mesma perspectiva Silva (1990 p

38) ressalta o empenho de Minuacutecio Feacutelix em propor a adesatildeo agrave praacutetica religiosa cristatilde ao longo do diaacutelogo

buscando refutar as acusaccedilotildees mais recorrentes aos cristatildeos como a de incesto e que ele ldquorestringe-se ao

objectivo de formalizar uma nova cultura que tenha como objetivo remover os obstaacuteculos agrave aceitaccedilatildeo da feacute

cristatilderdquo (SILVA 1990 p 38) Nesse quesito a nosso ver satildeo de especial relevacircncia para esclarecer quaisquer

duacutevidas em relaccedilatildeo ao conteuacutedo apologeacutetico de Octavius os testemunhos de Lactacircncio no livro V de

Instituiccedilotildees Divinas e de Satildeo Jerocircnimo na obra Sobre os Homens Ilustres pois ambos os autores apontam as

contribuiccedilotildees de Minuacutecio Feacutelix na difusatildeo e defesa da feacute cristatilde (MORESCHINI NORELLI 2005 p 213)

Entretanto usaremos o termo apologia em nosso trabalho mas natildeo como um gecircnero discursivo A apologia

natildeo era um gecircnero literaacuterio bem definido na Antiguidade como a eacutepica ou a trageacutedia Somente a partir do

seacuteculo II podemos verificar o uso do termo em sentido de defesa do discurso cristatildeo (EDWARDS et al 1999

[77]

p 1-2) Mas o termo apologia jaacute era usado em contextos distintos desde o seacuteculo IV AEC como nas obras

Apologia a Soacutecrates de Platatildeo e de Xenofonte ambas defesas do filoacutesofo (ARZANI VENTURINI 2011 p 3)

ou na Apologia de Apuleio de Madaura (125-170) defesa do processo de acusaccedilatildeo de uso de magia para

contrair matrimocircnio com uma viuacuteva de condiccedilatildeo abastada (EDWARDS et al 1999 p 3) Lima Neto (2015 p

209-228) esclarece acerca da Apologia de Apuleio de Madaura afirmando que havia outras acusaccedilotildees contra

Apuleio como as de ser eloquente e belo e de ter produzido escritos de cunho eroacutetico entre outras As

acusaccedilotildees aleacutem de irem de encontro agrave tentativa de fortalecer o suposto uso de magia para seduzir Emiacutelia

Pudentila tambeacutem traziam prejuiacutezos agrave imagem de filoacutesofo de Apuleio e consequentemente aos argumentos

utilizados em sua defesa A principal diferenccedila entre os dois exemplos mencionados claro eacute que na Apologia

a Soacutecrates natildeo haacute intenccedilatildeo de reverter a sentenccedila uma vez que esta jaacute havia sido cumprida enquanto no

caso de Apuleio o objetivo eacute promover sua absolviccedilatildeo o que corrobora a definiccedilatildeo de Marta Alesso (2006

p 32) para quem a ldquoapologia em seu princiacutepio era um discurso juriacutedico dirigido a funcionaacuterios puacuteblicosrdquo

Segundo Edwards e outros (1999 p 4) haacute uma relativa distinccedilatildeo nas produccedilotildees de cunho apologeacutetico cristatildeo

dos primeiros seacuteculos da era comum essas obras a priori natildeo se destinavam a refutaccedilotildees nem mesmo agrave

ampliaccedilatildeo do nuacutemero de adeptos ao cristianismo a preocupaccedilatildeo de tais investimentos residiria no desejo de

extinguir as duacutevidas e solidificar a escolha dos novos cristatildeos ajustando suas praacuteticas com os pressupostos

jaacute existentes como seria por exemplo a funccedilatildeo das cartas do apoacutestolo Paulo aos Coriacutentios O termo apologia

foi utilizado com maior frequecircncia para designar obras que buscam promover a defesa do discurso cristatildeo

sobretudo apoacutes o seacuteculo II (EDWARDS et al 1999 p 1) Assim a apologia passou a significar a defesa de uma

determinada causa relevante para o emissor sendo ela no caso dos escritores cristatildeos a defesa do discurso

cristatildeo Como defende Richard A Norris Jr (2004 p 36 apud SANTOS 2017 p 62-63) ldquoo objetivo de tais

escritos eram em geral persuadir as autoridades de que as frequentes perseguiccedilotildees locais eram injustas

desnecessaacuterias e indignas de governantes esclarecidosrdquo Tambeacutem havia ldquouma explicaccedilatildeo das crenccedilas das

praacuteticas e da moral cristatildes que caminhavam para uma defesa Aleacutem disso as apologias tinham em sua base

uma refutaccedilatildeo de seus criacuteticos e apresentavam o cristianismo como superior agraves demais crenccedilasrdquo (SANTOS

2017 p 62-63) Empregamos portanto o termo em nossa pesquisa para analisar a obra de Minuacutecio Feacutelix

entendendo apologia natildeo como um gecircnero discursivo mas sim como uma forma mais simples e direta de

definir o conteuacutedo exposto no Octavius atraveacutes de um diaacutelogo esse sim um gecircnero tradicional de

conhecimento de toda a elite romana

Conforme Marta Alesso (2006 p 32) o gecircnero diaacutelogo foi na segunda metade do seacuteculo II EC muito

utilizado nos discursos de refutaccedilatildeo A estrutura que permite intercalar as falas das personagens favorecia a

exposiccedilatildeo dos pontos a serem confrontados e era de domiacutenio ldquoespecialmente por aqueles educados nas

escolas gregasrdquo (ALESSO 2006 p 32) Uma vez que a formaccedilatildeo intelectual da elite romana fosse ela cristatilde

ou politeiacutesta era compartilhada o conhecimento dos paracircmetros literaacuterios valorizados era de domiacutenio de

[78]

toda a aristocracia romana e o diaacutelogo filosoacutefico como forma de debate de ideias era um gecircnero

reconhecido Para Maingueneau (2018 p 244) a fluidez do gecircnero diaacutelogo o torna adequado a contrapor

diferentes conteuacutedos e ldquosua proximidade com o intercacircmbio conversacionalrdquo favorece a exposiccedilatildeo de pontos

de vistas discordantes sem um formato riacutegido propiciando a reflexatildeo

O emprego do gecircnero diaacutelogo na literatura latina sobretudo nos diaacutelogos de reflexatildeo filosoacutefica vem da

influecircncia da literatura grega sempre fonte de inspiraccedilatildeo principalmente os autores considerados claacutessicos

Um exemplo expressivo do emprego do gecircnero na literatura grega eacute Platatildeo (427ndash347 AEC) que acumulou

entre suas obras mais de vinte diaacutelogos dentre eles Fedro O Banquete e Timeu (REIS 2016 p 1) Para

Albrecht (1997 p 447) uma das peculiaridades dos diaacutelogos platocircnicos eacute a exposiccedilatildeo das falas das

personagens de maneira contiacutenua forma semelhante agrave que observamos no diaacutelogo Octavius apontado como

sendo um represente da literatura cristatilde (ALBRECHT 1997 p 447) Na literatura latina jaacute podemos

encontrar o gecircnero diaacutelogo sendo empregado por Ciacutecero Para Giuseppe Cambiano (2010 p 272) os

diaacutelogos de Ciacutecero foram compostos seguindo estrutura semelhante ao ldquoprocedimento judiciaacuteriordquo e que

quanto ao conteuacutedo este ldquonatildeo eacute constituiacutedo por temaacuteticas ou argumentaccedilotildees radicalmente novas com

respeito agravequelas jaacute elaboradas pela tradiccedilatildeo filosoacutefica gregardquo A tiacutetulo de exemplo podemos apontar o

diaacutelogo entre Veleio Lucilio Blabo e Cota no De Natura Deorum escrito em 45 AEC que traz as trecircs correntes

filosoacuteficas o epicurismo defendido pelo primeiro o estoicismo representado pelo segundo e por fim Cota

fazendo a defesa da academia (VENDEMIATTI 2003 p 12)

Todos os membros das elites do Impeacuterio Romano que passavam por algum niacutevel de escolaridade teriam

portanto familiaridade com o diaacutelogo como gecircnero apropriado para a filosofia e para a expressatildeo de

conceitos Para Joseacute Joaquim Pereira Melo (2011 p 37) a formaccedilatildeo educacional dos cristatildeos eacute resultado da

integraccedilatildeo que ocorreu entre a paideiacutea grega que congregava todos os valores formativos de virtude

acumulados pela tradiccedilatildeo por meio da literatura grega e da biacuteblia2 Esse equiliacutebrio entre educaccedilatildeo claacutessica e

doutrina cristatilde eacute fruto da compreensatildeo de que um trabalho de seleccedilatildeo e adaptaccedilatildeo dos elementos culturais

claacutessicos poderia gerar proveito para o cristianismo Contudo ldquoo ideal religioso dos cristatildeos estava alinhado

2 Segundo Jaeger (2018 p 351) a siacutentese da paideiacutea eacute uma educaccedilatildeo eacutetica e poliacutetica pois ldquonos tempos claacutessicos eacute essencial a ligaccedilatildeo entre a alta educaccedilatildeo e a ideia do Estado e da sociedaderdquo O uso do termo paideia eacute identificado a partir do V AEC Para Jaeger (2018 p 23) isso significa que para compreender a formaccedilatildeo educacional grega em sua amplitude eacute necessaacuterio recuar ao periacuteodo anterior a seu surgimento Ainda em sua perspectiva o ldquotema essencial da histoacuteria da formaccedilatildeo grega eacute antes o conceito de areteacute que remonta a tempos mais antigos [] a palavra ldquovirtuderdquo na sua acepccedilatildeo natildeo atenuada pelo uso moral e como expressatildeo do mais alto ideal cavalheiresco unido a uma conduta cortecircs e distinta e ao heroiacutesmo guerreiro talvez pudesse exprimir o sentido da palavra gregardquo E assim atraveacutes da expansatildeo do significado e da importacircncia do termo paideiacutea e ao relacionaacute-lo agrave ldquomais alta areteacute humanardquo pode-se combinar o ldquoconjunto de todas as exigecircncias ideais fiacutesicas e espirituais [] no sentido de uma formaccedilatildeo espiritual conscienterdquo (JAEGER 2018 p 335)

[79]

com a formaccedilatildeo cultural claacutessica mas sem se esquecer que a segunda deveria estar agrave serviccedilo da primeirardquo

(MELO 2011 p 40)

Esse ciacuterculo que inclui a formaccedilatildeo intelectual a seleccedilatildeo a adaptaccedilatildeo e o compartilhamento dos saberes pela

aristocracia romana natildeo eacute novidade no mundo romano Nos termos de Jaeger foi ldquodas necessidades mais

profundas da vida do Estado que nasceu a ideia da educaccedilatildeo a qual reconheceu no saber a nova e poderosa

forccedila espiritual daquele tempo para a formaccedilatildeo de homens e a pocircs a serviccedilo dessa tarefardquo (JAEGER 2018 p

337)

Jaeger (2018 p 339) pinta um cenaacuterio em que o aprendiz contava com um preceptor que recebia pagamento

pelos preciosos serviccedilos prestados Podemos de antematildeo concluir que uma vez que o acesso era

prerrogativa da aristocracia eram os interesses desse grupo social que detinha posiccedilotildees expressivas na

estrutura estatal objetos de demanda nas atividades desempenhadas na atuaccedilatildeo puacuteblica A educaccedilatildeo

aristocrata na Greacutecia e depois em Roma centrava-se no uso puacuteblico da palavra com os corretos gecircneros

modos e formas aprendidos na escola e reconhecidos pelos pares em suma era uma educaccedilatildeo retoacuterico-

literaacuteria Aquele que a detinha estaria apto ao ofiacutecio de enunciar tendo sido esse tipo de ensino aplicado

tambeacutem ao discurso cristatildeo (MELO 2011 p 33-45) Eacute portanto nesse ciacuterculo de formaccedilatildeo intelectual que

situamos Minuacutecio Feacutelix autor de Octavius

A biografia de Minuacutecio Feacutelix eacute bem sucinta pois sabemos muito pouco a seu respeito Octavius eacute a uacutenica obra

conhecida do autor na qual podemos encontrar algumas informaccedilotildees a seu respeito sendo dentre elas o

dado de que ele vivia em Roma verificado na ocasiatildeo da visita do amigo que daacute nome agrave obra (Oct 21) Price

(1999 p127) respaldado por uma fala de Ceciacutelio defende que provavelmente Minuacutecio Feacutelix fosse natural

do norte da Aacutefrica o que o autor natildeo contradiz ao longo da obra3 Temos tambeacutem atraveacutes de Lactacircncio (240

ndash 320) no livro V da obra Instituiccedilotildees Divinas a informaccedilatildeo de que Minuacutecio Feacutelix era advogado dispunha de

prestiacutegio em seu meio social e que sua obra respondia a uma necessidade latente como afirma

Segue-se que a sabedoria e a verdade estatildeo necessitadas de uma forma adequada E se casualmente pessoas cultas se dedicam elas natildeo satildeo suficientes para defendecirc-las Entre as que conheccedilo estaacute Minuacutecio Feacutelix advogado notaacutevel entre os de sua cidade seu livro intitulado Otaacutevio demonstra o bom defensor da verdade que poderia ser se tivesse se dedicado totalmente a esta missatildeo (Lac Div Inst 521-22 traduccedilatildeo nossa)

A referecircncia agrave obra de Minuacutecio Feacutelix eacute precedida de uma inflamada criacutetica na qual o apologista argumenta

que a rejeiccedilatildeo de muitos ao discurso cristatildeo eacute fundamentada na apreciaccedilatildeo ao discurso eloquente Lactacircncio

argumenta que isso se devia ao fato de aqueles considerados saacutebios e cultos apreciarem ouvir e ler conteuacutedos

que lhe proporcionassem gozo pela eloquecircncia mesmo que esse tema natildeo exaltasse o bem e que suplantasse

3 A fala de Ceciacutelio (Oct 96) ldquonosso concidadatildeo de Cirtardquo eacute uma referecircncia a Frontatildeo orador natural da cidade mencionada

[80]

a verdade em sua oacutetica que advoga sobre a verdade cristatilde (Div Inst 515-20) Minuacutecio Feacutelix eacute lembrado

ainda por Satildeo Jerocircnimo (347-419) que faz alusatildeo agrave erudiccedilatildeo do autor e a uma segunda obra de autoria dele

(SANTACRUZ 2000 p 5)4

Em linhas gerais Octavius eacute um diaacutelogo cujo tema geral eacute motivado por uma demonstraccedilatildeo de reverecircncia agrave

divindade tradicional Serapis O texto compreende a fala de trecircs personagens Ceciacutelio praticante da religio

politeiacutesta Otaacutevio adepto ao cristianismo e o proacuteprio autor Minuacutecio Feacutelix que atua como mediador do

diaacutelogo que eacute disposto em quatro momentos a saber preacircmbulo discurso de Ceciacutelio intervenccedilatildeo do

mediador e discurso de Otaacutevio Para fins deste trabalho nos deteremos apenas em alguns aspectos do

preacircmbulo pois eacute nas paacuteginas iniciais da obra que Minuacutecio Feacutelix busca estabelecer alguns pontos de

importacircncia inclusive uma identidade vaacutelida para os adeptos do cristianismo

O primeiro aspecto que nos chama a atenccedilatildeo eacute a disparidade existente quando da descriccedilatildeo das duas

personagens que apresentaratildeo seus pontos de vista no decorrer do diaacutelogo apologeacutetico Isso se manifesta

nos adjetivos elencados para fazer menccedilatildeo a Otaacutevio que eacute apresentado como ldquocompanheiro fideliacutessimordquo

(fidelissimi contubernalis) ldquodouto e santordquo (eximius et sanctus) enquanto Ceciacutelio eacute apresentado como ldquoainda

ligado a vaidades supersticiosasrdquo (superstitiosis vanitatibus etiamnunc inhaerentem) (Oct 11-4)5 Mais adiante

o perfil traccedilado para Otaacutevio inclui menccedilatildeo agrave sua famiacutelia composta por sua esposa e filhos Estes recebem

especial atenccedilatildeo mencionados por serem agradaacuteveis e apesar de pequenos e ainda falarem de forma

hesitante o que diziam expressava o que ldquohavia de mais docerdquo (loquellam ipso offensantis linguae fragmine

dulciorem)6 A uacuteltima linha do trecho eacute reservada a Ceciacutelio poreacutem para registrar seu gesto de reverecircncia ao

passarem diante de um templo dedicado agrave divindade Seraacutepis (Oct 21-4)7

A partir do gesto de Ceciacutelio o diaacutelogo se desenvolve e o texto de Minuacutecio Feacutelix segue na perspectiva de

alinhar o comportamento daqueles que jaacute eram adeptos ao cristianismo e tambeacutem promover novas adesotildees

Otaacutevio repreende severamente Minuacutecio Feacutelix por receber em sua casa e manter a seu lado nos espaccedilos

puacuteblicos um homem cujas praacuteticas seriam de pessoas ignorantes ou supersticiosas (Oct 31) Percebe-se

claramente nesse ponto a ecircnfase na dicotomia entre as duas personagens Otaacutevio ainda prossegue

alertando Minuacutecio Feacutelix que a omissatildeo deste diante da praacutetica errocircnea de Ceciacutelio ldquorecai em igual medida

sobre ambosrdquo (Oct 31)

4 Satildeo Jerocircnimo faz referecircncia a uma segunda obra Sobre o destino ou Contra os matemaacuteticos como sendo de possiacutevel autoria de Minuacutecio Feacutelix poreacutem ainda que ela tenha existido natildeo chegou a nossos dias (SANTACRUZ 2000 p 9-10) 5 Todas as citaccedilotildees da obra em portuguecircs satildeo da traduccedilatildeo proposta por Cescon (2015) 6 Natildeo podemos esquecer que a inocecircncia das crianccedilas eacute uma toacutepica cara ao cristianismo ressaltada no Novo Testamento no Evangelho de Mateus 1914 ldquoDeixai as crianccedilas e natildeo as impeccedilais de virem a mim porque de tais eacute o reino dos ceacuteusrdquo 7 Trata-se de uma deidade egiacutepcia que teve o culto expandido no mundo helecircnico e romano (SANTACRUZ 2000 p 55)

[81]

Um detalhe nos chama atenccedilatildeo na repreensatildeo de Otaacutevio ponto que caminha no sentido de corroborar o

objetivo apologeacutetico No iniacutecio do preacircmbulo Minuacutecio Feacutelix afirma que a conexatildeo resultante dos viacutenculos de

amizade existentes entre ele e Otaacutevio seria de uma ordem em que natildeo haveria quaisquer espaccedilos para

discordacircncias ou seja natildeo existiria entatildeo razatildeo para o incidente narrado adiante Contudo eacute exatamente

na relaccedilatildeo entre pares discordantes que ocorre a abertura para enunciar o discurso cristatildeo Dessa forma

Minuacutecio Feacutelix delega a Otaacutevio a tarefa de colocar em evidecircncia a propagaccedilatildeo desse discurso A nosso ver tal

articulaccedilatildeo visa conservar sua habilidade de dialogar com pessoas diversas e em espaccedilos distintos

possivelmente parte do prestiacutegio atestado por Lactacircncio como apontado anteriormente Percebemos

assim que antes mesmo de dar agraves personagens vozes e espaccedilo para suas proacuteprias falas Minuacutecio Feacutelix

cuidadosamente evoca lugares para ambos atraveacutes da demarcaccedilatildeo de perfis identitaacuterios preacutevios A questatildeo

entatildeo se potildee no campo do estabelecimento de uma identidade em oposiccedilatildeo agrave outra ou seja a do cristatildeo e a

do politeiacutesta

No que tange ao estabelecimento das identidades Kathryn Woodward nos lembra que

As identidades satildeo fabricadas por meio da marcaccedilatildeo da diferenccedila Essa marcaccedilatildeo da diferenccedila ocorre tanto por meio de sistemas simboacutelicos de representaccedilatildeo quanto por meio de forma de exclusatildeo social A identidade pois natildeo eacute o oposto da diferenccedila a identidade depende da diferenccedila (WOODWARD 2018 p 40 grifo nosso)

Em concordacircncia com Woodward Tomaz Tadeu da Silva (2014 p 76) afirma que o processo de construccedilatildeo

da identidade assim como da diferenccedila depende de ldquocriaccedilotildees sociais e culturaisrdquo ou seja ambas satildeo forjadas

em meio aos espaccedilos de conviacutevio social e de exerciacutecio de poder A criaccedilatildeo de novos marcadores de identidade

tem como consequecircncia direta a delimitaccedilatildeo do diferente e na obra Octavius o diferente se manifesta na

figura de Ceciacutelio que tem praacuteticas religiosas distintas das de Otaacutevio apontado jaacute na abertura do texto como

modelo a ser seguido pela voz de Minuacutecio Feacutelix

Essa concordacircncia de Minuacutecio Feacutelix isto eacute a voz construiacuteda na obra (e natildeo autor empiacuterico ao qual natildeo temos

acesso) com a marcaccedilatildeo de uma identidade cristatilde eacute feita atraveacutes da construccedilatildeo e da manifestaccedilatildeo de um

eacutethos do autor Minuacutecio Feacutelix na obra Antes mesmo do iniacutecio do diaacutelogo e das falas de Ceciacutelio e Otaacutevio haacute a

construccedilatildeo de um eu que discursa o eu de Minuacutecio tatildeo elaborado como qualquer uma das personagens e tatildeo

efetivo no convencimento quanto elas

O eacutethos do enunciador eacute tambeacutem um instrumento retoacuterico-discursivo Dominique Maingueneau (2018 p

272) afirma que a edificaccedilatildeo de um eacutethos eacute efeito de interaccedilotildees diversas e ldquoimplica uma maneira de se

movimentar no espaccedilo socialrdquo O enunciador se move em direccedilatildeo a compreender quais satildeo as bases vaacutelidas

para alcanccedilar o ecircxito pretendido uma vez que ldquoo destinataacuterio o identifica com base num conjunto difuso de

representaccedilotildees sociais avaliadas de modo positivo ou negativo de estereoacutetipos que a enunciaccedilatildeo contribui

para afirmar ou modificarrdquo (MAINGUENEAU 2018 p 272) Na medida em que Minuacutecio Feacutelix afirma

[82]

concordar com todos os posicionamentos de Otaacutevio seu eacutethos se apresenta de forma intolerante para com o

diferente marcando assim mais uma vez sua posiccedilatildeo na obra E embora sua praacutetica possa ser a escolha por

uma posiccedilatildeo intermediaria mdash pois Minuacutecio Feacutelix sustenta no discurso ser amigo tanto de Ceciacutelio quanto de

Otaacutevio mdash ele age no sentido de fazer dessa posiccedilatildeo aparente um mecanismo para ampliar a abrangecircncia do

discurso contido na obra reafirmando os valores presentes no eacutethos de juiz imparcial manifesto desde o

princiacutepio do diaacutelogo

Maingueneau (20018 p 72) especiacutefica ainda que no processo de construccedilatildeo do eacutethos ocorre a evocaccedilatildeo de

um fiador e este eacute apresentado de maneira a dar ecircnfase aos elementos salientados no eacutethos em construccedilatildeo

O fiador permite que seja identificado o tom presente no discurso enunciado pois na perspectiva de

Maingueneau ldquoqualquer discurso escrito mesmo que negue possui uma vocalidade especiacutefica que permite

relacionaacute-lo a uma fonte enunciativardquo de modo que ldquoa leitura faz emergir uma origem enunciativa uma

instacircncia subjetiva encarnada que exerce o papel de fiadorrdquo (MAINGUENEAU 2018 p 72) Ao fiador satildeo

atribuiacutedos qualitativos frutos das representaccedilotildees socialmente construiacutedas com a finalidade de tornar

niacutetidos estereoacutetipos que congregam caracteres positivos identificaacuteveis pelos destinataacuterios Portanto o papel

a ser desempenhado por ele eacute significativo no encadeamento das representaccedilotildees que confluem na

elaboraccedilatildeo do eacutethos pois na adesatildeo ao discurso eacute necessaacuterio que o fiador tenha condiccedilotildees de gerar no

destinataacuterio o desejo de incorporar ldquoum conjunto de esquemas que correspondem a uma maneira especiacutefica

de se relacionar com o mundordquo (MAINGUENEAU 2018 p 272) Essa incorporaccedilatildeo vai aleacutem de um processo

de identificaccedilatildeo pois haacute ldquoum mundo eacuteticordquo em que o fiador estaacute inserido e ao qual por meio dele os

destinataacuterios podem ter acesso (MAINGUENEAU 2018 p 272)

Nesse sentido na fala de Minuacutecio Feacutelix a respeito da adesatildeo de ambos ao cristianismo mdash ldquosoacute ele conhecia as

minhas supersticcedilotildees pagatildes soacute ele era participante dos meus erros e quando dissipado o nevoeiro emergi

das trevas a luz da sabedoria e da verdade ele natildeo rejeitou o companheiro mas o que eacute mais maravilhoso

correu a frenterdquo (Oct 14) mdash para aleacutem de ser esclarecido que foi ele quem conduziu o amigo Otaacutevio ao

cristianismo ele usa de si mesmo para indicar qual seria o comportamento esperado daqueles que tecircm a

mesma oportunidade Dessa maneira ao exaltar o comportamento de Otaacutevio Minuacutecio Feacutelix expotildee quais satildeo

seus proacuteprios os valores e consequentemente o seu eacutethos aleacutem de construir isso por meio de afirmativas que

o conecta ao amigo a quem ele diz ldquoconcordava comigo em querer ou natildeo querer os mesmos objetivos ao

ponto de acreditar que uma soacute alma fosse repartidardquo (Oct 13) Parece-nos assim que o eacutethos do autor eacute

manifesto de modo ostensivo como modelo para os demais cristatildeos e tem como fiador Otaacutevio a quem satildeo

atribuiacutedos qualitativos que abrange sua imagem puacuteblica apontado como ldquobom fideliacutessimo companheiro

varatildeo excelente e iacutentegrordquo (Oct 11-3) O fiador do eacutethos de Minuacutecio Feacutelix congrega dessa forma virtudes

desejaacuteveis a um homem pertencente agrave elite aristocraacutetica romana tornando assim possiacutevel a materializaccedilatildeo

do conjunto de valores socialmente construiacutedos mobilizados a fim de explicitar o eacutethos de Minuacutecio Feacutelix

[83]

Minuacutecio Feacutelix ao enunciar as atividades laborais de ambos em Roma e afirmar que estava de feacuterias assim

como Otaacutevio mdash uma vez que a viagem agrave Oacutestia se deu pois ldquoas feacuterias haviam interrompido os trabalhos

judiciaisrdquo (Oct 23) mdash os situa geograficamente no centro do poder poliacutetico romano demostrando que os

cristatildeos natildeo estavam destinados a locais perifeacutericos no Impeacuterio O autor coloca ainda em destaque o valor

dos viacutenculos entre pares Ao apontar os qualitativos de Otaacutevio ele diz de modo evidente qual o perfil de com

quem se devia cultivar esses viacutenculos ou seja preferencialmente com cristatildeos como ele e Otaacutevio Todavia

as praacuteticas religiosas no impeacuterio eram heterogecircneas de forma que a relaccedilatildeo entre membros da aristocracia

que natildeo haviam aderido ao cristianismo era comum como mostra a amizade de Minuacutecio Feacutelix e Ceciacutelio

chamado por Otaacutevio de ldquogente supersticiosardquo (Oct 34) Entretanto a toleracircncia nesse caso tem finalidade

especiacutefica os pesos satildeo distintos na relaccedilatildeo entre eles A promoccedilatildeo da doutrina cristatilde estaacute no centro dessa

relaccedilatildeo e mais que promover essa feacute o autor de Octavius tem a tarefa de descortinar como um verdadeiro

cristatildeo devia se comportar

Por fim o preacircmbulo de Octavius evidencia a estreita relaccedilatildeo de Minuacutecio Feacutelix atraveacutes do eacutethos exposto com

os paracircmetros culturais claacutessicos e isso eacute manifesto desde a escolha do gecircnero da obra passando pelo modo

de dispor o conteuacutedo apologeacutetico evitando os pontos mais sensiacuteveis a fim de expor que a adesatildeo agrave feacute cristatilde

natildeo era excludente da manutenccedilatildeo dos valores aristocraacuteticos Minuacutecio Feacutelix externa assim em seu ponto de

vista a compatibilidade da erudiccedilatildeo claacutessica com a praacutetica religiosa cristatilde expondo ainda aos pares que

desempenhavam funccedilotildees expressivas na sociedade romana que em suas atuaccedilotildees poderia ser exigido o

conviacutevio com outros pares que embora detivessem a mesma formaccedilatildeo intelectual eram praticantes dos

cultos politeiacutestas Se por um lado isso poderia ser incocircmodo por outro era oportunidade de difundir a

praacutetica religiosa cristatilde e ademais uma circunstacircncia propiacutecia para solidificar a identidade cristatilde construiacuteda

por meio dos elementos simboacutelicos mobilizados na edificaccedilatildeo do eacutethos minuciano

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A censura aos espetaacuteculos na literatura claacutessica e o De Spectaculis de Tertuliano

Natan Henrique Taveira Baptista

natanbaptistagmailcom

O presente capiacutetulo que sumariza parte

da dissertaccedilatildeo de mestrado do autor

foi desenvolvido com apoio da Fundaccedilatildeo

de amparo agrave pesquisa e inovaccedilatildeo do

Espiacuterito Santo (Fapes) entre 2015 e 2017

Este estudo comenta os usos de textos claacutessicos ndash gregos latinos e

judaicos ndash na construccedilatildeo da criacutetica aos espetaacuteculos por Tertuliano

de Cartago (c 160-230) Mesmo que o pensador africano rechace

o conhecimento e a tradiccedilatildeo natildeo paleocristatilde ou seja externa agrave

seita religiosa que se firmava na transiccedilatildeo do seacuteculo segundo para

o terceiro sua argumentaccedilatildeo condenatoacuteria natildeo eacute era total

novidade dentro do arcabouccedilo discursivo de sua eacutepoca Ao

contraacuterio sua retoacuterica utiliza temas motivos e linhas de raciociacutenio

da literatura pregressa como combustiacutevel intelectual para o

vitupeacuterio aos spectacula imperiais Assim a partir da preacutedica de

Tertuliano quanto aos espaccedilos destinados agraves praacuteticas de

entretenimento e convivecircncia examinamos a reafirmaccedilatildeo do

sentimento de pertenccedila e propoacutesito a todo o tempo reiterado no

discurso cristatildeo que tornaria possiacutevel o acesso do neoacutefito agrave

comunidade paleocristatilde Operou-se no discurso de Tertuliano

uma proposta de mudanccedila na compreensatildeo das categorias de

[87]

lazer e espetaacuteculos puacuteblicos indicativo importante da tentativa de transformaccedilatildeo de consciecircncia que se

baseou na criacutetica ao comportamento da sociedade romana desde os primeiros anos do paleocristianismo no

norte da Aacutefrica

Antes de discutir a criacutetica paleocristatilde eacute necessaacuterio pautar a censura e a condenaccedilatildeo aos espetaacuteculos por

grupos anteriores visto que a elite literaacuteria e filosoacutefica estoica e os componentes da religiatildeo judaica jaacute

apresentavam segmentos contraacuterios aos espetaacuteculos muito antes do surgimento da criacutetica por parte dos

pensadores eclesiaacutesticos Assim a despeito da pecha de grupo coeso nomeados sobre a complicada eacutegide

de ldquopagatildeosrdquo1 os integrantes da sociedade romana tradicional e adeptos da filosofia estoica por exemplo

natildeo partilhavam da plena adesatildeo aos espetaacuteculos Os estudos sobre a complexidade social dos grupos

aglomerados pela terminologia ldquopaganismordquo (CAMERON 2011 ROSA 2008 BAPTISTA 2015 p 25-45)

mostraram que dentro dele nunca existiu um apoio indiscriminado aos jogos de circo ou anfiteatro e das

apresentaccedilotildees de teatro Aleacutem disso os estudos dessas criacuteticas mostram que vaacuterios autores cristatildeos com

destaque para Tertuliano fizeram uso da filosofia e da literatura claacutessica ao assumirem para si a negaccedilatildeo

dos espetaacuteculos em sua forma mais tradicional reproduzindo em termos evangeacutelicos a criacutetica antecedente

Essa constataccedilatildeo ampara o entendimento sobre a natureza fluida das fronteiras religiosas romanas

No caso dos jogos do circo do teatro e do anfiteatro a criacutetica pagatilde veio em grande parte de um pequeno

grupo vinculado ao estoicismo que por vaacuterios motivos natildeo coadunava com o interesse das massas

populares e de grande parte dos estamentos superiores pelos jogos2 Quando os estoicos criticavam esse

tipo de manifestaccedilatildeo cultural eles natildeo defendiam a sua aboliccedilatildeo mas censuravam audiecircncia e os

patrocinadores do espetaacuteculo Por essas razotildees Mammel (2014 p 605) sustenta que ldquo[] muitas das

acusaccedilotildees da elite literaacuteria popular aos espetaacuteculos em estilo romano foram motivadas em grande parte

pelo elitismo e esnobismo intelectualrdquo De fato natildeo era raro que os espetaacuteculos romanos fossem vistos com

certo desdeacutem como algo proacuteprio do uulgus das massas comuns e dos segmentos sociais inferiores ou

menos instruiacutedos Dessa maneira a criacutetica aos jogos funcionou em grande medida como um artifiacutecio

retoacuterico de distinccedilatildeo entre os que os apreciavam ou seja os plebeus incultos e os que os rejeitavam devido

1 O termo paganismo refere-se em geral a uma coletividade grandemente difusa de accedilotildees praacuteticas e crenccedilas heterogecircneas religiosas antigas formada entre outras manifestaccedilotildees pelo culto ciacutevico romano ndash privado e puacuteblico ndash pelos cultos advindos do Oriente e pelo culto ao imperador associados a uma identidade tradicional (CAMERON 2011 p 3-13) Entretanto essa terminologia apresenta vaacuterias dificuldades teoacutericas O paganismo ndash e o paleocristianismo ndash natildeo pode ser tratado como sistemas homogecircneos e muito menos como religiotildees cristalizadas Seria mais correto designaacute-las de religiotildees ou sistemas religiosos Assim o uso do termo paganismo neste trabalho natildeo possui cunho pejorativo ou de decreacutescimo simboacutelico nem deve ser visto de maneira equivocada como se houvesse uma unidade religiosa na Antiguidade romana (ROSA 2008 p 15-20) Antes trabalhamos com a noccedilatildeo de cristianismos e paganismos uma vez que essas realidades religiosas se encontravam disseminadas pela bacia do Mediterracircneo sendo praticadas de modo diversificado no interior das diferentes comunidades agregadas pelo impeacuterio tardoantigo 2 Para uma discussatildeo recente sobre o estoicismo cf Barbosa e Castro (2020 p 56-68)

[88]

agrave educaccedilatildeo elevada que haviam recebido Possuir interesses compartilhados com o populus natildeo era

apropriado para um cidadatildeo romano bem nascido e por isso mesmo portador de urbanitas (WIEDEMANN

1992 p 141-144 WISTRAND 1992 p 62 MAMMEL 2014 p 605)3

Entre o fim da Repuacuteblica e o Impeacuterio o lazer gradualmente foi incorporado pelas categorias mais populares

da sociedade Para a elite romana as inconveniecircncias do lazer surgiram quando o tempo livre o otium

alcanccedilou tambeacutem os estratos mais baixos que se encontravam fora do controle das autoridades (TONER

1995 p 23 ss)4 Foi por isso que de acordo com Pliacutenio o Jovem (Ep 96 Pan 464-6) faltavam aos

espetaacuteculos a seueritas e a grauitas condizentes com os homens de estrato superior motivo este para a

censura agrave participaccedilatildeo de membros da elite romana ndash e no limite do proacuteprio imperador ndash nos espetaacuteculos

Taacutecito (Ann 1414-15) chegou a qualificar o desejo de Nero em participar das corridas de bigas como

studium foedum (desejo vergonhoso) e Suetocircnio principalmente nas biografias de Tibeacuterio (352) e Caliacutegula

(541) se une a Pliacutenio na criacutetica qualificando a participaccedilatildeo nos espetaacuteculos como algo profundamente

degradante e digno de desprezo (WISTRAND 1992 p 30 ss BELL 2014 p 496)

Podemos sistematizar a criacutetica estoica aos jogos apoacutes Wistrand (1992) e Mammel (2014) em cinco

argumentos principais O primeiro deles era a repeticcedilatildeo e a falta de novidade ou variaccedilatildeo nas competiccedilotildees

Em seguida questionava-se a perda de tempo que de acordo com os criacuteticos poderia ter sido dedicado a

outras atividades mais proveitosas intelectualmente tais como o estudo ou a leitura O terceiro alvo de

censura era a enormidade dos salaacuterios e as fortunas dos atletas mais famosos Em quarto lugar criticava-se

o despertamento de emoccedilotildees natildeo condizentes com o estatuto do filoacutesofo nos espaccedilos puacuteblicos dada a

sociabilidade com toda sorte de atores sociais Finalmente os estoicos admoestavam sobre os perigos das

aglomeraccedilotildees para o indiviacuteduo sobretudo as confusotildees criadas e as multidotildees que se deixavam arrastar

pelos arredores desses ambientes luacutedicos5

3 Vrbanitas era um conceito muito caro aos romanos desde a Res Publica ficando particularmente associado aos escritos de Ciacutecero (De or 2216-291) de Horaacutecio (Ep 110 24-6) e de Quintiliano (Inst 63) (MARQUES JUacuteNIOR 2008 p 15 ss MIOTTI 2010 p 17 ss) Ciacutecero jaacute a expressava como transliteraccedilatildeo de um sentimento de completude ao associar vivecircncia citadina altamente urbanizada e polidez Sendo assim a exaltaccedilatildeo da vida na cidade era propiacutecia ao bom gosto ao requinte agrave cultura e agrave elegacircncia Sobre as diferentes acepccedilotildees do conceito dentro da retoacuterica claacutessica cf Ramage (1963 p 390-414) e Goodman (2007 p 12) 4 Afinal ldquoa base para o tratamento discriminatoacuterio das atividades de lazer foi a distinccedilatildeo entre a vida de lazer um preacute-requisito da elite e a vida de trabalho que era a marca de uma existecircncia plebeacuteia A partir desta perspectiva tradicional o lazer era uma parte natural e legiacutetima da cultura de elite ao passo que para os trabalhadores era uma tentaccedilatildeo potencialmente perigosa e uma distraccedilatildeo de suas principais preocupaccedilotildeesrdquo (TONER 1995 p 25) 5 Nesse sentido uma voz destoante da tradiccedilatildeo filosoacutefica foi Frontatildeo (c 100-170) cocircnsul gramaacutetico retoacuterico e advogado originaacuterio da Numiacutedia tambeacutem no norte da Aacutefrica (Ad M Caes 235) Ele se coloca contra a tradiccedilatildeo filosoacutefica quando trata as confusotildees e explosotildees no espaccedilo do circo e os proacuteprios jogos de maneira muito mais despreocupada e em grande parte descontraiacuteda ao escrever aos seus amigos e a Marco Aureacutelio a situaccedilatildeo (Ad M Caes 211-5 Ad amicos 231-3) Em sua opiniatildeo natildeo se deveria perder de vista que os jogos mantinham a populaccedilatildeo de bom humor e agradavam a eles coletivamente assim sua continuidade deveria ser preservada sendo o papel do imperador natildeo negligenciar um aspecto social que era importante para os seus suacuteditos (BELL 2014 p 120-126)

[89]

Sobre a repeticcedilatildeo enfadonha dos jogos Pliacutenio (Ep 961) foi bastante enfaacutetico ao apontar que ldquonatildeo tecircm

novidade natildeo tecircm variaccedilatildeo natildeo tecircm nada para o qual uma visatildeo natildeo seria suficienterdquo6 Ciacutecero (Ep 71)

teceu a mesma criacutetica mas direcionada agraves uenationes uma vez que segundo ele quem assistisse a uma jaacute

teria assistido a todas as outras Jaacute Marco Aureacutelio em suas Meditaccedilotildees (6461) deixava claro que ldquotal como

os espetaacuteculos no circo ou de outros locais de diversatildeo nos cansam com a sua perpeacutetua repeticcedilatildeo das

mesmas coisas numa monotonia que torna o espetaacuteculo enfadonho tambeacutem o mesmo se passa com toda a

experiecircncia da vida []rdquo7

Os membros da elite romana tambeacutem eram unacircnimes em afirmar que os homens de posiccedilatildeo elevada

deveriam despender seu tempo livre em atividades mais valiosas intelectualmente e natildeo com a banalidade

dos espetaacuteculos Eram nos momentos de otium que os intelectuais deveriam estar envolvidos em atividades

voltadas para os estudos filosoacuteficos e literaacuterios Para eles o oacutecio poderia ser entendido como ldquo[] um

espaccedilo de tempo de descanso do corpo e recreaccedilatildeo do espiacuterito um tempo livre do trabalho que se dava

para depois retomar as atividades cotidianas ao trabalho e ao de serviccedilo puacuteblico O oacutecio romano consistia

como se vecirc em natildeo trabalharrdquo (BETANCUR SEPUacuteLVEDA 2008 p 05) Na Roma republicana os uacutenicos

indiviacuteduos que poderiam desfrutar do oacutecio eram os notaacuteveis isto eacute uma minoria que natildeo trabalhava e que

vivia dos lucros produzidos por artesatildeos comerciantes e trabalhadores agriacutecolas Eacute por isso que na

Antiguidade Claacutessica o otium era uma peccedila essencial da vida das elites8

De acordo com a ideologia aristocraacutetica romana os estratos sociais eram repartidos de acordo com os

recursos econocircmicos dos quais dispunham A partir dessa concepccedilatildeo de mundo os escravos camponeses e

negociantes natildeo poderiam desfrutar de uma vida feliz isto eacute de uma vida proacutespera e privilegiada do

aristocrata Esses homens ditos ociosos correspondiam moralmente ao ideal de ser humano e mereciam

por isso serem cidadatildeos por inteiro Os notaacuteveis da sociedade romana ldquonatildeo se consideravam superiores agrave

meacutedia da humanidade como os nobres do Antigo Regime consideravam-se a humanidade plena e inteira a

humanidade normal portanto os pobres eram moralmente inferiores [afinal] natildeo viviam como se deveria

viverrdquo (VEYNE 2009 p 115) Uma categoria abastada letrada e desejosa de reservar para si o controle da

poliacutetica exaltava o oacutecio afortunado como produto de uma cultura literaacuteria e de uma carreira puacuteblica O

trabalho da elite consistia no cumprimento dos deveres ciacutevicos e na administraccedilatildeo de seu patrimocircnio

6 ldquoNihil novum nihil varium nihil quod non semel spectasse sufficiatrdquo (Trad nossa comparada a Betty Radice 1969) 7 ldquoὭσπερ προσίσταταί σοι τὰ ἐν τῷ ἀμφιθεάτρῳ καὶ τοῖς τοιούτοις χωρίοις ὡς ἀεὶ τὰ αὐτὰ ὁρώμενα καὶ τὸ

ὁμοειδὲς προσκορῆ τὴν θέαν ποιεῖ τοῦτο καὶ ἐπὶ ὅλου τοῦ βίου πάσχεινrdquo (Trad Alex Martins 2002) 8 Na concepccedilatildeo da elite romana otium poderia equivaler a uma designaccedilatildeo temporal mas no contexto poliacutetico foi utilizado no sentido de um estado desejaacutevel de tranquilidade e seguranccedila (Pax e Concordia) Para aleacutem dessas duas categorias otium tambeacutem pode ser compreendida como um conceito qualitativo reflexo do caraacuteter moral do cidadatildeo romano Fagan (2006) distingue duas principais caracterizaccedilotildees do otium romano O otium de qualidade no sentido de contemplaccedilatildeo encontrava-se expresso nas atividades edificantes como a leitura e a escrita e tambeacutem na caccedila (Sen Ep 823) Jaacute o otium negativo relacionado agrave ociosidade e agrave preguiccedila apresentava-se no descanso nas tabernas ou na inatividade do pensamento nos espetaacuteculos de massa corrompendo a mente dos jovens e a disciplina dos soldados

[90]

(TONER 1995 p 26) Assim o trabalho implicaria obrigaccedilatildeo ao passo que o lazer implicaria ludicidade e

entretenimento para o corpo e mente Embora antagocircnicos lazer e trabalho do ponto de vista das elites

romanas encontravam-se intrinsecamente relacionados e amalgamados a um ideal de plenitude da vida

ciacutevica Em suma para os estoicos os espetaacuteculos e o lazer envolvidos nessa praacutetica eram passiacuteveis de

censura pois os membros da elite poderiam tornar-se presos ou viciados aos passatempos triviais das

massas e negligenciar as atividades mais apropriadas para o seu lugar social como por exemplo o estudo

das artes liberais (Tac Dial 293 WISTRAND 1992 p 43)

Os autores estoicos demonstram aleacutem disso aversatildeo agravequeles que enriqueceram com os jogos Todavia se

um senador recebesse o governo de uma proviacutencia mediante faustoso salaacuterio era considerado um homem

de respeito em conformidade com o ideal de vida poliacutetica A concepccedilatildeo antiga do trabalho era marcada por

uma seacuterie de ponderaccedilotildees a partir da posiccedilatildeo social pois natildeo dependiam da atividade que o indiviacuteduo

exercesse Um notaacutevel natildeo era definido pelo que fizesse natildeo importava o que fosse Poreacutem um homem

ordinaacuterio era classificado a partir da atividade que exercesse fosse sapateiro ou professor Para ser um

romano devia possuir patrimocircnio Quando um notaacutevel proclamava em seu epitaacutefio ter sido um bom

agricultor por exemplo ele desejava exprimir que teve talento para administrar suas terras e natildeo que havia

sido um agricultor de profissatildeo Os notaacuteveis obtinham honra consagrando-se agrave filosofia agrave eloquecircncia ao

direito agrave poesia Por isso a cidade lhes erguia estaacutetuas ndash tais atividades eram publicamente reverenciadas

via-se nelas respeito ou algo a respeitar-se Um romano por tradiccedilatildeo se definia por meio delas Ele dizia por

exemplo fui cocircnsul e filoacutesofo Foi por isso que Juvenal (Sat 7106-14) e Marcial (1074) lamentaram o fato

de aurigas e gladiadores serem premiados com riqueza fama sucesso e reconhecimento ao passo que

gramaacuteticos poetas e oradores trabalhavam em relativa pobreza e obscuridade (WISTRAND 1992 p 45)

Outra criacutetica dos estoicos aos jogos se referia agraves emoccedilotildees que despertavam emoccedilotildees natildeo condizentes de

acordo com eles com o estatuto do filoacutesofo razatildeo pela qual recomendavam atenccedilatildeo para com a

racionalidade o prazer e a virtude Defendiam desse modo que o homem deveria ser governado pela

racionalidade e natildeo pelas emoccedilotildees animalescas (uoluptates) Os prazeres nessa perspectiva deveriam ser

usufruiacutedos com moderaccedilatildeo a fim de natildeo tornarem o homem suave ou deacutebil (mollis) (WISTRAND 1992 p

12 MAMMEL 2014 p 606) Os espetaacuteculos eram portanto vistos como perigosos pois despertavam no

espectador segundo os filoacutesofos emoccedilotildees prazeres e instintos primitivos e sensuais desviando a atenccedilatildeo

do objetivo mais elevado que eram as atividades racionais (WISTRAND 1992 p 142-3) Diante disso a

soluccedilatildeo proposta era a moderaccedilatildeo dos prazeres que forneceria inclusive aliacutevio agrave mente do filoacutesofo Mas

para aqueles que natildeo conseguissem controlar a si proacuteprios a rejeiccedilatildeo completa aos prazeres seria a melhor

opccedilatildeo Os jogos eram vistos como um risco ateacute mesmo para aquele que possuiacutesse conhecimento filosoacutefico

quanto mais para aquele que natildeo o possuiacutea (MAMMEL 2014 p 606 ss) Essa criacutetica foi fundamental pois

os cristatildeos dela se valeram criando assim seus proacuteprios argumentos para a censura aos espetaacuteculos

[91]

Amiano Marcelino (14618-20 1572 38432) por exemplo foi conhecido pela sua famosa criacutetica satiacuterica

agrave sociedade romana participante dos espetaacuteculos puacuteblicos Para esse autor a principal acusaccedilatildeo imputada

ao circo era a loucura (furor) ou seja a perda de autocontrole manifestada na obsessatildeo que levava as

multidotildees a se interessar por tudo que se relacionava aos jogos circenses (JIMEacuteNEZ SAacuteNCHEZ 2001 p

462-463 BELL 2014 p 499) Essa criacutetica foi comumente repetida tal como um toacutepos retoacuterico ou seja uma

linha argumentativa na forma de lugar comum (Quint Inst 851-2 861-2 91-3) tanto na literatura

claacutessica pagatilde ou gentia quanto na literatura patriacutestica9 Tertuliano (Spect 161-3) usa exatamente a mesma

argumentaccedilatildeo para apresentar a pompa que marcava o iniacutecio dos ludi circenses comeccedilando com a chegada

tumultuada e freneacutetica dos espectadores ao espaccedilo luacutedico Nas palavras do rigorista africano a populaccedilatildeo

[] chegava jaacute esbravejante [cum furor] agitada cega e incitada a fazer apostas O pretor eacute lerdo os olhos rodam dentro da urna dele com as sortes Desde este lugar pendem para o sinal os ansiosos e uma soacute eacute a voz de uma soacute insacircnia Observe a insacircnia de sua futilidade lsquojogoursquo dizem e anunciam um apoacutes o outro aquilo que ao mesmo tempo foi visto por todos Eu apreendo o testemunho de sua cegueira natildeo veem o que foi jogado pensam ser o lenccedilo [que dava o sinal] mas eacute a imagem do diabo caiacutedo do alto (Tert Spect 161-3)10

Em outra de sua obra o rigorista afirma que o cristatildeo natildeo devia deixar-se arrastar ldquo[] pelos deliacuterios do

circo ou pelas atrocidades da arena ou pelas torpezas do teatrordquo (Tert Cult fem 184)11 Nestas e em outras

passagens desse tratado (Spect 152 161-4) e de outros fica expliacutecito que o furor marcava a perda do

autocontrole sendo um dos motivos principais para que os paleocristatildeos fossem proibidos de frequentar os

espaccedilos puacuteblicos especialmente o circo Tertuliano se inclui em uma tradiccedilatildeo discursiva ao repetir a

mesma admoestaccedilatildeo efetuada pelos filoacutesofos estoicos anteriores a ele mas tambeacutem marcando o iniacutecio de

uma recomendaccedilatildeo que foi repetida por uma longuiacutessima tradiccedilatildeo de autores posteriores a ele e

igualmente ligados agrave patriacutestica12

9 A escrita de Tertuliano comporta um estilo literaacuterio que manifesta sua formaccedilatildeo em retoacuterica especialmente pelo uso do exemplum (Tert Ad Her 44962 Cic Inv 1496 Quint Inst 5116) e de longi temporis praescriptio e traditio para discutir seus argumentos Esse estilo se apresenta com a utilizaccedilatildeo de exemplos histoacutericos cotidianos e filosoacuteficos para convencer a um puacuteblico geral (SIDER 1971 p 111) mas tambeacutem por um texto conciso contundente em rimas em ritmos e em figuras como simetria paralelismo assonacircncia aliteraccedilotildees circunloacutequios metaacuteforas aleacutem de paromoia (mesmas palavras paralelas em duas ou mais frases) homeoteleuton (rima baseada no teacutermino dos sintagmas) e homoiorcatarcta (palavras com iniacutecio similar) (MELRO 1974 p 21-22) 10 ldquo[] iam cum furore venientem iam tumultuosum iam caecum iam de sponsionibus concitatum tardus est illi praetor semper oculi in urna eius cum sortibus volutantur dehinc ad signum anxii pendent unius dementiae una vox est cognosce dementiam de vanitate lsquomisitrsquo dicunt et nuntiant invicem quod simul ab omnibus visum est teneo testimonium caecitatis non vident missum quid sit mappam putant sed est diaboli ab alto praecipitati figurardquo (Traduccedilatildeo nossa) Agradecemos a gentileza de Kaacutetia Regina Giesen no apoio e correccedilatildeo da traduccedilatildeo deste excerto 11 ldquocirci furoribus aut arenae atrocitatibus aut scenae turpitudinibusrdquo (Trad Fernando Melro 1974) 12 As queixas dos escritores da patriacutestica posteriores ndash com especial destaque para Novaciano Cipriano Agostinho e Isidoro que transcreveu o capiacutetulo nono do De Spectaculis quase ipsis litteris ndash e as contiacutenuas alegaccedilotildees contra a ida aos espetaacuteculos provam que a tentativa de Tertuliano teve pouco sucesso pelo menos nos dois primeiros seacuteculos apoacutes sua vida tendo relativa forccedila apenas quando foram constituiacutedos alguns dos conciacutelios da Igreja nos finais do quarto e iniacutecio do quinto seacuteculos ndash como o Terceiro e Quarto conciacutelio de Cartago em 397 e em 419 ndash quando foram tomadas medidas para impedir que os cristatildeos especialmente cleacuterigos e seus filhos frequentassem ou organizassem os jogos puacuteblicos

[92]

A uacuteltima criacutetica estoica aos jogos eacute vista principalmente em Secircneca em seu seacutetimo conjunto de Cartas a

Luciacutelio Tal criacutetica concernia ao elemento mais perigoso e censuraacutevel dos ludi para um filoacutesofo ou seja as

multidotildees Secircneca em sua admoestaccedilatildeo ao jovem Luciacutelio afirmou que as multidotildees tinham o poder de

corromper o homem prudente que se esforccedilava para viver virtuosamente porque despertava nele emoccedilotildees

primitivas e o fazia retornar agrave condiccedilatildeo de homem vicioso e pernicioso (MAMMEL 2014 p 607)13 Nas

palavras de Secircneca (Ep 71-2)

queres saber qual eacute a coisa que com maior empenho deves evitar A multidatildeo Ainda natildeo estaacutes em estado de frequentaacute-la em seguranccedila Eu confesso-te sem rodeios a minha proacutepria fraqueza nunca regresso com o mesmo caraacutecter com que saiacute de casa algo do que jaacute pusera em ordem eacute alterado algo do que jaacute conseguira eliminar regressa O mesmo que sucede aos doentes que uma longa debilidade natildeo deixa ir a parte alguma sem recaiacuteda nos acontece a noacutes cujo espiacuterito se estaacute refazendo de uma prolongada enfermidade Eacute-nos prejudicial o conviacutevio com muita gente natildeo haacute ningueacutem que nos natildeo pegue qualquer viacutecio nos contagie nos contamine sem noacutes darmos isso Por isso quanto maior eacute a massa a que nos juntamos tanto maior eacute o perigo Mas nada eacute tatildeo prejudicial para o bom caraacuteter como o haacutebito de descansar nos jogos em seguida eacute que o viacutecio sutilmente rasteja atraveacutes da avenida de prazer sobre aquele [que assiste aos jogos] []14

Nos espetaacuteculos de circo em que as aglomeraccedilotildees eram particularmente maiores o prazer e as emoccedilotildees

eram potencializadas fazendo com que o espectador ao regressar agrave casa se sentisse ldquo[] mais ganancioso

mais ambicioso mais voluptuoso e ainda mais cruel e desumano por ter estado entre tantos seres

humanosrdquo (Sen Ep 73)15 Finalmente para Secircneca e para os demais estoicos o perigo da multidatildeo residia

em sua capacidade de drenar as capacidades intelectuais e a forccedila moral dos filoacutesofos (Sen Ep 76)

Todas as criacuteticas acima assinaladas convergem para um ponto a elite romana em geral e os estoicos

especificamente se opunham aos espetaacuteculos de modo a definir e mais que isso defender a sua identidade

de elite filosoacutefica em clara oposiccedilatildeo agrave cultura popular e aos entretenimentos apreciados pelas camadas

sociais inferiores formada em grande parte por iletrados ou pessoas de escolaridade insipiente Essa

Isso mostra que essa ainda era uma praacutetica corrente nos seacuteculos posteriores e sua diminuiccedilatildeo converge com a atenuaccedilatildeo do evergetismo durante o desmantelamento do centro poliacutetico imperial (BAPTISTA 2015 p 248-260) 13 ldquoO estoicismo pretendeu atraveacutes de sua doutrina moral fornecer meios para que o homem pudesse garantir sua felicidade Ao assegurar o conhecimento de como o homem deveria agir a partir da identificaccedilatildeo dos bens e dos males morais e consequente atenuaccedilatildeo das paixotildees o filoacutesofo estoico estava certo de que dessa forma o homem estaria agindo conforme sua natureza E ainda que embora fosse naturalmente apropriado preferir a riqueza e a sauacutede agrave pobreza e agrave doenccedila esses bens considerados como preferiacuteveis e natildeo-preferiacuteveis natildeo fariam diferenccedila na conquista da felicidade idealmente entendida como ataraxiacutea ou seja a tranquilidade da almardquo (GUIMARAtildeES 2009 p 98) 14 ldquoQuid tibi vitandum praecipue existimes quaeris Turbam Nondum illi tuto committeris Ego certe confitebor inbecillitatem meam numquam mores quos extuli refero Aliquid ex eo quod conposui turbatur aliquid ex iis quae fugavi redit Quod aegris evenit quos longa inbecillitas usque eo adfecit ut nusquam sine offensa proferantur hoc accidit nobis quorum animi ex longo morbo reficiuntur Inimica est multorum conversatio nemo non aliquod nobis vitium aut commendat aut inprimit aut nescientibus adlinit Utique quo maior est populus cui miscemur hoc periculi plus est Nihil vero tam damnosum bonis moribus quam in aliquo spectaculo desidere Tunc enim per voluptatem facilius vitia subrepunt []rdquo (Trad Segurado e Campos 1991 com pequenas modificaccedilotildees nossas) 15 ldquoAvarior redeo ambitiosior luxuriosior immo vero crudelior et inhumanior quia inter homines fuirdquo (Trad Segurado e Campos 1991 com pequenas modificaccedilotildees nossas)

[93]

oposiccedilatildeo natildeo era constituiacuteda por uma rejeiccedilatildeo total e indiscriminada aos espetaacuteculos mas ao perigo que

representavam para o bem-estar intelectual e moral dos homens de bem da elite (MAMMEL 2014 p 607)

Em Tertuliano essa criacutetica foi transmutada e adaptada Em sua obra o paleocristatildeo tambeacutem alude aos

perigos da coletividade pois ldquoAssim como o engodo do dinheiro das honras da gula da devassidatildeo e da

gloacuteria eacute concupiscecircncia tambeacutem eacute concupiscecircncia o engodo do prazer e uma espeacutecie de prazer eacute a ida aos

espetaacuteculosrdquo (Spect 142)16 Tornavam-se assim perturbados ldquo[] com as aacutescuas do furor e da biacutelis da ira e

do desesperordquo (Spect 152)17 pois toda a assistecircncia a um espetaacuteculo provocava emoccedilotildees natildeo espirituais

mesmo naqueles que conseguissem apreciar ldquoo espetaacuteculo modesta e retamente por atender ao respeito

que a si deve ou ainda por imposiccedilatildeo da idade ou do temperamento natildeo se livra ao abalo espiritual e ao

fogo sob as cinzas duma paixatildeo larvadardquo (Spect 155)18 O atleta nesse contexto tinha participaccedilatildeo decisiva

na contaminaccedilatildeo pecaminosa pois era um ldquo[] inquietador de tanta cabeccedila vatilde e agitador de tantas paixotildees

cingido da coroa rostral como sacerdote coroado e pintalgado como rufiatildeo de alcouce a quem o diabo

embelezou para arremeter contra Elias e o arrebatar em um carro por esses ares forardquo (Spect 232)19

No que concerne aos judeus a sua oposiccedilatildeo a maioria das tradiccedilotildees greco-romanas como deturpadoras da

cultura da moralidade ancestral e das tradiccedilotildees religiosas judaicas pode ser visualizada em um contexto

muito antigo ainda no periacuteodo poacutes-alexandrino O conflito decorrente das atitudes helenizadas como a

instituiccedilatildeo dos jogos pode ser confirmado jaacute no Segundo Livro de Macabeus (49-15 18-19) Essa narrativa

apresenta um tom criacutetico agrave valorizaccedilatildeo da cultura helecircnica e luacutedica de ginaacutesio durante o final do reinado de

Seleuco IV Filopaacuteter (186 ndash 176 aC) precedido por Antiacuteoco IV Epiacutefacircnio que governou a Siacuteria Palestina

entre 175 e 164 aC (GIORDANI 2001 p 150 KIPPENBERG 1988 p 77) Vaacuterias das atitudes do governo

helenizado ndash especialmente as que reforccedilavam o estigma de outsiders sociais e poliacuteticos dos judeus pelos

seus costumes distintos ou maciccedila capacidade de agir como coletivo ndash levaram a conflitos com as

autoridades nos quais se destacou o papel de Judas Macabeu que liderou uma seacuterie de revoltas contra o

Impeacuterio Selecircucida entre os anos de 167 e 160 aC (RUSSELL 1973 p 18 ASURMENDI 2004 p 426) A

atitude de resistir agravequeles considerados opressores da feacute tradicional pode ser vista durante grande parte

da histoacuteria do povo judaico chegando tambeacutem agrave promoccedilatildeo ostensiva dos jogos e espetaacuteculos sob o governo

do rei-cliente Herodes I o Grande de 37 a 4 aC Segundo Rajak (2003 p 3)

Herodes que era de uma famiacutelia idumeia mas que havia se convertido ao judaiacutesmo chamou a si mesmo natildeo soacute Philoroacutemaios um amante de Roma mas tambeacutem um amante dos

16 ldquoNam sicut pecuniae vel dignitatis vel gulae vel libidinis vel gloriae ita et voluptatis concupiscentia est species autem voluptatis etiam spectaculardquo 17 ldquo[] non furore non bile non ira non dolore inquietarerdquo 18 ldquoNam et si qui modeste et probe spectaculis fruitur pro dignitatis vel aetatis vel etiam naturae suae condicione non tamen immobilis animi est et sine tacita spiritus passionerdquo 19 ldquo[] tot animarum inquietator tot furiarum minister tot statuum ut sacerdos coronatus vel coloratus ut leno quem curru rapiendum diabolus adversus Elian exornavitrdquo

[94]

gregos e seu orgulho em sua proacutepria cultura grega expressaram-se em atos como a fundaccedilatildeo de cidades gregas e benfeitorias para os Jogos Oliacutempicos Atos que natildeo se limitaram ao mundo pagatildeo mas tiveram um impacto tambeacutem dentro da Palestina judaica Como resultado a clivagem entre os judeus se intensificou

De fato para os judeus um grupo eacutetnico-religioso que guardava certo distanciamento da cultura pagatilde os

espetaacuteculos ndash natildeo importando seu estilo niacutevel de violecircncia ou competitividade ndash eram censuraacuteveis por

razotildees morais consuetudinaacuterias (MCCLISTER 2008 p 131 PATRICH 2002 p 231-9) Dentro do

pensamento judaico a reaccedilatildeo aos jogos foi tambeacutem evidenciada pelo historioacutegrafo Flaacutevio Josefo que

descreve vaacuterias objeccedilotildees aos espetaacuteculos instituiacutedos por Herodes sempre elucidando sua preocupaccedilatildeo

com a defesa da cultura e moralidade judaicas uma vez que os jogos levariam os homens agrave negligecircncia da feacute

(KASHER 1996 p 152-6) Um trecho em especial embora longo merece ser citado

Assim Herodes com poder absoluto e plena liberdade para fazer o que queria natildeo teve receio de se afastar cada vez mais das tradiccedilotildees de nossos antepassados Aboliu os nossos antigos costumes que lhe deveriam ser inviolaacuteveis para introduzir outros trazendo assim uma estranha mudanccedila na disciplina que mantinha o povo no cumprimento do dever Comeccedilou por instituir jogos lutas e corridas que se faziam cada cinco anos em honra de Augusto e mandou construir para esse fim um circo em Jerusaleacutem e um grande anfiteatro fora da cidade Esses dois edifiacutecios eram soberbos mas contraacuterios aos nossos costumes que natildeo nos permitem assistir a semelhantes espetaacuteculos [] O circo era rodeado de inscriccedilotildees em louvor a Augusto e de trofeacuteus das naccedilotildees que ele tinha vencido Havia ouro e prata ricos vestuaacuterios e pedras preciosas Mandou tambeacutem vir de todas as partes grande quantidade de animais ferozes como leotildees e outros animais cuja forccedila extraordinaacuteria ou alguma qualidade rara suscitava admiraccedilatildeo e curiosidade [] Mas os judeus o consideravam uma deturpaccedilatildeo e uma corrupccedilatildeo da disciplina de seus antepassados Nada lhes parecia mais iacutempio que expor homens ao furor das feras por um prazer tatildeo cruel ou abandonar os santos costumes para abraccedilar os de naccedilotildees idolatras Os trofeacuteus que lhes pareciam cobrir figuras de homens natildeo lhes eram menos insuportaacuteveis porque violavam inteiramente as nossas leis Herodes vendo-os com esses sentimentos julgou natildeo dever usar de violecircncia Falou-lhes com muita afabilidade procurando fazecirc-los compreender que aquele temor procedia apenas de uma vatilde supersticcedilatildeo Mas natildeo conseguiu persuadi-los Convictos de que ele cometia um graviacutessimo pecado declararam que ainda que tolerassem o resto natildeo permitiriam jamais em suas cidades imagens ou figuras de homens porque a sua religiatildeo o proibia expressamente Herodes facilmente concluiu por essas palavras que o uacutenico meio de acalmaacute-los era livraacute-los daquele engano Levou alguns deles ao circo mostrou-lhes vaacuterios trofeacuteus e perguntou-lhes o que pensavam que eram Eles responderam que eram figuras de homens Entatildeo ele mandou tirar todos os ornamentos restando apenas os cabides sobre os quais estavam pendurados Todos acharam graccedila e o tumulto acalmou-se Quase todos vieram a tolerar com facilidade o resto mas alguns natildeo mudaram os seus sentimentos nem a sua opiniatildeo O horror que tinham aos costumes estrangeiros lhes fazia crer que natildeo podiam ser introduzidos sem prejuiacutezo das tradiccedilotildees de nossos antepassados e sem causar a ruiacutena da naccedilatildeo Assim natildeo consideraram mais Herodes seu rei e sim um inimigo E resolveram antes expor-se a qualquer coisa que tolerar tatildeo grande mal (Jos AJ 11660 grifo nosso)20

20 Διὰ τοῦτο καὶ μᾶλλον ἐξέβαινεν τῶν πατρίων ἐθῶν καὶ ξενικοῖς ἐπιτηδεύμασιν ὑποδιέφθειρεν τὴν πάλαι

κατάστασιν ἀπαρεγχείρητον οὖσαν ἐξ ὧν οὐ μικρὰ καὶ πρὸς τὸν αὖθις χρόνον ἠδικήθημεν ἀμεληθέντων ὅσα

πρότερον ἐπὶ τὴν εὐσέβειαν ἦγεν τοὺς ὄχλους πρῶτον μὲν γὰρ ἀγῶνα πενταετηρικὸν ἀθλημάτων

κατεστήσατο Καίσαρι καὶ θέατρον ἐν Ἱεροσολύμοις ᾠκοδόμησεν αὖθίς τ᾽ ἐν τῷ πεδίῳ μέγιστον ἀμφιθέατρον

περίοπτα μὲν ἄμφω τῇ πολυτελείᾳ τοῦ δὲ κατὰ τοὺς Ἰουδαίους ἔθους ἀλλότρια [] τό γε μὴν θέατρον

ἐπιγραφαὶ κύκλῳ περιεῖχον Καίσαρος καὶ τρόπαια τῶν ἐθνῶν ἃ πολεμήσας ἐκεῖνος ἐκτήσατο χρυσοῦ τε

ἀπέφθου καὶ ἀργύρου πάντων αὐτῷ πεποιημένωντὰ δ᾽ εἰς ὑπηρεσίαν οὐδὲν οὕτως ἦν οὔτ᾽ ἐσθῆτος τίμιον οὔτε

[95]

De acordo com Josefo os espetaacuteculos romanos eram uma afronta agraves tradiccedilotildees e agrave moralidade ancestral dos

judeus elementos centrais na definiccedilatildeo de sua identidade cultural Assim a oposiccedilatildeo a eles era um meio de

defender e definir a identidade judaica contra as influecircncias estrangeiras tidas como perniciosas Em Sobre

as Guerras Judaicas elaborada entre 75 e 79 do mesmo autor fica claro que os jogos tambeacutem significavam

para os judeus uma referecircncia agrave autoridade romana exercida sobre sua terra natal bem como a

consequente perda da estabilidade e autonomia poliacutetica A edificaccedilatildeo do mais famoso anfiteatro o Coliseu

ou Anfiteatro Flaacutevio era uma lembranccedila constante dos horrores da guerra da Judeia pois

a construccedilatildeo do Coliseu comeccedilou no iniacutecio dos anos 70 apoacutes a conclusatildeo da primeira guerra judaica e os prisioneiros judeus podem ter trabalhado nele [] A inscriccedilatildeo dedicatoacuteria na fachada da estrutura anunciava para os espectadores alfabetizados que [IMP T CAES VESPASIANVS AVG AMPHITHEATRUM NOVUM EX MANVBIS FIERI IVSSIT] ldquo[O Imperador Ceacutesar] Vespasiano [Augusto] fez esse [novo anfiteatro] a ser erigido a partir dos despojos [de guerra Isto eacute de sua vitoacuteria na Judeacuteia]rdquo [] O anfiteatro mais famoso do Impeacuterio Romano eacute assim um monumento agrave sujeiccedilatildeo dos judeus (MACLEAN 2014 p 585)

Aleacutem disso Josefo (BJ 21 31 55-6) registra que Tito teria executado milhares de judeus cativos atirando-

os aos animais ou obrigando-os a lutar entre si O triunfo que Vespasiano e Tito celebraram em Roma no

veratildeo de 71 incluiu uma procissatildeo de prisioneiros judeus Em certa medida os locais destinados a esses

espetaacuteculos coletivos funcionavam como instrumentos de controle social como mecanismos de dissuasatildeo

aos que de alguma forma atentassem contra os interesses imperiais Era o caso das minorias religiosas por

vezes estigmatizadas como inimigos de Roma Em suma os espetaacuteculos puacuteblicos teriam auxiliado na

humilhaccedilatildeo dos judeus Quando Josefo afirmou que os espetaacuteculos levavam agrave negligecircncia das observacircncias

da feacute (mesmo argumento empregado em 2 Mac 413-15) ele se referia muito mais do que meramente ao

tempo despendido nos espetaacuteculos pois enfatizava maldade impiedade praacuteticas estranhas subordinaccedilatildeo

e idolatria proacuteprios do recinto dos jogos que minavam seus costumes e regras de feacute e praacutetica diluindo

σκευῆς λίθων ὃ μὴ τοῖς ὁρωμένοις ἀγωνίσμασιν συνεπεδείκνυτο παρασκευὴ δὲ καὶ θηρίων ἐγένετο λεόντων τε

πλείστων αὐτῷ συναχθέντων καὶ τῶν ἄλλων ὅσα καὶ τὰς ἀλκὰς ὑπερβαλλούσας ἔχει καὶ τὴν φύσιν ἐστὶν

σπανιώτερα [] ἀσεβὲς μὲν γὰρ ἐκ προδήλου κατεφαίνετο θηρίοις ἀνθρώπους ὑπορρίπτειν ἐπὶ τέρψει τῆς

ἀνθρώπων θέας ἀσεβὲς δὲ ξενικοῖς ἐπιτηδεύμασιν ἐξαλλάττειν τοὺς ἐθισμούς πάντων δὲ μᾶλλον ἐλύπει τὰ

τρόπαια δοκοῦντες γὰρ εἰκόνας εἶναι τὰς τοῖς ὅπλοις περιειλημμένας ὅτι μὴ πάτριον ἦν αὐτοῖς τὰ τοιαῦτα

σέβειν οὐ μετρίως ἐδυσχέραινον Ἐλάνθανον δ᾽ οὐδὲ τὸν Ἡρώδην ἐκταραττόμενοι καὶ βίαν μὲν ἐπάγειν

ἄκαιρον ᾤετο καθωμίλει δ᾽ ἐνίους καὶ παρηγόρει τῆς δεισιδαιμονίας ἀφαιρούμενος οὐ μὴν ἔπειθεν ἀλλ᾽ ὑπὸ

δυσχερείας ὧν ἐδόκουν ἐκεῖνον πλημμελεῖν ὁμοθυμαδὸν ἐξεβόων εἰ καὶ πάντα δοκοῖεν οἰστά μὴ φέρειν

εἰκόνας ἀνθρώπων ἐν τῇ πόλει τὰ τρόπαια λέγοντες οὐ γὰρ εἶναι πάτριον αὐτοῖς Ἡρώδης δὲ τεταραγμένους

ὁρῶν καὶ μὴ ῥᾳδίως ἂν μεταπεσόντας εἰ μὴ τύχοιεν παρηγορίας καλέσας αὐτῶν τοὺς ἐπιφανεστάτους εἰς τὸ

θέατρον παρήγαγεν καὶ δείξας τὰ τρόπαια τί ποτ᾽ ἔστιν ὃ δοκεῖ ταῦτα αὐτοῖς ἐπύθετο τῶν δὲ ἐκβοησάντων

ἀνθρώπων εἰκόνες ἐπιτάξας ἀφαιρεθῆναι τὸν περιθέσιμον κόσμον ἐπιδείκνυσιν αὐτοῖς γυμνὰ τὰ ξύλα τὰ δ᾽

εὐθὺς ἦν ἀποσυληθέντα γέλως καὶ πλεῖστον εἰς διάχυσιν ἐδυνήθη τὸ καὶ πρότερον αὐτοὺς ἐν εἰρωνείᾳ τίθεσθαι

τὰς κατασκευὰς τῶν ἀγαλμάτων Τοῦτον δὲ τὸν τρόπον αὐτοῦ παρακρουσαμένου τὸ πλῆθος καὶ τὴν ὁρμὴν ἣν

ἐπεπόνθεισαν ἐξ ὀργῆς διαχέαντος οἱ μὲν πλείους εἶχον ὡς μεταβεβλῆσθαι καὶ μὴ χαλεπαίνειν ἔτι τινὲς δ᾽

αὐτῶν ἐπέμενον τῇ δυσχερείᾳ τῶν οὐκ ἐξ ἔθους ἐπιτηδευμάτων καὶ τὸ καταλύεσθαι τὰ πάτρια μεγάλων

ἡγούμενοι ἀρχὴν κακῶν ὅσιον ᾠήθησαν ἀποκινδυνεῦσαι μᾶλλον ἢ δοκεῖν ἐξαλλαττομένης αὐτοῖς τῆς

πολιτείας περιορᾶν Ἡρώδην πρὸς βίαν ἐπεισάγοντα τὰ μὴ δι᾽ ἔθους ὄντα καὶ λόγῳ μὲν βασιλέα τῷ δ᾽ ἔργῳ

πολέμιον φαινόμενον τοῦ παντὸς ἔθνους (Trad Vicente Pedroso 2005)

[96]

aquilo que os fazia um grupo coeso religiosamente Esse argumento que eacute reciclado por Tertuliano sob um

vieacutes paleocristatildeo por exemplo quando afirmava que a ida aos espetaacuteculos aleacutem de perigosa pois qualquer

um poderia ser dominado por legiotildees satacircnicas por estarem afastados de Deus e em espaccedilo demoniacuteaco

(Spect 261-4) causava um movimento da perda de controle do corpo e do espiacuterito uma vez que os

espectadores nem a si mesmos se pertenciam trazendo a hipocrisia e a incoerecircncia para dentro da

comunidade paleocristatilde (Spect 165)

A alteridade judaica assim como a paleocristatilde seacuteculos depois teria sido demarcada dentre outras

variaacuteveis pela recusa aos jogos muito embora tenhamos conhecimento de que dentre os espectadores do

circo ou do anfiteatro houvesse judeus Essa praacutetica pode ser confirmada pois segundo Weiss (1999 p

44) havia assentos reservados para os judeus em teatros provinciais MacLean (2014 p 585) afirma que

[] uma parte substancial de judeus foram provavelmente os cidadatildeos romanos e portanto elegiacutevel para se misturar com o resto do puacuteblico [] Judeus em Roma teriam se encontrado na posiccedilatildeo de negociar identidades muacuteltiplas simultaneamente em primeiro lugar decidir se a assistir aos jogos entatildeo se a sentarem-se uns com os outros ou se misturar com o resto da multidatildeo e finalmente como responder agraves demonstraccedilotildees de valor marcial e do imperialismo que eram encenadas na arena

McClister (2008 p 141) interpretando o deuterocanocircnico 1 Livro dos Macabeus (114-15) esclarece

sobre a praacutetica de reversatildeo da circuncisatildeo por epispasmo ciruacutergico uma indicaccedilatildeo de como os elementos

ou marcadores da etnia judaica foram menos fixos do que poderiacuteamos supor O autor de Macabeus retrata

que ldquoconstruiacuteram entatildeo em Jerusaleacutem uma praccedila de esportes (γυμνάσιον gymnaacutesium) segundo os

costumes das naccedilotildees restabeleceram seus prepuacutecios e renegaram a Alianccedila sagrada Assim associaram-se

aos pagatildeos e se venderam para fazer o malrdquo21 A razatildeo para o ato de reconstruccedilatildeo do prepuacutecio se deveu ao

fato de que para gregos e romanos era considerado inaceitaacutevel um homem frequentar um banho puacuteblico

ou ginaacutesio circuncidado Mediante esse relato o fato de alguns judeus decidirem participar em uma das

instituiccedilotildees heleniacutesticas mais importantes o ginaacutesio diz muito sobre o grau de aculturaccedilatildeo heleniacutestica e das

mudanccedilas propiciadas por Herodes no cotidiano e nas sociabilidades da Palestina judaica (MCCLISTER

2008 p 141) Essas interaccedilotildees sociais natildeo eram propriamente uma novidade uma vez que

a disseminaccedilatildeo gradual do poder romano criou uma situaccedilatildeo em que literalmente centenas de grupos eacutetnicos distintos adotaram aspectos da cultura romana pelo menos em algum grau Este foi um processo complexo que envolveu vaacuterios niacuteveis de aceitaccedilatildeo ativa compulsatildeo aquiescecircncia e resistecircncia O espetaacuteculo como uma encenaccedilatildeo puacuteblica de normas e praacuteticas dos romanos era um cenaacuterio particularmente importante onde esse processo foi desenrolado (MACLEAN 2014 p 585)

21 ldquoκαὶ ᾠκοδόμησαν γυμνάσιον ἐν Ιεροσολύμοις κατὰ τὰ νόμιμα τῶν ἐθνῶν καὶ ἐποίησαν ἑαυτοῖς ἀκροβυστίας

καὶ ἀπέστησαν ἀπὸ διαθήκης ἁγίας καὶ ἐζευγίσθησαν τοῖς ἔθνεσιν καὶ ἐπράθησαν τοῦ ποιῆσαι τὸ πονηρόνrdquo (Trad Biacuteblia de Jerusaleacutem 2006) A criaccedilatildeo do ginaacutesio e a valorizaccedilatildeo da cultura helecircnica podem ser observadas tambeacutem no 2 Livro de Macabeus (49-15 18-19) e em Flaacutevio Josefo (AJ 12237-41)

[97]

Estudos recentes como Weiss (1999 p 23-49) e Maclean (2014 p 578-589) demonstraram tambeacutem que

os judeus da Palestina comeccedilaram a aceitar os jogos romanos como parte de seu background sociocultural jaacute

no final do primeiro seacuteculo o que foi atestado pela proliferaccedilatildeo de espetaacuteculos e jogos naquela regiatildeo ao

longo do segundo e terceiro seacuteculos Em outras palavras a reaccedilatildeo judaica aos jogos e espetaacuteculos exprimiu

natildeo apenas um diaacutelogo entre centro e periferia entre estabelecidos e outsiders mas tambeacutem entre os

proacuteprios membros de um grupo religioso na fronteira com integrantes de diversos estamentos sociais que

entravam em conflito e diaacutelogo no ambiente urbano e que deviam por meio de suas praacuteticas e

representaccedilotildees criar e diferir a si mesmos na criaccedilatildeo e coesatildeo de uma identidade de modo que ao mesmo

tempo gerenciassem da melhor forma possiacutevel suas interaccedilotildees na complexidade do dia a dia

Nosso objetivo foi identificar as principais objeccedilotildees aos jogos levantadas por grupos diferentes dentro da

cultura romana especialmente os estoicos e os judeus Isso foi feito de maneira a evidenciar que existiam

diversas criacuteticas aos espetaacuteculos anteriores ao cristianismo e que elas alimentam de alguma maneira as

reflexotildees dos Padres da Igreja No Impeacuterio cada grupo criava uma autorrepresentaccedilatildeo mediante rejeiccedilatildeo

ou aceitaccedilatildeo de determinados marcadores culturais negociando no cotidiano sua identidade processo

para o qual os espetaacuteculos contribuiacuteram sobremaneira Significa dizer tambeacutem que nem sempre a dimensatildeo

retoacuterica corresponde a uma praacutetica coerente e homogecircnea ndash quando o cotidiano estava em pauta a palavra

e a accedilatildeo poderiam ser elementos avessos

A oposiccedilatildeo agrave ida aos espetaacuteculos estava intimamente ligada aos processos de autorrepresentaccedilatildeo e

formaccedilatildeo da identidade Segundo Mammel (2014 p 603) ldquo[] a proacutepria cultura de espetaacuteculo romano [e

tambeacutem helecircnica] desempenhou um papel fundamental na formaccedilatildeo de muitos aspectos da identidade

romana e para a sociedade romana como um todo ateacute mesmo a oposiccedilatildeo aos espetaacuteculos forneceu um

meio de automodificaccedilatildeo individual e dentro do grupordquo Isso significa dizer que ao rejeitar e denunciar as

mazelas reais ou simboacutelicas dos jogos romanos os criacuteticos foram capazes de se definir e posicionar-se em

relaccedilatildeo a outros grupos antigos Para os estoicos a alteridade era manifesta no comportamento das massas

incultas Para os judeus e em breve para os paleocristatildeos os jogos significavam corrupccedilatildeo violecircncia

escravidatildeo e subserviecircncia diante dos pagatildeos que mesmo compartilhando certo background cultural

possuiacuteam outros coacutedigos de moralidade e de identidade

Nesse sentido a disciplina proposta por Tertuliano natildeo seria totalmente ineacutedita uma vez que dentre as

principais ideias do cartaginecircs se destacam os argumentos tomados de empreacutestimo altamente

influenciados pelas correntes filosoacuteficas epicurista ciacutenica e gnoacutestica e como visto neste trabalho estoica

Sobre o uso da filosofia na teologia de Tertuliano Roberts (1924 p 42) afirmou

[98]

quando olhamos para obras de Tertuliano natildeo encontramos qualquer posiccedilatildeo sistemaacutetica adotada que natildeo seja baseada na leitura biacuteblica [] Ele de fato aceita algumas das ideias pagatildes em circulaccedilatildeo desde que elas natildeo contradigam as Escrituras [] por exemplo em De anima onde as ideias teacutecnicas dos estoicos sobre a natureza da alma satildeo implementadas contra Hermoacutegenes embora mais tarde os Padres natildeo considerassem tais ideias como neutras ou objetivas mas sim ao contraacuterio do ensino inspirado Ele era tambeacutem muito disposto a fazer uso de argumentos filosoacuteficos para mostrar o erro da heresia Mas parece que isso tudo satildeo espeacutecies de ferramentas retoacutericas para discutir com os pagatildeos afinal ele poderia igualmente rejeitar em outros contextos um mesmo argumento utilizado por ele

A partir da anaacutelise de Roberts e por meio interpretaccedilatildeo de uma passagem de Sobre a prescriccedilatildeo dos hereges

(79-13) podemos afirmar que a autoridade maacutexima para Tertuliano natildeo seria encontrada em ideias

inventadas ou desenvolvidas por homens e sim apenas na inspiraccedilatildeo divina Em um trecho exaltado arguiu

O que tem Atenas a ver com Jerusaleacutem Que relaccedilatildeo haacute entre a Academia e a Igreja O que os hereges tecircm com os cristatildeos Nossas instruccedilotildees vecircm do poacutertico de Salomatildeo que ensinou ele mesmo que o Senhor deve ser procurado na simplicidade de coraccedilatildeo Fora com todas as tentativas de criar um cristianismo estoico platocircnico e dialeacutetico (Tert Praes her 79-11)22

Assim mesmo que utilizasse vaacuterios argumentos da filosofia Tertuliano (Praes her 712-13) a rejeitou

completamente pois para ele a experiecircncia cristatilde devia ser vivida por experiecircncia empiacuterica Ele afirmava

que esta era a verdade revelada e vivenciada diariamente recusando-se assim a adulteraacute-la com qualquer

outro material meramente transitoacuterio fosse de matriz filosoacutefica ou dos demais textos escritos claacutessicos

(JOHNSON 2001 p 63 ROBERTS 1924 p 42 ss)

Ao mesmo tempo ele tambeacutem polemizou ldquo[] com os autores romanos baseando-se e utilizando as

referecircncias das representaccedilotildees sistematizaccedilotildees e argumentaccedilotildees sobre a religiatildeo romana que se

encontram nestes mesmos autoresrdquo (AMES 2008 p 55) Em grande medida as principais influecircncias

literaacuterias claacutessicas para os autores paleocristatildeos eram os escritores latinos escolares consagrados com os

quais eacute provaacutevel que o cartaginecircs tenha sido alfabetizado23 Fica clara aqui a recepccedilatildeo paleocristatilde dos

claacutessicos da cultura pagatilde uma vez que as formas e gecircneros greco-romanos foram continuamente

22 ldquoQuid ergo Athenis et Hierosolymis quid academiae et ecclesiae quid haereticis et christianis Nostra institutio de porticu Solomonis est qui et ipse tradiderat Dominum in simplicitate cordis esse quaerendum Viderint qui Stoicum et Platonicum et dialecticum christianismum protuleruntrdquo (Trad Cristiana de Assis Serra 2001) 23 Especialmente importante para Tertuliano assim como tambeacutem para toda a tradiccedilatildeo da patriacutestica latina posterior a ele satildeo obras como o Sobre a Natureza dos Deuses de Ciacutecero ou as Antiguidades das coisas humanas e divinas de Varratildeo (AMES 2008 p 47-48) Aleacutem disso em Sobre os espetaacuteculos (58) Tertuliano tambeacutem faz uso de uma obra claacutessica muito relevante para a temaacutetica luacutedica de autoria de Suetocircnio no princiacutepio do segundo seacuteculo nomeada como Ludicrae Historiae hoje perdida Segundo o testemunho do proacuteprio esse trabalho de Suetocircnio foi a fonte principal para elucidar os aspectos mais teacutecnicos as origens mitoloacutegicas e religiosas dos jogos e elementos luacutedicos e a relaccedilatildeo dos espetaacuteculos com as festas religiosas romanas presentes no De spectaculis (58) Contudo Tertuliano em seu texto fez somente menccedilatildeo ao autor e natildeo agrave obra Dessa forma a posteridade soacute conheceu o tiacutetulo dessa obra graccedilas agrave menccedilatildeo da mesma no nono livro das Noites Aacuteticas (de Aulo Geacutelio (973) ldquoa partir desta uacuteltima podemos deduzir algumas das caracteriacutesticas do trabalho deste historioacutegrafo [Suetocircnio] Nela se examinavam quatro tipos de espetaacuteculos os ludi circenses os theatrici os athletici e finalmente o munus gladiatorio ndash era provaacutevel que estivesse compreendido tambeacutem os ludi uenatoriirdquo (JIMEacuteNEZ SAacuteNCHEZ 2001 p 16)

[99]

absorvidos e renovados das mais diferentes formas pelos autores cristatildeos Elucidativo eacute perceber que

mesmo Tertuliano fazendo uso em seu texto dos autores claacutessicos como Varratildeo (Ling 5154 em Spect 53)

Suetocircnio (Ludicra Historia em Spect 58) e Virgiacutelio (Georg 3113-114 em Spect 92) em outra parte de sua

obra renegou toda a literatura pagatilde Assim o apologista explicitou que os ouvidos e os olhos do verdadeiro

cristatildeo deveriam estar a serviccedilo do espiacuterito e para que isso fosse efetuado o fiel deveria rejeitar toda a

literatura claacutessica vista como profana em especial as obras de trageacutedia e comeacutedia (Tert Spect 175)

Mesmo que ele proacuteprio tenha utilizado o conhecimento e os textos claacutessicos Tertuliano foi peremptoacuterio

toda a literatura claacutessica natildeo deveria ser lida nem citada pois isso seria consentir com seu conteuacutedo

lascivo criminoso e devasso (Spect 294) A justificativa para que ele acessasse essa tradiccedilatildeo portanto era

a de exposiccedilatildeo do engano demoniacuteaco presente nesses textos

O emprego do gecircnero apologeacutetico pelos autores latinos paleocristatildeos mediante a apropriaccedilatildeo dos cacircnones

claacutessicos principalmente em momentos de enfrentamento retoacuterico representava uma estrateacutegia

discursiva de um grupo que lutava pelo estabelecimento de sua identidade e por maior influecircncia social em

um contexto de desigual de distribuiccedilatildeo do poder e de busca de legitimidade social (SIDER 1978 p 340)

Em grande medida isso se explica segundo Corbeill (2007 p 70) porque a praacutetica retoacuterica especialmente

nos periacuteodos republicano e imperial romanos trabalhou de modo a reafirmar o pensamento hieraacuterquico

existente ou propor uma contestaccedilatildeo por meio do embate discursivo ou do convencimento da audiecircncia

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Entre manuscritos e impressos do corpus Cypriani a transmissatildeo das obras de Cipriano de Cartago

Carolline da Silva Soares

carollinesgmailcom

A produccedilatildeo literaacuteria de Cipriano eacute vasta sobretudo se

consideramos o breve periacuteodo em que ocupou o episcopado de

Cartago entre 249 e 258 e redigiu os seus escritos Considerava

Tertuliano o seu mestre e de fato foi muito influenciado pelos

escritos dele Poreacutem seu estilo literaacuterio natildeo eacute impetuoso como o de

Tertuliano pelo contraacuterio sua maneira de escrever eacute considerada

mais calma tranquila e ponderada (CARDOSO 2011 p 182) O

corpus Cypriani tal como o conhecemos hoje abarca 81 cartas e 13

tratados de extensatildeo proveniecircncia e conteuacutedo muito diversos

Algumas cartas se perderam e provavelmente alguns de seus

sermotildees tambeacutem Cipriano foi liacuteder eclesiaacutestico eminentemente de

accedilatildeo como demonstra sua intensa correspondecircncia

O objetivo em nossa tese de doutorado foi demonstrar como se

desenvolveu o conflito em torno do rebatismo dos lapsi na

comunidade cartaginesa liderada por Cipriano e analisar a defesa

que ele fez acerca da autoridade episcopal bem como da ldquopurezardquo

da Igreja Assim selecionamos as 81 cartas e oito dos tratados de

Cipriano ndash Ad Donatum Ad Demetrianum De lapsis De catholicae

Ecclesiae unitate De mortalitate De habitu uirginum De opere et

eleemosynis e De bono patientiae ndash como fonte documental do nosso

[103]

trabalho Tais tratados nos permitiram elucidar as praacuteticas cotidianas dos cristatildeos em interaccedilatildeo com os

adeptos de outras crenccedilas em Cartago e as admoestaccedilotildees de Cipriano com a finalidade de disciplinar a

congregaccedilatildeo cartaginesa com vistas a manter a unidade da igreja Por isso neste artigo iremos tratar apenas

dos oito tratados que utilizamos para a escritura de nossa tese

A composiccedilatildeo dos tratados

Considerados em conjunto e tendo em conta o conteuacutedo e a forma Cipriano possui 13 tratados autecircnticos

que podem ser repartidos em pelo menos trecircs grupos O primeiro deles se refere aos tratados de teor

apologeacutetico como eacute o caso do Ad Donatum Quod idola dii non sint Ad Demetrianum Ad Fortunatum e Ad

Quirinum o segundo grupo aos escritos de teor disciplinar tais como o De lapsis De catholicae Ecclesiae

unitate e De mortalitate e o terceiro por sua vez abrange os sermotildees e exortaccedilotildees pastorais como o De

habitu uirginum De dominica oratione De opere et eleemosynis De bono patientiae e De zelo et lioure

As Epistulae de Cipriano

A preeminecircncia da igreja de Cartago os impasses da atividade pastoral a cronologia dos conciacutelios sua

periodicidade e os temas neles discutidos entre outros assuntos satildeo aspectos que a correspondecircncia de

Cipriano nos permite conhecer com riqueza de detalhes (SALCEDO GOacuteMEZ 2002 p 9) A correspondecircncia

de Cipriano eacute abundante e nos traz informaccedilotildees valiosas sobre a organizaccedilatildeo da Igreja a disciplina

eclesiaacutestica os fundamentos da doutrina e a liturgia As Epistulae nos informam sobretudo acerca do

cotidiano de um bispo influente numa das proviacutencias mais importantes do Impeacuterio Romano em meados do

seacuteculo III dC

As cartas que compotildeem o corpus Cypriani foram destinadas tanto a indiviacuteduos em geral cleacuterigos quanto a

grupos de trecircs ou quatro pessoas e tambeacutem agraves congregaccedilotildees de diversas localidades especialmente agrave de

Cartago1 O estilo de Cipriano foi quase sempre o de um orador mesmo quando ele escreve a pessoas

privadas2

O epistolaacuterio tal como o possuiacutemos hoje foi constituiacutedo pouco a pouco Cipriano guardava coacutepia das

correspondecircncias que enviava e a elas juntava as respostas que recebia Assim tinha sempre agrave matildeo as cartas

que havia escrito podendo exibi-las ou enviaacute-las a outros destinataacuterios Agrave Epistula 20 por exemplo mdash

1 A foacutermula ldquoaos presbiacuteteros aos diaacuteconos e a todo o povordquo eacute frequente nas Epistulae Cypriani 2 Quanto a isso eacute importante ressaltar que Cipriano antes da sua conversatildeo ensinava retoacuterica em Cartago

[104]

enviada ao clero de Roma com a finalidade de justificar o fato de ter fugido durante a perseguiccedilatildeo de Deacutecio

mdash Cipriano anexou a coacutepia de treze cartas destinadas aos sacerdotes de Cartago aos confessores aos

exilados e a todos os fieacuteis Assim o proacuteprio autor comeccedilou a compor coleccedilotildees de cartas agrupadas por tema3

Das 81 peccedilas que compotildeem o corpus epistolar nas ediccedilotildees modernas 59 foram escritas por Cipriano para

indiviacuteduos ou agraves comunidades 16 foram escritas a Cipriano ou ao clero de Cartago e se referem a assuntos

do episcopado e seis cartas satildeo coletivas oriundas dos siacutenodos nos quais Cipriano foi o principal ou o uacutenico

redator (DONNA 1964 p ix) O corpus epistolar de Cipriano eacute uma fonte indispensaacutevel para a Histoacuteria da

Igreja e do Direito Canocircnico sobretudo por ser de um periacuteodo turbulento para os cristatildeos na medida em que

nos informa sobre os problemas e as controveacutersias que Cipriano e demais liacutederes eclesiaacutesticos tiveram que

enfrentar em meados do seacuteculo III num contexto de perseguiccedilatildeo (GARCIacuteA SANCHIDRIAacuteN 1998 p 35)4

Algumas cartas nos trazem o eco das palavras de personalidades da eacutepoca como Novaciano Corneacutelio

Estevatildeo e Firmiliano de Cesareia e nos revelam as esperanccedilas os temores a vida e a morte enfim o

cotidiano dos cristatildeos em uma das proviacutencias mais importantes do Impeacuterio Romano

O contexto em que o bispo escreveu as suas cartas foi o das duas perseguiccedilotildees aos cristatildeos a de Deacutecio em

250 e a de Valeriano em 258 eacutepoca marcada tambeacutem pela atuaccedilatildeo episcopal de Cipriano jaacute que foi bispo

entre 249 e 258 Os conciacutelios provinciais realizados todos os anos em Cartago quando havia uma pausa na

perseguiccedilatildeo permitiram que Cipriano e os outros bispos africanos com seus correligionaacuterios da Numiacutedia e

da Mauritacircnia discutissem os problemas mais urgentes enfrentados pela Igreja (DONNA 1964 p x)

A importacircncia dos fatos que satildeo expostos nas epistulae de Cipriano mdash duas perseguiccedilotildees em oito anos dois

cismas entre sete e oito conciacutelios provinciais uma discordacircncia que dividiu a igreja em dois campos

antagocircnicos mdash eacute mais que suficiente para estimular o historiador a explorar as cartas cipriacircnicas Em meio a

esses eventos destaca-se a atuaccedilatildeo de Cipriano como bispo de Cartago

A carta no periacuteodo da Antiguidade era o principal suporte de comunicaccedilatildeo e circulaccedilatildeo de notiacutecias em uma

sociedade como a greco-romana na qual natildeo existiam meios de comunicaccedilatildeo de massa As missivas

tornaram-se um veiacuteculo importante para a troca de informaccedilotildees tanto em acircmbito privado quanto puacuteblico

No entanto natildeo iremos tratar neste artigo acerca das especificidades do gecircnero epistolar na Antiguidade

haja vista que jaacute fizemos isso em um outro artigo intitulado O gecircnero epistolar na Antiguidade a importacircncia

das cartas de Cipriano para a Histoacuteria do cristianismo norte africano (seacuteculo III dC) publicado em 2013 na revista

3 Entre as 81 epistulae podemos distinguir quatro grupos de temas principais aquelas que tratam de assuntos de disciplina (1 a 4) as que tratam da perseguiccedilatildeo de Deacutecio da reconciliaccedilatildeo dos apoacutestatas e da luta contra os cismaacuteticos (5 a 68) as que tratam do batismo ministrado pelos dissidentes (69 a 75) e as que tratam da perseguiccedilatildeo de Valeriano (76 a 81) (BAYARD 1945 p xlvi) 4 Eacute importante ressaltar que quase todos os manuscritos diferem em relaccedilatildeo ao nuacutemero e a ordem das cartas

[105]

Histoacuteria e Cultura Diante disso iremos agora nos reportar agrave transmissatildeo das obras de Cipriano ao longo do

tempo ateacute chegar aos dias atuais

A transmissatildeo do corpus Cypriani

As obras de Cipriano foram escritas em latim e possivelmente sob a forma de codex o livro com paacuteginas que

substituiu o volumen mdash livro-rolo de papiro ou pergaminho mdash a partir do seacuteculo II dC e tornou-se o suporte

preferido dos escritores cristatildeos e de seus leitores5 Foram os cristatildeos tanto os do Ocidente quanto os do

Oriente que mais rapidamente adotaram o codex de tal forma que a maior parte da literatura cristatilde foi desde

o iniacutecio conservada nesse tipo de suporte

Apoacutes a redaccedilatildeo os libelli e epistulae de Cipriano foram reproduzidos e disseminados entre as comunidades

cristatildes Era muito comum na Antiguidade especialmente nos ciacuterculos cristatildeos que aquilo que circulava por

escrito fosse natildeo apenas lido mas ouvido de maneira coletiva o que pode ter contribuiacutedo para a

disseminaccedilatildeo da obra de Cipriano pois um uacutenico livro poderia ser compartilhado por muitas pessoas (FOX

1998 p 155) Durante o periacuteodo imperial romano quando os textos eram escassos e natildeo havia um niacutevel

muito elevado de alfabetizaccedilatildeo um uacutenico leitor por meio da leitura puacuteblica transmitiria informaccedilotildees para

um puacuteblico bem maior que o de leitores propriamente ditos

A partir do seacuteculo XI o ofiacutecio dos copistas mdash geralmente monges beneditinos mdash eacute intensificado Nesse

periacuteodo a Igreja era responsaacutevel pela preservaccedilatildeo de boa parte da produccedilatildeo literaacuteria da Antiguidade Os

monges copistas viviam grande parte da vida dentro das bibliotecas eclesiaacutesticas mdashscriptoria mdash copiando as

obras antigas com o objetivo de aumentar o acervo das igrejas e monasteacuterios (QUEIROZ 2008) Quanto

mais vezes uma obra fosse copiada maiores eram as chances de que fosse preservada (HOFFMAN 2010 p

109) Algumas obras no entanto apesar de bastante conhecidas e lidas durante a Antiguidade e Idade Meacutedia

experimentaram um processo de transmissatildeo complexo Esse eacute o caso dos escritos de Cipriano

Desde Hartel (1868-1871) a difusatildeo dos manuscritos que contecircm os libelli e as epistulae de Cipriano tem sido

objeto de estudo por meio de numerosos e importantes trabalhos como The tradition of manuscripts a study

in the transmission of St Cyprian (1961) de Beacutevenot Cyprianische Untersuchungen de Koch (1926) Contributo

allo studio della tradizione manoscritta degli Opuscula di Cipriano (1972) de Moreschini Le Codex Veronensis de

saint Cyprien (1968) de Petitmengin Note sulla tradizione manoscritta di alcuni trattati di Cipriano (1971) de

5 Acerca do sucesso e da praticidade do codex no Mundo Antigo sobretudo nos ciacuterculos cristatildeos ver a discussatildeo contida em Chartier e Cavallo (2002) e Gamble (1995)

[106]

Simonetti e Die cyprianische Briefsammlung (1904) de Von Soden que redefiniram a histoacuteria da tradiccedilatildeo

manuscrita embora ela ainda natildeo tenha sido plenamente elucidada

Podemos no entanto fixar o nome a localizaccedilatildeo e a descriccedilatildeo senatildeo de todos mas dos principais

manuscritos Satildeo conhecidos cerca de 200 manuscritos de Cipriano anteriores ao seacuteculo XV dos quais vinte

foram redigidos antes do seacuteculo X Eles se encontram dispersos por vaacuterios paiacuteses da Europa especialmente

na Franccedila e na Itaacutelia A Inglaterra conserva algumas paacuteginas do codex mais antigo de 400 aproximadamente

conservado no British Museum o Add 40615 A e alguns manuscritos que derivam deste confeccionados no

seacuteculo XII

Os dois manuscritos completos mais antigos dos tratados de Cipriano satildeo denominados S e V O primeiro

encontra-se em Paris eacute o codex Parisianus lat 10592 de meados do seacuteculo VI Ele pertencia ao chanceler

Seacuteguier daiacute o seu antigo nome Seguierianus e sua sigla S Ele fazia parte do fundo Coislin 185 CLA V 602 S

conteacutem os seguintes tratados Ad Donatum De habitu uirginum De lapsis De oratione dominica De catholicae

Ecclesiae unitate De mortalitate De bono patientiae De opere et eleemosynis Ad Fortunatum e as epistulae

Alguns manuscritos satildeo incompletos no iniacutecio ou no fim e agraves vezes em ambos Apesar de alguns erros

grosseiros e facilmente identificaacuteveis detectados por Molager (1982 p 56) esse codex continua a ser um

dos mais valiosos

O codex Veronensis era do seacuteculo VI e pertencia aos cacircnones de Verona Ele desapareceu no seacuteculo XVI

poreacutem sabemos de sua existecircncia graccedilas a Latino Latini que em marccedilo de 1559 fez anotaccedilotildees criacuteticas nas

margens de uma ediccedilatildeo de Cipriano feita por Erasmo e publicada em Lyon em 1537 A comparaccedilatildeo efetuada

por Latini entre V e a ediccedilatildeo de Erasmo encontra-se conservada na Biblioteca de Naacutepoles e compotildee o fondo

Brancacciano Rari A 19 Eacute considerado um documento de base e foi utilizado por Dom R Weber na coleccedilatildeo

do Corpus Christianorum Em um artigo denominado Le codex Veronensis de Saint Cyprien para a Revue des

Eacutetudes Latines Petitmengin (1972) relata a histoacuteria desse manuscrito A credibilidade do codex Veronensis foi

contestada por pesquisadores como Hartel (1868-1871) que natildeo o utiliza por consideraacute-lo merae

coniecturae A mesma atitude ceacutetica eacute adotada por Beacutevenot (1971) em sua ediccedilatildeo do De catholicae Ecclesiae

unitate Martin (1960) ao contraacuterio confere ao codex Veronensis grande autoridade (summae auctoritatis) Eacute

Petitmengin (1968) que no artigo citado acima reabilita plenamente V Para o autor o manuscrito deriva de

uma espeacutecie de ldquoediccedilatildeo criacuteticardquo estabelecida na Aacutefrica logo apoacutes a morte de Cipriano O codex Veronensis

contecircm os tratados Ad Donatum De habitu uirginum De opere et eleemosynis De zelo et liuore De catholicae

Ecclesiae unitate De mortalitate De bono patientiae De lapsis Ad Fortunatum De oratione dominica Ad Quirinum

Quod idola dii non sint e as epistulae

[107]

Haacute uma diversidade de outros coacutedices que contecircm as obras de Cipriano como Q M Y W G entre outros Q

denominado codex Trecensis 581 eacute proveniente de Saint-Amand ou de Salzbourg e estaacute localizado na

Biblioteca Municipal de Troyes Franccedila Eacute originaacuterio dos seacuteculos VIII e IX e conteacutem a maior parte dos tratados

e das cartas M eacute proveniente dos Codices Latini Antiquiores IX estaacute localizado na Biblioteca de Munique e eacute

oriundo dos seacuteculos VIII-IX Ele se origina de Q e apresenta o mesmo conteuacutedo Y tambeacutem estaacute localizado na

Biblioteca de Munique e eacute da primeira metade do seacuteculo IX Jaacute o codex Wirceburgensis representado pela letra

W localiza-se na Biblioteca da universidade de Wurtzbourg Uma parte desse manuscrito eacute do iniacutecio do

seacuteculo IX (folhas 1 a 43) e a outra parte eacute de meados desse mesmo seacuteculo Ele compreende quase todos os

tratados de Cipriano e foi corrigido por alguns editores que o denominaram Wordf ou Wmg nome que se impotildee

frequentemente6 G denominado codex Sangallensis 89 estaacute localizado em Saint-Gall Suiacuteccedila eacute tambeacutem

proveniente do seacuteculo IX e conteacutem cinco tratados de Cipriano De bono patientiae De oratione dominica De

opere et eleemosynis De mortalitate e o De catholicae Ecclesiae unitate Esse manuscrito difere muito de W mas

eacute muito proacuteximo de S e de V Beacutenevot o inclui em sua classificaccedilatildeo e o alocou na primeira classe dos

manuscritos de Cipriano7

As ediccedilotildees das obras de Cipriano comeccedilam a ser elaboradas na segunda metade do seacuteculo XV A primeira

refere-se agrave Editio princeps Romana editada em Roma em 1471 por J Andreas depois contamos com a Editio

Veneta de Venise Franccedila editada em 1471 que se configura como uma recuperaccedilatildeo da ediccedilatildeo precedente

com algumas modificaccedilotildees ortograacuteficas em seguida temos a Editio Veneta tambeacutem de Venise redigida em

1483 que conteacutem algumas melhorias em relaccedilatildeo agrave anterior com um breve sumaacuterio ao iniacutecio de cada tratado

e das Cartas A Editio Memmingensis elaborada em Memmingen Alemanha no ano 1477 possui um texto

6 De acordo com Molager (1982 p 58) o manuscrito comporta algumas interpolaccedilotildees inuacuteteis e agraves vezes errocircneas Jaacute Hartel (1868-1871) o considera como um dos melhores manuscritos de Cipriano Beacutevenot (1961) apesar de consideraacute-lo importante natildeo o utiliza 7 Como dito anteriormente existem cerca de 200 manuscritos com as obras de Cipriano no entanto natildeo eacute nossa intenccedilatildeo aqui listar todos Pretendemos apenas evidenciar o quatildeo profiacutecua foi a multiplicaccedilatildeo desses manuscritos ao longo dos seacuteculos e consequentemente a leitura dos escritos de Cipriano Por isso preferimos trazer as informaccedilotildees acerca dos outros manuscritos em anexo Os manuscritos tambeacutem foram agrupados em famiacutelias pelo fato de apresentarem semelhanccedilas entre si Poreacutem mesmo assim eacute difiacutecil articulaacute-las Hartel (1868-1871) pensa que tais famiacutelias de manuscritos podem ser distinguidas em trecircs grupos LNP MGT e CR Segundo esse autor os dois primeiros grupos satildeo provenientes de um arqueacutetipo que remonta ao seacuteculo VII ou VIII Ao contraacuterio de Hartel von Soden (1904) defende que a hipoacutetese para a formaccedilatildeo da primeira famiacutelia eacute vaacutelida no entanto acerca da segunda famiacutelia considera que T deve ser separado de MG Quanto agrave famiacutelia CR para von Soden ela natildeo existe7 Em sua obra The tradition of MSS A study in the transmission of St Cyrianrsquos Treatises Beacutevenot (1961 p 94-95) reuacutene os manuscritos semelhantes para estabelecer o texto do De catholicae Ecclesiae unitate Uma primeira classe de manuscritos inclui as famiacutelias M (m p e em apoio o codex de Oxford) W (WY) L (a u e em apoio l w) P (P k e em apoio Vatic Reg Lat 117 Turin D IV 37 Escurial S I II) Entre as famiacutelias W e L Beacutevenot inclui o manuscrito G isolado A segunda classe de manuscritos compreende as famiacutelias D (D com os manuscritos cistercienses Berlin Th Lat Fol 700 Dijon 124 Paris Nouv Acq Lat 1792 Bamberg Patr 64) E (e f com o segundo Oxford Bodl 210 Lambeth 106 Oxford New Coll 130) Beacutevenot coloca B entre as famiacutelias D e E em seguida apoacutes E coloca um manuscrito de Berne Bibl Bongarsiana 235 (aparentado com V) Uma terceira classe inclui a famiacutelia H composta por H T e h Pierre Petitmengim concorda com todos os agrupamentos de Beacutevenot mas confere ao codex Veronensis maior importacircncia que o antecessor atestando que ele possui informaccedilotildees que nenhum outro manuscrito apresenta

[108]

semelhante ao da editio romana mas conteacutem os tratados e as Cartas em uma ordem mais loacutegica e por fim haacute

a Editio Dauentriensis de Daventry Inglaterra elaborada em 1477 que conteacutem apenas alguns tratados

As ediccedilotildees datadas do seacuteculo XVI satildeo a Editio Ramboltiana redigida em Paris em 1512 que se configura

como uma recuperaccedilatildeo da editio Veneta mas com uma nova classificaccedilatildeo das Cartas divididas em quatro

livros a Editio Erasmiana de Basel Suiacuteccedila de 1520 que comporta em seu iniacutecio a Passio Cypriani e conteacutem

apenas alguns tratados Essa ediccedilatildeo eacute muito conhecida em razatildeo das notas de Erasmo que compreende

sendo usada como referecircncia para outras ediccedilotildees como a editio Erasmiana de Basel redigida em 1530 que

conteacutem o Ad Fortunatum e a editio Erasmiana de Colocircnia elaborada em 1544 que inclui um novo index mais

abundante que o antigo e melhor repartido Apoacutes as ediccedilotildees de Erasmo contamos com a Editio Manutiana

proveniente de Roma de 1563 preparada por Latino Latini o qual utilizou o manuscrito V natildeo usado nas

ediccedilotildees de Erasmo8 a Editio Moreliana de Paris redigida em 1564 que conteacutem vaacuterios tratados ineacuteditos mas

erroneamente atribuiacutedos a Cipriano e as uacuteltimas cartas e por fim a Editio Pameliana da Antueacuterpia Beacutelgica

elaborada em 1568 que segundo Hartel (1868-1871 p LXXXII) natildeo eacute uma ediccedilatildeo confiaacutevel

As ediccedilotildees organizadas no seacuteculo XVII satildeo apenas duas a Editio Rigaltiana de Paris elaborada em 1648 por

Rigault e a Editio Oxoniensis de Oxford de 1682 compostas por Fell e Pearson que utilizaram numerosos

manuscritos alguns muito antigos Essa ediccedilatildeo oferece um meacuterito a ordem cronoloacutegica das epistulae se

aproxima da ordem correta que possuiacutemos Outra ediccedilatildeo existente eacute a Editio Baluziana elaborada em Paris

e comeccedilou a ser impressa em 1717 e 1718 Essa ediccedilatildeo eacute baseada na comparaccedilatildeo de numerosos coacutedices e

nos comentaacuterios de Latini Aleacutem disso ela foi copiada vaacuterias vezes no seacuteculo XIX em Milatildeo em 1835 e em

Paris em 1836 Em 1844 a coleccedilatildeo Migne de Paris reproduziu a Editio Baluziana com numerosas correccedilotildees

Podemos contar ainda com as Editiones Krabingeri de Tubinga Alemanha que foram elaboradas em duas

etapas a primeira parte datada de 1853 conteacutem os tratados De catholicae Ecclesiae unitate De lapsis e De

habitu uirginum e a segunda de 1859 possui os tratados Ad Donatum De dominica oratione De mortalitate

Ad Demetrianum De opere et eleemosynis De bono patientiae e De zelo et liuore Essas ediccedilotildees foram compostas

por Krabinger e satildeo as primeiras ediccedilotildees alematildes das obras de Cipriano O autor utilizou os manuscritos das

abadias de Bamberg e de Wurtzbourg valendo-se tambeacutem da comparaccedilatildeo criacutetica do codex Veronensis daiacute as

excelentes correccedilotildees que essas ediccedilotildees possuem

Em relaccedilatildeo agraves ediccedilotildees criacuteticas mais recentes as mais utilizadas satildeo a de Hartel (1868-1871) Hans Von Soden

(1904) e Bayard (1925) A ediccedilatildeo de Hartel intitulada S Thasci Caecilii Cypriani Opera Omnia foi redigida em

8 Quando Latino Latini percebeu que havia modificado profundamente o texto do manuscrito V ele natildeo deixou seu nome ser incluiacutedo na ediccedilatildeo por isso ela possui o nome de Manutius

[109]

Viena entre 1868 e 1871 e compotildee a seacuterie do Corpus Scriptorum Ekklesiasticorum Latinorum (CSEL)9 Essa

ediccedilatildeo foi durante um seacuteculo a grande ediccedilatildeo consultada pelos especialistas Hoje apesar das deficiecircncias

relacionadas agrave traduccedilatildeo os editores ainda a utilizam Em sua ediccedilatildeo Hartel adotou mais de quarenta

manuscritos descrevendo-os em seu prefaacutecio de acordo com o grau de importacircncia Possivelmente Hartel

conhecia uma quantidade bem maior de manuscritos mas como eles continham muitas interpolaccedilotildees o

autor considerou-os irrelevantes

Hans von Soden (1904) em sua ediccedilatildeo intitulada Die cyprianische Briefsammlung cita 431 manuscritos dos

quais apenas 157 contecircm um corpus relevante segundo o autor Von Soden utilizou o estudo de Hartel

principalmente sob o ponto de vista de uma criacutetica severa De seu vasto trabalho emergiram conclusotildees

importantes (BAYARD 1945 p xl)

Outro grande editor das obras de Cipriano eacute Bayard que possui a melhor ediccedilatildeo moderna das cartas

denominada Correspondance editada em Paris em 192510 Em relaccedilatildeo agrave criacutetica textual Bayard natildeo despreza

nem a classificaccedilatildeo de Hartel e nem a de von Soden Ele considera que a criacutetica dos textos deve ser feita com

precauccedilatildeo uma vez que os manuscritos satildeo resultado da junccedilatildeo ou reuniatildeo de outros Eacute por isso por

exemplo que apesar da diferenccedila de origem existente entre os manuscritos pode-se constatar uma

concordacircncia textual entre alguns

As possibilidades de pesquisa a partir do Corpus Cypriani

O episcopado de Cipriano durou apenas nove anos de 249 a 258 Em tatildeo pouco tempo no entanto o bispo

produziu um consideraacutevel nuacutemero de obras que nos informam acerca da vida e dos problemas enfrentados

pelos cristatildeos numa eacutepoca de instabilidade no Impeacuterio Romano e de crise dentro da igreja cartaginesa uma

vez que o periacuteodo em que Cipriano escreveu suas obras foi marcado pelas primeiras perseguiccedilotildees oficiais aos

cristatildeos primeiramente com Deacutecio e depois com Valeriano

As cartas e tratados de Cipriano trazem importantes informaccedilotildees acerca do dia-a-dia dos cristatildeos

cartagineses de meados do seacuteculo III Poreacutem mesmo diante de um material tatildeo profiacutecuo percebemos que os

estudos produzidos acerca dos escritos de Cipriano ainda satildeo escassos principalmente no que tange ao

cotidiano dos cristatildeos e agrave interaccedilatildeo com os adeptos do paganismo e do judaiacutesmo no espaccedilo da cidade de

9 O CSEL eacute uma seacuterie de ediccedilotildees criacuteticas dos Padres latinos da Igreja publicada pelo comitecirc da Academia de Ciecircncias da Aacuteustria 10 Em relaccedilatildeo agrave numeraccedilatildeo das Cartas em nenhum manuscrito elas aparecem ordenadas cronologicamente Mesmo os manuscritos mais completos natildeo trazem essa ordem Eacute o caso de V que dispotildee as correspondecircncias em duas partes primeiro as cartas escritas por Cipriano e depois as cartas endereccediladas ao bispo Nas cartas enviadas por Cipriano a ordem eacute a seguinte aos maacutertires ao clero e ao povo de Cartago ao clero e ao povo de Roma e agraves seacutes da Aacutefrica

[110]

Cartago As anaacutelises baseadas nas obras de Cipriano muitas vezes focam um vieacutes teoloacutegico pouco

contribuindo para o conhecimento histoacuterico Em relaccedilatildeo aos estudos em liacutengua portuguesa a produccedilatildeo

historiograacutefica eacute praticamente nula sendo mais comum os trabalhos em liacutengua inglesa espanhola e francesa

Muitos satildeo os temas tratados por Cipriano em suas obras no entanto um dos nossos objetivos foi o de

analisar os coacutedigos de conduta contidos nas cartas e tratados que visavam a disciplinarizaccedilatildeo dos fieacuteis e a

ldquopurificaccedilatildeordquo da igreja cartaginesa em meados do seacuteculo III Aleacutem disso a interaccedilatildeo social entre os adeptos

dos sistemas religiosos em Cartago mdash cristianismo paganismo e judaiacutesmo mdash eacute outro aspecto relevante da

nossa pesquisa O fato de alguns cristatildeos apoacutes a conversatildeo natildeo abandonarem seus haacutebitos e costumes

antigos identificados com o modus uiuendi pagatildeo eou judaico como por exemplo a presenccedila nas sinagogas

nos teatros nas arenas nos anfiteatros nas termas e nas festas ciacutevicas nos levou a conjecturar que nem

sempre os cristatildeos se propunham a cumprir as determinaccedilotildees emanadas pelas lideranccedilas eclesiaacutesticas como

Cipriano

Averiguamos o cotidiano as relaccedilotildees de sociabilidade e os intercacircmbios culturais e religiosos entre os

cristatildeos e os adeptos das outras crenccedilas bem como a relaccedilatildeo dos fieacuteis com os espaccedilos da cidade greco-

romana Com o intuito de orientar a congregaccedilatildeo cartaginesa que julgava ter relaxado nos costumes e

praacuteticas Cipriano recomendou aos cristatildeos alguns coacutedigos disciplinais que deveriam ser adotados

Destacamos portanto a importacircncia da obra de Cipriano em virtude do anseio que demonstra de regular a

congregaccedilatildeo cartaginesa na medida em que tenta apartar os cristatildeos dos adeptos de outras crenccedilas e dos

espaccedilos citadinos que o bispo avaliava como perigosos impuros e por isso capazes de poluir a assembleia

Tomando como ponto de partida essas informaccedilotildees preliminares identificamos as propostas de

Cipriano que visavam agrave formaccedilatildeo de um cristatildeo ldquolegiacutetimordquo livre de hibridismos e ldquoimpurezasrdquo Tal cristatildeo

se caracterizaria por exemplo pelo zelo agrave continecircncia sexual pela esmola caridade oraccedilatildeo e disciplina aleacutem

de por ser um devoto que respeitasse a autoridade episcopal a legitimidade do bispo e natildeo frequentasse os

espaccedilos proibidos da cidade proacuteprios de pagatildeos e judeus

A essa conjuntura somam-se as primeiras perseguiccedilotildees oficiais aos cristatildeos Iniciadas pelo imperador

Deacutecio quando este assumiu a puacuterpura imperial em 249 e pretendeu restaurar a pax deorum elas

tiveram prosseguimento com Valeriano em 253 que deu continuidade agrave poliacutetica persecutoacuteria de Deacutecio

Assim investigamos tambeacutem como tais perseguiccedilotildees e a situaccedilatildeo de instabilidade que marcou o Impeacuterio

durante o seacuteculo III influenciaram a atuaccedilatildeo pastoral de Cipriano em Cartago

Evidenciamos os conflitos e os problemas que afetaram a ecclesia de Cartago em meados do seacuteculo III e as

atitudes e soluccedilotildees tomadas pelo bispo Cipriano para tentar superar todas essas dificuldades Em seus

escritos Cipriano esclarece a sua linha de raciociacutenio acerca do que eram segundo ele as atitudes e praacuteticas

[111]

de um cristatildeo ilegiacutetimo Evidenciamos as caracteriacutesticas que Cipriano elencou e que demonstram as atitudes

de um verdadeiro cristatildeo ou seja de um cristatildeo considerado legiacutetimo livre de hibridismos

Segundo o seu testemunho Cipriano considerava que um cristatildeo verdadeiramente comprometido com os

ensinamentos de Cristo natildeo deveria afrontar a autoridade estabelecida isto eacute o poder episcopal uma vez

que o bispo fora escolhido por Deus eleito pelo povo e confirmado por seus correligionaacuterios Logo Cipriano

esperava que um legiacutetimo cristatildeo natildeo duvidasse da posiccedilatildeo ocupada por seu ldquopastorrdquo A disciplina deveria

reger a conduta de um verdadeiro cristatildeo de tal modo que os conselhos e ordens do bispo deveriam ser

cumpridos Natildeo era permitida ao cristatildeo a circulaccedilatildeo pelos espaccedilos considerados perigosos da cidade

(termas teatro circo sinagoga entre outros) Ele deveria ao contraacuterio trabalhar e se dedicar quase que

exclusivamente agrave sua comunidade

Poreacutem nem todos os cristatildeos seguiram as prescriccedilotildees do bispo desencadeando um problema dentro da

comunidade cartaginesa que precisou ser discutido e resolvido por Cipriano A questatildeo sobre os lapsi por

exemplo foi debatida nos conciacutelios e o rebatismo foi permitido mediante o cumprimento da penitecircncia

Aquele indiviacuteduo que havia negado a feacute cristatilde estaria fora da verdadeira Igreja enquanto o cristatildeo que natildeo

houvesse adorado aos deuses pagatildeos e aleacutem disso confirmado a sua feacute no cristianismo seria considerado um

cristatildeo legiacutetimo

Percebemos mediante as obras de Cipriano que a disciplina eclesiaacutestica foi um dos pilares dos ensinamentos

do bispo Ao mesmo tempo em que o rebanho era aconselhado a natildeo se relacionar com os adeptos de outras

crenccedilas e a natildeo frequentar os espaccedilos perigosos da cidade o bispo aconselhou o cristatildeo a ter sempre

paciecircncia a praticar a esmola a oraccedilatildeo e seguir sempre a disciplina Evitava-se assim o contato com seres e

espaccedilos considerados como fontes de contaacutegio de perigo e impureza De tal forma Cipriano prezou por uma

comunidade pura livre de indiviacuteduos hiacutebridos

Ao estabelecer a disciplina Cipriano afirma que soacute havia uma verdadeira Igreja e que ldquonatildeo haacute mais que um soacute

Deus e um soacute Cristo e uma soacute igreja e uma soacute caacutetedra estabelecida pela palavra do Senhor sobre Pedrordquo De

tal forma condenava todo aquele que estava fora dessa Igreja pois ldquonatildeo pode estabelecer outro altar novo

sacerdoacutecio fora desse uacutenico altar e uacutenico sacerdoacuteciordquo Segundo o discurso de Cipriano todo aquele que estaacute

fora da verdadeira e uacutenica Igreja ldquoeacute aduacuteltero eacute iacutempio eacute sacriacutelego todo aquele que institui uma loucura humana

[uma nova Igreja] violando as disposiccedilotildees divinasrdquo (Ep 43 V 2)

Consideraccedilotildees finais

Diante deste esboccedilo ao decidirmos estudar o cotidiano dos cristatildeos e o desenvolvimento das comunidades

[112]

cristatildes norte-africanas em Cartago durante o seacuteculo III dC tivemos o intuito de contribuir com os estudos

acerca da Histoacuteria do Cristianismo no norte da Aacutefrica tomando como base o testemunho de Cipriano

Os estudos tradicionais acerca da Histoacuteria da Igreja por se pautarem em larga medida numa leitura

teoloacutegica e doutrinal tenderam a deixar de lado os aspectos poliacutetico-administrativos e disciplinares da

organizaccedilatildeo das comunidades cristatildes e o funcionamento da Igreja no cotidiano lacuna que preenchemos em

parte com a nossa pesquisa que diz respeito agrave congregaccedilatildeo norte-africana de Cartago em meados do seacuteculo

III dC

Assim por intermeacutedio de nossas fontes mdash as cartas e os tratados elaborados por Cipriano mdash realizamos um

estudo mais amplo acerca do testemunho desse autor ainda pouco estudado sobretudo nos meios

acadecircmicos brasileiros Acreditamos que a produccedilatildeo de uma tese explorando o conjunto de sua obra

representa uma contribuiccedilatildeo para o avanccedilo da pesquisa no Brasil concernente agrave Histoacuteria do Cristianismo

norte-africano e do cotidiano dos diversos grupos religiosos na ciuitas cartaginesa

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PARTE II

A PERMANEcircNCIA DOS

CLAacuteSSICOS NA DIACRONIA

Em diaacutelogo a Retoacuterica claacutessica a arte poeacutetica medieval e a saacutetira trovadoresca

Fernanda Scopel Falcatildeo

fernanda-scopelhotmailcom

Para meus estudos sobre as tenccedilotildees galego-portuguesas nos quais

procuro sempre analisar os recursos retoacuterico-poeacuteticos

empregados pelos trovadores e jograis em suas cantigas estudei as

artes poeacuteticas latino-medievais e trovadorescas para identificar os

expedientes mais apreciados no Medievo europeu e peninsular

Pude constatar a jaacute sabida influecircncia da retoacuterica claacutessica na

elaboraccedilatildeo desses tratados e consequentemente dada sua

valorizaccedilatildeo e difusatildeo das composiccedilotildees galego-portuguesas Dadas

as limitaccedilotildees naturais de um texto em formato de artigo farei aqui

um apanhado sinteacutetico mas que exemplificaraacute a influecircncia

permanecircncia e atualizaccedilatildeo da retoacuterica claacutessica na teoria e na

praacutetica poeacutetica medieval e trovadoresca

Retomo inicialmente Aristoacuteteles autor do tratado mais conhecido

sobre o assunto que define a retoacuterica como ldquoa capacidade de

descobrir o que eacute adequado a cada caso com o fim de persuadirrdquo (Rh

121355b) A Retoacuterica claacutessica pode ser entendida entatildeo como

uma disciplina que identifica e sistematiza os elementos e

mecanismos uacuteteis ao convencimento ou persuasio considerando

que a funccedilatildeo de um determinado discurso eacute persuadir para docere

delectare eou movere Seguindo o preceito aristoteacutelico em sua

evoluccedilatildeo a disciplina foi atualizada e adaptada agrave realidade

discursiva de cada contexto espaccedilo-temporal em que esteve

inserida Segundo Massaud Moiseacutes (2013 p 393-395) a Retoacuterica

grega era um misto de oratoacuteria e poesia na passagem para os

[117]

romanos a Retoacuterica se separa da Poeacutetica assumindo funccedilatildeo especificamente oratoacuteria e entre os medievais

a Retoacuterica reaproveita as liccedilotildees gregas e sobretudo romanas e se mescla com a Gramaacutetica e a Poeacutetica ndash o

que teria ocorrido especialmente na Peniacutensula Ibeacuterica1

O sistema da Retoacuterica medieval manteacutem portanto as estruturas essenciais da claacutessica recuperando-as

poreacutem de acordo com as necessidades comunicativas do medievo Assim quando entre os medievais os

sermotildees as cartas e as obras literaacuterias surgem como novas modalidades comunicativas o cultivo pragmaacutetico

dos saberes da Retoacuterica claacutessica daacute origem agrave ars praedicandi aplicada agrave pregaccedilatildeo eclesiaacutestica agrave ars dictaminis

voltada para a escrita de cartas e agrave ars poetria nome dado agrave gramaacutetica preceptiva ou retoacuterica da versificaccedilatildeo

As artes poetriae compostas entre os seacuteculos XII e XIII2 foram escritas em sua maioria por professores de

Gramaacutetica e se baseavam principalmente no Da invenccedilatildeo de Ciacutecero e na Retoacuterica a Herecircnio sendo tambeacutem em

certa medida herdeiros de Aristoacuteteles Horaacutecio Quintiliano Isidoro de Sevilha entre outros Embora essas

poeacuteticas fossem redigidas em latim e voltadas agrave instruccedilatildeo escolar seus preceitos certamente tocaram a

produccedilatildeo poeacutetica em vernaacuteculo e influenciaram a formaccedilatildeo do gosto esteacutetico no Duzentos e no Trezentos e

os novos tratados que viriam a surgir Na esteira das artes poetriae com o fortalecimento dos idiomas

autoacutectones outras poeacuteticas foram redigidas em liacutenguas romacircnicas e voltadas agraves novas produccedilotildees

comunicativo-literaacuterias em vernaacuteculo mormente ligadas agrave cultura trovadoresca

As artes poeacuteticas latino-medievais possuem caraacuteter didaacutetico-preceptivo e se utilizam da

[] teacutecnica da ldquoexplicaccedilatildeo de textosrdquo propostos natildeo soacute para o serviccedilo do velho meacutetodo do ldquocomentaacuteriordquo como tambeacutem para imitaccedilatildeo de poetas ou oradores cuja excelecircncia comprovada conduziraacute o aluno agrave criaccedilatildeo perfeita Aleacutem do ldquosentidordquo examinava-se tambeacutem o aspecto ldquoteacutecnicordquo das obras com vistas a colher ldquoexemplosrdquo de estilo e composiccedilatildeo de que resultava o elenco de regras e normas da dispositio [] eacute assim que nasce todo um corpo ldquonovordquo de doutrinas destinadas a completar os tratados dos teoacutericos antigos (MONGELLI 1999 p 96)

Conquanto o conteuacutedo dessas poeacuteticas natildeo diferisse muito daquele convencionado nos manuais de

Gramaacutetica e Retoacuterica antigos (MONGELLI 2009 p XXXIII) os conhecimentos foram atualizados e

adaptados ao ensino de arte poeacutetica Assim como natildeo se destinavam agrave produccedilatildeo dos gecircneros judicial

deliberativo e demonstrativo mas agrave composiccedilatildeo literaacuteria o tratamento das cinco operaccedilotildees dimensotildees ou

fases da elaboraccedilatildeo do discurso (inventio dispositio elocutio actio ou pronuntiatio e memoria) eacute aplicado nesse

1 Mais tarde na Renascenccedila haveraacute o retorno da retoacuterica oratoacuteria (MOISEacuteS 2013 p 394) Nos tempos modernos e poacutes-modernos vemos os recursos retoacutericos presentes na construccedilatildeo dos diversos modos discursivos mormente na publicidade e os estudos contemporacircneos conjugam a multiplicidade de formas retoacutericas que nos precederam sobretudo a retoacuterica claacutessica ensinada desde o seacuteculo V aC com a Retoacuterica em sentido lato enquanto arte do discurso em geral 2 A Ars versificatoria (1175) de Matthieu de Vendocircme a Poetria nova (1208-1216) e o Documentum de modo et arte dictandi et versificandi ambos de Geoffrey de Vinsauf a Ars versificatoria (1215) de Gervais de Melkley a Parisiana poetria (1220) e o De arte prosaica metrica et riacutetmica de John de Garlande e o Laborintus (1250) de Eberhard o Alematildeo

[118]

sentido de modo que predominam os conhecimentos relativos agrave estrutura e ao estilo evidenciando-se as

liccedilotildees sobre amplificaccedilatildeo e abreviaccedilatildeo escolha vocabular correccedilatildeo gramatical e ornamentaccedilatildeo

Outro ponto de diferenccedila entre os antigos e os medievais esteve no fato de que enquanto a Retoacuterica claacutessica

se preocupou mais com o estudo estrutural de palavras e grupos de palavras a medieval cuidou de aleacutem

disso observar as relaccedilotildees sintaacuteticas e semacircnticas tanto das microestruturas quanto do todo da composiccedilatildeo

e de inter-relacionar as funccedilotildees esteacutetica e discursiva Assim as operaccedilotildees retoacutericas deixaram de ser

encaradas apenas como componentes estruturais e passaram a categorias criativas e funcionais

Dos procedimentos da organizaccedilatildeo utilizados na dispositio a amplificaccedilatildeo e a abreviaccedilatildeo tiveram grande

importacircncia na ars poetria latino-medieval que lhes deu sentidos distintos daqueles que possuiacuteam nos

tempos antigos

Enquanto o termo amplificatio era utilizado pelos retoacutericos da Antiguidade com a acepccedilatildeo de fazer valer uma ideia ou realizaacute-la para contribuir desse modo com a valorizaccedilatildeo dessa ideia ndash assim se expressou Quintiliano e o recolheu Alcuiacuteno ndash recebeu uma acepccedilatildeo distinta na Idade Meacutedia Durante o periacuteodo medieval a amplificaccedilatildeo esteve mais ligada agrave redaccedilatildeo e ao desenvolvimento de uma ideia Da mesma maneira se por abbreviatio na eacutepoca claacutessica se entendia a atenuaccedilatildeo de um pensamento riacutegido nas artes poetriae latino-medievais passou a designar os diversos meios de encurtar o discurso Na retoacuterica medieval pode-se afirmar que virtualmente qualquer modificaccedilatildeo no discurso com o uso de tropos e figuras se daacute sob amplificaccedilatildeo ou abreviaccedilatildeo

Dos modos assinalados para introduzir variaccedilatildeo em uma mateacuteria dada ou algum elemento de originalidade na composiccedilatildeo poeacutetica foi a amplificaccedilatildeo o procedimento que mais atenccedilatildeo captou e mais extensamente foi tratado nas artes poetriae

Dentro da amplificaccedilatildeo se estudaram os distintos meacutetodos dos quais podia o escritor servir-se para realccedilar um tema desenvolvendo-o por meio da reiteraccedilatildeo das mesmas ideias ou conceitos sob diferentes aspectos ou recorrendo a diversos procedimentos estiliacutesticos (CALVO REVILLA 2010 p 25-26 traduccedilatildeo minha)

O peso outorgado agrave elocutio ndash expressatildeo linguiacutestica do pensamento (mateacuteria conteuacutedo provas ideias

argumentos etc) elaborado na inventio e organizado na dispositio ndash tambeacutem foi um dos aspectos mais

destacados na evoluccedilatildeo da Retoacuterica antiga para as poeacuteticas medievais conquanto ldquoos teoacutericos que sobre ela

se debruccedilam muito pouco acrescentam do ponto de vista formal agraves bases aristoteacutelicas e ciceronianasrdquo

(MONGELLI 1999 p 90)

Na Retoacuterica medieval o ornatus teve o grande lugar de destaque entre as qualidades elocutivas Ampla

influecircncia veio mais uma vez das liccedilotildees do autor da Retoacuterica a Herecircnio para quem os ornamentos3 colaboram

3 Os ornamentos citados pelo autor da Retoacuterica a Herecircnio repeticcedilatildeo conversatildeo complexatildeo transposiccedilatildeo contenccedilatildeo exclamaccedilatildeo interrogaccedilatildeo arrazoado sentenccedila contraacuterio membro articulaccedilatildeo continuidade paridade semelhanccedila de desinecircncia casual semelhanccedila de terminaccedilatildeo agnominaccedilatildeo subjeccedilatildeo gradaccedilatildeo definiccedilatildeo transiccedilatildeo correccedilatildeo ocultamento disjunccedilatildeo conjunccedilatildeo adjunccedilatildeo reduplicaccedilatildeo interpretaccedilatildeo comutaccedilatildeo permissatildeo dubitaccedilatildeo expediecircncia desligamento rescisatildeo conclusatildeo (Auct ad Her 419-41)

[119]

com a dignidade tornando o discurso distinto pela variedade ndash ldquoVariar mantendo a unidade era um preceito

baacutesico da poeacutetica medievalrdquo (MONGELLI VIEIRA 2003 p 81) A oposiccedilatildeo entre ornatus dificillis e facilis da

Retoacuterica a Herecircnio traduziu-se no Trovadorismo na oposiccedilatildeo entre o trobar clus (ou car escur cobert sotil

prim) estilo elevado de escrita hermeacutetica e obscura e o trobar leu (ou leugier ou pla) menos rebuscado e mais

acessiacutevel Martin de Riquer distingue ainda um terceiro modo intermediaacuterio o trobar ric que eacute elevado e um

tanto hermeacutetico mas sem a obscuridade marcante do trobar clus o que nos faz lembrar do trio de genera

elocutionis (subtile medium e sublime)

Para os tratadistas do Duzentos e do Trezentos as operaccedilotildees elocutivas satildeo o suporte baacutesico que constitui

a literariedade de um poema mas esta soacute eacute visualizada e melhor compreendida pragmaticamente (CALVO

REVILLA 2008 p 67) Nesse sentido os tratadistas medievais recomendavam o embelezamento da

linguagem ldquocom o fim de lsquomoverrsquo os ouvintes ou leitores [] a crer em algo ou a fazecirc-lordquo (MONGELLI VIEIRA

2003 p 120-121) e os tropos e figuras passam a ser encarados como uacuteteis recursos de persuasatildeo

De acordo com Heinrich Lausberg a persuasio se concretiza pela criaccedilatildeo de um elevado grau de credibilidade

entre o poetaorador e seu puacuteblicojuiz sendo obtida sobretudo quando o poeta constroacutei os procedimentos

da amplificatio na dispositio dirigidos psicologicamente ou mais ao intelecto ou mais aos afetos do puacuteblico

Nesse processo as virtutes elocutionis atuam enquanto recursos de persuasatildeo quando servem como

incrementum agrave execuccedilatildeo da amplificatio na realizaccedilatildeo intelectual e afetiva da persuasio por meio do docere

do delectare e do movere O docere aplicado ao genus subtile eacute a influecircncia intelectual que o poeta exerce sobre

o puacuteblico e eacute praticado pelos poetas ldquocomo finalidade didaacutectica da poesia dentro da utilidade intelectual e

moral da mesmardquo (LAUSBERG 2004 p 105) O docere possui dois graus de intensidade ldquo1) A comunicaccedilatildeo

(dar a conhecer) p ex na propositio e na narratio 2) A prova (com funccedilatildeo de probare) p ex na argumentatiordquo

(p 104) Os afetos tambeacutem aparecem em dois graus um mais suave o ethos e um mais violento o pathos No

ethos o delectare aplicaacutevel ao genus medium eacute a influecircncia afetiva pretendida e exercida pelo poeta sobre o

puacuteblico ldquocom a finalidade de nele excitar favoravelmente ao partido afectos suavesrdquo (p 105) Eacute notadamente

indicado para se obter a benevolentia ldquoe aparece aleacutem disso no discurso geralmente como ornatusrdquo (p 105)

No pathos o movere aplicaacutevel ao genus sublime eacute a influecircncia afetiva pretendida e exercida pelo poeta sobre

o puacuteblico ouvinte com o objetivo provocar afetos violentos ldquoNa poesia o pathos eacute atribuiacutedo com efeito agrave

trageacutedia e a certas poesias narrativasrdquo (LAUSBERG 2004 p 105-106)

Lausberg (2004 p 105) destaca ainda o uso do ridiculum na persuasio via virtutes elocutiones embora seja

considerado uma variante do ethos ndash ldquopode ser inerente agrave materia (p ex na comeacutedia) ou que pode tambeacutem

ser acrescentado agrave materia como ornatus de pensamentordquo ndash o ridiculum eacute aplicaacutevel aos trecircs genus e serve

como instrumento de persuasatildeo De acordo com Georges Minois (2003 p 106) o riso eacute uma excelente

ferramenta ao orador ou poeta porque o torna simpaacutetico ao auditoacuterio ldquodesperta a atenccedilatildeo ou ao contraacuterio

desvia-a embaraccedila o adversaacuterio enfraquece-o intimida-ordquo

[120]

Das poeacuteticas latino-medievais um destaque vai para a Poetria nova do inglecircs Geoffrey de Vinsauf por ser

considerada uma das artes mais eruditas influentes e difundidas no Ocidente europeu a partir do seacuteculo XIII

um manual avanccedilado destinado aos estudantes que jaacute possuem uma base gramatical e retoacuterica consolidada

(CALVO REVILLA 2008 p 17) Seu tiacutetulo eacute um eco das suas principais fontes a Ars poetica de Horaacutecio

tambeacutem chamada de Poetria no Medievo e a Retoacuterica a Herecircnio chamada ainda de Retoacuterica nova (em oposiccedilatildeo

ao De inventione de Ciacutecero conhecido como a Rhetorica vetus) Assim concebido o seu tiacutetulo parece revelar

a intenccedilatildeo de Vinsauf de atualizar a obra de Horaacutecio de acordo com as necessidades da escola medieval

A poeacutetica vinsaufiana abarca o estudo das cinco operaccedilotildees retoacutericas inventio dispositio elocutio memoria e

actio seguindo o esquema da Retoacuterica antiga mas adaptando os preceitos claacutessicos para o uso na composiccedilatildeo

poeacutetica Vinsauf preocupa-se com a ldquolsquoorganicidadersquo da obra desde o momento de sua concepccedilatildeo ateacute o da sua

execuccedilatildeordquo (MONGELLI VIEIRA 2003 p 79) Trabalha as operaccedilotildees retoacutericas de modo interdependente

manifestando a importacircncia de a invenccedilatildeo adequada a disposiccedilatildeo elegante a beleza da expressatildeo a

memoacuteria eficiente e a performance pragmaacutetica (tom e intensidade da voz expressatildeo facial gesto movimentos

corporais) atuarem em conjunto (Poetria Nova 80-85) As operaccedilotildees retoacutericas funcionam portanto

subordinadas ldquoao plano original desenhado pelo autor um princiacutepio que teve amplo acolhimento entre os

escritores dos seacuteculos XII e XIIIrdquo (CALVO REVILLA 2008 p 68 traduccedilatildeo minha)

No tratamento dos recursos elocutivos o autor se mostra ldquoplenamente consciente da estreita imbricaccedilatildeo

que na praacutetica e como processo operacional manteacutem a elocutio com a inventio e com a dispositiordquo (CALVO

REVILLA 2008 p 69 traduccedilatildeo minha) Assim por exemplo ao abordar as escolhas vocabulares trabalha

sua adequaccedilatildeo agrave significaccedilatildeo pretendida na inventio agrave ordenaccedilatildeo e ao estilo propostos na dispositio e na

elocutio sempre de maneira a conformar-se com o propoacutesito geral da obra ao abordar as figuras e tropos

natildeo os entende como adornos meramente exteriores mas como recursos ligados ao niacutevel semacircntico-

intensional do discurso Destarte o tratadista demanda o princiacutepio do aptum ou decorum e orienta que o

poeta apoacutes compreender e estabelecer o alcance da mateacuteria a ser tratada deve adornaacute-la com palavras

tropos e figuras que correspondam agrave sua interioridade que sejam reflexos dela pois o discurso soacute teraacute razatildeo

se os ornamentos interior e exterior estiverem em conformidade (Poetria Nova 743-761) Nesse sentido a

percepccedilatildeo vinsaufiana da elocutio natildeo se limita a

um plus meramente ornamental mas um plus significativo que dota o discurso de gravidade superior contribui com sua doutrina para enriquecer o conceito de poeticidade e defender uma concepccedilatildeo verdadeira da essecircncia do discurso literaacuteriopoeacutetico eliminando a tentaccedilatildeo de limitaacute-lo a uma mera acumulaccedilatildeo repetitiva de adornos as figuras e tropos natildeo satildeo concebidas como simples deslocamentos e modificaccedilotildees no niacutevel semacircntico-extensional mas em termos de adorno interior pois fazem referecircncia direta ao niacutevel semacircntico-intensional atendendo agrave sua natureza diferencial qualitativa (CALVO REVILLA 2008 p 70 traduccedilatildeo minha)

[121]

Aleacutem disso para o autor da Poetria nova os recursos de expressividade linguiacutestica eliminam o taedium e

promovem um ldquodeleite que por si mesmo fortalece a eficaacutecia da memoacuteriardquo (Poetria nova 2025-2026 traduccedilatildeo

minha) Ao contribuiacuterem com a memoria tambeacutem auxiliam a actio pois favorecem a memorizaccedilatildeo tanto do

compositor quanto do puacuteblico o que ajuda a garantir a eficaacutecia da performance a conexatildeo do poeta com os

ouvintes e o deleite destes o que fomenta o convencimento Percebe-se portanto que a elocutio estaacute inter-

relacionada com as demais operaccedilotildees retoacutericas de modo a garantir a eficaacutecia do discurso e atingir o objetivo

da comunicaccedilatildeo retoacuterica a persuasio

Natildeo obstante o preceito de interconexatildeo entre as operaccedilotildees ndash ou talvez justamente devido a esse preceito

que lega complexidade e multifuncionalidade agrave elocutio ndash a doutrina do estilo possui uma vultosa

representatividade de 835 na redaccedilatildeo da Poetria sobretudo no que tange ao tratamento do ornatus cuja

seccedilatildeo eacute a mais extensa da obra Dos 2120 versos 1770 compreendem os processos elocutivos destes

1232 tratam dos ornamentos ndash mais da metade do total de versos

Embora o autor natildeo tenha feito uma clara delimitaccedilatildeo eacute possiacutevel identificar que a Poetria possui sete seccedilotildees

A primeira (versos 1-42) eacute um prefaacutecio agrave guisa de panegiacuterico dedicando a obra ao Papa Inocecircncio III Na

segunda seccedilatildeo (versos 43-86) satildeo dadas as observaccedilotildees iniciais mormente ligadas agrave intellectio e agrave inventio e

gerais sobre a composiccedilatildeo poeacutetica com algumas alusotildees a processos da dispositio Esta no entanto eacute

apresentada de fato na terceira seccedilatildeo (versos 87-202) na qual o autor daacute atenccedilatildeo agraves partes do discurso e faz

a claacutessica distinccedilatildeo entre ordo artificialis e naturalis Na quarta seccedilatildeo (versos 203-1973) temos a doutrina

relativa agrave elocutio que se inicia com os meacutetodos de amplificaccedilatildeo4 e de abreviaccedilatildeo5 depois trata dos recursos

estiliacutesticos ndash dividindo-os entre gravitasornata difficultasornatus gravis6 e levitasornata facilitasornatus levis

(trinta e cinco figuras de dicccedilatildeo7 e dezenove figuras de pensamento8) ndash e por fim dos processos de conversatildeo

e determinaccedilatildeo A quinta seccedilatildeo (versos 1974-2034) eacute sobre a memoria a sexta (versos 2035-2069) sobre a

actiopronuntiatio e a uacuteltima (versos 2017-2120) um epiacutelogo em que tambeacutem se louva o Papa

Vinsauf trata sobre o uso do ridiculum ao versar sobre os meacutetodos de amplificaccedilatildeo e explicar como a

apoacutestrofe pode ser usada para criticar e ridicularizar os visados ldquoSe quiseres levantar-te plenamente contra

os ridiacuteculos levanta-te desta forma louva mas chistosamente acusa mas graciosamente sendo em tudo

apropriado [] E o que estava agraves escuras camuflado resplandeceraacute sob a luzrdquo (Poetria nova 432-436

4 Amplificaccedilatildeo por repeticcedilatildeo periacutefrase comparaccedilatildeo apoacutestrofe personificaccedilatildeo digressatildeo descriccedilatildeo e oposiccedilatildeo 5 Abreviaccedilatildeo por ecircnfase inciso ablativo absoluto implicaccedilatildeo fusatildeo de proposiccedilotildees e assiacutendeto 6 Metaacutefora onomatopeia antonomaacutesia metoniacutemia periacutefrase hipeacuterbato hipeacuterbole sineacutedoque catacrese e alegoria 7 Anaacutefora epiacutefora siacutemploce poliptoto antiacutetese apoacutestrofe interrogaccedilatildeo dialogismo ou raciociacutenio interrogativo sentenccedila contraacuterio membrum orationis inciso periacuteodo isoacutecolo homeoptoto homeoteleuto paronomaacutesia prolepse gradaccedilatildeo definiccedilatildeo transiccedilatildeo correccedilatildeo pretericcedilatildeo disjunccedilatildeo conjunccedilatildeo adjunccedilatildeo reduplicaccedilatildeo interpretaccedilatildeo comutaccedilatildeo concessatildeo indecisatildeo eliminaccedilatildeo assiacutendeto reticecircncia e conclusatildeo 8 Distribuiccedilatildeo repreensatildeo litote descriccedilatildeo divisatildeo acumulaccedilatildeo expoliccedilatildeo comoraccedilatildeo antiacutetese comparaccedilatildeo exemplo imagem retrato etopeia dialogismo prosopopeia alusatildeo concisatildeo demonstraccedilatildeo

[122]

traduccedilatildeo minha) Essas recomendaccedilotildees lembram por um lado aquelas referentes ao jugar de palabras

afonsino e tambeacutem por outro o recurso da equivocatio utilizado nas cantigas escarninhas galego-

portuguesas

Dado o rigor na elaboraccedilatildeo a Poetria nova alcanccedilou fama e foi utilizada por muitos estudantes e autores da

eacutepoca convertendo-se no ldquomanual baacutesico de introduccedilatildeo sobre a arte poeacutetica como manifestam os quase

duzentos manuscritos que foram sendo encontrados pela Europa cinquenta no seacuteculo XIII setenta no XIV e

sessenta no seacuteculo XVrdquo (CALVO REVILLA 2008 p 20 traduccedilatildeo minha) tendo sido muito citada como o foi

ldquopor Erasmo que numa carta a Cornelius Gerard a coloca na companhia de Horaacutecio e Quintilianordquo

(MONGELLI VIEIRA 2003 p 79) e copiada ateacute o seacuteculo XVII E o fato de a Poetria ter circulado com alguma

frequecircncia unida agrave Ars poetica horaciana e a obras literaacuterias como as de Boeacutecio e de Virgiacutelio e o fato de

Vinsauf ter residido por um periacuteodo na Espanha aumentam a chance de as cortes reais e senhoriais

peninsulares terem tomado conhecimento dos seus tratados

Os trovadores provenccedilais tiveram acesso a uma formaccedilatildeo musical e retoacuterica teoacuterica e praacutetica nas cortes e

nos centros culturais em que se estudavam as disciplinas do Trivium e do Quadrivium o que fica patente na

anaacutelise das cantigas uma vez que as letras das canccedilotildees trovadorescas com o grande nuacutemero de recursos

gramaticais e estiliacutesticos nelas empregados ldquorevelam de modo indubitaacutevel que os poetas que as compuseram

tinham uma soacutelida base retoacuterica que corresponde aos e se encaixa com os dados que possuiacutemos sobre o

ensino de poeacutetica e da ars bene dicendi de seu tempordquo (RIQUER 1992 t I p 71 traduccedilatildeo minha) Estudiosos

como Martin de Riquer ainda apontam a equivalecircncia entre a inventio e o trobar acenam para as semelhanccedilas

retoacutericas entre os trovadores provenccedilais e os poetas do Renascimento caroliacutengio destacam a traduccedilatildeo ao

romacircnico de conceitos retoacuterico-latinos e concluem que a arte dos trovadores reproduz os ensinamentos que

estes aprenderam nas escolas

[] uma parte de seu credo poeacutetico eacute no fundo uma transferecircncia para a liacutengua vulgar daquilo que vinham teorizando para a composiccedilatildeo latina nos tratados de retoacuterica que estudaram Assim vemos que expressotildees frequentes como ldquocolorir um cantordquo ldquopolir um cantordquo ldquopassar a limardquo ndash que se encontram entre outros em Cercamon Raimbaut drsquoAurenga Guiraut de Bornelh Arnaut Daniel ndash traduzem os conceitos de colores rhetorici verba polita inventio perpolita que as artes poeacuteticas medievais herdaram da retoacuterica latina e desenvolveram com assiduidade (RIQUER 1992 t I p 73 traduccedilatildeo minha)

Na Provenccedila o grande compecircndio do trovar satildeo as Leys drsquoamors redigidas pelo toulousano Guilhem

Molinier9 para a Compagnie du Gai Savoir10 Elas apresentam uma extensa prescriccedilatildeo de normas para a

9 Haacute trecircs redaccedilotildees das Leys A primeira eacute a de Molinier escrita em prosa entre 1328 e 1338 a partir desta Joan de Castellnou fez suas duas reescritas uma em verso entre 1337 e 1343 e outra em prosa entre 1355-1356 10 A companhia foi fundada em 1323 pelos ldquosete trovadores de Toulouserdquo Em 1694 alccedilou-se ao estatuto de academia passando a chamar-se Acadeacutemie des Jeux Floraux A academia ainda estaacute em atividade realiza periodicamente concursos e outros eventos e manteacutem um site com informaccedilotildees e arquivos diversos httpjeuxflorauxfr

[123]

composiccedilatildeo de poemas acompanhadas de exemplos considerando formas estilos correccedilatildeo gramatical e

adequaccedilatildeo agrave cortesia e agrave moral medievais com o objetivo de ensinar a compor agrave moda dos trovadores

provenccedilais As Leys drsquoamors satildeo assim uma compilaccedilatildeo orgacircnica e sistemaacutetica de

[] tudo que eacute preciso fazer e natildeo fazer [] tatildeo exaustiva que qualquer um de noacutes poderia ndash aplicando as normas ilustradas por Guilhem Molinier ndash armar-se em trovador e fazer de Bernart de Ventadorn ou Arnaut Daniel se a sua ambiccedilatildeo chegasse a tanto Poderia escolher entre 11 espeacutecies de versos e 28 de rima 11 geacuteneros poeacuteticos e 35 tipos de cobra mas teria que precaver-se dos 55 ldquoviacuteciosrdquo principais nos quais podem incorrer os poetas inexperientes e que nem sequer os mais famosos trovadores souberam evitar (TAVANI 1999 p 28)

Para se ter uma ideia da dilataccedilatildeo da ars de Molinier e de como o tratadista versou agrave exaustatildeo a mateacuteria

relacionada ao trovar provenccedilal basta folhear os iacutendices de rubricas dos trecircs tomos da ediccedilatildeo organizada

por Joseph Anglade e verificar se nossa contagem natildeo estiver equivocada nada menos que trezentas e doze

rubricas sumarizando os conteuacutedos das quase seiscentas paacuteginas do tratado Em seus ldquoEacutetudes sur les Leys

drsquoamorsrdquo Joseph Anglade analisou os livros I e II da sua ediccedilatildeo das Leys identificou que o toulousano valeu-

se de um sem-nuacutemero de citaccedilotildees e alusotildees agrave tradiccedilatildeo precedente (ANGLADE 1919 t IV p 145-163)11 e

concluiu que a doutrina das Leys eacute preponderantemente influenciada pela Retoacuterica a Herecircnio e pelo De

inventione de Ciacutecero mas tambeacutem por Aristoacuteteles Secircneca Donato Isidoro de Sevilha e outros pensadores

greco-latinos e latino-medievais pela Biacuteblia e pelas artes de trovar anteriores a Molinier (ANGLADE 1919

t IV p 53-108)

Na Peniacutensula Ibeacuterica por sua vez a Retoacuterica foi aprendida sobretudo por meio do ensino formal inicialmente

nas escolas romanas depois nas escolas monacais e finalmente nas universidades (LAUSBERG 2004 p 13-

14) Aleacutem disso sabe-se que a Retoacuterica influiu na mentalidade e na cultura do Medievo ibeacuterico o que se

comprova pela presenccedila de menccedilotildees diretas e indiretas ao conhecimento retoacuterico em documentos e

ldquocontextos aparentemente mais alheios a tal disciplinardquo (p 19) ndash mas de alguma forma relacionados ao

contexto de produccedilatildeo da liacuterica trovadoresca

O acesso aos conteuacutedos de arte poeacutetica pelos trovadores galego-portugueses foi fomentado por Afonso X

cuja corte era um verdadeiro centro cultural e de saber do Medievo Afonso X natildeo se dedicou

especificamente a um tratado de Retoacuterica mas contemplou-a em outras obras suas como o Setenario e Las

siete partidas No Setenario o rei Saacutebio trata da Retoacuterica como a arte que ensina a falar de maneira elegante e

digna de modo que aquele que vier a argumentar mova os coraccedilotildees dos ouvintes para levaacute-los mais ainda ao

ponto desejado E entre as estrateacutegias para falar de maneira elegante e digna o monarca recomenda os

11 O editor tambeacutem estudou os tratadistas trovadorescos que compuseram subsequentemente agraves Leys e tambeacutem verificou que eles muito se reportaram direta ou indiretamente aos conteuacutedos estabelecidos por Molinier (ANGLADE 1919 t IV p 108-120)

[124]

recursos do ornatus como relevantes natildeo soacute para o falar ffermoso que desvelava a cortesia como tambeacutem

para a eficaacutecia da persuasio

A quem usar dessa arte muito conveacutem procurar que a razatildeo seja ornada (ldquoque a colorerdquo) de

modo a causar boa impressatildeo nas vontades dos que a ouvirem E conveacutem ainda que seja

elegante para que leve ao desejo de aprendecirc-la e de saber argumentaacute-la E que se exponha

com dignidade nem muito depressa nem muito devagar E que se apresente cada razatildeo onde

conveacutem de acordo com aquilo de que se quer falar E que se exponha amorosamente nem

muito rijo ou muito bravo nem tampouco muito frouxo mas em bom som comedido sem

elevar ou abaixar demais a voz E haacute de procurar que a expressatildeo que usar esteja de acordo com

a razatildeo que disser (Setenario 38-47)

Percebe-se portanto que assim como o fizeram os tratadistas das artes poetriae em seu Setenario Afonso X

distinguiu os ornamentos como importantes recursos para a ars bene dicendi e contemplou a correccedilatildeo

gramatical a persuasio e o ornatus de maneira estritamente relacionada

Na ldquoPartida segundardquo de Las siete partidas Afonso X se utiliza de seus conhecimentos retoacutericos ao expor as

praacuteticas discursivas da corte intertextualizando com noccedilotildees da disciplina claacutessica Pela Lei 29 do tiacutetulo IX

sabemos que quando o monarca se reuacutene no palaacutecio para falar com os homens pode fazecirc-lo com trecircs

objetivos distintos para deliberar os pleitos para comer ou para fablar en gasaiado (Las siete partidas 2929)

O fablar en gasaiado era o momento quando o rei se encontrava com seus suacuteditos para conversar

agradavelmente e nesse fablar poderiam ser trecircs os modos discursivos utilizados o departir o retraer e o jugar

de palabras12 para os quais o rei prescreveu normas de conveniecircncia e de caraacuteter retoacuterico que devem ser

seguidas pelos que quisessem ser bem acolhidos e permanecer na corte Aqueles que natildeo agissem conforme

as saacutebias leis seriam penalizados com a expulsatildeo do palaacutecio e da corte (Las siete partidas 2929) Assim

conforme a Lei 29 ao departir eacute preciso considerar o entendimento dos ouvintes ldquofalando das coisas com

razatildeo para chegar agrave verdade delasrdquo (Las siete partidas 2929 traduccedilatildeo minha) Na sequecircncia a Lei 30 define

o retraer como a narraccedilatildeo de fatos ldquocomo foram ou satildeo ou pode vir a serrdquo (Las siete partidas 2930 traduccedilatildeo

minha) e destaca a recepccedilatildeo o modo o tempo e o lugar do retraer13 num eco do conceito retoacuterico de narraccedilatildeo

presente na Retoacuterica a Herecircnio14 e tambeacutem das liccedilotildees de Ciacutecero que no De oratore (2008) destaca a

importacircncia de se observarem as circunstacircncias de lugar e tempo de niacutevel estilo e decoro durante a

12 Montoya Martiacutenez relaciona o departir o retraer e o jugar de palabras aos modos dialeacutetico narrativo e satiacuterico respectivamente (1991 p 366) 13 ldquoRetraer en los fechos o en las cosas commo fueron o son o pueden seer es grant bien estanccedilia a los que ello saben abenir E para esto seer fecho commo conviene deven y seer catadas tres cosas tienpo e lugar e manera tienpo deven catar que convenga a la cosa sobre que quier rretraer mostrando por buena palabra o por buen enxenplo o por buena fazanna otra que semeje con aquella para alabar la buena o para desatar la mala e otrosy deven catar lugar de guysa que lo que rretrayeren que lo digan a tales omnes que se aprovechen dello asy commo sy quisieren castigar a omne escaso diziendole enxenplos de omnes grandes e al cobarde de los esforzados e manera deven catar para rretraer de guysa que digan por palabras conplidas e apuestas lo que dixieren e que semege que saben bien aquello que dizen otrosy que aquellos a quien lo dixieren ayan sabor de lo oyr e de lo aprenderrdquo (Las siete partidas 2930) 14 ldquoNarraccedilatildeo eacute a exposiccedilatildeo das coisas como ocorreram ou como poderiam ter ocorridordquo (Auct ad Her 14)

[125]

elaboraccedilatildeo do discurso Por fim na Lei 30 o rei traz agrave baila o jugar de palabras que consistia em apresentar

fatos e exemplos agraves avessas sem desonra ou fuacuteria de modo que os homens os aproveitassem rindo-se e

alegrando-se ndash uma estrateacutegia retoacuterica de produccedilatildeo escarninha muito pertinente agrave saacutetira galego-portuguesa

O tratado trovadoresco do acircmbito galego-portuguecircs que conhecemos eacute uma poeacutetica anocircnima e fragmentaacuteria

que nos chegou apensa ao Cancioneiro da Biblioteca Nacional e eacute habitualmente designada como Arte de trovar

Apesar de sua relevacircncia o que nos restou dessa poeacutetica eacute aleacutem de lacunar muito sinteacutetico e generalizante

pois os preceitos normatizados natildeo satildeo descritos em minuacutecias natildeo satildeo apresentados exemplos de como

empregar os recursos descritos as questotildees relativas ao campo da moral natildeo satildeo desenvolvidas de forma

suficiente natildeo se considera a performance das cantigas as definiccedilotildees e descriccedilotildees arroladas muitas vezes

natildeo correspondem ao que na praacutetica foi realizado pelos trovadores e jograis Por conseguinte a Arte de trovar

possui um caraacuteter mais descritivo e menos didaacutetico servindo portanto mais como uma breve apresentaccedilatildeo

de artifiacutecios empregados pelos trovadores e jograis e menos como meacutetodo que ensina a compor agrave moda

trovadoresca galego-portuguesa Por conta disso natildeo deve ser considerada ldquouma obra destinada agrave instruccedilatildeo

de futuros trovadores mas um guia informativo para o admirador de cantigas trovadorescas proacuteprio como

tal a introduzir o leitor na magniacutefica antologia que acaba de abrirrdquo (DrsquoHEUR 1975 p 380 traduccedilatildeo minha)

A despeito do pouco rigor no tratamento da mateacuteria eacute possiacutevel perceber que junto com as prescriccedilotildees

esteacuteticas trovadorescas o anocircnimo autor cultiva a moral eacutetica da conveniecircncia cortesatilde Conforme DrsquoHeur o

recorrente uso de ldquoconveacutemrdquo e ldquonatildeo conveacutemrdquo ao lado de ldquodevemrdquo e ldquopodemrdquo eacute significativo nesse sentido por

representar na redaccedilatildeo do tratadista uma moral de respeito e sujeiccedilatildeo agraves convenccedilotildees jaacute estabelecidas

(1975 p 384)

Conquanto o tratadista anocircnimo escuse-se de fazer referecircncias diretas ao sistema retoacuterico antigo e ao

medieval natildeo trovadoresco a menccedilatildeo agrave equivocatio (Arte de trovar 35) como marcador constitutivo e

distintivo das cantigas de escaacuternio revela segundo Lausberg uma niacutetida ligaccedilatildeo com a ars claacutessica segundo

a qual os verba aequivoca podiam servir agrave dissimulatio retoacuterica encobrindo no contexto satiacuterico galego-

portuguecircs uma ironia propositada (2004 p 19) Nota-se que permanecem valorizados na Arte teacutecnicas e

recursos que os demais tratados medievais tomavam como pertinentes para se alcanccedilar a elegacircncia e a

eficaacutecia do discurso como destacado no subcapiacutetulo anterior pois se apresentam questotildees relativas agrave

correccedilatildeo gramatical agrave escolha vocabular e ao emprego de ornamentos

No que tange particularmente ao tratamento da elocutio eacute importante mencionar primeiro o resultado do

levantamento feito por Simone Marcenaro para identificar os ornamentos de estilo presentes nas cantigas

satiacutericas Entre os expedientes mais utilizados estatildeo a repeticcedilatildeo a ironia e algumas figuras da argumentatio

como a prosopopeia a etopeia e a amplificatio entre outras aleacutem de cores da Retoacuterica como a acumulaccedilatildeo

a metoniacutemia a sineacutedoque a periacutefrase a metaacutefora a hipeacuterbole a similitude a antiacutetese o epiacuteteto a sentenccedila e

[126]

a interrogaccedilatildeo retoacuterica (2010 p 105) Considerando-se esse saldo resulta natildeo soacute curioso como sobretudo

relevante questionar por que da extensa gama de ornamentos de estilo que poderiam ser ou foram utilizados

nas cantigas trovadorescas pelos trovadores e jograis o anocircnimo autor da Arte se limitou a descrever

modalidades relacionadas agrave repeticcedilatildeo com destaque para o dobre e o mozdobre

Ponderando a concisatildeo com que a poeacutetica foi elaborada tal seleccedilatildeo poderia revelar que o tratadista

reconheceu a relevacircncia dos recursos de repeticcedilatildeo na poesia trovadoresca galego-portuguesa ou ao menos

a sua recorrecircncia pois na leitura das cantigas e tenccedilotildees observa-se o acesso a diversos tipos de repeticcedilatildeo

foneacutetico-fonoloacutegica morfossintaacutetica e semacircntico-discursiva Essa curiosidade torna-se ainda mais

significativa se concordarmos com Seacuteveacuterine Abiker que em seu Lrsquoeacutecho paradoxal ndash eacutetude stylistique de la

reacutepeacutetition dans les reacutecits brefs en vers XIIegrave-XIVegrave siegravecles afirma que a repeticcedilatildeo estaacute presente em toda obra da

Idade Meacutedia evidenciando uma espeacutecie de estilo medieval e merece por isso ser investigada nas produccedilotildees

literaacuterias da eacutepoca (2008 p 9 28)

Assim apoacutes a anaacutelise destes e de outros diversos tratados latino-medievais e trovadorescos pude observar

que os medievais valorizavam a aproximaccedilatildeo e a complementaccedilatildeo entre inventio dispositio e elocutio com a

beleza do pensamento sendo sustentada pela beleza da expressatildeo por sua vez sustentada pelas palavras

bem escolhidas e ornamentos bem adequados Eles concediam atenccedilatildeo especial aos recursos elocutivos e

recomendavam que persuasio e ornatus fossem trabalhados de maneira estritamente relacionada na

elaboraccedilatildeo do texto poeacutetico pois a ornamentaccedilatildeo elaborada apropriadamente era considerada elemento

decisivo para o cumprimento das finalidades retoacutericas de docere delectare e movere Entre os recursos

elocutivos os tratadistas medievais em suas teorias e os trovadores e jograis em sua praacutetica davam lugar

de destaque aos que funcionam por meio de processos e mecanismos iterativos que se tornaram uma das

fortes marcas do estilo medieval conformando uma espeacutecie de esteacutetica da repeticcedilatildeo Como jaacute dito na

retoacuterica medieval foi a amplificaccedilatildeo o procedimento que mais atenccedilatildeo captou e que mais extensamente foi

tratado nas artes poetriae e dentro da amplificaccedilatildeo se estudaram os distintos meacutetodos dos quais podia o

escritor servir-se para realccedilar um tema desenvolvendo-o por meio da reiteraccedilatildeo das mesmas ideias ou

conceitos sob diferentes aspectos

Esse efeito da repeticcedilatildeo sobre o receptor do discurso tambeacutem foi observado pelos gregos e latinos e os

procedimentos iterativos foram classificados e recomendados pela Retoacuterica antiga Para essa disciplina a

repeticcedilatildeo eacute um mecanismo que atua em todas as operaccedilotildees retoacutericas e funciona como recurso de persuasatildeo

servindo como incrementum agrave execuccedilatildeo da amplificatio na realizaccedilatildeo intelectual e afetiva da persuasio ndash

processo que jaacute explicamos antes Natildeo eacute agrave toa pois que Ciacutecero no Orator inclui a repeticcedilatildeo entre os recursos

de retoacuterica mais importantes que devem ser aprendidos e empregados pelo perfeito orador (Orat 39135)

[127]

Ainda no ldquoDe ridiculisrdquo (De oratore) de Ciacutecero e no ldquoDe risurdquo (Institutio oratoria) de Quintiliano a repeticcedilatildeo

participa como mecanismo para o riso em alguns dos gecircneros do ridiculum que os autores elencam15

A Retoacuterica claacutessica organiza diversas formas e processos iterativos especialmente no conjunto das figuras de

palavras (figurae elocutionis) e de pensamento (figurae sententiae) As figuras de repeticcedilatildeo foram consagradas

pelas poeacuteticas latino-medievais que muito valorizaram os procedimentos iterativos e tambeacutem satildeo

aproveitadas pelas poeacuteticas trovadorescas conquanto estas tenham vestido tais expedientes de uma nova

nomenclatura

Na Poetria nova de Geoffrey de Vinsauf a repeticcedilatildeo estaacute presente em vaacuterios processos estudados e

recomendados participa do mecanismo de uma figura de pensamento a expolitio e de quinze figuras de

dicccedilatildeo anaacutefora (repetitio) epiacutefora (conversio) siacutemploce (complexio) poliptoto (traductio) isoacutecolo (compar)

homeoptoto (similiter cadens) homeoteleuto (similiter desinens) paronomaacutesia (adnomnatio) gradaccedilatildeo

(gradatio) transiccedilatildeo (transitio) correccedilatildeo (correctio) disjunccedilatildeo (disjunctio) polissiacutendeto (conjunctio)

reduplicaccedilatildeo (conduplicatio) interpretaccedilatildeo (interpretatio) quiasmo (commutatio) eacute um dos meacutetodos da

amplificatio com o uso da interpretatio e da expolitio enquanto meio de dizer o mesmo vaacuterias vezes de modo

diferente participa da conversatildeo cujo mecanismo ndash substituiccedilatildeo de uma categoria gramatical por outra com

o fim de escolher uma forma mais agradaacutevel e assim alcanccedilar a beleza do ornatus ndash relaciona-se com o da

paronomaacutesia e corresponde ao do poliptoto

Nas Leys drsquoamors occitacircnicas o artifiacutecio da repeticcedilatildeo eacute referido em dois momentos na seccedilatildeo sobre as

construccedilotildees viciosas e na seccedilatildeo sobre estrofaccedilatildeo No primeiro momento Molinier condena a replicacio (ou

replicacioacute ou replicatio) enumeraccedilatildeo contiacutenua de palavras com siacutelabas iguais e de mesmo som porquanto

geradora de cacossiacutenteto (construccedilatildeo viciosa gerada por colocaccedilatildeo inadequada de palavras)16 Contudo

Molinier enfatiza que a repeticcedilatildeo natildeo eacute considerada incorreta se houver intercalaccedilotildees ldquoDizemos da

repeticcedilatildeo contiacutenua Porque se haacute a repeticcedilatildeo descontiacutenua de uma palavra ou de uma siacutelaba o viacutecio da

replicacio deixa de existirrdquo (Leys drsquoamors 352 traduccedilatildeo minha) Aleacutem disso a repeticcedilatildeo sequencial eacute

permitida17 se for decorrente do emprego de artigos pronomes preposiccedilotildees nomes proacuteprios proveacuterbios

15 Conforme Ivan Neves Marques Jr os gecircneros do ridiacuteculo considerados por Ciacutecero e Quintiliano em seus De ridiculis

(De oratore) e De risu (Institutio oratoria) respectivamente satildeo anedotas metaacutefora ironia alegoria ambiguidade

hipeacuterboles repreensatildeo de estultice simulaccedilatildeo maliacutecia interpolaccedilatildeo de versos adaptaccedilatildeo ou uso de proveacuterbios frases

absurdas quebra de expectativa paronomaacutesia dissimulatiosimulatio dissimulatio ex ambiguitas ambiguidade que se

aproxima do enigma similitude com ambiguidade fictio ex ironia (MARQUES JR 2008 p 151) 16 Como nos seguintes exemplos citados ldquoPrestres prezican provizetzrdquo ldquoVerges vergiers verdejans vergenalsrdquo ldquoDona donans donam dos divinalsrdquo ldquoRogiers rugish ravial raviosrdquo ldquoRestauramens restauram restauransrdquo ldquoLos peccadors per peccatz pecz peccansrdquo ldquoBonas noelas lauzaretz Las avols cascus calaretzrdquo ldquoDieus dona nos nostra vianda Laqual cascus fizels demandardquo ldquocor ferms fay far faytz francz e fis el flaaelig fals fols vils et aclisrdquo (Leys drsquoamors 352-58) 17 Curiosamente a despeito de a menccedilatildeo agrave replicacio estar inserida na parte das Leys que trata dos viacutecios a lista de exemplos condenados (Leys drsquoamors 352-58) eacute menos extensa que a dos exemplos abonados (Leys drsquoamors 358-68)

[128]

refratildees citaccedilotildees etc ou constituinte das quaysh replicacios18 Molinier tambeacutem aprova o uso das figuras de

repeticcedilatildeo da Retoacuterica claacutessica desde que seu uso seja feito com propriedade O tratadista toulousano

encerra a discussatildeo concluindo que ldquosatildeo refinadas e engenhosas as composiccedilotildees em que a repeticcedilatildeo eacute

elaborada intencional e arrazoadamenterdquo (Leys drsquoamors 362 traduccedilatildeo minha)

No outro passo das Leys os mecanismos de figuras de repeticcedilatildeo satildeo acessados como marcadores

constitutivos e distintivos de algumas modalidades de cobla O mecanismo da anaacutefora estaacute presente nas

coblas capdenals que ocorrem quando ldquocada verso comeccedila com a(s) mesma(s) palavra(s) ou a mesma frase

ou quando cada estrofe comeccedila com a(s) mesma(s) palavra(s) ou a mesma fraserdquo (Leys drsquoamors 3282 traduccedilatildeo

minha) O mecanismo da epiacutefora estaacute nas coblas retronchadas que ocorrem ldquoquando eacute repetida a mesma

palavra no final de cada verso ou de dois em dois ou de trecircs em trecircs ou mais de acordo com a vontade do

poeta ou quando no final de cada estrofe eacute repetido o mesmo verso ou dois mesmos versosrdquo (Leys drsquoamors

3286 traduccedilatildeo minha) O da siacutemploce que eacute a combinaccedilatildeo de anaacutefora e epiacutefora estaacute nas coblas duplicativas

que seriam assim a combinaccedilatildeo de coblas capdenals e retronchadas ldquoA cobla duplicativa se faz quando cada

verso comeccedila com a(s) mesma(s) palavra(s) ou a mesma frase e termina com a(s) mesma(s) palavra(s) ou a

mesma fraserdquo (Leys drsquoamors 3288 traduccedilatildeo minha) O mecanismo da epanadiplose estaacute nas coblas

recordativas que ocorrem ldquoquando a primeira palavra do verso eacute repetida no final do mesmo verso ou quando

o primeiro verso de uma estrofe eacute repetido ao final dessa mesma estroferdquo (Leys drsquoamors 3284 traduccedilatildeo

minha) E o da anadiplose nas coblas capfinidas e capcaudadas ldquoA cobla eacute chamada capfinida porque a palavra

siacutelaba ou oraccedilatildeo que termina a estrofe torna-se o iniacutecio da proacuteximardquo a cobla capcaudada (Leys drsquoamors 3280

traduccedilatildeo minha)

Na Arte de trovar galego-portuguesa destacam-se como formas de repeticcedilatildeo o dobre e o mozdobre como

vimos O dobre consiste em repetir certa palavra uma ou duas vezes ao longo de uma estrofe sendo

conveniente que apareccedila a mesma palavra ou outra que forme um dobre na mesma posiccedilatildeo em todas as

estrofes e tambeacutem na finda

Dobre eacute o recurso que consiste em dizer uma palavra duas vezes ou mais em cada estrofe

Devem usaacute-lo com moderaccedilatildeo e se o fizerem em uma estrofe conveacutem que o faccedilam em todas

as outras podendo variar as palavras dobradas em cada estrofe mas sempre na mesma

posiccedilatildeo e da mesma maneira em todas as estrofes E devem igualmente usar o dobre nas

findas da mesma forma (Arte de trovar 45 traduccedilatildeo minha)

18 As quaysh replicatios satildeo pseudorrepeticcedilotildees natildeo viciosas como nos seguintes exemplos citados ldquopatz platzrdquo ldquocambra bassardquo ldquonegra garsardquo ldquobel hlatrdquo ldquocambra belardquo ldquoplen punhrdquo ldquopren pardquo ldquotray tostrdquo ldquolaysha saysha seguramenrdquo ldquoPestre tutorrdquo ldquoPolpra planardquo ldquoQuar clucardquo ldquoTutritz testardardquo ldquopupils prepauzardquo ldquocascus cloquiersrdquo ldquoTursquo afolas lrsquoaybrerdquo ldquoMola lima Amara raba Cara rima Causa sanctardquo ldquoara rira aquel srsquoafola la lenguardquo ldquotrastot es plerdquo ldquotot es talatrdquo ldquoe tant es tramrdquo ldquoou tant es tristardquo ldquoclar lumrdquo ldquosucre rozatnzegre razimrdquo ldquoflac layronatrdquo (Leys drsquoamors 358-62)

[129]

O dobre eacute a repeticcedilatildeo simples portanto sem variaccedilotildees morfoloacutegicas como nas figurae elocutionis de

repeticcedilatildeo por igualdade formal completa E quando utilizado em posiccedilatildeo de rima o dobre eacute equivalente ao

mot refranh provenccedilal

O mozdobre segundo a Arte ldquoeacute igual ao dobre quanto ao entendimento das palavras mas estas variam pois

mudam os tempos verbais E como jaacute vos disse do dobre igualmente o mozdobre deve ser empregado em

todas as estrofes e findas na mesma posiccedilatildeo e da mesma maneira para ficar melhor elaboradordquo (Arte de trovar

46 traduccedilatildeo minha) Assemelhado ao poliptoto e agrave figura etimoloacutegica o mozdobre eacute portanto a repeticcedilatildeo

que apresenta variaccedilotildees morfoloacutegicas e assim como o dobre pode aparecer no iniacutecio interior ou fim de um

verso desde que seja precisa a correspondecircncia entre os versos que se ligam pelo mozdobre E quando

empregado em posiccedilatildeo de rima o mozdobre eacute equivalente agrave rim derivatiu provenccedilal

Na praacutetica trovadoresca aleacutem do dobre e do mozdobre os trovadores e jograis utilizaram ainda outros

procedimentos por exemplo o enjambement os conectores (e que pero ca ndash quando fazem a articulaccedilatildeo

sintaacutetica de um verso a outro ou de uma estrofe a outra) e o leixa-pren ndash equivalente agrave anadiplose o leixa-pren

eacute um mecanismo de repeticcedilatildeo da ldquomesma palavra no fim dum verso ou estrofe e no comeccedilo do seguinte ou

na repeticcedilatildeo do mesmo verso no fim duma estrofe e no comeccedilo da outra que segue imediatamente ou

atraveacutes de uma estrofe interpostardquo (BELTRAN 2000 p 386)

Do mesmo modo que as figuras de repeticcedilatildeo contempladas pela Retoacuterica antiga as formas de repeticcedilatildeo

presentes nas cantigas e tenccedilotildees satiacutericas galego-portuguesas contribuem para o ornatus e funcionam na

realizaccedilatildeo intelectual e afetiva da persuasio sendo aplicaacutevel aos trecircs genus servindo ao ensinar e provar ao

deleitar e ao comover A repeticcedilatildeo pode obrar ainda como provocadora de riso o que por sua vez tambeacutem

colabora com o processo retoacuterico de ensinar provar deleitar e comover No caso da repeticcedilatildeo por exemplo

pode-se buscar a adesatildeo do puacuteblico por meio de repeticcedilotildees semanticamente baseadas esse jogo de

associaccedilotildees ainda pode provocar o ridiacuteculo essa comicidade igualmente conquista a atenccedilatildeo da audiecircncia

manteacutem sua adesatildeo e consequentemente colabora para o seu convencimento Mesmo os ecos sonoros das

repeticcedilotildees as aliteraccedilotildees assonacircncias e rimas podem relacionar-se ao jogo da persuasatildeo ao organizarem ao

longo da cantiga uma mnemocircnica e expressiva seacuterie de apelos focircnicos e semacircnticos aos ouvintes Percebe-

se com isso que os recursos de repeticcedilatildeo satildeo multifuncionais e ateacute mais significativos quando operam em

niacuteveis interligados

Como se vecirc a retoacuterica claacutessica influiu na elaboraccedilatildeo dos tratados de arte poeacutetica latino-medievais e

trovadorescos e essa permanecircncia atualizada igualmente marcou presenccedila na praacutetica poeacutetica medieval e

trovadoresca De fato em um estudo em que analisei as tenccedilotildees de Lourenccedilo (FALCAtildeO 2015) por exemplo

constatei que o segrel natildeo somente teve a ldquocapacidade de descobrir o que eacute adequado a cada caso com o fim

de persuadirrdquo (Arist Rh 121355b) como tambeacutem construiu uma retoacuterica da impertinecircncia realizada textual

[130]

e discursivamente por meio de ferramentas iterativas Tal estrateacutegia retoacuterica era adequada agrave atuaccedilatildeo de

Lourenccedilo nas tenccedilotildees pois estas deveriam ser marcadas por traccedilos de oposiccedilatildeo de acordo com a Arte de

trovar e tambeacutem porque a perseveranccedila eacute um dos cinco fundamentos da Retoacuterica de acordo com as Leys

drsquoamors De tal modo se os trovadores lhe vinham frequentemente travar para taxaacute-lo de incompetente o

segrel deveria para defender-se e debater de acordo com os preceitos valorizados em seu meio

trovadoresco contrapor-se aos interlocutores persistindo no autoelogio para afirmar sua capacidade O

modus faciendi de Lourenccedilo em suas tenccedilotildees aproxima-se nesse sentido das noccedilotildees aristoteacutelicas de

inconveniecircncias convenientes e de despropoacutesitos a propoacutesito (Arist Poet 1454a) muito adequadas ao texto

satiacuterico desde os tempos antigos segundo Joatildeo Adolfo Hansen (2011 p 151)

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VINSAUF G de Poetria nova Ed y trad A M Calvo Revilla Madrid Arco 2008 (Coleccioacuten Perspectivas Textos)

A

carta-prefaacutecio

da Utopia de Thomas More encenaccedilatildeo textual de uma arte poeacutetica

Ana Claacuteudia Romano Ribeiro

acrribeirounifespbr

A carta-prefaacutecio que Thomas More endereccedila a Pieter Gillis

antecede os livros I e II da Utopia publicada em finais de 1516 em

Lovaina sob o tiacutetulo Libellus vere aureus nec minus salutaris quam

festiuus de optimo reip statu deque noua insula Vtopia authore

clarissimo viro Thoma Moro inclytae ciuitatis Londinensis ciue amp

vicecomite cura M Petri Aegidii Antuerpiensis amp arte Theodorici

Martini Alustensis Typographi almae Louaniensium Academiae nunc

primum acuratissime editus (Um livrinho verdadeiramente de ouro natildeo

menos salutar que divertido sobre a melhor forma de repuacuteblica e sobre

a nova ilha de Utopia por Thomas More autor e homem ilustriacutessimo

cidadatildeo da iacutenclita cidade de Londres e xerife aos cuidados do mestre

antuerpiense Pieter Gillis e pelas artes de Dieryck Martens de Alost

tipoacutegrafo da veneraacutevel academia de Lovaina agora acuratissimamente

editado pela primeira vez) Ela natildeo foi enviada ao seu remetente mas

a Erasmo que estava cuidando da ediccedilatildeo da Utopia juntamente com

Pieter Gillis More a expediu em 3 de setembro de 1516 juntamente

com o manuscrito do libellus aureus e uma carta para o proacuteprio

Erasmo (Opus epist 2 ep 461 p 339 ll 1-2) na qual escreve

ldquoEnvio-te nosso lsquoNenhum lugarrsquo (Nusquama) em nenhum lugar

(nusquam) bem escritordquo

A carta-prefaacutecio talvez seja o paratexto mais publicado nas ediccedilotildees

da Utopia Ela precede o grande diaacutelogo dos livros I e II que trazem

[133]

respectivamente uma discussatildeo sobre o funcionamento das instituiccedilotildees poliacuteticas sociais e econocircmicas da

Inglaterra quinhentista e em seguida e em contraponto a descriccedilatildeo da repuacuteblica utopiana feita por Rafael

Hitlodeu um marinheiro-filoacutesofo portuguecircs Antecede agrave narraccedilatildeo de acontecimentos ndash citados numa ordem

cronoloacutegica natildeo linear nos livros I e II ndash que comeccedilam em 1497 na casa do cardeal Morton passam por uma

das viagens de Amerigo Vespucci e pela estadia de Hitlodeu na Utopia para terminar em 1515 em um jardim

em Antueacuterpia O espaccedilo geograacutefico correspondente a esse iacutenterim eacute mais extenso do que o que se conhecia

entatildeo o leitor passa da Europa (Inglaterra Beacutelgica e Franccedila) agrave Iacutendia e ao Novo Mundo de fronteiras

desconhecidas onde se encontra a ilha de Utopia e outras terras incoacutegnitas

Pieter Gillis secretaacuterio-geral de Antueacuterpia1 a partir de 1510 conheceu More em setembro de 1515 na

missatildeo diplomaacutetica e comercial nos Paiacuteses Baixos citada no comeccedilo do livro I da Utopia2 Ele foi o primeiro

editor das cartas de Erasmo junto ao impressor Dieryck Martens na cidade de Lovaina Aleacutem disso tambeacutem

preparou ediccedilotildees de obras de Poliziano (1510) Rodolphus Agricola (1511) Esopo (1513) Luciano de

Samoacutesata (1518) e uma Summa legum diversorum imperatorum (1517) sobre as fontes do coacutedigo justiniano

A carta-prefaacutecio eacute publicada nas quatro primeiras ediccedilotildees acrescida de anotaccedilotildees marginais que tambeacutem

seratildeo acrescentadas aos livros I e II Natildeo se sabe ao certo se essas notas marginais foram elaboradas apenas

por Erasmo ou se Gillis tambeacutem colaborou com isso3

Na primeira ediccedilatildeo ela traz o tiacutetulo PRAEFATIO in opus de optimo reipublicae statu (ldquoPrefaacutecio agrave obra sobre a

melhor forma de repuacuteblicardquo) suprimido a partir da segunda ediccedilatildeo Na terceira e quarta ediccedilotildees (de marccedilo e

novembro de 1518 publicadas em Basileia por Johann Froben) suas primeiras linhas seratildeo enquadradas

com a mesma moldura que encontramos no frontispiacutecio da quarta ediccedilatildeo ornada com anjos-bebecircs (os putti)

de Hans Holbein A repeticcedilatildeo da moldura daacute agrave carta-prefaacutecio uma posiccedilatildeo de destaque entre os demais

paratextos que natildeo satildeo enquadrados e cria um ritmo tipograacutefico que daacute um caraacuteter de retomada agrave carta-

prefaacutecio

Elizabeth McCutcheon (1983 p 5) mostrou que a carta-prefaacutecio tambeacutem pode ser lida como um guia poeacutetico

e hermenecircutico da Utopia uma ars poetica participando de uma esteacutetica do engano honesto que se funda no

1 Aires Nascimento lembra que eacute no porto de Antueacuterpia ldquocentro das novidades do Novo Mundordquo que chegam especiarias trazidas pelos navios portugueses que tinham nesta cidade uma feitoria de onde distribuiacuteam as mercadorias ldquoA feitoria portuguesa [em Antueacuterpia] data de 1499 e a lsquonaccedilatildeorsquo que a compotildee tem reconhecimento desde 1511 com casa na rua Kipdorp posta agrave disposiccedilatildeo do feitor pela cidade tem um estatuto de favorecimento o feitor eacute simultaneamente diplomata e agente econocircmicordquo (MORVS 2006 p 373 n 31) 2 Sobre esta missatildeo ver Surtz ldquoSt Thomas More and his utopian embassy of 1515rdquo (1953) e Hexter ldquoMorersquos visit to Antwerp in 1515rdquo em CW4 ndash esta sigla designa doravante o volume 4 de The Complete Works of St Thomas More (ver a referecircncia completa em MORE 1965) Sobre Gillis ver o artigo de Nauwelaerts (1967) 3 Gillis em sua carta a Busleyden informa tecirc-las adicionado agrave ediccedilatildeo da Utopia juntamente com o tetraacutestico e o alfabeto utopiano sem dizer explicitamente se as teria elaborado ele mesmo o frontispiacutecio da segunda ediccedilatildeo publicada em Paris em 1517 nas prensas de Gilles de Gourmond informa que elas satildeo de autoria de Erasmo

[134]

paradoxo e visa ldquoexercitar a mente a imaginaccedilatildeo e o senso moral do leitorrdquo De fato a carta-prefaacutecio introduz

ao leitor agrave poeacutetica geral do livro que mescla real e potencial o que foi o que eacute e o que poderia ter sido O

gecircnero utoacutepico ldquoescapa agraves categorias claacutessicasrdquo ldquosegue uma loacutegica e possui uma coerecircncia que lhe satildeo

proacutepriasrdquo ldquomistura incessantemente detalhes plausiacuteveis ao relato fictiacutecio e ao inverossiacutemilrdquo (PREacuteVOST

2015 p 439) artifiacutecios semacircnticos e sintaacuteticos como a dupla negaccedilatildeo que despista o espiacuterito do leitor e tem

como resultado o embaccedilamento das fronteiras entre o objetivo e o subjetivo a verdade e a quimera o preciso

e o ambiacuteguo a realidade e o sonho (PREacuteVOST 2015 p 442)

A loacutegica e a poeacutetica da Utopia aparecem no uso de ldquopalavras-enigma e conceitos auto-destrutoresrdquo

(PREacuteVOST 2015 p 440) e ldquoconceitos negativos que estouram como bolhas de sabatildeordquo (PREacuteVOST 2015 p

441) a comeccedilar por Utopia ndash palavra cunhada por More que indica o natildeo-lugar que mesmo sendo um natildeo-

lugar seraacute descrito em detalhes no livro II Antes de chamar sua ilha de Utopia More pensou em Nusquama

ndash topocircnimo certamente menos adequado ao elogio da cultura grega que percorre a obra A capital da ilha eacute

Amaurota forma criada a partir do substantivo ἀμαυρός ldquodifiacutecil de enxergarrdquo ldquoobscurordquo na segunda carta a

Gillis More a define como ldquocidade evanescenterdquo (urbem evanidam) Na primeira ediccedilatildeo da Utopia Amaurota

se chamava Mentiranum Outros vocaacutebulos criados a partir do grego satildeo Anidro ldquosem aacuteguardquo nome do rio

que atravessa Amaurota acorianos povos ldquosem territoacuteriordquo alaopolitas ldquocidadatildeos sem naccedilatildeordquo nefelogetas

ldquocidadatildeos nascidos de uma nuvemrdquo polileacuteritas ldquomuitos absurdosrdquo anemolianos que derivam seu nome de

ἄνεμος ldquoventordquo Todos esses nomes de lugares e de povos e outros espalhados pelos livro I II e tambeacutem

pelos paratextos ldquoreafirmam sem cessar o quinhatildeo de inanidade que entra na Utopiardquo (PREacuteVOST 2015 p

440) e que jaacute estaacute anunciado na carta-prefaacutecio

Vale lembrar que o relato da descriccedilatildeo da Utopia foi feito por Rafael Hitlodeu marinheiro-filoacutesofo portuguecircs

cujo nome eacute marcado pelo paradoxo Satildeo Rafael pode aludir ao nome da embarcaccedilatildeo de Vasco da Gama que

abriu a rota para as Iacutendias em 1498 ao nome do anjo que daacute a receita para Tobias curar seu pai da cegueira

(Tobias 10) e em hebreu Rafael quer dizer ldquoDeus curourdquo A este nome marcado pela referecircncia biacuteblica e pela

referecircncia agraves navegaccedilotildees junta-se um sobrenome cuja etimologia sugere um personagem haacutebil em contar

lorotas ou bagatelas (hythlos que resultaraacute num verbo significando ldquofalar bobagensrdquo e daios ldquohaacutebilrdquo) ldquoque faz

brilhar invenccedilotildeesrdquo ldquocelui qui fait briller des inventionsrdquo na traduccedilatildeo de Delcourt (MORE 1936 p 22)

ldquoespecialista em disparatesrdquo e ldquomercador de disparatesrdquo traduccedilatildeo de nonsense peddler na ediccedilatildeo da Martins

Fontes por Camargo e Cipolla (MORE 2009) ou ainda ldquomensageiro sem noccedilatildeordquo na traduccedilatildeo de Gouvecirca

Junior (MORE 2017) Poreacutem daios tambeacutem significa ldquodestruidor exterminadorrdquo aquele que eacute hostil a algo

portanto Hitlodeu seria tambeacutem algueacutem hostil agraves tolices ou seja um saacutebio

Eacute o relato desse personagem de nome paradoxal e de ethos paradoxal como mostrou Sylvester (1968) que

More-personagem na carta a Pieter Gillis diz ter transcrito

[135]

A carta-prefaacutecio natildeo escapa do modelo retoacuterico amplamente difundido agrave sua eacutepoca nela podemos encontrar

salutatio exordium narratio petitio e conclusatildeo A linguagem da carta eacute semelhante agrave dos livros I e II

apresentando por exemplo figuras de som variadas repeticcedilotildees e paralelismos liacutetotes enargeia metaacuteforas

ironia humor e tom satiacuterico em uma linguagem variada4

Ela comeccedila com uma salutatio simples sem epiacutetetos (Thomas Morus Petro Aegidio salutem dicit Thomas More

sauacuteda Pieter Gillis TIN 2005 p 48-49) Segue-se o exordium que mescla o toacutepos da modeacutestia com a captatio

benevolentia

Sinto-me quase envergonhado meu cariacutessimo Pieter Gillis por enviar-te este livrinho sobre a repuacuteblica utopiana depois de praticamente um ano sendo que (natildeo duvido) tu o esperavas em um mecircs e meio porque sabias que para este trabalho aliviado da preocupaccedilatildeo com a invenccedilatildeo e natildeo precisando pensar na disposiccedilatildeo dos assuntos era preciso apenas repetir o que junto contigo ouvi contar Rafael e por isso nem havia porque me preocupar com o modo de dizer jaacute que o relato dele natildeo podia ser elegante tendo sido em primeiro lugar feito de improviso e sem preparaccedilatildeo e depois por uma pessoa como sabes natildeo tatildeo douta em latim quanto em grego assim quanto mais perto minha escrita chegar da simplicidade negligente dele mais perto estaraacute da verdade que eacute a uacutenica coisa agrave qual devo e devoto meu empenho

Neste trecho da carta de More a Gillis ldquoinvenccedilatildeo [] disposiccedilatildeo [] modo de dizerrdquo operaccedilotildees retoacutericas que

o talento de Hitlodeu havia executado traduzem inueniendi [] dispositione [] eloquendo enumeradas no

quinto livro da Instituiccedilatildeo oratoacuteria de Quintiliano no qual ele diz que ldquoa retoacuterica eacute a ciecircncia de inventar dispor

e dizer adequadamente com boa memoacuteria e atitude dignardquo ndash ldquoRhetorice est inueniendi recte et disponendi et

eloquendi cum firma memoria et cum dignitate actionis scientiardquo (Inst 51054) Dizendo o que natildeo elaborou e o

que natildeo fez More-personagem chama a atenccedilatildeo do leitor para o que More-autor de fato elaborou e fez

Liacutetotes e ironia que construiratildeo todo o edifiacutecio ficcional da Utopia mediante formulaccedilotildees obliacutequas marcam

a carta-prefaacutecio desde seu iniacutecio e retomam a negaccedilatildeo ambiacutegua jaacute anunciada no nome da ilha do natildeo-lugar e

no nome de Rafael Hitlodeu

More-personagem atribui a simplicidade de sua tarefa de mero transcritor ao fato de Hitlodeu ter feito um

relato que ldquonatildeo podia ser eleganterdquo pois foi feito ldquode improviso e sem preparaccedilatildeordquo e em uma liacutengua que ele

dominava menos que o grego o que resultou em um estilo de ldquonegligente simplicidaderdquo No iniacutecio do livro I

Gillis apresenta Hitlodeu ldquonatildeo eacute ignorante em liacutengua latina e eacute doutiacutessimo na gregardquo ndash ldquolatinae linguae non

indoctus amp graecae doctissimusrdquo (4832-335) A imprecisatildeo expressa pela liacutetotes sobre o quanto Hitlodeu sabe

latim mascara a complexidade do discurso latino do marinheiro portuguecircs cuja variedade estiliacutestica foi

demonstrada por Edward Surtz e Elizabeth McCutcheon6

4 Para uma traduccedilatildeo completa da carta-prefaacutecio seguida do original latino ver Ribeiro (2018) 5 Estes nuacutemeros referem-se agrave paacutegina e linhas da jaacute citada CW4 6 Ver por exemplo Surtz (1967) e McCutcheon (1971 1983 2015a 2015b)

[136]

ldquoNatildeo ser ignorante em latimrdquo parece apontar para a insuficiecircncia no manejo da liacutengua mais do que para a

excelecircncia imprecisatildeo que sugere um efeito de ironia porque se opotildee agrave proacutepria escrita do livro utoacutepico e a

observaccedilotildees como a de Quintiliano e Erasmo acerca da capacidade de improvisar ldquocertamente o maior fruto

dos estudosrdquo ndash ldquomaximus uero studiorum fructus est [] ex tempore dicendi facultasrdquo (Inst 1071) ndash ou ainda

algo que se consegue com muito exerciacutecio e bons modelos como afirma Erasmo (TIN 2005 p 114) Para

Erasmo ldquopureza e propriedade de estilo satildeo alcanccedilados pelo diligente exerciacutecio de escrita acompanhado pela

cuidadosa revisatildeo e o estudo em profundidade de diversos escritoresrdquo (TIN 2005 p 52) Ou seja o discurso

improvisado de Hitlodeu soacute pode ser fruto de muito estudo informaccedilatildeo que nuanccedila o fato de ele natildeo ser ldquotatildeo

douto em latim quanto em gregordquo

Por outro lado eacute certo que o tom de conversa domina e emoldura a Utopia que eacute um longo coloacutequio e

predomina tambeacutem nas cartas que compotildeem os paratextos Podemos aproximaacute-lo do que explica Erasmo em

sua Breviacutessima e muito resumida foacutermula de elaboraccedilatildeo epistolar a carta ldquoum coloacutequio entre ausentesrdquo (ele cita

Libacircnio) ldquonada traz que a difira de uma conversaccedilatildeo do cotidiano em linguagem comumrdquo (TIN 2005 p 51)

Vale notar que a mesma expressatildeo que qualifica o discurso de Hitlodeu feito ldquode improviso e sem

preparaccedilatildeordquo (ldquosubitarius atque extemporalisrdquo) aparece na Breviacutessima foacutermula na qual Erasmo aconselha que

ldquoo estilo epistolar deve ser simples e mesmo bastante descuidado no sentido de um descuido estudadordquo para

que pareccedila ldquonatildeo trabalhado e quase improvisado e sem preparaccedilatildeordquo (ldquopaene subitus atque extemporariusrdquo)

Quintiliano nas Instituiccedilotildees oratoacuterias (9437) cita uma passagem de Ciacutecero que se refere a uma non ingratam

neglegentiam indicando um discurso que se atenta mais para o que quer dizer do que para a forma com que

se diz (eacute um trecho que trata de ditongos e hiatos)

Enfim eacute importante perceber que o discurso utoacutepico como notaram McCutcheon e Surtz (1983 p 37) natildeo

eacute homogecircneo sua forma varia alternando trechos elaborados e formulaccedilotildees simples Como percebeu

Erasmo

o estilo oratoacuterio que [More] alcanccedilou se inclina mais agrave estrutura isocraacutetica e agrave sutileza dialeacutetica do que agravequela fluente correnteza do estilo ciceroniano ainda que natildeo seja inferior a Marco Tuacutelio em elegacircncia E uma vez que quando jovem dedicou-se por muito tempo a escrever poesia reconheceraacutes o poeta em sua prosa (ERASMO DE ROTTERDAM 2013 p 175 trad de Elaine Sartorelli)

Voltemos agrave carta Thomas More continua

Confesso meu caro Pieter que por estarem prontas essas coisas de fato subtraiacuteram boa parte de minhas preocupaccedilotildees porque quase nada ficou por fazer em caso contraacuterio imaginaacute-las e organizaacute-las poderia demandar um engenho nem iacutenfimo nem completamente indouto aleacutem de natildeo pouco tempo e aleacutem de aplicaccedilatildeo Mas se me fosse exigido que escrevesse natildeo somente com verdade mas tambeacutem com eloquecircncia para fazer isso na verdade natildeo poderia dispor nem de tempo nem de aplicaccedilatildeo Eacute verdade poreacutem que suprimidas estas tarefas que me fariam tanto suar restaria apenas isto escrever o que ouvi de modo simples ndash um negoacutecio de nada

[137]

A toacutepica da modeacutestia se mescla agrave toacutepica do relato que se diz ser mera transposiccedilatildeo o que eacute recorrente nas

descriccedilotildees de paiacuteses utoacutepicos seja por motivaccedilatildeo luacutedica seja para escapar da censura No acircmbito da

literatura inglesa vale lembrar um trecho do proacutelogo dos Contos da Cantuaacuteria

Natildeo julgueis minha falta de fineza Pois hei de descrever falas e feitos De maneira veraz e sem rodeios Conforme eu ouvi as frases eu repito Conveacutem reproduzir dito por dito Numa histoacuteria que envolve tanta gente As coisas como foram fielmente A grossura das falas respeitando Nenhuma sordidez amenizando Do contraacuterio a verdade morre expira E o conto eacute sem sabor pura mentira7

Este trecho tambeacutem relaciona mutatis mutandis a transposiccedilatildeo do relato de outrem agrave fidelidade agrave

simplicidade do estilo e agrave veracidade Voltemos agrave carta Depois de explicar o quanto e por que eacute injustificaacutevel

seu atraso no envio da Utopia o personagem More se desculpa argumentando falta de tempo que lhe eacute

requerido pelas obrigaccedilotildees do trabalho da casa e pelas necessidades do corpo Ele diz o seguinte

[] mesmo tratando-se de um negoacutecio tatildeo de nada meus outros negoacutecios me deixaram tempo para praticamente menos que nada Tantas vezes haacute processos forenses conduzo alguns defendo alguns arbitro alguns como advogado sentencio alguns como juiz tantas vezes visito este por uma obrigaccedilatildeo aquele por um negoacutecio tantas vezes fora dedico quase todo o meu dia a alguns e o que resta aos meus que para mim isto eacute para as letras nada resta Sim pois quando volto para casa tenho que confabular com a minha esposa brincar com as crianccedilas conversar com os criados ndash todas essas coisas eu coloco na categoria dos negoacutecios pois satildeo necessaacuterias (e tecircm que ser necessaacuterias a natildeo ser que queiras ser um estranho em tua casa) e eacute preciso dar total atenccedilatildeo aos teus companheiros de vida sejam os que a natureza proveio sejam os que o acaso produziu sejam os que escolheste a quem tratas com a maior amabilidade mas sem que teu companheirismo os corrompa e a indulgecircncia natildeo transforme os criados em senhores Nessas ocupaccedilotildees que mencionei vatildeo-se dias meses anos Logo em que momento escreveriacuteamos E natildeo disse o que quer que seja a respeito do sono e nem tampouco da comida que a muitos natildeo consome menos tempo que o sono que some com quase metade da nossa vida Tempo para mim poreacutem eu consigo somente quando de vez em quando o furto ao sono e agrave comida e como ele eacute pouco e porque isso jaacute eacute alguma coisa lenta e finalmente terminei a Utopia e a ti meu caro Pieter a envio para que a leia e me avise caso algo nos tenha escapado

Minha traduccedilatildeo tem repeticcedilotildees que buscam reproduzir as figuras de som do texto latino figuras que

parecem sublinhar a longa enumeraccedilatildeo das obrigaccedilotildees do narrador Chamo a atenccedilatildeo para este trecho em

particular Em poucas linhas soam as aliteraccedilotildees e assonacircncias em s em o em m e n sono consome sono

some somente sono (somno absumit somnus adsumit solum somno) Em outras ocasiotildees jaacute chamei a atenccedilatildeo

para a presenccedila de figuras de som na Utopia e o sentido dessa presenccedila no contexto das relaccedilotildees entre

7 Proacutelogo geral dos Contos da Cantuaacuteria na traduccedilatildeo de Joseacute Francisco Botelho em Chaucer (2013 p 45)

[138]

humanistas e escolaacutesticos no seacuteculo XVI e para o fato de que elas marcam posiccedilatildeo quanto ao uso da

linguagem sabedoria e eloquecircncia poesia e histoacuteria podem coexistir num mesmo discurso8

A carta-prefaacutecio continua alternando narratio e petitio com a confissatildeo de um possiacutevel lapso de memoacuteria

[] se natildeo desconfio de mim (oxalaacute eu tivesse tanto de engenho e conhecimento quanto de memoacuteria da qual seguramente natildeo sou destituiacutedo) natildeo confio poreacutem com seguranccedila para crer que nada tenha podido me escapar

More explica que seu pajem John Clement ldquoque comeccedilou a verdejar nas letras latinas e gregasrdquo discorda

dele quanto ao tamanho da ponte ldquoque se estende sobre o rio Anidrordquo e corta a capital Amaurota (CW4

4020) Preocupado pede a Gillis que verifique essa informaccedilatildeo

Se com ele consentes eu tambeacutem assentirei e aceitarei meu lapso mas se natildeo te acordas escreverei o que me pareccedila eu mesmo me recordar []

O narrador diz estar cuidando ldquopara que natildeo haja falsidades no livrordquo Ele continua ldquose houver algo de

ambiacuteguo prefiro dizer uma mentira sem querer que mentir de propoacutesito porque prefiro ser honesto a ser

espertordquo A distinccedilatildeo entre mentir sem querer e mentir de propoacutesito eacute uma citaccedilatildeo de Aulo Geacutelio (NA XI 11

1-4) autor muito apreciado pelos humanistas Nesta passagem afirma-se o pacto de leitura da Utopia a

convenccedilatildeo irocircnica e humoriacutestica que permitiraacute ao leitor ler uma imensa mentira que poreacutem trataraacute de uma

imensa verdade ou seja da concretude cotidiana do viver associado

A carta tambeacutem pede a Gillis que confira com Hitlodeu natildeo apenas essa informaccedilatildeo mas tambeacutem que lhe

pergunte a localizaccedilatildeo precisa da ilha de Utopia jaacute que More natildeo teve a ideia de perguntar e um ldquodevoto e

teoacutelogo de profissatildeordquo (CW4 425-6) foi apontado para ser bispo dos utopianos Por fim uma uacuteltima

solicitaccedilatildeo que Gillis pergunte ao marinheiro portuguecircs se ele natildeo gostaria de revisar Utopia ou se natildeo

preferiria ele mesmo escrever seu relato ldquocom seus proacuteprios esforccedilosrdquo (CW4 4221-22)

Termino com a apresentaccedilatildeo do final da carta-prefaacutecio que traz um verdadeiro cataacutelogo caricato de maus

leitores diametralmente opostos aos bons leitores da repuacuteblica das letras que se delineia no conjunto dos

paratextos das quatro primeiras ediccedilotildees da Utopia A carta se encerra com a promessa de que o trabalho de

redaccedilatildeo seraacute revisado e com uma saudaccedilatildeo final a Gillis assim como uma evocaccedilatildeo ao bom conselho dos

amigos e agrave amizade que os unia O cataacutelogo comeccedila depois que More diz que natildeo sabe se conseguiraacute publicar

seu livro

porquanto satildeo tatildeo variados os gostos dos mortais tatildeo difiacuteceis de contentar o caraacuteter de alguns tatildeo desagradaacuteveis os espiacuteritos tatildeo absurdos os juiacutezos que aqueles que alegres e contentes satildeo indulgentes com seu estro parecem ser natildeo pouco mais felizes do que quem se atormenta com preocupaccedilotildees para publicar algo que possa ser uacutetil e prazeroso para outros desdenhosos e ingratos Tantos ignoram o conhecimento muitos o menosprezam

8 Ver Ribeiro (2015a 2015b 2016 2018)

[139]

Os baacuterbaros rejeitam como sendo aacuterduo o que quer que natildeo seja completamente baacuterbaro os sabichotildees desprezam como sendo trivial o que quer que natildeo abunde em palavras obsoletas haacute a quem soacute agrade o que eacute antigo e agrave maioria apenas o que eacute seu Este eacute tatildeo severo que natildeo admite brincadeiras aquele tatildeo insulso que natildeo suporta o sal [Chama de ldquonarizes chatosrdquo os homens sem nariz] Alguns satildeo tatildeo narizes-chatos que temem qualquer nariz assim como teme a aacutegua toda pessoa mordida por um catildeo raivoso Outros satildeo voluacuteveis a tal ponto que aprovam uma coisa sentados e outra coisa em peacute [Proveacuterbio] Estes se sentam nas tavernas e entre copos julgam o engenho dos escritores e com grande autoridade e a seu bel-prazer como se os puxassem pelos cabelos condenam cada um de seus escritos

enquanto eles proacuteprios ficam seguros ἒξω βέλους (ldquofora da mirardquo) como se costuma dizer porque satildeo tatildeo lisos e raspados por toda parte que natildeo tecircm nenhum fio de homem honesto por onde possam ser apanhados Haacute ainda quem seja tatildeo ingrato que mesmo deleitando-se ao extremo com a obra natildeo por isso ame mais o autor [Admiraacutevel comparaccedilatildeo] natildeo satildeo dessemelhantes aos convidados sem educaccedilatildeo que recebidos generosamente com um suntuoso banquete laacute se fartando voltam ao lar sem terem agradecido agravequeles que os convidaram Vai agora prepara agraves tuas expensas um banquete para esses homens de tatildeo delicado paladar tatildeo variados gostos e aleacutem do mais de espiacuterito tatildeo inclinado a lembrar e a agradecer

De toda forma meu caro Pieter faccedila como disse em relaccedilatildeo a Hitlodeu depois disso seraacute conveniente deliberar novamente sobre essas coisas Mas se o livro estiver de acordo com a vontade dele como o trabalho da escrita estaacute terminado e agora estaacute tarde para ser saacutebio [esta expressatildeo eacute um proveacuterbio explicado por Erasmo em um dos Adaacutegios]9 quanto ao que resta editar seguirei o conselho dos amigos e em primeiro lugar o teu Adeus dulciacutessimo Pieter Gillis e tua excelente esposa Ama-me como de costume pois eu o amo ainda mais que costumo

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Antiguidade claacutessica e judaica em Joseacute de Siguenza e Luis Cabrera de Coacuterdoba (Espanha seacutec XVI-XVII)

Camila Cristina Souza Lima

tamicalegmailcom

Nos reinos ibeacutericos ao longo do seacuteculo XVI a arquitetura reacutegia e

religiosa era edificada seguindo o que seus contemporacircneos

chamavam de ldquoarquitetura modernardquo e em menor quantidade

tambeacutem era realizada uma arquitetura ldquoagrave maneira antigardquo A origem

dos artiacutefices para se realizar as obras de uma ou outra forma

variava sendo que no caso da antiga muitos deles vinham da

Peniacutensula Itaacutelica atraveacutes de italianos ou ateacute mesmo portugueses ou

castelhanos que passavam por uma estadia de aprendizagem em

que a arquitetura antiga romana era redescoberta e formava novo

referencial para as edificaccedilotildees a serem realizadas Esse meacutetodo natildeo

substituiacutea completamente a arquitetura moderna que indicava

continuidade em relaccedilatildeo agraves obras realizadas em fins da Idade

Meacutedia

Segundo Fernando Marias o seacuteculo XVI era marcado por um

bilinguismo dos mestres nos canteiros de obra pois ainda que o

retorno agrave antiguidade fosse uma novidade reconhecida a

arquitetura moderna ainda respondia bem agraves necessidades e aos

interesses dos comitentes Em suas palavras ldquo[] el goacutetico

[arquitetura moderna] continuoacute dando satisfaccioacuten a unas

demandas representativas concretas a las que daba solucioacuten sus

formas habiacutean sido identificadas a unas funciones y unos

significados especiacuteficos []rdquo (MARIAS 1992 p 9)

[142]

A escolha entre a arquitetura agrave maneira moderna ou agrave maneira antiga nesse momento vinculava-se ao

discurso que se pretendia transmitir em tais construccedilotildees agrave imagem de poder pretendida e agrave narrativa que

legitimava a construccedilatildeo daqueles reinos justificados pela defesa da feacute Esse contexto eacute a base para a

discussatildeo que propomos nas paacuteginas que se seguem Devido agraves particularidades do processo de

fortalecimento do poder real nos reinos ibeacutericos em princiacutepios da Idade Moderna a maneira como a

antiguidade seria apresentada pelos autores aqui em questatildeo Joseacute de Siguenza (1544-1606) e Luis Cabrera

de Coacuterdoba (1559-1623) ao escreverem sobre a edificaccedilatildeo do Monasterio de San Lorenzo El Real del

Escorial desenvolveria argumentos que dialogavam com os autores italianos que valorizavam a antiguidade

em detrimento da arquitetura moderna que se realizava ateacute entatildeo mas com aspectos que reforccedilavam o

discurso religioso Nossa intenccedilatildeo natildeo eacute comparar os dois autores aos autores italianos mas traccedilar algumas

caracteriacutesticas mais marcantes em seus argumentos sobre a valorizaccedilatildeo da antiguidade romana Antes de

tratar especificamente das palavras de Siguenza e Cabrera de Coacuterdoba apresentaremos brevemente

algumas consideraccedilotildees sobre a importacircncia da arquitetura moderna ateacute o seacuteculo XVI em Castela

A arquitetura moderna tambeacutem chamada de ldquogoacuteticardquo na historiografia foi introduzida a sul dos Pirineus a

partir de modelos do Norte da Franccedila nos seacuteculos XIII e XIV Era a expressatildeo arquitetocircnica da influecircncia

francesa em tempos de reconquista como tambeacutem tinha sido a romacircnica introduzida pelos monasteacuterios e

abadias cluniacenses no seacuteculo XII em Leatildeo e Castela Ainda que em fins da Idade Meacutedia as lutas contra os

muccedilulmanos tenham sido conduzidas predominantemente pelo clero e pela nobreza local e os edifiacutecios

religiosos tenham incorporado em seu processo construtivo matildeo de obra versada na arquitetura de

influecircncia muccedilulmana chamada na historiografia muitas vezes como ldquomudejarrdquo os prelados e abades

cistercienses proacuteximos dos monarcas Alfonso VIII (1155-1214) e Fernando III (1199-1252) ainda preferiam

edificar seus mosteiros sob a influecircncia francesa (LAMBERT 1990)

Dessa forma o goacutetico e o mudeacutejar que lembravam a presenccedila cristatilde e islacircmica conviviam assim como

cristianismo judaiacutesmo e islamismo tinham convivido na Peniacutensula Ibeacuterica durante boa parte da Idade Meacutedia

O conviacutevio entre religiotildees e maneiras de se edificar natildeo desapareceria apoacutes a subida ao poder dos Reis

Catoacutelicos ainda que suas expressotildees fossem abandonadas progressivamente em benefiacutecio de uma imagem

de um reino cristatildeo em construccedilatildeo

A mudanccedila de postura em favor de uma arquitetura que apresentasse em sua escolha a imagem de uma

monarquia cristatilde se deveu entre outros motivos agrave necessidade de se vincular agrave Cristandade sem levantar

suspeitas sobre a ortodoxia dos reis e dos reinos ibeacutericos construiacutedos apoacutes as guerras contra os muccedilulmanos

Fazem parte desse processo a instalaccedilatildeo da Inquisiccedilatildeo para forccedilar os conquistados agrave conversatildeo e para a

fiscalizaccedilatildeo dessa conversatildeo bem como a expulsatildeo dos judeus em 1492 decisatildeo tomada pelos Reis Catoacutelicos

em resposta agrave forte pressatildeo das populaccedilotildees urbanas cristatildes e dos pregadores franciscanos (MARTIacuteNEZ

MILAN 2007)

[143]

Isabel de Castela (1451-1504) e Fernando de Aragatildeo (1452-1516) encomendavam seus edifiacutecios em

ldquoarquitetura modernardquo com influecircncia flamenca e germacircnica o que continuaria a ser realizado ateacute o seacuteculo

XVI Nesse momento de consolidaccedilatildeo do cristianismo na peniacutensula durante o reinado dos Reis Catoacutelicos os

artiacutefices que trabalhavam em suas obras eram na maioria de origem flamenga (MARIAS 1992) Ainda que

existisse um pequeno nuacutemero de artiacutefices versados na arquitetura antiga a monarquia se mantinha mais

apegada agrave moderna A aristocracia ainda que reafirmasse valores tradicionais sobretudo de pertencimento

a uma famiacutelia que justificava seus privileacutegios e seu papel poliacutetico formou a clientela preferencial na

introduccedilatildeo de elementos italianos na arquitetura imprimindo certa aparecircncia de modernidade em suas

iniciativas Em 1488 segundo Victor Nieto Alcaide pela primeira vez um edifiacutecio foi construiacutedo agrave maneira

antiga na Espanha sob a iniciativa do cardeal Don Pedro Gonzaacuteles de Mendonza o Coleacutegio de Santa Cruz de

Valladolid (NIETO ALCAIDE MORALES CHECA CREMADES 1993)

Poreacutem com a mudanccedila de dinastia no seacuteculo XVI dos Trastamaras aos Habsburgos e o reinado de Carlos I

de Espanha (1500-1558) que tambeacutem acumularia o imponente tiacutetulo imperial de Rei dos Romanos1 como

Imperador Carlos V a arquitetura agrave maneira antiga ganhou espaccedilo no mecenato reacutegio Eacute fundamental nesse

sentido lembrar o palaacutecio construiacutedo por Pedro Machuca para o rei anexo agrave Alhambra O monarca visitou a

Alhambra em suas nuacutepcias com Maria de Portugal em 1526 o que teria feito o casal real desejar edificar

tambeacutem em Granada optando por construir um palaacutecio anexo ao suntuoso edifiacutecio muccedilulmano de

arquitetura romana

Segundo Frommel (2018) apesar do imperador natildeo ser muito versado em arquitetura e conhecer muito

melhor a edificaccedilatildeo agrave maneira moderna em detrimento da antiga havia importantes homens em sua corte na

Alhambra que influenciariam sua decisatildeo sobre seu novo palaacutecio Estavam junto ao rei em sua estadia na

cidade Luis Hurtado de Mendoza (1489-1566) governador da Alhambra que conhecia a Itaacutelia e era homem

de confianccedila do rei e Francisco de los Cobos (1477-1547) que demonstrava interesse pela arquitetura

antiga Tambeacutem acompanhava o imperador Baldassare Castilione (1478-1529) embaixador do papa cujo

interesse pelas construccedilotildees da Roma Antiga se expressava em sua provaacutevel participaccedilatildeo na redaccedilatildeo da Carta

de Rafael ao papa Leatildeo X sobre as ruiacutenas romanas texto que engrandecia os antigos construtores e colocava

seus edifiacutecios ndash que passavam a ser conhecidos a partir dos estudos e das escavaccedilotildees das ruiacutenas no entorno

da cidade papal ndash como novos modelos para engrandecer o territoacuterio pontifiacutecio reforccedilando a imagem do

Papa como herdeiro dos antigos imperadores Nesse texto a arquitetura antiga eacute apresentada como

referencial para aleacutem dos limites dos territoacuterios papais Outro nome importante era o embaixador veneziano

Andrea Navageno (1483-1529) que fora pintado por Rafael Sanzio (1483-1520) e visitara com ele o Teatro

Mariacutetimo em 1516

1 Carlos V se tornou rei da Espanha em 1516 e imperador do Sacro Impeacuterio em 1519

[144]

Esses homens devem ter desempenhado papel fundamental na escolha do arquiteto que deveria levar a cabo

o desejo do rei de construir seu palaacutecio anexo agrave Alhambra Pedro Machuca (1490-1550) e dessa forma em

edificar agrave maneira antiga Frommel traccedila paralelos desse palaacutecio com outros edifiacutecios construiacutedos na Itaacutelia

naquele momento e que eram marcados pela presenccedila do paacutetio circular em seu interior como o Palazzo

Gravina em Naacutepolis ou a Vila Madama dos Meacutedicis

Com a construccedilatildeo desse palaacutecio a arquitetura agrave antiga dialoga com o passado islacircmico Nesse momento

como jaacute mencionado Rafael Sanzio escrevia sua Carta a Leatildeo X sobre as ruiacutenas de Roma a qual deveria

acompanhar uma seacuterie de desenhos realizados a partir de suas observaccedilotildees das reliacutequias da antiga capital do

impeacuterio que sobreviveram As palavras de Rafael satildeo muito importantes para se compreender como se dava

a valorizaccedilatildeo do passado romano em detrimento da arquitetura que se realizava ateacute entatildeo

Haacute muitos Santiacutessimo Padre que medindo com seu pequeno juiacutezo as coisas grandiacutessimas que se escrevem dos romanos sobre suas faccedilanhas militares e sobre a cidade de Roma o que diz respeito a admiraacutevel arte riqueza ornamentos e grandezas dos edifiacutecios acham que estas sejam mais fabulosas que verdadeiras Mas comigo costuma acontecer o contraacuterio pois considerando a divindade daquelas almas antigas a partir dos vestiacutegios que ainda vemos das ruiacutenas de Roma opino natildeo ser mais aleacutem da razatildeo acreditar que muitas coisas que parecem impossiacuteveis para noacutes para elas eram faciacutelimas (SANZIO 2010 p 45)2

Em suas palavras eacute expressa a defesa da Roma antiga como um ambiente aacuteureo de homens e conhecimentos

louvaacuteveis que se encontravam distantes daqueles tempos mas que poderiam e deveriam ser resgatados

como heranccedila aos homens de princiacutepios da Idade Moderna marcando claramente a existecircncia de um hiato

que separa o passado imperial romano do momento em que se escreve esse elogio Essa postura que foi

amplamente discutida na historiografia e que seria fundamental para compreender a Europa Moderna eacute

retomada por diversos autores da eacutepoca Rafael (2010 p 45) continua sua valorizaccedilatildeo de Roma

No entanto pareceu que o tempo sendo invejoso da gloacuteria dos mortais natildeo confiando totalmente apenas em suas proacuteprias forccedilas acordou-se com a fortuna e com os baacuterbaros profanos e celerados os quais agrave lima voraz e agrave mordida venenosa daquele acrescentaram sua iacutempia forccedila o ferro e o fogo e todas as maneiras aptas de arruinaacute-la

A apresentaccedilatildeo da decadecircncia do mundo romano devido aos povos baacuterbaros que se instalaram nos

territoacuterios do impeacuterio que se desagregavam tambeacutem eacute bastante recorrente nos autores Queremos ressaltar

isso para indicar as particularidades da escrita sobre a arquitetura agrave antiga que surgiria na Espanha conforme

a arquitetura moderna sedia espaccedilo agraves influecircncias que vinham da Itaacutelia

A iniciativa de Carlos V eacute um marco importante nesse processo de abertura do mecenato reacutegio para a

arquitetura agrave antiga pois seu palaacutecio construiacutedo por Machuca ao lado da Alhambra indicava a possibilidade

da arquitetura romana ser adequada e decorosa para comunicar a imagem do rei em seus edifiacutecios Tafuri

2 Carta ao Papa Leatildeo X Manuscrito de Mantua Traduccedilatildeo de Luciano Migliaccio e Maria Luiza Zanatta

[145]

(1993) ao estudar esse palaacutecio reforccedila o discurso de Carlos V atraveacutes desse palaacutecio que voltado agrave

valorizaccedilatildeo da arquitetura antiga reforccedilava a imagem de seu poder universal como Rei dos Romanos

aproximando-se do discurso papal de sua eacutepoca

Se Carlos V tinha como importante mensagem expressar na arquitetura o seu poder imperial enquanto

herdeiro de Roma seu filho Felipe II (1527-1598) teria outras mensagens a transmitir Seu reinado foi

marcado pelo reforccedilo da imagem de pertencimento da Espanha agrave Cristandade e do papel de seus

governantes como importantes defensores da feacute catoacutelica seja contra seus inimigos internos (reformas

religiosas e heresias) bem como seus inimigos externos (avanccedilo turco) aleacutem do papel missionaacuterio

evangelizador nas colocircnias americanas que colocavam os reinos ibeacutericos como os continuadores da obra dos

apoacutestolos de Cristo de levar a palavra a todos os cantos da Terra Diferentemente de seu pai Felipe II era

conhecedor da arquitetura antiga e tinha em sua biblioteca os principais tratados daquele momento

(PARKER 2004)

Aleacutem disso Felipe II passou a governar todos os reinos peninsulares com a incorporaccedilatildeo de Portugal em

1580 devido agrave morte do rei cardeal Dom Henrique (1512-1580) que sucedera Dom Sebastiatildeo (1554-1578)

apoacutes seu desaparecimento no norte da Aacutefrica e conduzira a questatildeo sucessoacuteria que acabaria por coroar o

monarca castelhano tambeacutem como rei lusitano Na arquitetura a principal obra realizada para sintetizar a

mensagem de poder religioso desse monarca eacute o Monasterio de San Lorenzo El Real del Escorial tambeacutem

chamado apenas de Escorial e o responsaacutevel pela traccedila geral do edifiacutecio e da execuccedilatildeo da faacutebrica tambeacutem

chamado para se ocupar das construccedilotildees reais em termos gerais como arquiteto do rei foi Juan Bautista de

Toledo (c 1515-1567) espanhol que tinha atuado em Roma junto a Michelangelo homem versado na

arquitetura antiga especialmente nas obras edificadas sob patrociacutenio papal

Nossa intenccedilatildeo em fazer essas primeiras consideraccedilotildees eacute explicitar o contexto em que a arquitetura antiga

ganha relevacircncia junto aos monarcas espanhoacuteis chegando inclusive ao principal espaccedilo de expressatildeo da

monarquia na Idade Moderna o Escorial que ainda hoje eacute o local de enterramento dos membros da famiacutelia

real Pretendemos reforccedilar a importacircncia da escolha de Felipe II em construir um palaacutecio para si junto a um

monasteacuterio onde tambeacutem seria o panteatildeo dinaacutestico trazendo artiacutefices da Itaacutelia ou versados na arquitetura

antiga quando ainda se edificava consideravelmente em arquitetura agrave maneira moderna a qual tinha

importante apelo agraves questotildees religiosas e agrave lembranccedila da Reconquista aleacutem de relacionar-se agrave imagem de

pertencimento agrave Cristandade Nesse momento o discurso de legitimaccedilatildeo do poder real ainda reforccedilava a

lembranccedila das guerras contra os muccedilulmanos Devemos lembrar que Felipe II incentivava a escrita da

Histoacuteria valorizando esses eventos colocando-se como continuador de seus antepassados na defesa da feacute

catoacutelica contra o Islatilde quando aconteciam as lutas contra os turcos em Lepanto (GARCIA CARCEL 2003)

[146]

O monarca tambeacutem empreendia avanccedilos contra as populaccedilotildees remanescentes dos muccedilulmanos Segundo

Martiacutenez Pentildeas e Herreros Cepeda (2011) a situaccedilatildeo dessas populaccedilotildees mudou drasticamente entre o

reinado de Carlos V e Felipe II de forma que a relativa toleracircncia aos seus costumes fosse substituiacuteda por

uma incorporaccedilatildeo dessas pessoas ao modo de viver dos cristatildeos sobretudo apoacutes o Conciacutelio de Trento Em

1566 o monarca elaborou uma pragmaacutetica em que os mouriscos deveriam aprender castelhano abandonar

sua liacutengua vestes instrumentos e cacircnticos em ateacute trecircs anos aleacutem de criar uma comissatildeo que averiguaria os

tiacutetulos das terras em que viviam as quais poderiam ser confiscadas caso a documentaccedilatildeo natildeo estivesse

adequada o que acabou por gerar uma onda de revoltas iniciadas em Granada na noite de Natal de 1568

que avanccedilou para o norte de Maacutelaca e se prolongou ateacute o veratildeo de 1571 quando foram sufocadas pelas

tropas lideradas por Don Juan irmatildeo bastardo do rei

Devido a essas particularidades do territoacuterio espanhol a maneira como a relaccedilatildeo entre arquitetura antiga e

moderna foi apresentada no discurso de valorizaccedilatildeo do Escorial se construiu de maneira particular sem

perder de vista a questatildeo religiosa e o paganismo dos antigos Dois homens que serviram ao monarca e

acompanharam a faacutebrica do Escorial tiveram papel fundamental na construccedilatildeo dessa imagem escrita

O primeiro deles foi Joseacute de Siguenza monge jerocircnimo e importante nome dessa ordem religiosa que

habitou o Escorial desde sua fundaccedilatildeo aleacutem de ter sido cronista da ordem e ter desempenhado importantes

cargos nessa que se tornaria a principal casa jerocircnima (ASENJO PELEGRINA 1979) Tomaremos como base

para nossas consideraccedilotildees apenas algumas de suas obras sobre a construccedilatildeo do Escorial e sua Historia de la

Orden de San Jeroacutenimo

O segundo autor de que trataremos eacute Luis Cabrera de Coacuterdoba proveniente de uma famiacutelia nobre dedicada

agraves armas Seu pai tinha sido o responsaacutevel pelos pagamentos daqueles que trabalharam na faacutebrica do

Escorial o que permitiu a ele proximidade com o rei a quem serviu desde cedo como enviado a outros reinos

Apoacutes a morte de Felipe II Cabrera passou a servir agrave rainha Dona Margarida de Aacuteustria quando comeccedilou a

escrever obras de caraacuteter histoacuterico como a Historia de Felipe II Historia para entenderla y escribirla Advertencia

sobre la educacioacuten del Priacutencipe Elogium Rui Gomenzeii Relactio vitae mortisque Caroli infantis Philippi II

Relaciones de las cosas sucedidas en las cortes de Espantildea desde 1599 hasta 1614 e o poema Laurentina (PEREZ

BLANCO 1975) Tomamos como referecircncia sua Historia de Felipe II e o poema Laurentina

Os dois autores tratam do peso da imagem religiosa desse edifiacutecio poreacutem no discurso de Siguenza esse

aspecto eacute ainda mais presente pois a histoacuteria da construccedilatildeo do Escorial eacute apresentada pelo autor como parte

importante da histoacuteria da proacutepria ordem Como Siguenza foi cronista da Ordem de Satildeo Jerocircnimo a

construccedilatildeo do Escorial eacute narrada como parte de uma Histoacuteria maior que comeccedilaria nas obras do monge

sobre a vida de Satildeo Jerocircnimo passando pelo surgimento da ordem e chegando ao seu aacutepice de

desenvolvimento com a fundaccedilatildeo de San Lorenzo el Real del Escorial Por isso suas palavras datildeo ecircnfase

[147]

sobretudo agrave edificaccedilatildeo espiritual com a vinda dos monges diante da possibilidade de se alojarem onde seria

aquela grande casa aos rituais de consagraccedilatildeo dos espaccedilos da igreja agrave participaccedilatildeo dos monges em todo o

processo e agrave presenccedila do monarca no local sobretudo destacando a narraccedilatildeo dos uacuteltimos dias de vida do rei

e seu exemplo de homem de feacute perante a morte

Esses dois autores indicaram que o Escorial foi construiacutedo para responder a diversos desejos do governante

Em primeiro lugar era a memoacuteria da primeira vitoacuteria do monarca em 10 de agosto de 1557 na Batalha de

San Quintin contra o rei francecircs

Fue eacutesta la primera de la victorias que tuvo Felipe II y acerto por celestial acuerdo aacute ser en 10 diacuteas de Agosto fiesta del glorioso maacutertir San Lorenzo espantildeol aacute quien su nintildeez tuvo este piadoso Priacutencipe singular devocioacuten entendioacute que un principio tan ilustre de sus cosas le veniacutea por su favor e intercesiones en el cielo y asiacute desde aquel punto concibioacute en su pecho un alto propoacutesito de hacerle alguacuten sentildealado servicio (SIGUENZA 2003 p 13)

Era tambeacutem o local de sepultura do imperador Carlos V que acabaria por se converter em panteatildeo dinaacutestico

Como apresentou Cabrera no testamento de Carlos V outorgado em Flandres em 6 de junho de 1554 o

imperador tratava de seu funeral e de sua esposa a imperatriz que estava sepultada na Capilla Real de

Granada sem deixar um edifiacutecio definido para seu sepultamento ldquoConfiaba de su obediecircncia [de Felipe II] y

piedad se le daria con tal pompa y suntuoso edifiacutecio que ningun griego itaacutelico oacute aleman emperador le haya

tenido semejante []rdquo (CABRERA 2009-2010 p 370) A funccedilatildeo de ser sepulcro digno de um imperador

aparece com destaque nos dois autores reforccedilando a imagem de Felipe II como herdeiro de Carlos V

sobretudo na defesa da feacute

Aleacutem disso o Escorial deveria servir como monasteacuterio e como palaacutecio proacuteximo de Madrid para que o rei

pudesse se retirar inclusive quando estivesse preparando-se para a vida eterna no local em que seu corpo

repousaria na Terra O edifiacutecio ndash cuja primeira plana foi traccedilada por Juan Bautista de Toledo (c 1515-1567)

espanhol que retornava da Itaacutelia sendo depois finalizado por Juan de Herrera (1530-1597) ndash era marcado

pela sobriedade e austeridade grandioso em suas dimensotildees e na implantaccedilatildeo em solo seco e plano rodeado

de montanhas que davam destaque ao monasteacuterio na paisagem poreacutem sem ornamentos apresentando-se

como uma fortaleza da feacute onde se fundiam a imagem de um rei austero e piedoso ao reino que havia se

colocado no centro do palco das lutas religiosas em defesa do papa

Nas palavras de Cabrera o papel do edifiacutecio de guardar a memoacuteria das gloacuterias militares eacute reforccedilado em

retomada agrave tradiccedilatildeo antiga Nesse sentido o Escorial deveria ser a imagem das vitoacuterias do monarca ao longo

de seu reinado No interior do edifiacutecio nas dependecircncias do palaacutecio real havia pinturas de duas importantes

batalhas vencidas por Felipe II contra os turcos em Lepanto (1571) e nos Accedilores (1583) durante as guerras

contra D Antoacutenio prior do Crato que questionava seu direito de sucessatildeo ao trono lusitano

[148]

Ao apresentar a relaccedilatildeo entre a tradiccedilatildeo antiga e a necessidade de se guardar a memoacuteria das batalhas

Cabrera demonstra que sua postura em relaccedilatildeo ao passado romano natildeo era de pura admiraccedilatildeo e reverecircncia

pois a Antiguidade eacute vista com ressalvas devido ao aspecto religioso daquele tempo Cabrera de Coacuterdoba

reforccedila o costume antigo de se celebrar vitoacuterias militares que deveriam ser eternizadas e relembradas ano

a ano argumento que eacute apresentado tanto em sua Historia de Felipe II como em seu poema Laurentina em

homenagem a Satildeo Lourenccedilo maacutertir espanhol em cujo dia de celebraccedilatildeo se realizou a primeira vitoacuteria de

Felipe II que seria eternizada no Escorial Apesar de se rememorar agrave Antiguidade o costume antigo eacute

rebaixado por ser guiado por uma religiatildeo que eacute qualificada pelo autor como ldquocega e profanardquo

Y para dar las gracias inmortales seguacuten su religioacuten ciega y profana a quien tenian por dioses principales venerados con pompa soberana y para que adelante los mortales no confiasen en su gloria vana viendo que sus mayores fenecieron los que la fiesta y causa instituyeron (CABRERA DE COacuteRDOBA 1975 p 102)

Na Laurentina reforccedila-se a necessidade de memoacuteria atraveacutes da lembranccedila de momentos que foram objeto

de festas e de comemoraccedilotildees como o iniacutecio da Repuacuteblica de Roma ldquoEl refugio cuando desterrados los

Tarquinos por Bruto el sabio fueron y los primeros coacutensules criadosrdquo (CABRERA DE COacuteRDOBA 1975 p

102-103) Tambeacutem se relembra a fuga dos hebreus do Egito ldquolos de Israel de Egipto libertados una fiesta a

su Dios siempre hicieron ofrecieacutendole en ella sacrificio por tan inmenso y raro beneficiordquo (CABRERA DE

COacuteRDOBA 1975 p 103) A escolha de eventos que retomavam as gloacuterias dos romanos e dos antigos

hebreus buscando referecircncias nos autores latinos e no Antigo Testamento apontava que esses dois modelos

de Antiguidade deveriam ser fonte de inspiraccedilatildeo para seus contemporacircneos

Na sequecircncia Cabrera de Coacuterdoba (1975 p 103) reafirma a superioridade de seu tempo pela religiatildeo

De alliacute recibioacute en uso nuestra gente que estaacute con el bautismo aventajada el celebrar las fiestas comuacutenmente por alguna victoria sentildealada templos instituyendo santamente do queda la memoria eternizada para gloria de Dios y honra del mundo y confusioacuten y pena del profundo

Para lembrar as vitoacuterias eternizadas por edifiacutecios religiosos satildeo apresentados o Mosteiro de Alcobaccedila

construiacutedo por D Afonso I de Portugal para celebrar a vitoacuteria que levou agrave fundaccedilatildeo do reino a construccedilatildeo de

Santa Maria de Tudia por Don Diego Loacutepez de Haro em homenagem agrave vitoacuteria contra os mouros e a igreja

de Toledo em que satildeo celebradas diversas vitoacuterias contra o islatilde (Navas de Tolosa Muradal Salado expugnacioacuten

de Oraacuten) Por tudo isso a primeira vitoacuteria de Felipe II natildeo poderia deixar de ser lembrada com um edifiacutecio

digno desse rei

Aleacutem de suas proacuteprias conquistas o Escorial tambeacutem deveria fazer justiccedila ao passado glorioso que Felipe II

herdava dos antigos reis dos territoacuterios que naquele momento estavam sob seu governo Assim como seus

antecessores tinham lutado contra os infieacuteis o novo rei continuava esse legado lutando contra os

muccedilulmanos e contra os protestantes na Europa Por isso eacute dada tanta importacircncia agrave memoacuteria desses

[149]

antigos reis no proacutelogo do poema reforccedilando o viacutenculo de Portugal a essa heranccedila mediante a fundaccedilatildeo de

Lisboa e das ordens militares em Portugal bem como a morte prematura de Dom Sebastiatildeo sobrinho de

Felipe II Natildeo apenas a unidade geograacutefica peninsular tinha sido restaurada mas a unidade religiosa pois

eram herdeiros dos antigos visigodos Todos os reinos cristatildeos estavam unidos sob o comando daquele que

se colocava como maior defensor da Cristandade em momento de quebra da unidade religiosa na Europa

apoacutes as Reformas Religiosas Por isso a ilustraccedilatildeo do frontispiacutecio da Historia de Felipe II de Cabrera

apresentava o Escorial ao fundo com Felipe II armado protegendo a Igreja apresentando-se alegoricamente

contra as heresias O autor usa os termos ldquoheresiardquo e ldquoheregesrdquo para qualificar aqueles que seguiam Lutero

Calvino e a igreja reformada por Henrique VIII da Inglaterra

Siguenza em sua Histoacuteria sobre a fundaccedilatildeo do Escorial tambeacutem apresenta o argumento de que os edifiacutecios

deveriam guardar feitos gloriosos poreacutem os uacutenicos feitos dignos de memoacuterias seriam aquelas em que a

providecircncia divina se manifesta na accedilatildeo dos reis Natildeo apenas as batalhas deveriam ser lembradas ndash

argumento muitas vezes apresentado por Cabrera para tratar dos grandes feitos de Felipe II ndash mas ainda

mais deveria ser valorizada a feacute do governante vitorioso Dessa forma o edifiacutecio deveria se apresentar como

um sinal da fidelidade do monarca agrave religiatildeo catoacutelica

Reconociendo los muchos y grandes benefiacutecios que de Dios Nuestro Sentildeor hemos recebido y cada diacutea recibimos y cuando Eacutel ha sido servido de encaminhar y guiar los nuestros hechos y los nuestros negoacutecios a su santo servicio y de sostener o mantener estos nuestros reinos en su santa fe y religion y en paz y justicia entendendo con esto cuaacutento sea delante de Dios pia y agradable obra y grato testimonio y reconocimiento de los dichos benefiacutecios el edificar y fundar iglesias y monasteacuterios donde su santo nombre se bendisse y alaba y su santa fe con la doctrina y ejemplo de los religiosos siervos de Dios se conserva y aumenta y para que asiacute mismo se ruegue e interceda a Dios por nos y por los Reyes nuestros antecessores y sucessores y por el bien de nuestras animas y la conservacioacuten de nuestro Estado real [] (SIGUENZA 2003 p 12-13)

Outro aspecto importante na maneira com que Siguenza e Cabrera tratam do passado romano eacute a escolha

que fazem sobre quem deveria ser considerado culpado pela decadecircncia do Impeacuterio Romano Na Peniacutensula

Ibeacuterica ndash que foi marcada pelo longo periacuteodo de domiacutenio muccedilulmano e pelas guerras entre cristatildeos e

islacircmicos na origem da formaccedilatildeo de seus reinos em fins da Idade Meacutedia ndash os godos representavam a

lembranccedila de uma presenccedila cristatilde anterior agrave conquista dos mouros Essa memoacuteria justificava as guerras de

reconquista de um territoacuterio que antes fora cristatildeo e que deveria voltar a ser governado por monarcas que

professassem essa religiatildeo Dessa forma os autores satildeo cuidadosos em apresentar os godos como baacuterbaros

atrasados e causadores do decliacutenio da Antiguidade Por isso Siguenza e Cabrera costumavam representar

os muccedilulmanos como responsaacuteveis pela decadecircncia em que o territoacuterio ibeacuterico se encontrava a qual deveria

ser superada com o estudo e o conhecimento sobre os antigos romanos

Siguenza em sua Histoacuteria da Orden de San Jeroacutenimo (1907) explica o surgimento da Ordem de Satildeo Jerocircnimo

como um renascer nesse caso da religiatildeo de Satildeo Jerocircnimo Nessa obra o autor indica que a origem da ordem

[150]

deveria ser buscada atraveacutes dos primeiros seguidores de Satildeo Jerocircnimo entre os seacuteculos IV e V Apoacutes a morte

do santo segundo Siguenza seus seguidores aos poucos teriam descuidado dos costumes permitindo que

assim dois seacuteculos apoacutes sua morte o islamismo conseguisse destruir o legado do santo A maneira como se

refere ao islamismo eacute bastante pejorativa ldquo[] salio del infierno al mundo el maldito Mahoma con su secta

prevalecio increyblemente en estos siglos miserables tan llenos de carne y sangre []rdquo (SIGUENZA 1907 p

5) Siguenza entatildeo apresenta a histoacuteria dos jerocircnimos por meio da imagem de um rio ldquocaudaloso que se

esconde por lo secreto de sus entrantildeas largo espacio y torna despues con nueva claridad y frescura a

aparecer a nuestros ojos ansi torno al mundo cerca de los antildeos de 1350 esta sagrada religionrdquo (SIGUENZA

1907 p 5)

Por isso o retorno da ordem era esperado e tinha sido prenunciado por inuacutemeros profetas de fins da Idade

Meacutedia dentre os quais se destacam uma princesa Santa Briacutegida que vivia proacuteximo ao papa Gregoacuterio XI e

Tomassucio que motivara a vinda de homens da Itaacutelia para a Peniacutensula Ibeacuterica para viverem como eremitas

experiecircncia que depois desembocaria no surgimento da nova ordem religiosa

Apesar de natildeo tratar especificamente da queda do Impeacuterio Romano a imagem de um passado a ser

retomado associado agrave ideia de decliacutenio e renascimento presente nos discursos de valorizaccedilatildeo da

Antiguidade romana aparece de forma semelhante na maneira com que Siguenza constroacutei sua histoacuteria da

ordem de Satildeo Jerocircnimo

Quanto aos edifiacutecios Siguenza tende a valorizar a localizaccedilatildeo e a salubridade do espaccedilo escolhido pelos

religiosos jerocircnimos para edificarem seus monasteacuterios a possibilidade de recolhimento e afastamento do

mundo que esse espaccedilo escolhido poderia propiciar e a maneira como eram edificados propiciando

seguranccedila aos monges se fossem duraacuteveis e pouco sujeitos agraves intempeacuteries climaacuteticas Mesmo os edifiacutecios

mais simples eram valorizados como obra dos monges ndash sobretudo quando determinavam o estabelecimento

em um certo local ndash devendo eles serem acima de tudo adequados agrave vida monaacutestica Em Guadalupe em um

dos mais ceacutelebres mosteiros de Satildeo Jerocircnimo ndash junto ao santuaacuterio mariano que recebia inuacutemeros peregrinos

de toda a peniacutensula ndash a obra do edifiacutecio ndash construiacutedo antes dos jerocircnimos se estabelecerem no local ndash mais

elogiada foi um aqueduto construiacutedo durante o priorado de Toribio Fernandez apresentado como ldquodigna de

que se ponga a par con cualquier outra de las famosas antiguasrdquo (SIGUENZA 1975 p 235) Dessa forma uma

boa obra estaacutevel bem edificada poderia ser comparada a uma obra da Antiguidade para que fossem

explicitadas suas qualidades

Ainda assim quando se trata especificamente do Escorial Siguenza (2003 p 264) destaca a relaccedilatildeo do

edifiacutecio com o passado romano e o coloca como um representante da superaccedilatildeo da arquitetura produzida

durante a Idade Meacutedia

[151]

Luego en poniendo los pies en los umbrales de la puerta principal [do Escorial] se comienza a discubrir una majestade grande y desusada en los edifiacutecios de Espantildea que habia tantos siglos que estaba sepultada en la barbaacuterie oacute groseriacutea de los godos y aacuterabes que sentildeoreaacutendose de ella por nuestro pecado apenas nos dejaron luz de cosa buena ni de primor ni en letras ni en las artes

Nesse trecho o autor coloca lado a lado os godos mas o motivo principal da decadecircncia que poderia ser vista

nas artes e na escrita desse periacuteodo eram os pecados daqueles homens

Siguenza provavelmente tinha conhecimentos de arquitetura e toma como referecircncia do bem edificar as

obras e conhecimentos dos antigos Ainda assim quando em sua Historia de la Orden de San Jeroacutenimo

apresenta edifiacutecios frequentemente realizados em arquitetura moderna anteriores agrave construccedilatildeo de San

Lorenzo el Real del Escorial faz criacuteticas mesmo que ainda valorize o que foi construiacutedo por considerar que satildeo

resultado do limite de conhecimento dos homens daquele tempo Dessa maneira tenta valorizar o que

poderia ser melhor realizado na arquitetura moderna considerada inferior em relaccedilatildeo agraves obras antigas Por

exemplo quando a Ordem de Satildeo Jerocircnimo passou a habitar junto ao santuaacuterio de Guadalupe em 1389

durante o reinado de D Juan I e os monges edificaram ali um mosteiro Siguenza (1975 p 237) fez a seguinte

avaliaccedilatildeo da arquitetura

Lo primero que edifico [o frei Fernado de Yaacutentildeez] fue um claustro grande no muy vistoso ni de buena proporcion en los anchos y largos porque sabian poco los maestros de aquel tempo de las buenas architeturas de que usaron los antigos y se han tornado a resucitar agora con todo esso el claustro es devoto y religioso []

A arquitetura dos antigos eacute a boa arquitetura para Siguenza As consideraccedilotildees sobre a arquitetura moderna

sempre a colocam como limitada e de menor qualidade o que pode ser percebido em seus comentaacuterios sobre

diferentes mosteiros jerocircnimos Tambeacutem eacute significativo ressaltar as palavras que utilizou para fazer seu

elogio ao arquiteto Juan Bautista de Toledo que tinha sido trazido da Itaacutelia para ser o arquiteto do rei ou

seja para atuar nas diferentes intervenccedilotildees que o monarca realizaria nos seus edifiacutecios jaacute existentes bem

como nas faacutebricas que seriam construiacutedas a partir de novas iniciativas Assim escreve Siguenza (2003 p 38)

Juan Bautista de Toledo arquitecto mayor que ya aacute este tempo iba haciendo la idea y el disentildeo de esta faacutebrica hombre de muchas partes escultor y que entendia bien el dibujo sabiacutea lengua latina y griega tenia mucha noticia de filosofia y matemaacuteticas hallandose al fin en el nuchas de las partes que Vitruacutevio priacutencipe de los arquitectos quiere que tengan los que han de ejercitar la arquitectura y llamarse maestro en ella

Saber sobre desenho escultura matemaacutetica filosofia liacutengua grega e latina e conhecer os ensinamentos de

Vitruacutevio eram as qualidades que faziam de Juan Bautista de Toledo arquiteto digno de edificar o Escorial

Ainda assim quando Cabrera e Siguenza explicam a escolha da planta desse edifiacutecio natildeo eacute um templo ou

outro edifiacutecio admiraacutevel da Antiguidade imperial romana que eacute exaltada como inspiraccedilatildeo para o arquiteto

nem a planta eacute justificada em termos tratadiacutesticos Cabrera indica na Laurentina que a organizaccedilatildeo dos

claustros do edifiacutecio forma uma grelha o que teria como intenccedilatildeo relembrar o martiacuterio de Satildeo Lourenccedilo

[152]

assado por natildeo ter revelado ao imperador romano onde se encontrava a riqueza dos cristatildeos segundo a

Legenda Aacuteurea (VARAZZE 2003) ldquo[] que todo una parilla ha parecido en que el patroacuten Laurencio fuera

usado [hellip]rdquo (CABRERA 1975 p 150)

Para Siguenza Felipe II se apresentava como um novo Salomatildeo ao edificar o Escorial pelo empenho em fazer

uma obra digna para ser ofertada a Deus

[] la maneira de fabricar esta iglesia y labor de ella imito mucho aacute la del mismo Salomon la traza e ingenio fueacute que la piedra toda se labrase en las canteras de surte que al pie de la obra ni en el templo apenas se oyese el golpe del pico ni martillo [] (SIGUENZA 2003 p 105)

O Escorial seria muitas vezes associado agrave arquitetura do Templo de Salomatildeo poreacutem este natildeo eacute apresentado

como modelo para o monasteacuterio de Felipe II mas retomado em funccedilatildeo do estabelecimento de uma imagem

bastante valorizada em princiacutepios da Idade Moderna por meio da qual se elogiam monarcas que edificam

casas admiraacuteveis como retrato de sua devoccedilatildeo religiosa agrave memoacuteria do rei Salomatildeo o rei construtor do Antigo

Testamento Os Trastacircmaras membros da dinastia que antecedeu agrave dos Habsburgos na Espanha jaacute

utilizavam a iconografia salomocircnica para representar seus monarcas dentre os quais estatildeo Afonso X (1221-

1284) Enrique II (c 1333-1379) Juan I (1358-1390) e Enrique IV (1425-1474) (MIacuteNGUEZ 2007) Essa

imagem continuaria a ser utilizada pela monarquia

Natildeo apenas a escrita sobre o Escorial evoca a lembranccedila do rei Salomatildeo mas o proacuteprio edifiacutecio apresenta a

imagem desse antigo rei em destaque Na entrada principal do mosteiro haacute uma estaacutetua de Satildeo Jerocircnimo e

das armas reais Ao adentrar por esse portatildeo principal avista-se um pequeno paacutetio que marca uma transiccedilatildeo

entre o exterior do edifiacutecio e a entrada para a basiacutelica espaccedilo sagrado do conjunto Esse paacutetio chamado de

Patio de los Reyes eacute marcado pela presenccedila de estaacutetuas de antigos reis judeus na fachada da igreja a saber

Davi Salomatildeo Ezequiacuteas Josafat Manaseacutes e Josiacuteas

Segundo Martiacuten Gonzaacutelez (1994) cada um dos reis foi pensado por conta de sua relaccedilatildeo com o Templo de

Salomatildeo buscando dessa forma fortalecer a imagem do Escorial como novo Templo de Salomatildeo Essa

interpretaccedilatildeo eacute reforccedilada pelas palavras de Cabrera ao descrever a fachada da igreja do Escorial em seu

poema Laurentina Davi recebeu a incumbecircncia de construir um templo para ser morada divina e segundo

Cabrera (1975 p 157) tambeacutem tinha reunido os materiais para a construccedilatildeo do edifiacutecio

Fijardo estaacute David al diestro lado porque los materiales ha traiacutedo para el templo que el hijo ha edificado porque Dios que eacutel le hiciese no ha querido que la inocente sangre ha derramado tiene su arpa y cetro esclarecido el denuedo mostrando en el semblante con que la horrenda muerto dio al gigante

A segunda estaacutetua eacute a de Josafat lembrado como rei ldquoque del sagrado templo fue devotordquo (CABRERA 1975

p 157) e pelos sacrifiacutecios que ofereceu Segundo Martiacuten Gonzaacutelez (1994) Josafat seria lembrado por

[153]

destruir os bosques dos povos idoacutelatras e por restaurar as funccedilotildees do templo e por isso leva na matildeo a naveta

instrumento para se guardar os incensos de uso lituacutergico

A terceira estaacutetua mencionada por Cabrera na Laurentina eacute de Ezequias ldquoque los iacutedolos falsos derribarardquo

(CABRERA 1975 p 157) Ezequias eacute lembrado tambeacutem por ter enriquecido o templo ldquocon muy preciadas

joyas que le dierardquo (CABRERA 1975 p 158) Na sequecircncia eacute apresentada a figura central Salomatildeo indicado

como instrumento para que Deus atraveacutes de sua accedilatildeo realizasse um templo segundo seus desejos e

sabedoria

Estaacute el primero en la siniestra mano el saacutebio Salomoacuten hijo querido del divino profeta soberano que el templo celebrado ha construido En potencia y saber no hombre humano sino del cielo al suelo conducido para mostrarnos Dios de su potencia alguna partecilla en su sapiecircncia

Ao lado de Salomatildeo eacute apresentado Manaseacutes que apoacutes o periacuteodo de cativeiro na Babilocircnia ao se encontrar

livre e de volta a sua terra ldquoun fuerte muro en la cuidad fundara que de David el nombre conservarardquo

(CABRERA 1975 p 158) Cabrera explica que por fortalecer o templo e protegecirc-lo sua estaacutetua eacute

apresentada com um compasso Por fim eacute apresentado Josias que traz um pergaminho na matildeo direita

representando o texto do Deuteronocircmio ldquopor quien la ley al Pueblo publicarardquo (CABRERA 1975 p 158) e

que tambeacutem teria realizados obras no templo

A imagem do Templo de Salomatildeo eacute fundamental pois funde os argumentos de Siguenza e Cabrera sobre a

principal mensagem deixada no Escorial Se o edifiacutecio deveria guardar as vitoacuterias militares que soacute tinham

valor porque se relacionavam a um rei que agia em favor da providecircncia divina colocando-se como defensor

da Igreja Catoacutelica o principal edifiacutecio a ser lembrado na Antiguidade deveria ser o Templo de Salomatildeo por

representar a maior honra a Deus a quem Felipe II queria servir de forma destacada entre todos os demais

governantes da Europa de seu tempo

A relaccedilatildeo do monasteacuterio de Felipe II com o Templo de Salomatildeo era parte de uma seacuterie de referecircncias

apresentadas por Cabrera em que momentos e aspectos da Antiguidade romana satildeo relembrados

juntamente com o passado cristatildeo e judaico Ou seja para aleacutem do Impeacuterio Romano a Antiguidade a ser

emulada e valorizada era aquela dos tempos de Israel de onde nasceria o cristianismo As duas tradiccedilotildees se

fundem para formar o passado remoto que deveria ser relembrado como o embriatildeo dos reinos cristatildeos

Em sua Historia de Felipe II Cabrera apresenta as qualidades do monarca comparando-o aos reis do Antigo

Testamento a outros monarcas da cristandade e a imperadores romanos Dessa forma Felipe II deveria ser

lembrado como um governante justo como Josias honrado como Davi penitente e defensor da religiatildeo como

seu pai Carlos V Tambeacutem como jaacute apontado deveria ser associado a Salomatildeo por ter edificado o maior

templo a Deus Era semelhante a Constantino por favorecer a igreja grave como o imperador Nerva

prudente como Felipe da Macedocircnia piedoso como Antonino sendo ainda comparado a Afonso o Saacutebio a

[154]

Luis XI da Franccedila a Juacutelio Ceacutesar a Dom Joatildeo II de Portugal a Fernando e Isabel de Castela a Teodoacutesio a

Moiseacutes etc

Em resumo ainda que o Escorial tenha sido edificado segundo os preceitos apresentados pelos tratadistas

italianos que valorizavam a Antiguidade Romana o discurso sobre o valor e a memoacuteria desse edifiacutecio natildeo

poderiam apenas relembrar os tempos dos imperadores de Roma pois as necessidades de seu tempo

sobretudo no que diz respeito agrave forma como se legitimava o poder como defensor da cristandade precisava

valorizar um discurso cristatildeo Por isso os autores que tiveram destaque na escrita sobre esse edifiacutecio

Siguenza e Cabrera apresentam os costumes romanos a serem retomados pelos homens de seu tempo

sempre lembrando que seu tempo poderia ter perdido os conhecimentos do passado buscados na leitura dos

antigos e nas escavaccedilotildees de ruiacutenas mas que a religiatildeo cristatilde os fazia melhores que os saacutebios romanos Assim

natildeo apenas os godos seriam motivo da decadecircncia desse tempo aacuteureo mas os muccedilulmanos grandes inimigos

dos reinos ibeacutericos desde suas formaccedilotildees precisavam tambeacutem figurar como culpados ainda que fossem

muito posteriores aos tempos do Impeacuterio Romano

Dessa forma ainda que a arquitetura moderna fosse considerada pelos autores inferior agrave dos antigos ainda

deveria ser valorizada quando era sinal da devoccedilatildeo dos homens de seu tempo Por fim a valorizaccedilatildeo da

Antiguidade romana sempre era relembrada dando espaccedilo para a valorizaccedilatildeo do passado cristatildeo do tempo

dos Hebreus e do Antigo Testamento Portanto o discurso sobre o ressurgir do conhecimento sobre os

antigos foi adequado pelos autores aqui apresentados agraves necessidades discursivas de Felipe II de

apresentar-se no Monasterio de San Lorenzo El Real del Escorial como promotor da defesa da Igreja Catoacutelica

no contexto das Reformas das lutas contra os muccedilulmanos e da missionaccedilatildeo que marcaram o seu reinado

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A insocircnia como tema nas silvas de Estaacutecio (Silu 54) e Quevedo (Silva Segunda)

Luiza Helena R de Abreu Carvalho

luizahcarvalhogmailcom

As Siluae de Estaacutecio satildeo um conjunto de trinta e dois poemas de

caraacuteter elogioso-circunstancial divididos em cinco livros sendo os

quatro primeiros organizados pelo proacuteprio autor e o uacuteltimo

poacutestumo Nos quatro livros organizados pelo proacuteprio o autor a

seleccedilatildeo de vinte e sete poemas eacute acompanhada de prefaacutecios em

prosa em que Estaacutecio dedica os textos a nobres patronos ou amigos

e explica tambeacutem as suas escolhas poeacuteticas O uacuteltimo livro poreacutem

eacute composto por apenas cinco poemas completos e um fragmentado

Dessa forma as Siluae possuem sempre um destinataacuterio podendo

ser tanto o imperador Domiciano quanto qualquer outro membro-

patrono das elites das sociedades de Roma e de Naacutepoles regiatildeo na

qual Estaacutecio nasceu e para a qual tambeacutem se mudou no final de sua

vida Os poemas satildeo relacionados com a vida puacuteblica e poliacutetica mas

tambeacutem expressam aspectos ligados ao cotidiano da vida privada

(NAGLE 2004 p 14)

A coleccedilatildeo de poemas no entanto possui algumas questotildees

controversas que satildeo levantadas pelos estudiosos das silvas como

por exemplo a definiccedilatildeo do seu tiacutetulo Wray (2007 p 127) explica

que enquanto alguns criacuteticos enxergam o tiacutetulo dos poemas

estacianos como um problema interpretativo outros o incorporam

[157]

na discussatildeo O termo que significa ldquoflorestardquo1 pode se referir agraves temaacuteticas variadas que a obra comporta2

ou assumindo uma complexidade metafoacuterica pode remeter agrave madeira natildeo polida crua ou seja agrave mateacuteria-

prima da obra literaacuteria (WRAY 2007 p 128-129)3 Assumimos na anaacutelise que fizemos no mestrado e

portanto neste capiacutetulo que eacute um recorte do trabalho inicial a primeira concepccedilatildeo do que pode significar o

termo silva pois acreditamos na incorporaccedilatildeo dessa produccedilatildeo na tradiccedilatildeo liacuterica devido principalmente na

heterogeneidade das temaacuteticas4

Natildeo apenas a heterogeneidade dos assuntos tratados as silvas de Estaacutecio tambeacutem possuem outra

caracteriacutestica especiacutefica quanto agrave temaacutetica elas satildeo sempre elogiosas e por isso satildeo desenvolvidas a partir

do gecircnero retoacuterico epidiacutetico5 Outro ponto relevante acerca da adequaccedilatildeo dos poemas de Estaacutecio agrave retoacuterica

epidiacutetica se encontra nas ocasiotildees explicitadas por Menandro Retor no seacuteculo IV para compor um elogio eou

vitupeacuterio Na obra Sobre o epidiacutetico o retor grego divide os discursos de acordo com determinados eventos

explica como louvar e em quais pontos o orador deve tocar a fim de tecer seu elogio A sistematizaccedilatildeo

menandrina no entanto eacute entendida como uma compilaccedilatildeo da praacutetica oratoacuteria e poeacutetica elogiosa da qual

Estaacutecio participa Desse modo observamos na heterogeneidade temaacutetica estaciana situaccedilotildees que foram

mais tarde compiladas por Menandro como o elogio ao imperador (Men Rhet 22368) nas Siluae 21 e 22

o epitalacircmio (Men Rhet 26399) no poema 12 o louvor de aniversaacuterio (Men Rhet 28 412 Silu 27) louvor

a viagens (Men Rhet 25395 Silu 32) assim como tambeacutem lamentaccedilotildees e consolaccedilotildees (Men Rhet 29413-

414 211418-422 216434-437 Silu 21 26 33 34 55)

1 Aleacutem da acepccedilatildeo de ldquoflorestardquo e elementos relacionados aos bosques o termo silva aparece no Dicionaacuterio Etimoloacutegico Latino-Portuguecircs de Francisco Saraiva como ldquomultidatildeordquo ldquogrande nuacutemerordquo ldquoabundacircnciardquo e remetendo especificamente agrave produccedilatildeo de Estaacutecio aparecem as acepccedilotildees ldquocoleccedilatildeordquo ldquomiscelacircneardquo e ldquovariedaderdquo 2 Para Charles McNelis (2007 p 279) ldquonada eacute como as Siluae na literatura romana restante em termos de diversidade e variaccedilatildeo Os trinta e dois poemas de Estaacutecio contecircm por exemplo envios emocionados ndash tanto tristes como celebratoacuterios ndash para a famiacutelia e amigos elogio de objetos fiacutesicos (estaacutetuas banhos vilas e uma estrada) e pessoas incluindo o imperador Domiciano e discussotildees de animais (e ateacute mesmo uma aacutervore) Essa ampla variedade de temas implica em toacutepicos como o jantar a natureza o poder imperial a vida familiar a sexualidade o patronato o casamento a morte a retoacuterica a educaccedilatildeo e as artes apenas para citar alguns Os poemas entatildeo contecircm pontos de interesse para quase todos os interessados na Roma imperial e consequentemente merece a atenccedilatildeo e o interesse de muitos criacuteticosrdquo ldquoThere is nothing else like the Silvae in extant Roman literature in terms of diversity and range Statiusrsquos thirty-two poems contain for example emotional addresses mdash both sad and celebratory mdash to family and friends praise of physical objects (statues baths villas and a road) and people including the emperor Domitian and discussions of animals (and even a tree) Such a wide variety of themes implicates topics such as dining nature imperial power family life sexuality patronage marriage death rhetoric education and the arts just to name a few The poems then contain points of interest for almost anyone interested in imperial Rome and consequently deserve the attention and interest of many criticsrdquo 3 Wray (2007 p 139-142) interpreta a acepccedilatildeo de silva como mateacuteria-prima e como relativa ao engenho ao talento natural em oposiccedilatildeo agravequilo que necessita de ser trabalhado pela arte Para o criacutetico Estaacutecio escreve as Siluae para mostrar o seu dom natural assim como tambeacutem escreveu a Tebaida para mostrar sua arte 4 Para saber mais sobre o desenvolvimento geneacuterico da silva cf Carvalho (2018) 5 Natildeo trataremos aqui sobre as especificidades da retoacuterica e seus gecircneros discursivos mas para saber mais cf Aristoacuteteles (Rh 1358b)

[158]

Essa heterogeneidade dos temas nos poemas estacianos se tornou uma marca na permanecircncia das silvas no

Renascimento e na Modernidade inicial aleacutem do seguimento desses poemas com a retoacuterica epidiacutetica ndash seja

na vertente elogiosa ou vituperante Neste trabalho analisamos duas silvas uma de Estaacutecio autor romano

do seacuteculo I e a outra de Francisco de Quevedo localizado na Espanha do seacuteculo XVII considerando alguns

dos oitos pontos de intertextualidade explicados por Barchiesi (2001 p 142-145) para o entendimento do

texto literaacuterio Esses pontos satildeo especialmente a) a noccedilatildeo de que a intertextualidade eacute um evento natildeo um

objeto logo natildeo eacute algo fixo mas dinacircmico e por isso passiacutevel de mutaccedilotildees b) a compreensatildeo de que

primeiramente eacute produzido o modelo e depois o texto por ele imitado e a interpretaccedilatildeo requer do leitor uma

anaacutelise de ambos os textos e c) a dupla via de perspectiva que o intertexto abrange ou seja o texto mais

novo pode afetar a interpretaccedilatildeo do modelo e natildeo apenas o contraacuterio em outras palavras a

intertextualidade pressupotildee uma ldquopossibilidade de reverter a direcionalidade de uma referecircncia

intertextualrdquo (FOWLER 1997 p 20)6

Sabendo dessas consideraccedilotildees observamos que a emulaccedilatildeo das silvas estacianas por Francisco de Quevedo

se daacute de maneira complexa natildeo sendo dessa forma uma coacutepia simples e descuidada dos poemas do primeiro

autor Por exemplo se Estaacutecio utiliza a temaacutetica da viagem (os propemptikagrave) para louvar o destinataacuterio na

Silua 32 jaacute Quevedo na Silva Quinta tambeacutem faz uso do mesmo tema poreacutem a finalidade se difere daquela

antiga pois o autor censura nesse poema a ganacircncia daqueles que partem para as Grandes Navegaccedilotildees

seguindo entatildeo a vertente do vitupeacuterio da retoacuterica epidiacutetica Outra temaacutetica usada por Estaacutecio que tambeacutem

eacute emulada pelo autor moderno espanhol eacute a descriccedilatildeo de lugares como as vilas por exemplo representando

respectivamente as silvas de nuacutemeros 22 e Silva XXI ambas composiccedilotildees de caraacuteter elogioso cujos

personagens louvados satildeo membros das elites romana e espanhola Poacutelio e Gonzalo Chaacutecon7 Neste trabalho

escolhemos tratar das silvas que possuem uma temaacutetica relativamente abstrata que eacute o sonho mas que

tambeacutem satildeo claramente emulaccedilotildees que Quevedo faz do autor romano

Sono e insocircnia na Silua 54 de Estaacutecio e Silva Segunda de Quevedo

Os poemas de Quevedo sobre a temaacutetica do sono8 ndash ou melhor de seu contraacuterio a insocircnia ndashsatildeo chamados

por Candelas Colodroacuten (1997 p 197) de ldquosilvas da noiterdquo ou de poemas noturnos9 A Silva Segunda que conta

com a epiacutegrafe El Suentildeo eacute uma imitaccedilatildeo da Silva 5410 de Estaacutecio que tem como o tiacutetulo posterior Somnus

Inicialmente destacamos que o poema de Estaacutecio conta com um nuacutemero significativamente menor de versos

6 ldquoThe possibility of reversing the directionality of intertextual referencerdquo 7 Para saber mais sobre a emulaccedilatildeo quevediana das silvas descritivas cf Carvalho amp Leite (2020) 8 Sobre poemas que tecircm como tema o sono cf Teraacuten Elizondo (2009) e Cacho Casal (2003) 9 A temaacutetica da insocircnia na composiccedilatildeo de Quevedo eacute trabalhada por Gonzalo Sobejano (1982) que tece comparaccedilotildees acerca da circunstacircncia em duas silvas ldquoA voacutes estrelasrdquo e ldquoCom que culpa tatildeo graverdquo 10 Utilizamos a traduccedilatildeo ineacutedita da Silva 54 feita por Leni Ribeiro Leite em versatildeo cedida pela autora

[159]

ndash apenas dezenove ndash em relaccedilatildeo ao de Quevedo que possui oitenta e dois versos Diferente de todo o resto

das Siluae de Estaacutecio esse poema se destaca pela especificidade da extensatildeo Cabe lembrar que essa

produccedilatildeo por pertencer ao quinto livro lanccedilado apoacutes a morte do poeta latino natildeo foi selecionada pelo

proacuteprio autor para publicaccedilatildeo podendo ter sido ou natildeo da vontade dele o seu conhecimento puacuteblico (NAGLE

2004 p 4)11

Observamos na exposiccedilatildeo dos aspectos intertextuais da recepccedilatildeo da silva e as caracteriacutesticas conceptistas

quevedianas que a dispositio eacute a propriedade que mais se assemelha entre os poemas Dessa forma

especificamente esse poema do escritor espanhol sobre o sonho pode ser considerado como uma amplificatio

daquele estaciano (CANDELAS COLODROacuteN 1997 p 199) Ambas as composiccedilotildees como afirma Leite

(2017 p 535) possuem como proecircmios a aproximaccedilatildeo da imagem do poeta que natildeo consegue dormir com

algum culpado ou criminoso ldquoPor que crime mereci jovem Sono mais gentil dos deuses ou por que erro

que soacute eu pobre de mim carecesse de teus donsrdquo (Silu 54 1-2)12 e ldquoCom que culpa tatildeo grave Sono brando

e suave Pude em largo desterro merecer Que se afaste de mim o teu esquecimento mansordquo13 Nos dois

poemas o questionamento pelo motivo da insocircnia funciona como abertura das composiccedilotildees sendo

acrescentada ainda por Quevedo a razatildeo de buscar o sono que natildeo eacute para descansar mas para alcanccedilar

uma imagem da morte ldquoPois eu natildeo te busco por ser descanso Mas por ser muda imagem da morterdquo14

Imediatamente apoacutes o questionamento introdutoacuterio do poema de Estaacutecio o eu-liacuterico daacute iniacutecio agrave toacutepica do

locus amoenus apropriando-se de elementos da natureza para indicar que eles tambeacutem adormecem ou ficam

menos agitados com o cair da noite Alude desse modo agrave tranquilidade noturna do local

Todo o rebanho estaacute em silecircncio e os paacutessaros e as feras e as copas curvadas simulam sonos cansados e os rios selvagens diminuem seu som morre o tremor das aacuteguas e aquietam-se os mares reclinados sobre os litorais (Stat Silu 543-6) 15

O eu-liacuterico da silva quevediana utiliza o mesmo lugar-comum do poeta latino com propoacutesito semelhante O

intertexto presente estaacute relacionado agrave tranquilidade do local pois em ambos os textos eacute construiacuteda a mesma

11 Natildeo nos interessa todavia buscar o intuito editorial de Estaacutecio ndash ateacute porque acreditamos na impossibilidade deste percurso ndash mas elencar questotildees singulares da Silua 54 a fim de identificarmos os elementos intertextuais entre esse poema com a Silva Segunda do poeta moderno Esse fato eacute aqui destacado apenas como uma das possibilidades de compreender a especificidade dessa silva e de certo descolamento formal que ela possui em relaccedilatildeo ao restante da obra 12 Crimine quo merui iuvenis placidissime divum quove errore miser donis ut solus egerem Somne tuis 13 iquestCon queacute culpa tan grave Suentildeo blando y suave Puede en largo destierro merecerte Que se aparte de miacute tu olvido manso 14 Pues no te busco yo por ser descanso Sino por muda imagen de la muerte 15 tacet omne pecus volucresque feraeque et simulant fessos curvata cacumina somnos nec trucibus fluviis idem sonus occidit horror aequoris et terris maria adclinata quiescunt

[160]

imagem na qual os elementos naturais descansam junto com o sol poente os riachos e rios adormecem

juntamente com os prantos do poeta que por sua vez tambeacutem caem em simultaneidade com a noite

De sossego os tens desconhecidos De tal maneira que ao morrer o dia Com luz enferma vi que permitia O Sol que se dirige ao Poente Com os peacutes torpes ao ponto cega e fria Caiu das estrelas brandamente Os riachos puros Se adormecem ao som do meu pranto E ao seu modo tambeacutem dorme o rio (Quevedo Silva Segunda 18-26) 16

Apoacutes essa ambientaccedilatildeo introdutoacuteria sobre a condiccedilatildeo do insone ambos os poetas lanccedilam matildeo de

personificaccedilotildees mitoloacutegicas para efetuar uma contraposiccedilatildeo entre noite e dia em cujo intervalo o episoacutedio

de insocircnia ocorre O sujeito-liacuterico do poema de Estaacutecio utiliza metonimicamente a figura da deusa Febe

(Phoebe) que representa as noites de lua cheia de Eetes (Oetaeae) como personificaccedilatildeo do dia jaacute que eacute filho

de Heacutelio personificaccedilatildeo do Sol de Pafos (Paphiae) que eacute filho de Aurora com Ceacutefalo e utilizado para

representar o amanhecer bem como de Titocircnia (Tithonia)

Jaacute retornando pela seacutetima vez Febe observa meus olhos cansados a fitar Tantas vezes as luzes do Eeta e de Pafos me veem novamente E tantas vezes Titocircnia passa diante de nossos queixumes E comiserada nos esparge com seu chicote geacutelido (Stat Silu 54 7-10) 17

Na Silva Segunda de Quevedo o poeta manteacutem a personificaccedilatildeo de Aurora para referir-se ao amanhecer

como nos versos 12-14 ldquoMadrugam mais em mim do que nas Auroras Laacutegrimas nesta planiacutecie Que

amanhece para o mal sempre cedordquo18 Tambeacutem nos versos seguintes a personificaccedilatildeo do Sono com letra

maiuacutescula aproxima a composiccedilatildeo quevediana da estaciana Gibson (1996 p 462) analisa a Silua 54 de

Estaacutecio como um hino19 pois identifica os elementos desta composiccedilatildeo a partir da deificaccedilatildeo do Sono

ldquoobjetivando persuadir um deus para exercer o seu poder de modo favoraacutevelrdquo20 A silva El Suentildeo de Quevedo

pode ser interpretada de modo semelhante a de Estaacutecio ou seja como uma suacuteplica do vigilanteviacutegil ao Sono

16 De sosiego los tienes ignorantes De tal manera que al morir el dia Con luz enferma viacute que permitia El Sol que le mirasen em Poniente Con pies torpes al punto ciega y friacutea Cayoacute de las estrellas blandamente Los arroyuelos puros Se adormecen al soacuten del llanto mio Y aacute su modo tambien se duerme el rio 17 Septima iam ridens Phoebe mihi respicit aegras stare genas totidem Oetaeae Paphiaeque revisunt lampades et totiens nostros Tithonia questus praeterit et gelido spargit miserata flagello 18 Madrugan mas en miacute que em las Auroras Laacutegrimas aacute este llano Que amanece aacute mi mal siempre temprano 19 Menandro (11331) explica que as composiccedilotildees nomeadas como hinos satildeo aquelas que se dirigem aos deuses podendo ser chamadas ainda de maneira especiacutefica dependendo do deus para o qual se referem como melhor explicado no capiacutetulo primeiro No caso da Silu 54 os elementos encomiaacutesticos possuem a funccedilatildeo de mostrar a bondade do destinataacuterio para que a prece do autor seja atendida 20 ldquoaims to persuade a god to exercise his power favourablyrdquo

[161]

para que o visite durante a noite pois seus olhos jaacute estatildeo muito cansados (ldquoE tanto que persuade a tristeza

A meus dois olhos que nasceram antes Para chorar do que para ver-te oacute Sonordquo)21

O entendimento de ambos os poemas como uma suacuteplica ao Sono se confirma no final das duas composiccedilotildees

O sujeito-liacuterico do poema de Estaacutecio de modo mais sucinto (v 14-19) pede ao Sono que se aproxime dele

tocando-o com a sua varinha a fim de que o auxilie a dormir Jaacute o de Quevedo utiliza alguns versos a mais

para a sua suacuteplica final Apesar da ampliaccedilatildeo dos versos do poeta moderno os elementos intertextuais com

o poema estaciano que caracterizam a solicitaccedilatildeo satildeo claros o eu-poeacutetico tambeacutem pede que o Sono o toque

com o mesmo objeto ou seja a sua vara e que ele se aproxime daquele que sofre com a insocircnia ainda que de

maneira branda e suave

Mas agora ai se algueacutem durante longa noite contido nos braccedilos entrelaccedilados da amada te expulsa sono para longe vem de laacute para mim nem exijo que tu lances sobre os meus olhos todas as tuas asas (que peccedilam isso os mais afortunados) toca-me com a ponta de tua varinha eacute suficiente ou passa por mim levemente com os joelhos no ar (Stat Silu 54 14-19)22 Toca-me com a ponta da sua vara Ouviratildeo ao menos o ruiacutedo de tuas plumas Minhas desventuras sumas Que eu natildeo quero ver-te cara a cara Nem que faccedilas mais caso De mim que ateacute passar por mim brandamente [] Me tire brando sonho desta insocircnia Ou de alguma parte E te prometo enquanto vejo o Ceacuteu Acordarei apenas para louvaacute-lo (Quevedo Silva Segunda 80-86 91-94)23

Apesar dos elementos semelhantes que aproximam os dois poemas sobre o Sono haacute visotildees que afastam os

motivos impliacutecitos nas composiccedilotildees Candelas Colodroacuten (1997 p 199) discute alguns desses aspectos e

constroacutei uma aproximaccedilatildeo do eu-poeacutetico do poema de Quevedo com um amante Nesse caso o sofrimento

do sujeito-liacuterico seria atribuiacutedo a razotildees amorosas que estariam indicadas em trechos como ldquocuidados

vigilantesrdquo ldquominhas doresrdquo ldquomeu gemidordquo Natildeo acreditamos no entanto que os termos identificados sejam

suficientes para responsabilizar o amor pelo sofrimento do sujeito-poeacutetico

21 Y tanto que persuade la tristeza A mis ojos que nacieron antes Para llorar que para verte Suentildeo 22 at nunc heu si aliquis longa sub nocte puellae brachia nexa tenens ultro te Somne repellit inde veni nec te totas infundere penas luminibus compello meis++hoc turba precatur laetior extremo me tange cacumine virgae sufficit aut leviter suspenso poplite transi 23 Toacutecame con el cuento de tu vara Oiraacuten siquiera el ruido de tus plumas Mis desventuras sumas Que yo no quiero verte cara aacute cara Ni que hagas mas caso De miacute que hasta pasar por mi de passo [] Quiacutetame blando suentildeo este desvelo O de eacutel alguna parte Y te prometo mientras viere el Cielo De desvelarme soacutelo en celebrarte

[162]

Candelas Colodroacuten (1997 p 199) ao continuar comparando as composiccedilotildees antiga e moderna afirma

inclusive que aquela natildeo parece ter motivo para ter sido escrita pois natildeo existe a circunstacircncia amorosa O

livro cinco de Estaacutecio no entanto eacute uma obra carregada de lamentaccedilotildees Dos cinco poemas existentes trecircs

satildeo lamentos o 51 eacute um epiceacutedio agrave Priscila o 53 eacute um epiceacutedio ao pai de Estaacutecio e o 55 ao seu filho as outras

duas silvas satildeo a 52 um elogio a Crispino e a 54 sobre o Sono Com exceccedilatildeo da silva 52 portanto que eacute um

encocircmio os outros poemas satildeo queixas pela memoacuteria de eventos tristes como a morte dos familiares do

poeta e da esposa de seu amigo O enredo da silva 54 que eacute a insocircnia do eu-liacuterico estaacute portanto em

consonacircncia com a temaacutetica do livro como um todo pois as causas dos lamentos dos poemas do livro cinco

tambeacutem podem ser lidas como motivos pelos quais o sujeito-poeacutetico permanece inquietamente vigilante

Consideraccedilotildees finais

Tentamos mostrar nesse curto capiacutetulo que as composiccedilotildees analisadas possuem elementos intertextuais que

as aproximam assim como que as afastam No exemplo das silvas sobre o sono (Silu 54 e Silva Segunda) a

extensatildeo dos poemas eacute um dos pontos que os afastam jaacute que o poema estaciano eacute menor e portanto menos

detalhado sobre o tema sendo a silva de Quevedo considerada uma amplificaccedilatildeo da de Estaacutecio Jaacute os pontos

de aproximaccedilatildeo tambeacutem giram em torno dos lugares-comuns utilizados por ambos os poetas sendo o

primeiro deles a indagaccedilatildeo de qual falta eou crime os poetas estatildeo pagando por natildeo conseguir adormecer

No decorrer do poema ambos os autores fazem uso da toacutepica do locus amoenus a fim de demonstrar a

tranquilidade dos elementos da natureza que tambeacutem repousam das personificaccedilotildees mitoloacutegicas buscando

ornamentar antiteticamente os versos contrapondo dia e noite e por fim a motivaccedilatildeo dos dois autores

parece ser semelhante ambos suplicam ao deus Sono para fazecirc-los uma visita

Aleacutem dessas caracteriacutesticas intertextuais observadas no par de poemas acima consideramos que a

instituiccedilatildeo geneacuterica da silva se deu na Antiguidade com Estaacutecio Alguns aspectos de imitaccedilatildeo e emulaccedilatildeo da

produccedilatildeo de silvas de Quevedo ilustram essa permanecircncia do gecircnero como eacute o caso da heterogeneidade

temaacutetica das composiccedilotildees ndash natildeo explicitada nesse trabalho jaacute que eacute apenas um recorte analiacutetico de um dos

poemas de ambos os autores ndash da utilizaccedilatildeo de elementos mitoloacutegicos que coloca cada autor como

participante de uma tradiccedilatildeo erudita e da retoacuterica epidiacutetica como vetor temaacutetico A permanecircncia da silva

como produccedilatildeo iniciada na Antiguidade se daacute tambeacutem devido agrave importacircncia da nomenclatura utilizada pelos

autores que pode enfatizar ainda a mescla de temas presentes na obra A partir da conceituaccedilatildeo teoacuterica

acerca da intertextualidade e da Recepccedilatildeo dos claacutessicos e a via de matildeo dupla interpretativa a qual estatildeo

abertos os textos de maneira geral e as composiccedilotildees em silva de maneira especiacutefica entendemos a

importacircncia das silvas renascentistas e modernas para a constituiccedilatildeo e solidificaccedilatildeo do gecircnero estaciano

[163]

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A ecirccfrase como artifiacutecio retoacuterico em Sermotildees de Antonio Vieira

Barbara Faria Tofoli

barbarafariatgmailcom

A partir de uma pesquisa sobre a recepccedilatildeo da ecirccfrase nas praacuteticas

letradas modernas pretendemos neste artigo compreender os

diversos sentidos atribuiacutedos a essa figura retoacuterica aleacutem de analisar

seu uso como recurso linguiacutestico em alguns sermotildees do jesuiacuteta

Antonio Vieira cujo discurso delineado pela Retoacuterica Claacutessica

serve-se da ecirccfrase para legitimar ou construir uma argumentaccedilatildeo

Diante disso primeiramente satildeo apresentadas algumas noccedilotildees

vinculadas agrave Recepccedilatildeo dos Claacutessicos assim como agrave Retoacuterica Antiga

para que entatildeo sejam discutidas definiccedilotildees vinculadas agrave ecirccfrase A

anaacutelise consistiraacute em delimitaccedilatildeo e discussatildeo de trechos ecfraacutesticos

presentes no Sermatildeo de Santo Inaacutecio (1669) e no Sermatildeo de Santo

Antocircnio (aos Peixes) (1654) a fim de que nesses a ecirccfrase seja

associada ao caraacuteter retoacuterico presente nos escritos do autor

A Recepccedilatildeo dos Claacutessicos se configura de forma a confrontar o

caraacuteter fixo e tradicional vinculado aos estudos claacutessicos a fim de

que estes sejam mantidos para aleacutem do autotelismo

(MARTINDALE 2006 p 2) Compreendida desta maneira a

recepccedilatildeo seria uma forma de diaacutelogo com o passado claacutessico em

que natildeo se prioriza nenhum dos lados de modo que natildeo se faccedila

ldquouma leitura canocircnica do modelo claacutessico em detrimento de sua

recepccedilatildeordquo (BAKOGIANNI 2016 p 116) Sobre a teoria da

recepccedilatildeo compreende-se ainda que essa

[165]

rejeita a existecircncia de um texto uacutenico original objetivo e fixo que tem de ser examinado como uma forma de arte pura como argumentariam o neocriticismo e muitos teoacutericos poacutes-modernos Em vez disso na recepccedilatildeo noacutes falamos em ldquotextosrdquo no plural porque a cada vez que um texto eacute lido ele estaacute sendo recebido e interpretado de uma nova maneira Isso tem se mostrado ser de especial valor para o estudo dos claacutessicos em que os textos e a cultura material do mundo antigo sobrevivem apenas de forma fragmentaacuteria Textos claacutessicos satildeo em geral incompletos controversos recuperados de uma variedade de fontes e reinterpretados por cada geraccedilatildeo de estudiosos de Claacutessicas A recepccedilatildeo dos claacutessicos concentra-se na forma como o mundo claacutessico eacute recebido nos seacuteculos subsequentes e em particular nos aspectos das fontes claacutessicas que satildeo alterados marginalizados ou negligenciados (BAKOGIANNI 2016 p 115)

O padre Antonio Vieira leitor dos preceptistas antigos recupera princiacutepios claacutessicos em seus escritos a fim

de comover seus ouvintes em favor da Corte portuguesa e da Igreja Catoacutelica Propomos agrave vista disso a

leitura de sermotildees vieirianos de forma que os entendamos como textos constituiacutedos por aspectos retoacutericos

da Antiguidade Claacutessica recepcionados e interpretados em sua posteridade

De acordo com Martindale (2006 p 11-2) a recepccedilatildeo se associa agrave pluralidade estando o presente e o

passado sempre imbricados um no outro Assim ao escrever no Brasil do seacuteculo XVII o padre Antonio Vieira

transforma elementos da Antiguidade Claacutessica muito presentes em sua obra em elementos vivos do seu

presente estabelecendo uma instacircncia de recepccedilatildeo do mundo claacutessico ndash no que nos interessa aqui da Arte

Retoacuterica Antiga ndash em seu presente O imbricamento passado-presente de Antonio Vieira pode ser lido

atraveacutes dos usos de elementos teoacutericos e praacuteticos da Retoacuterica Claacutessica em seus sermotildees Neste artigo

observaremos a recuperaccedilatildeo de um elemento especiacutefico a ecirccfrase isto eacute uma descriccedilatildeo detalhada e viacutevida

que expotildee aos olhos o que eacute descrito (Theoacuten Prog 118-20) como expediente retoacuterico na produccedilatildeo

sermoniacutestica do padre Antonio Vieira como exemplo de sua constante e criativa recepccedilatildeo da Retoacuterica

Claacutessica a partir da noccedilatildeo de que a construccedilatildeo da histoacuteria seiscentista se daacute em retomada agrave Antiguidade

greco-romana (SINKEVISQUE 2013 p 47) Vieira faz uso da elocuccedilatildeo em seus sermotildees para persuadir e

mesmo porque jesuiacuteta se aproxima dos ditames da Retoacuterica (DE MARTINI 2011 p 94) a partir da

manipulaccedilatildeo de artifiacutecios linguiacutesticos diversos como a ecirccfrase sendo esta utilizada natildeo somente enquanto

procedimento ornamental conforme compreendido modernamente mas como importante instrumento

argumentativo de apoio a pretensotildees poliacutetico-religiosas

Para alcanccedilar o objetivo proposto seratildeo primeiramente tecidas consideraccedilotildees em torno da Retoacuterica Antiga

e da ecirccfrase assim como de funccedilotildees e elementos a ela vinculados a fim de que posteriormente possamos

delimitar passagens que contenham descriccedilotildees ecfraacutesticas em sermotildees vieirianos analisando-as de forma a

compreender como esse artifiacutecio retoacuterico foi posto em uso pelo autor 1 Os sermotildees examinados satildeo o Sermatildeo

1 Em relaccedilatildeo a obras dos seacuteculos XVII e XVIII natildeo se tem acesso aos escritos originais mas a textos retocados para publicaccedilatildeo o que leva agrave existecircncia de diferentes versotildees para um mesmo texto (MAINGUENEAU 2010 p 103) Portanto os textos do padre Vieira podem apresentar distintas versotildees o que nos leva agrave necessidade de escolha de corpus por ediccedilatildeo

[166]

de Santo Inaacutecio (1669) e Sermatildeo de Santo Antocircnio (aos Peixes) (1654) consultados na compilaccedilatildeo organizada

por Alcir Peacutecora (2001) de sermotildees do padre Antonio Vieira

A Retoacuterica entendida na Antiguidade Claacutessica como ldquoa arte de falar bemrdquo natildeo se define a partir da

gramaacutetica da eacutetica ou da dialeacutetica mas pela perspectiva de utilizar o que for necessaacuterio para persuadir o

receptor em funccedilatildeo de uma causa proacutepria (HANSEN 2012 p 164) de forma a questionar ou defender um

argumento Essas satildeo as proacuteprias proposiccedilotildees da natureza retoacuterica como afirma Aristoacuteteles (Rh 11354a)

Ainda segundo Aristoacuteteles (Rh 11355b) a Retoacuterica estaria vinculada agrave capacidade de se alcanccedilar o que seja

adequado a determinado caso com o intento de persuadir Quintiliano no prefaacutecio do Livro I da Instituiccedilatildeo

Oratoacuteria incorpora agrave qualidade elocutiva o eacutethos2 do enunciador ao declarar que a fim de que se suceda o

convencimento preza-se pela formulaccedilatildeo do discurso assim como pelo caraacuteter daquele que o enuncia ou

seja pelo eacutethos Nesse sentido a confluecircncia entre artifiacutecios linguiacutestico-argumentativos e a demonstraccedilatildeo

virtuosa do orador se acentua enquanto recurso persuasivo natildeo podendo portanto ser o enunciador

desvinculado de sua enunciaccedilatildeo ou sua causa desprendida de seus atributos Buscamos assim conduzir o

olhar aos sermotildees do padre Antonio Vieira para aleacutem de seu aspecto linguiacutestico jaacute que o autor demonstra

estar imerso nos acontecimentos temas e questotildees de seu tempo (PEacuteCORA 1994 p 39) Nossa

argumentaccedilatildeo portanto vai ao encontro do que acrescenta Peacutecora

Nessa perspectiva natildeo apenas seria inoacutecuo considerar a qualidade de seus [de Vieira] textos fora de sua propriedade retoacuterico-poliacutetica como ainda mais natildeo seria possiacutevel caracterizar corretamente uma e outra isentando-as de seu peso teoloacutegico e com ele de seu vetor teoloacutegico Retoacuterica e esteacutetica (e jaacute o termo ldquoesteacuteticardquo eacute aiacute anacrocircnico) para ele natildeo valeriam mais que como efeito e multiplicaccedilatildeo desse efeito cujo sentido e causa natildeo eacute o coacutedigo linguumliacutestico ou o gosto literaacuterio mas a manifestaccedilatildeo da vontade divina entre os homens (PEacuteCORA 1994 p 41)

A proposta de examinar escritos do padre Antonio Vieira a partir do uso da ecirccfrase natildeo suprime o

reconhecimento dos componentes poliacuteticos e religiosos amalgamados agrave sua produccedilatildeo sermoniacutestica

Relevante seria entatildeo assumir tal entroncamento a fim de que a dedicaccedilatildeo disposta agrave retomada de

preceitos retoacutericos nos sermotildees vieirianos natildeo permita anacronismos ldquoestetizantesrdquo e ldquolaicizantesrdquo

(PEacuteCORA 1994 p 44) ou ainda a dispersatildeo do motivo pelo qual Vieira se utiliza desses recursos para

persuadir Destarte os ditames da instituiccedilatildeo retoacuterica cuja durabilidade se deu desde o ldquotempo de Platatildeo e

Aristoacuteteles ateacute a revoluccedilatildeo romacircntica na segunda metade do seacuteculo XVIIIrdquo (HANSEN 2012 p 159) satildeo

recuperados nos sermotildees de Vieira de forma a fundamentar sua argumentaccedilatildeo em favor das causas do

Estado portuguecircs e da Igreja Catoacutelica

2 Para Quintiliano (Inst 628) o termo eacutethos que natildeo tem correspondente em latim se vincula ao caraacuteter e agrave moral exigindo que o orador nesse sentido apresente boa iacutendole para que seu discurso seja legitimado

[167]

Segundo consta na Retoacuterica (31404b) de Aristoacuteteles conveacutem ao discurso produzir uma linguagem natildeo

familiar poreacutem clara elaborando-se de uma maneira solene que promova admiraccedilatildeo e convenccedila mediante

as provas de persuasatildeo que residem no ldquocaraacutecter moral do oradorrdquo no proacuteprio discurso e no ldquomodo como se

dispotildeerdquo o ouvinte sendo este levado a sentir emoccedilatildeo diante do enunciado (Rh 11356a) Observa-se na

Retoacuterica a Herecircnio (12) convir ao orador discorrer sobre os elementos instituiacutedos pelo costume e pelas leis

conservando o ldquoassentimento dos ouvintesrdquo e atingindo sua atenccedilatildeo ao estimular o paacutethos3 de modo a

agradaacute-los e persuadi-los a favor de sua causa No caso de Vieira como este mesmo sugere no Sermatildeo da

Sexageacutesima para se converter uma alma por meio de um sermatildeo

haacute de haver trecircs concursos haacute de concorrer o pregador com a doutrina persuadindo haacute de concorrer o ouvinte com o entendimento percebendo haacute de concorrer Deus com a graccedila alumiando (VIEIRA Sermatildeo da Sexageacutesima 31)

Dessa maneira para aproximar o ouvinte do discurso levando-o ao entendimento e agrave emoccedilatildeo e assim

persuadindo-o com o amparo da graccedila divina os recursos retoacutericos satildeo admitidos natildeo enquanto meros

elementos ornamentais mas como constituintes da elegantia sermonis a partir da qual os artifiacutecios claacutessicos

serviam a uma ldquotradiccedilatildeo discursiva professada pela eloquecircncia contrarreformistardquo (SILVA OLIVEIRA 2014

p 58) assim como ao convencimento

No Sermatildeo da Sexageacutesima (43) Vieira nos adverte sobre a relevacircncia da imagem para o aspecto persuasivo

do sermatildeo jaacute que a ldquoalma rende-se muito mais pelos olhos que pelos ouvidosrdquo Imagem nesse sentido seria

ldquoa evocaccedilatildeo pelas palavras de uma percepccedilatildeo sensorialrdquo e um recurso capaz de estimular a imaginaccedilatildeo

(SARAIVA 1980 p 31-2) No discurso de Vieira eacute a imagem amalgamada ao conteuacutedo daquilo que se diz

valendo-se por seu contexto (SARAIVA 1980 p 42) Esta preceptiva eacute proacutepria da Retoacuterica Antiga na

Retoacuterica a Herecircnio (337) o autor afirma ser importante construir imagens capazes de aderir agrave memoacuteria e no

De Oratore (286) Ciacutecero diz ser preciso fazer imagens daquilo que se queira guardar Dessa maneira a

composiccedilatildeo de imagens por meio do enunciado contribui como procedimento persuasivo ao deslocar

componentes textuais de seu aspecto verbal para o natildeo-verbal a partir da visualizaccedilatildeo dos objetos do

discurso

Ainda o auctor ad Herennium (3357) destaca a visatildeo como o sentido mais agudo jaacute que se reteacutem mais

facilmente o que eacute trazido ao espiacuterito a partir do olhar mesmo que o objeto retido natildeo possa ser visto mas

memorizado por meio de imagens o que se vincula agrave fantasia como termo teacutecnico da Retoacuterica ao demandar

ldquoa visualizaccedilatildeo de imagens ausentesrdquo (RODOLPHO 2012 p 127) Segundo Quintiliano (Inst 6229) fantasia

eacute o meio pelo qual as coisas ausentes satildeo representadas na imaginaccedilatildeo com tanta vividez como se as

3 De acordo com Quintiliano (Inst 628-10) paacutethos estaacute associado ao termo latino adfectus (emoccedilatildeo) sendo acionado ao estimular uma reaccedilatildeo emocional no ouvinte comovendo-o

[168]

tiveacutessemos diante do olhar Logo a fantasia parece se relacionar aos mecanismos ecfraacutesticos (RODOLPHO

2012 p 141) como um elemento de assimilaccedilatildeo visual do que estaacute sendo lido o que contribui para o

convencimento do que se enuncia no discurso Quanto agrave enargia Quintiliano (Inst 8361) a identifica como

o procedimento que expotildee diante dos olhos ao tornar claro natildeo soacute enquanto ornato mas em funccedilatildeo da

argumentaccedilatildeo de uma causa pois contribui para que ela pareccedila mais verdadeira (RODOLPHO 2012 p 154)

A ecirccfrase como elemento textual se situa como desencadeador da enargia que seria a figura retoacuterica que

estimula o visual por meio de uma descriccedilatildeo detalhada e viacutevida Rodolpho (2012 p 176) classifica fantasia

como a ldquovisualizaccedilatildeo de uma imagem ausenterdquo enargia como a ldquofigura que dispotildee diante dos olhosrdquo e

ecirccfrase como um ldquoprocesso utilizado para produzir tal resultadordquo o que aponta para a indissociabilidade de

tais elementos

Entendemos assim a ecirccfrase em seu sentido amplo como um fenocircmeno retoacuterico-poeacutetico que realccedila o

escrito por meio de uma descriccedilatildeo verbal detalhada e viacutevida em que se compotildee um quadro do objeto descrito

e a partir da qual se gera a enargia ou evidecircncia figuras de pensamento que conferem vivacidade agrave imagem

verbal (RODOLPHO 2011 p 188) ou ainda como um procedimento elocutivo utilizado na descriccedilatildeo e

evidenciaccedilatildeo de toacutepicos narrativos como os de lugar pessoa espaccedilo fiacutesico accedilotildees ou caraacuteter de modo a

amplificar o discurso sendo ela disposta como ornato instrutivo vinculado agrave narraccedilatildeo (SINKEVISQUE 2013

p 47) Eacute um elemento constituinte da Retoacuterica Antiga que chega com algumas modificaccedilotildees agrave

modernidade4 Na ecirccfrase expotildee-se algo a partir da opiniatildeo comum que se tem sobre aquilo com

ldquoautoridade clareza e nitidezrdquo efetuando-se um discurso engenhoso e digno de encocircmio (HANSEN 2006 p

87) Por meio desse recurso o autor se situa como inteacuterprete de uma cena atribuindo ldquoqualidades elocutivas

agrave imagem descritardquo (HANSEN 2006 p 86) aleacutem de causar a impressatildeo de que essa imagem esteja proacutexima

do receptor gerando assim uma vividez responsaacutevel por articular no destinataacuterio a assimilaccedilatildeo do que eacute

enunciado no discurso (HANSEN 2012 p 171)

Enquanto estrutura mimeacutetica a ecirccfrase se relaciona aos modelos retoacutericos da imitaccedilatildeo de toacutepoi oratoacuterios e

poeacuteticos (HANSEN 2006 p 88) Mimetizando o toacutepos de acordo com a opiniatildeo tida como verdadeira em

relaccedilatildeo agravequilo que se diz o autor faz recorrer agrave memoacuteria do leitor que possivelmente apresenta a mesma

opiniatildeo e se maravilha com o conhecido sendo exposto por meio de um enunciado ecfraacutestico (HANSEN

2006 p 88) Nos sermotildees de Vieira isso acontece natildeo soacute como uma consonacircncia de perspectivas mas

tambeacutem para reforccedilar a opiniatildeo desejada no ouvinte

A educaccedilatildeo claacutessica a que se submeteu o padre Vieira eacute clara em sua obra pois este aleacutem de citar inuacutemeros

autores antigos ndash como Oviacutedio e Luciacutelio (Sermatildeo de Santo Antocircnio 51) ndash e princiacutepios retoacutericos ndash como jaacute

4 A ecirccfrase em seu sentido moderno eacute compreendida como descriccedilatildeo de uma obra de arte (pintura ou escultura) associando-se assim agrave representaccedilatildeo verbal de uma imagem visual (WEBB 2009 p 1)

[169]

demonstrado ndash os incorpora agrave sua proacutepria maneira de escrever Durante a leitura dos sermotildees encontramos

em diversos momentos pequenas ecirccfrases isoladas utilizadas em funccedilatildeo da legitimaccedilatildeo de algum

comentaacuterio do autor em outros ecirccfrases mais extensas que se vinculam agrave temaacutetica do sermatildeo como um

todo A ecirccfrase enquanto figura retoacuterica se situa nesses sermotildees como elemento persuasivo ao deleitar e

orientar a compreensatildeo do leitorouvinte tornando-o favoraacutevel agrave causa defendida pelo autor Eacute portanto

com base nas noccedilotildees retoacutericas da Antiguidade Claacutessica que se verificaratildeo trechos ecfraacutestiscos em sermotildees

do padre Antonio Vieira natildeo os isentando contudo de sua configuraccedilatildeo poliacutetica e religiosa jaacute que a

utilizaccedilatildeo desse procedimento retoacuterico por Vieira se daacute em funccedilatildeo dessas duas instacircncias

Pesquisas literaacuterias atuais sobre o discurso religioso costumam ser escassas segundo Maingueneau (2010

p 100) devido ao enfraquecimento da cultura religiosa o qual faz com que se estudem textos religiosos

apenas para verificar seu entorno e suas interferecircncias sendo descartados seus possiacuteveis aspectos literaacuterios

De acordo com o autor o sermatildeo se encaixa na categoria de ldquoenunciaccedilatildeo monologal oralrdquo (MAINGUENEAU

2010 p 104-105) tendo como objetivo aperfeiccediloar a compreensatildeo da doutrina e provocar uma conduta

adequada por parte dos fieacuteis Em relaccedilatildeo ao pregador este deve dar a impressatildeo de falar naturalmente como

se fosse direcionado pelo Espiacuterito Santo assumindo um eacutethos inspirado (MAINGUENEAU 2010 p 108) Em

qualquer eacutepoca o ldquodispositivo do sermatildeo catoacutelico articula trecircs lugaresrdquo sendo esses o dos ouvintes o do

pregador e acima de todos a niacutevel celestial o da divindade (MAINGUENEAU 2010 p 110)

O Sermatildeo de Santo Inaacutecio (1669) proferido em Lisboa no Real Coleacutegio de Santo Antatildeo se inicia com a

passagem biacuteblica de Lucas 1236 ldquoEt vos similes hominibus expectantibus Dominum suumrdquo5 O sermatildeo expotildee a

multiplicidade de figuras representadas por Santo Inaacutecio fundador da Companhia de Jesus sendo ele

associado a diversos outros santos e considerado ldquosiacutentese de todos os patriarcas das demais ordens

religiosasrdquo segundo afirma Alcir Peacutecora (2001 p 120) ao introduzir o texto Nos dois paraacutegrafos iniciais

tem-se a descriccedilatildeo de Inaacutecio de Loiola ao ler um livro sobre a vida dos Santos dispostos diante dos olhos de

Inaacutecio de Loiola como exemplos a serem seguidos como sugere o proacuteprio Vieira

Toma Inaacutecio o livro nas matildeos lecirc-o ao princiacutepio com dissabor pouco depois sem fastio ultimamente com gosto e dali por diante com fome com acircnsia com cuidado com desengano com devoccedilatildeo com laacutegrimas

[]

Lia Inaacutecio as vidas dos confessores e comeccedilando como eles pelo desprezo da vaidade tira o colete despe as galas e assim como se ia despindo o corpo se ia armando o espiacuterito Lia as vidas dos anacoretas e jaacute suspirava pelos desertos e por se ver metido em uma cova de Manresa onde sepultado acabasse de morrer ao mundo e comeccedilasse a viver ou a ressuscitar a si mesmo Lia as vidas dos doutores e pontiacutefices e ainda que o natildeo afeiccediloaram as mitras nem as tiaras delibera-se a aprender para ensinar e a comeccedilar os rudimentos da gramaacutetica entre os meninos conhecendo que em trinta e trecircs anos de corte e guerra ainda

5 ldquoE sejais voacutes semelhantes aos homens que esperam seu Senhorrdquo (Traduccedilatildeo nossa)

[170]

natildeo comeccedilara a ser homem Lia as vidas ou as mortes valorosas dos maacutertires e com sede de derramar o sangue proacuteprio quem tinha derramado tanto alheio sacrifica-se a ir buscar o martiacuterio a Jerusaleacutem oferecendo as matildeos desarmadas agraves algemas os peacutes aos grilhotildees o corpo agraves masmorras e o pescoccedilo aos alfanjes turquescos Lia finalmente as vidas e as peregrinaccedilotildees dos apoacutestolos e soando-lhe melhor que tudo aos ouvidos as trombetas do Evangelho toma por empresa a conquista de todo o mundo para dilatar a feacute para o sujeitar agrave Igreja e para levantar novo edifiacutecio sobre os alicerces e ruiacutenas do que eles tinham fundado (VIEIRA Sermatildeo de Santo Inaacutecio 11-2)

Santo Inaacutecio enquanto lecirc sobre as vidas dos confessores dos anacoretas dos maacutertires e dos apoacutestolos as

integra agrave sua proacutepria vida reunindo em seu ser as diversas qualidades presentes em outros santos A

enargia neste caso eacute destacada jaacute que essas vidas satildeo expostas diante dos olhos de Santo Inaacutecio o qual ao

formular fantasiosamente imagens associadas aos santos as recolhe como constituintes de si mesmo Lendo

por exemplo sobre os anacoretas imaginava-se no deserto e em uma cova de Manresa e sobre os maacutertires

via-se derramar o proacuteprio sangue Se o proacuteprio Inaacutecio fantasiosamente formulava imagens a partir daquilo

que lia fez o mesmo Vieira com seus ouvintes apropriando-se da ecirccfrase para expor-lhes os atributos dos

santos Sendo Inaacutecio fundador da Companhia de Jesus eacute como se esses diversos atributos fossem da mesma

maneira componentes da proacutepria instituiccedilatildeo o que acabaria por enaltececirc-la aleacutem de dignificar os jesuiacutetas

como um todo Essas questotildees podem ser alcanccediladas ainda no seguinte excerto

Pocircs Deus diante dos olhos a Inaacutecio estampados naquele livro os mais famosos e os mais formosos originais da santidade natildeo de um reino ou de uma idade senatildeo de todas as idades e de toda a Igreja e copiando Inaacutecio em si mesmo de um a humildade de outro a penitecircncia de um a temperanccedila de outro a fortaleza de um a paciecircncia de outro a caridade e de todos e cada um aquela virtude e graccedila em que foram mais eminentes saiu Inaacutecio com quecirc Com um Santo Inaacutecio com uma imagem da mais heroacuteica virtude com uma imagem da mais consumada perfeiccedilatildeo com uma imagem da mais prodigiosa santidade enfim com um santo natildeo semelhante e parecido a um soacute santo senatildeo semelhante e parecido a todos Et vos similes hominibus (VIEIRA Sermatildeo de Santo Inaacutecio 24)

Os santos satildeo colocados diante dos olhos de Inaacutecio de forma que ele possa fantasiosamente imaginar e

assimilar suas virtudes (humildade penitecircncia temperanccedila fortaleza paciecircncia caridade) integrando-as a

si mesmo Dessa maneira eacute Santo Inaacutecio composto por esses diversos atributos enquanto lecirc sobre os santos

estruturando-se assim como imagem que por seu caraacuteter compoacutesito natildeo pode ser representada de uma

uacutenica maneira Enfermo Inaacutecio vem um pintor retrataacute-lo e a cada olhar que lanccedila ao santo o percebe de

maneira distinta tendo de recomeccedilar o desenho ateacute abandonar o trabalho por perceber que Inaacutecio natildeo

possuiacutea uma imagem singular mas representava as diversas figuras que lhe serviram de exemplo

Potildee-se encoberto o pintor olha para Santo Inaacutecio forma ideacuteia aplica os pinceacuteis ao quadro e comeccedila a delinear-lhe as feiccedilotildees do rosto Toma a olhar (coisa maravilhosa) o que agora viu jaacute natildeo era o mesmo homem jaacute natildeo era o mesmo rosto jaacute natildeo era a mesma figura senatildeo outra muito diferente da primeira Admirado o pintor deixa o desenho que tinha comeccedilado lanccedila segundas linhas comeccedila segundo retrato e segundo rosto olha terceira vez (nova maravilha) o segundo original jaacute tinha desaparecido e Santo Inaacutecio estava outra vez transtornado com novo aspecto com novas feiccedilotildees com nova cor com nova proporccedilatildeo com nova figura Jaacute o pintor se pudera desenganar e cansar mas a mesma maravilha o instigava a insistir Insta repetidamente olha e toma a olhar desenha e toma a desenhar mas sendo o

[171]

objeto o mesmo nunca pode tomar a ver o mesmo que tinha visto porque quantas vezes aplicava e divertia os olhos tantos eram os rostos diversos e tantas as figuras novas em que o santo se lhe representava Pasmou o pintor e desistiu do retrato pasmaram todos vendo a variedade dos desenhos que tinha comeccedilado e eu tambeacutem quero pasmar um pouco agrave vista deste prodiacutegio (VIEIRA Sermatildeo de Santo Inaacutecio 31)

Esse incidente eacute retratado por meio de uma ecirccfrase cujo conteuacutedo simboliza a temaacutetica principal do sermatildeo

Temos o uso dos verbos no presente (potildee deixa olha) as caracterizaccedilotildees constantes (encoberto

maravilhosa admirado transtornado) e o encadeamento de accedilotildees Por conta da descriccedilatildeo eacute como se

acompanhaacutessemos o pincel em sua tentativa de retratar Santo Inaacutecio os primeiros traccedilos delineados e as

conseguintes percepccedilotildees de que aquele semblante jaacute natildeo era mais o mesmo por conter um ldquonovo aspecto

com novas feiccedilotildees com nova cor com nova proporccedilatildeo com nova figurardquo Apesar disso o pintor maravilhado

insiste e retornando o olhar a Santo Inaacutecio o percebe ainda assim de maneira diferente ficando a pintura

portanto composta por muacuteltiplas faces as quais representam o proacuteprio caraacuteter multifacetado do santo em

questatildeo jaacute que como nos apresenta Vieira ldquoEra Inaacutecio um mas semelhante a muitos e quem era semelhante

a muitos soacute se podia retratar em muitas figurasrdquo (Sermatildeo de Santo Inaacutecio 32)

Um pouco adiante vemos uma nova descriccedilatildeo de Inaacutecio desta vez em uma cova observado por Ezequiel

que o percebe tambeacutem a partir de uma imagem natildeo uniforme retratando diversos outros santos (Sermatildeo de

Santo Inaacutecio 36) Potildee Ezequiel os olhos em Santo Inaacutecio e primeiramente o vecirc perseguido pensando ser ele

entatildeo Satildeo Clemente Depois enxerga nele Satildeo Jerocircnimo

Toma a olhar para se firmar mais no que via e jaacute a representaccedilatildeo era outra Viu a Inaacutecio em uma cova com uma cruz e uma caveira diante lanccedilado em terra cingido de ciliacutecios chorando infinitas laacutegrimas jejuando vigiando orando disciplinando-se com cadeias de ferro lutando fortemente contra as tentaccedilotildees e ferindo os peitos nus com uma pedra dura persuadiu-se Ezequiel que era S Hierocircnimo

As diversas imagens associadas ao santo satildeo expostas de forma que da mesma maneira que o enxerga

Ezequiel consigamos avistaacute-lo devido aos mecanismos ecfraacutesticos neste trecho acionados a descriccedilatildeo

espacial (cova terra cadeias) os materiais (cruz ferro pedra) o choro (infinitas laacutegrimas) e o encadeamento

de accedilotildees (chorar jejuar vigiar orar disciplinar-se lutar ferir)

Pensa entatildeo Inaacutecio ser Santo Atanaacutesio ao vecirc-lo poreacutem ldquovestido em ornamentos sacerdotais e com um

Menino Jesus vivo nas matildeosrdquo o associa a Santo Simeatildeo Ateacute que o vecirc como Satildeo Martinho ndash ldquotrajado de galas

e plumas tinha junto a si um pobre mendigo tirava o chapeacuteu tirava a capa e despojando-se das proacuteprias

roupas cobria com elas o pobre soldado e despindo-se a si para cobrir o pobrerdquo Estando contudo Inaacutecio

ldquoarrebatado no ar com os braccedilos caiacutedos com o rosto inflamado com os olhos pregados no ceacuteu acusando com

suspiros a brevidade da noite e dando queixas ao solrdquo Ezequiel o percebe como Santo Antocircnio Inaacutecio eacute pois

percebido como Satildeo Lourenccedilo ateacute ser reconhecido

[172]

Viu subitamente um incecircndio que chegava da terra ao ceacuteu e no meio dele a Inaacutecio abrasado em vivas chamas de fogo e zelo de amor de Deus de fogo e zelo de amor do proacuteximo E ainda que Ezequiel parecendo-lhe que seria S Lourenccedilo formou um L foram tantas as transfiguraccedilotildees e tatildeo diversas as figuras em que Inaacutecio variou o rosto o gesto as accedilotildees que acabaram de se desenganar os olhos do profeta como se tinham desenganado os do pintor Ali ficaram ambos os retratos suspensos e imperfeitos e acabou de conhecer o ceacuteu e a terra que o retrato de Inaacutecio senatildeo podia reduzir a uma soacute figura e que natildeo podia ser copiado em uma soacute imagem como os outros santos quem era feito agrave semelhanccedila de todos Et vos similes hominibus

As imagens associadas agraves visotildees que Ezequiel tem de Santo Inaacutecio satildeo descritas de forma que as percebamos

no ato de leitura a partir da pormenorizaccedilatildeo de especificidades tais quais localizaccedilatildeo espacial (cova terra

ceacuteu) vestimentas (plumas chapeacuteu capa) materiais (ferro pedra fogo) ou ateacute mesmo expressotildees faciais do

santo (choro laacutegrimas suspiro) que conferem maior vividez agrave cena

A partir do capiacutetulo quinto do sermatildeo Vieira tece consideraccedilotildees sobre ldquoo verdadeiro retrato de Santo

Inaacuteciordquo sendo apresentadas diversas de suas caracteriacutesticas assim como expostas de quais santos ele as

herdou para se tornar ldquosemelhante sem semelhanterdquo Neste caso ldquoSemelhante porque tomou os gecircneros

sem semelhante porque acrescentou as diferenccedilas Semelhante porque imitou a semelhanccedila de cada um

sem semelhante porque uniu em si as semelhanccedilas de todosrdquo (Sermatildeo de Santo Inaacutecio 55) O discurso se finda

demonstrando como em Santo Inaacutecio foram ajuntadas as perfeiccedilotildees de todos os santos sendo ele ldquoum fruto

que conteacutem em si todos os saboresrdquo (Sermatildeo de Santo Inaacutecio 71) e seu fruto a Companhia de Jesus instituiccedilatildeo

favorecida por todos esses atributos

Outro sermatildeo do padre Vieira o Sermatildeo de Santo Antocircnio (aos Peixes) (1654) pregado em Satildeo Luiacutes do

Maranhatildeo apresenta uma alegoria6 de peixes de forma a demonstrar as caracteriacutesticas boas e ruins que

pode ter um pregador Nele consta primeiramente a passagem de Lucas 513 Vos estis sal terrae (voacutes sois sal

da terra) em referecircncia aos pregadores que sendo sal da terra devem mantecirc-la conservada Dispondo

assim de um discurso alegoacuterico Vieira faz uma apresentaccedilatildeo de viacutecios e virtudes humanas

Diante da proposta de que salguem a terra os pregadores e natildeo se deixando a terra salgar Vieira decide fazer

como Santo Antocircnio ndash que foi sal na terra e no mar ndash e ao inveacutes de pregar agraves pessoas prega aos peixes (Sermatildeo

de Santo Antocircnio aos Peixes 1) Primeiramente Vieira lanccedila o olhar agraves virtudes dos peixes para que

posteriormente possa destacar seus viacutecios Dentre as virtudes pois estatildeo a obediecircncia e a dedicaccedilatildeo agrave

palavra divina (Sermatildeo de Santo Antocircnio aos Peixes 24) assim como o distanciamento dos humanos que Santo

Antocircnio tambeacutem praticara (Sermatildeo de Santo Antocircnio aos Peixes 25-6) Discorre entatildeo Vieira sobre o santo

peixe de Tobias

6 Assumindo a concepccedilatildeo de alegoria vinculada agrave de tropo temos ldquoa transposiccedilatildeo semacircntica de um signo em presenccedila para um signo em ausecircncia A transposiccedilatildeo baseia-se na relaccedilatildeo possiacutevel entre um ou mais traccedilos semacircnticos dos significadosrdquo (HANSEN 1986 p 14)

[173]

Ia Tobias caminhando com o Anjo S Rafael que o acompanhava e descendo a lavar os peacutes do poacute do caminho nas margens de um rio eis que o investe um grande peixe com a boca aberta em accedilatildeo de que o queria tragar Gritou Tobias assombrado mas o anjo lhe disse que pegasse no peixe pela barbatana e o arrastasse para terra que o abrisse e lhe tirasse as entranhas e as guardasse porque lhe haviam de servir muito Fecirc-lo assim Tobias e perguntando que virtude tinham as entranhas daquele peixe que lhe mandara guardar respondeu o Anjo que o fel era bom para sarar da cegueira e o coraccedilatildeo para lanccedilar fora os Democircnios (VIEIRA Sermatildeo de Santo Antocircnio aos Peixes 31)

Nesse trecho percebemos uma descriccedilatildeo do acontecido com Tobias de forma que acompanhemos suas

accedilotildees desde a caminhada ao rio ateacute a captura do peixe cujo fel eacute vinculado agrave cura da cegueira ndash fiacutesica ou

espiritual ndash e agrave expulsatildeo de democircnios Os mecanismos ecfraacutesticos satildeo acionados por meio da localizaccedilatildeo

espacial (margens de um rio) da descriccedilatildeo do peixe (grande boca aberta barbatana) e do encadeamento de

accedilotildees

Adiante Vieira passa a enaltecer a resistecircncia da reacutemora ndash ldquopeixezinho tatildeo pequeno no corpo e tatildeo grande

na forccedila e no poder que natildeo sendo maior de um palmo se se pega ao leme de uma nau da Iacutendiardquo (Sermatildeo de

Santo Antocircnio aos Peixes 32) ndash e a autoridade do torpedo cujos efeitos podemos perceber por meio da

descriccedilatildeo de um quadro que nos eacute apresentado

Estaacute o pescador com a cana na matildeo o anzol no fundo e a boacuteia sobre a aacutegua e em lhe picando na isca o Torpedo comeccedila a lhe tremer o braccedilo Pode haver maior mais breve e mais admiraacutevel efeito De maneira que num momento passa a virtude do peixezinho da boca ao anzol do anzol agrave linha da linha agrave cana e da cana ao braccedilo do pescador (VIEIRA Sermatildeo de Santo Antocircnio aos Peixes 33)

Os mecanismos ecfraacutesticos acionados nesse trecho se vinculam aos verbos conjugados no presente (estaacute

pode passa) responsaacuteveis por conferir maior vividez agrave narraccedilatildeo assim como agraves especificidades espaciais

por conta da localizaccedilatildeo dos objetos (cana na matildeo anzol no fundo boacuteia na aacutegua) e ao excerto final em que

observamos a vibraccedilatildeo do peixe do anzol ao pescador Deve-se elaborar uma pregaccedilatildeo dessa maneira seu

alcance deve se assemelhar agrave vibraccedilatildeo do torpedo Para finalizar o discurso dos louvores Vieira fala sobre

outra espeacutecie de peixe

Navegando de aqui para o Paraacute (que eacute bem natildeo fiquem de fora os peixes da nossa costa) vi correr pela tona da aacutegua de quando em quando a saltos um cardume de peixinhos que natildeo conhecia e como me dissessem que os Portugueses lhe chamavam Quatro-Olhos quis averiguar ocularmente a razatildeo deste nome e achei que verdadeiramente tecircm quatro olhos em tudo cabais e perfeitos

[]

Filosofando pois sobre a causa natural desta Providecircncia notei que aqueles quatro olhos estatildeo lanccedilados um pouco fora do lugar ordinaacuterio e cada par deles unidos como os dois vidros de um reloacutegio de areia em tal forma que os da parte superior olham direitamente para cima e os da parte inferior direitamente para baixo (VIEIRA Sermatildeo de Santo Antocircnio aos Peixes 34-5)

[174]

Temos nesse excerto uma pequena descriccedilatildeo do peixe quatro-olhos que possui distinta visatildeo Quando se

inicia entatildeo o vitupeacuterio aos viacutecios desaprova-se o fato de que os peixes comem uns aos outros isto eacute os

grandes comem os pequenos (Sermatildeo de Santo Antocircnio aos Peixes 41-7) o que tambeacutem acontece entre os

humanos quando prejudicam uns aos outros Em seguida Vieira discorre sobre a ignoracircncia dos peixes

facilmente enganados

Toma um homem do mar um anzol ata-lhe um pedaccedilo de pano cortado e aberto em duas ou trecircs pontas lanccedila-o por um cabo delgado ateacute tocar na aacutegua e em o vendo o peixe arremete cego a ele e fica preso e boqueando ateacute que assim suspenso no ar ou lanccedilado no conveacutes acaba de morrer Pode haver maior ignoracircncia e mais rematada cegueira que esta Enganados por um retalho de pano perder a vida (VIEIRA Sermatildeo de Santo Antocircnio aos Peixes 48)

Nesse trecho tem-se uma narraccedilatildeo que alcanccedila nosso olhar por meio de mecanismos ecfraacutesticos como o uso

do tempo presente (toma lanccedila arremete) as especificidades atribuiacutedas aos objetos (pedaccedilo de pano

cortado e aberto cabo delgado) e o encadeamento de accedilotildees

Em seguida fala Vieira sobre os pegadores parasitas comparados aos aduladores pois ficam na companhia

de peixes grandes a fim de garantirem seu sustento e proteccedilatildeo Ainda sobre eles diz que da mesma forma

que se mantecircm vivos nas proximidades de um tubaratildeo com ele tambeacutem padecem

Rodeia a nau o Tubaratildeo nas calmarias da Linha com os seus Pegadores agraves costas tatildeo cerzidos com a pele que mais parecem remendos ou manchas naturais que os hoacutespedes ou companheiros Lanccedilam-lhe um anzol de cadeia com a raccedilatildeo de quatro Soldados arremessa-se furiosamente agrave presa engole tudo de um bocado e fica preso Corre meia companha a alaacute-lo acima bate fortemente o conveacutes com os uacuteltimos arrancos enfim morre o Tubaratildeo e morrem com ele os Pegadores (VIEIRA Sermatildeo de Santo Antocircnio aos Peixes 54)

A descriccedilatildeo nos eacute oferecida ao olhar devido ao uso de verbos no presente (rodeia lanccedilam engole) agraves

caracteriacutesticas dadas aos pegadores (cerzidos remendos manchas) por estarem tatildeo proacuteximos dos tubarotildees

aos adveacuterbios (furiosamente fortemente) que auxiliam na visualizaccedilatildeo da cena e ao encadeamento de

accedilotildees Enfim de forma a finalizar o discurso repreensivo formando uma imagem Vieira descreve o polvo

como oportunista traidor e hipoacutecrita

O Polvo com aquele seu capelo parece um Monge com aqueles seus raios estendidos parece uma Estrela com aquele natildeo ter osso nem espinha parece a mesma brandura a mesma mansidatildeo E debaixo desta aparecircncia tatildeo modesta ou desta hipocrisia tatildeo santa testemunham constantemente os dois grandes Doutores da Igreja Latina e Grega que o dito Polvo eacute o maior traidor do mar Consiste esta traiccedilatildeo do Polvo primeiramente em se vestir ou pintar das mesmas cores de todas aquelas cores a que estaacute pegado As cores que no Camaleatildeo satildeo gala no Polvo satildeo maliacutecia as figuras que em Proteu satildeo faacutebula no polvo satildeo verdade e artifiacutecio Se estaacute nos limos faz-se verde se estaacute na areia faz-se branco se estaacute no lodo faz-se pardo e se estaacute em alguma pedra como mais ordinariamente costuma estar faz-se da cor da mesma pedra (VIEIRA Sermatildeo de Santo Antocircnio aos Peixes 510)

[175]

O polvo assim nos eacute apresentado por meio de uma ecirccfrase que o descreve enquanto o compara a outros

seres (monge estrela camaleatildeo) destacando suas caracteriacutesticas fiacutesicas de forma metafoacuterica (capelo raios

vestir-se de cores) Os verbos estatildeo no tempo presente de forma a aproximar a descriccedilatildeo do ouvinte e ao

evidenciar a camuflagem do polvo Vieira o faz de maneira com que acompanhemos suas transiccedilotildees

pigmentaacuterias entre verde branco pardo e rochoso

O sermatildeo se finda com uma despedida aos peixes em que se destaca seus privileacutegios por natildeo serem humanos

(Sermatildeo de Santo Antocircnio aos Peixes 6) Mediante um discurso alegoacuterico Vieira se utiliza de particularidades

dos peixes para representar virtudes e viacutecios humanos e a fim de trazer ao olhar dos ouvintes seus dizeres

persuadindo emprega a ecirccfrase enquanto recurso retoacuterico integrante de um modelo de convencimento o

qual busca imitar

De acordo com Hansen (2000 p 322) verifica-se que os princiacutepios que regimentam a doutrina da agudeza

seiscentista recuperam autores claacutessicos e seus ensinamentos sendo esses dispersados tambeacutem atraveacutes da

ordem dos jesuiacutetas da qual Vieira era integrante A retomada agrave Antiguidade Claacutessica era convenccedilatildeo entre

autores dos seacuteculos XVII que formulavam seus discursos em retorno agrave Retoacuterica Antiga O padre Antonio

Vieira retoma diversos autores e artifiacutecios antigos incorporando-os agrave sua escrita de forma a convencer seu

auditoacuterio a favor das causas do Estado Portuguecircs e da Igreja Catoacutelica

Deste modo deve-se considerar que as formas de expressatildeo do seacuteculo XVII atuam alinhadas aos topoi teoloacutegicos sem assentir por outro lado que o olhar pragmaacutetico as restrinja evitando assim que natildeo se eliminem certas arguacutecias produzidas especialmente por Vieira dentro dos sermotildees (SILVA OLIVEIRA 2014 p 55)

Vieira para persuadir em favor de suas causas vinculadas ao Estado portuguecircs e agrave Igreja Catoacutelica lanccedilou

matildeo dos ditames retoacutericos e utilizou a ecirccfrase enquanto recurso capaz de gerar enargia por serem os olhos

o meio pelo qual se rende uma alma Assim ldquosobem os pregadores ao puacutelpito potildeem-nos diante dos olhos

tantas vezes a Lei de Deusrdquo (Sermatildeo da Quinta Quarta-Feira da Quaresma 34)

Os sermotildees Sermatildeo de Santo Inaacutecio (1669) e Sermatildeo de Santo Antocircnio (aos Peixes) (1654) apresentam

descriccedilotildees ecfraacutesticas dispostas no discurso em funccedilatildeo de uma proposiccedilatildeo No Sermatildeo de Santo Inaacutecio temos

ecirccfrases mais isoladas e longas utilizadas para dignificar Santo Inaacutecio e a Companhia de Jesus perante outras

instituiccedilotildees religiosas No Sermatildeo de Santo Antocircnio (aos Peixes) as ecirccfrases satildeo menores e dispersas por todo

o discurso de forma a apresentar alegoricamente os viacutecios e as virtudes humanas que podem atingir os

pregadores

Os trechos ecfraacutesticos apresentados para aleacutem de uma ornamentaccedilatildeo sermoniacutestica satildeo evidenciados como

integrantes da argumentaccedilatildeo de Vieira ldquoDistanciando-nos das leituras anacrocircnicas eacute possiacutevel perceber que

o ornato linguiacutestico natildeo eacute portanto o alvo da desaprovaccedilatildeo de Vieirardquo (SILVA OLIVEIRA 2014 p 58) mas

[176]

um recurso utilizado para atingir seu leitorouvinte sendo que um dos artifiacutecios linguiacutesticos manipulados por

Vieira eacute a ecirccfrase cuja vividez descritiva aproxima o escrito do destinataacuterio e fortalece a argumentaccedilatildeo

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VIEIRA A Sermatildeo de Santo Antocircnio (aos Peixes) In Sermotildees Organizaccedilatildeo de A Peacutecora Satildeo Paulo Hedra 2001 p 315-340 Tomo 1

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O Republicanismo claacutessico e a Cultura Poliacutetica na Revoluccedilatildeo Americana (1775-1783)

Julio Morguetti Neto

jmorguettinetogmailcom

Este texto foi desenvolvido a partir de um estudo em que

analisamos o desenvolvimento do pensamento poliacutetico de John

Adams (1735-1826) um dos pais fundadores do processo

revolucionaacuterio americano e idealizador de um projeto poliacutetico

republicano pautado em concepccedilotildees que remontam aos ideais

claacutessicos romanos Apoiamos nossa pesquisa nos modelos

propostos pelos Estudos da Recepccedilatildeo uma corrente teoacuterica que

visa discutir como determinadas ideias conceitos e interpretaccedilotildees

discutidas e localizadas em uma dada temporalidade foram

transmitidas recebidas e apropriadas em um contexto diverso da

sua proposiccedilatildeo inicial

Diante disso nosso intuito eacute analisar como o pensamento do

poliacutetico e orador romano Marco Tuacutelio Ciacutecero (106-43 aC) eacute

resgatado e apropriado na elaboraccedilatildeo das concepccedilotildees poliacuteticas de

John Adams no contexto do processo da Revoluccedilatildeo Americana

Propomo-nos a discutir como o pensamento claacutessico permanecia

relevante ao debate poliacutetico do momento e como Adams pauta suas

concepccedilotildees sobre republicanismo e o desenvolvimento das

atividades puacuteblicas e ciacutevicas que deveriam nortear os rumos da

nascente repuacuteblica americana

Para analisar o pensamento de Adams e a influecircncia de Ciacutecero na

sua trajetoacuteria poliacutetica exploramos a publicaccedilatildeo epistolar do

[179]

advogado americano principalmente as cartas trocadas com sua esposa Abigail Adams e com Thomas

Jefferson outro dos fundadores do processo revolucionaacuterio sendo ainda companheiro rival e amigo de

Adams Buscando uma delimitaccedilatildeo melhor de nosso corpus de anaacutelise utilizamos as correspondecircncias com

Abigail que foram produzidas desde o momento da participaccedilatildeo no Congresso Continental da Filadeacutelfia em

1775 ateacute o final de seu mandato enquanto presidente em 1801 Jaacute as correspondecircncias com Jefferson satildeo

aquelas trocadas a partir de 1812 quando ambos retomam a amizade apoacutes o fim do mandato de Jefferson

e continuam a trocar cartas ateacute o fim de suas vidas em 1826 O paralelo que traccedilamos com Ciacutecero se daacute

tambeacutem atraveacutes das cartas Devido agrave vasta produccedilatildeo do orador romano utilizamos como apoio para

criarmos uma anaacutelise da recepccedilatildeo de suas ideias as epiacutestolas Ad familiares em que Ciacutecero se comunicava com

a esposa o filho e o irmatildeo e as Ad Atticum nas quais Ciacutecero se comunica com seu amigo Tito Pompoacutenio Aacutetico

Por fim apresentamos algumas proposiccedilotildees pensadas a partir do conceito de Cultura Poliacutetica e guiamos

nosso debate baseados nas formulaccedilotildees inicialmente desenvolvidas por Serge Berstein (1992) Tecemos

ainda algumas propostas de abordagem sobre esse conceito como possibilidades de estudo sobre a

formaccedilatildeo do pensamento poliacutetico republicano nos Estados Unidos e o desenvolvimento de uma cultura

poliacutetica americana

A Revoluccedilatildeo Americana eacute um evento de grande impacto nos rumos do pensamento poliacutetico durante o seacuteculo

XVIII Os colonos americanos

sabiam que eram um experimento mas estavam confiantes de que pelos proacuteprios esforccedilos

poderiam refazer sua cultura recriar o que eles pensavam e acreditavam Sua Revoluccedilatildeo

contou a eles que o nascimento de uma pessoa natildeo limitaria o que ela poderia se tornar

Repentinamente tudo parecia possiacutevel Os liacutederes Revolucionaacuterios se deparavam com a

incriacutevel tarefa de criar fora de sua heranccedila britacircnica sua proacutepria identidade nacional Eles

tiveram a oportunidade de realizar um mundo ideal de colocar em praacutetica os princiacutepios

amplos e tolerantes do Iluminismo [] (WOOD 2009 p 3-4)1

Situando-se no continente americano e sendo uma naccedilatildeo ainda natildeo reconhecida perante os Estados

europeus o pensamento poliacutetico norte-americano permanecia agraves margens das discussotildees e debates centrais

como o pensamento Iluminista mas isso natildeo significava que essas ideias natildeo pudessem escapadas da Europa

alcanccedilar tambeacutem a Ameacuterica

1 ldquoAmericans knew they were an experiment but they were confident they could by their own efforts remake their

culture re-create what they thought and believed Their Revolution told them that peoplersquos birth did not limit what they

might become

Suddenly everything seemed possible The Revolutionary leaders were faced with the awesome task of creating out of

their British heritage their own separate national identity They had an opportunity to realize an ideal world to put the

broadminded and tolerant principles of the Enlightenment into practice [hellip]rdquo

[180]

Uma das principais obras historiograacuteficas a aprofundar os fatores que levaram ao rompimento dos colonos

com sua metroacutepole e o desenvolvimento de um pensamento poliacutetico colonial americano foi a do historiador

Bernard Bailyn The ideological origins of the American Revolution (1967) Ele analisa a produccedilatildeo panfletaacuteria

desenvolvida nas Treze Colocircnias durante o seacuteculo XVIII passando pelos eventos que levaram a eclosatildeo do

conflito com a Inglaterra e chegando ateacute a formaccedilatildeo da constituiccedilatildeo americana

Sua tese eacute centrada em como esses panfletos representaram as origens ideoloacutegicas da Revoluccedilatildeo Americana

(BAILYN 1992 p x) Esse movimento natildeo foi espontacircneo ou fruto de uma situaccedilatildeo momentacircnea que acabou

se desenvolvendo em um conflito

O argumento as reivindicaccedilotildees e contra reivindicaccedilotildees os medos e as apreensotildees que

preenchiam os panfletos cartas jornais e papeacuteis do estado durante os anos revolucionaacuterios

foram de fato ouvidos atraveacutes do seacuteculo O problema natildeo aparecia para mim ser por que

aconteceu uma Revoluccedilatildeo mas sim como um explosivo amaacutelgama poliacutetico e ideoloacutegico

primeiro veio a ser agravado por que permaneceu tatildeo potente durante anos de

tranquilidade superficial e por que finalmente foi detonado no momento em que foi

(BAILYN 1992 p xv)2

O pensamento que motivou as accedilotildees e insatisfaccedilotildees coloniais foram sendo fomentados nas colocircnias pelo

proacuteprio pensamento poliacutetico inglecircs Isso se deve aos desdobramentos posteriores agrave Revoluccedilatildeo Gloriosa

(1688-1689) que efetivou a supremacia do Parlamento sobre os desiacutegnios do monarca intensificando os

debates acerca das novas disposiccedilotildees poliacuteticas que se apresentavam Para Bailyn a influecircncia do

pensamento poliacutetico inglecircs ndash principalmente do pensamento mais radical desenvolvido durante a Guerra

Civil Inglesa (1642-1649) e o periacuteodo Republicano inglecircs (1649-1660) ndash e as criacuteticas de poliacuteticos e opositores

ao governo britacircnico da virada para o seacuteculo XVIII (BAILYN 1992 p 34) seriam as principais influecircncias para

o movimento revolucionaacuterio americano

Precisamos evidenciar que mesmo que esse pensamento poliacutetico de origem inglesa seja a principal fonte de

inspiraccedilatildeo Bailyn natildeo deixa de citar outras influecircncias como o pensamento religioso de matriz puritana

(BAILYN 1992 p 32) os pensadores iluministas muito citados e discutidos nas rodas europeias (BAILYN

1992 p 26) e claro a influecircncia constante do pensamento claacutessico provenientes de textos gregos e latinos

(BAILYN 1992 p 23)

Essa obra de Bernard Bailyn se torna uma das bases para a compreensatildeo do pensamento poliacutetico norte-

americano sendo assim as prerrogativas dessas formulaccedilotildees poliacuteticas se encontram no radicalismo do

2 ldquoThe argument the claims and counter-claims the fears and apprehensions that fill the pamphlets letters newspapers

and state papers of the Revolutionary years had in fact been heard throughout the century The problem no longer

appeared to me to be simply why there was a Revolution but how such an explosive amalgam of politics and ideology

first came to be compounded why it remained so potent through years of surface tranquility and why finally it was

detonated when it wasrdquo

[181]

seacuteculo XVII chegando ateacute os opositores poliacuteticos no parlamento inglecircs do iniacutecio do seacuteculo XVIII Sem deixar

de constatar as influecircncias de outras correntes de pensamento que se apresentavam na geraccedilatildeo

revolucionaacuteria como as abstraccedilotildees iluministas a teologia puritana e as analogias claacutessicas (BAILYN 1992 p

53-54)

As anaacutelises de Bailyn sobre o uso dos panfletos trouxeram uma nova perspectiva para o debate da Histoacuteria

Poliacutetica dos Estados Unidos incentivando outros projetos que trabalhassem essa temaacutetica aleacutem de buscar

nas influecircncias inglesas uma prerrogativa para secessatildeo colonial Sob a luz da contribuiccedilatildeo que buscamos

desenvolver com nossa pesquisa trazendo as discussotildees que tecircm crescido acerca dos Estudos da Recepccedilatildeo

(MARTINDALE THOMAS 2006) suas aplicaccedilotildees dentro do contexto da Histoacuteria ameacuterica e pautados na

influecircncia da tradiccedilatildeo claacutessica (KALLENDORF 2007) apresentamos a criacutetica feita por Carl J Richard em sua

obra The founders and the classics Greece Rome and the American Enlightenment (1995) sobre o texto de

Bernard Bailyn

Richard alega que deixar a influecircncia do pensamento claacutessico fora das anaacutelises das origens do pensamento

poliacutetico americano eacute negligenciar um relevante aspecto de composiccedilatildeo social sobre a produccedilatildeo histoacuterica dos

Estados Unidos e dos principais membros da geraccedilatildeo revolucionaacuteria A criacutetica de Richard (1995 p 2) pode

ser definida sob duas premissas equivocadas de Bailyn

Uma foi a da total dependecircncia dos pais fundadores3 sobre os Whigs4 britacircnicos do seacuteculo

XVII e iniacutecio do XVIII em relaccedilatildeo agrave interpretaccedilatildeo da histoacuteria antiga motivado pelo

conhecimento claacutessico daqueles ser ldquosuperficialrdquo Existem evidecircncias abundantes de que

Thomas Jefferson John Adams James Madison James Wilson John Dickinson Patrick

Henry e numerosos outros fundadores leram e interpretaram obras claacutessicas por eles

mesmos Segundo Bailyn assume que a interpretaccedilatildeo Whig da histoacuteria antiga foi totalmente

proacutepria de seus membros Mas de fato essa interpretaccedilatildeo era largamente (ou totalmente)

a criaccedilatildeo de historiadores gregos e romanos aristocratas nostaacutelgicos descontentes pelas

disputas monaacuterquicas e democraacuteticas sobre o poder de suas classes Permanentes no cacircnon

claacutessico que dominou o mundo ocidental desde a Idade Meacutedia esses historiadores claacutessicos

foram efetivamente a uacutenica fonte de conhecimento sobre a histoacuteria antiga disponiacutevel no

seacuteculo XVIII5

3 Forma comum utilizada pela historiografia americana para chamar os principais envolvidos no processo de

Independecircncia das Treze Colocircnias e na formaccedilatildeo das estruturas poliacuteticas da nascente repuacuteblica 4 Uma das maneiras de denominar o grupo mais liberal de poliacuteticos presentes no parlamento inglecircs apoacutes a consolidaccedilatildeo

da Revoluccedilatildeo Gloriosa (1688-1689) Esse termo eacute muito utilizado na cultura anglo-saxocircnica para enfatizar grupos

liberais 5 ldquoOne was that the founders were entirely dependent upon seventeenth ndash and early eighteenth - century British Whigs

for their interpretation of ancient history because their own classical learning was ldquosuperficialrdquo But there is abounding

evidence that Thomas Jefferson John Adams James Madison James Wilson John Dickinson Patrick Henry and

numerous other founders read and interpreted classical works for themselves Second Bailyn assume that the Whig

interpretation of ancient history was entirely their own creation But in fact this interpretation was largely (though not

entirely) the creation of Greek and Roman historians nostalgic aristocrats disgruntled by monarchical and democratic

[182]

A obra de Bailyn considera a influecircncia do pensamento claacutessico apenas como um apoio como uma

sustentaccedilatildeo do pensamento radical inglecircs do seacuteculo XVII Mesmo tendo acertado que o pensamento inglecircs

norteia alguns temas e assuntos priorizados pelos revolucionaacuterios ele falha ao natildeo identificar que os

proacuteprios escritos claacutessicos foram os influenciadores do pensamento radical inglecircs

O pensamento claacutessico passou pelo que poderiacuteamos chamar de ldquoPermanecircnciardquo ou ldquoRecepccedilatildeordquo durante

seacuteculos chegando ao pensamento humanista do periacuteodo renascentista moderno e servindo de modelo para

os debates nos seacuteculos seguintes Na visatildeo de Charles Martindale (2006 p 1-2) podemos trabalhar com a

Recepccedilatildeo em diversas aacutereas das humanidades

Recepccedilatildeo dentro dos claacutessicos engloba todos os trabalhos relacionados com o material poacutes-

claacutessico muito do qual em outros departamentos de humanidades podem ser descritos com

outras denominaccedilotildees por exemplo histoacuteria acadecircmica histoacuteria do livro estudos de cinema

e miacutedia histoacuteria da performance estudos de traduccedilatildeo resposta do leitor e criacutetica da voz

pessoal estudos poacutes-coloniais medievais ou de neolatim []6

Os pensadores gregos e latinos se configuraram como canocircnicos na literatura europeia sendo identificados

como siacutembolos de virtude e de elevaccedilatildeo social por aqueles que podiam adentrar aos ciacuterculos de debates

Os studia humanitatis visavam natildeo apenas o domiacutenio de um estilo especiacutefico do Latim mas a

reivindicada superioridade dos antigos romanos sobre os estrangeiros (barbari) e na

Renascenccedila dos letrados sobre os natildeo-letrados ndash uma superioridade que era de uma soacute vez

econocircmica social e cultural (SCHEIN 2008 p 78)7

Em suma um texto natildeo fica limitado ao seu periacuteodo histoacuterico jaacute que a complexa cadeia de recepccedilotildees faz com

que esse texto seja compreendido de diversas maneiras atraveacutes da Histoacuteria (MARTINDALE 2006 p 4)

As matrizes para o desenvolvimento de um pensamento poliacutetico americano satildeo influenciadas ou ateacute mesmo

adaptadas pelo pensamento poliacutetico claacutessico atraveacutes por exemplo das noccedilotildees de democracia e da repuacuteblica

romana Ideias de organizaccedilatildeo poliacutetica virtude liberdade e representatividade permeiam por toda a

literatura revolucionaacuteria americana trazendo como modelos as concepccedilotildees da antiguidade Os conceitos

natildeo se mantiveram estaacuteveis por todos esses seacuteculos outras linhas e vertentes de epistemologia se

encroachments upon the power of their class Fixtures in the classical canon which had dominated the western world

since the Middle Ages these classical historians were virtually the sole source of the knowledge concerning ancient

history available in the eighteenth centuryrdquo 6 ldquoReception within classics encompasses all work concerned with postclassical material much of which in other

humanities departments might well be described under different rubrics for example history of scholarship history of

the book film and media studies performance history translation studies reader response and personal voice criticism

postcolonial studies medieval and Neo-Latin []rdquo 7 ldquoThe studia humanitatis aimed not only at mastery of a particular style of Latin but at a superiority claimed by the

ancient Romans over foreigners (barbari) and in the Renaissance by the educated over the uneducated ndash a superiority

that was at once economic social and culturalrdquo

[183]

desenvolveram e como natildeo haacute produccedilatildeo de discurso sem outras vozes sobrepostas novas linhas e correntes

surgiram e influenciaram outras uma vez que se pode ldquocompreender o discurso como objeto cultural

produzido a partir de certas condicionantes histoacutericas em relaccedilatildeo dialoacutegica com outros textosrdquo (FIORIN

2016 p 10)

Quando utilizamos o conceito de Recepccedilatildeo natildeo o fazemos de maneira estaacutetica como se o seu sentido fosse

transmitido de uma maneira imutaacutevel e como se aos colonos daquela eacutepoca bastasse compreender o seu

significado e aplicaacute-lo Trabalhamos os Estudos da Recepccedilatildeo de uma forma ativa por se tratar de um conceito

que tal qual o de ldquotradiccedilatildeordquo natildeo pode ser enclausurado de uma modo inflexiacutevel pois

No estudo da recepccedilatildeo assim como em qualquer lugar ldquotradiccedilatildeordquo natildeo deve ser invocada

defendida ou atacada como uma ideia Platocircnica mas deve ser vista como uma ferramenta

flexiacutevel para sugerir novas perspectivas em diferentes ocasiotildees e formas O conceito estaacute aiacute

para ser utilizado (BUDELMAN HAUBOLD 2008 p 25)8

Nosso objeto de anaacutelise se concentra sobre a figura de John Adams um dos pais fundadores dos Estados

Unidos da Ameacuterica indiviacuteduo extremamente atuante nos eventos que levaram agrave separaccedilatildeo das colocircnias e ao

desenvolvimento das estruturas governamentais propostas na constituiccedilatildeo de 1787 Adams eacute um

personagem histoacuterico complexo como muitos dos pais fundadores Sua trajetoacuteria poliacutetica eacute vasta sendo um

renomado advogado de Boston e criacutetico agraves posturas inglesas frente agraves colocircnias como quando escreveu A

dissertation on the Canon and the Feudal law e Instructions of the town of Braintree to their representatives ambas

no ano de 1765 advertindo sobre os perigos da retirada de direitos e do principal fundamento da

constituiccedilatildeo inglesa o consenso (THOMPSON 2000 p 28) Adams foi um membro importante do

Congresso Continental da Filadeacutelfia realizado no ano de 1775 com o intuito de organizar as representaccedilotildees

das colocircnias frente aos ingleses Ele foi um dos principais articuladores da aprovaccedilatildeo da Declaraccedilatildeo de

Independecircncia sendo que suas falas foram consideradas providenciais para o convencimento dos outros

representantes Adams registrou em seu diaacuterio que sua eloquecircncia nesses debates seria comparada somente

a de Demoacutestenes durante as Filipiacutecas9 e aos discursos de Ciacutecero nas Catilinaacuterias10 (FARREL 1989 p 520)

Durante os anos da Guerra de Independecircncia Adams serviu de diplomata na Franccedila Holanda e

posteriormente para os acordos de paz Inglaterra Foi eleito vice-presidente de George Washington por oito

anos sendo eleito em seguida como segundo presidente dos Estados Unidos Nesse momento sua carreira

8 ldquoIn the study of reception as indeed elsewhere lsquotraditionrsquo should not be invoked defended or attacked as a Platonic

idea but should be seen as a pliable tool for suggesting new perspectives in different ways on different occasions The

concept is there for the takingrdquo 9 Um conjunto de discursos proferidos por Demoacutestenes contra Felipe II da Macedocircnia conclamando os atenienses a

lutar contra ele jaacute que representava uma ameaccedila agrave Greacutecia 10 Uma seacuterie de quatro discursos ceacutelebres de Ciacutecero pronunciados em 63 aC Satildeo uma denuacutencia contra a conspiraccedilatildeo

pretendida pelo senador Luacutecio Seacutergio Catilina

[184]

poliacutetica encontra uma seacuterie de entraves Adams perde a disputa presidencial para Thomas Jefferson e no

ano de 1812 decide se retirar da vida puacuteblica John Adams11 dedicou sua vida aos debates puacuteblicos e

poliacuteticos formando junto com uma seacuterie de outros homens a chamada geraccedilatildeo revolucionaacuteria como aponta

a obra Revolutionary Characters What made the founders different (2006) de Gordon Wood

A geraccedilatildeo revolucionaacuteria foi o ponto de partida para o desenvolvimento da repuacuteblica americana e

consequentemente de uma corrente poliacutetica que se estruturou a partir de meados do seacuteculo XVIII e

continuou durante o XIX Essa corrente de pensamento poliacutetico tem como fundamento as concepccedilotildees da

repuacuteblica romana Para essa geraccedilatildeo a Repuacuteblica Romana

representa o primeiro exemplo em nossa histoacuteria de um governo constitucional operando

em larga escala durante seacuteculos Teve que lidar com problemas e dilemas poliacuteticos e sociais

sem precedentes em estilo e magnitude Produziu novos modelos de lei de governo que

permanentemente afetou as caracteriacutesticas das democracias ocidentais Seu legado eacute uma

das mais duradouras influecircncias da antiguidade (MITCHEL 2001 p 128)12

A construccedilatildeo desse pensamento poliacutetico norte-americano e sua fundaccedilatildeo passam pelos elementos claacutessicos

devido ao processo de formaccedilatildeo educacional O sistema de ensino do seacuteculo XVIII americano eacute a base dessa

influecircncia sendo que sua origem se relaciona aos sistemas desenvolvidos pelos ingleses durante o seacuteculo

XVI permanecendo imutaacuteveis ateacute o seacuteculo XIX (MAHONEY 1958 p 93 RICHARD 1995 p 12)

O acesso agrave educaccedilatildeo naquela eacutepoca natildeo era algo simples dava-se de uma maneira privada muitas vezes com

um tutor ou escolas gramaticais e posteriormente poderia ser aprimorado nas universidades sendo a base

de todos os estudos o conhecimento e aprendizado do latim e em alguns casos do grego (RICHARD 1995

p 13) Muitos dos pais fundadores passaram por esses mesmos sistemas educacionais O curriacuteculo era

basicamente o mesmo sendo a retoacuterica e a oratoacuteria dois pontos centrais na difusatildeo das obras claacutessicas desde

o periacuteodo colonial combinando-se com o desenvolvimento de uma cultura americana e levando agrave

compactaccedilatildeo dos valores poliacuteticos e sociais que viriam a ser discutidos nos anos revolucionaacuterios como

aponta James Farrell (2011 p 416)

Teoria e praacutetica da retoacuterica claacutessica eram fundamentadas na suposiccedilatildeo de que um discurso

puacuteblico eloquente era uma necessidade praacutetica para uma sociedade livre Tais modelos e

11 Para um aprofundamento maior sobre a vida e os feitos de John Adams conferir a obra de McCullough (2001) 12 ldquoIn summary the Roman Republic represents the first example in our history of constitutional government operated

on a grand scale and extending over centuries It had to contend with social and political issues and dilemmas

unprecedented in kind and in magnitude It produced new modes of law and government that have permanently affected

the character of Western democracies Its legacy is one of the most enduring influences of antiquityrdquo

[185]

doutrinas apelavam para uma comunidade poliacutetica construiacuteda sobre a afirmaccedilatildeo de uma

independecircncia nacional e liberdade pessoal13

A influecircncia das obras claacutessicas era perpetrada por diversas razotildees fossem por motivos acadecircmicos

poliacuteticos ou ateacute mesmo pelo lazer elas eram comuns e faziam parte de um certo condicionamento social

dessa eacutepoca Toda a geraccedilatildeo revolucionaacuteria foi influenciada de maneira direta ou indireta ativa ou passiva

por obras da antiguidade grega e latina Dessa maneira as interpretaccedilotildees desses homens sobre os conceitos

e ideias principalmente acerca da repuacuteblica romana influenciaram as construccedilotildees poliacuteticas que se

desenvolveram nas Treze Colocircnias nos anos seguintes Essa construccedilatildeo social levou os envolvidos nos

eventos revolucionaacuterios tendo eles reconhecido isso ou natildeo agrave ideia de que

eles mesmos foram condicionados pela sua sociedade como um todo pelo sistema

educacional em particular a venerar os claacutessicos Os fundadores foram condicionados ainda

crianccedilas a associar as obras de certos autores republicanos agrave virtude social e pessoal Esse

condicionamento social foi tatildeo bem-sucedido que deixou muitos dos fundadores incapazes

de imaginar o ensinamento da virtude independente do ensino dos claacutessicos e

consequentemente fez a transmissatildeo dessa heranccedila claacutessica um assunto urgente Ateacute

mesmo na ldquoEra da Razatildeordquo a tradiccedilatildeo triunfou (RICHARD 1995 p 38)14

Importante salientar apoacutes essa anaacutelise de Richard que tendemos a enxergar o termo ldquotradiccedilatildeordquo sendo

utilizado como uma fonte de conhecimentos acessiacuteveis aos criadores das configuraccedilotildees poliacuteticas americanas

ndash como jaacute propomos com Budelman e Haubold (2008 p 25) ndash e natildeo como uma acepccedilatildeo fechada que foi

transmitida atraveacutes dos seacuteculos de uma maneira imutaacutevel ateacute ser compreendida em sua essecircncia pelos pais

fundadores

O foco de nossa pesquisa nos leva a abordar os caminhos da Recepccedilatildeo dos pensamentos claacutessicos na

Revoluccedilatildeo Americana com o foco direcionado para a influecircncia de Ciacutecero em John Adams Tendo visto o

desenvolvimento dessa base claacutessica no desenrolar de um pensamento poliacutetico americano refletimos sobre

o desdobrar de uma Cultura Poliacutetica que se forma nos Estados Unidos no seacuteculo XVIII Ao pensarmos nessa

cultura poliacutetica estamos nos baseando nas anaacutelises iniciadas por Serge Berstein (1992) de forma que

pensemos as possibilidades de aplicaccedilatildeo e ampliaccedilatildeo das anaacutelises sobre a formaccedilatildeo histoacuterica de um

pensamento poliacutetico proacuteprio norte-americano

13 ldquoClassical rhetorical theory and practice were grounded on the assumption that eloquent public speech was a practical

necessity in a free society Such doctrines and models appealed to a political community built upon the assertion of

national independence and personal libertyrdquo 14 ldquo[hellip] That they themselves had been conditioned by their society as a whole and by their educational system in

particular to venerate the classics The founders were conditioned as children to associate the works of certain ancient

republican author with personal and societal virtue This social conditioning was so successful that it left many of the

founders unable to imagine the teaching of virtue independent of the teaching of the classics and consequently made

the transmission of the classical heritage an urgent concern Even in the lsquoAge of Reasonrsquo tradition triumphedrdquo

[186]

Ao traccedilarmos uma linha da construccedilatildeo das definiccedilotildees sobre Cultura Poliacutetica podemos partir das deacutecadas de

1950 e 1960 nas quais o conceito passa a ser empregado com a motivaccedilatildeo de que era preciso ldquocompreender

melhor a origem dos sistemas poliacuteticos democraacuteticos partindo da percepccedilatildeo da insuficiecircncia dos paradigmas

iluministas que viam o homem como ator poliacutetico racionalrdquo (MOTTA 2009 p 16) Esses questionamentos

partem do campo das ciecircncias sociais tendo Gabriel Almod e Sidney Verba como seus principais porta-vozes

nesse contexto O conceito de Cultura Poliacutetica passa a ser utilizado pelos historiadores por volta dos anos

1980 e 1990 com os debates em torno das criacuteticas feita agrave escola dos Annales O historiador Reneacute Remond

em sua obra Por uma Histoacuteria Poliacutetica (1996) propotildee um retorno do campo do poliacutetico para as anaacutelises

historiograacuteficas portanto

esse movimento de recuperaccedilatildeo e renovaccedilatildeo da histoacuteria poliacutetica implicou a incorporaccedilatildeo de

novas ideias e conceitos que afirmavam a natildeo limitaccedilatildeo do poliacutetico ao fato agrave dimensatildeo do

tempo curto Eacute justamente neste sentido que a apropriaccedilatildeo do conceito de cultura poliacutetica eacute

apresentada como ldquorenovadorardquo para a histoacuteria poliacutetica na medida em que lhe possibilita

superar o fato e entrar em contato com fenocircmenos duradouros e estaacuteveis no tempo

(NEacuteSPOLI 2015 p 363)

Essa nova perspectiva natildeo pretendia se manter atrelada aos assuntos pertinentes agraves questotildees do Estado ou

das suas instituiccedilotildees passando assim a abordar as massas as associaccedilotildees civis os meios de comunicaccedilatildeo

enfim o poder definido principalmente em suas bases sociais e culturais (NEacuteSPOLI 2015 p 365

RONSANVALLON 1995)

Essas novas perspectivas abrem a exploraccedilatildeo do campo do poliacutetico e no centro dessas novas abordagens

estaacute o conceito de Cultura Poliacutetica Para nos aprofundarmos nas abordagens sobre esse conceito e

debatermos possibilidades de uma breve anaacutelise sobre o contexto norte-americano trabalhamos com a

definiccedilatildeo proposta por Serge Berstein (2009 p 31) de que

Os historiadores entendem por cultura poliacutetica um grupo de representaccedilotildees portadoras de

normas e valores que constituem a identidade das grandes famiacutelias poliacuteticas e que vatildeo muito

aleacutem da noccedilatildeo reducionista de partido poliacutetico Pode-se concebecirc-la como uma visatildeo global

do mundo e de sua evoluccedilatildeo do lugar em que ocupa o homem e tambeacutem da proacutepria

natureza dos problemas relativos ao poder visatildeo que eacute partilhada por um grupo importante

da sociedade num dado paiacutes e num dado momento da sua histoacuteria

Eacute uma definiccedilatildeo bastante ampla sobre as possibilidades de se trabalhar com tal conceito por isso algumas

ressalvas precisam ser feitas A noccedilatildeo de Cultura Poliacutetica estaacute em conexatildeo com a cultura global de uma

sociedade poreacutem natildeo se confunde totalmente com ela jaacute que seu campo de accedilatildeo se pauta sobre as questotildees

poliacuteticas (BERSTEIN 1998 p 352) Ao utilizarmos essa conceituaccedilatildeo natildeo podemos cair na perspectiva de

alcanccedilar uma cultura poliacutetica nacional No interior de um paiacutes existe uma gama de culturas poliacuteticas que

possuem valores compartilhados mas representam uma variedade de discursos em disputa (BERSTEIN

1998 p 354)

[187]

Uma outra ressalva que devemos fazer eacute natildeo pensarmos no conceito como uma categoria de hierarquizaccedilatildeo

entre as culturas poliacuteticas dentro de um paiacutes ou ateacute mesmo em comparaccedilatildeo com outros Principalmente

quando colocamos em perspectiva uma anaacutelise que pode nos encaminhar para uma visatildeo em que as

democracias ocidentais seriam modelos idealizados e representantes da modernizaccedilatildeo das sociedades

como se existisse uma escala entre as diversas concepccedilotildees poliacuteticas e o modelo democraacutetico ocidental

representasse seu objetivo uacuteltimo (BERSTEIN 1998 p 352)

Por ser um conceito com uma acepccedilatildeo bem diversa natildeo podemos pensar que as diferentes culturas poliacuteticas

dentro de uma sociedade satildeo estanques ldquocomo se estivessem encerradas dentro de si mesmas e imunes ao

contato com as outras concorrentes na disputa pelo espaccedilo puacuteblico e pelo controle do Estadordquo (MOTTA

2009 p 22)

O foco para analisar a formaccedilatildeo de uma determinada cultura poliacutetica reside principalmente em

compreender como determinado comportamento poliacutetico se configurou e prevaleceu em um determinado

contexto a partir de questionamento como que possibilidades levaram a essas determinaccedilotildees e quais foram

as suas consequecircncias Assim a formaccedilatildeo de uma cultura poliacutetica acaba por se definir como um fenocircmeno

individual interiorizado pelo homem e um fenocircmeno coletivo partilhado por grupos numerosos (BERSTEIN

1998 p 360)

Enquanto fenocircmeno poliacutetico natildeo podemos enxergar a Revoluccedilatildeo Americana como um evento

monocromaacutetico Jaacute apontamos brevemente duas perspectivas para se analisar as origens do pensamento

poliacutetico americano uma pelo vieacutes da influecircncia do pensamento radical inglecircs do seacuteculo XVII e da virada para

o XVIII como foi apontado por Bernard Bailyn (1967) em contraposiccedilatildeo com a predominacircncia da influecircncia

do pensamento republicano claacutessico como a obra de Carl J Richard (1995) busca nos orientar

Pensando em outras perspectivas de anaacutelises evidenciando uma das perspectivas apontadas tanto por

Berstein quanto por Motta haveria uma determinada mudanccedila de paradigma entre o periacuteodo revolucionaacuterio

e os primeiros anos da formaccedilatildeo das estruturas poliacuteticas nacionais dos Estados Unidos As obras de Joyce

Appleby (1992) e Gordon S Wood (1969) apontam que houve nos anos inicias da naccedilatildeo uma ldquovirada do

lsquorepublicanismo claacutessicorsquo que enfatizava cidadania e coesatildeo social para um lsquoliberalismorsquo (ou lsquorepublicanismo

modernorsquo) que ansiava por direitos individuais e um mercado autorreguladordquo (RICHARD 1995 p 3)15

mostrando como as caracteriacutesticas de uma cultura poliacutetica mais predominante podem adaptar-se agraves

mudanccedilas experimentadas pelas sociedades ao longo do tempo (MOTTA 2009 p 22)

15 ldquoa shift from lsquoclassical republicanismrsquo which emphasized civic duty and social cohesion to lsquoliberalismrsquo (or lsquomodern

republicanismrsquo) which stressed individual rights and the self-regulating marketplacerdquo

[188]

Devido agrave efervescecircncia das questotildees poliacuteticas durante a segunda metade do seacuteculo XVIII nas Treze Colocircnias

a possibilidade de se trabalhar com o conceito de Cultura Poliacutetica eacute vasta Uma das propostas apontadas por

Motta eacute ldquoa existecircncia de vetores sociais responsaacuteveis pela reproduccedilatildeo das culturas poliacuteticasrdquo (MOTTA 2009

p 23) A pesquisa que temos em andamento sobre como o pensamento do estadista romano Ciacutecero foi

determinante para o desenvolvimento das concepccedilotildees poliacuteticas e ciacutevicas de John Adams perpassa pela

anaacutelise desses vetores sociais Serge Berstein (1998 p 356) chama esses vetores de ldquocanais da socializaccedilatildeo

da poliacutetica tradicionalrdquo por meio dos quais ele aponta possiacuteveis exemplos da manifestaccedilatildeo desses canais

em primeiro lugar a famiacutelia onde a crianccedila recebe mais ou menos um conjunto de normas

de valores de reflexotildees que constituem sua primeira bagagem poliacutetica que conservaraacute

durante a vida ou rejeitaraacute quando adulto Depois outros como escola liceu universidades

Quando analisamos o contexto em que John Adams viveu percebemos claramente essas influecircncias O

aspecto da religiatildeo junto com o da famiacutelia se apresenta como um possiacutevel elemento para essa formulaccedilatildeo

poliacutetica de Adams Seu pai foi um diaacutecono na cidade de Braintree mas cumpriu com sua participaccedilatildeo

enquanto cidadatildeo Em uma carta escrita ao amigo Benjamin Rush no ano de 1812 Adams16 se questiona

O que preservou essa raccedila dos Adams em todas as suas ramificaccedilotildees em nuacutemeros sauacutede

paz conforto e mediocridade Eu acredito que a religiatildeo sem a qual teriam se tornado

libertinos presunccedilosos eacutebrios apostadores passariam fome congelariam com o frio

escalpelado pelos iacutendios etc etc etc teriam sucumbido e desaparecidohellip (MCCULLOUGH

2001 p 30)17

O pensamento dos pais fundadores eacute complexo alguns inclusive ldquoalgumas vezes interpretavam a virtude

claacutessica pela luz do cristianismordquo (RICHARD 1995 p 7) e essa complexidade se transmite no entendimento

que podemos levar sobre o desenrolar de culturas poliacuteticas estadunidenses na segunda metade do seacuteculo

XVIII

As perspectivas abertas pela Nova Histoacuteria Poliacutetica satildeo vastas ao nos depararmos com um periacuteodo tatildeo feacutertil

quanto o processo que culminou na Revoluccedilatildeo Americana e no desenvolvimento das suas estruturas e

instituiccedilotildees poliacuteticas que serviram de exemplo para diversos modelos republicanos a posteriori O campo da

Histoacuteria Poliacutetica agora renovado possui possibilidades a serem exploradas inclusive quando buscamos

outras perspectivas de possibilidades teoacutericas como as propostas pelos Estudos da Recepccedilatildeo seguindo as

perspectivas propostas por Charles Martindale (1992 2006) Esboccedilamos apenas alguns apontamentos que

precisam de uma maior profundidade em um trabalho de focirclego uma vez que as possibilidades para essas

anaacutelises satildeo diversas

16 John Adams to Benjamin Rush July 19 1812 Adams Papers Massachusetts Historical Society 17 ldquoWhat has preserved this race of Adamses in all their ramifications in such numbers health peace comfort and

mediocrity I believe it is religion whitout wich they would have been rakes fops sots gamblers starved with hunger

or frozen with cold scalped by Indians etc etc etc been melted away an disappearedhelliprdquo

[189]

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de Heroacutedoto foram o Rāmāyana

da Heacutelade o helenismo de Friedrich Max Muumlller

Matheus Vargas de Souza

matheussagravgmailcom

A citaccedilatildeo que daacute nome a esta apresentaccedilatildeo e tiacutetulo a este texto foi

extraiacuteda de uma das muitas obras de Friedrich Max Muumlller (1860

p 17) Agrave medida em que os temas deste volume satildeo a traduccedilatildeo e a

recepccedilatildeo parece relevante trazer para a discussatildeo uma figura tatildeo

proliacutefica nos estudos relativos agrave cultura indiana Eacute verdade que o

autor em questatildeo foi responsaacutevel pela divulgaccedilatildeo de dezenas de

textos em sacircnscrito bem como pela cristalizaccedilatildeo de determinadas

visotildees a respeito da cultura indiana da Antiguidade e por esta

razatildeo natildeo parece pertinente a um compecircndio dedicado aos

Estudos Claacutessicos ao menos imediatamente Esperamos mostrar

no entanto que foi entre outras coisas atraveacutes da recepccedilatildeo dos

claacutessicos que Muumlller estabeleceu suas interpretaccedilotildees a respeito da

Iacutendia Antiga e atraveacutes delas empenhou-se em divulgar traduccedilotildees

dos textos indianos para o Ocidente europeu do seacuteculo XIX Para

nosso objetivo limitar-nos-emos a discutir as ideias apresentadas

por Muumlller em um de seus textos que mais dialogam com a cultura

claacutessica no qual ele evidencia muitas das perspectivas que

acompanharam toda sua produccedilatildeo e a de seus seguidores

[191]

Friedrich Max Muumlller nasceu em Dessau na Alemanha no ano de 1823 Tinha aptidatildeo para a muacutesica mas foi

dissuadido de seguir a carreira por Felix Mendelssohn Decidiu entatildeo se dedicar agraves Letras Claacutessicas Estudou

na Universidade de Leipzig onde teve contato com disciplinas como Hebraico Aacuterabe Psicologia

Antropologia mas por intermeacutedio de Hermann Brockhauss ndash primeiro a ocupar a cadeira de Sacircnscrito

naquela universidade ndash Muumlller foi persuadido a se dedicar aos textos da Iacutendia Antiga Aos vinte anos de

idade motivado em seus estudos por Brockhauss publicou uma traduccedilatildeo do Hitopadesha compecircndio de

faacutebulas indianas Chegou a frequentar as aulas de Franz Bopp fundador da filologia comparada e as do

filoacutesofo Friedrich Schelling Em 1845 quando foi de Berlim a Paris Eugegravene Burnouf o encorajou a produzir

uma editio princeps do Rig Veda como de fato o fez alguns anos depois com a ajuda de Hayman Wilson e o

apoio da Companhia das Iacutendias Orientais Dali por diante Muumlller se dedicou agrave vasta produccedilatildeo a respeito da

cultura indiana sendo o responsaacutevel pela ediccedilatildeo da monumental coleccedilatildeo The Sacred Books of the East atraveacutes

da qual foram divulgadas traduccedilotildees de dezenas de textos da Iacutendia Antiga entre meados do seacuteculo XIX e o

iniacutecio do XX vale reforccedilar que a atuaccedilatildeo intelectual de Muumlller se deu quase em sua totalidade no espaccedilo do

Impeacuterio Britacircnico tendo lecionado nas universidades de Glasgow e Oxford recusando inclusive convite para

lecionar na receacutem-criada Universidade de Estrasburgo (MACDONELL 1901 p 151-157)

Por enquanto estabelecemos entatildeo que Max Muumlller foi uma autoridade na aacuterea de estudos indianos

atuando como filoacutelogo acima de tudo Foi tambeacutem o responsaacutevel por um vasto processo de traduccedilatildeo e

divulgaccedilatildeo da cultura indiana em um primeiro momento para o Impeacuterio Britacircnico e na sequecircncia com alcance

ampliado Escreveu sobre a literatura indiana e sua histoacuteria bem como foi responsaacutevel pela criaccedilatildeo de um

novo meacutetodo de estudos sobre a religiatildeo antiga enquanto Ciecircncia da Religiatildeo atraveacutes da chamada Mitologia

Comparada (ELIADE 2010 [1957] p 11 RIES 2017 [1982] p 111-113) Haacute muito mais que poderiacuteamos

falar sobre Max Muumlller para aleacutem dessa resumida biografia mas as informaccedilotildees de que dispomos jaacute satildeo

suficientes para nosso propoacutesito Neste artigo olharemos com bastante atenccedilatildeo para apenas um de seus

textos

Em 1859 Muumlller publicou sua Histoacuteria da Antiga Literatura Sacircnscrita na qual buscou fazer um balanccedilo das

fontes disponiacuteveis para tentar construir uma histoacuteria coerente para a literatura da Iacutendia Antiga No livro

elaborou um vasto capiacutetulo introdutoacuterio em que esclareceu seu pensamento a respeito da literatura e

cultura indiana dentro do que entendia pela categoria de raccedila ariana Efetivamente Muumlller se dedicou a

pensar a respeito dos povos indo-europeus arianos em sua nomenclatura comparando algumas culturas e

lanccedilando maior atenccedilatildeo agrave indiana no intuito de melhor classificaacute-la Perceberemos que nesse texto Muumlller

revela de forma mais niacutetida o uso dos ldquoclaacutessicosrdquo especialmente dos gregos como modelo comparativo

categorizante Eacute atraveacutes desse criteacuterio claacutessico logo ocidental logo europeu logo civilizado que a leitura da

cultura indiana fica necessariamente comprometida seja deliberadamente ou natildeo

[192]

Max Muumlller inicia o texto relembrando o trabalho de William Jones e a importacircncia de seus esforccedilos como

pioneiro nas traduccedilotildees do Sacircnscrito no mundo europeu esforccedilos que Muumlller denomina como ldquoponto de

partida da filologia sacircnscritardquo (MUumlLLER 1860 [1859] p 1) Aleacutem disso ele comenta como uma profusatildeo de

intelectuais ndash divididos entre historiadores filoacutelogos e filoacutesofos ndash havia se voltado para a bem preservada

literatura indiana a seu tempo e que a presenccedila de tal literatura jaacute oferecia por si soacute um impulso para os

estudos a seu respeito assim como a presenccedila de uma ampla produccedilatildeo a seu respeito impulsionava os

esforccedilos no campo da filologia comparada (MUumlLLER 1860 [1859] p 1-2)

Em pouco menos de meio seacuteculo o sacircnscrito ganhou seu proacuteprio lugar na repuacuteblica do ensino lado a lado com o grego e o latim Os privileacutegios que essas duas liacutenguas gozam no sistema educacional da Europa moderna vatildeo gradualmente ser compartilhados com o sacircnscrito Mas [] ningueacutem que deseje estudar a histoacuteria daquele ramo da humanidade da qual noacutes mesmos pertencemos e descobrir nos primeiros germes da linguagem religiatildeo e mitologia de nossos antepassados a sabedoria drsquoEle que natildeo eacute o Deus apenas dos judeus pode no futuro dispensar algum conhecimento a respeito da liacutengua e da antiga literatura da Iacutendia (MUumlLLER 1860 p 2-3)1

Muumlller desta forma procurava reafirmar seu campo de estudos em rivalidade com as Letras Claacutessicas mas

algo que demonstra jaacute desde o princiacutepio de suas reflexotildees eacute seu intenso envolvimento pessoal com a religiatildeo

e a ponte direta e nada mascarada que evidenciava em seu estudo da literatura e religiatildeo indiana Muumlller era

um protestante bastante assiacuteduo e se propunha a desvendar saberes milenares de povos antigos em parte

para encontrar a sabedoria divina no fazer humano e as raiacutezes da histoacuteria humana dentro de uma linha cristatilde

(OLIVEIRA 2010 p 24-25)2 Mais adiante veremos com muita clareza que a relaccedilatildeo de Muumlller com suas

pesquisas era natildeo apenas cientiacutefica ou erudita mas espiritual

Seguindo em seu raciociacutenio Max Muumlller procurou defender que os esforccedilos sobre o Sacircnscrito eram ainda

recentes e maiores dado que as Letras Claacutessicas vinham sendo estudadas haacute mais tempo e que os

renascentistas aleacutem de serem homens extraordinaacuterios tiveram o auxiacutelio de gregos refugiados na Itaacutelia no

estudo da literatura helecircnica Curiosamente Muumlller fez uma comparaccedilatildeo direta entre esses gregos

refugiados e os bracircmanes de seu tempo estes dificilmente estavam dispostos a auxiliar com traduccedilotildees e

informaccedilotildees valiosas quando natildeo eram enganadores incapazes de conduzir um sentido histoacuterico agrave literatura

1 Todas as traduccedilotildees de Muumlller aqui apresentadas satildeo de nossa autoria ldquoIn little more than half a century Sanskrit has gained its proper place in the republic of learning side by side with Greek and Latin The privileges which these two languages enjoy in the educational system of modern Europe will scarcely ever be shared by Sanskrit But [] no one who desires to study the history of that branch of mankind to which we ourselves belong and to discover in the first germs of the language religion and mythologie of our forefathers the wisdom of Him who is not the God of the Jews only can for the future dispense with some knowledge of the language and ancient literature of Indiardquo 2 Muumlller chegou a defender ldquoque Jafeacute filho de Noeacute teria partido rumo agrave Iacutendia depois da dispersatildeo das naccedilotildees apoacutes a construccedilatildeo da Torre de Babel Para fazer jus agraves genealogias biacuteblicas e considerando que o Buddha histoacuterico propagou sua filosofia aproximadamente em 500 aC restava-lhe datas os Vedas entre 1500 e 500 aC para fazer valer a histoacuteria biacuteblicardquo (OLIVEIRA 2010 p 25) perspectiva que natildeo se sustenta uma vez que Muumlller se valeu de um meacutetodo especulativo de sobreposiccedilotildees de camadas linguiacutesticas (glottochronology) que natildeo eacute aceito atualmente pela constataccedilatildeo de que as liacutenguas mudam aleatoriamente sem sistemas esquematizados preacute-definidos (OLIVEIRA 2010 p 25)

[193]

mas apenas filosoacutefico-religioso Segundo ele aleacutem disso a literatura grega tambeacutem contava por si soacute com

Homero Heroacutedoto e Tuciacutedides o que naturalmente facilitaria os estudos a seu respeito (MUumlLLER 1860

[1859] p 3-4) Sem esclarecer muito bem o que quer dizer com isso mas dando a entender jaacute de antematildeo

algum valor maior conferido agraves obras dos autores gregos dentro de uma perspectiva histoacuterica ele criticou a

ausecircncia de estudos sistemaacuteticos da literatura sacircnscrita e retomou as colocaccedilotildees de Niebuhr como exemplo

de que a filologia deveria ser amplamente empregada nos estudos relativos agraves fontes antigas indianas O

ponto de Muumlller eacute que diferentemente de Niebuhr que se absteve de falar da Iacutendia por conta da ausecircncia de

criacutetica filoloacutegica consistente das fontes outros historiadores de seu tempo eventualmente se propunham a

fazer consideraccedilotildees sobre dado momento da histoacuteria da Iacutendia utilizando fontes que natildeo necessariamente

pertenciam ao periacuteodo que estudavam (MUumlLLER 1860 [1859] p 4-6) Eacute neste momento que o autor

estabelece uma maacutexima verdadeiramente tragicocircmica ldquoNenhuma naccedilatildeo foi a este respeito tratada mais

injustamente que a Iacutendiardquo (MUumlLLER 1860 [1859] p 6)3 O ponto eacute coerente muito foi dito sobre a Iacutendia sem

qualquer precisatildeo histoacuterica sem qualquer estudo concreto das fontes No entanto veremos que Muumlller natildeo

foi tatildeo mais justo com os indianos quanto pensava

Sua criacutetica entatildeo se volta aos acadecircmicos

[] nos estudos do grego e do latim a distinccedilatildeo entre conhecimento uacutetil e inuacutetil quase desapareceu e os objetos reais do estudo destas antigas liacutenguas tem sido quase totalmente perdido Mais da metade das publicaccedilotildees dos classicistas tecircm tratado apenas de impedir nosso acesso agraves grandes obras [master-works] dos antigos [] Um espiacuterito similar infectou a filologia sacircnscrita [] Conhecimento que natildeo tem objetivo para aleacutem de si mesmo eacute na maioria dos casos mero pretexto para vaidade [] A teste de um verdadeiro acadecircmico eacute ser capaz de encontrar o que eacute realmente importante [] O objetivo e alvo da filologia em seu mais elevado sentido eacute apenas um - aprender o que o homem eacute aprendendo o que o homem tem sido (MUumlLLER 1860 p 7-8)4

Eacute a partir daqui que Max Muumlller comeccedila a desenhar o cerne de seu pensamento a respeito da proacutepria

produccedilatildeo e do sentido do estudo dos antigos indianos Com efeito o que ele defende eacute que a filologia tem um

compromisso de aproximar o ser humano de suas origens e deste modo de sua natureza Tornamos a ver os

transbordos da relaccedilatildeo espiritual e religiosa que Max Muumlller tinha com seu proacuteprio trabalho os estudos das

sociedades antigas natildeo podem se perder em questotildees demasiado especiacuteficas e pontuais mas devem

responder a demandas universalizantes e edificantes da sociedade moderna O que estaacute por traacutes destas

colocaccedilotildees no entanto eacute que ele estaacute se referindo a si proacuteprio como modelo Desta forma os estudos do

sacircnscrito assim como os do grego e do latim deveriam seguir os meacutetodos de Muumlller segundo sua loacutegica E

3 ldquoNo nation has in this respect been more unjustly treated than the Indiardquo 4 ldquo[] in Greek and Latin scholarship the distinction between useful and useless knowledge has almost disappeared and the real objects of the study of these ancient languages have been well nigh forgotten More than half of the publications of classical scholars have tended only to impede our access to the master-works of the ancients [] A similar spirit has infected Sanskrit philology [] Knowledge which has no object beyond itself is in most cases but a pretext for vanity [] The test of a true scholar is to be able to find out what is really important [] The object and aim of philology in its highest sense is but one - to learn what man is by learning what man has beenrdquo

[194]

que meacutetodos satildeo estes Aqueles que foram aparecendo pouco a pouco e todas as suas obras quando

continuamente sequestrava os textos da Antiguidade indiana e os cristalizava como fontes para o estudo das

relaccedilotildees espirituais do homem com o mundo e em uacuteltima anaacutelise com Deus Em um momento futuro

pretendemos nos dedicar com mais afinco agrave ideia que adiantamos de que Max Muumlller foi um dos principais

responsaacuteveis pelo estigma filosoacutefico-religioso que circunscreveu a literatura sacircnscrita dentro dos estudos de

mitologia comparada e afins ao menos no mundo moderno porque se natildeo foi de longe o primeiro a difundir

a ideia de que os indianos natildeo tecircm Histoacuteria e historiografia impulsionou fortemente tal ideia atraveacutes de suas

dezenas de obras e alunos Retomando nosso objetivo limitamo-nos a esclarecer que Muumlller se propocircs a

trabalhar de maneira histoacuterica e tal qual um Tuciacutedides a depurar a literatura sacircnscrita disponiacutevel no intuito

de extrair a Histoacuteria da Antiguidade indiana possiacutevel atraveacutes de uma cronologia para a literatura veacutedica

(MUumlLLER 1860 [1859] p 8-10 64)

O principal objetivo dos ensaios seguintes seraacute colocar a antiguidade do Veda em sua luz proacutepria Por antiguidade no entanto eacute entendido natildeo apenas a distacircncia cronoloacutegica da eacutepoca do Veda para nossa proacutepria [] mas tambeacutem e ainda mais a distacircncia entre o estado intelectual moral e religioso dos homens como representado a noacutes durante a eacutepoca veacutedica comparada com aquela de outros periacuteodos da histoacuteria - uma distacircncia que pode ser medida apenas pelas revoluccedilotildees e o progresso da mente humana (MUumlLLER 1860 [1859] p 11)5

Curiosamente apoacutes se reportar agrave ideia de diferentes grupos eacutetnico-linguiacutesticos ou em seus termos

diferentes raccedilas (arianos semitas e turanianos) Muumlller defendeu que o grupo hindu subdivisatildeo da chamada

raccedila ariano teria sido o uacuteltimo a dispersar (MUumlLLER 1860 [1859] p 14) Defendemos que isso gera

automaticamente a primeira impressatildeo de que seus membros seriam estaacuteticos inertes atrasados desde os

primoacuterdios mais originais Ele tambeacutem defendeu que hindus gregos e alematildees seriam um ramo agrave parte no

grupo indo-europeu dadas as supostas particularidades de suas linguagens que Muumlller natildeo expotildee de

maneira clara para logo em seguida fazer longas consideraccedilotildees sobre a grandeza da raccedila ariana (MUumlLLER

1860 [1859] p 14-15) ldquoEm disputa contiacutenua entre si e com as raccedilas semiacutetica e turaniana estas naccedilotildees

arianas se tornaram os senhores da histoacuteria e parece ser sua missatildeo ligar todas as partes do mundo atraveacutes

dos clamores de civilizaccedilatildeo comeacutercio e religiatildeordquo (MUumlLLER 1860 [1859] p 15)6

Natildeo impressiona que Max Muumlller tenha sido um dos nomes apropriados pelos nazistas em tempos futuros7

mas no que compete ao seacuteculo XIX o que Muumlller estaacute defendendo de antematildeo eacute que haacute um sentido da

5 ldquoThe principle object of the following essays will be to put the antiquity of the Veda in its proper light By antiquity however is meant not only the chronological distance of the Veda age from our own [] but also and still more the distance between the intellectual moral and religious state of men as represented to us during the Vedic age compared with that of other periods of history - a distance which can only be measured by the revolutions and the progress of the human mindrdquo 6 ldquoIn continual struggle with each other and with Semitic and Turanian races these Aryan nations have become the rulers of history and it seems to be their mission to link all parts of the world together by the claims of civilisation commerce and religionrdquo 7 Baijayanti Roy relembra que ainda que criticado em certa medida por seu ecletismo por sua perspectiva de uma religiatildeo futura de caraacuteter mais ecleacutetico Friedrich Max Muumlller foi a referecircncia por exemplo de Paul Deussen Leopold

[195]

Histoacuteria e uma posiccedilatildeo privilegiada dos alematildees (incluindo ele mesmo) nesse sentido progressista Ele

poreacutem comenta que o grupo que formou os indianos natildeo faz parte deste ramo de arianos destinado agrave

civilizaccedilatildeo este ramo eacute composto por gregos e romanos a justificativa os indianos contaram com fronteiras

naturais quase intransponiacuteveis que mantiveram sua cultura distanciada do mundo greco-romano (MUumlLLER

1860 [1859] p 15-16) Haacute aqui um argumento impliacutecito de que soacute haacute civilizaccedilatildeo por via grega e

posteriormente romana Uma vez que os indianos permaneceram apartados do contato com este mundo

natildeo contribuiacuteram com a grandeza dos arianos do primeiro escalatildeo Para o autor satildeo relevantes para a

Histoacuteria porque satildeo arianos e natildeo podem ser ignorados mas satildeo tambeacutem inferiores e atrasados

Muumlller entatildeo chega ao cliacutemax para nossa anaacutelise uma comparaccedilatildeo direta entre os indianos e os gregos Em

linhas gerais defende que a Iacutendia assim como a Greacutecia passou por disputas internas e conflitos mas que

seus efeitos foram infinitamente distintos Para ele se na Greacutecia haacute o fim das tiranias e a organizaccedilatildeo de

novas repuacuteblicas ndash cuja fonte natildeo eacute citada mas eacute provavelmente Tuciacutedides (Histoacuteria da Guerra do Peloponeso

I 18) ndash na Iacutendia os xaacutetrias satildeo derrotados pelos bracircmanes mas estes apenas impotildeem novo modelo de

dominaccedilatildeo moral que Muumlller posteriormente tentaria utilizar como justificativa para desqualificar os

Purānās enquanto fonte histoacuterica etc (MUumlLLER 1860 [1859] p 17 61) Portanto estaria aqui o primeiro

momento em sua concepccedilatildeo em que a Iacutendia teria ficado para traacutes O segundo momento diz ele eacute quando as

duas culturas se encontram com o Outro e eacute aqui que ele escreve a frase que tomamos emprestada para o

tiacutetulo de nossa apresentaccedilatildeo Sua comparaccedilatildeo das Histoacuterias8 de Heroacutedoto com o Rāmāyana de Valmiki eacute o

penuacuteltimo passo desse esforccedilo de parear gregos e indianos com perfeiccedilatildeo Ele encerra essa comparaccedilatildeo com

o conflito interno entre dois grupos rivais mediante uma comparaccedilatildeo entre Tuciacutedides e Vyasa com seu

Mahābhārata (MUumlLLER 1860 [1859] p 17-18) Esse esforccedilo de comparaccedilotildees eacute apenas mais uma das

evidecircncias do imperium das referecircncias ldquoclaacutessicasrdquo sobre os estudos do Oriente construindo

necessariamente uma Iacutendia idealizada limitada atrasada estanque primitiva ainda que complexa pior

ainda com os meacutetodos da filologia e da histoacuteria como ferramenta principal da produccedilatildeo de um saber senatildeo

falso equivocado Como em um efeito dominoacute ter os claacutessicos como paracircmetro (em funccedilatildeo de um

pensamento ocidental) eacute o golpe que derruba a primeira peccedila do dominoacute

Muumlller comeccedila a elaborar comparaccedilotildees cada vez mais extensas entre a Greacutecia e a Iacutendia e devemos ter em

mente que ele jaacute se colocou como intimamente relacionado com as duas afinal o alematildeo pertenceria a um

ramo especial do indo-europeu juntamente com o grego e o sacircnscrito Ele posteriormente apenas mostra a

von Shroumlrder e Houston Stewart Chamberlain intelectuais que se converteram ao culto do ldquoCristianismo Germacircnicordquo no qual havia o discurso da superioridade ariana como alicerce este grupo posteriormente seria um aliado do nazismo (ROY 2016 p 226 MARCHAND 2009 p 309 319) Aleacutem disso Muumlller teria desempenhado notaacutevel influecircncia sobre o intelectual proacute-nazista Hans Guumlnther (ROY 2016 p 227 ARVIDSSON 2006 p 41) 8 ldquoAs Musas de Heroacutedotordquo como Max Muumlller coloca eacute uma referecircncia agrave divisatildeo alexandrina das Histoacuterias em nove livros intitulados com os nomes das Musas

[196]

ordem na escala sendo pressuposto que como alematildeo estaacute acima de todos buscando demonstrar que os

indianos satildeo especiais mas que permaneceram inferiores em relaccedilatildeo aos gregos dos quais ele Max Muumlller

assim como a Europa de seu tempo era mais proacuteximo e herdeiro direto

Greacutecia e Iacutendia satildeo em verdade dois poacutelos opostos no desenvolvimento histoacuterico do homem ariano Para os gregos a existecircncia eacute plena de vida e realidade para os hindus ela eacute um sonho uma ilusatildeo O grego estaacute em casa onde ele nasce todas as suas energias pertencem a seu paiacutes ele resiste e cai juntamente com os seus e estaacute pronto para sacrificar ateacute mesmo sua vida pela gloacuteria e independecircncia da Heacutelade O hindu entra neste mundo como um estranho todos os pensamentos de sua vida satildeo direcionados para outro mundo ele natildeo toma partido mesmo onde ele eacute conduzido a agir e quando ele sacrifica sua vida isto natildeo eacute para nada aleacutem de ser levado dela (MUumlLLER 1860 [1859] p 18)9

Eacute evidente a enxurrada de generalizaccedilotildees idealizadas e seletivas que Muumlller propotildee em seu texto No que

tange aos gregos por exemplo a primeira pergunta que poderiacuteamos fazer a Max Muumlller seria que gregos

Afinal dizer que todo grego estaacute atrelado a sua cidade e que vive e morre por sua naccedilatildeo ou que ldquotodas as suas

energias pertencem a seu paiacutesrdquo eacute ignorar a existecircncia de mercenaacuterios gregos servindo inclusive aos persas

fato a respeito do qual Xenofonte nos ofereceu um testemunho bastante claro em sua Anaacutebase Aleacutem disso

a respeito do sentido filosoacutefico dado agrave vida pelos indianos em total oposiccedilatildeo ao dos gregos o autor comete

um pequeno deslize se levarmos em conta a existecircncia da crenccedila na μετεμψύχωσις metempsyacutechosis na

transmigraccedilatildeo da alma para outro corpo apoacutes a morte presente em diversas obras filosoacuteficas gregas e

entendida por diversas perspectivas10 Isso nos daacute brecha a pensar que o entendimento dos gregos a esse

respeito natildeo era necessariamente uniforme

Adiante Muumlller ainda completa ldquoNatildeo impressiona que uma naccedilatildeo como a indiana se importou tatildeo pouco com

histoacuteriardquo (MUumlLLER 1860 [1859] p 18)11 Haveria nos indianos uma aura de profunda espiritualidade

filosoacutefica incapaz de pensar a respeito dos problemas mundanos das questotildees praacuteticas Esse discurso tem

suas bases na literatura eacute claro mas eacute escandalosa a ausecircncia de um questionamento simples como viveram

esses anos todos as pessoas comuns da Iacutendia Afinal sabemos que nem todos os gregos eram Soacutecrates ou

9 ldquoGreece and India are indeed the two opposite poles in the historical development of the Aryan man To the Greeks existence is full of life and reality to the Hindu it is a dream an illusion The Greek is at home where he is born all of his energies belong to his country he stands and falls with his party and is ready to sacrifice even his life to the glory and independence of Hellas The Hindu enters this world as a stranger all his life thoughts are directed to another world he takes no part even where he is driven to act and when he sacrifices his life it is but to be delivered from itrdquo 10 A tiacutetulo de exemplo ver Platatildeo Feacutedon 81b Menecircxino 81a A Repuacuteblica 614 Fedro 248d Goacutergias 525c Plotino Eneacuteades 1111-12 296 10-28 342 439 7141-8 Dioacutegenes Laeacutercio tambeacutem fala a respeito da crenccedila de Pitaacutegoras na transmigraccedilatildeo da alma (Vidas e Doutrinas dos Filoacutesofos Ilustres 836) existem muitos outros exemplos que poderiacuteamos debater com maior profundidade em um outro momento mas reforccedilamos desde jaacute que natildeo ignoramos os debates a respeito da relevacircncia da ideia da transmigraccedilatildeo da alma dentro do sistemas filosoacuteficos de pensadores gregos como o caso de Plotino que ora tem a transmigraccedilatildeo diminuiacuteda em seu sistema por determinadas interpretaccedilotildees ora a tem levada em maior consideraccedilatildeo por outro grupo de acadecircmicos (STAMELLOS 2016 p 49-50) Para aleacutem da filosofia o relato de Heroacutedoto eacute bastante significativo a alma seria imortal e habitaria outro corpo apoacutes a morte do corpo anterior dentro das crenccedilas egiacutepcias o que Heroacutedoto (Histoacuterias 2123) revela em seguida eacute que houvera gregos os quais ele natildeo nomeia que partilharam dessa crenccedila 11 ldquoNo wonder that a nation like the Indian cared so little for historyrdquo

[197]

Heroacutedoto da mesma forma como nem todos os indianos eram Vyasa Muumlller despreocupado com esse tipo

de questionamento se deixou levar exclusivamente pela carga espiritual que carregava consigo e se

maravilhava com os indianos dizendo ldquoSua existecircncia na Terra era para eles um problema sua vida eterna

uma certezardquo (MUumlLLER 1860 [1859] p 19)12 O que eacute relevante no entanto nessa constataccedilatildeo da

perspectiva religiosamente enviesada de Muumlller eacute que isso era um dos pilares de um sistema epistemoloacutegico

ao qual estava alinhado os pilares eram o cristianismo e a heranccedila claacutessica como alicerces do Ocidente e

consequentemente da civilizaccedilatildeo Foi dessa forma que Muumlller manipulou diferentes tipos de informaccedilotildees

para criar uma perspectiva estanque e simultaneamente exoacutetica da Iacutendia Antiga

Muumlller segue sua comparaccedilatildeo entre gregos e indianos por vaacuterias frentes Em dado momento compara a

expressatildeo sacircnscrita परिय आतमा priya ātmā (Vyasa Bhāgavata Purāṇa 32538)13 que ele traduz por ldquoteu

querido Eurdquo (MUumlLLER 1860 [1859] p 20)14 com a expressatildeo grega φίλον ἧτορ fiacutelon heacutetor (Homero Iliacuteada

5670 Odisseia 160 4804 7269 etc) No trecho da Iliacuteada para natildeo nos estendermos demais neste ponto

a expressatildeo eacute traduzida por Frederico Lourenccedilo de maneira mais literal como ldquoseu querido coraccedilatildeordquo

enquanto Carlos Alberto Nunes traduziu apenas por ldquona almardquo e Augustus Taber Murray por ldquowithin himrdquo

O que transcende as traduccedilotildees no entanto eacute um sentido de iacutentimo e de subjetividade portanto haveria uma

correspondecircncia direta entre a expressatildeo grega e a sacircnscrita ambas se referem ao caro querido Ser do

indiviacuteduo Adiante compara tambeacutem a expressatildeo आतमान आतमना पशय ātmānam ātmanā paśya que Max Muumlller

traduz por ldquove-te a ti mesmordquo (MUumlLLER 1860 [1859] p 21-22)15 com o aforismo γνῶθι σεαυτόν

(Xenofonte Ditos e feitos memoraacuteveis de Soacutecrates 42 Platatildeo Caacutermides 164d Protaacutegoras 343a-343b Fedro

229e Filebo 48c Leis II 923a Alcibiacuteades I 124a 129a 132c Aristoacutefanes As Nuvens 842 Pausacircnias

Descriccedilatildeo da Greacutecia 1024) o ldquoconheccedila-serdquo ou de forma mais empertigada ldquoconhece-te a ti mesmordquo famoso

proveacuterbio deacutelfico popularizado como conduta de Soacutecrates Muumlller ainda completa essa segunda comparaccedilatildeo

defendendo que a expressatildeo sacircnscrita teria um sentido ainda mais profundo que a grega (MUumlLLER 1860

[1859] p 21-22)

12 ldquoTheir existence on earth was to them a problem their eternal life a certaintyrdquo 13 A expressatildeo natildeo foi inserida no texto de Muumlller escrita no abugida devanaacutegari mas apenas transliterada Buscamos oferecer a grafia correta dos termos individualmente para garantir mais visibilidade ao devanaacutegari mas reforccedilamos que a grafia pode mudar de acordo com certas regras de formaccedilatildeo de palavras compostas No trecho que utilizamos como referecircncia e que natildeo eacute citado por Muumlller os termos satildeo grafados agrave maneira como escrevemos sendo inclusive sequenciais O Bhāgavata Purāṇa tambeacutem eacute comumente chamado de Śrīmad Bhāgavatam 14 ldquothy dear selfrdquo 15 ldquosee [thy]self by [thy]selfrdquo Os colchetes foram empregados por Max Muumlller Novamente o texto de Muumlller natildeo incluiacutea grafia em devanaacutegari mas apenas uma transliteraccedilatildeo Disponibilizamos a grafia correta das palavras quando escritas individualmente Dentro das limitaccedilotildees atuais de nossa pesquisa natildeo encontramos a expressatildeo grafada desta maneira em nenhum dos textos sacircnscritos antigos ainda assim haacute uma passagem da Bhagavad Gītā que traz todos os termos no

mesmo verso चवातमनातमान पशयननातमपरन तषयपरत caivātmanātmānam paśyannātmani tuṣyati traduzido como ldquoe onde se contenta no si-mesmo observando o si-mesmo por meio do si-mesmordquo (Vyasa Bhagavad Gītā 620 Trad Carlos Eduardo G Barbosa) O sentido eacute portanto similar agrave expressatildeo que Muumlller utilizou na forma de epigrama

[198]

Ainda que apresentando um contiacutenuo deslumbramento com a cultura indiana isso natildeo conduz a nada

diferente da submissatildeo de tal cultura ao teacutelos eurocecircntrico Muumlller joga a comparaccedilatildeo para o campo histoacuterico

efetivamente o contato entre os gregos e os indianos Suas fontes satildeo Estrabatildeo e Megaacutestenes Atraveacutes do

primeiro reforccedila que a filosofia indiana tem por meta central natildeo permitir ao indiviacuteduo pender para os

prazeres ou para a dor16 Eacute atraveacutes do segundo no entanto que procura justificar melhor seu argumento

Assim o relato que Megaacutestenes oferece a respeito dos indianos nos mostra o mesmo personagem abstrato e passivo que noacutes encontramos atraveacutes de toda a literatura poacutes-veacutedica dos bracircmanes e que em grande medida explica a ausecircncia de qualquer coisa similar a uma literatura histoacuterica nesta naccedilatildeo de filoacutesofos [] Um povo de tatildeo peculiar traccedilo mental jamais estaria destinado a tomar um partido significativo no que eacute chamado de histoacuteria do mundo (MUumlLLER 1860 [1859] p 28-29)17

Quase como se estivesse desculpando Muumlller emenda ldquoNenhum povo certamente causou uma impressatildeo

mais favoraacutevel sobre os gregosrdquo (MUumlLLER 1860 [1859] p 29)18 Eacute evidente que boa parte do que citamos

satildeo afirmaccedilotildees profundamente arbitraacuterias Natildeo iremos entrar no meacuterito de qual cultura gerou maior impacto

positivo nos gregos ainda que reforcemos que isso pode ser bastante difiacutecil de afirmar Em todo caso o que

importa eacute que onde Muumlller escreveu ldquosobre os gregosrdquo ele em verdade deveria ter escrito ldquosobre mimrdquo

Muumlller natildeo pocircde deixar de justificar sua paixatildeo pela Iacutendia da mesma forma como natildeo conseguiu submetecirc-la

a uma classificaccedilatildeo em que permanecia inevitavelmente abaixo dos claacutessicos (gregos em especial) dos quais

Muumlller seria um herdeiro A respeito da passividade do abstratismo que ele menciona natildeo deveriacuteamos levar

em consideraccedilatildeo que foram os indianos que impuseram um limite ao exeacutercito de Alexandre19 Devemos

desconsiderar de igual forma a complexidade da literatura sacircnscrita que natildeo se limita Muumlller bem sabia a

textos filosoacutefico-religiosos Isso eacute suficiente para natildeo caracterizarmos o indiano antigo de maneira

homogecircnea e universalizada como se todos fossem verdadeiros eremitas O proacuteprio Muumlller reconheceu

16 A leitura europeia de relatos como o de Estrabatildeo e dos proacuteprios modernos especialistas na cultura indiana aleacutem da tradiccedilatildeo que se formava em entender que a filosofia oriental continuamente pende para a religiatildeo foi o que possibilitou uma fixaccedilatildeo da ideia da filosofia indiana em um atrelamento contiacutenuo com o campo religioso Desconsiderando colocaccedilotildees como a de Cornford (1912 p 261-263) a respeito da percepccedilatildeo de que a filosofia natildeo se tornou tatildeo menos religiosa no mundo grego muitos historiadores da filosofia chegaram a estigmatizar a filosofia heleniacutestica julgando que tal pensamento eacute produto de uma decadecircncia do pensamento grego na medida de seus contatos com o pensamento oriental a filosofia heleniacutestica teria deixado de procurar a resoluccedilatildeo de questotildees universais e passado a ser utilizada

como meacutetodo de conduta com fins agrave ἀταραξία ataraxiacutea (CHAUIacute p 18-26 34-36) 17 ldquoThus the account which Megasthenes gives of the Indians shows us the same abstract and passive character which we find throughout the whole post-Vedic literature of the Brahmans and which to a great extent explains the absence of anything like historical literature among this nation of philosophers [] A people of this peculiar stamp of mind was never destined to act a prominent part in what is called the history of the worldrdquo 18 ldquoNo people certainly made a more favourable impression upon Greeks than the Indiansrdquo 19 A respeito disso o proacuteprio Megaacutestenes reproduzido por Diodoro comenta que Alexandre teria desistido de cruzar o Ganges por receio do confronto com os gandaridae (Biblioteca Histoacuterica 235-42) Plutarco tambeacutem relatou que apoacutes o embate contra o rei Poro o exeacutercito de Alexandre se tornou arredio e perdeu a motivaccedilatildeo para prosseguir (Vida de Alexandre 62) Ora um homem como Max Muumlller poderia dar mais atenccedilatildeo ao fato de Poro ter sido derrotado e ter se tornado um Saacutetrapa mas eacute necessaacuterio notarmos que a luta contra Poro ter sido suficiente para diminuir o moral do exeacutercito se o relato for real eacute algo bastante significativo e indica minimamente que os indianos antigos natildeo seriam tatildeo passivos para os gregos como eram para Muumlller

[199]

adiante que os indianos natildeo eram tatildeo submissos a conquistadores mas essa constataccedilatildeo natildeo modificou o

sistema bem montado que tinha em sua reflexatildeo e ele prosseguiu

O gecircnio da naccedilatildeo grega deve seu crescimento feliz e saudaacutevel agrave liberdade e agrave independecircncia nacional As canccedilotildees homeacutericas eram endereccediladas a um povo orgulhoso de seus heroacuteis reais ou lendaacuterios Se a Peacutersia tivesse esmagado o cavalheirismo da Greacutecia nunca teriacuteamos ouvido os nomes de Heroacutedoto Eacutesquilo Soacutefocles Fiacutedias e Peacutericles Onde o sentimento de nacionalidade foi despertado o poeta se orgulha de ser ouvido por sua naccedilatildeo e uma naccedilatildeo se orgulha de ouvir seu poeta Mas em tempos de degradaccedilatildeo nacional o gecircnio dos grandes homens se afasta das realidades da vida e encontra seu uacutenico consolo na busca da verdade na ciecircncia e na filosofia Soacutecrates Platatildeo e Aristoacuteteles surgiram quando a naccedilatildeo grega comeccedilou a declinar e sob o peso do primeiro domiacutenio macedocircnio da tirania romana a vida do gecircnio grego desapareceu enquanto suas produccedilotildees imortais continuaram na memoacuteria de outras naccedilotildees mais livres O indiano nunca conheceu o sentimento de nacionalidade e seu coraccedilatildeo nunca tremeu na expectativa de aplausos nacionais Natildeo havia heroacuteis para inspirar um poeta ndash nenhuma histoacuteria convocar um historiador A uacutenica esfera em que a mente indiana se encontrava em liberdade para agir criar e adorar era a esfera da religiatildeo e da filosofia [] os hindus eram uma naccedilatildeo de filoacutesofos Suas lutas eram as lutas do pensamento seu passado o problema da criaccedilatildeo seu futuro o problema da existecircncia [] como um todo a histoacuteria natildeo fornece uma segunda instacircncia onde a vida interior da alma absorveu tatildeo completamente todas as faculdades praacuteticas de um povo inteiro e de fato quase destruiu aquelas qualidades pelas quais uma naccedilatildeo ganha seu lugar na histoacuteria Por conseguinte poderia ser justamente dito que a Iacutendia natildeo tem lugar na histoacuteria poliacutetica do mundo [] Uma expediccedilatildeo como a de Alexandre nunca poderia ter sido concebida por um rei indiano e a ambiccedilatildeo dos conquistadores nativos nos poucos casos em que existia nunca ultrapassou os limites da proacutepria Iacutendia [] Mas se a Iacutendia natildeo tem lugar na histoacuteria poliacutetica do mundo certamente tem o direito de reivindicar seu lugar na histoacuteria intelectual da humanidade Quanto menos a naccedilatildeo indiana participasse das lutas poliacuteticas do mundo e gastasse suas energias nas faccedilanhas da guerra e na formaccedilatildeo de impeacuterios mais ela assentava e concentrava todos os seus poderes para o cumprimento da importante missatildeo reservada a ele na histoacuteria do Oriente A histoacuteria parece ensinar que toda a raccedila humana necessitava de uma educaccedilatildeo gradual antes que pudesse na plenitude dos tempos confessar as verdades do cristianismo (MUumlLLER 1860 [1859] p 30-32)20

20 ldquoThe genius of the Greek nation owes its happy and healthy growth to liberty and national independence The Homeric songs were addressed to a people proud of its heroes whether real or legendary If Persia had crushed the chivalry of Greece we should never have heard the names of Herodotus Aeschylus Sophocles Phidias and Pericles Where the feeling of nationality has been roused the poet is proud to be listened to by his nation and a nation is proud to listen to her poet But in times of national degradation the genius of great men turns away from the realities of life and finds its only consolation in the search after truth in science and philosophy Socrates Plato and Aristotle arose when the Greek nation began to decline and under the heavy grasp first of Macedonian swayrsquo then of Roman tyranny the life of the Greek genius ebbed away while its immortal productions lived on in the memory of other and freer nations The Indian never knew the feeling of nationality and his heart never trembled in the expectation of national applause There were no heroes to inspire a poet mdash no history to call forth a historian The only sphere where the Indian mind found itself at liberty to act to create and to worship was the sphere of religion and philosophy [] The Hindus were a nation of philosophers Their struggles were the struggles of thought their past the problem of creation their future the problem of existence [] taken as a whole history supplies no second instance where the inward life of the soul has so completely absorbed all the practical faculties of a whole people and in fact almost destroyed those qualities by which a nation gains its place in history It might therefore be justly said that India has no place in the political history of the world [] An expedition like- that of Alexander could never have been conceived by an Indian king and the ambition of native conquerors in those few cases where it existed never went beyond the limits of India itself [] But if India has no place in the political history of the world it certainly has a right to claim its place in the intellectual history of mankind The less the Indian nation has taken part in the political struggles of the world and expended its energies in the exploits of war and the formation of empires the more it has fitted itself and concentrated all its powers for the fulfilment of the

[200]

Eacute evidente a demonstraccedilatildeo de um projeto poliacutetico de cogniccedilatildeo do mundo colonial Muumlller se vale de uma certa

concepccedilatildeo do mundo grego A partir dessa concepccedilatildeo defende que o mundo do ramo ariano eacute aquele que

seguiu na direccedilatildeo da Histoacuteria Poliacutetica da humanidade e portanto determinou os rumos para a estratificaccedilatildeo

social as formas de governo os conceitos poliacuteticos baacutesicos de um futuro mundo universal universalizado

pelo Ocidente Ora Muumlller jaacute havia determinado que o ramo ao qual pertencia era este o ramo das accedilotildees

poliacuteticas o ramo merecedor de pertencer agrave Histoacuteria Poliacutetica Ainda que tenha afirmado que Kant teria

norteado sua obra ao longo de toda sua carreira Max Muumlller se mostrou um verdadeiro hegeliano quando

pensou sobre a Histoacuteria Universal Dentro desse pensamento limitou os indianos agrave Histoacuteria Intelectual da

humanidade Muumlller seguindo seu proacuteprio raciociacutenio seria superior em duas medidas Primeiro por ser

supostamente um herdeiro direto da cultura claacutessica segundo por ser germacircnico e assim desfrutar de uma

proximidade maior com os gregos e os hindus em relaccedilatildeo a outros povos europeus modernos

Aqui eacute claro fica evidente a atitude duacutebia de Muumlller em relaccedilatildeo a seu posicionamento discursivo no jogo

poliacutetico dos impeacuterios europeus Por um lado ele se coloca como um indiviacuteduo dotado de maior aptidatildeo para

lidar com seus temas de estudo e de maior proximidade com as sociedades mais desenvolvidas da

Antiguidade Por outro no entanto torna-se uma espeacutecie de representante do Impeacuterio Britacircnico ele

categoriza e torna cognosciacutevel o indiano conferindo a ele um espaccedilo limitado na Histoacuteria alijando-o da

Histoacuteria Poliacutetica da posiccedilatildeo de mando e limitando-o agrave Histoacuteria Intelectual da humanidade Resumidamente

o que Muumlller disse atraveacutes de seu trabalho mutatis mutandis foi ldquotemos muito a aprender com eles estes

pobres coitados tatildeo exoacuteticos e maravilhosos que precisam do nosso direcionamento que ficam melhor

governados pelo ramo mais legiacutetimo da raccedila ariana aprenderemos com eles sobre o pensamento humano

mas quando o tema for a poliacutetica e as relaccedilotildees de dominaccedilatildeo ele deve ser verbalizado em nossos termos

afinal pertence apenas a noacutesrdquo Embora tenhamos pretensotildees de discutir essa questatildeo mais a fundo em um

momento futuro da pesquisa gostariacuteamos de propor que natildeo foi por acaso que Muumlller recusou o convite para

lecionar na Universidade de Estrasburgo permanecendo atuando no interior do Impeacuterio Britacircnico A

produccedilatildeo de Muumlller segue a loacutegica do colonialismo natildeo apenas por ele ser um intelectual europeu mas

tambeacutem para que dispusesse de espaccedilo na ordem do discurso do Impeacuterio Britacircnico que tinha a Iacutendia como

uma de suas possessotildees

E quanto ao helenismo O ldquohelenismordquo de Friedrich Max Muumlller ao qual nos referimos desde o princiacutepio

consistiu precisamente na construccedilatildeo de um modelo idealizado de Greacutecia em parte inspirado na produccedilatildeo

intelectual do seacuteculo XIX mas em parte motivado pela retoacuterica do proacuteprio Muumlller Desta forma a partir desse

modelo idealizado que conferia sentido ao proacuteprio mundo de Muumlller construir entatildeo um modelo oposto que

correspondesse agrave Iacutendia Assim o resultado era duplo Max Muumlller legitimava sua condiccedilatildeo e a do proacuteprio

important mission reserved to it in the history of the East History seems to teach that the whole human race required a gradual education before in the fullness of time it could be admitted to the truths of Christianityrdquo

[201]

Impeacuterio Britacircnico por ser herdeiro legiacutetimo do ramo mais poderoso do grupo chamado ariano (indo-

europeu) e assegurava a aceitaccedilatildeo de suas conclusotildees como verdadeiras pela comunidade acadecircmica e pela

elite de sua eacutepoca agrave medida que respeitava a ordem do discurso vigente para pensarmos um pouco nos

termos de Foucault o que incluiacutea a utilizaccedilatildeo da Antiguidade ldquoclaacutessicardquo para a fundamentaccedilatildeo de uma

retoacuterica especiacutefica Essa praacutetica recorrente na eacutepoca foi demonstrada nos escritos de Marx Engels Weber

Adam Smith Nietzsche e Hegel por Neville Morley (MORLEY 2009 p 141-161)

Podemos reconhecer que as culturas grega e indiana eram absolutamente diferentes Sim podemos Isso

estaacute expliacutecito nas fontes de que dispomos sejam escritas iconograacuteficas arqueoloacutegicas No entanto natildeo

podemos deixar de notar que as interpretaccedilotildees conferidas a essa constataccedilatildeo por vezes vecircm dotadas de

certa maacute feacute de maneira consciente ou natildeo Haacute que se notar que as afirmaccedilotildees precipitadas de Muumlller pecam

pela idealizaccedilatildeo exacerbada de um mundo grego livre autocircnomo nacionalista mas o fazem propositalmente

para relegar aos indianos as caracteriacutesticas imediatamente opostas servis desprovidos de uma vida poliacutetica

complexa e saudaacutevel desprovidos de identidade nacional A ldquonaccedilatildeo de filoacutesofosrdquo de Muumlller eacute uma retoacuterica

criada lado a lado com a idealizada sociedade grega do mesmo Muumlller A recepccedilatildeo dos claacutessicos eacute desta

forma moldada de acordo com o proacuteprio posicionamento poliacutetico (LEONARD PRINS 2010 p 1-2) e com a

intenccedilatildeo clara de produzir um argumento plausiacutevel para uma ideia enviesada Atraveacutes dessa operaccedilatildeo

fundamentada em retoacuterica pura Muumlller exclui o mundo indiano da Histoacuteria Poliacutetica seguindo na esteira de

Hegel e desta forma o manteacutem imediatamente acorrentado agrave tutela europeia Um povo desprovido de

Histoacuteria Poliacutetica natildeo teria assim muito o que fazer a natildeo ser aceitar a dominaccedilatildeo e acima de tudo se

regozijar preparando-se para as verdades do Cristo e para uma vida civilizada de acordo com os termos do

proacuteprio Max Muumlller A contribuiccedilatildeo do Oriente dos indianos acima de tudo seria apenas no que se refere agrave

religiatildeo ao pensamento estando portanto longe do campo da accedilatildeo No campo da accedilatildeo deveriam apenas

ficar quietos passivos E suas ideias caminhariam seguindo essa loacutegica em direccedilatildeo ao engrandecimento da

complexidade intelectual do Ocidente esse grande desbravador libertador de primitivos Essa conclusatildeo

nos faz recordar as palavras jaacute citadas aqui do proacuteprio Muumlller que se julgava tatildeo preciso em seu estudo a

respeito dos indianos ldquonenhuma naccedilatildeo foi a este respeito tratada mais injustamente que a Iacutendiardquo (MUumlLLER

1860 [1859] p 6)

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Elementos claacutessicos em Esauacute e Jacoacute de Machado de Assis

Marihaacute Barbosa e Castro

marihacastrogmailcom

A partir do seacuteculo XX os estudos sobre a teoria da recepccedilatildeo

ganharam notoriedade entre criacuteticos e teoacutericos de literatura Essas

investigaccedilotildees se preocupam em analisar a participaccedilatildeo do receptor

na interpretaccedilatildeo de uma obra partindo do princiacutepio de que a leitura

eacute um consenso entre os elementos trazidos pelo texto e pelo seu

inteacuterprete Entretanto mais do que atentar para o exerciacutecio

corriqueiro de leitura a teoria da recepccedilatildeo se volta para a anaacutelise

das obras de arte (literaacuterias ou natildeo) como confluecircncia de textos e

multiplicidade de influecircncias apropriando-se dos conceitos de

intertextualidade propostos por Julia Kristeva e de dialogismo de

Mikhail Bakhtin Ao assumir a dinacircmica existente no exerciacutecio de

interpretaccedilatildeo delegando relevacircncia tambeacutem ao papel do

inteacuterprete a teoria da recepccedilatildeo assume que a obra de arte natildeo

possui um significado uacutenico e estaacutetico encerrado em si mesmo pois

seu sentido se modificaraacute a cada leitura em cada contexto Existem

portanto diversas possibilidades de leitura para todo o texto Essa

maneira de compreender a recepccedilatildeo estaacute fundamentada no

modelo proposto por Hans Robert Jauss que considera os aspectos

histoacutericos e formais de uma obra trabalhando com teorias

antagocircnicas como o Formalismo Russo e o Marxismo A teoria da

recepccedilatildeo sendo assim traz a novidade do enfoque no leitor

[205]

Essa nova corrente teoacuterica tambeacutem atingiu os Estudos Claacutessicos provocando um redimensionamento

significativo da aacuterea A tendecircncia de enxergar o claacutessico ndash entendido aqui como a cultura a literatura e as

obras de arte produzidas durante a Antiguidade grega e romana ndash como algo fixo e que pode ser

compreendido em seus proacuteprios termos tem sido bastante criticada A publicaccedilatildeo do livro Redeeming the text

(2003) de Charles Martindale configura-se como um marco da reflexatildeo sobre os Estudos Claacutessicos

associados agrave teoria da recepccedilatildeo aleacutem de observar a rede intertextual existente entre as obras da

Antiguidade claacutessica ndash que envolve conceitos como imitatio e aemulatio ndash propotildee que tambeacutem as

interpretaccedilotildees posteriores dos textos claacutessicos e a literatura em outros momentos do tempo tenham grande

influecircncia sobre a literatura grega e romana Afinal o olhar que lanccedilamos sobre a Antiguidade estaacute sempre

marcado por nossa maneira de enxergar o mundo por mais que tentemos nos posicionar fora de nossas

caracteriacutesticas eacute impossiacutevel assumir o olhar do leitor grego ou romano primeiros destinataacuterios dos claacutessicos

Aleacutem disso nossa leitura carrega diversas outras sendo influenciada por uma longa trajetoacuteria de

interpretaccedilotildees e recepccedilotildees de uma mesma obra A leitura da Eneida atualmente eacute amplamente influenciada

por obras como Os Lusiacuteadas de Camotildees e A divina comeacutedia de Dante Alighieri O modo como enxergamos o

mundo claacutessico passa pelo Renascimento europeu Entende-se portanto que a Antiguidade e a

Modernidade estatildeo sempre relacionadas em constante diaacutelogo para compreender uma eacute necessaacuterio pensar

sobre a outra William W Batstone ao analisar os estudos sobre recepccedilatildeo aponta que Charles Martindale

ldquo[] encontra na teoria da recepccedilatildeo tanto o enriquecimento do significado atraveacutes da recepccedilatildeo do passado

como a libertaccedilatildeo do significado para o leitor individual no presenterdquo (BATSTONE 2008 p 14)1 Martindale

portanto rompe com o pensamento que enxerga a anaacutelise histoacuterica da recepccedilatildeo da Eneida como uma

distorccedilatildeo da visatildeo original da obra Incluir a recepccedilatildeo como assunto a ser explorado pelos Estudos Claacutessicos

permite ainda ampliar o campo de trabalho dos classicistas e renovar o interesse pela literatura grega e

romana

Enfraquece-se portanto a ideia de que o mundo claacutessico soacute poderia ser estudado e compreendido por meio

da remissatildeo aos textos e materiais produzidos na Antiguidade (manuais de retoacuterica tratados poeacuteticos etc)

Embora muitos elejam esse procedimento como meacutetodo de anaacutelise a possibilidade de utilizar conceitos e

teorias contemporacircneas para refletir sobre a Antiguidade se torna cada vez menos estranha aos classicistas

O incentivo a novas anaacutelises das obras da Modernidade em que o elemento claacutessico se faz presente eacute outro

aspecto em que a teoria da recepccedilatildeo procura trabalhar Para esse tipo de anaacutelise eacute imprescindiacutevel o

conhecimento sobre a cultura e a literatura dos antigos e por isso os classicistas seriam os estudiosos com a

melhor condiccedilatildeo para trabalhar a recepccedilatildeo dos claacutessicos

1 Todas as traduccedilotildees apresentadas neste estudo satildeo nossas ldquo[hellip] finds in reception theory both the enrichment of meaning by the reception of the past and the liberation of meaning for the individual reader in the presentrdquo

[206]

A teoria da recepccedilatildeo associada aos Estudos Claacutessicos eacute ainda uma aacuterea recente e em desenvolvimento Natildeo

se pode falar sobre uma metodologia e nem mesmo sobre uma terminologia estabelecida Natildeo haacute consenso

sequer sobre o uso da palavra ldquorecepccedilatildeordquo para designar o processo de assimilaccedilatildeo de outros textos e

culturas outros termos como ldquoapropriaccedilatildeordquo jaacute foram sugeridos entretanto Martindale (2007 p 300)

reforccedila a utilizaccedilatildeo de ldquorecepccedilatildeordquo

Alguns se queixam de que lsquorecepccedilatildeorsquo sugere um papel passivo para o leitor (isso deve em parte refletir as outras associaccedilotildees da palavra em inglecircs) e preferem ldquoapropriaccedilatildeordquo Mas devemos nos lembrar de que lsquorecepccedilatildeorsquo foi adotada justamente por sublinhar o caraacuteter dinacircmico e dialoacutegico do exerciacutecio de leitura (de fato lsquoapropriaccedilatildeorsquo tomar posse de algo minimiza a possibilidade de diaacutelogo a capacidade do texto de resistir agraves nossas tentativas de dominaacute-lo sua capacidade de modificar nossa sensibilidade)2

Trabalhos como ldquoReception and Traditionrdquo (BUDELMANN HAUBOLD 2008) de Felix Budelmann e

Johannes Haubold se dedicam agrave reflexatildeo sobre as diferenccedilas entre tradiccedilatildeo recepccedilatildeo e permanecircncia ndash

fenocircmenos que natildeo possuem limites bem marcados entre si e que sempre estiveram presentes no jogo

literaacuterio atraveacutes de procedimentos como a imitatio e a aemulatio ndash procurando fixar noccedilotildees claras sobre esses

conceitos e ainda estabelecer qual seria a dinacircmica existente entre eles e como poderiam ser explorados

pelos estudos de recepccedilatildeo do claacutessico

Martindale (2007 p 298) afirma que o termo ldquotradiccedilatildeordquo carrega uma conotaccedilatildeo passiva contrastando com

o sentido de ldquorecepccedilatildeordquo ldquoa etimologia de lsquotradiccedilatildeorsquo por exemplo do latim lsquotraderersquo sugere transmissatildeo do

material do passado para o presente lsquoRecepccedilatildeorsquo por contraste pelo menos segundo o modelo da Escola de

Constance opera com uma temporalidade diferente envolvendo uma participaccedilatildeo ativa dos leitoresrdquo3 A

tradiccedilatildeo estaria relacionada agrave noccedilatildeo de estabilidade e fixidez mas nem sempre indicaria uma relaccedilatildeo de

submissatildeo do presente ao passado por traacutes da palavra ldquotradiccedilatildeordquo haacute muitos significados tornando difiacutecil a

fixaccedilatildeo de um conceito Aleacutem de ser facilmente verificaacutevel que natildeo existe somente uma tradiccedilatildeo e mesmo

compreendendo que o conceito se baseia na ideia de constacircncia natildeo podemos ignorar o movimento de

transmissatildeo que fundamenta toda tradiccedilatildeo Para Martindale (2007 p 300) esse movimento se

caracterizaria pelo seu estabelecimento confortaacutevel e natildeo contestado que torna possiacutevel a continuidade de

uma tradiccedilatildeo ldquolsquoTradiccedilatildeordquo por contraste poderia implicar que o processo de transmissatildeo eacute confortavelmente

incontestadordquo4 Jaacute Felix Budelmann e Johannes Haubold (2008 p 25) defendem que ldquono estudo da recepccedilatildeo

2 ldquoSome complain that ldquoreceptionrdquo suggests a passive role for the reader (this may in part reflect the other associations of the word in English) and prefer ldquoappropriationrdquo (eg Hall 2004 61) But we should remember that ldquoreceptionrdquo was adopted precisely to underline the dynamic and dialogic character of reading (indeed ldquoappropriationrdquo making onersquos own downplays the possibility of dialogue the capacity of the text to resist our attempts to master it its capacity to modify our sensibility)rdquo 3 ldquoThe etymology of ldquotraditionrdquo for example from the Latin tradere suggests a ndash usually benign ndash handing down of material from the past to the present ldquoReceptionrdquo by contrast at least on the model of the Constance school operates with a different temporality involving the active participation of the readersrdquo 4 ldquolsquoTraditionrsquo by contrast might imply that the process of transmition is comfortably uncontestedrdquo

[207]

como em qualquer outro lsquotradiccedilatildeorsquo natildeo deve ser invocada defendida ou atacada como uma ideia platocircnica

mas deve ser vista como uma ferramenta flexiacutevel para sugerir novas perspectivas em diferentes caminhos e

em diferentes ocasiotildees5 Uma das preocupaccedilotildees dos estudos de recepccedilatildeo dos claacutessicos seria justamente

tentar compreender esse movimento em diversos momentos da histoacuteria ldquoRecepccedilatildeordquo se diferenciaria de

ldquotradiccedilatildeordquo por conjugar noccedilotildees de dinamismo dialogismo e leitura trabalhando com a ideia do consenso A

permanecircncia do elemento claacutessico se torna possiacutevel atraveacutes da coexistecircncia e da interaccedilatildeo entre recepccedilatildeo e

tradiccedilatildeo ldquonoacutes precisamos manter a tradiccedilatildeo em vista quando estudamos a recepccedilatildeo e vice e versardquo

(BUDELMANN HAUBOLD 2008 p 24)6 A recepccedilatildeo traz ao claacutessico sempre algo novo eacute possiacutevel que a

atualizaccedilatildeo do interesse por muitas obras da Antiguidade tenha como referencial a presenccedila destas na

literatura posterior

A maneira como a literatura antiga se estabeleceu nas sociedades posteriores se fundamenta em uma

tradiccedilatildeo que idealiza o mundo grego e romano O termo ldquoclaacutessicordquo que passou por vaacuterios deslocamentos de

significado atraveacutes dos anos inicialmente relacionado a uma noccedilatildeo de estratificaccedilatildeo social passou a designar

o conjunto de melhores autores da Antiguidade os modelos oficiais de excelecircncia literaacuteria Essa ideologia se

apoiava em um discurso que legitimava certos valores e determinadas ordens sociais O claacutessico era

portanto uma instituiccedilatildeo com seus mecanismos de manutenccedilatildeo Durante os seacuteculos XIV e XV a fluecircncia em

latim claacutessico era um recurso de ascensatildeo social tendo sido o ensino da liacutengua obrigatoacuterio em qualquer

escola voltada para a educaccedilatildeo de jovens da nobreza As instituiccedilotildees de ensino se esforccedilavam por ensinar a

seus alunos as Humanidades por considerarem que a leitura dos claacutessicos e o aprendizado do latim e do

grego eram condiccedilotildees indispensaacuteveis para o refinamento cultural e para a formaccedilatildeo de homens civilizados

O claacutessico pois era muito visado por seu valor socioeconocircmico e mercadoloacutegico tendo sido um elemento de

diferenciaccedilatildeo entre os indiviacuteduos Nos seacuteculos seguintes sobretudo a partir do comeccedilo do seacuteculo XX o

claacutessico passa por uma gradativa perda de seu estatuto fruto das profundas mudanccedilas estruturais da

sociedade O cacircnone que antes incluiacutea apenas obras da Antiguidade jaacute contemplava autores

contemporacircneos e novas classes passam a ter acesso agrave escola provocando uma modificaccedilatildeo dos curriacuteculos

escolares Essa trajetoacuteria do termo e de sua posiccedilatildeo social faz parte do que hoje chamamos de uma tradiccedilatildeo

claacutessica Estudiosos como Seth L Schein (2008) defendem que eacute responsabilidade dos classicistas refletir

sobre esse processo e ajudar os estudantes a compreendecirc-lo ao lanccedilar olhares criacuteticos por todo o trajeto

percorrido pelo claacutessico Schein (2008 p 84) faz uma anaacutelise da recepccedilatildeo da literatura antiga observando os

lugares por ela ocupados em diferentes momentos da histoacuteria ldquoNoacutes classicistas a professores temos a

oportunidade e a responsabilidade de compreender e resistir agrave construccedilatildeo institucional de uma literatura

5 ldquoIn the study of reception as indeed elsewhere lsquotraditionrsquo should not be invoked defended or attacked as a Platonic idea but should be seen as a pliable tool for suggesting new perspectives in different ways on different occasionsrdquo 6 ldquoWe need to keep tradition in view when studying reception and vice versardquo

[208]

canocircnica e de uma tradiccedilatildeo claacutessica autossuficiente e ajudar os estudantes a compreender o processo

histoacuterico pelo qual textos satildeo apropriados e transformados7

Surge portanto outra questatildeo como investigar e que aproveitamento obter da anaacutelise literaacuteria pautada nos

estudos de recepccedilatildeo e permanecircncia do claacutessico Talvez seja esse o ponto mais incerto entre os estudiosos

afinal a aacuterea eacute ainda recente e natildeo se propotildee a encontrar uma metodologia que sirva para todas as ocasiotildees

cada contexto necessitaraacute de uma abordagem especiacutefica Entretanto eacute possiacutevel dizer que os trabalhos que

se apoiarem nessa maneira de compreender o claacutessico e a interaccedilatildeo entre o presente e o passado deveratildeo

ultrapassar a simples constataccedilatildeo de que uma obra conversa com a outra Eacute preciso transpor a abordagem

superficial e redutora atraveacutes de uma metodologia consistente que reflita sobre o como e o porquecirc da

permanecircncia claacutessica Parece ser uma saiacuteda razoaacutevel analisar os trabalhos que se proponham a refletir sobre

a recepccedilatildeo em vaacuterios aspectos que relacionem duas obras ou dois autores que observem a trajetoacuteria de um

texto ou de um conjunto de textos de um mesmo autor que analisem as alusotildees e citaccedilotildees encontradas na

obra de um uacutenico autor dentre outros procedimentos

No Brasil livros como Permanecircncia claacutessica visotildees contemporacircneas da antiguidade greco-romana (2010) de

Bruno Vieira e Maacutercio Thamos marcam o despertar para esse novo encaminhamento dos Estudos Claacutessicos

Haacute ainda outros trabalhos que comeccedilam a trilhar o caminho dos estudos de recepccedilatildeo dos claacutessicos como ldquoA

Greacutecia de Machado de Assisrdquo (2001) de Jacyntho Lins Brandatildeo ldquoShakespeare e o drama satiacutericordquo de Erick

Ramalho e a dissertaccedilatildeo de mestrado de Priscila Maria Mendonccedila Machado Vrbs no Cosme Velho anaacutelise da

presenccedila da literatura latina em Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas (2010) Este trabalho pretende se juntar a

tais colaboraccedilotildees empreendendo uma breve anaacutelise do romance Esauacute e Jacoacute de Machado de Assis

Destacamos inicialmente que o nuacutemero de referecircncias claacutessicas encontradas em Esauacute e Jacoacute (1904) eacute

substancialmente maior do que em Memorial de Aires (1908)8 Essa comparaccedilatildeo nos parece proveitosa uma

vez que ambos os romances estatildeo ligados pelo personagem-narrador-autor Joseacute da Costa Marcondes Aires

o conselheiro mas foram estruturados de maneira diversa Esauacute e Jacoacute eacute narrado em terceira pessoa

enquanto o Memorial de Aires um livro de memoacuterias como evidencia o proacuteprio tiacutetulo estaacute escrito em

primeira Ao abrirmos as paacuteginas de Esauacute e Jacoacute deparamo-nos em primeiro lugar com uma ldquoAdvertecircnciardquo

Quando o conselheiro Aires faleceu acharam-se-lhe na secretaacuteria sete cadernos manuscritos rijamente encapados em papelatildeo Cada um dos primeiros seis tinha o seu

7 ldquoWe classical scholars and teachers have a particular opportunity and responsibility to understand and resist the institutional construction of a self-serving literary Canon and classical tradition and to help students grasp the historical process by which texts are de-historicized appropriated and transformed so that they lose their Power to criticize and call into questionrdquo 8 Ao todo verificamos 34 referecircncias ao mundo claacutessico em Esauacute e Jacoacute enquanto em Memorial de Aires encontramos 16

[209]

nuacutemero de ordem por algarismos romanos I II III IV V VI escritos agrave tinta encarnada O seacutetimo trazia este tiacutetulo Uacuteltimo

A razatildeo desta designaccedilatildeo especial natildeo se compreendeu entatildeo nem depois Sim era o uacuteltimo dos sete cadernos com a particularidade de ser o mais grosso mas natildeo fazia parte do Memorial diaacuterio de lembranccedilas que o conselheiro escrevia desde muitos anos e era a mateacuteria dos seis Natildeo trazia a mesma ordem de datas com indicaccedilatildeo da hora e do minuto como usava neles Era uma narrativa e posto que figurasse aqui o proacuteprio Aires com o seu nome e tiacutetulo de conselho e por alusatildeo algumas aventuras nem assim deixava de ser a narrativa estranha agrave mateacuteria dos seis cadernos Uacuteltimo por quecirc (ASSIS 2018 p 49)

Aires ainda que escondido pelo veacuteu de um narrador onisciente eacute autor de Esauacute e Jacoacute Essa imbricada

operaccedilatildeo articulada pelo autor-empiacuterico Machado de Assis estaacute refletida tambeacutem nos diferentes niacuteveis de

elaboraccedilatildeo intertextual dos dois romances O Memorial em que o narrador fala de si em tom confessional

como se natildeo tivesse preparado a princiacutepio as paacuteginas para o puacuteblico leitor possui uma quantidade menor de

alusotildees ao mundo claacutessico quando comparado a Esauacute e Jacoacute construiacutedo como narrativa agrave parte que visava

provavelmente agrave publicaccedilatildeo

A hipoacutetese de que o desejo do finado fosse imprimir este caderno em seguida aos outros natildeo eacute natural salvo se queria obrigar agrave leitura dos seis em que tratava de si antes que lhe conhecessem esta outra histoacuteria escrita com um pensamento interior e uacutenico atraveacutes das paacuteginas diversas Nesse caso era a vaidade do homem que falava mas a vaidade natildeo fazia parte dos seus defeitos Quando fizesse valia a pena satisfazecirc-la Ele natildeo representou papel eminente neste mundo percorreu a carreira diplomaacutetica e aposentou-se Nos lazeres do ofiacutecio escreveu o Memorial que aparado das paacuteginas mortas ou escuras apenas daria (e talvez de) para matar o tempo da barca de Petroacutepolis (ASSIS 2018 p 49)

Na ldquoAdvertecircnciardquo de Memorial de Aires por sua vez ldquoM de Ardquo alega natildeo possuir habilidade semelhante agrave de

Aires para redigir a narrativa agrave maneira de Esauacute e Jacoacute tendo por isso apenas editado o Memorial para

transformaacute-lo em uma narraccedilatildeo seguida ldquoapesar da forma de diaacuterio que temrdquo

Quem me leu Esauacute e Jacoacute talvez reconheccedila estas palavras do prefaacutecio Nos lazeres do ofiacutecio escrevia o Memorial que apesar das paacuteginas mortas ou escuras apenas daria (e talvez decirc) para matar o tempo da barca de Petroacutepolis Referia-me ao Conselheiro Aires Tratando-se agora de imprimir o Memorial achou-se que a parte relativa a uns dous anos (1888-1889) se for decotada de algumas circunstacircncias anedotas descriccedilotildees e reflexotildees pode dar uma narraccedilatildeo seguida que talvez interesse apesar da forma de diaacuterio que tem Natildeo houve pachorra de a redigir agrave maneira daquela outra ndash nem pachorra nem habilidade Vai como estava mas desbastada e estreita conservando soacute o que liga o mesmo assunto O resto apareceraacute um dia se aparecer algum dia (ASSIS 2009 p 51)

Diante disso parece-nos razoaacutevel afirmar que a disparidade entre as referecircncias ao mundo claacutessico

encontradas em Esauacute e Jacoacute e Memorial de Aires tenha sido uma operaccedilatildeo consciente do autor empiacuterico que

buscou atribuir aos romances o jogo intertextual mais adequado ao contexto de cada um a narrativa

preparada por Aires para a publicaccedilatildeo possui maior abundacircncia de alusotildees do que o diaacuterio pretensamente

iacutentimo do conselheiro A preacute-suposiccedilatildeo expliacutecita de um leitor traz para o texto uma aposta maior no jogo

intertextual e a proacutepria discrepacircncia entre a quantidade de referecircncias ao mundo claacutessico dos dois romances

pode ser compreendida como um jogo empreendido pelo autor empiacuterico

[210]

Entretanto este trabalho concentrar-se-aacute nas referecircncias do romance Esauacute e Jacoacute elegendo aquelas que

oferecem mais frutos para uma anaacutelise da obra que tenha como princiacutepio os estudos recentes sobre a

recepccedilatildeo do claacutessico (evitando portanto a mera constataccedilatildeo da existecircncia de uma alusatildeo citaccedilatildeo ou

referecircncia ao mundo claacutessico no romance) Ainda na jaacute referida ldquoAdvertecircnciardquo de Esauacute e Jacoacute uma explicaccedilatildeo

sobre a escolha do tiacutetulo eacute apresentada ldquoQuanto ao tiacutetulo foram lembrados vaacuterios em que o assunto se

pudesse resumir Ab ovo por exemplo apesar do latim venceu poreacutem a ideia de dar estes dois nomes que o

proacuteprio Aires citou uma vez ESAUacute E JACOacuterdquo

A expressatildeo Ab ovo foi utilizada por Horaacutecio na Arte Poeacutetica em uma exposiccedilatildeo sobre o estilo mais adequado

para uma narrativa

Non fumum ex fulgore sed ex fumo dare lucem cogitat ut speciosa dehinc miracula promat Antiphaten Scyllamque et cum Cyclope Charybdim Nec reditum Diomedis ab interitu Meleagri nec gemino bellum Troianum orditur ab ouo semper ad euentum festinat et in medias res non secus ac notas auditorem rapit et quae desperat tractata nitescere posse relinquit atque ita mentitur sic ueris falsa remiscet primo ne medium medio ne discrepet imum (Hor Ars P 143-152) Que natildeo tira fumo das luzes mas lume do fumo para daiacute mostrar o espetaacuteculo pleno em prodiacutegios seja Antiacutefates Cila e Cariacutebdis junto ao Ciclope Nem inicia em morrer de Meleagro ao voltar Diomedes nem de um ovo gecircmeo comeccedila a guerra de Troia mas vai sempre direto ao assunto e no meio das coisas como se jaacute conhecidas pega o ouvinte e aquilo sem esperanccedila de brilho no trato deixa de lado eacute assim que ele mente mistura verdade no falso sem que do iniacutecio destoe o meio e do meio o arremate (Trad de Guilherme Gontijo Flores)9

Segundo a recomendaccedilatildeo de Horaacutecio eacute desnecessaacuterio que as narrativas tenham sempre como iniacutecio as

origens que engendraram um enredo a histoacuteria da guerra de Troia natildeo precisa ser contada a partir do

nascimento de Helena A guerra pode ser narrada in medias res ou seja comeccedilando pelo meio da histoacuteria

como de fato ocorre na Iliacuteada Entretanto o conselheiro Aires iniciaraacute sua narraccedilatildeo ab ovo contando a

histoacuteria dos irmatildeos Pedro e Paulo desde a gestaccedilatildeo

A referecircncia agrave Arte Poeacutetica natildeo aproveita apenas o conceito de narrativa Ab ovo ndash a que narra desde as

origens ndash mas tambeacutem o mito do nascimento de Helena Leda transformada em gansa potildee dois ovos de

onde nascem os gecircmeos Helena e Poacutelux filhos de Zeus em um ovo e Clitemnestra e Castor filhos de Tiacutendaro

em outro A referecircncia aos ovos gecircmeos (geminum ovum segundo a designaccedilatildeo de Horaacutecio no verso 7) que

9 Gostariacuteamos aqui de agradecer ao Dr Guilherme Gontijo Flores que gentilmente nos ofereceu a sua traduccedilatildeo antes mesmo de publicaacute-la

[211]

originaram dois pares de irmatildeos gecircmeos eacute ainda mais rica se pensarmos que Castor e Poacutelux constituem na

Antiguidade exemplo de amor fraterno tendo sido transformados na constelaccedilatildeo de Gecircmeos Entretanto o

tiacutetulo escolhido para o romance eacute Esauacute e Jacoacute tambeacutem uma referecircncia biacuteblica de briga e desentendimento

entre irmatildeos Esauacute e Jacoacute portanto oferecem um modelo muito distinto de fraternidade daquele

proporcionado por Castor e Poacutelux

Eacute possiacutevel sugerir que Machado de Assis ao recorrer ao conceito Ab ovo em um contexto de nascimento de

gecircmeos aproveita natildeo soacute a ideia de que sua narrativa teria iniacutecio nas origens das vidas de seus protagonistas

A possibilidade de narrar a histoacuteria da guerra de Troia desde o nascimento da mulher que gerou o conflito

entre gregos e troianos soacute existe porque ab ovo Helena estava destinada a engendrar a guerra Da mesma

forma os gecircmeos Pedro e Paulo desde a gestaccedilatildeo estatildeo destinados ao conflito ab ovo repetem o exemplo

dos irmatildeos Esauacute e Jacoacute (muito diferente da histoacuteria de uniatildeo entre irmatildeos de Castor e Poacutelux) Logo apoacutes o

anuacutencio da escolha do tiacutetulo para o romance uma citaccedilatildeo direta de um verso da Divina Comeacutedia de Dante

Alighieri (2009 p 60) chama a atenccedilatildeo e reforccedila a nossa leitura ldquoDigo que quando a alma malfadadardquo10 O

narrador anuncia atraveacutes dessa epiacutegrafe que vai contar a histoacuteria de duas almas mal nascidas que brigaram

e se odiaram desde o uacutetero segundo a cabocla Baacuterbara A questatildeo colocada ab ovo e que atravessaraacute e

concluiraacute a histoacuteria de Esauacute e Jacoacute eacute o oacutedio reciacuteproco dos dois irmatildeos

O capiacutetulo CXXI intitulado como Uacuteltimo encerra o romance e traz em primeiro lugar a referecircncia a Castor

e Poacutelux A uniatildeo momentacircnea de Pedro e Paulo diante do juramento recente feito para a matildee no leito de

morte rende aos irmatildeos a alcunha dos gecircmeos filhos de Leda Entretanto apesar da conciliaccedilatildeo temporaacuteria

ldquoo olho dos amigos natildeo tardou em descobrir que natildeo viviam bem pouco depois que se detestavamrdquo (ASSIS

2018 p 206 grifos nossos) Diante do burburinho dos deputados impressionados com a mudanccedila dos

irmatildeos que antes pareciam tatildeo amigos o conselheiro Aires afirma que Pedro e Paulo ldquosatildeo os mesmosrdquo (ASSIS

2018 p 206) A conclusatildeo de que tivessem brigado pela heranccedila natildeo recebeu resposta do conselheiro (que

tinha teacutedio agrave controveacutersia e portanto preferiu evitar debate) mas este conclui em pensamento que ldquoeles

eram os mesmos desde o uacuteterordquo (ASSIS 2018 p 206 grifos nossos)

Assim a conclusatildeo do romance retoma e reforccedila o conceito Ab ovo que o autor apontou antes mesmo de

anunciar a epiacutegrafe a aversatildeo reciacuteproca entre Pedro e Paulo era ldquopersistente no sangue como necessidade

virtualrdquo (ASSIS 2018 p 206) A visatildeo da profetisa Baacuterbara dessa briga fraternal reforccedila a nossa leitura No

primeiro capiacutetulo do romance intitulado Coisas futuras o autor sugere a releitura das Eumecircnides de Eacutesquilo

Relecirc Eacutesquilo meu amigo relecirc as Eumecircnides laacute veraacutes Piacutetia chamando os que iam agrave consulta ldquoSe haacute aqui Helenos venham aproximem-se segundo o uso na ordem marcada pela

10 ldquoDico che quando lrsquoanima mal natardquo (Trad de Italo Eugenio Mauro)

[212]

sorterdquo[] A sorte outrora a numeraccedilatildeo agora tudo eacute que a verdade se ajuste agrave prioridade e ningueacutem perca a sua vez de audiecircncia (ASSIS 2018 p 54-55)

No trecho acima o narrador refere-se agrave visita de Natividade e Perpeacutetua ao morro do Castelo onde morava

a cabocla Baacuterbara que conforme se dizia poderia prever o futuro A pequena cabocla eacute comparada agrave Piacutetia

sacerdotisa do templo de Apolo que previa sinas e destinos A alusatildeo ao antigo oraacuteculo justifica a consulta agrave

cabocla segundo o narrador um costume ldquovelho e velhiacutessimordquo (ASSIS 2018 p 54) Ao longo da obra muitas

outras referecircncias aos oraacuteculos antigos satildeo feitas e a cabocla do castelo eacute constantemente comparada com

sibilas e Piacutetia

As Eumecircnides encerram a trilogia de Eacutesquilo conhecida como Oresteia Orestes eacute levado a julgamento contra

as Fuacuterias que reclamam o seu direito de vingar os crimes cometidos entre consanguiacuteneos Orestes eacute

perseguido por elas apoacutes assassinar a sua proacutepria matildee Clitemnestra e Egisto para vingar o homiciacutedio de seu

pai Agamecircmnon O ambiente em que se desenvolve a Oresteia eacute marcado pela maldiccedilatildeo de Miacutertilo contra

Peacutelops e toda a sua descendecircncia Peacutelops eacute pai de Atreu e Tiestes que protagonizam um dos mais terriacuteveis

incidentes de crimes consanguiacuteneos da mitologia grega Atreu ao descobrir que sua esposa o traiacutea com seu

irmatildeo Tiestes o expulsa de Argos Tempos depois simula uma reconciliaccedilatildeo e faz com que Tiestes coma as

carnes de seus proacuteprios filhos em um banquete repetindo em alguma medida o exemplo de seu avocirc Tacircntalo

que servira aos deuses a carne de seu filho Peacutelops cuja vida foi restituiacuteda pelas divindades piedosas

A linhagem dos atridas marcada pela maldiccedilatildeo protagoniza diversas histoacuterias em que atridas fazem jorrar o

sangue de atridas Agamecircmnon imola Ifigecircnia para obter bons ventos em direccedilatildeo agrave Troia Clitemnestra torna-

se amante de Egisto ndash filho de Tiestes ndash e com ele assassina Agamecircmnon Orestes vinga o pai e tira a vida da

matildee e de Egisto tambeacutem seu consanguiacuteneo A Oresteia narra o assassinato de Agamecircmnon (Agamecircmnon) o

matriciacutedio vingativo de Orestes e o iniacutecio da perseguiccedilatildeo das Fuacuterias que desejam vinganccedila pela morte de

Clitemnestra (Coeacuteferas) e o julgamento seguido de absolviccedilatildeo de Orestes (Eumecircnides) Nas Eumecircnides

portanto a sucessatildeo de assassiacutenios entre os atridas tem fim com o julgamento de Orestes O ressentimento

das Fuacuterias diante da impossibilidade de vingar o matriciacutedio de Clitemnestra eacute aplacado por Atena que as

convence a renunciarem ao direito de vinganccedila e a assumirem uma nova funccedilatildeo As Fuacuterias transformam-se

em Eumecircnides natildeo mais deusas da vinganccedila e do sangue mas sim da beneficecircncia e do perdatildeo Destacamos

aqui o seguinte trecho do discurso persuasivo de Atena para convencer as Fuacuterias a aceitarem a absolviccedilatildeo

de Orestes

Tambeacutem espero que natildeo seja vosso intuito exacerbar como se os homens fossem galos a coacutelera no coraccedilatildeo dos cidadatildeos e neles instilar a sede de homiciacutedios

[213]

que lanccedila irmatildeos insanamente contra irmatildeos ateacute levaacute-los ao extermiacutenio reciacuteproco deixai que eles preservem sua valentia para lutar contra inimigos estrangeiros sempre ao alcance de quem traz no coraccedilatildeo um desejo febril de gloacuteria verdadeira mas natildeo queremos ter notiacutecia em tempo algum de paacutessaros lutando na mesma gaiola (Aesch Eum 1138-1149 Trad Maacuterio da Gama Kury)

Ao reler as Eumecircnides portanto o leitor natildeo apenas encontraraacute Piacutetia cuja fala Machado de Assis traz para o

seu romance mas tambeacutem uma trama cujo eixo principal eacute justamente aquilo que Atena natildeo mais deseja

ouvir em notiacutecias irmatildeos insanamente contra irmatildeos paacutessaros lutando na mesma gaiola As receacutem-tornadas

Eumecircnides confirmam os anseios da deusa

Jamais possa a discoacuterdia insaciaacutevel vociferar possessa na cidade e o poacute da terra nunca mais absorva o sangue escuro de seus proacuteprios filhos por causa de paixotildees inspiradoras de lutas fratricidas oriundas da acircnsia irresistiacutevel de vinganccedila que leva os homens agrave destruiccedilatildeo (Aesch Eum 1283-1290 Trad Maacuterio da Gama Kury)

As deusas beneacutevolas reiteram o temor das lutas fratricidas que levam os homens agrave destruiccedilatildeo Podemos

supor portanto que Machado de Assis natildeo queria que viacutessemos apenas Piacutetia e a fila de helenos aguardando

suas prediccedilotildees segundo os usos da sorte mas tambeacutem a maldiccedilatildeo dos atridas que levou Atreu e Tiestes a

disputarem Micenas de forma violenta e cruel Em alguma medida a disputa entre irmatildeos que marca a

maldiccedilatildeo dos atridas encontra eco em muitas histoacuterias biacuteblicas Caim e Abel Isaac e Ismael e Esauacute e Jacoacute

Machado de Assis representa em seu romance uma tensatildeo que atravessou as trageacutedias gregas e habita o

imaginaacuterio ocidental atraveacutes de todas as histoacuterias que nos constituem os conflitos entre consanguiacuteneos as

disputas entre irmatildeos os fratriciacutedios Natildeo por acaso os irmatildeos ganham os nomes dos apoacutestolos Pedro e

Paulo que protagonizam um conflito em Antioquia registrado no Novo Testamento (Gl 2 11-16) As

desavenccedilas entre os gecircmeos Pedro e Paulo encarnam ainda o embate poliacutetico de um tempo vivido por

Machado de Assis o conflito entre a monarquia e a repuacuteblica Consolidada a Repuacuteblica os gecircmeos tornam-

se deputados mas permanecem dissidentes poliacuteticos Esse conflito que atravessa o livro e perdura no uacuteltimo

capiacutetulo fora identificado pela primeira vez pela ldquoPiacutetia do Norterdquo (ASSIS 2018 p 262) a cabocla Baacuterbara

Assim Esauacute e Jacoacute repetindo o uso de muitas das antigas trageacutedias demonstra que as palavras do oraacuteculo se

cumprem natildeo importando quais tenham sido os esforccedilos dos heroacuteis e heroiacutenas para fugir do Destino

Percebemos portanto que as referecircncias claacutessicas de Esauacute e Jacoacute aqui analisadas produzem sentidos

significativos para a construccedilatildeo do romance

[214]

Referecircncias bibliograacuteficas

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HORAacuteCIO Arte Poeacutetica Carta aos Pisotildees Traduccedilatildeo de G G Flores No prelo

MACHADO P M M A Vrbs no Cosme Velho anaacutelise da presenccedila da Literatura Latina em Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas 88 f Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Estudos Literaacuterios) ndashUniversidade Estadual Paulista Araraquara 2010

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Mulheres Travestidas do Parlamento de Aristoacutefanes ao Sertatildeo das Gerais de Rosa

Edinaura Linhares Ferreira Lima

edinaura01gmailcom

Neste artigo visamos discutir o processo de travestimento de

personagens masculinas em femininas em duas obras que apesar

de cronologicamente distantes possuem questotildees que mantecircm um

diaacutelogo intertextual e se cruzam em tempos diversos com

questionamentos humanos pertencentes a diferentes eacutepocas mas

que refletem os mecanismos de poder pertinentes ao ser humano

Nesse contexto o comedioacutegrafo grego Aristoacutefanes com sua peccedila

As mulheres no parlamento (393-392 aC) apresenta diaacutelogos que se

cruzam com a obra Grande Sertatildeo Veredas (1956) do escritor

brasileiro Joatildeo Guimaratildees Rosa

Decerto precisa-se entender um pouco do contexto no qual viveu

o comedioacutegrafo Aristoacutefanes isto eacute a Atenas do seacuteculo V aC Sabe-

se que nesse periacuteodo histoacuterico o teatro tinha um papel importante

na vida dos gregos e por esse motivo o poeta participou de

concursos de peccedilas teatrais Aristoacutefanes participou de vaacuterios

concursos entretanto essas competiccedilotildees eram incentivadas no

governo do tirano Pisiacutestrato como um subterfuacutegio para continuar e

se manter no poder e o estratagema foi usar as artes para a

manipulaccedilatildeo das camadas populares Aleacutem da arte ele tambeacutem

usou da religiatildeo e do culto de adoraccedilatildeo das massas aos deuses para

conseguir prestiacutegio popular e fazer com que as famiacutelias

aristocraacuteticas perdessem influecircncia diante dos mais pobres ldquo[]

afirmou-se que o grande desenvolvimento das festas religiosas e o

[216]

interesse pelas artes traccedilo caracteriacutestico dos tiranos gregos brotavam apenas do desiacutegnio de afastar da

poliacutetica as massas inquietas e distraiacute-las sem perigordquo (JAEGER 2013 p 278)

Desse modo diante de um contexto poliacutetico de falso interesse pelas artes e pela religiatildeo estas que foram

usadas para desviar a atenccedilatildeo da populaccedilatildeo da poliacutetica surgiram alguns comedioacutegrafos sendo Aristoacutefanes

um deles Estima-se que ele tenha escrito em torno de quarenta peccedilas durante sua vida O poeta chegou ateacute

a ganhar alguns dos concursos mas infelizmente poucas de suas peccedilas permaneceram e chegaram ateacute a

contemporaneidade pois muitas se perderam e de outras restaram apenas fragmentos ficando desse modo

onze peccedilas como As Nuvens As Vespas Lisiacutestrata As ratildes As mulheres no parlamento Os paacutessaros As

Tesmofariantes Os acarnienses Os Cavaleiros A paz As aves

Segundo Jaeger (2013 p 278)

Nenhuma exposiccedilatildeo da cultura do uacuteltimo terccedilo do Seacuteculo V pode passar por cima de um fenocircmeno para noacutes tatildeo estranho quanto atraente a comeacutedia aacutetica Eacute certo que os antigos a denominaram ldquoespelho da vidardquo nela se pensavam na natureza humana sempre igual e nas suas fraquezas

Aleacutem disso eacute importante ressaltar que o teatro representava uma determinada realidade cheia de conflitos

que no caso das comeacutedias ainda continuam sendo vaacutelidas O teatro grego representava a vida do cotidiano

grego junto ao contexto religioso isto eacute trata-se de segundo Vernant (2006 p 79-80) ldquo[] o jogo e a festa

a mascarada e o disfarce a experiecircncia de um desterro em relaccedilatildeo ao curso de norma das coisas enfim

fundar o teatro em que no palco a ilusatildeo ganha corpo e se anima e o fictiacutecio se mostra como se fosse

realidaderdquo

Desse modo o teatro estava no acircmbito religioso como uma forma de culto ao deus Dioniacutesio ocasiatildeo em que

havia a encenaccedilatildeo de peccedilas para os cidadatildeos gregos com um concurso de representaccedilotildees a serem exibidas

no festival de teatro Para um poeta da eacutepoca era um grande prestiacutegio ganhar o festival nas Dionisiacuteas pois

ldquoas trageacutedias e comeacutedias antes exibidas diante de incontaacuteveis multidotildees no vasto teatro ao ar livre eram

feitas para impressionar os estrangeiros com riqueza espiacuterito puacuteblico e supremacia artiacutestica de Atenasrdquo

(HAIGH 1907 p 8 traduccedilatildeo nossa)

Por isso precisa-se perceber que os comedioacutegrafos desse periacuteodo histoacuterico passaram a refletir sobre sua

democracia sobre a realidade que os cercava como cidadatildeos e sobre os problemas que poderiam refletir em

sua comunidade

A comeacutedia visa as realidades do seu tempo mais do que qualquer arte Por mais que isso a vincule a uma realidade temporal e histoacuterica eacute importante natildeo perder de vista que o propoacutesito fundamental eacute apresentar aleacutem da efemeridade das suas representaccedilotildees certos aspectos eternos do Homem que escapam agrave elevaccedilatildeo poeacutetica da epopeia e da trageacutedia (JAEGER 2013 p 415)

[217]

Para isso o comedioacutegrafo serviu-se do poder da palavra passando a usaacute-lo nas peccedilas como uma forma de

censurar essa sociedade A palavra construiria o discurso e ele era importante para persuadir as pessoas

Desse modo o poeta coacutemico colocou na performance do ator e na oratoacuteria advinda de seus textos uma

maneira de natildeo somente persuadir mas de provocar o riso ao mesmo tempo em que criticava os problemas

pouco discutidos e ignorados pela maioria do povo grego As peccedilas de teatro ldquocoincidem com o triunfo da

democracia a hegemonia de Atenas o nascimento da histoacuteria e a estatutaacuteria de Fiacutedias Eacute o seacutec V o seacuteculo de

Peacutericles o seacuteculo claacutessicordquo (BARTHES 1990 p 61)

Durante muito tempo a comeacutedia natildeo foi tatildeo estudada porque trata de assuntos constrangedores

escandalizadores que causam o risiacutevel no puacuteblico por ridicularizarem as pessoas e principalmente

debocharem de uma parte da populaccedilatildeo Segundo Jaeger (2013 p 415) ldquoa origem da comeacutedia se encontra

no incoerciacutevel impulso das naturezas mais comuns poderiacuteamos ateacute dizer na tendecircncia popular realista

observadora e criacutetica que escolhe como predileccedilatildeo imitar o que eacute mau censuraacutevel indignordquo

Desse modo na peccedila As mulheres no parlamento Aristoacutefanes mostra-nos por meio de um grupo de mulheres

que querem tomar o poder por meio da apropriaccedilatildeo poliacutetica a imitaccedilatildeo do discurso ou da retoacuterica masculina

isto eacute mediante a palavra o convencimento a incitaccedilatildeo do puacuteblico que estava na assembleia Aleacutem disso as

mulheres pegam as roupas dos maridos durante agrave noite colocam barbas falsas esforccedilam-se para andar e

falar como homens e datildeo um jeito de sair de casa durante alguns dias para tomarem sol e natildeo parecerem tatildeo

brancas jaacute que as mulheres gregas tomavam pouco sol pois natildeo saiacuteam da casa com frequecircncia Assim o plano

de tomada do poder seria concretizado na Assembleia um local puacuteblico proacuteprio dos homens gregos do qual

a mulher grega ateniense natildeo participava pois aquele local de fala era dado somente ao cidadatildeo grego

Aleacutem disso a personagem Praxaacutegora e as outras mulheres ficam insatisfeitas com o governo estabelecido

pelos homens gregos tambeacutem se encontram fartas da maacute administraccedilatildeo puacuteblica corrupta por meio da qual

se estabelecia a grande desigualdade social entre a aristocracia e o povo e entatildeo elas se irritam com o ganho

advindo de interesses particulares e natildeo coletivos Por isso a personagem convoca todas as mulheres

esposas de gregos para insuflarem o ambiente da assembleia com o discurso de tomada de poder sendo este

passado para as mulheres que saberiam administraacute-lo melhor

Ademais Praxaacutegora justifica os motivos que levariam as mulheres a exercerem um governo bem melhor do

que o dos homens Ela discursa mostrando os problemas existentes na sociedade grega acerca das mulheres

e a maneira conservadora de que as viviam dentro da sociedade ateniense elas cuidariam do governo da

mesma maneira cuidadosa que administram suas casas por serem mais conservadoras do que os homens

elas fariam tudo da mesma maneira que sempre fizeram poupariam a vida dos jovens pois por serem matildees

natildeo gostariam que seus filhos participassem de guerras e nem que eles morressem acabariam com os

[218]

conflitos e lutas entre os gregos Decerto elas saberiam lidar melhor com o dinheiro puacuteblico dividiriam de

modo mais igualitaacuterio e natildeo seriam enganadas jaacute que elas mesmas cuidariam da despesa e organizaccedilatildeo de

seus lares Eram aleacutem disso haacutebeis em enganar seus maridos cotidianamente

Apesar do discurso eloquente da assembleia e da tomada do poder questiona-se os detalhes dessa

administraccedilatildeo puacuteblica como funcionaria esse novo governo Assim eacute explicado que tudo seria repartido

todos deveriam entregar suas posses individuais e materiais todos os dias haveria um jantar coletivo para

todas as pessoas e a comida seria repartida de forma igualitaacuteria os filhos seriam do grupo natildeo haveria um

pai em particular apenas saberiam quem eacute a matildee isso o que colaboraria para que cada jovem tratasse os

mais velhos de forma justa pois qualquer um poderia ser seu pai Todos teriam relaccedilatildeo sexual com quem

quisessem tendo os velhos e as velhas e os feios e as feias prioridade na escolha dos parceiros mais jovens e

bonitos e em terem saciadas os seus desejos sexuais Em suma haveria a busca por uma sociedade mais

igualitaacuteria para todos mas ainda se apresentava resistecircncia de alguns contra o novo governo pois estes

estavam acostumados a terem privileacutegios individuais e a roubarem do povo Apesar de a peccedila ser irreal para

a eacutepoca a mulher ateniense casada com o cidadatildeo grego ateniense foi colocada como foco em uma lideranccedila

da poacutelis (πόλις)

Sob um ponto de vista similar agrave peccedila As mulheres no parlamento na obra Grande Sertatildeo Veredas do escritor

Joatildeo Guimaratildees Rosa aborda-se o travestimento feminino atraveacutes da personagem Diadorim que eacute uma

mulher travestida de homem O seu intuito era viver como um jagunccedilo dos sertotildees das Gerais seguindo seu

pai Joca Ramiro que era o maior liacuteder de um grupo de jagunccedilo dessa regiatildeo

A palavra ldquojagunccedilordquo e a instituiccedilatildeo da jagunccedilagem revestem-se assim de importacircncia estrateacutegica para se compreender o fenocircmeno da violecircncia e do crime no Brasil Ao retratar o paiacutes sob o acircngulo da jagunccedilagem Guimaratildees Rosa traz agrave tona o componente da violecircncia que estaacute na origem de todo poder constituiacutedo (BOLLE 2004 p 91-92)

Sem duacutevidas houveram inuacutemeros contextos para a criaccedilatildeo dos heroacuteis em Grande sertatildeo Veredas Diadorim eacute

jagunccedilo masculino valente desbravador destemido Diadorim eacute a proacutepria dualidade do ser partindo de

seus vaacuterios nomes e significados existentes ao longo da narrativa Primeiro em sua adolescecircncia eacute

apresentado ao leitor como Reinaldo que significa rei ou aquele que governa segundo conselhos Anos

depois quando jaacute homem eacute lhe dado o nome Diadorim que sendo esmiuccedilado abriga segmentos como Diaacute

que remete semanticamente ao Diabo a dea a Deus ao dia em suas conotaccedilotildees de tempo luz dor durar e

por fim ao uacuteltimo de todos os nomes Maria Deodorina da Feacute Bettancourt Marins

Os traccedilos baacutesicos da personagem mantecircm sempre uma mesma configuraccedilatildeo privilegiadora de algumas aacutereas da personalidade Sua posiccedilatildeo eacute numinosa na seacuterie filial como primogecircnita ou unigecircnita [] o pai natildeo tem filhos homens adultos ou natildeo os tem de todo Ela corta os cabelos enverga trajes masculinos abdica das fraquezas femininas - faceirice esquivanccedila sustos - cinge os seios e as ancas trata seus ferimentos em segredo assim como se banha

[219]

escondido Costuma ser descoberta quando ferida o corpo eacute desvendado guerreia morre (GALVAtildeO 1998 p 12)

Dessa maneira Diadorim natildeo eacute incrustado somente no romance Grande sertatildeo Veredas mas refaz-se

historicamente no Brasil no indiviacuteduo que habita o sertatildeo no homem que foi menosprezado pelos poderosos

da eacutepoca mas que mostrou que o sertanejo queria seu lugar de direito no sertatildeo Mesmo que fosse por meio

da forccedila da arma era assim que o homem sertanejo lidava matava e morria na base da faca e do fazer sangrar

do modo como fizeram Diadorim e seu inimigo Hermoacutegenes Esfaquearam-se e sangraram ateacute a morte de

ambos morrendo Diadorim com bravura e honra e cumprindo sua vinganccedila contra a morte de seu pai

Sangue Cortavam toucinho debaixo de couro humano esfaqueavam carnes Vi camisa de baetilha e vi as costas de homem remando no caminho para o chatildeo como corpo de porco sapecado e rapado [] Ao ferreio as facas vermelhas no embrulhaacutevel A faca a faca eles se cortaram ateacute os suspensoacuterios O diabo na rua no meio do redemunho Assim ah ndash mirei e vi ndash o claro claramente ai Diadorim cravar e sangrar o HermoacutegenesAh cravou ndash no vatildeo ndash e ressurtiu o alto esguicho de sangue porfiou para bem matar (ROSA 1994 p 855)

Decerto para apresentar o heroacutei Diadorim eacute necessaacuterio tambeacutem mostrar um dos contextos de criaccedilatildeo da

obra jaacute que eacute propagado o conhecimento que Rosa tinha do Brasil o autor era um homem que observava e

transmutava o paiacutes em suas obras o que tambeacutem fez em Grande Sertatildeo Veredas O criacutetico Antocircnio Cacircndido

(2002 p 122) jaacute mostrava em seu ensaio O homem dos avessos a enorme inspiraccedilatildeo que o escritor buscava

no povo brasileiro e na observaccedilatildeo documentaacuteria refletida em suas obras

a experiecircncia documentaacuteria de Guimaratildees Rosa a observaccedilatildeo da vida sertaneja a paixatildeo pela coisa e pelo nome da coisa a capacidade de entrar na psicologia do ruacutestico - tudo se transformou em significado universal graccedilas agrave invenccedilatildeo que subtrai a matriz regional para fazecirc-lo exprimir os grandes lugares comuns sem as quais a arte natildeo sobrevive dor juacutebilo oacutedio amor morte - para cuja oacuterbita nos arrasta a cada instante mostrando que o pitoresco eacute acessoacuterio e que na verdade o sertatildeo eacute o mundo

Com o intuito de adentrar na subjetividade da vida sertaneja Rosa colocou heroacuteis diferentes em seu

romance que natildeo habitavam espaccedilos urbanos e movimentados das grandes metroacutepoles mas nos apresentou

heroacuteis do sertatildeo que falavam viviam e mostravam um povo pouco conhecido do resto do Brasil Assim

tambeacutem jaacute salientava o tambeacutem escritor brasileiro Euclides da Cunha (1982 p 91) em sua obra Os Sertotildees

O sertanejo eacute antes de tudo um forte Natildeo tem o raquitismo exaustivo dos mesticcedilos neurastecircnicos do litoral [] Agrava-o a postura normalmente abatida num manifestar de displicecircncia que lhe daacute um caraacuteter de humildade deprimente [] Entretanto toda esta aparecircncia de cansaccedilo ilude [] Basta o aparecimento de qualquer incidente exigindo-lhe o desencadear das energias adormidas O homem transfigura-se [] e da figura vulgar do tabareacuteu canhestro reponta inesperadamente o aspecto dominador de um titatilde acobreado e potente num desdobramento surpreendente de forccedila e agilidade extraordinaacuterias

Indubitavelmente natildeo poderia ausentar-se a historicidade em suas narrativas Assim Rosa com o propoacutesito

de apresentar ao leitor o lugar comum de uma parcela excluiacuteda da sociedade retratou a figura de jagunccedilo ou

de cangaceiro Para Facoacute (1991) natildeo havia distinccedilatildeo entre os dois ambos representavam o sertanejo

[220]

valente tatildeo bem descrito no romance de Rosa este que criticou em seu livro e descreveu com minuacutecias o

contexto de violecircncia marginalidade e opressatildeo pelas quais passava o sertanejo

O Cangaccedilo fenocircmeno que reverberou no sertatildeo brasileiro na deacutecada de 30 foi uma resposta ao menosprezo

da elite dominante da figura do sertanejo pobre miseraacutevel castigado com a seca no sertatildeo Nordestino

desprovido de riquezas uma figura simploacuteria e cansada das injusticcedilas sociais Foi com a revolta dos

sertanejos que os jagunccedilos se fincaram no Nordeste revoltaram-se e pegaram em armas surgindo os

temidos cangaceiros

[] o presidente [] vangloriava-se de ter eliminado o cangaceirismo em todo o Cearaacute Perseguira-o eacute verdade prendera centenas de sertanejos insubmissos matara muitos destroccedilara grupos inteiros Mas a base fundamental a matriz do cangaceiro e do jagunccedilo permanecia intocada o monopoacutelio da terra onde o trabalhador vivia com o um semi-servo O latifuacutendio produzia o mal e o alimentava Provocava a miseacuteria entre os despossuiacutedos em cujo seio nasciam os bandoleiros que se voltavam contra o latifuacutendio ainda que de maneira inconsciente Mas a forccedila deste era tatildeo grande ainda que conseguia corrompecirc-los desviaacute-los do seu caminho de rebeliatildeo contra a ordem dominante e colocaacute-los a seu serviccedilo aliciando-os com os jagunccedilos para sua proacutepria defesa [] Eacute o capanga ou jagunccedilo na fazenda de um grande proprietaacuterio Os proacuteprios bandos autocircnomos se vecircem enredados nas malhas do latifundiaacuterio Para fugir agraves perseguiccedilotildees da poliacutecia ocultam-se [] numa grande fazenda abrigo em geral inviolaacutevel (FACOacute 1991 p 173)

Entatildeo do humilde e aparente subserviente homem que tirava o chapeacuteu de palha na presenccedila de pessoas

importantes desse homem sertanejo e nordestino surgiram os cangaceiros insubmissos Haacute ldquoa formaccedilatildeo de

grupos de cangaceiros que lutam de armas nas matildeos assaltando fazendas saqueando comboios e armazeacutens

de viacuteveres nas proacuteprias cidades e vilasrdquo (FACOacute 1991 p 34)

Decerto o jagunccedilo foi instituiacutedo em um contexto patriarcal e conservador Esses homens trabalhavam para

fazendeiros e poliacuteticos sendo em alguns momentos vistos como ladrotildees em outros como heroacuteis Eles

tinham no meio de outros sertanejos o seu lugar que tinha um papel masculino definido Assim Rosa

retratou em sua obra a sociedade patriarcal existente no Sertatildeo na deacutecada de 50 A sociedade retratada nos

sertotildees das Gerais era similar agrave do sertatildeo Nordestino

O nordestino eacute definido como um homem que se situa na contramatildeo do mundo moderno que rejeita suas superficialidades sua vida delicada artificial histeacuterica Um homem de costumes conservadores ruacutesticos aacutesperos masculinos O nordestino eacute definido como um macho capaz de resgatar aquele patriarcalismo em crise um ser viril capaz de retirar sua regiatildeo da situaccedilatildeo de passividade e subserviecircncia em que se encontrava (ALBUQUERQUE JUacuteNIOR 2013 p 150)

Dessa maneira Rosa criou seus jagunccedilos agrave moda dos bravos homens jaacute existentes na Caatinga brasileira Os

chamados cangaceiros foram comuns no Sertatildeo Nordestino e assim como os jagunccedilos dos sertotildees das

Gerais eram homens regidos por leis proacuteprias Em sua grande maioria eram homens viris que adentraram a

Caatinga na deacutecada de 30

[221]

Os maiores cangaceiros entendidos estes como os chefes de grupo de maior expressatildeo gostavam da vida do cangaccedilo Num sertatildeo profundamente conturbado pelas disputas entre chefes poliacuteticos lutas de famiacutelias ausecircncia de manifestaccedilotildees riacutegidas e eficazes de um poder puacuteblico longinquamente litoracircneo sertatildeo povoado por um tipo especial de homem individualista sobranceiro autocircnomo desacostumado a prestar contas de seus atos [] A figura do cangaceiro homem sem patratildeo vivendo das armas infenso a curvaturas era razoavelmente bem aceita naquele meio (MELLO 2004 p 116-117)

Assim os jagunccedilos de Rosa assemelhavam-se a tantos outros que existiram no paiacutes mas o personagem

Diadorim com seu travestimento tinha o intuito de criticar mostrando agrave sociedade que mesmo em uma

conjuntura patriarcal existem Diadorins seres androacutegenos ambiacuteguos que deixam agrave mostra aspectos da

sociedade brasileira natildeo visiacuteveis para a grande maioria dos brasileiros

A fumaccedila dos ticcedilotildees deu na cara de Diadorim ndash ldquoFumacinha eacute do lado ndash do delicadordquo [] Aquilo lufou De rempe tudo foi um atildeo e um catildeo mas o que havia de haver eu jaacute sabia Oap o assoprado de um refugatildeo e Diadorim estava de encontro no Fancho-Bode arrumou matildeo nele meteu um sopapo - um safano nas queixadas e uma sobarbada e calccedilou o peacute se fez em fuacuteria Deu com Fancho-Bode todo no chatildeo e jaacute se curvou encima e o punhal parou ponta diantinho da goela do dito bem encostado no gogoacute [] Diadorim mandou tambeacutem que Fancho se levantasse que puxasse tambeacutem da faca viesse melhor se desempenhar Mas o Fancho-Bode se riu amistoso []- ldquooxente Tu eacute manu velho patriacuteciordquo (ROSA 1994 p 219-220)

Conforme a personagem de Diadorim as mulheres gregas na peccedila As mulheres no Parlamento tambeacutem

utilizaram como subterfuacutegio o travestimento para que alcanccedilassem uma possiacutevel visibilidade e lideranccedila em

suas sociedades

Tanto na peccedila de Aristoacutefanes como no romance de Rosa as mulheres tinham seu lugar estabelecido Na

Greacutecia Antiga as funccedilotildees sociais da mulher eram a casa e os ritos religiosos Entatildeo os contextos de maior

permanecircncia das mulheres atenienses eram a famiacutelia o silecircncio o lar ou a casa (οἶκος) ou seja o seu lugar

era o privado natildeo lhes sendo possiacutevel andar nas ruas gregas desacompanhadas Segundo Ferraz Juacutenior

(1993 p 27) ldquoa palavra privado tinha o sentido deprivus de ser privado de daquele acircmbito em que o homem

submetido agraves necessidades da natureza buscava a sua utilidade no sentido de meios de sobrevivecircncia Nese

espaccedilo natildeo havia liberdaderdquo Por outro lado o lugar destinado ao homem era a poacutelis (πόλις) ao homem ao

puacuteblico ao cidadatildeo poliacutetico (πολίτικος) era permitido andar livremente pelas ruas atenienses

Tanto quanto em uma sociedade patriarcal agrave mulher era permitido o silecircncio tendo em vista que havia a

desconexatildeo com a famiacutelia no momento do casamento existindo uma ruptura completa entre a mulher e seus

laccedilos consanguiacuteneos Segundo Coulanges (1998 p 42) ldquoo casamento deu-lhe segundo nascimento

Doravante estaraacute colocada no lugar de filha de seu maridordquo

Assim a mulher ateniense era dada agrave famiacutelia do marido sendo deslocada do seu lugar de conviacutevio e afetos

com o qual natildeo teria mais contato A casa era a sede da famiacutelia e as relaccedilotildees familiares eram baseadas na

[222]

diferenccedila relaccedilatildeo de comando e de obediecircncia donde a ideia do pater famiacutelias do pai do senhor de sua

mulher seus filhos e seus escravos (FERRAZ JUacuteNIOR 1993 p 27) Isto eacute o pater famiacutelias era o homem que nas

sociedades antigas detinha para si o poder sobre o que houvesse de material escravo e feminino Segundo

Aristoacuteteles (Pol 1253b) apresentando uma definiccedilatildeo distinta e realista para o conceito o pater famiacutelias envolvia ldquoo

poder do senhorio [despotikecirc] sobre seus escravos marital [gamikecirc] o do marido sobre a mulher paternal [patrikecirc]

o do pai sobre os filhosrdquo

Na sociedade descrita pelo escritor Joatildeo Guimaratildees Rosa assim como na representada por Aristoacutefanes estaacute

enraizado o patriarcado contexto em que a mulher respeitada eacute a que habita os lares Para o leitor eacute colocada

claramente a visatildeo machista dos jagunccedilos no momento em que o heroacutei narra que as mulheres existem para a

satisfaccedilatildeo sexual do homem e que para poucas eacute dado um lar apenas agraves escolhidas para serem esposas

Aleacutem disso eacute colocado que natildeo existiam mulheres na vida de jagunccedilagem

[] Com natildeo terem mulher nenhuma laacute eles sacolejavam bestidades ndash ldquoSaindo por aiacuterdquo ndash dizia um ndash ldquoqualquer uma que seja natildeo me escapolerdquo Ao que contavam casos de mocinhas ensinadas por eles aproveitavelmente de seguida em horas safadas ndash ldquoMulher eacute gente tatildeo infelizrdquo ndash me disse Diadorim uma vez depois que tinha ouvido as estoacuterias (ROSA 1994 p 237)

Consoante o romance roseano o poder constituiacutedo pelos jagunccedilos brasileiros natildeo permitia que houvessem

mulheres lutando junto com os homens nas contendas e guerras que aconteciam nas lutas pelo poder

instituiacutedo dentro dos grupos de jagunccedilos Por esse motivo Diadorim ou Maria Diadorina apresentou-se

como homem para poder ser aceita e respeitada como um igual sendo de linhagem nobre e herdeira do

bando tendo tido como pai um liacuteder de um grande bando de jagunccedilos Assim era Diadorim uma mulher

escondida em meio a homens Segundo Galvatildeo (1998 p 12)

Essa personagem frequenta a literatura as civilizaccedilotildees as culturas a histoacuteria a mitologia Filha de pai sem concurso de matildee seu destino eacute assexuado natildeo pode ter amante nem filho Interrompe a cadeia das geraccedilotildees como se fosse um desvio de tronco central e a natureza a abandonasse por inviabilidade Sua potecircncia vital eacute voltada para traacutes para o pai natildeo tomaraacute outro homem Mulher maior de um lado acima da determinaccedilatildeo anatocircmica menor de outro suspensa do acesso agrave maturidade presa do laccedilo paterno mutilada nos muacuteltiplos papeacuteis que a natureza e sociedade lhe oferecem

Outro ponto em comum entre as obras eacute a grande oratoacuteria das personagens possuindo tanto Diadorim como

Praxaacutegoras o dom da oratoacuteria de convencer e incitar as outras personagens envolvidas Assim Diadorim

convence incita durante boa parte da trama do romance jaacute Praxaacutegoras faz incitaccedilatildeo agraves mulheres e depois

tenta convencer na Assembleia Segundo Ferreira (2010 p 15)

O termo persuadir origina-se de persuadere (per + suadere) Per como prefixo significa lsquode modo completorsquo Suadere equivale a lsquoaconselharrsquo [] Persuadir conteacutem em si o convencer (cum + vincere) [] Persuadir mover pelo coraccedilatildeo pela exploraccedilatildeo do lado emocional (as paixotildees) [] Convencer mover pela razatildeo pela exposiccedilatildeo de provas loacutegicas []

[223]

Sob o mesmo ponto de vista a peccedila As mulheres no parlamento e o livro Grande Sertatildeo Veredas trazem

reflexotildees sobre as accedilotildees do homem e o poder destinado ao masculino e a necessidade de travestimento do

feminino para conseguir ter vez e voz dentro de sociedades patriarcais As personagens criadas por

Aristoacutefanes e por Rosa fizeram-se ouvir mesmo que por meio de um estratagema Assim as mulheres usaram

de ardis para contornarem os mecanismos de poder presentes em suas sociedades

Portanto os escritores nos deixaram como legado o ensinamento de que a mulher pode participar de

determinados segmentos da sociedade aos quais anteriormente era vetado o puacuteblico feminino mostrando

ainda os autores que independentemente do tempo transcorrido entre as obras as mulheres devem

continuar a infringir as normas estabelecidas pelo patriarcado e que no final de suas trajetoacuterias elas podem

tomar para si um lugar que lhes eacute de direito retomando a voz em contextos prioritariamente masculinos

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ROSA J G Grande Sertatildeo Veredas Rio de Janeiro Nova Aguillar 1994

Cantaacuteteis de Chico Ceacutesar a poesia nordestina com um peacute na elegia latina

Sonia Aparecida dos Santos

ssantoscpsgmailcom

O presente trabalho foi realizado com

apoio do Conselho Nacional de

Desenvolvimento Cientiacutefico e Tecnoloacutegico

(CNPq)

Em um dos versos de Possessatildeo do ontem Jorge Luiacutes Borges afirma

que ldquotodo poema eacute com o tempo uma elegiardquo Eacute nessa concepccedilatildeo

lato sensu que muitas vezes modernamente se entende o gecircnero

que em sua origem era definido sobretudo por uma questatildeo

formal a presenccedila de diacutesticos formados por hexacircmetros e

pentacircmetros sucessivamente modelo que teve como uacuteltimo

representante em Roma o poeta Oviacutedio Apesar disso eacute fato que a

elegia atravessou o tempo e o espaccedilo e foi se transformando

reinventando-se e perpassou praticamente toda a produccedilatildeo liacuterica

ocidental chegando aos nossos dias Levando em conta essa

questatildeo o presente estudo se dedica agrave anaacutelise de alguns poemas

que compotildeem o livro Cantaacuteteis Cantos elegiacuteacos de amozade do

poeta e compositor paraibano Chico Cesar Em nossa anaacutelise

buscaremos perceber de que modo aspectos da elegia amorosa

romana sobretudo a ovidiana satildeo retomados e remodelados na

obra moderna atraveacutes de alusotildees agrave obra Amores

[225]

Introduccedilatildeo

ldquoTodo poema com o tempo eacute uma elegiardquo o verso de Jorge Luiacutes Borges presente no poema ldquoPossessatildeo do

ontemrdquo1 remete a uma concepccedilatildeo comumente utilizada acerca da definiccedilatildeo da esteacutetica elegiacuteaca isto eacute como

produccedilatildeo cuja temaacutetica se refere a assuntos lamentosos de ausecircncia luto e desengano

Sabemos que na Greacutecia do seacuteculo VII aC poreacutem a poesia elegiacuteaca natildeo se assentava sobre este ou aquele

tema quer de lamento ou natildeo mas versava sobre os mais diversos assuntos Aleacutem disso seu criteacuterio de

definiccedilatildeo era o meacutetrico sua forma tiacutepica era o diacutestico elegiacuteaco formado pela uniatildeo de um hexacircmetro seguido

de um pentacircmetro ambos de base datiacutelica2

Em Roma eacute notoacuterio que aleacutem de Corneacutelio Galo (aprox 69 aC ndash 26 aC) considerado o primeiro elegiacuteaco

romano e de Catulo (aprox 87-57 ou 54 aC) terem produzido elegias eacute uma triacuteade de poetas do periacuteodo

augustano Tibulo (aprox 60-19 a C) Propeacutercio (aprox 50-16 a C) e Oviacutedio (43 a C-17 d C) que

desenvolve a mais consistente produccedilatildeo desse tipo poeacutetico Tais autores foram aleacutem dos antecessores em

quem se inspiraram consolidando a elegia como um gecircnero literaacuterio propriamente dito dotando-a de uma

consistecircncia temaacutetica o que levou ao nascimento da elegia eroacutetica

Puacuteblio Oviacutedio Nasatildeo tido como o uacuteltimo dos elegiacuteacos augustanos deixa claro natildeo ter o viacutecio da modeacutestia

aleacutem de manifestar a certeza da proacutepria fama em seus epiacutelogos como ocorre por exemplo nos Amores em

que ao final do livro I ao mencionar a notoriedade de Galo e Tibulo bem como a expansatildeo e sobrevivecircncia

do metro elegiacuteaco coloca-se como parte de uma estirpe que jamais seraacute esquecida

Tityrus et fruges Aeneiaque arma legentur 25

Roma triumphati dum caput orbis erit

Donec erunt ignes arcusque Cupidinis arma

Discentur numeri culte Tibulle tui

Gallus et Hesperiis et Gallus notus Eois

Et sua cum Gallo nota Lycoris erit 30

Ergo cum silices cum dens patientis aratri

Depereant aeuo carmina morte carent

Cedant carminibus reges regumque triumphi

Cedat et auriferi ripa benigna Tagi

Vilia miretur uolgus mihi flauus Apollo 35

Pocula Castalia plena ministret aqua

Sustineamque coma metuentem frigora myrtum

Tiacutetiro e a ceifa e as armas de Eneacuteias cantadas

enquanto Roma reger o orbe

e enquanto houver armas fogo e arco para Cupido

se ensinaratildeo teus metros oacute Tibulo

Galo na Hespeacuteria e no Oriente haacute de ser

conhecido e com Galo sua Liacutecoris

Pois perecendo as rochas e os dentes do arado

com o tempo aos versos morte faltaraacute

Rendam-se aos versos reis e os triunfos dos reis

renda-se do Tejo a margem auriacutefera

Admire o vulgo o que eacute vil que o louro Apolo

taccedilas plenas me decirc de aacutegua castaacutelide

sustente eu nos cabelos o mirto que teme

1 O poema de Borges apresenta uma espeacutecie de definiccedilatildeo moderna de elegia aleacutem de referecircncias agrave morte e agrave perda ldquoSoacute o que morreu eacute nosso soacute eacute nosso o que perdemosrdquo traz ainda uma menccedilatildeo direta agrave Antiguidade ldquoIacutelion foi poreacutem Iacutelion perdura no hexacircmetro que a plangerdquo (BORGES 2016) 2 O diacutestico elegiacuteaco consiste em dois versos sendo um hexacircmetro e um pentacircmetro (mais precisamente chamado hexacircmetro duplamente cataleacutectico) O primeiro verso compotildee-se de seis peacutes daacutectilos (siacutelaba longa mdash siacutelaba breve mdash siacutelaba breve ou siacutelaba longa mdash siacutelaba longa) ao passo que o segundo verso eacute como o primeiro exceto pela falta das duas breves no terceiro e sexto peacutes Para mais informaccedilotildees sobre a questatildeo cf West (1974)

[226]

Atque ita sollicito multus amante legar

Pascitur in uiuis Liuor post fata quiescit

Cum suus ex merito quemque tuetur honos 40

Ergo etiam cum me supremus adederit ignis

Viuam parsque mei multa superstes erit

o frio e leia-me o inquieto amante

Pasta a Inveja entre os vivos descansa na morte

e a cada um a proacutepria honra assiste

Assim ao consumir-me o fogo derradeiro

de mim a grande parte ficaraacute

(Ov Am 11525-42 Trad Guilherme Horst Duque)

Ou ainda no final do Livro III em que ao se despedir pede a Vecircnus que procure um novo vate pois chegou

ao marco final de suas elegias Ademais evoca agora Virgiacutelio e Catulo e se coloca ao lado destes aleacutem de

referir-se agrave sua pequena cidade natal Sulmona que por gerar tamanho poeta tambeacutem torna-se grande

Quaere nouum uatem tenerorum mater Amorum 1

Raditur hic elegis ultima meta meis

Quos ego conposui Paeligni ruris alumnus

(Nec me deliciae dedecuere meae)

Siquid id est usque a proauis uetus ordinis heres 5

Non modo militiae turbine factus eques

Mantua Vergilio gaudet Verona Catullo

Paelignae dicar gloria gentis ego

Quam sua libertas ad honesta coegerat arma

Cum timuit socias anxia Roma manus 10

Atque aliquis spectans hospes Sulmonis aquosi

Moenia quae campi iugera pauca tenent

ldquoQuae tantum dicet potuistis ferre poetam

Quantulacumque estis uos ego magna uocordquo

Culte puer puerique parens Amathusia culti 15

Aurea de campo uellite signa meo

Corniger increpuit thyrso grauiore Lyaeus

Pulsanda est magnis area maior equis

Inbelles elegi genialis Musa ualete

Post mea mansurum fata superstes opus 20

Busca matildee dos Amores ternos novo vate

eis o marco final das elegias

as quais eu filho dos Pelignos escrevi

(minhas deliacutecias natildeo me denegriram)

e se isto conta equestre desde o bisavocirc

natildeo feito haacute pouco no tropel de guerras

Macircntua estima Virgiacutelio Verona a Catulo

Diratildeo que sou a gloacuteria dos pelignos

a quem levou a liberdade agraves justas armas

quando Roma temeu as matildeos amigas

Que algum turista ao ver os muros desta aquosa

Sulmona que tatildeo poucos campos tem

diga ldquoa ti que geraste tamanho poeta

por pequena que sejas chamo granderdquo

Belo menino e a amatuacutesia genitora

dos meus campos levai as aacuteureas flacircmulas

com tirso mais pesado abala-me o Lieu

pista maior reclamam meus cavalos

Imbeles elegias Musa alegre adeus

obra e vestiacutegio meu apoacutes a morte

(Ov Am 3151-20 Trad Guilherme Horst Duque)

Apesar de tanta confianccedila eacute de se supor todavia que Oviacutedio natildeo pudesse ter imaginado que para aleacutem de

2000 anos apoacutes a sua morte a elegia permaneceria tatildeo viva ainda que metamorfoseada quanto agrave forma

Assim na voz de poetas das mais diversas eacutepocas esse gecircnero literaacuterio vai ldquomudando de pele e

transformando-se em sonetos odes eacuteclogas baladas ou ateacute epiacutestolasrdquo (LAGE 2010 p 15)

Isso porque fossem ou natildeo inspirados direta ou indiretamente pelos poemas elegiacuteacos romanos

versejadores de todos os tempos imprimiram em seus poemas o cantar doloroso pela perda de um ente

querido de um amor da paacutetria ou ainda da proacutepria poesia Seria um tanto impreciso concordar totalmente

com Lage para quem mesmo que o termo ldquoelegiardquo tenha desaparecido em determinados periacuteodos3 sua

3 Sobre a questatildeo cf Lage (2010 p 15)

[227]

essecircncia se manteve sempre presente tomando outras formas poeacuteticas Mas sem duacutevidas no seacuteculo XVIII

o poeta e filoacutesofo Friedrich Schiller ao propor um resgate das formas poeacuteticas claacutessicas reaviva o referido

gecircnero E ele o faz mais uma vez relacionando a elegia ao sofrimento sentimento que segundo o autor

referido deveria ser transformado a partir de entatildeo de uma perda real em uma perda ideal4

Dessa forma mesmo que se tenha duacutevidas sobre a origem histoacuterica e sobre a definiccedilatildeo desse tipo de

produccedilatildeo na Antiguidade essa concepccedilatildeo de elegia como perda ou lamento pela perda (referida por poetas

antigos como Oviacutedio) atravessou o seacuteculo XIX apoacutes se consolidar no Romantismo mantendo-se em autores

modernos do seacuteculo XX e permanecendo ateacute os nossos dias

Muitos foram os poetas brasileiros modernos que resgataram a elegia (natildeo necessariamente no metro

elegiacuteaco) em suas obras Melhor dizendo resgataram o tom elegiacuteaco lamentoso soacute para mencionar alguns

exemplos Carlos Drummond de Andrade Viniacutecius de Moraes Manuel Bandeira Ferreira Gullar Ainda que

natildeo nomeiem seus poemas de elegias no fazer poeacutetico destes autores a temaacutetica da perda e do lamento daacute

um tom lutuoso agraves produccedilotildees Dentre esses versejadores estaacute Chico Cesar poeta compositor e muacutesico

paraibano que diferentemente dos seus antecessores e tambeacutem dos seus contemporacircneos da deacutecada de

1990 busca se aproximar da elegia claacutessica

Em seu livro Cantaacuteteis Cantos elegiacuteacos de Amozade somos apresentados a uma obra na qual ecoam natildeo

apenas aspectos da poesia amorosa e eroacutetica romana (sobretudo dos Amores de Oviacutedio) como tambeacutem

alusotildees por vezes diretas a escritores e obras de diversas esteacuteticas Com isso para usar uma expressatildeo com

a qual Isabelle Jouteur se refere a Oviacutedio Chico Ceacutesar cria um caleidoscoacutepio que a cada leitura revela uma

nova camada de interpretaccedilatildeo e instiga o leitor a decifraacute-la

Levando em conta essa cor inusitada que o poeta nordestino imprime agraves suas elegias em Cantaacuteteis

buscaremos analisar alguns elementos da poesia romana amorosa sobretudo ovidiana que satildeo retomados

na obra referida e de que maneira Chico Cesar atraveacutes de uma espeacutecie de antropofagia literaacuteria termina por

resgataacute-la e incorporaacute-la ao seu versejar moderno e nordestino

Chico Cesar e a poesia caleidoscoacutepica de Cantaacuteteis

Em Cantaacuteteis Cantos elegiacuteacos de amozade obra composta por 141 poemas todos compostos por 11 versos

com sete siacutelabas poeacuteticas cada somos apresentados a uma persona poeacutetica apaixonada que se declara para

uma musa da qual sequer sabemos o nome de modo direto descrevendo-se primeiro a si e ao seu versejar

para em seguida falar das qualidades sobretudo as intelectuais da puella docta

4 Para Schiller (2011 p 51) a perda ideal representaria ldquoa tristeza suscitada por alegrias que jaacute natildeo satildeo pelo desaparecimento da idade de ouro do mundo pela perda da felicidade dos anos da infacircncia do amor etcrdquo

[228]

Ao revelar seu suposto caso amoroso o poeta lanccedila matildeo de um tom brejeiro e por vezes jocoso e cria imagens

aparentemente desconexas mas que vatildeo se completando num mosaico plenamente compreensiacutevel mdash por

isso caleidoscoacutepico mdash sobretudo se levarmos em conta a referecircncia quase cronoloacutegica a autores e obras

tambeacutem da literatura brasileira e universal5 Aqui evocamos Achcar (1994 p 15) para quem ldquoa

lsquoliterariedadersquo de uma obra sua pertinecircncia a um gecircnero mesmo sua novidade satildeo necessariamente

produto de suas relaccedilotildees com obras anteriores presentes nela em alusotildees impliacutecitas ou expliacutecitas

intencionais ou natildeordquo

Eacute justamente a partir de alusotildees que o leitor eacute iccedilado para dentro do livro de Chico Cesar e pode compartilhar

com ele o prazer de reconhecer numa relaccedilatildeo de intertextualidade (CONTE BARCHIESI 2010 p 87)

passagens de obras que satildeo suas conhecidas e que foram ldquoantropofagizadasrdquo para compor Cantaacuteteis

Dessa forma estabelece-se desde o tiacutetulo um jogo de sentidos proposto ao leitor pelo poeta que seraacute

bastante recorrente nos poemas que compotildeem a obra6 Ao realizarmos uma anaacutelise percebemos que o

neologismo ldquocantaacuteteisrdquo pode denotar a uniatildeo do radical do verbo ldquocantarrdquo com a palavra ldquotaacuteteisrdquo (referecircncia

ao tato ou ao verbo tatear) abrindo a possibilidade para a leitura da referida palavra como cantos (poemas)

que podem ser tocados ou por que natildeo que tocam (tateiam) outros textos de outros poetas

Aleacutem disso a presenccedila do adjetivo ldquoelegiacuteacosrdquo qualificando o substantivo ldquocantosrdquo demonstra que Chico

Cesar faz uma referecircncia direta agrave elegia recorrendo nesse momento agrave bagagem cultural do leitor para

estabelecer com este uma relaccedilatildeo dialoacutegica a partir da evocaccedilatildeo de experiecircncias literaacuterias anteriormente

vividas elementos que conforme Jauss (1976 p 68) satildeo necessaacuterios para que o processo de recepccedilatildeo de

uma obra em particular se realize

Haacute finalmente o neologismo ldquoamozaderdquo que pode trazer numa camada menos oacutebvia de leitura a referecircncia

agraves cantigas de amigo medievais que denotavam justamente um eu-liacuterico neste caso feminino que ansiava

pelo ser amado como faz o nosso cantador paraibano Tais referecircncias e mesmo outras agraves Heroacuteides ovidianas

tambeacutem com vaacuterios poemas de eu-liacuterico feminino precisariam ser analisadas com mais cautela o que

pretendemos realizar em momento posterior de nossa investigaccedilatildeo

Em nosso estudo para aleacutem dessas questotildees mencionadas interessa-nos sobremaneira analisar alguns

poemas de Cantaacuteteis procurando perceber de que forma alguns elementos tiacutepicos da elegia amorosa romana

principalmente dos Amores de Oviacutedio satildeo remodelados no contexto moderno Certamente tais questotildees natildeo

5 Satildeo diversas as vezes em que Chico Cesar alude a obras e a autores conhecidos em algumas delas trazendo natildeo apenas temas mas trechos quase ipsis litteris de poemas ou de romances canocircnicos cf por exemplo CESAR 2005 p 14171923 Tal aspecto seraacute abordado por noacutes em um momento posterior uma vez que nosso foco neste artigo eacute a questatildeo da elegia ovidiana e sua recepccedilatildeo em Cantaacuteteis 6 Acreditamos que seria bastante revelador um trabalho que se debruccedilasse sobre os neologismos criados por Chico Cesar ao longo de Cantaacuteteis o que certamente traria agrave tona aspectos que passam despercebidos numa leitura artificial

[229]

se esgotariam no espaccedilo deste artigo e por isso escolhemos apenas uma delas para a nossa discussatildeo a

questatildeo metapoeacutetica

Os metapoemas em Cantaacuteteis

A metapoesia ou seja a referecircncia dentro de um poema aos gecircneros ao poeta agraves formas de produccedilatildeo

poeacutetica agraves obras jaacute consagradas eacute um elemento bastante presente na produccedilatildeo poeacutetica desde a Antiguidade

Assim por meio de metaacuteforas ou mesmo de menccedilotildees diretas sobretudo desde o periacuteodo alexandrino poetas

trouxeram agrave baila discussotildees acerca das caracteriacutesticas e importacircncia das obras que produzem Oviacutedio se

notabilizou por lanccedilar matildeo da metalinguagem em praticamente todas as suas obras Em Amores objeto de

nossa discussatildeo isso ocorre desde o epigrama de abertura que leremos na traduccedilatildeo de Lucy Ana De Bem

Qui modo Nasonis fueramus quinque libelli

tres sumus hoc illi praetulit auctor opus

Vt iam nulla tibi nos sit legisse uoluptas

at leuior demptis poena duobus erit

Tiacutenhamos sido haacute pouco cinco livrinhos de Nasatildeo

trecircs agora somos o autor preferiu esta agravequela obra

Se por acaso natildeo tiveres prazer algum em nos ler

ao menos retirados dois a pena seraacute mais leve

(Ov Am epigramma ipsius)

Ademais como costuma acontecer os poemas que abrem os livros I II e III satildeo de modo expliacutecito

programaticamente metapoeacuteticos Lucy Ana de Bem (2011 p 186) em sua excelente tese de doutoramento

A Metapoesia e confluecircncia geneacuterica nos Amores de Oviacutedio vai aleacutem e defende que ldquoa maior parte das elegias

dos Amores discorre sobre poesia enquanto nos fala de amorrdquo Assim para a estudiosa a questatildeo metapoeacutetica

tem na referida obra a mesma importacircncia que o amor

Acreditamos que algo semelhante aconteccedila em Cantaacuteteis Ali quando Chico Cesar lanccedila matildeo de alusotildees

diversas a textos literaacuterios ao longo da obra ele o faz natildeo apenas para descrever sua persona poeacutetica mas

tambeacutem a musa a quem canta elencando um conjunto de referecircncias prontas isto eacute lugares-comuns ou toacutepoi

a serem acessados pelo leitor que aceitar o jogo proposto pelo poeta (ISER 2002 p 105-18) e participar com

ele da construccedilatildeo natildeo apenas de um mas de diversos sentidos

Em seu primeiro ldquocantaacutetilrdquo7 Chico Cesar (2005 p 13) apresenta-nos um metapoema no qual um poeta

apaixonado confessa-se para uma musa de quem pouco saberemos ao longo da obra

seu poeta preferido

bem antes de ser ferido

jaacute era ferido antes

natildeo visitou as bacantes

as nereidas e as ninfas

7 Utilizaremos neste trabalho o neologismo cantaacutetil para nos referirmos aos poemas que compotildeem o livro de Cesar

[230]

quis beber de sua linfa

esperou e natildeo morreu

esse poeta sou eu

de lira desgovernada

deliro musa amada

oacuterfatildeo bisneto de orfeu (grifo nosso)

Curiosamente nos primeiros versos do poema haacute a utilizaccedilatildeo do pronome possessivo ldquoseurdquo de terceira

pessoa do singular o qual constroacutei uma ambiguidade podendo tanto se referir em terceira pessoa ao poeta

que fala quanto a uma tradiccedilatildeo de poetas que cantaram o fato de estarem feridos pelo amor dentre eles

Oviacutedio A persona poeacutetica que fala em Amores 1125-6 assim como o eu liacuterico de Cantaacuteteis estaacute tomada pelo

sentimento amoroso apoacutes ser flechado pelo deus Cupido

Me miserum certas habuit puer ille sagitas

Vror et in uacuo pectore regnat Amor

Desgraccedilado de mim Certeiras foram as setas daquele menino

Todo eu me inflamo e no coraccedilatildeo vazio passa a reinar o Amor

(Ov Am 1125-26 Trad Carlos Ascenso Andreacute)

Na sequecircncia do poema a utilizaccedilatildeo que Chico Cesar faz do adjetivo ldquopreferidordquo bem como os dois versos

que o sucedem mostram um jogo de sentido que aleacutem de revelar a escolha do poeta pela musa mostra que

natildeo eacute a primeira vez que o eu-liacuterico se encontra em estado de paixatildeo ldquoseu poeta preferido bem antes de ser

ferido jaacute era ferido antesrdquo Essa afirmaccedilatildeo nos lembra por exemplo a persona de Oviacutedio que tanto em Amores

quanto em Ars Amatoria estaacute menos preocupada em demonstrar exclusividade no amor por uma puella

somente que os elegiacuteacos anteriores

Haacute ainda outras chaves de leitura importantes no referido poema Ainda que de modo diferente dos antigos

poetas elegiacuteacos que recusavam gecircneros tomados como mais elevados como a eacutepica (ora alegando objeccedilatildeo

de algum deus ora ainda por alegarem que tal gecircnero estaria acima de suas forccedilas) o bardo paraibano deixa

claro que seu desejo eacute fazer elegias A referecircncia agraves bacantes neste caso personagens da trageacutedia homocircnima

de Euriacutepides as quais o eu-poeacutetico de Cantaacuteteis diz natildeo ter visitado parece representar ainda que de modo

indireto uma recusatio contra tal gecircnero elevado8 anaacuteloga agrave que faziam seus antecessores elegiacuteacos na

Antiguidade

No ldquocantaacutetilrdquo seguinte Chico Cesar (2005 p 14) prossegue com a construccedilatildeo da imagem do poeta

eu pra cantar natildeo vacilo

digo isso digo aquilo

digo tudo que se disse

digo veneza recife

8 A toacutepica da recusatio ou seja a recusa a cantar eacutepica e adesatildeo agrave elegia eacute segundo Bem (2011 p 90) uma invenccedilatildeo atribuiacuteda a Caliacutemaco e copiosa entre poetas augustanos e sobretudo entre os elegiacuteacos latinos

[231]

fortaleza que se abre

quero que o mundo se acabe

se natildeo disser o que sinto

digo a verdade minto

vertente me arrebata

minha voz eacute serenata

labareda e labirinto

Satildeo perceptiacuteveis neste caso referecircncias agrave tradiccedilatildeo as quais satildeo ancoradas em expressotildees que funcionam

como marcadores alusivos9 tais como ldquodigo tudo que se disse ou em vertente me arrebatardquo em que neste

caso o poeta marca sua filiaccedilatildeo natildeo apenas agrave corrente da literatura dita canocircnica mas tambeacutem agrave sua veia

nordestina Isso se daacute quando ele menciona espaccedilos geograacuteficos como Fortaleza ou Recife numa possiacutevel

alusatildeo ao Nordeste Aleacutem disso mostra-se no oitavo verso a utilizaccedilatildeo do fingimento poeacutetico em ldquodigo a

verdade mintordquo revelando a multiplicidade do eu poeacutetico (VASCONCELLOS 2016 p 85)

No ldquocantaacutetilrdquo 34 Chico Cesar aleacutem de continuar a descrever sua persona poeacutetica traz referecircncias diretas agrave

literatura antiga ao mencionar logo no primeiro verso Secircneca e em seguida Cupido e as Ninfas

secircneca natildeo sou - eu chico

rio tatildeo nordestinico

que tateia e se estatela

no peacute de sirigoela

plantado pelo cupido

performer impermitido

out-sider das baixadas

se ninfas apaixonadas

vecircm uivar na minha porta

uso a palavra que corta

ela tudo - vocecircs nadas (CEacuteSAR 2005 p 34)

O poeta inicia reforccedilando sua identidade nordestina visto que ao mesmo tempo em que parece negar

Secircneca diz ser Chico fundindo atraveacutes do duplo sentido seu nome ao rio Satildeo Francisco que atravessa o

Nordeste brasileiro Nessa imagem que remete agrave fluidez das formas nas Metamorfoses tambeacutem sua poesia

parece cruzar a produccedilatildeo literaacuteria de diversos periacuteodos mas desaguar em seu lugar de origem a tradiccedilatildeo

nordestina

A menccedilatildeo ao peacute de sirigoela planta oriunda do Nordeste brasileiro que neste caso foi plantada pelo Cupido

serve natildeo apenas para reforccedilar a imagem de nordestinidade da persona poeacutetica como tambeacutem alude aos

ceacutelebres de abertura do primeiro livro de Amores

9 Sobre a questatildeo cf Wills (1996) Hinds (1999) Vasconcellos (2001) e Prata (2002)

[232]

Arma gravi numero uiolentaque bella parabam

Edere materia conveniente modis

Par erat inferior versus risisse Cupido

Dicitur atque unum surripuisse pedem

Armas em ritmo pesado e combates violentos estava eu prestes

a cantaacute-los mdash o assunto assentava bem no metro

era igual o segundo verso [ao primeiro] Cupido soltou uma gargalhada

diz-se e surrupiou-lhe um peacute

(Ov Am 111-4 Trad Carlos Ascenso Andreacute)

Jaacute foi por demais discutido que na obra do poeta latino em que Cupido rouba um peacute do segundo verso (que

por isso natildeo teria mais seis e sim cinco peacutes) definindo a partir daiacute que Oviacutedio escreveria na forma tiacutepica da

produccedilatildeo elegiacuteaca Diferentemente eacute o que ocorre poreacutem no caso do poeta paraibano um peacute eacute ldquoplantadordquo

pelo deus do amor e curiosamente todos os ldquocantaacuteteisrdquo possuem natildeo seis mas sete siacutelabas poeacuteticas

Se nas palavras de Iser (2002 p 107) o texto eacute composto por jogo ldquo[] natildeo importa que novas formas o leitor

traz agrave vida todas elas transgridem mdash e daiacute modificam mdash o mundo referencial contido no textordquo

Eacute exatamente isso que Chico Cesar parece buscar um jogo de sentido com aqueles leitores que conhecem a

obra ovidiana e tambeacutem a poesia nordestina estabelecendo com esse puacuteblico uma espeacutecie de diaacutelogo a fim

de que seja possiacutevel interpretar e reinterpretar o texto de chegada para de algum modo acessar o texto de

partida

A musa de Cantaacuteteis entre a mulher e a proacutepria elegia

A imagem da amada musa inspiradora a quem os poetas elegiacuteacos antigos dedicavam seu canto era bastante

idealizada Nesse sentido muitas vezes tal mulher se encontrava acima das demais pelos seus dotes natildeo

apenas de beleza mas tambeacutem intelectuais passando a serem designadas como puella docta

Em Cantaacuteteis Chico Cesar se aproxima de Oviacutedio pois tal como jaacute se notou quanto agrave Corina em Amores Chico

Ceacutesar (2005 p 16) demora a mencionar o nome da amada a que se refere busca desenhaacute-la para o leitor

atraveacutes de descriccedilotildees tanto fiacutesicas quanto psicoloacutegicas

parecida pariceira

feiticcedilo de feiticeira

fetiche tabu e totem

que lha vejam e logo notem

a exterior beleza

e fato se tornem presa

da face rubra e as vistas

feito a sala de visitas

do castelo de sua alma

avistei perdi a calma

esqueci de outras conquistas

[233]

Eacute apenas no sexto ldquocantaacutetilrdquo que Chico Cesar apresenta-nos a amada a quem satildeo dedicados seus cantos

elegiacuteacos de ldquoamozaderdquo neste caso destacando os atributos fiacutesicos e a beleza dessa mulher que o enfeiticcedila

desejando que aqueles que a veem se tornem presas assim como ocorreu com ele O eu-liacuterico confessa que

ante tal visatildeo esquece outras conquistas ou seja a referida puella natildeo eacute a primeira por quem se apaixonou

mas eacute a partir desse momento a uacutenica que o interessa

Na sequecircncia em outro ldquocantaacutetilrdquo destaca agora suas qualidades intelectuais designando-a como detentora

de mil e uma artes leitora de Roland Barthes ou seja aleacutem de uma mulher de bastante beleza tambeacutem eacute

dotada de inteligecircncia e cultura

suas mil e uma artes

seus livros do roland barthes

que natildeo li natildeo sinto falta

seu beijo doce de flauta

seu olhar de pernilongo

sua danccedila rap jongo

clareiam minha cacircmara escura

escritora e escritura

li seus versos tonteci

e dessa tontice cai

na doenccedila que me cura (CEacuteSAR 2005 p 17)

Haacute ainda um jogo de sentido no oitavo verso escritora e escritura o qual pode fazer uma relaccedilatildeo entre a

mulher e a proacutepria poesia Esse jogo tambeacutem ocorre nos Amores de Oviacutedio em que a relaccedilatildeo ambiacutegua entre a

puella e a poesia muitas vezes aproxima o amor do proacuteprio fazer poeacutetico10

Essa relaccedilatildeo fica bastante direta no deacutecimo-primeiro ldquocantaacutetilrdquo de Chico Cesar (2005 p 21)

eacute a musa que elejo

na peleja em que pelejo

elemento de elegia

quentura na noite fria

vento brando em dia quente

iquestquanto ganha um gerente

para perguntar seu nome

quero ver se vocecirc some

quero embalar sua rede

tarde cedo seda sede

frame trama tremor fome

10 Sobre a questatildeo cf Bem (2011 p126) Ao discutir a questatildeo a estudiosa menciona Hardie para o qual comparaccedilotildees agrave jovem amada assim como agraves heroiacutenas da mitologia seratildeo apenas uma ldquopresenccedila discursivardquo um nome ligado a um corpo textual natildeo a um corpo fiacutesico Ainda nas palavras da autora ldquoNesse sentido a equivalecircncia entre a puella e a proacutepria elegia (a coleccedilatildeo elegiacuteaca dos Amores) fica ainda mais evidenterdquo

[234]

Jaacute no primeiro verso o poeta afirma que a musa eleita representa um elemento da proacutepria elegia ou seja

traz caracteriacutestica do referido gecircnero ademais alguns vocaacutebulos permitem verificar que essa mulher prende

o eu-liacuterico assim como Cupido faz com a voz que canta nos Amores ovidianos As palavras ldquorederdquo ldquotramardquo e a

polissemia entre ldquocedordquo (no sentido adverbial) e tambeacutem do verbo ldquocederrdquo ajudam a reforccedilar tal ideia

Consideraccedilotildees finais

Certamente haacute ainda muitos aspectos a serem investigados na obra aqui cotejada tanto no que diz respeito

aos poetas romanos antigos sobretudo Oviacutedio quanto agraves relaccedilotildees estabelecidas com obras da poesia e

literatura modernas Acreditamos que a anaacutelise de Cantaacuteteis natildeo apenas sob a luz da intertextualidade mas

tambeacutem das teorias da recepccedilatildeo pode vir a colaborar para que seja possiacutevel compreender de que modo

produccedilotildees aparentemente tatildeo distantes no tempo e no espaccedilo estabelecem com a participaccedilatildeo ativa do

leitor um diaacutelogo que nunca termina tornando possiacutevel por exemplo que a poesia nordestina tenha sim um

peacute (ou mais) na elegia latina

Referecircncias bibliograacuteficas

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CONTE G B BARCHIESI A Imitaccedilatildeo e arte alusiva Modos e funccedilotildees da Intertextualidade In CAVALLO G FEDELI P GIARDINA A (org) O espaccedilo literaacuterio da Roma Antiga v 1 a produccedilatildeo do texto Trad D P Carrara e F M Moura Belo Horizonte Tessitura 2010

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Humanas e Naturais Universidade Federal do Espiacuterito Santo Vitoacuteria 2015

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[235]

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VASCONCELLOS P S de Persona poeacutetica e autor empiacuterico na poesia amorosa romana Satildeo Paulo Unifesp 2016

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WILLS J Repetition in Latin Poetry figures of allusion Oxford Clarendon 1996

(paacutegina intencionalmente deixada em branco)

PARTE III

AS RELACcedilOtildeES (INTER)LINGUIacuteSTICAS

E A EXPERIMENTACcedilAtildeO CRIATIVA

NA TRADUCcedilAtildeO LUSOacuteFONA DOS CLAacuteSSICOS

Traduzindo a oralidade do grego claacutessico para o cearensecircs em A Paz de Aristoacutefanes

Ana Maria Ceacutesar Pompeu

amcpompeuhotmailcom

Manuela Maria Campos Sales

manu2fcgmailcom

Traduzimos com o Grupo de Estudos da Comeacutedia Aristofacircnica ndash

GECA a peccedila A Paz do grego para a linguagem matuta cearense o

Cearensecircs O texto grego primeiro foi traduzido da forma mais

literal possiacutevel cotejando outras traduccedilotildees da peccedila em portuguecircs

(em Portugal a de Maria de Faacutetima Silva 1989 e no Brasil as

dissertaccedilotildees de mestrado de Greice Drumond UFRJ 2002 e

Marcos Cardoso Gomes USP 1984) A seguir retraduzimos ou

traduzimos dentro da mesma liacutengua do portuguecircs formal para a

linguagem matuta que mais se aproxima da linguagem oral do

cotidiano a precisatildeo do verso grego bem como a expressividade e

a musicalidade das palavras e expressotildees Tal processo nos

proporcionou um entendimento muito mais aprofundado da liacutengua

e da cultura grega aleacutem de uma maior conscientizaccedilatildeo da nossa

proacutepria cultura e modo de falar quando buscamos as diversas

expressotildees regionais mais antigas ou mais recentes e o seu

contexto dentro do texto aristofacircnico Demostraremos parte do

resultado do nosso trabalho de traduccedilatildeo de A Paz de Aristoacutefanes

para o Cearensecircs

Em conjunto com os estudos realizados traduzimos A Paz de

Aristoacutefanes para a linguagem do cearense matuto promovendo

[239]

dessa forma um encontro da teoria do cocircmico com as suas origens instituiccedilotildees agraacuterias em Dioniso Nosso

trabalho de traduccedilatildeo utilizando da expressividade do falar matuto cearense faz adaptaccedilotildees dos termos

rurais gregos utilizados na peccedila que recria o nascimento agraacuterio da comeacutedia para os termos do falar

nordestino que eacute um aspecto fundamental do humor no Cearaacute divulgado em todo o Brasil atraveacutes de

diversos comediantes Tal expressividade eacute tiacutepica mesmo do homem ruacutestico do Nordeste brasileiro que

talvez natildeo se desgarre com facilidade de suas raiacutezes agraacuterias As expressotildees de maior teor cocircmico satildeo as

obscenas sejam elas sexuais ou escatoloacutegicas Verificamos durante a traduccedilatildeo de Lisiacutestrata a mais obscena

no sentido sexual dentre as peccedilas de Aristoacutefanes a larga utilizaccedilatildeo de termos relacionados agrave fauna e agrave flora

da zona rural grega E sendo tal peccedila especificamente urbana pois sua accedilatildeo eacute centrada na acroacutepole ateniense

os termos obscenos que trazem o campo para a cidade satildeo utilizados em abundacircncia em Lisiacutestrata

A primeira parte de Paz em que a Guerra reina no lugar dos deuses oliacutempicos eacute caracterizada por alimentos

improacuteprios e malcheirosos O escaravelho eacute um besouro que come fezes e Poacutelemos a Guerra prepara uma

mistura de todas as cidades gregas a serem trituradas em um pilatildeo Depois que a deusa Paz eacute libertada todos

os alimentos satildeo agradaacuteveis assim como os cheiros O escaravelho inverte sua situaccedilatildeo pois passa a puxar o

carro de Zeus e a comer a ambrosia de Ganimedes (Ar A Paz 722-4) da mesma forma que a situaccedilatildeo da

Greacutecia que era dominada pela guerra vista como sinocircnimo de morte passa a ser de alegrias da bebida da

comida da fartura no campo do sexo enfim da vida

No proacutelogo de A Paz dois servos amassam fezes para alimentar um escaravelho Um deles explica que o

patratildeo dos dois andava com uma mania de olhar para o ceacuteu e de se queixar a Zeus da guerra Jaacute havia tentado

subir degraus mas caiu e feriu a cabeccedila No dia anterior chegou com um escaravelho chamando-o de Peacutegaso

e dizendo que ele o levaria direto a Zeus E assim o vinhateiro Trigeu realmente monta o escaravelho e sobe

aos ceacuteus em busca de Zeus sob os olhares assustados de seus servos e filhas Ele explica a uma das filhas

que teve a ideia de montar um escaravelho por ter visto nas faacutebulas de Esopo que tal bicho foi o uacutenico a subir

agrave morada dos deuses O escaravelho tambeacutem parece representar a comeacutedia com todo o seu repertoacuterio

escatoloacutegico (e tambeacutem representa a anormalidade da guerra) dirigida por um servo de Dioniso Trigeu (de

Tryx ldquoborra de vinhordquo trygocircidia como komocircidia ldquocomeacutediardquo) vinhateiro e poeta cocircmico

Chegando laacute o vinhateiro bate agrave porta e quem atende eacute Hermes comunicando-lhe que Zeus e os outros

deuses estatildeo em uma parte mais elevada do ceacuteu e que deixaram Poacutelemos ldquoa Guerrardquo fazer o que quisesse

com os gregos pois os deuses estatildeo com eles irritados por estes preferirem a guerra tendo em vista que os

Oliacutempios tantas vezes lhes deram a oportunidade para a paz mas quem estava vencendo na ocasiatildeo natildeo a

queria Eirene ldquoa Pazrdquo foi presa por Poacutelemos numa caverna profunda Trigeu se oculta e vecirc o deus Guerra

com o seu pilatildeo pronto para transformar em poacute as cidades gregas Mas por falta de um pau de pilar ele chama

Tumulto Kydoimos para que vaacute pegar um em Atenas Este ao voltar informa ao deus que os atenienses

[240]

perderam o curtidor de couros que acabava com a Greacutecia numa referecircncia expliacutecita a Cleacuteon que morrera no

ano anterior ao da representaccedilatildeo desta peccedila na batalha de Anfiacutepolis Entatildeo o deus manda que Tumulto vaacute

conseguir o pau de pilar em Esparta Da mesma forma o servo do deus Guerra volta dizendo que tambeacutem

natildeo haacute mais tal instrumento entre os espartanos referindo-se certamente a Braacutesidas liacuteder que tambeacutem

morrera na mesma batalha que Cleacuteon Poacutelemos sai com Tumulto para fabricar um outro pau de pilar

Trigeu aproveita a ocasiatildeo e convoca o coro formado de gregos de todas as cidades que se unem para

libertar a deusa Paz enquanto Guerra estava ausente Hermes entatildeo aparece com predisposiccedilatildeo de

denunciar os propoacutesitos de Trigeu e do coro a Zeus mas Trigeu suplica-lhe que natildeo os denuncie lembrando-

lhe do pedaccedilo de carne que lhe trouxe como oferenda Depois diz que sabe de um complocirc que a Lua e o Sol

fazem contra os deuses oliacutempicos pois por serem os baacuterbaros os adoradores dos dois astros e os gregos os

outros deuses eles querem destruiacute-los para serem os uacutenicos a terem adoradores Hermes resolve entatildeo

ajudar orientando e incentivando uns e outros no trabalho de desobstruir a caverna para libertar a Paz

Desse modo Trigeu convence Hermes a ajudaacute-lo atraveacutes de um argumento coacutesmico os astros contra os

oliacutempios Os gregos natildeo trabalham da mesma forma os mais empenhados no trabalho satildeo os agricultores

aacuteticos que sentem muita falta da paz

Quando finalmente conseguem retirar a deusa da caverna ela traz junto de si Opora a deusa das colheitas

e Teoria a deusa das festividades A deusa Paz se mostra triste com os gregos pois a deixaram ser

aprisionada por tanto tempo e tambeacutem pela poliacutetica de Atenas Trigeu a conselho de Hermes desposaraacute a

deusa das colheitas Opora e entregaraacute aos Priacutetanes a deusa das festividades Teoria Na paraacutebase o coro

louva o poeta que livrou a comeacutedia das vulgaridades pois ele criou uma arte maior com belas palavras e

grandes ideias tambeacutem trouxe agrave cena os cidadatildeos mais poderosos e repete o que disse com as mesmas

palavras sobre Cleacuteon na comeacutedia anterior Vespas Trigeu volta para terra trazendo Opora e Teoria e daacute esta

uacuteltima aos Priacutetanes Depois ele sacrifica um cordeiro agrave deusa Paz e conta que viu no caminho do ceacuteu duas ou

trecircs almas dos poetas ditiracircmbicos Chega o adivinho Hieacuteracles que eacute recebido com indiferenccedila e que acusa

Trigeu de estar agindo contra a vontade dos deuses ao forccedilar a volta da paz Querendo comer os miuacutedos do

cordeiro sacrificado o adivinho eacute expulso por Trigeu que ordena a seu servo que o espanque

A segunda paraacutebase louva a vida no campo sob o reino da paz e maldiz aqueles que fazem a guerra obrigando

os camponeses a abandonarem seus lares Trigeu celebra suas bodas com Opora e recebe a visita dos agora

felizes fabricantes de foices e de jarras que lhe trazem muitos presentes de casamento Mas tambeacutem chegam

os entatildeo infelizes que estatildeo arruinados com o fim da guerra os fabricantes de penachos de capacetes de

couraccedilas de lanccedilas o vendedor de clarins pois natildeo tecircm para quem vender seus produtos Trigeu os insulta e

eles se vatildeo Entatildeo chegam dois garotos cantando o primeiro canta agrave guerra e diz ser filho de Lacircmaco Trigeu

manda-o embora O segundo garoto canta sobre o abandono do escudo e eacute o filho de Cleocircnimo o siacutembolo de

[241]

covardia sempre satirizado por Aristoacutefanes Trigeu o acolhe e convoca a todos a comerem agrave vontade e sai

carregado pelo coro como o feliz noivo que desposa a rainha dos frutos1

A permanecircncia no campo corresponde agrave vida feliz para a cidade na peccedila A Paz

Coro Pois nada eacute mais grato que jaacute estar semeando e o deus a garoar e um vizinho dizer ldquoDiz-me em tal tempo que faremos Comarquidesrdquo ldquoBeber me agrada enquanto o deus nos auxiliardquo Mulher potildee trecircs medidas de ervilha no fogo Mistura a elas gratildeos de trigo e pega os figos Que vaacute Sira chamar Manes do campo De modo algum se pode limpar vinhas hoje nem por-lhe terra que o chatildeo estaacute empapado De minha casa me tragam o tordo e os dois tentilhotildees Tinha um colostro laacute dentro e quatro nacos de lebre se eacute que natildeo os levou uma doninha ontem laacute dentro se mexia natildeo sei o quecirc e fuccedilava Traacutes trecircs deles pra noacutes oacute menino e o daacute pro pai ramos de mirto fresquinhos pedes a Esquinades E algueacutem do seu caminho chame Carinades que venha beber conosco enquanto refresca e ajuda o deus a nossa lavoura E quando a cigarra canta o doce canto alegra-me ir ver as vinhas de Lemnos se jaacute amadurecem ndash pois eacute a primavera que sazona ndash e o figo olhando crescido se jaacute estaacute maduro Eu apanho e como enquanto digo ldquoHoras amigasrdquo e o timo macerando faccedilo uma infusatildeo Entatildeo eu fico inchado sim com tanto veratildeo (Ar A Paz 1140-1169)2

Resolvemos descrever na proacutepria apresentaccedilatildeo da traduccedilatildeo como a nossa leitura em cearensecircs se faz a

partir do texto grego e como ela se expressa em uma escrita mais erudita para esclarecer as lacunas da

oralidade expressa na escrita da traduccedilatildeo matuta Desse modo sugerimos uma ediccedilatildeo triliacutengue de A Paz de

Aristoacutefanes Grego ndash Cearensecircs ndash Portuguecircs

Οἰκέτης Α αἶρ᾽ αἶρε μᾶζαν ὡς τάχιστα κανθάρῳ

Casecircro 1 Leva leva bolo ligerin pro rola-bosta

Criado 1 Leva leva bolo ligeiro para o escaravelho

1 O enredo da peccedila A Paz elaborado por noacutes na nossa tese de doutorado foi publicado em livro cf Pompeu (2011) 2 A traduccedilatildeo de Paz eacute de Marcos Cardoso Gomes (1984) presente em sua dissertaccedilatildeo de mestrado

[242]

ldquoCasecircrordquo eacute a transcriccedilatildeo da oralidade numa traduccedilatildeo de oikeacutetes que eacute formado pela mesma raiz de oicirckos casa

e eacute uma palavra comum ainda que normalmente natildeo se refira a um criado mas a algueacutem que toma conta de

uma casa para um patratildeo O mais apropriado talvez fosse ldquodomeacutesticordquo mas tambeacutem soacute eacute usado com a palavra

ldquoempregadordquo ldquoRola-bostardquo eacute a traduccedilatildeo mais apropriada para escaravelho que em grego eacute kaacutentharo

aludindo mais ao formato do inseto que se parece com um vaso de duas aselhas ou asas cacircntaro

ldquoEscaravelhordquo vem do latim Scarabaeu e jaacute deve se relacionar com a palavra grega skoacuter skatoacutes ldquoexcrementordquo

E por fim ldquoligerinrdquo eacute mais expressivo do que ldquoligeirordquo

Οἰκέτης Β ἰδού δὸς αὐτῷ τῷ κάκιστ᾽ ἀπολουμένῳ

Casecircro 2 Taiacute Daacute pra ele pra morrecirc da pioacute morte

Criado 2 Eis aiacute Daacute para ele para morrer da pior morte

ldquoTaiacuterdquo eacute um decircitico muito mais eficaz do que ldquoeis aiacuterdquo ou ldquoestaacute aiacuterdquo e da mesma forma que o grego idouacute eacute apenas

uma palavra natildeo duas ldquoPrardquo em vez de ldquoparardquo eacute uma reduccedilatildeo que daacute mais fluecircncia agrave fala ldquoMorrecircrdquo e ldquopioacuterdquo em

vez de ldquomorrerrdquo e ldquopiorrdquo isto eacute a retirada do ldquorrdquo final e a colocaccedilatildeo do acento traduzem a pronuacutencia mais

relaxada

καὶ μήποτ᾽ αὐτῆς μᾶζαν ἡδίω φάγοι

e nunca cumecirc bolo docin cuma esse

e nunca comer bolo docinho como esse

ldquoCumecircrdquo em vez de comer eacute apenas a expressatildeo da oralidade Consideramos ldquodocinrdquo mais expressivo do que

ldquodocinhordquo ou ldquoagradaacutevelrdquo e ldquocumardquo em vez de ldquocomordquo uma expressatildeo mais matuta

Οἰκέτης Α δὸς μᾶζαν ἑτέραν ἐξ ὀνίδων πεπλασμένην

Casecircro 1 Daacute ocircto bolo das bosta amassada dos burro

Criado 1 Daacute outro bolo das fezes amassadas dos burros

ldquoOcirctordquo em vez de ldquooutrordquo traduz a pronuacutencia de ou- por ocirc- e apresenta a reduccedilatildeo de -tro por -to Em ldquodas

bosta amassadardquo manteacutem-se o plural apenas em ldquodasrdquo e substitui-se ldquofezesrdquo por ldquobostardquo termo este muito

mais usado pelos camponeses cearenses Assim tambeacutem ocorre em ldquodos burrordquo sendo o plural mantido

apenas em ldquodosrdquo

Οἰκέτης Β ἰδοὺ μάλ᾽ αὖθις ποῦ γὰρ ἣν νῦν δὴ φερες

κατέφαγεν

Casecircro 2 Taiacute mais de novo Cadecirc o qui tu jaacute tava trazeno

Cumeu tudin

Criado 2 Eis aiacute mais de novo Pois onde estaacute o que tu agora trazias

Comeu tudo

ldquoCadecircrdquo eacute caracteriacutestico da linguagem oral O termo ldquotaiacuterdquo substitui ldquoeis aiacuterdquo Optou-se por ldquoquirdquo em vez de ldquoquerdquo

pois normalmente o ldquoerdquo final se pronuncia como ldquoirdquo e pela expressatildeo ldquotava trazenordquo em vez de ldquotraziardquo A forma

[243]

composta do imperfeito e a subtraccedilatildeo de partes das palavras (ldquoestavas trazendordquo para ldquotava trazenordquo) satildeo

muito mais utilizadas na fala comum Escolheu-se ldquotudinrdquo em vez de ldquotudordquo e ldquocumeurdquo em vez de ldquocomeurdquo

Οἰκέτης Α οὐ μὰ τὸν Δί᾽ ἀλλ᾽ ἐξαρπάσας

Casecircro 1 Natilde Pur Zeuzin feiz foi agarraacute

Criado 1 Natildeo por Zeus mas agarrou

Traduziu-se ldquonatildeordquo por ldquonatilderdquo ldquoNatilderdquo Eacute uma ecircnfase de negaccedilatildeo muito utilizada pelos cearenses Optou-se ldquopur

Zeuzinrdquo em vez de ldquopor Zeusrdquo enquanto apenas uma tentativa de expressar a linguagem matuta como ela

seria quando dirigida a Zeus jaacute que normalmente ouvimos ldquomeu Jesus Cristinrdquo ldquoPurrdquo eacute apenas a transcriccedilatildeo

da fala o ldquoordquo geralmente se torna ldquourdquo Por ldquofeiz foi agarraacuterdquo natildeo se pronuncia ldquofezrdquo mas ldquofeizrdquo e a

expressividade de ldquofez foirdquo eacute maior do que a fornecida por apenas ldquoagarrourdquo O termo ldquoagarraacuterdquo apenas perdeu

o ldquorrdquo e ganhou o acento

ὅλην ἐνέκαψε περικυλίσας τοῖν ποδοῖν

todin feiz uns bolin cuns peacutes e inguliu

todo fez uns bolinhos com as patas e engoliu

Optou-se ldquotodinrdquo em vez de ldquotodordquo pois o primeiro eacute mais sonoro e expressivo ldquoFezrdquo eacute substituiacutedo por ldquofeizrdquo

ldquobolinhosrdquo por ldquobolinrdquo ldquocom osrdquo por ldquocunsrdquo ldquoengoliurdquo por ldquoinguliurdquo

ἀλλ᾽ ὡς τάχιστα τρῖβε πολλὰς καὶ πυκνάς

Vai ligerin amassa uma ruma bem miudin

Mas ligeiro amassa muitos e compactos

Substituiu-se ldquoo mais raacutepido possiacutevelrdquo por ldquovai ligerinrdquo Utilizou-se ldquorumardquo pois eacute a forma mais utilizada para

expressar uma grande quantidade Em ldquobem miudinrdquo haacute duas ecircnfases sendo elas ldquobemrdquo e o -in Tal expressatildeo

substitui ldquocompactosrdquo forma muito elevada ldquoBem grandatildeordquo e bem piquininimrdquo satildeo expressotildees comuns para

o cearense

Οἰκέτης Β ἄνδρες κοπρολόγοι προσλάβεσθε πρὸς θεῶν

Casecircro 2 Homes ajuntadocirc dersquostrume ajude pelus deusu

Criado 2 Homens coletores de estrume ajudem pelos deuses

Optou-se por ldquohomesrdquo em vez de ldquohomensrdquo pois eacute apenas a transcriccedilatildeo da pronuacutencia mais comum por

ldquoajuntadocirc com a retirada do ldquorrdquo final e a colocaccedilatildeo do acento em vez de ldquocoletoresrdquo por ldquodrsquostrumerdquo em vez

de ldquoestrumerdquo pois eacute a forma reduzida reproduzida na fala ldquopelus deusurdquo no lugar de ldquopelos deusesrdquo na

tentativa de aproximaccedilatildeo do que seria ouvido se os camponeses cearenses invocassem os deuses como os

camponeses gregos

εἰ μή με βούλεσθ᾽ ἀποπνιγέντα περιιδεῖν

Srsquo ocecircs num quiseacute mim vecirc morrecirc sem forgo

Se vocecircs natildeo quiserem me ver morrer sem focirclego

[244]

Na passagem acima o termo ldquovocecircsrdquo eacute substituiacutedo por ldquosrsquoocecircsrdquo ldquonatildeordquo por ldquonumrdquo muito comum na linguagem

oral ldquoquiseremrdquo por ldquoquiseacuterdquo ldquome ver morrerrdquo por ldquomim vecirc morrecircrdquo e ldquofocirclegordquo por ldquoforgordquo pois normalmente

as palavras proparoxiacutetonas satildeo reduzidas na fala como no caso de substituiccedilatildeo de ldquolacircmpadardquo por ldquolampardquo

Οἰκέτης Α ἑτέραν ἑτέραν δός παιδὸς ἡταιρηκότος

Casecircro 1 Daacute ocircto e mais ocircto dum rapaz rapariga

Criado 1 Daacute outro e mais outro de um rapaz prostituto

Nesse trecho optou-se por Ocircto em vez de ldquooutrordquo ldquodumrdquo em vez ldquode umrdquo e ldquorapaz raparigardquo em vez de ldquorapaz

prostitutordquo O termo ldquoraparigardquo em cearensecircs significa ldquoprostitutardquo ldquoputardquo no feminino mas a expressatildeo eacute

amplamente utilizada a ponto de ser adjetivo para qualquer palavra ou expressatildeo como ocorre nesta

hipoteacutetica situaccedilatildeo ldquoMatildee - Menino cala essa bocardquo Menino - Rapariga de ldquocala essa bocardquo A palavra ainda

torna mais expressivo a passagem do texto que de alguma forma faz alusatildeo agrave passividade sexual do rapaz

prostituiacutedo

τετριμμένης γάρ φησιν ἐπιθυμεῖν

bem amassadinha ele diz que gosta

triturada pois ele diz apreciar

Optou-se por ldquobem amassadinhardquo ou ldquobem apertadinhardquo No trecho os escravos reclamam por terem que

fazer bolinhos de fezes para o rola-bosta

Οἰκέτης Β ἰδού

ἑνὸς μὲν ὦνδρες ἀπολελύσθαι μοι δοκῶ

Casecircro 2 Taiacute

Drsquouma coisa homes tocirc eacute livrin da silva

Criado 2 Eis aiacute

De uma coisa oacute homens penso estar livre

Nesse caso a expressatildeo ldquode umardquo eacute substituiacuteda por ldquodrsquoumardquo ldquoLivrin da Silvardquo eacute uma expressatildeo comum entre

os cearenses que expressa o fato de estar completamente livre O termo ldquolivrinrdquo jaacute designa ldquomuito livrerdquo

οὐδεὶς γὰρ ἂν φαίη με μάττοντ᾽ ἐσθίειν

Num tem quem diga qursquoeu como bolo amassano ele

Pois ningueacutem diria que eu como ao fazer o bolo

ldquoNum tem quem digardquo eacute uma expressatildeo comum na linguagem oral do cearense e eacute mais expressiva do que

ldquoningueacutem diriardquo Aleacutem disso optou-se por ldquoqursquoeurdquo em vez de ldquoque eurdquo e por ldquoamassano elerdquo em vez de

ldquoamassandordquo Em grego o termo eacute mesmo um particiacutepio

Οἰκέτης Α αἰβοῖ φέρ᾽ ἄλλην χἀτέραν μοι χἀτέραν

Casecircro 1 Ai ai Traz aiacute mais ocircto e ocircto e mais ocircto

Criado 1 Ai ai Traz mais outro e outro e mais outro

[245]

ldquoOutrordquo eacute substituiacutedo por ldquoocirctordquo estando a repeticcedilatildeo no texto grego e ldquotrazrdquo por ldquoTraz aiacuterdquo pois eacute mais

expressivo sendo o ldquoaiacuterdquo uma partiacutecula enfaacutetica

καὶ τρῖβ᾽ ἔθ᾽ ἑτέρας

e amassa mais ocirctos

e tritura mais outros

Traduziu-se nesse caso ldquooutrosrdquo por ldquoocirctosrdquo e ldquotriturardquo por ldquoamassardquo pois aquele primeiro termo eacute mais

comum do que o segundo

Οἰκέτης Β μὰ τὸν Ἀπόλλω γὼ μὲν οὔ

Casecircro 2 Deus alumiadocirc eu mermo natildeo

Criado 2 Por Apolo eu mesmo natildeo

Optou-se por ldquoDeus alumiadordquo com a retirada do ldquorrdquo final e a colocaccedilatildeo do acento em vez de ldquoPor Apolordquo

que eacute o deus representante da luminosidade do Sol que traz a peste e a cura e eacute pai de Ascleacutepio o deus da

Medicina Traduziu-se ainda ldquomesmordquo por ldquomermordquo porque o termo eacute muito comum na oralidade matuta

οὐ γὰρ ἔθ᾽ οἶός τ᾽ εἴμ᾽ ὑπερέχειν τῆς ἀντλίας

Eacute qui num guento mais natildeo o fedocirc da privada

Pois natildeo sou capaz de suportar o fedor do vaso

ldquoPoisrdquo que eacute uma forma mais elevada eacute substituiacuteda por ldquoeacute quirdquo ldquoNum guento mais natildeordquo eacute mais expressivo do

que ldquonatildeo sou capaz de suportarrdquo ldquoFedocircrdquo substitui ldquofedorrdquo e ldquoprivadardquo a palavra ldquovasordquo tendo em vista que a

primeira eacute mais popular do que a segunda Poderia tambeacutem ser ldquosentinardquo mas eacute um termo jaacute em desuso

Οἰκέτης Α αὐτὴν ἄρ᾽ οἴσω συλλαβὼν τὴν ἀντλίαν

Casecircro 1 Vocirc intatildeo eacute levaacute cum privada e tudo

Criado 1 Entatildeo levarei o proacuteprio vaso tomando-a

ldquoVocirc intatildeo eacute levardquo configura um modo expressivo de decisatildeo Na expressatildeo haacute a retirada do ldquorrdquo e colocaccedilatildeo do

acento substituindo ldquolevareirdquo ldquoComrdquo eacute substituiacutedo por ldquocumrdquo que eacute mais comum na linguagem oral dos

cearenses e ldquoo proacuteprio vasordquo por ldquocum privada e tudordquo

O enredo da peccedila trata da vida poliacutetica de Atenas trazendo novamente agrave discussatildeo os dilemas que

camponeses e citadinos sofriam em decorrecircncia da guerra e o que um indiviacuteduo eacute capaz de fazer para que a

paz seja estabelecida Diferente de Diceoacutepolis que negocia a paz somente para ele e sua famiacutelia em

Acarnenses Trigeu parte em busca da paz coletiva Ao tomar o escaravelho e sair do plano terreno dos

homens para adentrar no plano eteacutereo dos deuses Trigeu torna-se um heroacutei que transcende o espaccedilo em

prol da sociedade

[246]

Essa peccedila juntamente com Acarnenses e Cavaleiros formam o trio das peccedilas mais poliacuteticas de Aristoacutefanes

Lanccedilando-se um olhar sobre a peccedila aqui considerada pode-se observar uma dinacircmica entre opostos como

por exemplo Guerra versus Paz soldados versus agricultores astros versus olimpianos plano terrestre versus

plano eteacutereo fabricantes de armas versus fabricantes de instrumentos da lavoura o escaravelho no iniacutecio da

peccedila alimentando-se de fezes e apoacutes a libertaccedilatildeo da Paz saciando-se com ambrosia Ou seja o cenaacuterio eacute

controlado por um uacutenico elemento (Guerra ou Paz) e dependendo de quem estaacute no comando ele se modifica

Em A Paz um dos trechos que melhor representa a questatildeo dessa dicotomia eacute o trecho em que Trigeu

convoca todos gregos a se reunirem e se unirem em um uacutenico propoacutesito libertar a Paz que se encontrava

presa em uma caverna

Analisando os personagens envolvidos e ldquoempenhadosrdquo em libertar a deusa (soldados versus agricultores)

verificamos a presenccedila de atenienses megarenses beoacutecios argivos e posteriormente Trigeu e Hermes

convocados pelo coro Apoacutes longa tentativa Trigeu percebe que um grupo puxa para um lado e outro puxa

para o outro ou seja percebe que haacute entre aqueles que removem as pedras da caverna alguns que

atrapalham o serviccedilo ndash satildeo aqueles que fabricam armas ou que de algum modo lucram com a guerra e que

natildeo desejam seu fim O conselho de Hermes eacute que somente os lavradores removam as enormes pedras Com

o apoio do Coro os poucos agricultores os uacutenicos que queriam a Paz conseguem por fim libertar a Paz

juntamente com a Opora e a Teoria Outro trecho da peccedila que torna evidente o par ldquofabricantes de artefatos

de guerra versus fabricantes de instrumentos agraacuteriosrdquo ocorre logo apoacutes o resgate da Paz em que figuram

duas cenas os fabricantes de foices enxadas e demais objetos de lavoura e de argila que estatildeo

extremamente felizes pelo fim da guerra prontos a iniciar a produccedilatildeo de materiais para o comeacutercio em

oposiccedilatildeo aos fabricantes de armas que estatildeo a arrancar os cabelos

Hermes Tu natildeo vecircs aquele fabricante de penacho ali que arranca seus proacuteprios cabelos

Trigeu Este que faz as enxadas haacute pouco zombou daquele fabricante de espadas

Hermes Este fabricante de foices natildeo vecircs como tem prazer

Trigeu E como tratou mal o fabricante de lanccedilas (Ar A Paz 545-549)3

Em seguida como bem coloca Whitman (1964) os camponeses quando intimados por Trigeu que os convoca

como se estivessem no exeacutercito se preparam com seus instrumentos nas matildeos para o retorno ao campo

Trigeu Por Zeus a enxada era brilhante e preparada os tridentes brilham diante do sol (Ar

A Paz 568)4

Ainda segundo Whitman (1964) quando os que fabricam foices e enxadas celebram e consequentemente

zombam dos fazedores de armas que estatildeo arrancando os cabelos por natildeo haver mais compradores

3 A traduccedilatildeo de Paz eacute de Greice Ferreira Drumond (2002) 4 A traduccedilatildeo de Paz eacute de Greice Ferreira Drumond (2002)

[247]

interessados em suas mercadorias sugere-se um prenuacutencio das cenas finais quando Trigeu comeccedila sua

investida em tentar transformar elmos com penachos em espanadores espadas em enxadas ou as couraccedilas

em penicos por exemplo Esse confronto com as novas utilidades dadas por Trigeu aos artefatos de guerra

tornando-os utensiacutelios domeacutesticos tambeacutem faz parte dessa dicotomia Os mesmos objetos que antes eram

usados em batalhas se transformam em objetos de paz utilizados no cotidiano dos cidadatildeos Como as

mercadorias perdem o valor comercial os fabricantes de armas saem visivelmente transtornados diante do

protagonista com o prejuiacutezo em matildeos jaacute com os que fabricam foices por exemplo ocorre o inverso

Uma outra questatildeo a ser abordada eacute o figurino utilizado na performance Essa peccedila natildeo explora muito as

vestes dos personagens Na verdade de acordo com Compton-Engle (2015) em A Paz ocorre exatamente o

contraacuterio do que nas outras peccedilas Aristofacircnicas e haacute um silecircncio quanto agrave abordagem desse assunto haacute a

opccedilatildeo por citar somente duas vezes um traje espartano de guerra tambeacutem usado pelos taxiarcos atenienses

(v 303 e 1175) como bem explica Sousa e Silva (1984) Esse manto militar vermelho (φοινικίς phoinikis) era

usado por soldados espartanos e inserir um termo como esse apenas duas vezes em uma peccedila que tem como

tema central o fim da Guerra e o resgate e restituiccedilatildeo da Paz oferece uma interpretaccedilatildeo como propotildee

Compton-Engle (2015) isto eacute de que esse tipo de traje natildeo encontra espaccedilo nessa peccedila que soacute diz respeito

agrave paz Haacute uma outra suposiccedilatildeo que Whitman (1964) propotildee com relaccedilatildeo ao figurino afirmando o autor que

provavelmente o enredo tenha sido escrito em questatildeo de semanas o que pode justificar a escassez no que

concerne ao figurino das personagens

Conclusatildeo

O cearensecircs ou o portuguecircs matuto do Cearaacute foi apresentado em nosso estudo de Acarnenses de Aristoacutefanes

no livro Dioniso matuto uma abordagem antropoloacutegica do cocircmico na traduccedilatildeo de Acarnenses de Aristoacutefanes para

o cearensecircs

O falar matuto cearense consiste em usar apenas uma marca do plural (os priacutetane)

ldquoturdquo com o verbo na terceira pessoa (tu vai) retirar os erres finais e substituir por

acento na vogal anterior (aceitaacute embaixadocirc) o mesmo com as terminaccedilotildees em ndashou

(falocirc) cortar a siacutelaba inicial do verbo estaacute (tocirc taacute) repeticcedilotildees de natildeo mudando a

primeira forma (tu num taacute vendo natildeo) ldquohomerdquo por homem o ldquolhrdquo por ldquoirdquo (muieacute por

mulher aio por alho) falar no diminutivo substituindo ndashinho por ndashin40 (desse

tamanhin) ldquoprardquo ldquopros prasrdquo em vez de ldquoparardquo ldquopara osrdquo e ldquopara asrdquo usar

interjeiccedilotildees caracteriacutesticas(oxente Arre eacutegua Vixe) ecircnfases (euzin aqui oacute

abestaiadin vocirc eacute batecirc na porta) ldquomermordquo por ldquomesmordquo retirar o ldquolrdquo final de algumas

palavras (miserave por miseraacutevel terrive por terriacutevel) entonaccedilotildees caracteriacutesticas

(Pense numa sacudida grande) As alteraccedilotildees ou criaccedilotildees tecircm intuito expressivo

satildeo intensificadores do sentido Deixamos algumas palavras sem alteraccedilatildeo para

que se faccedilam entender melhor jaacute que natildeo haacute mais matuto que fale completamente

diferente dos citadinos e estes fazem graccedila imitando o falar matuto a ponto de

[248]

integrar alguns modos de expressotildees no cotidiano na comunicaccedilatildeo com os mais

proacuteximos que reconhecem o coacutedigo linguiacutestico tambeacutem natildeo exclusivo de uma

regiatildeo ou cidade Haacute sim o uso mais intenso de algumas caracteriacutesticas de falares

em determinadas regiotildees Os meios de comunicaccedilatildeo especialmente a telenovela

tecircm divulgado falares diversos dos matutos nordestinos ou natildeo do Brasil atraveacutes

do mundo (POMPEU 2014)

Propomos como conclusatildeo uma traduccedilatildeo contiacutenua como a linha que acrescentamos agrave nossa A Paz triliacutengue

em que cada um faccedila a sua sugestatildeo no dialeto de sua regiatildeo ampliando as possibilidades de expressividade

do camponecircs cearense ou de qualquer estado brasileiro para o enriquecimento da nossa pesquisa que jaacute

contou com variados dialetos dos integrantes do Grupo de Estudos da Comeacutedia de Aristoacutefanes ndash GECA

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POMPEU A M C Aristoacutefanes e Platatildeo a justiccedila na poacutelis Satildeo Paulo Biblioteca 24 Horas 2011

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WHITMAN C H Aristophanes and the Comic Hero Cambridge Harvard University 1964

A gruta

da Inveja traduccedilatildeo e criacutetica em Metamorfoses 2760-782 de Oviacutedio

Raimundo N Barbosa de Carvalho

raycarvalhouolcombr

Dentro do campo dos Estudos Claacutessicos em liacutengua portuguesa

vimos acontecer nos uacuteltimos trinta anos pelo menos um grande

desenvolvimento da praacutetica de traduccedilotildees poeacuteticas de poesias

claacutessicas dentro de uma tradiccedilatildeo tradutiva que remonta no

miacutenimo ao seacuteculo XVIII Embora possamos afirmar que durante

todo esse periacuteodo sempre se assistiu ao surgimento de importantes

traduccedilotildees poeacuteticas de obras claacutessicas essa modalidade de traduccedilatildeo

sofreu desde os primoacuterdios do seacuteculo XX um processo de

arrefecimento em virtude da ascensatildeo de outro tipo de traduccedilatildeo

que vigorou como apecircndice dos estudos claacutessicos de natureza

filoloacutegica a traduccedilatildeo em prosa seja ela literal ou ligeiramente

adaptada agrave linguagem contemporacircnea dentro do padratildeo

linguiacutestico adotado pelo mercado editorial Paradoxalmente o

fortalecimento dos Estudos Claacutessicos no Brasil com a crescente

profissionalizaccedilatildeo da pesquisa acadecircmica colaborou para fazer

nascer um novo ciclo de traduccedilotildees poeacuteticas de poesia latina em

especial Natildeo satildeo mais poetas avulsos com pouca formaccedilatildeo claacutessica

a se aventurarem no traslado da poesia latina em moldes

experimentais Os tradutores atuais de poesia claacutessica satildeo em sua

maioria professores e pesquisadores universitaacuterios munidos de

aparato criacutetico filoloacutegico e das mais amplas reflexotildees sobre a

traduccedilatildeo poeacutetica uma teia de textos que remonta a Ciacutecero e Satildeo

[250]

Jerocircnimo perfazendo uma longa e ininterrupta tradiccedilatildeo que se adensa e ganha profundidade de reflexatildeo

sistemaacutetica com os romacircnticos alematildees dos quais o seminal texto A tarefa do Tradutor de Walter Benjamin

eacute tributaacuterio

Sob o domiacutenio atual da praacutetica de traduccedilotildees claacutessicas podemos dizer que estamos numa direccedilatildeo inequiacutevoca

de valorizaccedilatildeo da esteacutetica do traduzir Jaacute natildeo contenta mais a pedestre reproduccedilatildeo de conteuacutedo das

traduccedilotildees literais nem haacute mais lugar para a pura invencionice daqueles amadores desprovidos de aparato

Portanto cremos um longo e persistente caminho foi trilhado e muito haacute ainda por ser feito Atingiu-se um

padratildeo a balizar os futuros empreendimentos no campo da traduccedilatildeo poeacutetica tanto da poesia em geral como

da poesia claacutessica em particular O que eacute necessaacuterio agora eacute voltarmos a atenccedilatildeo agrave dimensatildeo criacutetica da

atividade tradutoacuteria Cada gesto esteacutetico corresponde a um gesto criacutetico O porquecirc de se traduzir dessa ou

daquela maneira eacute algo a ser seriamente pesquisado e refletido As traduccedilotildees poeacuteticas que jaacute conteacutem em si

essa dimensatildeo criacutetica necessitam tambeacutem elas de serem criticamente recebidas e avaliadas

Infelizmente no domiacutenio da criacutetica de traduccedilatildeo estamos a anos-luz atrasados dos progressos que foram

feitos no campo da traduccedilatildeo poeacutetica propriamente dita Vigora ainda entre noacutes a anacrocircnica leitura sinoacutetica

entre original e traduccedilatildeo superdimensionando a auctoritas do primeiro em detrimento da dimensatildeo criativa

e criacutetica do segundo Busca-se o cotejo para caacutelculo das perdas e danos e para ressaltar diferenccedilas episoacutedicas

e pontuais Em geral quase nunca a traduccedilatildeo eacute vista como traduccedilatildeo Ela eacute de certa forma ignorada e

invisibilizada Para estes estudiosos a traduccedilatildeo eacute pura transparecircncia do original e soacute se torna objeto de sua

atenccedilatildeo quando ela destoa da visatildeo que ele tem do original Aiacute entatildeo ela se torna mesmo visiacutevel objeto de sua

ira travestida de cuidados filoloacutegicos que soacute mascaram a sua falta de aparato criacutetico que decirc conta das

operaccedilotildees processadas pela traduccedilatildeo criativa outro nome para a traduccedilatildeo poeacutetica

Eacute preciso portanto que o criacutetico de traduccedilatildeo se profissionalize e tenha conhecimento da vasta tradiccedilatildeo de

textos reflexivos sobre o fazer tradutoacuterio agrave qual me referi Sem o conhecimento desse conjunto de reflexotildees

teoacutericas o trabalho do criacutetico seraacute tatildeo somente limitado a um desacerto de opiniotildees sem proveito criacutetico

meros anaacutetemas adornados por uma retoacuterica de termos e conceitos ultrapassados que natildeo datildeo conta dos

fatos esteacuteticos que enformam a cadeia de sentidos que fazem da traduccedilatildeo poeacutetica texto a ser lido e

interpretado na sua dimensatildeo criativa independente do cotejo com a matriz que lhe deu origem mas que ao

ser cotejado com ela coloca-se como par pari passu com original

Em Pour une critique des tradutions John Donne Antoine Berman apresenta seu projeto de uma criacutetica

produtiva afirmando que desde o iluminismo a criacutetica sempre realccedilou a negatividade No entanto para

ele a criacutetica deve ser essencialmente positiva Na esteira de Friedrich Schlegel fundador da criacutetica moderna

o termo criacutetica eacute reservado para a anaacutelise de obras de qualidade pois a criacutetica puramente negativa natildeo eacute

uma criacutetica real Para anaacutelise de obras mediacuteocres ou de baixa densidade esteacutetica usa-se o termo

[251]

caracterizaccedilatildeo A criacutetica seria antes de tudo uma exigecircncia das proacuteprias obras literaacuterias para se

manifestarem se completarem e se perpetuarem A criacutetica tal como ele compreende permite garante e

estimula a circulaccedilatildeo da obra ainda que por vezes tente obscurececirc-la sufocaacute-la ou mesmo mataacute-la Seja qual

for o perigo a criacutetica liga-se ontologicamente agrave obra Nesse sentido a traduccedilatildeo eacute tatildeo importante quanto a

criacutetica para disseminaccedilatildeo das obras e a ela se relaciona estruturalmente pois natildeo eacute raro que tradutores se

voltem a obras de criacutetica para traduzir um livro atuando portanto como criacutetico em todos os niacuteveis Quando

se trata inclusive de uma retraduccedilatildeo fica impliacutecita ou expliacutecita uma criacutetica das traduccedilotildees anteriores que

revela um determinado estado da cultura da liacutengua e da literatura da eacutepoca em que foram realizadas

apontando e contextualizando as deficiecircncias e as inatualidades delas (BERMAN 1995 p 38-40) mas

tambeacutem se apropriando de suas qualidades como forma de realccedilar os valores permanentes daquelas

traduccedilotildees que mesmo envelhecidas se mantecircm iacutentegras e legiacuteveis para um leitor empenhado como soacutei ser

o tradutor-poeta-criacutetico

Eacute portanto sob essa perspectiva bermaniana que gostariacuteamos de abordar criticamente o conjunto de

traduccedilotildees de Metamorfoses 2760-782 que ora apresentamos em apecircndice Como jaacute sugere o tiacutetulo deste

ensaio a traduccedilatildeo de Bocage eacute o foco em volta do qual haacute de girar toda a reflexatildeo que pretendemos

desenvolver aqui Bocage nomeou o trecho de A gruta da Inveja muito apropriadamente e isso serve bem

aos seus interesses de tradutor mas pode ser tambeacutem compreendido metaforicamente como uma referecircncia

ao trabalho mesmo de traduccedilatildeo pois na pulsatildeo de traduzir muita carga afetiva positiva eou negativa eacute

despendida Traduz-se aquilo que se considera belo e relevante de se traduzir e ao se proceder agrave traduccedilatildeo

esta se faz a partir da crenccedila de que se pode fazer igual ou melhor aquilo que jaacute encontrou a perfeiccedilatildeo em

outro territoacuterio linguiacutestico Traduzir eacute medir forccedilas outrar-se sendo si mesmo invejar e ser objeto de inveja

A muitos o tradutor parece invisiacutevel mas eacute a traduccedilatildeo que muitas vezes torna o original invisiacutevel O leitor

ingecircnuo quase sempre acha que estaacute lendo uma obra quando na verdade estaacute lendo outra saiacuteda da verve

natildeo do autor anunciado na capa mas do seu tradutor escondido na ficha teacutecnica A teacutecnica do ilusionismo

empregada na traduccedilatildeo eacute na melhor das hipoacuteteses uma espeacutecie de desdobramento do jogo ficcional em que

uma nova instacircncia enunciativa se soma a outras jaacute existentes para a produccedilatildeo de um texto novo que guarda

com o antigo uma relaccedilatildeo mais ou menos conflituosa de parentesco Ser um leitor consciente e criacutetico de uma

traduccedilatildeo eacute compreender e tirar partido desse desdobramento que eacute um desdobramento tambeacutem do proacuteprio

leitor

Pois entatildeo vejamos Que tipo de metamorfose Bocage produz ao traduzir o trecho em questatildeo da obra

maacutexima de Oviacutedio Antes de responder a essa questatildeo cabe fazer algumas observaccedilotildees a respeito do sentido

e da forma desse original Trata-se de uma sequecircncia de vinte dois versos cujo sentido para ser bem

estabelecido depende totalmente do que vem antes e depois do que nele eacute narrado No original e nas

[252]

traduccedilotildees integrais do Livro II das Metamorfoses o trecho funciona como uma pequena digressatildeo em que o

poeta se utiliza da teacutecnica da mise en abyme para contar uma histoacuteria dentro da outra e assim ir saciando a

sua pulsatildeo de narrar O trecho portanto narra a descida de Minerva ao antro malcheiroso de Inveja para

pedir que esta inocule o veneno da inveja em Aglauro uma das filhas de Ceacutecropis rei de Atenas (esse pedido

vem logo apoacutes o trecho selecionado - Met II 784-785 - como vinganccedila pela conduta cobiccedilosa de Aglauro que

exigiu quantidades de ouro de Mercuacuterio para favorecer o seu amor pela irmatilde Herse aleacutem da impertinecircncia

de ter descoberto um pouco antes um segredo de Minerva ndash Met 2749-751)

Como daacute para perceber o trecho em questatildeo lido isoladamente natildeo chega a constituir uma unidade de

sentido completo e depende tanto do que foi narrado como do que vai ser narrado logo em seguida O que

levou Bocage entatildeo a isolaacute-lo e traduzi-lo Eacute que Bocage viu ali a oportunidade de inovar fazer diferente O

proacuteprio tradutor informa em nota que a versatildeo eacute salteada (OVIacuteDIO amp BOCAGE 2000 p 65) Ele elidiu a

presenccedila de Minerva e tudo o que se refere a accedilotildees e reaccedilotildees da deusa e se concentrou nos pormenores da

descriccedilatildeo do local e da figura medonha da Inveja criando um novo texto autocircnomo a partir do texto de

Oviacutedio mas ao mesmo tempo muito ovidiano Trata-se de uma eacutecfrase ou evidecircncia figura de retoacuterica assim

definida no dicionaacuterio Houaiss descriccedilatildeo viva e minuciosa de um objeto realizada com a enumeraccedilatildeo de

suas particularidades sensiacuteveis reais ou fantasiosas

Eacute sintomaacutetico que o Livro II das Metamorfoses comece justamente com uma eacutecfrase da Morada do Sol (vv 1-

18) que Bocage natildeo se interessou em verter embora tenha vertido outro passo do episoacutedio que ele intitulou

Precipiacutecio de Faetonte (vv 161-183) Dentre os 20 textos extraiacutedos das Metamorfoses Bocage compocircs

ainda nos mesmos moldes A gruta do Sono (Met 11592-645) Em nota ele informa que o episoacutedio natildeo

foi traduzido seguidamente [] porque natildeo pretendia verter senatildeo a descriccedilatildeo da gruta do sono e de seus

ministros (OVIacuteDIO amp BOCAGE 2000 p 113) Eacute que ao traduzir Oviacutedio Bocage natildeo o fez de maneira

ordinaacuteria Ele traduz imitando emulando ou seja ele procura organicamente recriar o texto ovidiano

dentro do jargatildeo literaacuterio de sua eacutepoca No poema Pena do Taliatildeo dirigido a seu desafeto Macedo Bocage

assim reflete sobre a sua arte de traduzir

Verter com melodia ardor pureza

O metro peregrino em luso metro

Dos idiotismos aplanando o estorvo

De um doutro idioma discernindo os gecircnios

O caraacuteter do texto expor na glosa

Eacute ser bugio ou papagaio Elmiro (OVIacuteDIO amp BOCAGE 2000 p 24)

Aleacutem do mais as traduccedilotildees de Bocage atestam o modo como os leitores daquele periacuteodo tendiam a ler a

obra-prima de Oviacutedio natildeo como canto contiacutenuo mas como um repositoacuterio de faacutebulas isoladas Talvez por

isso ele tenha se omitido de traduzir o ceacutelebre proacutelogo (Met I 1-5) no qual Oviacutedio expotildee o assunto e o

formato do poema As Transformaccedilotildees de Cacircndido Lusitano (pseudocircnimo do aacutercade Francisco Joseacute Freire)

[253]

embora se pretendam uma traduccedilatildeo completa (ainda que expurgadas das partes licenciosas) das

Metamorfoses de Oviacutedio jaacute indicam essa tendecircncia de leitura fragmentada em faacutebulas1 que no original latino

o poeta costurou com grande mestria umas e de forma um tanto quanto artificiosa outras mas natildeo deixando

nenhuma ponta delas fora dessa grande costura que constitui a estrutura dinacircmica do seu eacutepico De certa

forma a traduccedilatildeo dos quatro primeiros livros das Metamorfoses empreendida por Almeno outro aacutercade

contemporacircneo de Bocage manteacutem idealmente a forma ininterrupta do original De Almeno (pseudocircnimo

do Padre Joseacute do Coraccedilatildeo de Jesus) disse o prefaciador da ediccedilatildeo poacutestuma de sua traduccedilatildeo

Que diremos das virtudes da Locuccedilatildeo parte uacutenica em que pode ser mais seu

engenho a eloquecircncia e o gosto de um Tradutor Com ser Traduccedilatildeo em verso e de

um Poema tatildeo mimoso e delicado e ela tatildeo fiel e chegada ao texto eacute ao mesmo passo

mui pura e limpa nas palavras mui proacutepria e escolhida nos termos faacutecil e natural nas

expressotildees correta na gramaacutetica elegante na dicccedilatildeo luzida e airosa na frase

poeacutetica e rica em todos os primores e aticismo da Liacutengua sendo mui formosa coisa

ver substituiacutedas com todo garbo e ufania as maneiras polidas finas e engraccediladas de

Oviacutedio por outras equivalentes em nossa liacutengua e reproduzidas gentilmente na

coacutepia todas as galhardias e donaires da locuccedilatildeo todas as variaccedilotildees e floreios de

estilo do original

Assim trabalhava Almeno competindo a desafio com Oviacutedio e emparelhando com

ele em todos os seus extremos e gentilezas de seu Poema e felizmente para o Poeta

Romano teve a gloacuteria da invenccedilatildeo sem o que seria difiacutecil decidir do merecimento

entre os dois rivais (OVIacuteDIO 1805 p 18-19)

Estamos diante de trecircs tradutores poetas aacutercades que partem de uma poeacutetica comum e complementar cada

qual com seu desempenho concreto no exerciacutecio da traduccedilatildeo De Cacircndido Lusitano Castilho disse que era

erudito ldquotrabalhador incansaacutevel mas natildeo um poetardquo (PREDEBON 2006 p 112) Por outro lado tinha

Bocage em alta conta e agrave sua traduccedilatildeo das Metamorfoses colou versos inteiros do aacutercade notaacutevel como pode

observar o leitor ao comparar os dois textos Esse eacute um caso sui generis de retraduccedilatildeo em que o tradutor mais

recente traduz contra e a favor ao mesmo tempo do tradutor anterior Castilho como que restaura a

integridade do texto ovidiano aproveitando os estilhaccedilos da traduccedilatildeo fragmentaacuteria de Bocage

E isso ao inveacutes de obnubilar a poeacutetica tradutiva de Bocage a ressalta Castilho tenta se ombrear com Bocage

mas sabe que natildeo eacute paacutereo para ele na fatura do decassiacutelabo mesmo porque se trata de sensibilidades

poeacuteticas diferentes A utilizaccedilatildeo da teacutecnica da colagem eacute uma soluccedilatildeo intermediaacuteria e uma forma de desler e

reler o gesto criativo de Bocage ao traduzir de forma livre o texto das Metamorfoses como que

1 A divisatildeo do poema em faacutebulas enumeradas e com tiacutetulo natildeo demonstra somente didatismo mas mudanccedila de gecircnero jaacute que sob a perspectiva das poeacuteticas de Aristoacuteteles e Horaacutecio seguidas por Cacircndido Lusitano na elaboraccedilatildeo de sua proacutepria Arte Poeacutetica natildeo se contemplava a disposiccedilatildeo das Metamorfoses como um poema contiacutenuo o que direciona a leitura da obra como um conjunto de poemas de subgecircnero metamorfose Tambeacutem os expurgos indicam como a poeacutetica incorpora a censura e justifica a autoridade do tradutor para alterar o texto (PREDEBON 2006 p 74-75)

[254]

desentranhando dela aquilo que a sua mente destaca A essa gruta gruta da Inveja que o tradutor Bocage

esculpiu com os materiais selecionados do original Castilho faz entrar de novo Minerva refazendo dessa

forma a integridade do texto ovidiano A traduccedilatildeo de nossa lavra que tambeacutem vai disposta abaixo se

apropria dessa tradiccedilatildeo de traduccedilotildees das obras latinas procurando manter criacutetica e criativamente viva a

pulsatildeo do traduzir Ao inveacutes de nos mantermos dentro da linhagem decassilaacutebica agrave qual se ligam as quatro

traduccedilotildees aqui elencadas buscamos inovar traduzindo cada um dos hexacircmetros latinos por um verso

dodecassilaacutebico em portuguecircs o que permite a igualdade numeacuterica com o original A concisatildeo atingida pelos

antecessores eacute tambeacutem um estiacutemulo agrave busca de efeito semelhante As formas os torneios frasais o

vocabulaacuterio as vaacuterias camadas de linguagem todo seu repositoacuterio de textos que para muitos natildeo passa de

velharias de antigos alfarraacutebios eacute material para a reflexatildeo criacutetica que subjaz agrave atividade pensante da

traduccedilatildeo criativa Essa atividade pensante que se verifica no movimento da linguagem na traduccedilatildeo tambeacutem

ela quer capturar a atenccedilatildeo do leitor reflexivo e criacutetico capaz de distinguir os miacutenimos jogos de linguagem

que envolvem a operaccedilatildeo tradutoacuteria e faz disso um encanto paralelo e agrave parte distinto do encanto proacuteprio

da obra originaacuteria

Oviacutedio Metamorfoses 2760-782

Protinus Inuidiae nigro squalentia tabo 760

tecta petit domus est imis in uallibus huius

abdita sole carens non ulli peruia uento

tristis et ignaui plenissima frigoris et quae

igne uacet semper caligine semper abundet

Huc ubi peruenit belli metuenda uirago 765

constitit ante domum (neque enim succedere tectis

fas habet) et postes extrema cuspide pulsat

Concussae patuere fores Videt intus edentem

uipereas carnes uitiorum alimenta suorum

Inuidiam uisaque oculos auertit at illa 770

surgit humo pigre semesarumque relinquit

corpora serpentum passuque incedit inerti

utque deam uidit formaque armisque decoram

ingemuit uultumque una ac suspiria duxit

Pallor in ore sedet macies in corpore toto 775

nusquam recta acies liuent robigine dentes

pectora felle uirent lingua est suffusa ueneno

risus abest nisi quem uisi mouere dolores

nec fruitur somno uigilantibus excita curis

sed uidet ingratos intabescitque uidendo 780

successus hominum carpitque et carpitur una

suppliciumque suum est

[255]

Traduccedilatildeo de Cacircndido Lusitano (1771)

Sem demora

Busca da Inveja a habitaccedilatildeo imunda

Eacute esta em fundo vale uma medonha

Caverna que jamais o Sol visita 1075

Jamais nela entra vento ao frio inerte

Somente entrada daacute por isso sempre

Carece de Calor abunda em trevas

Apenas chega a Varonil Deidade

Paacutera fora da entrada (que entrar dentro 1080

Permitido natildeo lhe eacute) na porta bate

Crsquoo conto drsquoalta lanccedila aos golpes se abre

E aos olhos se lhe mostra o feio Monstro

Viacuteboras devorando de seus viacutecios

Mantimento comum Firmar a vista 1085

Nela natildeo pode volta-lhe o semblante

Do aspecto horrorizada Mas a Inveja

Assim que a vecirc da terra se levanta

E larga as serpes meias laceradas

Caminha a lentos passos e da Deusa 1090

Ao ver a fermosura e ricas armas

Suacutebito geme e aflitos ais arranca

Vive em seu rosto palidez medonha

E em todo o corpo lacircnguida fraqueza

O seu olhar nunca eacute direito os dentes 1095

Ferrugiacuteneos estatildeo liacutevidos sempre

De verde fel mostra pintado o peito

E em veneno mortal nadando a liacutengua

Nela jamais haacute riso senatildeo quando

Ao ver males alheios se deleita 1100

De cuidados soliacutecitos movida

Sempre o sono afugenta e estaacute agrave mira

Dos sucessos alegres que a devoram

Quer vecirc-los de contiacutenuo e o ver a dana

Sempre quer afligir e eacute afligida 1105

Sendo perpeacutetua pena de si mesma

[256]

Traduccedilatildeo de Almeno (1795)

Da inveja logo

agrave casa vai que negra peste escorre

A casa estaacute metida nos profundos

vales duma caverna nunca vista

do sol dos ventos nunca bafejada

sombria e aonde o ignavo gelo mora

falta-lhe sempre o fogo e abunda a treva

sempre Mal a virago belicosa

tremenda aqui chegou ante o aposento

para que nem lhe entrar se lhe concede

na cova e agraves portas com o conto bate

da lanccedila as portas ao bater se abriram

Vecirc dentro a Inveja a devorar as carnes

das viacuteboras que os seus furores nutrem

E vista aparta os olhos Mas da terra

preguiccedilosa ela se levanta e os meio

comidos corpos das serpentes deixa

E a passos lentos anda E com em armas

e aspecto viu gentil a Deusa geme

E de internos suspiros cobre a face

No rosto habita a palidez nos membros

a fome todos daacute olhado a tudo

Os dentes caacuterdeos de ferrugem tinha

Do fel verdeja o peito a liacutengua verte

veneno Foge o riso natildeo aquele

que alheias maacutegoas datildeo nem de cuidados

veladores chamada sono colhe

Mas vecirc com dor felizes os humanos

e vendo se definha e de parelha

morde e morde-se faz-se seu verdugo

[257]

Traduccedilatildeo de Bocage (1800)

Eacute a estacircncia da Inveja em gruta enorme

Laacute nuns profundos vales escondida

Aonde o Sol natildeo vai nem vai Favocircnio

Reina ali rigoroso eterno frio

De uacutemidas grossas neacutevoas sempre abunda

O monstro vive de vipeacutereas carnes

Dos seus tartaacutereos viacutecios alimento

Da morte a palidez lhe estaacute no aspecto

Magreza e corrupccedilatildeo nos membros todos

Olha sempre ao reveacutes ferrugem torpe

Nos asquerosos dentes lhe negreja

Vecirc-se o fel verdejar no peito imundo

Espumoso veneno a liacutengua verte

Longa o riso lhe jaz dos negros laacutebios

Soacute se nos mais haacute pranto haacute nela riso

Em natildeo vendo chorar lhe acode o choro

Natildeo goza de repouso um soacute momento

Os cuidados que a roem natildeo sofre sono

Mirra-se de pesar ao ver nos homens

Qualquer bem rala e rala-se a maligna

Eacute verdugo de si oacutedio de todos

[258]

Traduccedilatildeo de Feliciano de Castilho (1841)

Parte corre da Inveja ao lar soturno

ao lar que escorre em puacutetrido veneno

Eacute a estacircncia da Inveja em gruta enorme

Laacute nuns profundos vales escondida

Aonde o sol natildeo vai nem vai favocircnio

Reina ali rigoroso eterno frio

De uacutemidas grossas neacutevoas sempre abunda

Chegara ao siacutetio infesto a Deusa invicta

Ante a morada atroz suspende o passo

Que natildeo lhe eacute dado penetrar laacute dentro

Fere a porta coa lanccedila abriu-se a porta

vecirc-a ao fundo a comer vipeacutereas carnes

De seus tartaacutereos viacutecios alimento

Vecirc-a e para a natildeo ver desvia os olhos

Deixando em meio as serpes que tragava

Se ergue a custo da terra o monstro feio

Com tardo passo vem e ao ver Tritocircnia

formosa nas feiccedilotildees gentil nas armas

Gemeu ao seu gemido a encara a Deusa

Da morte a palidez lhe estaacute no aspeto

Magreza e corrupccedilatildeo nos membros todos

Olha sempre ao reveacutes ferrugem torpe

Nos asquerosos dentes lhe negreja

Vecirc-se o fel verdejar no peito imundo

Espumoso veneno a liacutengua verte

Longe o riso lhe estaacute dos negros laacutebios

Soacute se nos mais haacute pranto haacute nela riso

Natildeo goza de repouso um soacute momento

Os cuidados que a roem natildeo sofrem sonos

Mirra-se de pesar ao ver nos homens

Qualquer bem rala e rala-se a maldita

Eacute verdugo de si oacutedio de todos

[259]

Traduccedilatildeo de Raimundo Carvalho (2017)

Suacutebito busca o teto da Inveja infecto 760

de negro pus seu lar no mais profundo vale

escondido carente de sol e de vento

triste e farto de torpe frio e sempre falto

de fogo estaacute repleto de caligem sempre

Chegando laacute temiacutevel guerreira a virago 765

parou na porta entrar no teto era interdito

e com a ponta da lanccedila o batente golpeia

Ao golpe as portas se abrem vecirc dentro comendo

vipeacutereas carnes alimento de seus viacutecios

Inveja e vendo-a a vista desvia Mas esta 770

se ergue da esteacuteril terra e deixa mal roiacutedos

os corpos de serpente e em passo lento avanccedila

e quando viu a deusa em forma e ornada de armas

gemeu e o rosto em fundos suspiros franziu

A palidez lhe toma a face e o magro corpo 775

nunca eacute direto o olhar e o sarro borra os dentes

de fel verdeja o peito em liacutengua flui veneno

riso natildeo tem soacute quando vecirc a dor de algueacutem

nem frui do sono em vigilante afatilde desperta

mas vecirc com desagrado e se consome ao ver 780

o sucesso dos homens roacutei e se corroacutei

eacute seu supliacutecio

Referecircncias bibliograacuteficas

BERMAN A Por une critique des traductions John

Donne Paris Gallimard 1995

OVIDE Les Meacutetamorphoses Paris Belles Letres

1994

OVIDIO BOCAGE Metamorfoses Satildeo Paulo

Hedra 2000

OVIDIO As Metamorfoses Trad A Feliciano de

Castilho Rio de Janeiro Orgs Simotildees 1959

OVIacuteDIO Os quatro primeiros livros da

Metamorphose de P Ovidio Nasatildeo poeta romano

Traduzidos em verso solto portuguez por Almeno

Lisboa Typografia Lacerdina 1805 p 120-121

PREDEBON A Ediccedilatildeo do manuscrito e estudo das

Metamorfoses de Oviacutedio traduzidas por Francisco

Joseacute Freire Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Letras

Claacutessicas) ndash Faculdade de Filosofia Letras e

Ciecircncias Humanas Universidade de Satildeo Paulo

Satildeo Paulo 2006

O Satyricon

de Petrocircnio traduzido para o portuguecircs do Brasil uma anaacutelise das notas do tradutor

Liacutevia Mendes Pereira

liviamendesletrasgmailcom

No presente estudo seratildeo analisados trechos do Satyricon de

Petrocircnio em duas traduccedilotildees para a liacutengua portuguesa do Brasil por

meio da anaacutelise comparativa Utilizarei o texto latino na versatildeo da

Garnier (1934) e as traduccedilotildees publicadas de Paulo Leminski (1985)

e de Sandra Braga Bianchet (2004)

Pensando que a traduccedilatildeo assim como o original estatildeo abertos ao

interdiscurso e agraves possibilidades de dizer produzindo diversos

sentidos para um mesmo texto retomarei a definiccedilatildeo de ldquofunccedilatildeo

tradutorrdquo discutida por Solange Mittmann (2000) em que o

tradutor tenta criar a ldquoilusatildeordquo de que quem fala no texto da

traduccedilatildeo eacute o autor do original tentando mostrar uma ldquoidentificaccedilatildeo

total com o originalrdquo Evidenciaremos a presenccedila da ldquofunccedilatildeo

tradutorrdquo presente na construccedilatildeo das Notas de Tradutores

(doravante NT) as quais Solange Mittmann considera ldquonatildeo como

um discurso paralelo mas como um discurso extensivo ao discurso

do texto da traduccedilatildeordquo (MITTMANN 2000 p 2) Para a autora haacute

um distanciamento entre as duas vozes nas NT que criam a ilusatildeo

de que quem fala no texto ldquotraduccedilatildeordquo eacute o autor e de que quem fala

no texto ldquoNTrdquo eacute o tradutor

[261]

Friedrich Pretendo destacar que na traduccedilatildeo ldquotranscriaccedilatildeordquo de Paulo Leminski ao inveacutes de o tradutor tentar

criar a ilusatildeo de transparecircncia ele retoma a opacidade do texto de partida no texto de chegada em liacutengua

portuguesa ou seja ele recria o ldquojaacute opacordquo do texto original Trata-se assim de uma opccedilatildeo diferente das

traduccedilotildees filoloacutegicas e acadecircmicas que tentam criar a ldquoilusatildeo de transparecircnciardquo total do texto de partida

com uma interpretaccedilatildeo ldquodita como certardquo alicerccedilada em dicionaacuterios ou com a utilizaccedilatildeo das NT

O Satyricon de Petrocircnio e suas traduccedilotildees para liacutengua portuguesa do Brasil

O que eacute conhecido atualmente como Satyricon trata-se provavelmente do fragmento referente a trecircs livros

consecutivos XIV XV e XVI que faziam parte de uma obra mais ampla que natildeo chegou completa ateacute noacutes Satildeo

poucos os registros que falam sobre o suposto escritor do Satyricon os dados histoacutericos baseiam-se

principalmente no texto do ceacutelebre historiador Taacutecito (55-117 dC cf Anais XVI 18-19) que menciona uma

personalidade da corte do imperador Nero denominada Gaius Petronius arbiter elegantiae (ldquoCaio Petrocircnio

aacuterbitro da elegacircnciardquo) a quem se tem atribuiacutedo a autoria do texto

No Satyricon Petrocircnio retrata as manifestaccedilotildees sociais e o panorama cotidiano dos romanos A histoacuteria eacute

baseada nas peripeacutecias de Encoacutelpio narrador e personagem principal ndash que havia profanado o culto a Priapo

ndash Gitatildeo um rapaz por quem Encoacutelpio se apaixona e Ascilto com quem formam um triacircngulo amoroso sendo

que este uacuteltimo depois seraacute substituiacutedo por Eumolpo poeta de peacutessima categoria

A obra petroniana possui cinco traduccedilotildees em liacutengua portuguesa do Brasil A traduccedilatildeo de Paulo Leminski

lanccedilada em 1985 pela editora Brasiliense eacute a terceira delas A primeira foi editada em 1970 pela Editora

Atenas e relanccedilada no ano seguinte pela Ediouro Depois foi editada a traduccedilatildeo indireta do francecircs feita por

Marcos Santarrita no ano de 1981 pela editora Abril Apoacutes a traduccedilatildeo de Leminski surgiram soacute mais

recentemente outras duas traduccedilotildees Em 2004 lanccedilada pela editora Crisaacutelida a traduccedilatildeo de Sandra Braga

Bianchet foi a primeira ediccedilatildeo biliacutengue publicada no Brasil A mais recente eacute a de Claudio Aquati lanccedilada em

2008 pela editora Cosac Naify No presente trabalho como jaacute havia destacado utilizarei como corpora de

anaacutelise as traduccedilotildees de Paulo Leminski e Sandra Braga Bianchet

Eacute importante realccedilar pensando no contexto de produccedilatildeo de cada traduccedilatildeo que a versatildeo mais recente

produzida pela professora e pesquisadora de liacutengua latina Sandra Braga Bianchet (professora doutora da

UFMG) possui um caraacuteter acadecircmico e filoloacutegico e acompanha estudo importante da obra petroniana para

os estudos greco-romanos no Brasil Diferentemente dessas duas versotildees e como foi indicado pelo proacuteprio

poeta Paulo Leminski natildeo estava preocupado com questotildees filoloacutegicas em sua traduccedilatildeo O poeta declarou

que lhe interessava propor uma traduccedilatildeo com um ldquoolhar criativordquo seguindo um modelo tradutoacuterio que

dialogava com as ideias de Eliot e Pound

[262]

Anaacutelise dialoacutegica as notas do tradutor

Em sua maioria as traduccedilotildees acadecircmicas ainda possuem uma visatildeo tradicional e pretendem ocultar o

processo tradutoacuterio criando a ilusatildeo de que o texto traduzido carrega sem contaminaccedilatildeo o significado

transparente do texto original Poreacutem com o acesso agraves teorias da traduccedilatildeo agrave literatura comparada e agrave anaacutelise

do discurso jaacute natildeo podemos conceber a traduccedilatildeo simplesmente como transporte de significados de uma

liacutengua para outra Assim como estabeleceu Pecirccheux (1993 p 82) a traduccedilatildeo se resume na transmissatildeo de

um ldquoefeito de sentidordquo entre os pontos A e B ndash texto de partida e texto de chegada Dessa forma a estudiosa

Solange Mittmann (1999 p 223) destaca a noccedilatildeo de discurso partindo dessa perspectiva e contesta toda a

ldquoilusatildeordquo de que o texto carrega uma mensagem que faraacute transparecer as intenccedilotildees do autor do original

Segundo Mittmann (1999 p 223)

natildeo haacute uma via de matildeo uacutenica do autor para o leitor com o tradutor servindo de instrumento neutro intermediaacuterio capaz de apagar os obstaacuteculos de comunicaccedilatildeo eliminando as diferenccedilas entre os coacutedigos mas haacute produccedilatildeo de sentidos pelo autor pelo tradutor pelos leitores ou ainda entre todos os participantes do processo

Nesse sentido natildeo eacute o texto de partida que serve de base para que se produza um texto traduzido mas a

imagem que o tradutor faz desse texto do autor desse texto dos seus leitores da imagem que faz de si

proacuteprio dos outros discursos que atravessam esse texto e assim por diante portanto ldquoo processo tradutoacuterio

eacute um processo de produccedilatildeo do discurso da traduccedilatildeo que se materializaraacute no texto da traduccedilatildeordquo

(MITTMANN 1999 p 225) Seguindo esse pensamento podemos afirmar que cada traduccedilatildeo de um mesmo

texto teraacute suas especificidades e diferenccedilas pois seraacute resultado de diferentes condiccedilotildees de produccedilatildeo de

discurso e de diferentes relaccedilotildees de sentido Natildeo podemos nos esquecer que os textos traduzidos satildeo

direcionados a leitores diferentes em contextos linguiacutesticos e culturais diferentes assim nunca devemos ter

a ilusatildeo de que ler um texto eacute resgatar a mensagem precisa de seu autor ou seja possuir a ldquoilusatildeo de unidade

e homogeneidade do textordquo Muitas vezes os tradutores acadecircmicos tentam transferir essa ldquoilusatildeo de

unidade e homogeneidaderdquo para o texto traduzido como aponta Mittmann (1999 p 228) o sentido dado ao

texto pelo tradutor eacute determinado pelo interdiscurso ndash na leitura do original e na escrita da traduccedilatildeo A

heterogeneidade do discurso da traduccedilatildeo remete agrave constituiccedilatildeo de todo discurso ldquosempre outras vozes o

atravessam como um discurso transverso e lhe datildeo sustentaccedilatildeo como um preacute-construiacutedordquo essa pluralidade

aparece na presenccedila de outros discursos de outras vozes tanto no texto original como na traduccedilatildeo

Um bom exemplo desses discursos transversos e das diferentes vozes que o atravessam eacute a utilizaccedilatildeo pelos

tradutores das NT Como apontou Barros (2009 p 200) as NT passam a ser um local de visibilidade do

tradutor como profissional e ele consegue a partir delas ganhar uma marca proacutepria Mittmann tambeacutem

destaca que as NT funcionam como um ldquolugar em que o tradutor apresenta suas duacutevidas dialoga com o

leitor e com o autor apresenta os caminhos que percorreu e mostra sua visatildeo a respeito do processo em que

ele mesmo se encontrardquo (MITTMANN 2003 p 43) Na produccedilatildeo de notas o tradutor consegue aparecer

[263]

como produtor de um discurso explicitamente seu e tambeacutem adquiri a liberdade de dar suas opiniotildees fazer

correccedilotildees mostrar seus conhecimentos e interferir de alguma forma no texto Poreacutem muitas vezes essas

notas vatildeo sendo utilizadas para criar uma ilusatildeo de transparecircncia do texto original na traduccedilatildeo isso parte da

visatildeo tradicional de traduccedilatildeo vista como um processo de transposiccedilatildeo de um texto de uma liacutengua para outra

em que natildeo se admite o texto traduzido como outro original sendo entatildeo que a voz do tradutor apenas se

destaca por meio de notas

Retomando a noccedilatildeo de ldquofunccedilatildeo autorrdquo de Foucault como a funccedilatildeo que organiza a diversidade de posiccedilotildees-

sujeito criando o efeito de unidade e coerecircncia Mittmann (1999 p 232) propotildee estendecirc-la em uma ldquofunccedilatildeo

tradutorrdquo considerando-a

como a funccedilatildeo que organiza a heterogeneidade de vozes como a posiccedilatildeo sujeito do tradutor a posiccedilatildeo-sujeito do autor (ou a imagem que o tradutor tem dela) aleacutem das outras vozes vindas do interdiscurso e que entram no texto da traduccedilatildeo ou nas NT seja como preacute-construiacutedo (o Outro) seja como discurso transverso (o outro) como no caso de discursos de dicionaacuterios

Esta ldquofunccedilatildeo tradutorrdquo faz portanto com que se crie um ldquoefeito de responsabilidaderdquo por parte do tradutor

em reproduzir ou imitar o original assim o tradutor fica responsaacutevel pela produccedilatildeo ou pelo silenciamento de

sentidos Segundo Mittmann (2003 p 106) a ldquofunccedilatildeo-tradutorrdquo parte da tentativa de controlar os sentidos

do texto traduzido seguindo a interpretaccedilatildeo que o tradutor realizou do original Nessa perspectiva esta

funccedilatildeo tambeacutem tem o poder de criar a ldquoilusatildeordquo de que o tradutor estaacute apenas reproduzindo a voz do autor do

original Para a estudiosa essa ldquoilusatildeordquo jaacute estaacute arraigada nos leitores antes mesmo de efetuarem a leitura e eacute

exatamente esses efeitos de ldquoilusatildeordquo que pretendo desconstruir no decorrer da anaacutelise

Eacute evidente no processo tradutoacuterio que os tradutores busquem dicionaacuterios enciclopeacutedias e livros

especializados o que faz com que a relaccedilatildeo de sentidos do tradutor natildeo seja a mesma que a do autor do

original Poreacutem nas traduccedilotildees acadecircmicas como destacou Mittmann (2003 p 67) os tradutores recorrem

a esses discursos para garantir ao seu leitor que a traduccedilatildeo transfira o verdadeiro sentido expresso pelo

autor e muitas vezes o leitor da traduccedilatildeo acaba por aceitar os sentidos impostos pelos tradutores diante de

um discurso cientiacutefico visto como verdadeiro e especializado Interessa-nos portanto refletir sobre o

processo de produccedilatildeo desses sentidos instaurados especificamente nas NT considerando a subjetividade

nelas presente

As perspectivas diante dos objetivos das NT em processos tradutoacuterios satildeo muitas e podem ser divididas em

duas vertentes a que acredita que as NT servem para auxiliar na compreensatildeo do texto de chegada e por

outro lado a que acredita que as NT funcionam como uma abertura em que o tradutor demonstra de forma

decisiva sua participaccedilatildeo na criaccedilatildeo de um novo texto Paulo Roacutenai por exemplo eacute adepto da primeira

vertente e registrou que as notas satildeo fundamentais e devem ser utilizadas ldquoquando o texto

[264]

insuficientemente claro para os leitores de outra naccedilatildeo exige explicaccedilotildeesrdquo (ROacuteNAI 1981 p 100) Para ele

as notas devem ser exclusivamente explicativas e natildeo eacute permitido ao tradutor discutir ou contradizer o autor

do original sendo que as NT satildeo apenas um ldquofacilitador de leiturardquo Jaacute outra pesquisadora Dawn Alexis Duke

(1993) acredita na segunda vertente para ela toda traduccedilatildeo eacute recriaccedilatildeo portanto o tradutor tem um papel

ativo na interpretaccedilatildeo do original e este papel estaraacute presente tambeacutem nas formulaccedilotildees das NT ldquoEacute o mesmo

sujeito operando na traduccedilatildeo e na N do T e os dois textos refletiratildeo a leitura realizada por elerdquo (DUKE 1993

p 42) Para a estudiosa a primeira vertente mais tradicional considera as NT como um texto marginal

servindo apenas para acrescentar informaccedilotildees isso faz com que o tradutor tenha apenas ldquouma funccedilatildeo de

apresentador de informaccedilotildees a partir do lsquooriginalrsquo e natildeo de produtor de sentidos surgidos de sua leitura

particularrdquo (DUKE 1993 p 45) Mittmann (2003 p 120) resume essa questatildeo ao dizer que as NT

manifestam o resultado de uma interpretaccedilatildeo particular do tradutor que eacute diferente da realizada pelo autor

e se fazem em condiccedilotildees especiacuteficas e se dirigem a um puacuteblico tambeacutem diferente

Portanto demonstrarei diante da anaacutelise comparativa entre duas traduccedilotildees do Satyricon de Petrocircnio para

o portuguecircs do Brasil a realizada por Paulo Leminski em confronto com a realizada por Sandra Braga

Bianchet quais destas vertentes sobre a construccedilatildeo das NT cada tradutor se aproxima e quais as

consequecircncias dessa diferenciaccedilatildeo na formulaccedilatildeo das NT em cada texto traduzido

Efeitos de opacidade e transparecircncia em duas traduccedilotildees do Satyricon de Petrocircnio

Como jaacute foi destacado anteriormente as duas traduccedilotildees em questatildeo a de Paulo Leminski e a de Sandra Braga

Bianchet possuem uma diferenciaccedilatildeo essencial no objetivo do projeto tradutoacuterio de cada tradutor o que

considero como ponto de partida da anaacutelise Em seu trabalho Paulo Leminski poeta e tradutor objetivou

realizar uma traduccedilatildeo criativa renovando o texto petroniano imprimindo nela suas caracteriacutesticas poeacuteticas

e pretendendo um puacuteblico amplo Por outro lado Sandra Braga Bianchet professora universitaacuteria

pesquisadora sobre a Antiguidade claacutessica e tradutora realizou sua traduccedilatildeo como parte de investigaccedilatildeo

acadecircmica sobre o Satyricon de Petrocircnio como fonte para o estudo do latim vulgar incluso na aacuterea de

estudos linguiacutesticos e filoloacutegicos e voltada para um puacuteblico especializado

Partindo entatildeo desses pressupostos veremos logo na catalogaccedilatildeo geral das NT oferecidas pelos dois

tradutores que Leminski produz mais que o dobro de NT apresentadas por Bianchet totalizando 54 notas

nas quais haacute uma maior diversificaccedilatildeo comparadas agraves criadas pela tradutora Diante disso as NT formuladas

por Leminski podem ser classificadas em quatro tipos diferentes 1) notas explicativas que abrangem

conhecimentos sobre a sociedade e a cultura da Antiguidade romana e sobre especificidades de liacutengua latina

totalizando 29 notas 2) notas que destacam neologismos criados por Petrocircnio totalizando 8 notas 3) notas

que comentam caracteriacutesticas do texto de Petrocircnio totalizando 11 notas 4) notas que comentam o proacuteprio

processo tradutoacuterio totalizando 6 notas

[265]

Diferente de Leminski Bianchet apresenta um nuacutemero reduzido de NT 17 no total das quais todas elas satildeo

de caraacuteter estritamente explicativo subdividindo-se em quatro tipos 1) referecircncias agraves palavras gregas

presentes no texto latino totalizando 4 notas 2) destaque para neologismos criados por Petrocircnio

totalizando 3 notas 3) explicaccedilatildeo de termos e expressotildees que abrangem conhecimentos sobre cultura e

sociedade romana totalizando 8 notas 4) referecircncias a obras de outros autores citados por Petrocircnio

totalizando 2 notas

Assim sendo das notas formuladas pelos dois tradutores apenas cinco delas coincidem e fica evidente como

cada tradutor apesar de destacarem nestes momentos os mesmos toacutepicos o fazem de forma diferenciada

Primeiramente focalizando as notas referentes aos neologismos criados por Petrocircnio veremos que dos

quatro termos citados por Bianchet e dos nove termos por Leminski apenas um deles eacute coincidente A nota

coincidente entre as duas traduccedilotildees trata-se do neologismo latino fulcipedia que aparece no capiacutetulo LXXV

em uma das falas de Trimalquiatildeo A forma explicativa para o termo latino eacute formulada de forma diferente em

cada caso Retomemos entatildeo o texto latino1 [] sed Fortunata vetat Ita tibi videtur fulcipedia Suadeo bonum

tuum concoquas milva et me non facias ringentem amasiuncula aliquando experieris cerebrum meum (Sat LXXV

5-6 grifos nossos) Neste trecho Trimalquiatildeo estaacute em meio a um de seus discursos durante o banquete e

utiliza o termo em destaque para adjetivar sua esposa Fortunata enquanto dirige sua fala a ela Assim seraacute

observado como cada tradutor transpocircs este trecho e a forma como utilizou a nota para explicaacute-lo fazendo

referecircncia ao neologismo

Bianchet traduz o trecho da seguinte forma ldquo[] Mas Fortunata se opotildee Assim parece bom para vocecirc sua

escora-peacutes Eacute melhor vocecirc aproveitar a boa-vida sua fecircmea de abutre e natildeo me fazer mostrar os dentes de

raiva minha queridinha senatildeo vocecirc experimentaraacute minha coacutelerardquo (PETROcircNIO 2004 p131 grifos nossos)

Percebe-se que a tradutora escolhe transpor o termo para ldquoescora-peacutesrdquo em portuguecircs do Brasil e entatildeo

formula uma nota que diz ldquoescora-peacutes neologismo formado pelo verbo fulcio (escorar sustentar) + pes pedis

(os peacutes)rdquo (PETROcircNIO 2004 p 287) Dessa forma Bianchet indica o neologismo baseado em teor filoloacutegico

indicando a origem da formaccedilatildeo do termo apoiada provavelmente em dicionaacuterios Como apurado o

dicionaacuterio Faria (1994 p 233) indica o termo como ldquoApoio dos peacutes (Petr 756)rdquo e o Oxford (1968 p 743)

indica a formaccedilatildeo do termo ldquo[fulcio+pes+-ivis]rdquo oferecendo o seguinte significado ldquoa term of abuse applied

app to a person standing on her dignityrdquo Jaacute no comentaacuterio de Shmeling (2011 p 316) o estudioso oferece a

traduccedilatildeo do termo ldquomy high stepping (high-heeled)rdquo e comenta que Trimalquiatildeo faz nessa passagem uma

referecircncia ao passado de Fortunata como danccedilarina Embasando-se por essas definiccedilotildees pode-se perceber

que o termo eacute entendido de forma ampla e com diversos significados Maurice Rat (1934 p 491) tambeacutem

1 Os textos latinos aqui citados satildeo referentes agrave versatildeo editada por Maurice Rat (1934 Garnier) a qual se aproxima da utilizada pelo tradutor Paulo Leminski Indicarei eventuais divergecircncias caso haja com a versatildeo de A Ernout (1950 Belles Lettres) utilizada por Sandra Bianchet

[266]

destaca o termo em sua traduccedilatildeo para o francecircs e diz ser um ldquoinsulto obscurordquo apresentando sua formaccedilatildeo

filoloacutegica ldquo(Le mot fulcipedia vient de fulcio lteacutetayer calergt et de pes ltpiedgt)rdquo o tradutor sugere que

Trimalquiatildeo talvez esteja falando que Fortunata estaacute cambaleante Na traduccedilatildeo de Bianchet a tradutora

escolhe a forma literal do termo em portuguecircs do Brasil e utiliza simplesmente a junccedilatildeo do verbo ldquoescorarrdquo

com o substantivo ldquopeacutesrdquo os quais faz referecircncia em nota sem realizar uma interpretaccedilatildeo do contexto do

termo latino

De outro modo Leminski interpreta o contexto em que o termo estaacute inserido utilizando um vocaacutebulo que

natildeo remete especificamente ao significado filoloacutegico da palavra latina e explica em nota da seguinte forma

ldquoMas Monetaacuteria me reprime Aqui pra vocecirc decreacutepita Roacutei o osso que eu atiro sua gralha e natildeo me provoque

demais minha amaacutesia ou eu vou perder a cabeccedila com vocecircrdquo NT ldquoFulcipedia literalmente ldquoque natildeo se

aguenta em seus peacutesrdquo composto exclusivo de Petrocircniordquo (PETROcircNIO 1985 p 100-1 grifos nossos) Leminski

interpreta o termo como uma espeacutecie de xingamento jaacute que no contexto Trimalquiatildeo estaacute de certa forma

desclassificando sua companheira e utiliza o adjetivo ldquodecreacutepitardquo que segundo Caldas Aulete pode ter as

seguintes definiccedilotildees ldquoQue estaacute muito idoso fisicamente envelhecido e depauperado (pessoa decreacutepita) Diz-

se de animal muito velho e fraco Diz-se daquilo que foi gasto pelo uso ou exposiccedilatildeordquo O tradutor portanto

entende que ldquoalgo que natildeo se aguenta nos peacutesrdquo seria algo velho ou muito utilizado Diferente de Bianchet

Leminski natildeo traz a explicaccedilatildeo filoloacutegica da formaccedilatildeo do termo latino pautando-se apenas em apresentar o

termo como aparece no texto latino e oferecendo sua traduccedilatildeo como ele mesmo aponta ldquoliteralrdquo Essa

referecircncia agrave traduccedilatildeo literal na NT de Leminski eacute uma forma de indicar que no texto ldquotraduccedilatildeordquo haacute uma

interpretaccedilatildeo uma criaccedilatildeo e os termos natildeo aparecem em sua forma precisa de dicionaacuterio Leminski indica

ainda que o termo eacute um ldquocomposto exclusivo de Petrocircniordquo sua maneira de dizer que se trata de um

neologismo

Outra caracteriacutestica relevante da narrativa petroniana que os tradutores escolhem destacar em notas eacute a

apariccedilatildeo de palavras gregas em meio ao texto latino Como informado anteriormente quatro das notas

formuladas por Bianchet satildeo referecircncias agraves palavras gregas assim como cinco das notas elaboradas por

Leminski Uma dessas notas satildeo coincidentes no que se refere ao capiacutetulo XLVIII 8 no trecho em que

Trimalquiatildeo em um de seus soliloacutequios faz referecircncia agrave fala da Sibila de Cumas a qual supostamente o

personagem tinha visto com seus proacuteprios olhos Nam Sibyllam quidem Cumis ego ipse oculis meis vidi in ampulla

pendere et cum illi pueri dicerent Σίβυλλα τί θέλεις respondebat illa ἀποθανεῖν θέλω (Sat XLVIII 8 grifos

nossos) Petrocircnio grafa a fala da Sibila em grego mesclando a liacutengua grega ao texto latino Bianchet opta por

manter as palavras em grego em sua traduccedilatildeo ldquoEu mesmo vi com meus proacuteprios olhos a autecircntica Sibila de

Cumas suspensa em um vaso de barro e quando os garotos diziam a ela Σίβυλλα τί θέλεις ela respondia

ἀποθανεῖν θέλω (PETROcircNIO 2004 p 81 grifos nossos) E assim como esclarecimento das palavras gregas

em meio ao texto em portuguecircs a tradutora oferece a nota com a traduccedilatildeo destes termos ldquo- Sibila o que

[267]

queres ndash Quero morrerrdquo (PETROcircNIO 2004 p 287) Diferente disso Leminski traduz as palavras gregas

diretamente no texto da traduccedilatildeo ldquoE vi com meus proacuteprios olhos a sibila de Cumas suspensa dentro de uma

ampola e quando as crianccedilas perguntavam a ela - Sibila que queres Ela respondia - Eu quero morrerrdquo

(PETROcircNIO 1985 p 68 grifos nossos) E entatildeo o tradutor oferece a nota que apenas aponta que as palavras

no original aparecem em grego ldquoNo original a pergunta das crianccedilas e a resposta da Sibila estatildeo em gregordquo

(PETROcircNIO 1985 p 68) Neste exemplo vecirc-se novamente a diferenciaccedilatildeo entre a traduccedilatildeo filoloacutegica e a

recriaccedilatildeo Leminski natildeo escolhe grafar a palavra em grego na traduccedilatildeo ou oferecer sua referenciaccedilatildeo em

nota em nenhum dos casos em que ocorre o uso de palavras gregas na narrativa Por outro lado Bianchet

opta mais de uma vez em oferecer na traduccedilatildeo palavras grafadas em grego ou em latim e elucidar seus

significados por meio de notas Essa distinccedilatildeo nas escolhas dos dois tradutores esclarece o projeto tradutoacuterio

de cada um sendo que Leminski ambiciona um puacuteblico amplo que muito provavelmente natildeo conhece as

liacutenguas grega e latina e diferente disso Bianchet pretende falar com um puacuteblico especializado ou que tenha

um miacutenimo de conhecimento dessas liacutenguas antigas

Esta diferenccedila de escolhas aparece em mais um exemplo em que as notas satildeo coincidentes Trata-se da

expressatildeo madeia perimadeia presente no capiacutetulo LII 9 em ocasiatildeo do Banquete de Trimalquiatildeo em que o

personagem estimula os escravos a danccedilar Segundo Oxford (1968 p 1059) esta expressatildeo aparece

unicamente em grafia grega e se trata de ldquounexplained words used in a refrainrdquo utilizada exclusivamente no

Satyricon Shmeling (2011 p 216) tambeacutem destaca o termo em seu comentaacuterio e supotildee que estas duas

palavras sejam utilizadas em um tipo de muacutesica de encanto Na ediccedilatildeo da Garnier a expressatildeo aparece em

grego Atque ipse erectis supra frontem manibus Syrum histrionem exhibebat concinente tota familia Мάδεια

περιμάδεια (Sat LII 9 grifos nossos) e Maurice Rat apenas aponta em nota que se trata de uma expressatildeo

com sentido obscuro Leminski incorpora o sentido da cena em questatildeo na narrativa e traduz com uma

espeacutecie de canto religioso que provavelmente eacute uma das origens da expressatildeo ldquoE ei-lo braccedilos levantados

imitando os gestos do bufatildeo Syros enquanto a escravaria gritava - Meu Deus eacute lindo meu Deus que

maravilhardquo (PETROcircNIO 1985 p 72 grifos nossos) O tradutor apenas se limita a indicar em nota que esta

expressatildeo ou canto popular aparece grafado em grego no texto original latino ldquoEm grego no originalrdquo

(PETROcircNIO 1985 p 72) Diferente da Garnier na ediccedilatildeo da Belles Lettres a expressatildeo aparece

transliterada para o latim ldquomadeia perimadeiardquo e eacute a forma que Bianchet adota em sua traduccedilatildeo jaacute que eacute esta

ediccedilatildeo do texto latino que a tradutora tem como referecircncia Assim ela natildeo traduz a expressatildeo

apresentando-a em latim no texto traduzido e optando por explicaacute-la em nota ldquoE ele proacuteprio com as matildeos

erguidas sobre a testa imitava o ator Siro enquanto todos os criados cantavam em coro madeia perimadeiardquo

(PETROcircNIO 2004 p 85 grifos nossos) NT ldquoMadeia perimadeia tipo de refratildeo que acompanha uma danccedila

de origem e sentidos desconhecidos A ocorrecircncia da expressatildeo eacute atestada apenas neste trecho de Petrocircnio

(Ernaut)rdquo (PETROcircNIO 2004 p 287) Bianchet portanto prefere novamente manter os termos de liacutengua

latina no texto traduzido e apoia sua explicaccedilatildeo em comentaacuterio do tradutor e editor francecircs da Belles Lettres

[268]

Ernaut Mais uma vez fica expresso na comparaccedilatildeo das duas traduccedilotildees como a traduccedilatildeo filoloacutegica de

Bianchet pretende revelar o maacuteximo de transparecircncia do texto latino seguindo seus objetivos tradutoacuterios e

seu puacuteblico leitor especializado em oposiccedilatildeo agrave recriaccedilatildeo de Leminski que prefere sempre traduzir os termos

mesmo que sejam obscuros buscando uma equivalecircncia mesmo que seja apenas aproximada ao sentido do

texto latino Na traduccedilatildeo como recriaccedilatildeo o tradutor procura aproximar-se de um puacuteblico mais amplo natildeo

conhecedor das liacutenguas antigas e oferecer um efeito mais espontacircneo para o texto traduzido

Na sequecircncia mais um excerto em que Petrocircnio utiliza uma palavra advinda do grego e que possui um

sentido incerto pode ser destacado para elucidar essa diferenciaccedilatildeo entre as duas traduccedilotildees Trata-se do

termo embasicoetas presente no capiacutetulo XXIV 1 em que Encoacutelpio estaacute na festa da matrona Quartila e

quando jaacute estaacute cansado das brincadeiras dos animadores e danccedilarinos da festa pergunta pela embasicoetas

que a matrona lhe havia prometido lsquoQuaeso inquam domina certe embasicoetam2 jusseras darirsquo Complausit

illa tenerius manus et lsquoO inquit hominem acutum atque urbanitatis frontem3 Quid tu non intellexeras cinaedum

embasicoetam vocari (Sat XXIV 1 grifos nossos) Percebe-se que no texto latino esse termo causa um

efeito de estranhamento e ao mesmo tempo um tom irocircnico agrave cena Na realidade Petrocircnio brinca com o

termo latino embasicoetas que eacute um termo advindo do grego embasikoiacutetas que segundo o dicionaacuterio Greek-

english lexicon (LIDDEL SCOTT 1996) significa ldquoname of a cuprdquo e que o dicionaacuterio Grec-Franccedilais (BAILLY

2000) traz o significado ldquosorte de couperdquo e apresenta a variaccedilatildeo da palavra embasikoiacutetos como ldquoqui fait

entrer dans le litrdquo Assim o significado primeiro do termo grego refere-se somente a um copo de bebida e

sua variaccedilatildeo sugere algo ou algueacutem que estaacute na cama Jaacute o termo latino recebeu uma outra significaccedilatildeo na

narrativa petroniana segundo o dicionaacuterio Saraiva citando a partir da passagem de Petrocircnio o significado do

termo seria ldquocorruptorrdquo para o Oxford (1968 p 602) citando tambeacutem de Petrocircnio seria ldquoa pathic (in quot

also taken in a second sense perh = a sleeping-draught nightcap)rdquo ou seja no trecho petroniano o termo

latino incorporou o sentido tanto de uma bebida afrodisiacuteaca quanto de um homossexual passivo Nesse

sentido o Thesaurus Linguae Latinae (vol V p 450) indica o termo embasicoetas (-ae) advindo do termo grego

com o significado referente ao latino poculo ou seja um copo de bebida encantada filtro amoroso ou bebida

envenenada e tambeacutem relaciona o termo ao trecho da obra petroniana referindo-se nesse contexto ao

cinaedo Schmeling em seu comentaacuterio indica o termo etimologicamente como algo referente a ldquoir para camardquo

e indica aiacute o duplo sentido (a) ldquosomething like a lsquonight-cuprsquo lsquosleeping draughtrsquo and (b) cinaedusrdquo

(SCHMELING 2011 p 71) O estudioso cita a utilizaccedilatildeo do termo por Athenaeus como um tipo de copo e

por Juvenal referente a um copo em forma de falo como uma brincadeira sobre a fellatio que pode ser

relacionada agrave cena Pode-se sugerir portanto que Petrocircnio aproveitou essa dualidade do termo para inserir

um tom irocircnico ao diaacutelogo entre Encoacutelpio e Quartila unindo o estranhamento de um termo de origem grega

2 Na versatildeo Les Belles Lettres (1950) grafado embasicoetan 3 Na versatildeo Les Belles Lettres (1950) grafado urbanitatis vernaculae fontem

[269]

ao desconhecimento e confusatildeo do personagem que natildeo sabia seu significado e pensou ser o nome de um

tipo de bebida ou comida logo foi advertido por Quartila que se tratava de uma ldquobicha travestidardquo do latim

cinaedus

Primeiramente Bianchet escolhe em sua traduccedilatildeo apenas um dos sentidos do termo latino embasicoetas

voltado para o significado da palavra grega ou seja ldquouma taccedila especialrdquo mantendo com essa escolha a ideia

da confusatildeo feita pelo personagem que natildeo tinha entendido o que Quartila havida dito Ela traduz da

seguinte forma

ldquoPor favor minha senhora vocecirc natildeo me havia prometido uma taccedila especialrdquo Ela aplaudiu muito delicadamente e disse ldquoMas que homem perspicaz e que exemplo de educaccedilatildeo romana Por que vocecirc estaacute perguntando Vocecirc ainda natildeo percebeu que essa bicha eacute sua taccedila especialrdquo (PETROcircNIO 2004 p 41 grifos nossos)

Bianchet opta entatildeo por explicar o jogo de palavras criado por Petrocircnio inserindo uma NT ldquoEm todo esse

capiacutetulo e no XXVI Petrocircnio faz um jogo com o significado da palavra embasicoetas utilizando-a ora para se

referir ao nome de uma taccedila de formato obsceno ora como sinocircnimo de cinaedusrdquo (PETROcircNIO 2004 p 287)

Assim por meio da nota a tradutora consegue uma maneira de transferir ao leitor o humor existente na cena

Diferentemente na traduccedilatildeo de Leminski consegue-se perceber desde o iniacutecio a transposiccedilatildeo da brincadeira

instaurada por Petrocircnio no texto latino presente no proacuteprio texto traduzido em liacutengua portuguesa do Brasil

O tradutor escolhe preservar o jogo de palavras e traduz a primeira ocorrecircncia do termo latino por

ldquoHermafroditardquo que designa segundo Caldas Aulete (2007) ldquopessoa que possui os oacutergatildeos peculiares aos dois

sexosrdquo A traduccedilatildeo leminskiana se apresenta da seguinte forma

- E aquela tal de Hermafrodita que a senhora prometeu me dar

Ela bateu as matildeos com delicadeza

- Olha soacute como ele eacute esperto esse garotinho com educaccedilatildeo de escravo O que eacute que foi

gatinho Natildeo sabia que hermafrodita aqui quer dizer homossexual ativo

(PETROcircNIO 1985 p 40 grifos nossos)

Nesse sentido percebe-se que Leminski recria o texto em liacutengua portuguesa buscando o mesmo

procedimento utilizado pelo autor latino ao empregar uma palavra tambeacutem de origem grega que da mesma

forma causa o estranhamento e a confusatildeo do personagem Encoacutelpio que natildeo percebe de pronto que haacute uma

referecircncia oculta a um homem efeminado nas palavras do tradutor um ldquohomossexual ativordquo Segundo os

estudos de Richlin (1978 p287) o termo cinaedus refere-se geralmente ao ldquohomossexual passivordquo Na cena

em questatildeo trata-se de uma zombaria ao efeminado e na pretensatildeo de Quartila em assustar o jovem

Encoacutelpio daiacute a escolha de Leminski em traduzir por ldquohomossexual ativordquo reafirmando em liacutengua portuguesa

a ameaccedila zombeteira da anfitriatilde

[270]

Prosseguindo o tradutor tambeacutem utiliza uma nota para demarcar o jogo de palavras poreacutem a NT de

Leminski diferente de Bianchet natildeo funciona exatamente como uma explicaccedilatildeo filoloacutegica mas como parte

estiliacutestica da ironia que este pretende recuperar do trecho latino A nota diz o seguinte ldquoNo original

Embasicoetam palavra de origem grega que nosso pobre heroacutei pensa ser nome de uma mulherrdquo (PETROcircNIO

1985 p 40) Percebe-se que o tradutor natildeo utiliza a NT apenas para explicar a brincadeira advinda do texto

latino mas tambeacutem como uma nota esteacutetica que conversa com o restante do texto de forma que sua

interpretaccedilatildeo como tradutorleitorautor fique exposta Na traduccedilatildeo e com a formulaccedilatildeo da NT Leminski

faz com que o leitor volte ao texto de partida percebendo a brincadeira do autor latino ao utilizar um termo

grego de duplo sentido poreacutem acaba por modificar o espiacuterito da brincadeira para que essa obtenha o mesmo

efeito na liacutengua de chegada Em liacutengua latina a brincadeira eacute instaurada na confusatildeo entre ldquotaccedila de bebidardquo e

ldquohomossexual passivordquo ou ldquohomem efeminadordquo jaacute em liacutengua portuguesa Leminski joga com a ambiguidade

entre o ldquonome de uma mulherrdquo e um ldquohomossexual ativordquo Assim Leminski retoma o sentido latino do termo

cinaedus causando a desconfianccedila no jovem personagem que natildeo consegue identificar o sexo do

Embasicoetas ou para Leminski ldquoHermafroditardquo Nesse sentido na NT Leminski consegue recuperar sua

ldquofunccedilatildeo tradutorrdquo ao explicar para o leitor que no original se trata de uma palavra de origem grega e ao

mesmo tempo inclui sua ldquoidentidaderdquo e manteacutem a ldquoopacidaderdquo do texto de partida no texto de chegada

explicando a brincadeira que ele mesmo como tradutor criou ou seja mostrar a confusatildeo do personagem

diante da palavra ldquoHermafroditardquo pensando se tratar de um nome de mulher

Finalmente a uacuteltima nota coincidente entre os dois tradutores refere-se mais uma vez a um jogo de palavras

instaurado por Petrocircnio no capiacutetulo XLI 7 com a palavra liber Na ocasiatildeo do Banquete de Trimalquiatildeo foi

servido um grande javali vestindo um chapeacuteu de liberto4 pois ele havia sido rejeitado no banquete do dia

anterior e entatildeo recebida a liberdade retornando para o banquete desse dia narrado por Encoacutelpio Logo em

seguida entrou no salatildeo um jovem escravo atuando como Baco5 cantando e distribuindo uvas Ateacute que

Trimalquiatildeo resolve libertaacute-lo e o escravo transfere o chapeacuteu do javali para sua proacutepria cabeccedila Esta narrativa

eacute apresentada por Petrocircnio da seguinte maneira

Dum haec loquimur puer speciosus vitibus hederisque redimitus modo Bromium interdum Lyaeum Euhiumque confessus calathisco uvas circumtulit et poemata domini sui acutiacutessima vocecirc traduxit Ad quem sonum conversus Trimalchio lsquoDionyse inquit liber estorsquo Puer detraxit pileum apro capitique suo imposuit Tum Trimalchio rursus adjecit lsquoNon negabitis me inquit habere Liberum patremrsquo (Sat XLI 7 grifos nossos)

Como assinalou Schmeling (2011 p 161) em um primeiro niacutevel eacute faacutecil perceber o jogo de palavras que

Petrocircnio realiza com a palavra liber6 indicando liberdade na primeira ocorrecircncia sendo liberto o tal escravo

4 ldquoIt is a symbol of freedom which a slave upon becoming a freedman places on his headrdquo (SCHMELING 2011 p 157) 5 Deus do vinho tambeacutem chamado Dioniacutesio 6 ldquoLivre de condiccedilatildeo livre (socialmente falando)rdquo (FARIA 1994 p 314)

[271]

que como siacutembolo veste o chapeacuteu de liberto e a palavra Liber7 na segunda ocorrecircncia que faz referecircncia ao

deus Baco A brincadeira estaacute no fato de Trimalquiatildeo libertar um escravo chamado Dioniacutesio e fazer

referecircncia como uma forma de trocadilho com o nome primordial do deus Baco Como apontou Grimal

(1966 p 121) este deus eacute identificado em Roma com o antigo deus itaacutelico Liber Pater e refere-se

essencialmente ao deus da vinha do vinho e do deliacuterio miacutestico Para Schmeling (2011 p 161) haacute ainda uma

interpretaccedilatildeo mais aprofundada da cena que revela o desejo insatisfeito de Trimalquiatildeo em ter nascido livre

O personagem natildeo nasceu livre ele ganhou a liberdade de seu antigo dono mas no trocadilho ele procura se

colocar como ldquopai da liberdaderdquo poreacutem na verdade Liber pater eacute apenas a brincadeira em possuir e poder

libertar um escravo chamado Dionysus

Sendo assim a partir desses comentaacuterios observa-se como cada tradutor resolve o trocadilho em liacutengua

latina transposto para o portuguecircs do Brasil Primeiramente Bianchet como tem feito em todo texto

traduzido escolhe uma forma literal

Enquanto estaacutevamos conversando sobre essas coisas um escravo de bela aparecircncia coroado com ramos de videira e de hera mostrando que era um Dioniso ora barulhento ora relaxado ora exaltado serviu-nos uvas em um pequeno cesto e interpretou composiccedilotildees em verso de seu senhor com sua voz extremamente aguda Virando-se na direccedilatildeo do som Trimalquiatildeo disse Dioniso esteja livrerdquo O escravo tirou o barrete do javali e colocou-o em sua proacutepria cabeccedila Entatildeo Trimalquiatildeo mais uma vez acrescentou Vocecircs natildeo podem negar que a liberdade me acompanha desde que nasci pois eu tenho Liacuteber como pairdquo (PETROcircNIO 1985 p 67 grifos nossos)

Dessa maneira ela traduz a primeira ocorrecircncia do termo como ldquolivrerdquo referenciando agrave liberdade e a

segunda ocorrecircncia do termo como ldquoLiacuteberrdquo fazendo referecircncia ao deus Baco Nesta segunda ocorrecircncia a

tradutora utiliza a NT para explicar a referecircncia mitoloacutegica ldquoLiacuteber eacute uma antiga divindade latina que era

confundida com Bacordquo (PETROcircNIO 1985 p 287) O trocadilho presente no texto latino natildeo fica muito

evidente na traduccedilatildeo realizada por Bianchet que fez referecircncia apenas a Dioniacutesio na apresentaccedilatildeo do

escravo depois apenas explicou a referecircncia mitoloacutegica de Liber Poreacutem o sentido no que se refere agravequele

demonstrado por Schmeling foi apresentado na uacuteltima frase de Trimalquiatildeo traduzida por ela ldquoVocecircs natildeo

podem negar que a liberdade me acompanha desde que nascirdquo

Mais uma vez diferente de Bianchet Leminski prefere natildeo fazer uma traduccedilatildeo literal e transpotildee um sentido

que esteja ligado ao contexto da cena em questatildeo

Enquanto isso um jovem escravo beliacutessimo coroado com folhas de parreira se atribuindo os nomes de Baco Bromius Lyaeus e Evius dava volta agraves mesas com uma cesta de uvas que distribuiacutea a todos enquanto cantava com voz agudiacutessima os versos que seu senhor tinha composto A esse som voltou-se Trimalciatildeo - Dioniacutesio ndash disse ndash seja livre O escravo tirou o

7 ldquoAntiga divindade latina mais tarde confundida com Baco deus do vinhordquo (FARIA 1994 p 314)

[272]

chapeacuteu do javali e o colocou sobre a proacutepria cabeccedila Entatildeo Trimalciatildeo ndash Isso eacute que eacute ser um pai liberalrdquo (PETROcircNIO 1985 p 58 grifos nossos)

Uma primeira diferenciaccedilatildeo entre as duas traduccedilotildees estaacute no fato de que Leminski faz referecircncia aos

diferentes nomes oferecidos a Baco como ldquoBromius Lyaeus e Eviusrdquo os quais natildeo aparecem na traduccedilatildeo de

Bianchet Como apontou Schmeling (2011 p 160) essas referecircncias dizem respeito aos trecircs aspectos do

deus Dioniacutesio (Bromius Lyaeus e Euhius) os quais o escravo tambeacutem chamado Dioniacutesio e representando o

deus como o liacuteder de um ritual dionisiacuteaco iraacute incorporar mais adiante como Liber Leminski tambeacutem muito

diferente de Bianchet traduz a segunda ocorrecircncia de maneira espontacircnea demonstrando a sua proacutepria

interpretaccedilatildeo da fala de Trimalquiatildeo em um sentido como se o personagem estivesse se vangloriando de

estar libertando um escravo o que na verdade tambeacutem faz parte da brincadeira realizada por Petrocircnio Na

primeira ocorrecircncia da palavra liber do trecho Leminski formula uma nota ldquoEm latim lsquoLiber estorsquo trocadilho

intraduziacutevel sendo que Liber eacute um dos nomes do deus do vinho Dioniacutesio Baco Bromius Lyaeus e Evius Seria

ao mesmo tempo ldquoesteja livrerdquo e ldquoseja Bacordquo (PETROcircNIO 1985 p 58) Percebe-se portanto que Leminski

faz referecircncia ao trocadilho presente no texto latino e aproveita para expor o seu processo tradutoacuterio

comentando que este trocadilho eacute ldquointraduziacutevelrdquo O tradutor tambeacutem faz referecircncia agrave ligaccedilatildeo do deus Liacuteber

ao deus Baco e aproveita para explicar que aqueles outros nomes que aparecem no iniacutecio do trecho satildeo da

mesma forma referentes ao mesmo deus Por fim Leminski oferece duas traduccedilotildees possiacuteveis para a

expressatildeo Fica evidente mais uma vez a liberdade com que Leminski trabalha no texto da traduccedilatildeo em

correlaccedilatildeo com as NT por ele formuladas natildeo estando preso agrave tentativa de transparecircncia expondo-se como

tradutor e criador do texto traduzido Jaacute no caso de Bianchet ela segue o padratildeo acadecircmico e filoloacutegico

principalmente nas notas limitando-se a apresentar os termos de forma teoacuterica buscando a maacutexima

transparecircncia textual

Consideraccedilotildees finais

No caso dos exemplos destacados quando Bianchet escolhe dizer em nota que o autor do texto original faz

um jogo com certo termo esclarece os possiacuteveis significados deste termo amparada em dicionaacuterios e

escolhe traduzir apenas um desses significados ou somente referendaacute-lo com uma transcriccedilatildeo do termo

original ela deixa impliacutecito que todo o texto traduzido eacute transparente e soacute pontualmente haacute uma certa

opacidade Para ela essa opacidade pontual motivou a colocaccedilatildeo de uma nota na tentativa de retomar o

ldquosentido originalrdquo do texto de partida levando em consideraccedilatildeo os pressupostos do autor Cria-se entatildeo

uma ilusatildeo de homogeneidade na qual se insere o heterogecircneo quando na realidade ocorre o contraacuterio nas

palavras de Mittmann (2000 p 2) ldquoo heterogecircneo eacute constitutivo do discurso da traduccedilatildeo ndash como o era do

discurso original ndash e eacute sobre ele que se daacute o efeito de unidade atraveacutes da funccedilatildeo tradutorrdquo

[273]

Em outro sentido diferentemente disso na traduccedilatildeo de Paulo Leminski haacute a criaccedilatildeo de um outro efeito em

que o tradutor se apropria da ldquofunccedilatildeo tradutorrdquo e manteacutem a heterogeneidade do discurso do texto de partida

apresentando uma pluralidade de identidades e mantendo sua proacutepria identidade Hattnher (1994)

considera esse tipo de tradutor como um ldquotransmorfordquo ou seja ldquoo tradutor assume traccedilos e feiccedilotildees do autor

(ou autores) que traduz imprimindo na escrita do Outro sua proacutepria caligrafiardquo (HATTNHER 1994 p 33)

Hattnher comenta as notas de Leminski da traduccedilatildeo feita pelo poeta do romance Ask the Dust de John Fante

sendo que nesta traduccedilatildeo o poeta tambeacutem utiliza notas esteacuteticas Segundo o estudioso ldquoas notas de Leminski

comentam interpretam e questionam o texto original estabelecendo-lhes extensotildees e ampliando para o

leitor as possibilidades de desvendamento textualrdquo (HATTNHER 1994 p 35)

Assim como definiu Reacutegine Robin (1977 p 29) a ldquoopacidaderdquo maacutexima aparece na poesia em que o enunciado

eacute modalizado de maneira especiacutefica e o sujeito da enunciaccedilatildeo estaacute agrave disposiccedilatildeo de cada leitor que se

transforma tambeacutem num sujeito da enunciaccedilatildeo que assume um enunciado Parece-me portanto que Paulo

Leminski por ser poeta e por definir um projeto tradutoacuterio preacute-estabelecido de retomada da literalidade da

obra petroniana consegue assumir o papel de leitorautor e assumir-se como sujeito enunciador Pelo

contraacuterio como definiu Reacutegine Robin (1977 p 29) haacute a maacutexima ldquotransparecircnciardquo no enunciado do tipo

ldquomaacuteximardquo que eacute particular dos enunciados cientiacuteficos em que o sujeito do enunciado eacute como que apagado

Por essa razatildeo acredito que as traduccedilotildees acadecircmicas procuram uma maior transparecircncia e o apagamento

do sujeito enunciador poreacutem como em todo discurso haacute vozes que ocupam diferentes posiccedilotildees-sujeitos e

na traduccedilatildeo natildeo eacute diferente esse apagamento eacute apenas aparente causando uma ldquoilusatildeo de transparecircnciardquo

Referecircncias bibliograacuteficas

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A traduccedilatildeo como possibilidade de compreender mundos que natildeo satildeo meus

Augusto B de Carvalho Dias Leite

augustobrunoleitegmailcom

Apresentaccedilatildeo da questatildeo principal

a traduccedilatildeo demarca o limite do conhecimento

A traduccedilatildeo ou o ato de traduzir eacute uma evidente marca das relaccedilotildees

humanas Desde a accedilatildeo teacutecnica de verter um texto escrito para

outra liacutengua cuja conexatildeo se constroacutei entre a originalidade e a

coacutepia traduzida ao ato mais amplo e abstrato de compreender um

outro a traduccedilatildeo se exibe como limite e limiar simultaneamente

sempre disponibilizando a relaccedilatildeo entre um par de opostos um si

mesmo e um outro mdash um estranho ou estrangeiro A traduccedilatildeo nesse

sentido mais rico teoacuterico e abstrato natildeo eacute o simples fato ou ato de

transformar uma liacutengua em outra mas eacute a afirmaccedilatildeo da

possibilidade de um mesmo pensar o mundo a partir de outra liacutengua

quer dizer atraveacutes de outra linguagem isto eacute de outras

representaccedilotildees espirituais culturais Traduccedilatildeo portanto natildeo diz

respeito a uma teacutecnica apenas mas poderiacuteamos inicialmente dizer

refere-se agrave natureza mesma da linguagem em geral pois a traduccedilatildeo

eacute antes de mais nada a simples compreensatildeo

A partir desse panorama geral sobre a linguagem e a traduccedilatildeo como

compreensatildeo a pergunta teoacuterica a ser respondida por este breve

ensaio eacute a seguinte a traduccedilatildeo limita ou expande o conhecimento

Para tornar exequiacutevel a tarefa de elaborar hipoacuteteses sobre esse

[276]

questionamento parto do princiacutepio proposto na conclusatildeo da obra Warheit und Methode (1960) de Hans-

Georg Gadamer o qual afirma que o ser que pode ser compreendido eacute linguagem Ou seja a hermenecircutica eacute um

aspecto universal da filosofia e natildeo somente a base metodoloacutegica das chamadas ciecircncias do espiacuterito como

propuseram Johann Gustav Droysen e especialmente Wilhelm Dilthey1

Da traduccedilatildeo ou compreensatildeo como a natureza da linguagem

Wilhelm von Humboldt considerado o pai da filosofia moderna da linguagem destaca-se precisamente por

sua investigaccedilatildeo sobre a individualidade das liacutenguas como expressatildeo das culturas agraves quais se referem mdash

teoria que mais recentemente ganha o nome de relativismo linguiacutestico (ou hipoacutetese Sapir-Whorf) A partir de

suas investigaccedilotildees sobre o tema2 as liacutenguas seriam modulaccedilotildees peculiares dos espiacuteritos locais Nesse

sentido no que se refere ao tema da teoria da traduccedilatildeo em particular a linguagem se constitui como um limite

especial que se situa em cada cultura mdash ou cada naccedilatildeo povo nos termos tipicamente modernos de Von

Humboldt Haveria um mundo linguiacutestico proacuteprio em que se vive e este mundo seria meu anaacutelogo o meu

mundo que me cerca [Umwelt] e que por definiccedilatildeo limita ou condiciona a minha existecircncia minha visatildeo do

mundo [Weltanschauung] de acordo com Von Humboldt

O que nomeamos como cultura seria assim em larga medida representada por sua linguagem A linguagem

entatildeo seria uma composiccedilatildeo de representaccedilotildees de preconceitos mdash os conceitos previamente estabelecidos

mdash que me foram transmitidos e que me permitem interagir com o meu mundo Desse modo a traduccedilatildeo para

Humboldt exibe-se como um dos meios fundamentais de nos sentir estrangeiros quer dizer a traduccedilatildeo seria

entatildeo uma das peccedilas para a construccedilatildeo inequiacutevoca das fronteiras entre dois lados ou antiacutepodas o eu e o

outro Ao se traduzir a traduccedilatildeo evidenciaria portanto as diferenccedilas natildeo as semelhanccedilas

Em Orientalism (1978) Edward Said argumenta por exemplo que as traduccedilotildees foram um dos elementos

fundamentais para operar a ldquoorientalizaccedilatildeordquo o processo de delimitaccedilatildeo entre uma cultura ocidental e outra

oriental A traduccedilatildeo seria uma teacutecnica orientalista particular nas palavras de Said que serviu agrave tarefa de

evidenciar as fronteiras metafiacutesicas e fiacutesicas entre ocidente e oriente cujo material fora a simples linguagem

Em contrapartida a essa perspectiva sobre o problema das potecircncias da linguagem e mais especificamente

do papel da traduccedilatildeo Hans-Georg Gadamer em suas conclusotildees da obra jaacute citada interfere precisamente

nesse debate para nos esclarecer algo aparentemente banal mas que possui implicaccedilotildees importantes Para

Gadamer o mundo linguiacutestico proacuteprio em que se vive natildeo eacute uma barreira que impede todo conhecimento do ser em

1 Droysen em sua Historik (1882) e Dilthey em Einleitung in die Geisteswissenschaften (1882) e Der Aufbau der geschichtlichen Welt in den Geisteswissenschaften (1910) 2 Notadamente em Uumlber die Natur der Sprache im allgemeinen (1807) e Uumlber die Verschiedenheit des menschlichen Sprachbaues (1836)

[277]

si mas abarca fundamentalmente tudo aquilo a que pode expandir-se e elevar-se a nossa percepccedilatildeo Isto eacute assim

como afirma Walter Benjamin em Die Aufgabe des Uumlbersetzers (1923) a traduccedilatildeo eacute pensada por Gadamer

primeiramente como a expressatildeo da possibilidade de expandir os sentidos natildeo de encerraacute-los pois o ato de

traduzir nos diz Benjamin apresenta novos e diferentes modos de visar o mesmo aumentando assim as

maneiras de se compreender A vista disso a traduccedilatildeo antes de evidenciar as fronteiras culturais que

existiriam entre cada mundo linguiacutestico expressa a possibilidade proacutepria agrave linguagem de suprassumir essas

mesmas fronteiras e conhecer mundos que natildeo satildeo os meus A linguagem igualmente e portanto natildeo seria

expressatildeo de um limite de seu proacuteprio mundo mas eacute o meio atraveacutes do qual o sentido pode continuar sua

efetividade entre um mesmo e outro e a traduccedilatildeo como possibilidade efetiva eacute sua manifestaccedilatildeo mais proacutepria

Linguagem eacute toda e qualquer manifestaccedilatildeo do espiacuterito humano algo que natildeo se restringe agraves liacutenguas naturais

E a caracteriacutestica principal da linguagem seria para Gadamer a abertura para continuar o sentido ou melhor

a linguagem se caracterizaria por possuir a potecircncia de significar e ressignificar continuamente Esta

potecircncia que Gadamer resume no conceito de liguisticidade [Sprachlichkeit] encontra um anaacutelogo em Walter

Benjamin que em suas investigaccedilotildees sobre a teoria da linguagem aplicada ao problema da traduccedilatildeo mdash

particularmente no texto sobre a tarefa do tradutor mdash epitomiza esse mesmo aspecto da linguagem no termo

traduzibilidade [Uumlbersetzbarkeit] Porque traduccedilatildeo e compreensatildeo satildeo de modo igual uma disposiccedilatildeo do

espiacuterito humano que se exibe atraveacutes da linguagem linguisticidade e traduzibilidade guardam uma identidade

teoacuterica fundamental

Na linguagem haacute sempre traduzibilidade a liacutengua conteacutem os dispositivos de se abrir para o outro e natildeo se

ensimesmar ou absorver-se em si mesma a traduccedilatildeo Compreender eacute entatildeo perviver fazer continuar a viver

um determinado sentido Mas sobretudo eacute descolar-se dos preconceitos do meu mundo em direccedilatildeo a outros

A traduzibulidade enfim seria uma caracteriacutestica da linguagem que diz que haacute sentido disponiacutevel Trata-se de

um sinal ou marca da vida da linguagem que teria algo a dizer ou um sentido a emprestar sobretudo para uma outra

linguagem outro que natildeo eacute o mesmo Esse fato nos leva ateacute a definiccedilatildeo da traduccedilatildeo como um ato de

conhecimento do outro traduccedilatildeo como sugere Paul Ricœur seria assim hospedar o outro o estrangeiro

A linguagem que possui a potecircncia da traduzibilidade que em outras palavras eacute a possibilidade de dizer outras

coisas ou mais coisas eacute um organismo psicoloacutegico vivo que se exibe assim somente porque sua natureza eacute a

traduccedilatildeo De outra forma se traduzir natildeo fosse possibilidade mdash o que de fato eacute mdash seriacuteamos necessariamente

limitados por uma linguagem que se configuraria como somente nossa mdash o que de fato natildeo eacute

Os limites da minha linguagem denotam os limites de meu mundo

Os limites da minha linguagem denotam os limites de meu mundo afirma Ludwig Wittgenstein em seu

afamado Tractatus Logico-philosophicus (1921) Essa afirmativa transformada em uma interrogaccedilatildeo pode

[278]

receber tanto um laquosimraquo quanto um laquonatildeoraquo como resposta Sim porque haacute evidentemente uma identidade

entre a linguagem e a cultura que se retroalimentam tal como Von Humboldt demonstrou Natildeo porque

assim como Friedrich Schleiermacher afirma que compreender um autor melhor do que ele de si mesmo pode se

dar conta eacute a tarefa da hermenecircutica pode-se tambeacutem afirmar que superar o meu proacuteprio mundo (Umwelt)

ultrapassar a mim mesmo eacute a tarefa da linguagem que eacute a tarefa do tradutor tal como Benjamin nos ensina

Reconhecer os limites da minha linguagem eacute ao mesmo tempo o reconhecimento da situaccedilatildeo hermenecircutica em que

me encontro Mas reconhecer a traduzibilidade da linguagem eacute assumir a possibilidade que ela nos empresta de

superarmos o nosso mundo a partir da relaccedilatildeo com o outro expandindo ou continuando o sentido que assumimos

tambeacutem como nosso Haacute diferenccedilas (linguiacutesticas culturais e existenciais gerais) mas haacute tambeacutem um fator

comum que permite as liacutenguas comunicarem umas com as outras O fator comum pode ser chamado de

mundo ou experiecircncia e a traduccedilatildeo seria sua mais alta testemunha Portanto na traduccedilatildeo natildeo se trata

exatamente de ter empatia com o outro mas de continuar o sentido disponibilizado pelo outro de modo a

realizar o encontro ou relaccedilatildeo entre o mesmo e o outro

Traduzir diz respeito agrave continuidade dos sentidos disponiacuteveis naquilo que Benjamin chamou de

traduzibilidade E a linguagem portanto natildeo se encerra como a expressatildeo de uma cultura ou ponto de vista

(Von Humboldt) mas eacute uma cultura expressando o mundo de um ponto de vista que se expande em direccedilatildeo

a outros mundos na medida em que o fundamento da linguagem eacute a traduccedilatildeo (Gadamer) A traduccedilatildeo eacute o que

nos permite ampliar o nosso ponto de vista fundindo o meu horizonte o meu ponto de vista com um outro

apropriando-me de outros preconceitos que natildeo satildeo apenas meus pois a apropriaccedilatildeo de outros pontos de

vista isto eacute a compreensatildeo eacute a proacutepria natureza da linguagem que indiscutivelmente se refere

substancialmente agrave cultura A elaboraccedilatildeo da situaccedilatildeo hermenecircutica significa entatildeo a obtenccedilatildeo do horizonte de

questionamento correto para as questotildees que se colocam frente agrave tradiccedilatildeo mdash aquilo que nos foi transmitido

Um dilema colocado pelo fato da traduccedilatildeo o problema da alteridade

A muito conhecida paraacutebola biacuteblica de Babel (Gen 111-9) segundo a qual poderes divinos confundem3 as

liacutenguas da humanidade tornando as barreiras ou fronteiras comunicativas uma de suas condiccedilotildees

existenciais antes de introduzir a cataacutestrofe ou a trageacutedia da confusatildeo insoluacutevel entre as liacutenguas e culturas

segundo Ricœur a alegoria babeacutelica anuncia o chamado agrave traduccedilatildeo A traduccedilatildeo eacute apresentada

alegoricamente em Babel como condiccedilatildeo humana Traduzir ou melhor o trabalho de compreender o outro

ou de compreender (n)as diferenccedilas eacute um projeto eacutetico da humanidade do qual natildeo se pode desviar sem

contabilizar os prejuiacutezos

3 Babel compartilha a mesma raiz proto-semita de balal [confusatildeo]

[279]

Em termos teoacutericos e abstratos dispotildee-se dois lados opostos em contato necessaacuterio um eu e um outro

Atualiza-se a antiga questatildeo entre o Uno e o Muacuteltiplo entre a identidade e a diferenccedila cuja elaboraccedilatildeo

moderna mais relevante se encontra na Phaumlnomenologie des Geistes (1907) de G W F Hegel Na

fenomenologia hegeliana a finalidade da consciecircncia mdash ou o seu termo mdash eacute o reconhecimento ou o saber-se

consciente ou a superaccedilatildeo da solidatildeo espiritual Em termos eacuteticos tal finalidade estaacute enredada em uma

condiccedilatildeo ontoloacutegica de estranhamento que se opera entre a mesmidade e a diferenccedila internamente em

relaccedilatildeo agrave consciecircncia pois os diferentes momentos do movimento proacuteprio ao pensar satildeo simultaneamente

diferentes entre si estrangeiros um em relaccedilatildeo ao outro mas tambeacutem pertencem agrave unidade do movimento

ao se reconhecerem como tal Ou seja eacute proacuteprio ao movimento da consciecircncia porque eacute fundamentalmente

um movimento mdash devir mdash o estranhamento entre momentos diferentes Muacuteltiplos que contudo compotildeem

um mesmo Uno o movimento como fenocircmeno unitaacuterio e cujas singularidades satildeo estrangeiras uma em

relaccedilatildeo agraves outras Parmecircnides de Eleacuteia quem de fato inicia essa questatildeo admoesta ldquonatildeo separe o ser da

continuidade de seu proacuteprio serrdquo (DK28 B4) isto eacute o Muacuteltiplo [polla] eacute sempre Uno [hen] enquanto existecircncia

ou assim como se encontra em Platatildeo no diaacutelogo dedicado ao mestre da escola eleaacutetica ldquonem antes nem

depois o Uno eacute ao mesmo tempo com os outrosrdquo (Pl Prm 153e)

Em outras palavras visando transportar a reflexatildeo fenomenoloacutegica hegeliana e ontoloacutegica de Parmecircnides

para a teorizaccedilatildeo da traduccedilatildeo trata-se de um movimento especulativo que objetiva uma teoria da

hospitalidade mdash da acolhida do outro Com Hegel poderiacuteamos afirmar que eu mesmo sou estrangeiro em

relaccedilatildeo a mim e necessito me reconhecer em diferentes e muacuteltiplos momentos do movimento unitaacuterio da

consciecircncia Por isso faz parte dessa consciecircncia o acolhimento ou a hospitalidade do outro mdash ainda eu

mesmo mdash como momento insuperaacutevel o mesmo ou o proacuteprio eacute tambeacutem o estrangeiro do outro bem como o

outro eacute estrangeiro do mesmo pois hoacutespede eacute tanto quem acolhe como quem eacute acolhido Por fim pode-se

pensar em uma contrapartida filosoacutefica dessa questatildeo em relaccedilatildeo agrave linguagem e agrave traduccedilatildeo pois se traduzir

eacute uma tarefa fundamental da humanidade mdash da pluralidade existencial ou do reconhecimento enquanto

humano mdash conforme o mito de Babel hospedar o estrangeiro mdash sua liacutengua sua cultura sua histoacuteria sua

existecircncia mdash deve ser igualmente um imperativo eacutetico a natildeo se evitar

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Este volume foi diagramado utilizando-se as famiacutelias tipograacuteficas Lato amp Raleway

Eacute permitida a reproduccedilatildeo parcial desta obra desde que citada a fonte e que natildeo seja

para qualquer fim comercial em contraacuterio constitui violaccedilatildeo da LDA 961098

Page 3: Natan Henrique Taveira Baptista Luiza Helena Rodrigues de ......Clássicas pela Universidade de São Paulo. Fez um estágio pós-doutoral na Universidade de Coimbra, em Portugal, em

copy Cop yrig ht do s autores Vitoacuteria 2020

U NIVER S ID AD E F ED ER AL D O E S P IacuteR IT O S ANT O

R eitor P aul o Seacutergi o de P aul a V argas

V ice - r eitor Roney P i gnat on da Si l v a

Proacute - reito r de Pesq u isa e Poacute s - Gradu accedilatildeo N ey v al C ost a Rei s J uacuteni or

Diretor a do Centro de Ciecircncias Humanas e Naturais Edi net e M ari a Rosa

Coo rdenad or do Prog rama de Poacutes - Gradu accedilatildeo em L etras V i t or C ei Sant os

Coo rdenad or do Prog rama de Poacutes - Gradu accedilatildeo em H istoacuteria Bel c hi or M ont ei ro L i ma N et o

Editoraccedilatildeo N at an H enri que T av ei ra Bapt i st a

R evisatildeo de Tex to O s aut ores

Projeto Graacutef ico e Diag ramaccedilatildeo Eletrocircn ica N at an H enri que T av ei ra Bapt i st a

Cap a N at an H enri que T av ei ra Bapt i st a

R evisatildeo F inal Barbara F ari a T o fol i D rey kon F ernandes N asc i ment o e F abri zi a N i c ol i D i as

P R OG R AM A D E P OacuteS - G R AD UACcedilAtildeO E M L ET R AS ģU F ES

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D AD OS I N T ER N ACION AIS D E C AT ALOG ACcedilAtildeO - N A - P UB LIC ACcedilAtilde O ( CIP)

(B i bl i otec a Setori al do Centro de Ci ecircnc i as H umanas e N aturai s da U ni versi dade F ederal do Espiacute ri to Santo ES B rasi l )

El aborado por Saul o de J esus Peres ģCRB - 6 ES - 676O

E828 Estudos em traduccedil atildeo amp rec epccedil atildeo dos c laacutessic os [rec urso elet rocircnic o] Natan Henrique

T aveira Baptista L uiza Helena R odrigues de Abreu Carvalho L eni R ibeiro L eite

organizadores ģDados elet rocircnic os ģVitoacuteria ES L et ras - Ufe s 2020

280 p il

ISBN 978 - 65 - 88916 - 00 - 1

M odo de ac esso lthtt p let rasufesbrpt - brperiodicos - e - publicac oesgt

1 Civilizaccedil atildeo c laacutessic a ģdisc ursos ensaios c onferecircnc ias 2 L ite ratura - Histoacuteria e

c riacutetic a 3 T raduccedil atildeo e inte rpretaccedil atildeo na lite ratura I Baptista Natan Henrique T aveira

1991 - II Carvalho L uiza Helena R odrigues de Abreu 1992 - III L eite L eni R ibeiro 1979 -

IV Universidade F ederal do Espiacuterito Santo Program a de Poacutes - Graduaccedil atildeo em L et ras

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Natan Henrique Taveira Baptista

Luiza Helena Rodrigues de Abreu Carvalho

Leni Ribeiro Leite

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Vitoacuter ia 2 0 2 0

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d o s Claacutess ico s

PARTE I

A ANTIGUIDADE CLAacuteSSICA

Agrave LUZ DOS ESTUDOS DE RECEPCcedilAtildeO

ALUSAtildeO E INTERTEXTUALIDADE

Um possiacutevel diaacutelogo entre o Poema de Parmecircnides e o Tratado do natildeo-ser de Goacutergias

Daniela Brinati Furtado

danibrinatifgmailcom

Faacutebio da Silva Fortes

fabiosfortesyahoocombr

O objetivo deste estudo eacute apresentar uma reflexatildeo sobre a filosofia

parmeniacutedica acerca do ser e em que medida esta pode ter

viabilizado o pensamento de Goacutergias desenvolvido no Tratado do

natildeo-ser Em seu tratado Goacutergias apresenta a hipoacutetese de que as

coisas externas ao discurso [loacutegos] natildeo satildeo traduziacuteveis em palavras

portanto natildeo satildeo comunicaacuteveis Ao fazecirc-lo o sofista impede que

qualquer discurso fale fielmente da realidade atitude que

inviabiliza tratar o Poema de Parmecircnides realmente do ser Feito

isso Goacutergias daacute ao nosso conhecimento apenas acesso ao

discurso o qual receberaacute o poder de atribuir sentido agrave realidade

que seraacute um constante fluxo de discursos pontuais E ao

refletirmos sobre a questatildeo do sofista nos perguntaremos se o ser

parmeniacutedico ndash na medida em que este eacute confundido com o

pensamento presente em seu Poema ndash possivelmente abriu espaccedilo

para os postulados gorgianos

[11]

Introduccedilatildeo

No Tratado do natildeo-ser Goacutergias parece limitar a possibilidade de o loacutegos1 expressar fielmente tudo aquilo que

natildeo seja classificado como uma palavra em um discurso Tal movimento de limitaccedilatildeo do loacutegos parece ir de

encontro com o Poema acerca da natureza de Parmecircnides a saber um discurso sobre como se daacute a realidade

o ser ndash que seria a condiccedilatildeo de possibilidade de todas as coisas que satildeo

Diante disso nos propomos refletir sobre em que medida o Tratado de Goacutergias dialoga com o Poema de

Parmecircnides Para realizaacute-lo propomo-nos primeiro a fazer uma reflexatildeo sobre o poema para entatildeo

ponderar sobre o tratado e acerca de que medida podemos levantar a possibilidade de seu diaacutelogo com o

poema

Com relaccedilatildeo ao Poema refletimos que Parmecircnides atraveacutes da deusa indica o ser como a condiccedilatildeo de

possibilidade das coisas que satildeo ou seja as coisas apenas satildeo porque antes o ser eacute assim como tal ser

tambeacutem parece ser o uacutenico objeto de pensamento Ao fazecirc-lo Parmecircnides parece revelar como

consequecircncia de suas postulaccedilotildees uma realidade simples ou seja uma vez que o ser permeia tudo aquilo que

eacute e portanto na medida em que pensamos algo tal pensamento passa a ser isto eacute passa a ser permeado

pelo ser

Ora Goacutergias parece pensar que se assim o fosse os pensamentos seriam congruentes com relaccedilatildeo ao ser e

portanto natildeo seria possiacutevel pensar o natildeo ser Poreacutem Goacutergias insinua ser capaz de pensar um tratado que

menciona o natildeo ser e assim ele levanta a questatildeo de a realidade natildeo ser simples ndash permeada por apenas um

ser que igualaria a natureza de todas as coisas que permeia ndash mas sim uma realidade complexa na qual pode

existir algo de uma natureza diferente do loacutegos poreacutem natildeo suscetiacutevel de ser conhecida ou se conhecida natildeo

possiacutevel de ser enunciada

O ser parmeniacutedico

Em seu poema Parmecircnides atraveacutes da deusa nos apresenta duas possibilidades de composiccedilatildeo do todo da

realidade ou tudo eacute ser ou tudo eacute natildeo ser ldquoassim ou totalmente eacute necessaacuterio ser ou natildeordquo (DK 28 B811)2

Temos aqui a apresentaccedilatildeo daquilo que Sedley (2008 p 170) chama de ldquoPrimeira lei Natildeo haacute meias-verdades

1 Como nos indica o verbete de um dos mais conceituados dicionaacuterios da liacutengua grega antiga (LIDDELL SCOTT JONES 1996 [1843]) a palavra loacutegos tem vaacuterias traduccedilotildees possiacuteveis dentre elas palavra discurso pensamento 2 οὕτως ἢ πάμπαν πελέναι χρεών ἐστιν ἢ οὐχί Em todas as citaccedilotildees do Poema utilizamos a traduccedilatildeo de Joseacute

Cavalcante de Souza (1973)

[12]

Nenhuma proposiccedilatildeo eacute verdadeira e falsa A nenhuma pergunta se pode coerentemente responder lsquosim e

natildeorsquordquo ou seja quando se trata da verdade ou eacute ou natildeo eacute natildeo haacute como ser ambos

A deusa exclui a possibilidade do natildeo ser como aquele a partir do qual toda a realidade se desdobra na medida

em que este natildeo possui atributos proacuteprios dele nada pode-se afirmar que eacute apenas o que natildeo eacute o que o

impossibilitaria ser condiccedilatildeo de possibilidade daquilo que eacute relaccedilatildeo (SEDLEY 2008)

Jaacute o ser por ter atributos proacuteprios natildeo precisa de um diferente para ser caracterizado ndash dizemos isso porque

em uma negativa noacutes precisariacuteamos de um ldquoBrdquo para dizer que ldquoArdquo natildeo eacute ele A afirmaccedilatildeo por outro lado

permitiria somente a identidade ldquoArdquo eacute ldquoArdquo Ora se a deusa postulou no iniacutecio do poema que o todo eacute ou natildeo

eacute uma vez que o natildeo ser precisa de um diferente para caracterizar-se ele natildeo poderia ser o todo Isso porque

para ser pensado o natildeo ser natildeo o faz identificando-se consigo mesmo mas diferenciando-se de algo e

portanto se ele fosse o todo ele natildeo o seria sozinho mas precisaria de outro para receber atributos O ser

por outro lado identifica-se consigo mesmo podendo ser apenas ele o todo Isso permite um discernimento

do ser um pensamento claro deste e por ter caracteriacutesticas proacuteprias e inteligiacuteveis eacute capaz de ser o motivo

das coisas serem ou seja as coisas satildeo porque fazem parte do ser (KIRK 1983 p 258)

Depois disso estabelecido e o sujeito do verbo ldquoserrdquo ter sido colocado como o ente (CASSIN 2015) a deusa

segue para demonstrar os quatro atributos do ser natildeo gerado e impereciacutevel um todo uacutenico imoacutevel e que o-

que-eacute eacute esfeacuterico A primeira caracteriacutestica trata da atemporalidade do ser Tal caracteriacutestica se apresenta

como fundamental uma vez que ldquose alguma coisa existe natildeo pode nascer nem perecer transformar-se ou

mover-se nem estar sujeita a nenhuma imperfeiccedilatildeordquo (KIRK 1983 p 251) ou seja para nos enganarmos

entendendo que as coisas vecircm a ser no tempo tem de haver algo atemporal espacial de onde tais coisas

possam se desdobrar este algo eacute o ser

Na medida em que nos encaminhamos para a proacutexima caracteriacutestica podemos perceber a

complementaridade entre elas uma vez que o ser eacute impereciacutevel e condiccedilatildeo de existecircncia das coisas

pereciacuteveis este seraacute um uno contiacutenuo que permeia todas as coisas que satildeo ldquoo que estaacute sendo eacute

lsquocompletamente homogecircneo uno e contiacutenuorsquo e natildeo pode ser de outro modo jaacute que estaacute presente em tudo o

que eacuterdquo (CORDERO 2011 p 100)

Se o ser eacute uno contiacutenuo homogecircneo e permeia todas as coisas que existem e se para que as coisas sejam

tem de haver um ser entatildeo no momento em que um pensamento emerge este encontra sua condiccedilatildeo de

possibilidade no ser e quando ele passa a ser efetivamente ele tambeacutem eacute permeado pelo ser ldquoeacute lsquotodo igual a

sirsquo de modo a que nele natildeo se possam encontrar intervalos ou distinccedilotildeesrdquo (SEDLEY 2008 p 174) Ou seja

natildeo haacute como ter um intervalo no ser que permita que algo seja sem ser permeado por este e portanto quando

um pensamento passa a ser segue-se que este eacute permeado pelo ser

[13]

Tal caracteriacutestica pode levar-nos a pensar o ser como muacuteltiplo Poreacutem para evitar tal pensamento de

multiplicidade que engendraria uma certa ilusatildeo acerca da realidade Parmecircnides iraacute introduzir a ideia do

todo como um e quando Parmecircnides postula a realidade como um ser uno ele exclui a possibilidade da

multiplicidade uma vez que mesmo que tenhamos a ilusatildeo de uma realidade muacuteltipla eacute patente o fato de o

ser tudo permear e dar a possibilidade de existecircncia agraves coisas que satildeo portanto a realidade eacute uma uacutenica

existecircncia a do ser (KIRK 1983 p259)

Tal colocaccedilatildeo de que o ser eacute uno e homogecircneo nos leva agrave proacutexima caracteriacutestica que a complementaraacute o ser

eacute imoacutevel Isso porque uma vez que consideramos o ser como atemporal e impereciacutevel e natildeo gerado ele natildeo

realiza um movimento natildeo podemos falar o que ele foi ou seraacute pois ele eacute sempre o mesmo estaacute em um estado

constante ele eacute sempre presente A partir disso podemos pensar o ser como um eterno contiacutenuo ldquocontudo

eacute provaacutevel que o argumento de 296 tenha jaacute negado sua existecircncia no tempordquo (KIRK 1983 p 261) pois se

ele fosse um contiacutenuo dentro do tempo poderiacuteamos dizer que ele foi o mesmo que ele eacute hoje e seraacute sempre

o mesmo mas natildeo devemos falar do ser em comparaccedilatildeo com as coisas que ele natildeo eacute tratamos dele apenas

de forma afirmativa e dizer o que foi seu passado que natildeo eacute mais presente natildeo estaacute de acordo com tal

postulaccedilatildeo

Portanto parece-nos que Parmecircnides pensa em um ser que eacute e que ocupa a dimensatildeo espacial ldquolsquoimoacutevelrsquo eacute

aqui frequentemente interpretado como lsquoimutaacutevelrsquo tomando-se o limite como siacutembolo de lsquoinvariacircnciarsquordquo

(SEDLEY 2008 p 174) Tal dimensatildeo espacial nos leva agrave uacuteltima caracteriacutestica mencionada a sua

esfericidade O ser por ser uno atemporal e homogecircneo natildeo poderia ser carente de nada e por isso

Parmecircnides designa a este limites ldquopreenchendo-se todo espaccedilo disponiacutevel ateacute esse limite natildeo haacute espaccedilo

para esse movimentordquo (SEDLEY 2008 p 174) Portanto colocando um limite espacial Parmecircnides tira do

ser essa caracteriacutestica temporal do movimento

Devemos interpretar esses limites como uma forma tanto metafoacuterica quanto literal de apresentar o

acabamento do ser Literal porque quando se trata de tal acabamento este seraacute esfeacuterico uma vez que a

esfera natildeo permitiraacute uma assimetria e portanto natildeo permitiraacute uma definiccedilatildeo de suas partes por comparaccedilatildeo

agraves outras nas suas diferentes caracteriacutesticas (SEDLEY 2008) Poreacutem haacute objeccedilotildees a essa limitaccedilatildeo do ser a

saber que se o ser eacute limitado e esfeacuterico nada impede que no seu exterior esteja o natildeo-ser (SEDLEY 2008)

Eacute nesse momento que introduzimos a interpretaccedilatildeo metafoacuterica da esfericidade do ser segundo a qual

podemos entender que Parmecircnides ao designar o ser como limitado talvez esteja pensando este como

limitante aquilo que permitiraacute as coisas serem E por este ser uno e todo coloca limite agraves coisas que satildeo

existentes e natildeo permite a existecircncia do natildeo ser ou seja do natildeo existente - ele limitaraacute a existecircncia agraves coisas

que satildeo (KIRK 1983)

[14]

Entatildeo pois limite eacute extremo bem terminado eacute de todo lado semelhante a volume de esfera bem redonda do centro equilibrado em tudo pois ele nem algo maior nem algo menor eacute necessaacuterio ser aqui ou ali pois nem natildeo-ente eacute que o impeccedila de chegar ao igual nem eacute que fosse a partir do ente aqui mais e ali menos pois eacute todo inviolado pois a si de todo igual igualmente em limites se encontra (DK 28 B841-49)3

Podemos perceber nessa passagem do Poema que a deusa coloca o ser como limitado e circular Podemos

pensar que assim ela o faz uma vez que o ciacuterculo impediria uma comparaccedilatildeo negativa ndash a partir da qual uma

parte teria atributos que outra natildeo tem ndash excluindo a possibilidade de o natildeo ser ser de dentro do ser Isso

resulta em um ser todo idecircntico a si mesmo e que impossibilita a diferenccedila dentro de seus limites

Na medida em que o ser eacute homogecircneo e condiccedilatildeo de possibilidade de tudo aquilo que eacute ele permite a

existecircncia das coisas que satildeo uma vez que estas derivam dele Podemos a partir de tal pensamento deparar-

nos com a consequecircncia de que no momento em que um pensamento surge ou que um discurso eacute proferido

eles tambeacutem satildeo derivaccedilotildees do ser e portanto natildeo dizem o natildeo ser ndash pois este eacute impensaacutevel ndash mas mesmo

que diferente da forma que a deusa o apresenta eles expressam o ser e portanto natildeo haveria o falso

Resumidamente vimos que no Poema atraveacutes da deusa Parmecircnides apresenta duas vias possiacuteveis uma que

eacute (a do ser) e outra que natildeo eacute (a do natildeo ser) Uma vez que a via do natildeo ser mostrou-se contraditoacuteria ela natildeo

poderia ser a via do conhecimento nos restando apenas a via do ser A deusa caracteriza o ser que compotildee a

realidade como uno imutaacutevel homogecircneo e circular e devido a tais atributos o ser natildeo poderia ser carente

abrangendo assim todas as coisas que satildeo inclusive o pensamento e portanto pensar se confunde com o

ser

O ser e o loacutegos no Tratado do natildeo ser

Na versatildeo do Tratado ao qual temos acesso atraveacutes do Anocircnimo MXG nos eacute apresentada primeiro a

conclusatildeo para depois serem desenvolvidos os argumentos que levaram Goacutergias a ela

3 αὐτὰρ ἐπεὶ πεῖρας πύματον τετελεσμένον ἐστί

πάντοθεν εὐκύκλου σφαίρης ἐναλίγκιον ὄγκωι

μεσσόθεν ἰσοπαλὲς πάντηιmiddot τὸ γὰρ οὔτε τι μεῖζον

οὔτε τι βαιότερον πελέναι χρεόν ἐστι τῆι ἢ τῆι

οὔτε γὰρ οὐκ ἐὸν ἔστι τό κεν παύοι μιν ἱκνεῖσθαι

εἰς ὁμόν οὔτ᾿ ἐὸν ἔστιν ὅπως εἴη κεν ἐόντος

τῆι μᾶλλον τῆι δ᾿ ἧσσον ἐπεὶ πᾶν ἐστιν ἄσυλονmiddot

οἷ γὰρ πάντοθεν ἶσον ὁμῶς ἐν πείρασι κύρει

[15]

Nada diz Goacutergias eacute Se eacute eacute incognosciacutevel se eacute e eacute cognosciacutevel natildeo pode ser mostrado a outros (Tratado do natildeo-ser sect1)4

Inicialmente percebemos nessa passagem que Goacutergias apresenta-se em desacordo do que foi revelado pela

deusa de Parmecircnides Ao anunciar que ldquonada eacuterdquo Goacutergias parece ir de encontro agrave filosofia de Parmecircnides

desafiando-a e derrubando a seguranccedila que essa tinha diante de sua consequecircncia ndash a relaccedilatildeo direta entre

pensamento e realidade ndash em sua realidade uma (CASERTANO 2010) Tal movimento parmeniacutedico tem

como consequecircncia a impossibilidade de o discurso falar coisas que satildeo diferentes do ser e portanto

apresentar algo diferente deste Poreacutem no trecho apresentado Goacutergias parece impossibilitar a traduccedilatildeo do

ser parmeniacutedico em palavras Ao fazecirc-lo Goacutergias acaba por indicar que haacute como dizer e portanto pensar

aquilo que eacute diferente do ser ou seja nessa passagem o sofista parece indicar a possibilidade de dizer o natildeo

ser e portanto exclui a homogeneidade do ser

Goacutergias provavelmente seguindo os passos da deusa (CASSIN 2015) pensa que se a realidade eacute toda ser ou

toda natildeo ser e se o fato de se poder pensarfalar o natildeo ser ndash como ele o fez anunciando que nada eacute ndash exclui a

possibilidade do ser como todo entatildeo resta ao natildeo ser a posiccedilatildeo de reger a realidade Mas ainda assim se haacute

natildeo ser e este exclui a possibilidade do ser Goacutergias concorda que para que haja natildeo ser para se dizer que natildeo

eacute seria necessaacuterio o desdobramento das coisas deste natildeo ser assim como em Parmecircnides do ser se

desdobravam os entes em Goacutergias do natildeo ser deveriam se desdobrar os natildeo entes (CASSIN 2015) Mas para

que isso aconteccedila o natildeo ser deveria ter atributos proacuteprios como o ser o que natildeo eacute o caso uma vez que o natildeo

ser eacute contraditoacuterio - ele eacute natildeo ser - ele eacute idecircntico e diferente de si ao mesmo tempo E se o natildeo ser permite

contradiccedilatildeo nada impede o ser - que seria o oposto do natildeo ser com o qual coexiste na contradiccedilatildeo - de existir

em uma realidade dominada por natildeo ser Afinal eacute necessaacuterio o ser para afirmar que o natildeo ser eacute

Concluiacutemos entatildeo que provavelmente para Goacutergias o todo natildeo pode ser o ser sozinho uma vez que o natildeo ser

foi colocado na primeira frase do tratado Mas tambeacutem natildeo pode ser o natildeo ser sozinho uma vez que este eacute

contraditoacuterio natildeo tendo atributos proacuteprios e precisando do ser para ser identificado E ainda que ser e natildeo

ser fossem o mesmo nada seria pois ser seria natildeo ser e este uacuteltimo natildeo eacute (Tratado do natildeo-ser sect2)

Goacutergias portanto se vecirc em um impasse ao tentar conhecer o ser parmeniacutedico ele acabou se encontrando

em uma realidade que natildeo eacute simples e composta apenas pelo ser Ele se viu pelo contraacuterio em uma realidade

complexa e composta pelo ser e pelo natildeo ser Isso dificultou a pesquisa do sofista pois durante sua tentativa

de conhecer o ser ele se deparou com o diferente deste e por ter encontrado algo sobre o que a deusa diz

natildeo ser possiacutevel pensar ele tenta distinguir esse diferente ndash o natildeo ser ndash do ser da deusa poreacutem ldquodesde que se

4 Οὐκ εἶναί φησίν οὐδέν εἰ δrsquo ἔστιν ἄγνωστον εἶναι εἰ δὲ καὶ ἔστι καὶ γνωστόν ἀλλrsquo οὐ δηλωτὸν ἄλλοις Tal passagem pode ser encontrada no Tratado sobre o natildeo-ser em sua versatildeo do MXG (De Melisso Xenophane Gorgia) escrita por um doxoacutegrafo anocircnimo da qual seguimos a ediccedilatildeo de Cassin (2005)

[16]

tente garantir a distinccedilatildeo das duas vias elas se confundemrdquo (CASSIN 2015 p 70) Ou seja ao tentar

identificar o natildeo ser com ele mesmo ndash natildeo ser eacute natildeo ser ndash ele encontrou o ser junto do natildeo ser este uacuteltimo

precisando do primeiro para identificar-se consigo mesmo Isso deixa Goacutergias com duas opccedilotildees ou tudo eacute

(ser e natildeo ser satildeocoexistem) ou nada eacute (nem ser nem natildeo ser satildeoexistem)

O sofista se vecirc na posiccedilatildeo de fazer uma escolha e decide ser fiel agrave deusa dizendo que nada eacute pois se ele

optasse pelo tudo eacute ser e natildeo ser coexistiriam e de acordo com a deusa eles natildeo coexistem Segue-se entatildeo

que diferente da deusa Goacutergias natildeo percebe o caminho do ser como persuasivo o que vai levaacute-lo a dizer que

nem ser nem natildeo ser satildeo ou seja nada eacute (CASSIN 2015)

Em seguida Goacutergias recua de sua posiccedilatildeo radical Ele o faz ou melhor permite-se fazecirc-lo uma vez que eacute

indiferente ao conteuacutedo do discurso - natildeo importa se o ser eacute ou natildeo pois mesmo que seja natildeo haacute como ser

dito Entatildeo natildeo haacute porque o discurso ocupar-se do ser (SALLES 2018)

Goacutergias entatildeo recua um pouco de sua hipoacutetese inicial - de que ldquonada eacuterdquo - e anuncia a hipoacutetese de que ldquose eacute eacute

incognosciacutevelrdquo hipoacutetese que estabelece a indiferenccedila mencionada (CASSIN 2015) Isso porque com relaccedilatildeo

a essa realidade objetiva apresentada por Parmecircnides natildeo importa para ele se o ser realmente eacute porque se

ele for natildeo haacute como o conhecermos e portanto produzir um discurso sobre ele como Parmecircnides o fez

Goacutergias ao recuar um pouco da sua hipoacutetese inicial radical parece mostrar que quando se trata do discurso

natildeo haacute um criteacuterio objetivo que indique qual a verdade que se deve defender eacute uma escolha arbitraacuteria que

natildeo segue necessariamente regras loacutegicas Isso porque uma vez que ele abre matildeo da sua tese inicial e

considera a possibilidade de ser ele deixa de mostrar provas objetivas que justifiquem que nada eacute e permite

que o interlocutor decida se eacute ou natildeo pois independente da escolha deste natildeo haacute como dizer se ele estaacute

certo ou natildeo porque isso que ele diz ser ou natildeo eacute incognosciacutevel

Isso nos leva entatildeo ao segundo recuo em direccedilatildeo agrave sua terceira hipoacutetese conforme a qual Goacutergias apresenta

a seguinte sentenccedila ldquose eacute e eacute cognosciacutevel natildeo pode ser mostrado a outrosrdquo (Tratado do natildeo-ser sect1) Ao dizer

que o que eacute natildeo pode ser mostrado aos outros Goacutergias impossibilita que o discurso fale sobre objetos

externos a ele a saber objetos que natildeo satildeo palavras organizadas em um discurso Logo Goacutergias impede que

o discurso [loacutegos] tenha conteuacutedo se tornando apenas forma (CASSIN 2015) E quando o sofista logifica o

ser - ou seja quando o sofista faz o movimento de impossibilitar a atribuiccedilatildeo de um conteuacutedo objetivo a um

discurso fazendo do ser ao qual ele se refere apenas uma palavra ndash o discurso seraacute a uacutenica realidade que

temos acesso e a partir dele criamos o sentido da realidade objetiva

Sobre aquilo que natildeo eacute parece-nos uma reflexatildeo que evidencia bem a complexidade e relatividade de todo discurso que queira propor-se como um nosso discurso cognoscitivo sobre a realidade exterior a noacutes A complexidade eacute fornecida pelo inevitaacutevel entrelaccedilamento entre o niacutevel do nosso discurso sobre a realidade e o niacutevel da realidade que permanece fora

[17]

do nosso discurso e ao mesmo tempo da necessidade de ter bem distintos esses dois planos mesmo na dificuldade em fazer isso coerentemente (CASERTANO 2010 p 68)

Ou seja Goacutergias mostra como a relaccedilatildeo entre pensamentolinguagem [loacutegos] e a realidade eacute complexa e de

acordo com o sofista inconciliaacutevel Enquanto para Parmecircnides era algo simples (uno) ndash permitindo o

pensamento ser considerado criteacuterio do real uma vez que o que eacute eacute pensado e o que natildeo eacute eacute impensaacutevel

Portanto se o ser eacute e para que seja ele precisa ser pensado apenas enquanto uno imutaacutevel homogecircneo e

fechado Mas se eacute possiacutevel pensar sobre o ser diferente do que ele eacute ndash o nada por exemplo entatildeo o ser natildeo

pode ser o todo

Portanto eacute nessa uacuteltima colocaccedilatildeo que o leontino inaugura uma cisatildeo entre realidade e linguagem que natildeo

era problematizada no Poema e que impossibilita qualquer discurso de carregar consigo a verdade

(CORDERO 2011 p 139) Ele limita todo discurso agrave sua discursividade ou seja o discurso apenas anunciaraacute

palavras ele seraacute sempre sua proacutepria referecircncia nunca lhe seraacute possiacutevel anunciar uma realidade objetiva que

eacute de uma natureza diferente da sua E portanto como natildeo haacute nenhum ponto de diaacutelogo entre o loacutegos e uma

possiacutevel realidade objetiva perde-se o criteacuterio de verdade desse loacutegos uma vez que natildeo haacute nada externo a

ele que pode ser referecircncia como confirmaccedilatildeo ou negaccedilatildeo do hipoteacutetico conteuacutedo de tal loacutegos

O ser parmeniacutedico e o loacutegos gorgiano

Escolhemos o ser parmeniacutedico pelo aparente diaacutelogo que o Tratado faz com o Poema Dizemos isso pelo fato

de que Goacutergias parece estar discutindo exatamente a relaccedilatildeo entre as coisas que satildeo e os limites da

linguagem quando se trata de expressar tais coisas enquanto o poema apresenta-se como um discurso que

trata daquilo que eacute

Enquanto Parmecircnides discute sobre o que eacute o ser faz deste o uacutenico objeto do pensamento e impossibilita

que o natildeo ser seja pensado Goacutergias por sua vez parece-nos identificar o natildeo ser no loacutegos na medida em que

consegue dizer que ldquonada eacuterdquo questionando a relaccedilatildeo entre o pensamento e o ser Isso porque uma vez que

Parmecircnides apresenta uma realidade composta apenas pelo ser e o pensamento acaba sendo permeado por

este ser a relaccedilatildeo desses dois pode ser interpretada como paciacutefica ndash uma vez que ambos satildeo o ser ou

derivaccedilotildees deste Ora se o ser permeia todas as coisas natildeo haacute como surgir um pensamento diferente do ser

Poreacutem o questionamento colocado no Tratado leva Goacutergias a pensar que haacute como pensar o diferente do ser

portanto haveria a possibilidade do natildeo ser ndash este como o diferente do ser ndash colocando em questatildeo assim o

monismo parmeniacutedico que sustenta a equivalecircncia de pensamento e ser na medida em que a realidade natildeo

seria mais simples (apenas composta pelo ser) mas complexa (podendo haver a existecircncia de algo diferente

do ser)

[18]

Goacutergias o faz primeiro dizendo que ldquonada eacuterdquo e apenas com esta frase inicial o sofista apresenta seu

engajamento no Tratado se as coisas satildeo e o ser eacute o todo natildeo deixando espaccedilo para o natildeo ser como eacute possiacutevel

anunciar que nada eacute Tal questatildeo poderia ser resolvida dizendo que haacute intervalos no ser e a partir de um

deles teria sido possiacutevel que Goacutergias pensasse que algo diferente de tal ser - o nada - eacute Poreacutem se assim fosse

a deusa estaria enganada no Poema uma vez que neste ela diz ser o todo o ser ndash sem intervalos

Diante entatildeo da possibilidade da existecircncia do natildeo ser no logos ndash uma vez que este permitiu Goacutergias dizer

algo diferente do que eacute ndash o sofista parece assumir uma posiccedilatildeo semelhante agrave da deusa com relaccedilatildeo agrave

realidade poreacutem com consequecircncias diferentes enquanto a deusa ao assumir que o todo ou eacute ser ou eacute natildeo

ser considera persuasivo o ser assumir o posto de totalidade Goacutergias por sua vez parece-nos tambeacutem

considerar que o todo ou eacute ou natildeo eacute Poreacutem o sofista ao explorar a via do ser ndash que tambeacutem abrangeria o

loacutegos ndash encontra a possibilidade de pensar o diferente deste o natildeo ser e por considerar que ser e natildeo ser natildeo

poderiam coexistir ndash como a deusa o postulou ndash ele assume esse todo como o que nada eacute nem ser nem natildeo

ser

Consideramos esse momento do Tratado no qual Goacutergias parece apresentar uma posiccedilatildeo com relaccedilatildeo ao

todo uma passagem de diaacutelogo entre o pensamento do sofista e o de Parmecircnides Poreacutem o que nos eacute

apresentado em seguida pelo sofista parece ser o verdadeiro objetivo do tratado

Logo depois de apresentar uma posiccedilatildeo radical sobre a composiccedilatildeo da realidade ndash a de que nada eacute ndash Goacutergias

recua de tal concepccedilatildeo levantando a possibilidade de ser mas fazendo a ressalva de que natildeo seria conhecido

Tal movimento nos parece ser de grande importacircncia na medida em que diferencia o tratado do poema Isso

porque apesar de a deusa considerar a possibilidade do natildeo ser antes de descartaacute-lo depois que eacute definido o

ser como aquele que compotildee a realidade o poema passa a dedicar-se a argumentos que fundamentariam tal

posiccedilatildeo Goacutergias por sua vez abre matildeo da sua posiccedilatildeo inicial com relaccedilatildeo agrave realidade abstendo-se assim de

uma palavra final acerca dessa realidade

Depois do primeiro recuo o sofista realiza outro segundo o qual ele considera a possibilidade de ser e de ser

conhecido poreacutem com a ressalva de que natildeo pode ser comunicado E eacute esse movimento que consideramos o

principal quando se trata do Tratado e de sua relaccedilatildeo com o Poema Isso porque quando Goacutergias realiza esse

terceiro recuo ele parece justificar o porquecirc de ele se permitir fazecirc-lo aleacutem de tambeacutem parecer justificar o

porquecirc de seu texto natildeo se dedicar a argumentos que fundamentam o nada ser Dizemos que isso tambeacutem

poderia ser um ponto de diaacutelogo com o poema pois na medida em que Goacutergias impossibilita o loacutegos de

traduzir o que eacute ele apesar de considerar a possibilidade de existir o ser e de algueacutem o conhecer ele impede

que algueacutem fale fielmente deste E portanto mesmo que haja o ser e que Parmecircnides o tenha conhecido

Goacutergias exclui a possibilidade de o Poema ser o texto que trata desse ser Nenhum texto eacute capaz de fazecirc-lo

nem o de Goacutergias ou o de Parmecircnides

[19]

Conclusatildeo

Parece-nos portanto que em seu Tratado Goacutergias manteacutem um diaacutelogo com o Poema de Parmecircnides natildeo

porque Goacutergias faz uma colocaccedilatildeo sobre a realidade que vai de encontro com a do filoacutesofo ndash ao dizer que

nada eacute em contrapartida com o ser eacute da deusa mas sim pelo fato de Goacutergias se permitir duvidar da sua

colocaccedilatildeo inicial por ter como objetivo mostrar a falha do loacutegos ao tentar traduzir as coisas que natildeo satildeo

palavras em palavras

Chegamos a tal conclusatildeo tendo em vista que se Goacutergias impossibilita o loacutegos de falar do ser ele entatildeo retira

do Poema a autoridade de ser aquele que apresenta a realidade como esta se mostra Eacute pelo fato de Goacutergias

parecer levantar essa problemaacutetica da dificuldade de o loacutegos tratar do ser que suspeitamos que tal reflexatildeo

pareccedila partir do Poema o que nos levou a optar por levantar a possibilidade de o pensamento de Parmecircnides

ter sido um ponto de partida de Goacutergias

Referecircncias bibliograacuteficas

CASERTANO G Sofista Traduccedilatildeo de J Bortolini Satildeo Paulo Paulus 2010

CASSIN B Se Parmecircnides O tratado anocircnimo de Melisso Xenophane Gorgia Traduccedilatildeo de C Oliveira Belo Horizonte Autecircntica 2015

CORDERO N L A invenccedilatildeo da Filosofia uma introduccedilatildeo agrave filosofia antiga Traduccedilatildeo de E Wolf Satildeo Paulo Odysseus 2011

GOacuteRGIAS Testemunhos e Fragmentos Traduccedilatildeo de M Barbosa e I de Ornellas e Castro Lisboa Colibri 1993

KIRK G S RAVEN J E SCHOFIELD M Os filoacutesofos preacute-socraacuteticos Traduccedilatildeo de C A L Fonseca Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 2013

LIDDELL H G SCOTT R JONES H S A Greek-English Lexicon 9 ed rev e amp New York Oxford University 1996

PARMEcircNIDES Da natureza Traduccedilatildeo de J C de Souza In Os Preacute-Socraacuteticos Coleccedilatildeo ldquoOs Pensadoresrdquo Satildeo Paulo Abril Cultural 1973

SALLES L L B M Raiacutezes Sofiacutesticas Sobre a escrita como phaacutermakon para a fala ou da tradiccedilatildeo gorgiana ateacute Alcidamante de Eleia Tese (Doutorado em Filosofia) ndash Instituto de Filosofia e Ciecircncias Sociais Universidade Federal do Rio de Janeiro Rio de Janeiro 2018

SEDLEY D Parmecircnides e Melisso In LONG A A (org) Primoacuterdios da filosofia grega Traduccedilatildeo de P Ferreira Aparecida Ideias e Letras 2008 p 167-189

Liacutengua e recepccedilatildeo o caso de uelim + subj em um comentaacuterio agraves Filiacutepicas de Ciacutecero

Alex Mazzanti Jr

alexmazzantijrgmailcom

Essa pesquisa teve o apoio da

Fundaccedilatildeo de Amparo agrave Pesquisa do

estado de Satildeo Paulo (FAPESP) processos

n 201526060-5 e 201706554-9

Ao se deparar com um texto antigo leitores frequentemente

recorrem a comentaacuterios os quais teriam a funccedilatildeo de oferecer

conhecimento suplementar auxiliando (e mediando) a

interpretaccedilatildeo Assim eles ajudam o leitor a completar lacunas que

ele possa julgar ter em relaccedilatildeo agrave histoacuteria agrave tradiccedilatildeo agrave recepccedilatildeo

interpretaccedilatildeo e uso do texto por autores antigos e tambeacutem em

relaccedilatildeo a aspectos linguiacutesticos que podem gerar duacutevida ou

hesitaccedilatildeo no leitor A construccedilatildeo de uelim + subjuntivo natildeo

mediado por ut eacute objeto do comentaacuterio de Ramsey (2003) agrave Filiacutepica

I de Ciacutecero Seguindo Gildersleeve amp Lodge (1903) ele afirma que a

ausecircncia de ut torna o desejo mais enfaacutetico Uma anaacutelise focada nos

dados disponiacuteveis nos revela que nas cartas de Ciacutecero 98 dos

exemplares de uelim + subjuntivo satildeo sem a conjunccedilatildeo e nas obras

filosoacuteficas e discursos quinze exemplares satildeo sem a conjunccedilatildeo e

nenhum com ela Do ponto de vista da linguiacutestica funcional a

ausecircncia da conjunccedilatildeo eacute a forma natildeo marcada e portanto natildeo

enfaacutetica O leitor assim pode ser levado a caminhos diversos a

partir da disputa proacutepria do processo histoacuterico por criteacuterios de

validaccedilatildeo que vatildeo ou natildeo ser considerados em um comentaacuterio

[21]

O comentaacuterio e a recepccedilatildeo dos claacutessicos

Ao ler um texto antigo em grego ou latim o leitor atual tem ao seu dispor uma seacuterie de ferramentas

especialmente se considerarmos os textos mais buscados diversas traduccedilotildees (como as das seacuteries Loeb e

Belles Lettres) ediccedilotildees criacuteticas (como as da Teubner ou da seacuterie Oxford Classical Texts) ferramentas digitais

(como o site Perseus a ferramenta Dioacutegenes o Thesaurus Linguae Graecae o Thesaurus Linguae Latinae)

manuscritos digitalizados (como os da Bibliotheca Palatina) Tradicional e muito uacutetil ferramenta tambeacutem satildeo

os comentaacuterios obras que fazem glosas de um texto literaacuterio remontando a antiga tradiccedilatildeo (primeiros

seacuteculos aC) aleacutem de uma forma especial os escoacutelios que satildeo comentaacuterios exegeacuteticos escritos ao lado do

texto agraves margens dos manuscritos medievais e atestados desde o seacuteculo VI dC (CANCIK SCHNEIDER

2002- sv ldquoCommentaryrdquo e ldquoScholiardquo)

Gumbrecht (2003 p 41) nos oferece um resumo sobre o que motiva a necessidade de fazermos e lermos

comentaacuterios

o principal problema que ele ou ela [ie leitor inteacuterprete] enfrenta estaacute na assimetria entre a gama de conhecimentos gerais e especializados que o texto pressupotildee ndash como uma condiccedilatildeo para a identificaccedilatildeo de seu sentido (ldquopretendidordquo ldquooriginalrdquo ldquohistoacutericordquo ldquoadequadordquo ou ldquoautecircnticordquo) ndash e o conhecimento que o inteacuterprete tem a sua disposiccedilatildeo [] Tem sido sempre a tarefa do comentador e a funccedilatildeo do comentaacuterio superar tal assimetria e entatildeo mediar os diferentes contextos culturais (aquele que o autor do texto compartilhava com sua audiecircncia primaacuteria e aquele dos leitores que pertencem a tempos histoacutericos posteriores ou a diferentes culturas)1

Essas assimetrias podem ser de vaacuterias ordens dependendo do julgamento do comentador a respeito das

possiacuteveis necessidades de conhecimento suplementar que o leitor precisaraacute para ler e interpretar o texto

Nesse sentido veja o que diz Gumbrecht (2003 p 42) ldquoUm comentaacuterio em oposiccedilatildeo [agrave interpretaccedilatildeo]

parece ser um discurso que quase por definiccedilatildeo nunca atinge seu fim [] um comentador nunca tem certeza

das necessidades (ie as lacunas no conhecimento) daqueles que usaratildeo o comentaacuteriordquo2

Pode-se falar de contexto histoacuterico uacutetil para entendermos referecircncias a fatos e acontecimentos que

estavam ao dispor do interlocutor original do texto e que satildeo pressupostos biografia de personagens

(histoacutericos ou fictiacutecios) permitindo que noacutes entendamos melhor quem satildeo os sujeitos que produziram os

1 Todas as traduccedilotildees oferecidas nesse estudo satildeo da lavra do autor ldquoThe main problem he or she [ie reader interpreter] faces lies in an asymmetry between the range of general and specialized knowledge that the text presupposes ndash as a condition for the identification of its (ldquointendedrdquo ldquooriginalrdquo ldquohistoricalrdquo ldquoadequaterdquo or ldquoauthenticrdquo) meaning ndash and the knowledge that the interpreter has at his or her disposal [hellip] It has always been the task of the commentator and the function of the commentary to overcome such asymmetry and to thus mediate between different cultural contexts (between that which the textrsquos author shared with a primary readership and that of readers who belong to later historical times or to different cultures)rdquo 2 ldquoCommentary in contrast [to interpretation] appears to be a discourse that almost by definition never reaches its end [hellip] a commentator is never sure of the needs (ie the lacunae in the knowledge) of those who will use the commentaryrdquo

[22]

textos transmissatildeo do texto indicando quais foram os percalccedilos ao longo dos seacuteculos por que os

manuscritos passaram ateacute que chegassem a noacutes aleacutem de indicar quais partes satildeo mais bem atestadas pela

tradiccedilatildeo manuscrita e quais satildeo sujeitas agrave controveacutersia trechos intertextuais com suas fontes um recurso

muito utilizado e que enriquece o texto ao promover diaacutelogos gerando novas camadas de sentido que

escapam aos que ignoram esse recurso aleacutem de fatos linguiacutesticos que podem impedir o pleno entendimento

do texto considerando no caso dos estudos claacutessicos que se trata de liacutenguas antigas cujo estudo eacute demorado

e sempre lacunar por natildeo serem mais a liacutengua materna de ningueacutem

Uma consequecircncia disso tudo eacute que para a recepccedilatildeo de um texto antigo o comentaacuterio tem uma natureza

dupla Por um lado ele eacute um auxiliador da recepccedilatildeo do texto na medida em que incentiva e facilita sua leitura

por suprir elementos que poderiam impedir (agraves vezes completamente) a sua compreensatildeo ao mesmo tempo

em que pode oferecer elementos suplementares que potencializem leituras impensadas dado um repertoacuterio

sociocultural limitado do leitor fruto por vezes da proacutepria distacircncia soacutecio-histoacuterica entre leitor e texto Nesse

sentido o comentaacuterio permite que o conhecimento acumulado por geraccedilotildees de estudiosos seja replicado e

multiplicado Por outro lado o comentaacuterio eacute um mediador da recepccedilatildeo na medida em que direciona e

potencialmente exclui leituras natildeo abonadas pela tradiccedilatildeo Este aspecto limitador eacute amplificado se

considerarmos que muitos comentaacuterios se baseiam na opiniatildeo de outros comentadores e estudiosos de

modo que certas ideias sejam transmitidas antes pela autoridade do que pela (re)anaacutelise cuidadosa

Do ponto de vista dos estudos de recepccedilatildeo esse caraacuteter ambivalente do comentaacuterio eacute relativizado na

medida em que natildeo haacute uma leitura ldquocorretardquo e ldquopermanenterdquo do texto pois cada leitura se daacute em um novo

contexto e cada novo confronto entre texto e leitor eacute capaz de gerar sentidos natildeo previstos originalmente

Quando textos satildeo relidos em novas situaccedilotildees eles tecircm novos sentidos noacutes natildeo devemos privilegiar sentidos que eles tinham em seus contextos primeiros e lsquooriginaisrsquo (mesmo pressupondo que eles sejam em princiacutepio recuperaacuteveis) (MARTINDALE 2007 p 298)3

Natildeo haacute uma leitura permanentemente lsquocorretarsquo de um texto mas uma lsquofusatildeo de horizontesrsquo (na metaacutefora um tanto estranha de Gadamer) sempre em transformaccedilatildeo entre texto e inteacuterprete (MARTINDALE 2007 p 301)4

Nesse sentido o leitor imerso num contexto soacutecio-histoacuterico e com caracteriacutesticas individuais uacutenicas seria

um fator fundamental na recepccedilatildeo Ainda assim devemos considerar a seguinte advertecircncia

Mas a recepccedilatildeo natildeo alega que a consumidora tem sempre a razatildeo somente que ela eacute sempre parte da transaccedilatildeo Validaccedilatildeo permanece uma questatildeo para os estudiosos da recepccedilatildeo como para outros inteacuterpretes (de fato desde que criteacuterios de validaccedilatildeo satildeo historicamente

3 ldquoWhen texts are reread in new situations they have new meanings we do not have to privilege the meanings that they had in their first lsquooriginalrsquo contexts (even assuming these to be recoverable in principle)rdquo 4 ldquoThere is no permanently lsquocorrectrsquo reading of a text but an ever-changing lsquofusion of horizonsrsquo (in Gadamerrsquos somewhat awkward metaphor) between text and interpreterrdquo

[23]

situados e sempre em disputa eles podem ser eles mesmos vistos como parte crucial do processo de recepccedilatildeo) (MARTINDALE 2007 p 302)5

Eacute na busca por validaccedilatildeo que a natureza dupla dos comentaacuterios que comentaacutevamos acima atua O

conhecimento acumulado agraves vezes de muitos seacuteculos que eacute transmitido por comentaacuterios ao congregar

incontaacuteveis inteligecircncias de modo resumido eacute um uacutetil e eficaz instrumento de validaccedilatildeo de leituras

especialmente no que se refere agraves lacunas que todo leitor tem

Ainda assim gostaria de ressaltar que Martindale natildeo deixa de apontar que criteacuterios de validaccedilatildeo estatildeo

sempre em disputa No caso de conhecimentos linguiacutesticos de liacutenguas antigas ponto em que focaremos nas

proacuteximas seccedilotildees a questatildeo tem complexidades proacuteprias Por um lado a tradiccedilatildeo de leituras remonta agraves vezes

a testemunhos de pessoas que tinham o latim ou o grego como liacutengua materna e que por isso satildeo capazes de

nos oferecer impressotildees e ideias que nenhum leitor moderno que intente se aproximar do texto na liacutengua

original seria capaz de ter Por outro lado a linguiacutestica (ou a filologia) como uma ciecircncia com meacutetodo

descritivo mais do que normativo eacute recente (natildeo mais de dois seacuteculos) ou seja muitas novas descobertas

foram feitas recentemente por conta de novas abordagens a textos tradicionais Acresce que nos uacuteltimos

cem anos dezenas de teorias muitas vezes conflitantes acirram as disputas entre os criteacuterios de validaccedilatildeo agrave

disposiccedilatildeo dos leitores

Tendo esse panorama em vista nas proacuteximas seccedilotildees vou trazer um exemplo de comentaacuterio feito sobre um

fato linguiacutestico de um discurso de Ciacutecero evidenciando a disputa de descriccedilotildees de algumas gramaacuteticas sobre

o fato em questatildeo Em seguida apresento alguns dados sobre o fenocircmeno e os analiso a partir de um conceito

do funcionalismo corrente linguiacutestica que vem se desenvolvendo desde as uacuteltimas deacutecadas do seacuteculo XX

O caso de um comentaacuterio agraves Filiacutepicas de Ciacutecero

O trecho referente ao comentaacuterio que discutiremos estaacute em Cic Phil 113

sed hoc ignoscant di immortales uelim et populo Romano qui id non probat et huic ordini qui decreuit inuitus

Mas gostaria de que os deuses imortais perdoassem tanto o povo romano que natildeo aprova isso quanto esta ordem que aprovou o decreto contra sua vontade

Realccediladas estatildeo as palavras que mais nos interessam uelim primeira pessoa do singular subjuntivo presente

com valor potencial do verbo uolo ldquoquererrdquo sintaticamente verbo principal do periacuteodo e ignoscant terceira

5 ldquoBut reception does not claim that the customer is always right just that she is always a party to the transaction Validity remains an issue for reception scholars as for other interpreters (indeed since criteria of validity are historically situated and always in dispute they can themselves be seen as a crucial part of the processes of reception)rdquo

[24]

pessoa do plural subjuntivo presente do verbo ignosco ldquoperdoarrdquo verbo subordinado a uelim dentro de uma

oraccedilatildeo substantiva ou oraccedilatildeo completiva6

Dada a padronizaccedilatildeo e normatizaccedilatildeo por que passou a liacutengua latina entre o periacuteodo arcaico e o periacuteodo

claacutessico7 a regra padratildeo do latim claacutessico o que inclui a liacutengua de Ciacutecero seria a introduccedilatildeo de oraccedilotildees

substantivas com a conjunccedilatildeo ut (uelim ut di immortales ignoscant)8 A ausecircncia da conjunccedilatildeo frequente no

latim de Plauto e Terecircncio (seacutec III e II aC) ocorre nos autores claacutessicos mas em limitados contextos9

Vejamos o que o comentaacuterio de Ramsey sobre o trecho de Ciacutecero citado acima diz

15 ignoscant aqui tanto com o acusativo de coisa perdoada (hoc a medida sacriacutelega honrando Ceacutesar) quanto com o dativo dos ofensores (populo e ordini consistente com o familiar Senatus Populusque Romanus) O desejo se torna mais enfaacutetico pela omissatildeo de ut para unir o jussivo ignoscant ao subjuntivo potencial uelim (Gildersleeve amp Lodge sect546 R2) ldquoEu gostaria de que os deuses imortais perdoassemhelliprdquo (RAMSEY 2003 p 115 comentaacuterio ao sect 13)10

O autor atribui agrave presenccedila ou agrave ausecircncia da conjunccedilatildeo o sentido de ecircnfase e baseia essa afirmaccedilatildeo na

gramaacutetica de Gildersleeve amp Lodge Ao tratar de ldquoComplementary Final Sentencesrdquo (sentenccedilas completivas

finais) e especificamente de ldquoVerbs of Will and Desirerdquo (verbos de vontade e desejo) os autores da gramaacutetica

fazem a seguinte colocaccedilatildeo

Quando a ideia de querer eacute enfaacutetica o simples subjuntivo sem ut eacute empregado e a restriccedilatildeo de sequecircncia [de tempos] a presente e imperfeito eacute removida (GILDERSLEEVE LODGE 1903 sect 546)11

O problema aparece quando consultamos outras gramaacuteticas e a afirmaccedilatildeo sobre qual situaccedilatildeo eacute enfaacutetica se

inverte completamente A gramaacutetica de Bennett tem como foco o latim arcaico mas o comentaacuterio a seguir

sobre a presenccedila da conjunccedilatildeo em oraccedilotildees completivas eacute feito de forma ampla Vejamos

6 Sobre esse tipo de oraccedilatildeo veja por exemplo Cart et al (2007 p 130-135) Allen amp Greenough (1903 sect 560) e Hofmann amp Szantyr (1965 p 644-647) 7 Sobre o processo de normalizaccedilatildeo da liacutengua latina veja eg Clackson amp Horrocks (2011 p 90 ss) Para uma sugestatildeo de periodizaccedilatildeo da histoacuteria da liacutengua latina veja Weiss (2009 p 23) que chama o latim arcaico (seacuteculos III e II aC) de ldquoOld Latinrdquo 8 Veja por exemplo Hofmann amp Szantyr (1965 p 530) ldquoDie vollendete klassiche Diktion bevorzugt die vollstaumlndige Durchfuumlhrung der Hypotaxe mittels der Konjunktionenrdquo Em traduccedilatildeo minha ldquoA plena dicccedilatildeo claacutessica prefere a realizaccedilatildeo completa da hipotaxe por meio de conjunccedilotildeesrdquo 9 Dados podem ser encontrados em Durham (1901) e Bennett (1982 [1910-1914]) Um estudo pormenorizado sobre a presenccedila e ausecircncia da conjunccedilatildeo ut na complementaccedilatildeo dos verbos facio e uolo em Plauto Terecircncio e Ciacutecero incluindo os contextos que determinam seu uso e o desenvolvimento desse uso entre o latim preacute-histoacuterico e claacutessico pode ser encontrado em minha dissertaccedilatildeo de mestrado (MAZZANTI JR 2018) 10 ldquo15 ignoscant here with both the acc of the thing pardoned (hoc the sacrilegious measure honouring Caesar) and the dat of the offenders (populo and ordini standing for the familiar SPQR) The wish is made more emphatic by the omission of ut to link the jussive ignoscant to the potential subj uelim (GndashL sect546 R2) ldquoI should wish the immortal gods to pardonhelliprdquo 11 ldquoWhen the idea of Wishing is emphatic the simple Subjv without ut is employed and the restriction of sequence to Pr and Impf is removedrdquo

[25]

A diferenccedila original entre tibi impero hoc mihi des e tibi impero ut hoc mihi des mal poderia ser mais do que aquela entre lsquoEu ordeno me decirc issorsquo e lsquoEu ordeno soacute me decirc issorsquo Provavelmente mesmo essa distinccedilatildeo logo se perdeu e as duas formas de expressatildeo passaram a serem sentidas praticamente equivalentes em forccedila (BENNETT 1982 [1910-1914] p 210)12

Em outras palavras Bennett por entender que antes de se tornar conjunccedilatildeo ut era um adveacuterbio afirma que

eacute justamente a presenccedila desse adveacuterbio que gerava ecircnfase e natildeo sua ausecircncia como vimos em Gildersleeve

amp Lodge Bennett ainda compreende que em algum momento posterior nenhuma diferenccedila haveria ou

seja com ou sem conjunccedilatildeo natildeo haveria diferenccedila de ecircnfase

Haacute portanto uma contradiccedilatildeo entre as afirmaccedilotildees das gramaacuteticas Para o leitor que recepciona textos em

latim e que se vale da mediaccedilatildeo de comentaacuterios e gramaacuteticas haacute justamente aquele tipo de disputa entre

criteacuterios de validaccedilatildeo mencionado por Martindale dependendo de qual autor se vale esse leitor eacute

direcionado a entendimentos opostos e diante de ambos a perplexidade seria natural

O que os dados mostram

A abordagem que apresentarei em seguida parte de alguns princiacutepios Em primeiro lugar a ideia de que

podemos recolher dados sobre um certo fenocircmeno quantificaacute-lo e analisando o comportamento dessa

quantificaccedilatildeo extrair alguns princiacutepios sobre o funcionamento da liacutengua

Evidentemente esse tipo de abordagem tem pontos negativos ao resumir fenocircmenos que satildeo uacutenicos em

cada realizaccedilatildeo perdemos justamente as peculiaridades de cada uso individual e todas as nuances

potenciais Dito de outro modo os dados aqui satildeo palavras usadas por um certo falante que tem

caracteriacutesticas soacutecio-histoacutericas estaacute escrevendo em um certo gecircnero para um interlocutor especiacutefico

Simplificados numa quantificaccedilatildeo os dados perdem essa complexidade Por conseguinte datildeo certos tipos de

informaccedilatildeo mas natildeo outros (veja mais agrave frente um exemplo de anaacutelise mais detalhada cujas informaccedilotildees

satildeo perdidas parcialmente no processo de quantificaccedilatildeo)

Por outro lado ao recolhermos uma quantidade grande de dados conseguimos ter uma visatildeo geral sobre a

informaccedilatildeo que estamos estudando ou seja temos acesso a de que modo tal fenocircmeno linguiacutestico foi mais

usado de que modo foi usado ldquona meacutediardquo qual era a regra geral de uso independente dos ambientes uacutenicos

e particulares em que de fato foi utilizado nos textos remanescentes Para se chegar a esse tipo de

informaccedilatildeo a anaacutelise de cada exemplar eacute necessaacuteria e pressuposta mas o que nos interessa eacute o que de

comum esses exemplares tecircm posto um elemento de anaacutelise especiacutefico como no caso a presenccedila ou

ausecircncia da conjunccedilatildeo ut A quantificaccedilatildeo portanto nos mostra quais satildeo as tendecircncias globais de uso de

12 ldquoThe original difference between tibi impero hoc mihi des and tibi impero ut hoc mihi des could hardly have been more than that between lsquoI command you give me thisrsquo and lsquoI command you just give me thisrsquo Probably even this distinction soon passed away and the two forms of expression came to be felt as practically equivalent in forcerdquo

[26]

certa construccedilatildeo por um autor ou num determinado gecircnero algo inacessiacutevel se nos valemos somente da

anaacutelise particular de exemplares

Ter em mente essas questotildees metodoloacutegicas eacute fundamental para sabermos o que os dados tais como foram

recolhidos e tais como satildeo apresentados de fato podem nos informar e o que eacute calado

Posto isso apresento dados recolhidos por Patzner (1910) nas cartas de Ciacutecero que indicam os usos do

verbo uolo completado por subjuntivo introduzido ou natildeo pela conjunccedilatildeo ut A elaboraccedilatildeo das tabelas a

seguir eacute minha e a apresentaccedilatildeo dos dados como distribuiccedilatildeo (porcentagens em que certo fenocircmeno ocorre)

natildeo estatildeo nas obras de onde os extraiacute As colunas indicam as formas do verbo principal (uolo uelim ou uellem)

mais usadas e as contagens as ocorrecircncias da complementaccedilatildeo de subjuntivo Vejamos a Tabela 1

Tabela 1 - Formas de uolo seguido de subjuntivo mais usadas nas cartas de Ciacutecero

uolo uelim uellem Total

Com justaposiccedilatildeo 7 10000 358 9781 31 9394 396 9754

Com ut 0 000 8 219 2 606 10 246

Total 7 10000 366 10000 33 10000 406 10000

Fonte Patzner (1910)

O verbo uolo nas cartas de Ciacutecero quando complementado por subjuntivo eacute quase em cem por cento dos

casos justaposto ao verbo subordinado sem mediaccedilatildeo da conjunccedilatildeo tal como no trecho Cic Phil 113

comentado por Ramsey que vimos acima Em outras palavras a ausecircncia da conjunccedilatildeo nesse tipo de

complementaccedilatildeo parece ser a regra Chama a atenccedilatildeo a quantidade destoante de usos de uelim (366

ocorrecircncias) em oposiccedilatildeo a uolo e uellem (7 e 33 ocorrecircncias respectivamente) Agrave frente veremos o que isso

significa para a forma uelim especificamente

Vejamos que essa tabela natildeo daacute conta de toda a realidade ora seria difiacutecil de se imaginar que em todas as

cartas de Ciacutecero (e satildeo muitas) a forma uolo fosse usada tatildeo pouco Vejamos a Tabela 2

Tabela 2 - Formas de uolo seguido de subjuntivo ou de infinitivo mais usadas nas cartas de Ciacutecero

uolo uelim uellem Total

Com justaposiccedilatildeo 7 886 358 8230 31 5254 396 6911

Com ut 0 000 8 184 2 339 10 175

Infinitivo 72 9114 69 1586 26 4407 167 2914

Total 79 10000 435 10000 59 10000 573 10000

Fonte Patzner (1910)

[27]

Aleacutem da complementaccedilatildeo com subjuntivo a tabela 2 traz a complementaccedilatildeo de infinitivo tambeacutem possiacutevel

Vemos que a forma uolo em geral prefere a complementaccedilatildeo de infinitivo (91 dos casos) e a forma uellem

se divide entre ambas as complementaccedilotildees (53 com subjuntivo justaposto 3 com ut mais subjuntivo e

44 com infinitivo) Em seu turno a forma uelim ainda apresenta uma quantidade muito elevada de

subjuntivos complementando-a 82 justapostos e 2 com ut enquanto somente 16 satildeo complementados

por infinitivos

A conclusatildeo a que podemos chegar eacute a seguinte o verbo uolo pode ser complementado tanto por infinitivo

quanto por subjuntivo e durante seacuteculos houve uma competiccedilatildeo entre essas possibilidades enquanto a

forma uolo passou a ser complementada principalmente por infinitivos a forma uelim ldquose especializourdquo na

complementaccedilatildeo de subjuntivo

Vejamos agora os dados das outras obras de Ciacutecero nomeadamente seus discursos e textos filosoacuteficos Os

dados foram recolhidos dos lexica de Merguet (1877-1884 1887-1894) e estatildeo compilados na Tabela 3

Tabela 3 - Verbo uolo + subjuntivo nas obras filosoacuteficas e nos discursos de Ciacutecero

Outras obras de Ciacutecero

Com justaposiccedilatildeo 39 6964

Com ut 17 3036

Total 56 10000

Fonte Elaborado pelo autor a partir de Merguet (1877-1884 1887-1894)

Agrave primeira vista podemos imaginar que em seus outros textos Ciacutecero utilizou outra regra para decidir se

introduzia ou natildeo o subjuntivo subordinado com a conjunccedilatildeo ut A anaacutelise dos exemplares nos indica que natildeo

eacute o caso Dentre os exemplares justapostos temos como verbo principal uellem (20) uelim (15) uisne (3) e

uolo (1) Dentre os exemplares com ut temos uolo (5) uelitis (3) uelle (3) uellem (2) uolumus (2) uoluit (1) e

uult (1) Em outras palavras temos distribuiccedilotildees muito proacuteximas das das cartas Para nossos interesses basta

notarmos que a forma uelim soacute eacute seguida por subjuntivos justapostos

Voltando ao ponto principal que estamos discutindo a partir desses dados eacute possiacutevel saber se a presenccedila ou

ausecircncia de ut indica ecircnfase

Em primeiro lugar vejamos que ecircnfase eacute um termo geneacuterico que indica o realce de importacircncia de algo o

destaque de algo Utilizamos recursos de ecircnfase quando queremos ldquochamar a atenccedilatildeordquo para o que julgamos

precisar de atenccedilatildeo especial do interlocutor

[28]

Para tentar responder agrave questatildeo vou utilizar um conceito da linguiacutestica funcional desenvolvida

principalmente pelo linguista Dik Trata-se do conceito de marcaccedilatildeo (markedness em inglecircs) Vejamos

Um tipo de construccedilatildeo eacute mais marcado na medida em que eacute menos esperado e portanto exige mais atenccedilatildeo quando ocorre Em geral quanto menos frequente mais raro um item linguiacutestico eacute tanto maior eacute seu valor de marcaccedilatildeo (DIK 1997 p 41)13

Em outras palavras uma forma marcada eacute uma forma raramente usada que quando empregada chama a

atenccedilatildeo do interlocutor por romper suas expectativas Assim podemos entender que quando queremos dar

ecircnfase a algo geralmente utilizamos uma forma que seja marcada Por exemplo na fala podemos pronunciar

uma palavra mais lentamente ou com mais vigor de modo que ao quebrar a expectativa do que seria a

pronuacutencia meacutedia (aquela que ocorre na maior parte do tempo) esses modos de falar sejam marcados e

conferimos ecircnfase ou outro efeito similar (devemos ter em mente que uma forma marcada natildeo

necessariamente expressa ecircnfase) O mesmo ocorre quando usamos uma palavra em desuso arcaica ou um

termo teacutecnico em meio a um discurso natildeo teacutecnico

Se aplicarmos esse conceito aos dados das tabelas acima temos que o subjuntivo sem a mediaccedilatildeo da

conjunccedilatildeo (justaposto) configura 98 da complementaccedilatildeo de subjuntivo de uelim nas cartas de Ciacutecero e

100 em seus outros textos trata-se assim do uso natildeo marcado do uso que natildeo quebra a expectativa do

interlocutor e que portanto natildeo pode segundo essa abordagem linguiacutestica conferir ecircnfase

Seria no miacutenimo estranho que nas 358 vezes em que uelim + subjuntivo aparece nas cartas Ciacutecero quisesse

ser enfaacutetico Se se quer ser enfaacutetico em quase 100 das vezes natildeo se gera o contraste exigido para que de

fato se o seja Segundo o conceito de marcaccedilatildeo eacute a presenccedila do ut introduzindo a complementaccedilatildeo de

subjuntivo de uelim que poderia eventualmente ser a construccedilatildeo enfaacutetica

Como indicado no iniacutecio desta seccedilatildeo anaacutelises quantitativas perdem uma grande quantidade de informaccedilotildees

Uma outra metodologia de anaacutelise demandaria a leitura e interpretaccedilatildeo de cada uma das ocorrecircncia de uelim

+ (ut) subjuntivo em Ciacutecero a fim de se verificar se havendo outros elementos de ecircnfase em cada um dos

exemplares poderiacuteamos conferir agrave presenccedila ou agrave ausecircncia da conjunccedilatildeo algum valor enfaacutetico como por

exemplo semacircntica enfaacutetica dos verbos e das palavras presenccedila de adveacuterbios de intensidade presenccedila de

construccedilotildees estruturadas como paralelismo dentre outras

Haacute o risco de que esse tipo de anaacutelise se torne muito subjetiva jaacute que eacute muito difiacutecil de aferir se uma partiacutecula

tatildeo diminuta como ut de fato teria algum valor aleacutem do gramatical de introduzir oraccedilotildees subordinadas Natildeo

havendo espaccedilo para uma anaacutelise desse tipo que seja completa me restrinjo a um exemplo Vejamos Cic Att

21

13 ldquoA construction type is more marked to the extent that it is less expectable and therefore commands more attention when it occurs In general the less frequent the more rare a linguistic item is the higher its markedness valuerdquo

[29]

et cum Graecos tum uero Latinos diligenter ut conserues uelim

E gostaria de que zelosamente vocecirc conservasse tanto os [livros] Gregos como com efeito os Latinos

Esse eacute um dos exemplares em que o subjuntivo (no caso conserues) eacute introduzido por ut Notemos que o

periacuteodo tem uma seacuterie de elementos estruturais que conferem algum tipo de ecircnfase haacute o par correlativo

cum tum (tanto quanto) os adveacuterbios uero (com efeito) e diligenter (zelosamente) Nesse caso o uso de ut

poderia ser um elemento adicional que considerados os outros elementos da frase poderia conferir ecircnfase

extra

Essas informaccedilotildees (outros elementos da frase) acabaram perdidas quando o exemplar foi quantificado

conforme discutimos no comeccedilo desta seccedilatildeo restando somente a informaccedilatildeo essencial ldquopresenccedila e ausecircncia

da conjunccedilatildeordquo Ainda assim esse tipo de anaacutelise tem um caraacuteter subjetivo elevado e creio seja muito difiacutecil

afirmar categoricamente que o ut em Cic Att 21 acima contribua ao efeito geral de ecircnfase que a frase tem

embora como disse haja elementos que indiquem uma acumulaccedilatildeo da qual o ut poderia ser parte

Revisitando o comentaacuterio e a recepccedilatildeo dos claacutessicos

Como vimos acima os comentaacuterios como importantes auxiliadores na recepccedilatildeo de textos tatildeo afastados na

histoacuteria e na liacutengua tecircm um caraacuteter ambivalente e natildeo estatildeo isentos das disputas por criteacuterios de validaccedilatildeo

que permeiam natildeo somente os estudos de recepccedilatildeo como a ciecircncia em geral Satildeo essas disputas inclusive

um dos elementos que justificam que novos comentaacuterios ainda hoje sejam editados natildeo obstante a

existecircncia de outros sobre um mesmo texto

No que se refere agrave presenccedila e agrave ausecircncia da conjunccedilatildeo ut na complementaccedilatildeo de subjuntivo da forma uelim

(primeira pessoa do singular do verbo uolo no presente do subjuntivo) a abordagem da linguiacutestica funcional

por meio do conceito de marcaccedilatildeo (markedness) apresentado em Dik (1997) adiciona novos elementos agrave

disputa

Antes de irmos aos dados discutimos numa das seccedilotildees acima as vantagens e desvantagens de se abordar

um fenocircmeno linguiacutestico a partir de uma quantificaccedilatildeo O principal benefiacutecio em se utilizar tal meacutetodo eacute que

podemos verificar tendecircncias gerais de uso de fenocircmenos sujeitos agrave variaccedilatildeo tais quais os fenocircmenos

sintaacuteticos

A partir da anaacutelise dos dados que noacutes temos sobre como uelim foi complementado nos textos de Ciacutecero (suas

cartas textos filosoacuteficos e discursos) que satildeo em grande quantidade e tecircm alta probabilidade de serem

representativos de sua liacutengua como um todo a justaposiccedilatildeo agrave forma uelim de um subjuntivo subordinado natildeo

pode ser enfaacutetica Isso ocorre pois a justaposiccedilatildeo eacute segundo o conceito de marcaccedilatildeo a forma natildeo marcada

ou seja a forma esperada e que natildeo demanda atenccedilatildeo especial do interlocutor jaacute que ocorre em quase 100

[30]

dos casos Na realidade a presenccedila da conjunccedilatildeo eacute que poderia o ser (embora natildeo necessariamente expresse

ecircnfase) pois uelim ut + subjuntivo por apresentar miacutenimas ocorrecircncias seria a forma marcada Sendo esse

raciociacutenio aceito o comentaacuterio de Ramsey (2003) precisaria de ser alterado ou pelo menos indicar que a

questatildeo natildeo eacute paciacutefica e demanda maiores estudos

Ao se fazer comentaacuterios como o de Ramsey ou outros tipos de estudo que precisam abordar fatos

linguiacutesticos do latim valemo-nos de gramaacuteticas tradicionais como a de Allen amp Greenough (1903)

Gildersleeve amp Lodge (1903) Bennett (1982 [1910-1914]) Todavia como discutimos no iniacutecio deste texto

ao citar Martindale (2007) os criteacuterios de validaccedilatildeo utilizados por estudiosos e leitores estatildeo sempre em

disputa e novos estudos com outras metodologias podem colocar nova luz quer sobre pontos antes

consensuais nas gramaacuteticas tradicionais do latim quer sobre pontos controversos

Os uacuteltimos anos tecircm sido muito proliacuteficos nesse tipo de pesquisa Exemplifico com o estudo pioneiro de

Adams (1984) que estuda a partir das comeacutedias de Plauto e Terecircncio como algumas expressotildees e palavras

do latim satildeo caracteriacutesticas ou de falantes femininos ou de falantes masculinos Risselada (1993) que estuda

o uso de diretivos (formas de dar ordem) em latim a partir da anaacutelise interacional (teoria relativamente

recente) Barrios-Lech (2016) que estuda algumas formas linguiacutesticas utilizadas na interaccedilatildeo em latim de

Melo (2007) que estuda as formas extra-paradigmaacuteticas do latim arcaico como faxo faxim duim Weiss

(2009) que apresenta o latim dentro do quadro indo-europeu do ponto de vista da linguiacutestica histoacuterica a

partir dos avanccedilos bibliograacuteficos do uacuteltimo seacuteculo e um ganho importantiacutessimo para a bibliografia de

referecircncia a nova sintaxe de Pinkster (2015) a qual tambeacutem congrega estudos do uacuteltimo seacuteculo sobre a

sintaxe da liacutengua latina em variada abordagem

Enfim os recursos disponiacuteveis hoje em dia sejam eles digitais ou impressos satildeo incontaacuteveis Resta que o

leitor por sua vez vetor da recepccedilatildeo de um texto dispondo de sua proacutepria razatildeo possa ser levado a caminhos

diversos diante da pluralidade de criteacuterios de validaccedilatildeo que vatildeo ou natildeo ser considerados em uma disputa

proacutepria do processo histoacuterico

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latim arcaico 2018 Dissertaccedilatildeo (Mestrado em

Letras Claacutessicas) ndash Faculdade de Filosofia Letras e

Ciecircncias Humanas Universidade de Satildeo Paulo

Satildeo Paulo 2018

MERGUET H Lexikon zu den Reden des Cicero Mit

Angabe saumlmmtlicher Stellen Jena Verlag von

Hermann Duffet amp Verlag von Gustav Fischer

1877-1884

MERGUET H Lexikon zu den philosophischen

Schriften Cicerorsquos Mit Angabe saumlmmtlicher Stellen

Jena Verlag von Gustav Fischer 1887-1894

PATZNER F De parataxis usu in Ciceronis epistulis

praecipuo Vindobonae et Lipsiae F Deuticke

1910 (Dissertationes philologae vindobonenses

volumen nonum)

PINKSTER H Oxford Latin syntax Volume 1 the

simple clause Oxford Oxford University 2015

RAMSEY J T (ed) Cicero Philippics I-II

Cambridge Cambridge University 2003

RISSELADA R Imperatives and others directives

expressions in Latin a study in the pragmatics of a

dead language Amsterdam Gieben 1993

WEISS M Outline of the Historical and Comparative

Grammar of Latin Ann Arbor New York Beech

Stave 2009

O claacutessico

no claacutessico recepccedilatildeo e intertexto entre Heroides e Metamorfoses de Oviacutedio

Fabrizia Nicoli Dias

fnicolidiasgmailcom

As narrativas mitoloacutegicas da tradiccedilatildeo claacutessica foram

frequentemente exploradas por poetas ao longo dos seacuteculos em

suas composiccedilotildees Puacuteblio Oviacutedio Nasatildeo escritor romano antigo

que viveu no principado augustano pode ser enquadrado no rol de

autores que se empenharam em verter em um trabalho de arte

literaacuteria o material mitoloacutegico existente Para aleacutem de se apropriar

dos manuais mitoloacutegicos Oviacutedio para a construccedilatildeo de seu proacuteprio

material opera com modelos literaacuterios o que torna viaacutevel o estudo

do intertexto via recepccedilatildeo de episoacutedios mitoloacutegicos entre duas

obras ovidianas as Heroides e as Metamorfoses que empregam de

maneira evidente o material mitoloacutegico antigo Antes poreacutem de o

efetivar importa resgatar brevemente algumas discussotildees sobre

as noccedilotildees dos estudos de recepccedilatildeo recepccedilatildeo dos claacutessicos e

estudos de intertextualidade

Os estudos de recepccedilatildeo serviram-se das teorias alematildes em esteacutetica

da recepccedilatildeo da deacutecada de 1960 que sendo decorrentes em

especial dos estudos de Hans Robert Jauss Wolfgang Iser e

posteriormente de Hans-Georg Gadamer dedicam-se ao

protagonismo do leitor na atribuiccedilatildeo de sentido de maneira a

receber cada leitor um texto de modo particular a depender de sua

educaccedilatildeo suas experiecircncias e seus anseios pessoais

(BAKOGIANNI 2016 p 115) Esse lugar de relevo concedido ao

leitor no processo de apreciaccedilatildeo de um texto pode ser verificado no

[33]

duplo horizonte proposto por Jauss (2002 p 73) para quem eacute necessaacuterio distinguir e ao mesmo tempo

vincular os dois lados da relaccedilatildeo texto-leitor isto eacute entre o efeito proporcionado pelo texto e a recepccedilatildeo

facultada pelo destinataacuterio a fim de que se materialize o duplo horizonte que compreende aquilo que eacute

interno ao acircmbito literaacuterio envolvido pela obra e a vivecircncia de mundo oferecida pelo leitor pertencente a

determinado contexto social Pelas teorias em esteacutetica da recepccedilatildeo o leitor foi natildeo somente incluiacutedo na

atribuiccedilatildeo do sentido textual mas ainda considerado participante ativo e indispensaacutevel desse processo

A atividade e indispensabilidade concedidas ao leitor pela teoria alematilde eacute entatildeo aproveitada pelos estudos

claacutessicos que nelas encontram respaldo para a consideraccedilatildeo do conceito de claacutessico A obra Redeeming the

text de Charles Martindale publicada em 1993 eacute considerada por muitos o trabalho inaugural de reflexatildeo

dos estudos claacutessicos vinculada aos estudos de recepccedilatildeo O autor no capiacutetulo introdutoacuterio do livro esclarece

o ponto teoacuterico comum agraves vaacuterias versotildees da teoria da recepccedilatildeo o de natildeo pode ser a interpretaccedilatildeo de um

texto dissociada das maneiras que os textos satildeo recebidos pelos leitores afirmando posteriormente o que

tem sido um mantra nas pesquisas que abordam a teoria ldquoO sentido [] sempre se realiza no ponto de

recepccedilatildeordquo (MARTINDALE 1993 p 2-3)1 Tambeacutem para Bakogianni (2016 p 115) a possibilidade de um

texto ser recebido e interpretado de novos modos a cada momento de leitura eacute de grande valor para o estudo

dos claacutessicos uma vez que a cultura material e os textos antigos tecircm sobrevivecircncia fragmentaacuteria sendo os

textos claacutessicos incompletos controversos resgatados de vaacuterias fontes e ressignificados por diferentes

geraccedilotildees de classicistas

A noccedilatildeo de recepccedilatildeo contudo natildeo soacute eacute oportuna ao estudo do claacutessico pela dificuldade do estabelecimento

do texto claacutessico uma vez que segundo Martindale (2006 p 4) ateacute o mesmo leitor romano diante de um

texto original como uma ode de Horaacutecio por exemplo poderia a ler de modo muito diferente em cenaacuterios

histoacutericos distintos na medida em que os textos possuem diferentes sentidos em diferentes contextos A

variabilidade de leituras existente mesmo na Antiguidade tambeacutem eacute reconhecida por Budelmann e Haubold

(2008 p 17) que entendem ser os trabalhos renascentistas e modernos com a Antiguidade orientados por

um longo tempo de outros trabalhos anteriores comeccedilando na proacutepria Antiguidade Se portanto ateacute mesmo

o leitor antigo que estaacute diante da obra antiga pode a examinar de variadas formas natildeo seria em vatildeo a busca

por uma leitura mais autorizada de determinado trabalho antigo Afinal como reflete Batstone (2006 p 14)

ecoando Martindale (1993) ldquoque sentido existe que ainda natildeo eacute um sentido recebidordquo2

Empenhar-se portanto em resgatar uma versatildeo mais fidedigna do texto antigo significa crer que ela tenha

de fato existido e que tenha sido um modelo autossuficiente e mais verdadeiro a partir do qual suas

apropriaccedilotildees passam fatalmente a ser julgadas como meras deturpaccedilotildees Por outro lado se entendemos que

1 ldquoMeaning [] is always realized at the point of receptionrdquo 2 ldquoWhat meaning is there that is not already a received meaningrdquo

[34]

ldquoos claacutessicos natildeo pertencem meramente ao passado mas ao presente e ao futurordquo como considera

Martindale (2006 p 8) passaremos com tranquilidade a deixar de conceber o texto antigo como material

mais autecircntico diante dos posteriores e reconheceremos entatildeo a legitimidade das recepccedilotildees que dele

realizam os diferentes leitores ao longo dos seacuteculos

Como se constatou pode-se considerar como ponto paciacutefico das vaacuterias teorias da recepccedilatildeo a compreensatildeo

de ser a leitura de um texto estritamente associada aos modos como ele eacute recebido pelos leitores No

entanto haacute inuacutemeras dissidecircncias entre os autores que justificam a existecircncia da pluralidade de teorias da

recepccedilatildeo comeccedilando inclusive pelo uso do proacuteprio termo ldquorecepccedilatildeordquo Determinados teoacutericos defendem

que a nomenclatura implica uma funccedilatildeo passiva relegada ao leitor optando entatildeo pelo termo ldquoapropriaccedilatildeordquo

(MARTINDALE 2007 p 300) Sob a oacutetica de Martindale (2007 p 300) devemos recordar que o termo

ldquorecepccedilatildeordquo foi empregado exatamente com o objetivo de destacar o aspecto dinacircmico e dialoacutegico da leitura

entendendo o autor ainda que a categoria ldquoapropriaccedilatildeordquo mdash realizar o proacuteprio mdash diminui a possibilidade de

diaacutelogo

Embora inexista um conceito consensual de ldquorecepccedilatildeordquo e por conseguinte de ldquorecepccedilatildeo dos claacutessicosrdquo

Hardwick e Stray (2008 p 1) arriscam-se na proposta de uma definiccedilatildeo ldquoPor lsquorecepccedilotildeesrsquo consideramos as

maneiras pelas quais o material grego e romano foi transmitido traduzido extraiacutedo interpretado reescrito

re-imaginado e representadordquo3 Os autores adotam o termo ldquorecepccedilatildeordquo fornecendo ainda agrave terminologia um

sentido que embora seja amplo mdash por abarcar a esfera da transmissatildeo agrave representaccedilatildeo passando por outras

como ateacute mesmo a imaginaccedilatildeo mdash eacute delimitado auxiliando-nos em um esclarecimento inicial acerca do

conceito Neste estudo munir-nos-emos assim do conceito aplicado por Hardwick e Stray (2008) agrave

nomenclatura ldquorecepccedilatildeordquo

O eco dos estudos de recepccedilatildeo nos estudos claacutessicos natildeo se restringe contudo agrave revisatildeo do conceito do

claacutessico estendendo-se tambeacutem agraves proacuteprias consequecircncias desencadeadas pelo novo vieacutes lanccedilado ao

material antigo Da compreensatildeo do texto claacutessico como material passiacutevel de releituras posteriores

legiacutetimas decorre um novo olhar para o conceito de tradiccedilatildeo De acordo com Martindale (2006 p 4) nesse

modelo de compreensatildeo do claacutessico dissolve-se a delimitada distinccedilatildeo entre a proacutepria Antiguidade e sua

recepccedilatildeo efetuada no decorrer do tempo Segundo Hardwick e Stray (2008 p 5) essa sensibilidade agrave

possibilidade de um viacutenculo mais estreito entre o antigo e o moderno proporcionou um enfoque tambeacutem no

diaacutelogo entre a tradiccedilatildeo e a recepccedilatildeo Se a noccedilatildeo de tradiccedilatildeo enquanto algo natildeo simplesmente herdado mdash

mas sempre a se fazer e refazer mdash eacute acolhida a recepccedilatildeo e a tradiccedilatildeo podem ser concebidas como partes

associadas (HARDWICK STRAY 2008 p 5)

3 ldquoBy lsquoreceptionsrsquo we mean the ways in which Greek and Roman material has been transmitted translated excerpted interpreted rewritten re-imaged and representedrdquo

[35]

Se no entanto em termos conceituais haacute um certo consenso sobre a relativizaccedilatildeo ou dissoluccedilatildeo do

discernimento entre o mundo antigo e a maneira como eacute recebido posteriormente ao longo do tempo nos

estudos de recepccedilatildeo no niacutevel terminoloacutegico existem dissensos entre os usos das categorias ldquotradiccedilatildeordquo e

ldquorecepccedilatildeordquo Segundo Martindale (2007 p 298)

A etimologia da lsquotradiccedilatildeorsquo por exemplo do latim tradere sugere uma transmissatildeo mdash geralmente benigna mdash de material do passado para o presente A recepccedilatildeo pelo contraacuterio [] opera com uma temporalidade diferente envolvendo a participaccedilatildeo ativa de leitores (incluindo leitores que satildeo artistas criativos) em um processo de duas vias tanto para traacutes quanto para frente em que o presente e o passado estatildeo em diaacutelogo um com o outros4

Logo na visatildeo de Martindale (2007) a categoria ldquotradiccedilatildeordquo distintamente do termo ldquorecepccedilatildeordquo indica um

viacutenculo com o passado e como o autor acrescenta posteriormente o termo ldquolsquotradiccedilatildeorsquo [] pode implicar que

o processo de transmissatildeo eacute incontestavelmente confortaacutevelrdquo (MARTINDALE 2007 p 300)5 Eacute preciso

atentar que essa distinccedilatildeo entre os termos delimitada pelo autor natildeo indica contudo que o teoacuterico defenda

o conceito de tradiccedilatildeo como algo riacutegido ao qual se submete o presente estando o autor apenas a esclarecer

a conotaccedilatildeo passiva que a terminologia ldquotradiccedilatildeordquo transmite em sua perspectiva

Outros autores no entanto como Felix Budelmann e Johannes Haubold (2008 p 25) natildeo compartilham do

mesmo entendimento concebendo que ldquono estudo da recepccedilatildeo como em outros lsquotradiccedilatildeorsquo natildeo deve ser

invocada defendida ou atacada como uma ideia platocircnica mas deve ser vista como uma ferramenta flexiacutevel

para sugerir novas perspectivas de maneiras diferentes em diferentes ocasiotildeesrdquo6 Nesse caso eacute sugerido

pelos teoacutericos que o entendimento da tradiccedilatildeo como algo maleaacutevel deve ser indicado pelo proacuteprio uso da

categoria ldquotradiccedilatildeordquo de maneira a atualizar o sentido da terminologia

Essa dissoluccedilatildeo da legitimidade de uma leitura das obras claacutessicas restritiva exclusivamente ao passado

claacutessico eacute tambeacutem discutida nas reflexotildees suscitadas por estudiosos do fenocircmeno intertextual como

Barchiesi (2001 p 142) que considera ser uma ilusatildeo o entendimento de que determinados modelos podem

acima de tudo ser um modo de limitar e orientar o sentido de um texto concebendo o autor ainda que

delinear viacutenculos intertextuais torna a leitura mais rica e complexa Um oportuno esclarecimento sobre a

possibilidade de ressignificaccedilatildeo do modelo pode ser obtido se considerarmos que jaacute na Antiguidade o

diaacutelogo intertextual era realizado como procedimento de escrita no proacuteprio processo de imitatio Para aleacutem

do sentido de imitatio enquanto imitaccedilatildeo direta da natureza para o tratamento de um novo tema antes natildeo

abordado Horaacutecio (Ars P 119-135) ao afirmar que o escritor deve seguir a tradiccedilatildeo apresenta tambeacutem o

4 ldquoThe etymology of lsquolsquotraditionrsquorsquo for example from the Latin tradere suggests a ndash usually benign ndash handing down of material from the past to the present lsquolsquoReceptionrsquorsquo by contrast [] operates with a different temporality involving the active participation of readers (including readers who are themselves creative artists) in a two-way process backward as well as forward in which the present and past are in dialogue with each otherrdquo 5 ldquorsquotraditionrsquo [] might imply that the process of transmission is comfortably uncontestedrdquo 6 ldquoin the study of reception as indeed elsewhere lsquotraditionrsquo should not be invoked defended or attacked as a Platonic idea but should be seen as a pliable tool for suggesting new perspectives in different ways on different occasionsrdquo

[36]

sentido de imitatio enquanto imitaccedilatildeo da natureza via textos anteriores modelos jaacute existentes na tradiccedilatildeo Eacute

preciso atentar para a recomendaccedilatildeo horaciana de que caso se opte por reportar aos textos da tradiccedilatildeo

deve-se ser coerente com os traccedilos das personagens tais como jaacute foram constituiacutedos na tradiccedilatildeo e ao mesmo

tempo no entanto evitar tanto as trajetoacuterias comuns adotadas por outros escritores quanto a imitaccedilatildeo

passiva (Hor Ars P 119-135) Logo a referecircncia a um texto da tradiccedilatildeo mdash a imitatio para usar o termo latino

mdash eacute na perspectiva do poeta um dos tipos de estrateacutegia inerentes agrave criaccedilatildeo literaacuteria o que tambeacutem pode ser

verificado por Quintiliano (Inst 10 21-2 trad de Antocircnio Rezende)

Com efeito como o inventar acontece primeiro e eacute o mais importante assim eacute proveitoso secundar aquelas coisas que foram bem inventadas Aleacutem disso consta como de ordem natural da vida de cada um que queiramos fazer noacutes mesmos tudo aquilo que aprovamos nos outros Assim os meninos acompanham os sulcos das letras para que se adquira a habilidade do escrever de maneira semelhante os muacutesicos imitam a voz de seus docentes os pintores reproduzem as obras dos antecessores os camponeses tomam para exemplo o cultivo comprovado pela experiecircncia enfim constatamos que o comeccedilo de toda disciplina se forma segundo um modelo estabelecido anteriormente a si7

O retor tambeacutem situa a remissatildeo de uma obra a outra no momento de composiccedilatildeo estendendo a importacircncia

do procedimento para a vida em geral como na caligrafia na voz na arte plaacutestica e mesmo nos preceitos

agriacutecolas Essa remissatildeo a paradigmas literaacuterios jaacute presentes na tradiccedilatildeo tambeacutem eacute verificada sob a oacutetica

moderna do processo intertextual Segundo Barchiesi (2001 p 145) a alusatildeo opera mesmo quando se trata

de uma escolha entre possibilidades jaacute existentes na tradiccedilatildeo e natildeo apenas quando acresce um desvio A

relaccedilatildeo paralela entre o processo de imitaccedilatildeo latina com enfoque no momento de criaccedilatildeo e o fenocircmeno

intertextual eacute tambeacutem identificada se considerarmos implicar toda alusatildeo quando reconhecida o olhar

sobre a produccedilatildeo do texto e a figura do autor uma vez que a intenccedilatildeo do autor eacute um dos aspectos dentre

outros ldquoem um jogo de forccedilas que tambeacutem inclui a recepccedilatildeo textualrdquo (BARCHIESI 2001 p 142)

Pelo viacutenculo paralelo constatado entre os testemunhos dos autores latinos mencionados e os entendimentos

modernos de Barchiesi (2001) podemos inferir portanto que na Antiguidade concebia-se o fenocircmeno que

atualmente denominamos intertextual como uma referecircncia de um escritor a outro sendo uma relaccedilatildeo

existente entre os autores no momento de criaccedilatildeo Tendo em vista que contudo haacute uma lacuna temporal

entre os teoacutericos antigos e os do seacuteculo XX a terminologia imitatio eacute atualmente substituiacuteda por outros

termos mais condizentes com outras categorias enfocadas na modernidade no estudo do fenocircmeno

intertextual como as de texto e de leitor (CESILA 2013 p 14)

7 ldquoNam ut invenire primum fuit estque praecipuum sic ea quae bene inventa sunt utile sequi Atque omnis vitae ratio sic constat ut quae probamus in aliis facere ipsi velimus Sic litterarum ductus ut scribendi fiat usus pueri sequuntur sic musici vocem docentium pictores opera priorum rustici probatam experiment culturam in exemplum intuentur omnis denique disciplinae initia ad propositum sibi praescriptum formari videmusrdquo

[37]

Logo o fenocircmeno de diaacutelogos entre um texto e outro embora natildeo entendido sob a denominaccedilatildeo

ldquointertextualidaderdquo era reconhecido jaacute na Antiguidade na medida em que um texto claacutessico podia ser

resgatado na composiccedilatildeo de outro texto tambeacutem claacutessico Puacuteblio Oviacutedio Nasatildeo aleacutem de empregar manuais

mitoloacutegicos na composiccedilatildeo de sua obra apropria-se de outras fontes literaacuterias existentes (KENNEY 2009 p

146) O escritor latino transforma em diversos de seus trabalhos como nas Heroides e nas Metamorfoses

obras aqui estudadas o material mitoloacutegico existente em um trabalho literaacuterio Ao considerar o manuseio

ovidiano das narrativas mitoloacutegicas Graf (2006 p 110) entende que o poeta concebe os mitos enquanto

textos poeacuteticos escritos por poetas especiacuteficos ou ateacute mesmo desconhecidos da tradiccedilatildeo

Do comentaacuterio do teoacuterico podemos inferir que o trabalho operado por Oviacutedio com a tradiccedilatildeo mitoloacutegica em

suas obras pressupotildee uma referecircncia a textos anteriores A textualidade do conteuacutedo mitoloacutegico eacute tambeacutem

confirmada por Volk (2010 p 51) para quem as passagens mitoloacutegicas satildeo caracteriacutesticas e altamente

intertextuais tendo em vista que respondem e recriam tratamentos anteriores da mesma histoacuteria Tambeacutem

para Graf (2006 p115) a tradiccedilatildeo narrativa miacutetica designa o processo intertextual no sentido de que um

texto posterior se apoia e reage a um anterior Uma vez que nas Heroides e nas Metamorfoses o material

mitoloacutegico eacute empregado de maneira evidente e ainda que ndash como entende Carvalho (2010 p 27) sob uma

perspectiva que considere a produccedilatildeo ovidiana em geral ndash Oviacutedio realiza uma constante releitura de seu

proacuteprio trabalho configura-se uma possibilidade de estudo examinar os intertextos existentes entre duas

obras ovidianas as Heroides e as Metamorfoses objetivo que se busca atingir ao longo deste texto

Diante dos tipos de viacutenculos intertextuais elencados e definidos por Vasconcellos (2001) em seu texto

ldquoFormas e processos alusivos na Eneidardquo constituinte da obra Efeitos intertextuais na Eneida de Virgiacutelio

observou-se que todas as alusotildees reconhecidas neste estudo satildeo autotextuais Segundo Vasconcellos (2001

p 148) a autotextualidade consiste na evocaccedilatildeo em uma determinada obra de passagens pertencentes a

outra obra de mesmo autor Uma vez que os diaacutelogos foram reconhecidos entre duas obras ovidianas pode-

se portanto consideraacute-los autotextuais

Antes contudo de se apresentar os diaacutelogos existentes julga-se necessaacuteria uma breve exposiccedilatildeo das obras

ovidianas Emprestando sua voz a heroiacutenas mitoloacutegicas que dirigem cartas aos seus respectivos amados

queixando-se de sua ausecircncia ou abandono Oviacutedio compotildee as Heroides vinte e uma epiacutestolas em que

personagens mitoloacutegicas femininas comportam-se como remetentes e as masculinas enquanto destinataacuterias

salvo trecircs cartas-resposta destas agravequelas como as missivas 6 18 e 20 de Paacuteris a Helena de Leandro a Hero

e de Acocircncio a Cidipe respectivamente Ao reivindicarem o retorno de seus estimados as remetentes

rememoram episoacutedios mitoloacutegicos de conhecimento comum dos leitores antigos que envolvem a partida de

seus amados

[38]

As Metamorfoses por sua vez constituem-se de poemas narrativos que contam episoacutedios de mudanccedilas de

forma da mitologia grega e romana Apesar de Oviacutedio questionar os limites do gecircnero eacutepico na obra ainda

podemos a ele vincular a produccedilatildeo eacutepica uma vez que ela conjuga o aspecto etioloacutegico pois a maior parte

das metamorfoses explica a origem de um fenocircmeno por meio de um mito caracteriacutestico da tradiccedilatildeo eacutepica

heleniacutestica com o caraacuteter mais histoacuterico proacuteprio da tradiccedilatildeo eacutepica romana (LEITE 2016 p 38)

Realizadas tais consideraccedilotildees passamos entatildeo a alguns dos diaacutelogos reconhecidos entre fragmentos das

Metamorfoses e das Heroides O trecho 13624-627 da primeira obra pode ser ecoado intertextualmente na

leitura do trecho 85-86 da missiva de Dido a Eneias

[] sacra et sacra altera patrem

fert umeris venerabile onus Cythereius heros 625

de tantis opibus praedam pius eligit illam

Ascaniumque suum []

[] Aos ombros o heroacutei da Citereacuteia

traz imagens sacras e outra coisa sacra o pai veneraacutevel carga

de tantas outras riquezas o pio heroacutei escolheu soacute tais despojos

e o seu amado Ascacircnio []

(Ov Met 13624-627)

Si quaeras ubi sit formosi mater Iuli 85

Occidit a duro sola relicta viro

Se queres saber onde estaacute a matildee do pequeno Iulo morreu

abandonada pelo cruel esposo

(Ov Her 785-86)

Ambas as passagens se vinculam cada qual agrave sua maneira ao momento em que Eneias parte de Troia em sua

missatildeo de formaccedilatildeo de uma nova cidade Em ambas menciona-se a imagem do filho do troiano sendo sob a

forma acusativa Ascanium no primeiro trecho e sob o termo no genitivo Iuli no segundo As proximidades

existentes entre os excertos funcionam como uma espeacutecie de sinal alusivo conduzindo-nos portanto a

comparaacute-los Se nas Metamorfoses Eneias eacute representado como homem pio por ter escolhido levar em sua

empreitada dentre todas as coisas os deuses penates seu pai Anquises e seu filho Iulo nas Heroides Dido

lembra que na partida o troiano abandona Creuacutesa a matildee de Iulo e sua entatildeo esposa Da leitura intertextual

surge portanto um efeito de contraste que sugere o questionamento da imagem benevolente e piedosa de

Eneias

Agrave representaccedilatildeo tradicional da personagem mitoloacutegica de Jasatildeo novas camadas de sentido podem ser

tambeacutem acrescidas via uma leitura intertextual ou de maneira mais especiacutefica autotextual entre os

seguintes trechos

si facere hoe aliamue potest praeponere nobis

occidat ingratus sed non is vultus in illo

non ea nobilitas animo est ea gratia formae

ut timeam fraudem meritique oblivia nostri 45

Se tiver a coragem de o fazer se preferir a mim a outra mulher

que morra o ingrato mdash Mas natildeo Ele tem uma tal expressatildeo

no rosto uma nobreza de alma uma figura tatildeo graciosa

que natildeo receio traiccedilatildeo ou o esquecimento dos meus serviccedilos

(Ov Met 742-45)

[39]

Est aliqua ingrato meritum exprobare voluptas

Hac fruar haec de te gaudia sola feram

Eacute como que um prazer recordar ao ingrato o benefiacutecio recebido

Deixa-me tecirc-lo soacute este terei de ti

(Ov Her 1221-22)

Eacute comum agraves duas passagens a menccedilatildeo agrave memoacuteria de Jasatildeo quanto aos auxiacutelios a ele concedidos por Medeia

Em termos lexicais observa-se um paralelismo entre ingratusmeriti nas Metamorfoses e ingratomeritum nas

Heroides Na primeira passagem cede-se voz agrave princesa da Coacutelquida que afastando a conjectura de ser

preterida por parte de Jasatildeo a outra mulher desconsidera a partir da apreciaccedilatildeo da imagem nobre e graciosa

do filho de Esatildeo o medo de uma possiacutevel deslealdade ou ingratidatildeo relativa ao amparo por ela prestado A

leitura da missiva em que Medeia agora como remetente aposta na notificaccedilatildeo agrave Jasatildeo da ajuda ofertada

como uacutenico meio de obter dele algum reconhecimento de seus esforccedilos coloca-nos diante de uma mudanccedila

da perspectiva acerca da figura de Jasatildeo na medida em que a proacutepria alteraccedilatildeo do ponto de vista da princesa

da Coacutelquida verificada entre um excerto e outro desmantela o caraacuteter heroico atribuiacutedo a Jasatildeo A partir da

leitura do trecho epistolar a imagem heroacuteica de Jasatildeo constituiacuteda por Medeia nas Metamorfoses eacute submetida

a uma reinterpretaccedilatildeo jaacute que na carta por traacutes do caraacuteter heroico do filho de Esatildeo satildeo evidenciados ao leitor

os esforccedilos efetuados pela princesa

A passagem 783-85 das Metamorfoses tambeacutem pode ser ressignificada pelo excerto 31-35 da mesma carta

das Heroides antes mencionada

ut vidit iuvenem specie praesentis inarsit

et casu solito formosior Aesone natus

illa luce fuit posses ignoscere amanti 85

mal viu o jovem se reacende agrave vista de sua linda presenccedila

E por acaso naquele dia o filho de Eacuteson estava mais belo

que de costume ateacute lhe perdoarias por estar apaixonada

(Ov Met 783-85)

Tunc ego te vidi tunc coepi scire quid esses

Illa fuit mentis prima ruina meae

Ut vidi ut perii Nec notis ignibus arsi

Ardet ut ad magnos pinea taeda deos

Et formosus eras et me mea fata trahebant 35

Entatildeo te vi Comecei a saber o que eras Esse foi o princiacutepio da

ruiacutena de minha vida Completei-te e sucumbi Inflamei-me com

estranha paixatildeo como ardem as lascas de pinho junto aos altares

dos deuses excelsos Tu eras belo e minha sina arrastava-me

(Ov Her 1231-35)

Na passagem das Metamorfoses eacute narrado o momento em que Medeia enquanto vai ao altar de Heacutecate

sentindo-se forte e praticamente isenta da paixatildeo volta a ser acometida pelo sentimento ao avistar Jasatildeo O

mesmo momento do mito eacute representado na deacutecima segunda epiacutestola das Heroides Ocupando a posiccedilatildeo de

remetente na carta a princesa da Coacutelquida narra a ocasiatildeo lembrando-se de como avistar Jasatildeo

desencadeou em si uma paixatildeo ardente e ao mesmo tempo o iniacutecio de sua decadecircncia Satildeo representadas

em ambas as passagens o cenaacuterio em que Medeia se apaixona por Jasatildeo por com ele se deparar a beleza de

Jasatildeo como elemento que a atrai e a paixatildeo como sentimento ardente Haacute ainda algumas proximidades

lexicais entre os excertos viditvidi inarsitarsit formosiorformosus nas Metamorfoses e Heroides

[40]

respectivamente Essas paridades existentes entre os trechos podem estimular o leitor a realizar no

momento de recepccedilatildeo uma leitura intertextual entre as produccedilotildees Observa-se que enquanto no primeiro

caso um narrador em um momento de onisciecircncia conta que Medeia afetada por Jasatildeo poderia lhe

perdoar no segundo texto a proacutepria Medeia assume a palavra e relata a ocasiatildeo em que vecirc Jasatildeo como

momento inicial de sua perdiccedilatildeo A identificaccedilatildeo do fenocircmeno alusivo suscita mais uma vez um efeito de

contraste na medida em que a partir da leitura da missiva a figura de Medeia presente no trecho das

Metamorfoses como mera mulher que age em funccedilatildeo de um homem sem ter consciecircncia de sua inclinaccedilatildeo e

das fatais consequecircncias de tal ato eacute ressignificada e relativizada

Os diaacutelogos alusivos reconhecidos podem confirmar o entendimento de alguns autores sobre o tratamento

caracteristicamente ovidiano dado agraves narrativas mitoloacutegicas nas obras literaacuterias que as abordam Volk

(2010 p 56) por exemplo evidencia a apreciaccedilatildeo ovidiana pelo fornecimento de uma nova versatildeo de mitos

antigos jaacute consagrados em textos literaacuterios da tradiccedilatildeo Ao considerar algumas das funccedilotildees assumidas pelas

narrativas mitoloacutegicas Graf (2006 p 112) entende que uma delas consiste em fornecer uma determinada

linguagem para falar das relaccedilotildees e experiecircncias humanas Tal entendimento eacute tambeacutem pontuado por

Barchiesi (2001 p 18) que dedicando-se agrave reflexatildeo de aspectos gerais da poeacutetica ovidiana considera a

alusatildeo organizada em retrospectiva o modo de operaccedilatildeo distintivo do intertexto de Oviacutedio afirmando o

autor que em certos casos a personagem lembra e retoma seu eu passado fazendo referecircncia a outro texto

como elemento de suas recordaccedilotildees subjetivas O papel do mito como um recurso discursivo sobre a emoccedilatildeo

e a experiecircncia tornou a narrativa mitoloacutegica ideal para viabilizar um paradigma de expressatildeo de novas

experiecircncias (GRAF 2006 p 112)

Da recepccedilatildeo dos trechos selecionados via leitura intertextual ou de modo especiacutefico autotextual entre as

Metamorfoses e as Heroides satildeo manifestados acreacutescimos de sentido agraves representaccedilotildees das personagens

mitoloacutegicas Nas epiacutestolas os mitos satildeo constituiacutedos de maneira a se introduzirem em um momento temporal

especiacutefico da narrativa mitoloacutegica tradicional que pode ser resgatada pelo leitor familiarizado com as

intertextualidades ovidianas (VOLK 2010 p 60) Ao dar as suas proacuteprias versotildees dos mitos tradicionais as

rementes incitam os leitores a se reportarem aos textos mitoloacutegicos da tradiccedilatildeo de modo a os impelir a uma

interpretaccedilatildeo das missivas que considere as relaccedilotildees alusivas que elas estabelecem com outras composiccedilotildees

mitoloacutegicas

Por munirem-se dos mitos como uma maneira de expressatildeo de suas subjetividades as heroiacutenas preenchem

as narrativas mitoloacutegicas realizadas nas Metamorfoses com detalhes pessoais As representaccedilotildees de Ulisses

de Eneias como pio e de Jasatildeo como heroico passam a ser ressignificadas pela identificaccedilatildeo das alusotildees

Pode-se considerar que as relaccedilotildees paralelas entre as duas composiccedilotildees aqui consideradas sejam

convergentes ou divergentes funcionam para o leitor como um letreiro luminoso que o impele a recuperar

em seu repertoacuterio outras versotildees dos mitos e comparaacute-las As respostas fornecidas pelas proacuteprias heroiacutenas

[41]

aos mitos da tradiccedilatildeo nas passagens selecionadas convidam o leitor a ressignificar as representaccedilotildees

constituiacutedas nas Metamorfoses de maneira a natildeo soacute desmanchar o estatuto heroacuteico de personagens centrais

da tradiccedilatildeo eacutepica como Eneias e Jasatildeo mas o deslocar para as personagens mitoloacutegicas femininas como Dido

e Medeia respectivamente

Referecircncias bibliograacuteficas

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VOLK K Ovid New York Blackwell 2010

O leitor e o gecircnero epistolar no livro 2 das Epiacutestolas Morais de Secircneca

Ana Azevedo Bezerra Felicio

missanagreenhotmailit

Isabella Tardin Cardoso

itardincardosogmailcom

O presente artigo foi realizado com apoio

da Coordenaccedilatildeo de Aperfeiccediloamento

de Pessoal de Niacutevel Superior (CAPES) ndash

Coacutedigo de Financiamento 001

O presente texto visa a apresentar uma das questotildees levantadas

em nossa pesquisa de mestrado sobre a imagem do leitor no livro 2

das Epiacutestolas Morais de Luacutecio Aneu Secircneca A investigaccedilatildeo como um

todo propotildee-se a estudar uma instacircncia especial de recepccedilatildeo da

obra a imagem de destinataacuterio presente nas cartas endereccediladas a

Luciacutelio Juacutenior bem como a concepccedilatildeo de leitor ideal e de leitura dali

inferiacutevel Trataremos nesta ocasiatildeo do modo como a recepccedilatildeo do

gecircnero epistolograacutefico influi na interpretaccedilatildeo da obra senequiana

e do papel que nela tem o leitor Na histoacuteria da leitura das cartas

vemos por exemplo que para dar autoridade ao gecircnero ensaiacutestico

em que sua obra se inseria Francis Bacon (1612) aproxima-a das

cartas a Luciacutelio e traccedila uma longa tradiccedilatildeo de traduccedilatildeo e leitura das

Epiacutestolas como ensaios (BOYD 1867) A importacircncia da forma

especificamente epistolar para os fins da obra senequiana vem

[44]

sendo modernamente reconhecida (ALTMAN 1982 BRAREN 1999 WILSON 2001 SCHAFER 2011)

nesta comunicaccedilatildeo pretendemos aprofundar a discussatildeo direcionando-a para a imagem do leitor no corpus

em apreccedilo e observando alguns aspectos da histoacuteria da recepccedilatildeo desse gecircnero textual

Introduccedilatildeo

No entanto para ser classificado como uma carta um texto talvez exija um destinataacuterio (ou destinataacuterios) especiacutefico(s) O lugar do leitor eacute colocado em primeiro plano mais insistentemente em uma carta do que em qualquer outro tipo de escrita (ALTMAN 1982 p 87-88)1

As Epiacutestolas Morais (Epistulae Morales) de Luacutecio Aneu Secircneca (4 aC ndash 65 dC) 2 foram escritas para um uacutenico

destinataacuterio nominal Luciacutelio Sabe-se que as Epiacutestolas tecircm uma longa histoacuteria de leitura e recepccedilatildeo No

presente artigo privilegiaremos a recepccedilatildeo de Secircneca por parte do humanista Michel de Montaigne (1533-

1592) e discutiremos brevemente alguns dos efeitos dessa recepccedilatildeo para a compreensatildeo da obra ateacute os dias

de hoje Mais especificamente discutiremos se eacute possiacutevel aproximar o gecircnero ensaiacutestico (do qual o autor eacute

grande expoente) do gecircnero das Epiacutestolas e para tanto analisaremos possiacuteveis diferenccedilas e semelhanccedilas

entre ambos

Secircneca ndash principalmente com suas Epiacutestolas Morais ndash eacute considerado a influecircncia mais importante na escrita

de Montaigne3 conforme analisam Carneiro e Maerki (2018 p 214) Num quadro mais amplo eacute notoacuterio que

autores antigos como Ciacutecero (106-43 aC) Tito Liacutevio (59 aC ndash 17 dC) bem como Plutarco (46-125 dC) e

Lucreacutecio (94-56 aC) eram vistos como modelos a serem imitados para a formaccedilatildeo escolaacutestica do intelectual

seiscentista (MOSS 1989) Nesse contexto de programa escolaacutestico de educaccedilatildeo que notoriamente previa

o estudo do latim claacutessico Montaigne era ldquomarcado por uma ironia afaacutevel profundamente ceacutetica em relaccedilatildeo

ao programa humanistardquo (BLOOM 2005 p 143) Curiosamente ele citava os autores antigos sem reportar

agraves fontes segundo notam Carneiro e Maerki (2018 p 215) e esse era um dos aspectos pelos quais ele se

diferenciava dos seus colegas humanistas O escritor e meacutedico suiacuteccedilo Jean Starobisnky (2011 [1985] p 13)

em seu discurso em ocasiatildeo do recebimento do Precircmio Europeu do Ensaio em 1984 destaca que em meio agrave

obra de Montaigne os Essais tecircm uma grande fortuna criacutetica na Franccedila do seacuteculo XVI tanto que segundo

analisa o estudioso foram logo traduzidos para o inglecircs (em 1603) e assim recebidos na Inglaterra

1 ldquoNevertheless to be classed as a letter a text does perhaps require a specific addressee (or addressees) The place of the reader is more insistently foregrounded in a letter than in any other kind of writing)rdquo Salvo indicaccedilatildeo diferente eacute nossa a traduccedilatildeo de todos os trechos aqui citados em latim ou em liacutenguas modernas 2 Cf Conte (1994 p 408-409) 3 Cf Carneiro Maerki (2018)

[45]

Semelhanccedilas e dessemelhanccedilas entre Ensaios e Epiacutestolas ou entre Montaigne e Secircneca

Tendo contextualizado um pouco a obra do humanista francecircs chamaremos agora a atenccedilatildeo para a maneira

como Secircneca escreve i e para seu estilo As 124 Epiacutestolas tratam de diversos temas que podem ser lidos

como gatilhos para a discussatildeo filosoacutefica que o autor instaura com seu leitor e interlocutor Luciacutelio Por

exemplo Secircneca inicia uma carta comentando sobre sua ida agrave casa de campo (Ep 12) para refletir sobre o

tema da velhice e o passar do tempo em outra carta descreve as festividades de dezembro (a saber as festas

Saturnaacutelias) para discursar sobre a pobreza (Ep 18) O filoacutesofo romano faz isso poreacutem sem que cada carta

se configure monotemaacutetica ou desconectada do conteuacutedo das cartas que a antecedem ou a seguem Essa

rede complexa de relaccedilotildees pode parecer agrave primeira vista assistemaacutetica4 uma vez que as experiecircncias do

cotidiano como as exemplificadas acima satildeo associadas a citaccedilotildees de autores de diversas escolas filosoacuteficas

bem como a citaccedilotildees poeacuteticas e a exempla histoacutericos (Ep 1110 Ep 1314 Ep 14 Ep 214) tudo isso visaria agrave

edificaccedilatildeo moral do seu disciacutepulo-leitor Luciacutelio (SCHAFER 2011 p 50)5 Outra caracteriacutestica marcante da

escrita do filoacutesofo romano eacute o estilo aforiacutestico-sentencioso6 A recepccedilatildeo das Epiacutestolas ao longo dos seacuteculos

tem mostrado com notaacutevel relevacircncia o aspecto acima citado pois houve diversas obras com maacuteximas

senequianas ou pseudo-senequianas7 Mutatis mutandis percebemos que tambeacutem nos dias de hoje sua

recepccedilatildeo fora da academia tambeacutem eacute marcada pela popularizaccedilatildeo de maacuteximas publicadas e compartilhadas

por diversos veiacuteculos de miacutedia social em paacuteginas que frequentemente tratam de assuntos como liccedilotildees de

vida ldquoautoajudardquo e cuidados da sauacutede e da mente

Ora o estilo senequiano parece ser imitado por Montaigne como afirmam Carneiro e Maerki (2018 p 218)

ldquoas referecircncias montaignianas muitas vezes satildeo construiacutedas atraveacutes de um complexo mosaico de citaccedilotildees

que aproxima os Ensaios em muitas passagens dos chamados lsquocentotildeesrsquordquo Mas por que comparar a escrita dos

dois autores Porque a recepccedilatildeo das Epiacutestolas morais a Luciacutelio eacute marcada no mundo angloacutefono por uma forte

influecircncia do gecircnero ensaio a ponto de serem lidas como se fossem um ensaio por todo o seacuteculo XX

(WILSON 2001 p 64) Francis Bacon (1561-1626) em sua publicaccedilatildeo dos Ensaios datada de 1612 mais

precisamente na dedicatoacuteria ao priacutencipe Henry escreve

Algumas breves notas escritas de forma mais significativa que curiosa que eu chamei ldquoEnsaiosrdquo A palavra eacute tardia mas a coisa eacute antiga pois se vocecirc bem notar as Epiacutestolas a

4 Cf De Pietro (2013) para uma anaacutelise mais aprofundada sobre ldquosistemardquo e ldquosistematismordquo no estoicismo antigo 5 Schafer (2011 p 50) conclui que visto o irrestrito comprometimento com a virtude e o aperfeiccediloamento moral do seu disciacutepulo-destinataacuterio Luciacutelio Secircneca faz um retrato da educaccedilatildeo marcadamente variado e pluraliacutestico Ainda comenta que a educaccedilatildeo eacute como um edifiacutecio para o qual tudo pode ser usado os estudos filosoacuteficos a histoacuteria a poesia e as coisas do dia a dia ateacute mesmo as mais banais 6 A esse estilo Boella (1983 p 17) chama de ldquoepigramaacutetico (epigrammatico)rdquo 7 Florilegium Morales Oxoniense (DELHAYE TALBOT 1955) Auctoritates Aristoteleis Senecae Boethiihellip (Philosophes Medievaux v 17 p 273-296) Opus Magnum (BACON BRIDGES 2010 1900 p 299-365)

[46]

Luciacutelio de Secircneca natildeo satildeo nada mais que Ensaios ou seja meditaccedilotildees variadas embora transmitidas na forma de epiacutestolas8

Temos entatildeo por todo o seacuteculo XX na academia uma reclassificaccedilatildeo das Epiacutestolas como sendo ldquoensaios

curtosrdquo (ROSE 1949 p 369) ou ldquoensaios moraisrdquo (QUINN 1979 p 213) ldquoensaios filosoacuteficosrdquo (DUFF 1964

p 184) ou ainda ldquoensaios sobre assuntos especiacuteficosrdquo (COLEMAN 1974 p 288) Wilson observa como no

mundo angloacutefono essa leitura foi aleacutem da academia e passou a ser reproduzida por escritores mais

populares Um exemplo eacute Williamson (1951 p 194) que em The Senecan Amble menciona a ldquopraacutetica de

Secircneca de escrever ensaios sob a forma de cartasrdquo como se o ldquoensaiordquo propriamente dito jaacute existisse como

gecircnero no I seacutec dC Tambeacutem na ediccedilatildeo Penguin (CAMPBELL 1969 p 194) das cartas senequianas se

assevera que ldquoas Epiacutestolas Morais satildeo ensaios mascaradosrdquo E por fim vemos que a difundida traduccedilatildeo em

inglecircs de Gummere (1996) (publicada pela Loeb desde 1917) traz verdadeiros tiacutetulos no iniacutecio de cada carta

sugerindo uma certa autonomia temaacutetica agrave maneira dos ensaios baconianos9 tambeacutem numa ediccedilatildeo italiana

de grande prestiacutegio traduzida por Giuseppe Monti (1974 2018) notamos que as cartas figuram com tiacutetulos

com efeito anaacutelogo10 O caraacuteter precursor da obra senequiana no gecircnero ldquoensaiordquo eacute aventada ateacute mesmo em

estudos modernos sobre ensaios brasileiros como no de Guerini (2000 p 11) ao dizer que o ensaio pode

ldquoser colocado entre os mais antigos pois as suas origens se encontram nos Diaacutelogos de Platatildeo nas Epiacutestolas

de Secircneca nas Meditaccedilotildees de Marco Aureacutelio nas Confissotildees de Santo Agostinho nos discursos fuacutenebres etcrdquo

Essa recepccedilatildeo eacute pois um dos motivos pelos quais parece interessante comparar e com maior atenccedilatildeo do

que seria possiacutevel no presente estudo a maneira de Secircneca escrever com a escrita montaigniana Poreacutem

parece-nos necessaacuterio tambeacutem observar mais de perto o que mais assemelharia o gecircnero epistolar ao ensaio

Para Starobinsky (2018 p 17) o ensaio tem sempre um ldquoar de comeccedilordquo ou seja eacute literalmente um coup drsquoessai

uma tentativa ldquoapenas uma aproximaccedilatildeo preliminarrdquo Desse ponto de vista efetivamente algumas das

cartas do ldquoestoico livrerdquo11 apenas pincelam os assuntos como vemos o modo como tema da amizade eacute tratado

na Ep 3 No entanto jaacute na Ep 6 e 9 e em seguida 109 o mesmo assunto seraacute aprofundado do ponto de vista

filosoacutefico trazendo questotildees claacutessicas sobre a amizade filosoacutefica como por exemplo a tensatildeo entre a

autossuficiecircncia do saacutebio e a necessidade de o saacutebio ter amigos

8 ldquoCertain brief notes set down rather significantly than curiously which I have called lsquoEssaysrsquo The word is late but the thing is ancient for Senecarsquos Epistles to Lucilius if you mark them well are but Essays that is dispersed meditations though conveyed in the form of epistlesrdquo Encontramos a ediccedilatildeo jaacute de domiacutenio puacuteblico de James R Boyd D D Lordrsquos Baconrsquos Essays with a sketch of his life and character reviews of his philosophical writings critical estimates of his essas analysis notes and queries for students and select portion of the lsquoannotationsrsquo of Archibishop Whately Ali o historiador Henry Hallam (JAMES BOYD 1867 p 52-53) traz a sua criacutetica dos ensaios e reporta essa citaccedilatildeo da ediccedilatildeo dos Essays publicada em 1612 9 A tiacutetulo de exemplo ldquoOn Brawn and Brainsrdquo Ep 15 ldquoOn Festivals and Fastingrdquo Ep 18 ldquoOn the Renown which my writings will bring yourdquo Ep 21 (GUMMERE 1965 p iii) 10 Por exemplo ldquoBisogna esercitare lo spirito piugrave che il corpordquo Ep 15 ldquoElogio della povertagraverdquo Ep 18 ldquoLa vera Gloriardquo Ep 21 (MONTI 2018 p 1082) 11 Usamos a expressatildeo de Carneiro e Maerki (2011 p 220)

[47]

Aleacutem desse ldquoar de comeccedilordquo parece-nos que ainda um outro aspecto talvez aproxime as duas modalidades de

escrita o desprestiacutegio que ambas recebem em sua histoacuteria Isso porque no seacutec XVII aparece pela primeira

vez a palavra ldquoensaiacutestardquo (ldquoessaystrdquo) em inglecircs e com matiz pejorativo12 O ceacutelebre escritor da Renascenccedila

inglesa Ben Jonson (1572-1637) escreve ldquoMeros ensaiacutestas um punhado de frases soltas e nada maisrdquo

(ldquoMere essayists a few loose sentences and thatrsquos allrdquo13) em 1845 o poeta francecircs Theacuteophile Gautier (1811-

1872)14 usa a palavra como sinocircnimo de ldquoautor de obras sem profundidaderdquo

Ora sabemos que as Epiacutestolas senequianas foram tambeacutem muito criticadas e de modo semelhante por

autores antigos Aleacutem da famosa passagem da Instituiccedilatildeo oratoacuteria (X 1125-131) de Quintiliano (35 dC ndash 95

dC) lemos no testemunho de Aulo Geacutelio (125 dC ndash 180 dC) que um seacuteculo depois da sua morte que

apesar de alguns admirarem o conhecimento ldquocientiacuteficordquo e seu ldquosaber teoacutericordquo (scientiam doctrinamque ei non

deesse dicunt NA 1221) Secircneca tinha uma fama negativa devido ao seu estilo pedestre e banal (oratio

uulgaria uideatur et protrita) de erudiccedilatildeo provinciana e plebeia (eruditio autem uernacula et plebeia) Wilson

natildeo cita a famosa passagem de Aulo Geacutelio mas lembramos que esse autor antigo em suma recomenda que

os jovens natildeo lessem Secircneca isso porque embora haja frases bem escritas na obra senequiana (ipse Seneca

bene dixerit 12213) natildeo conviria ao jovem aprender umas poucas coisas bem ditas no meio de tantas frases

ruins (multoque tanto magis si et plura sunt quae deteriora sunt NA 12214)

Segundo Wilson (2001 p 169) essa faacutecil associaccedilatildeo entre os Ensaios e as Epiacutestolas se deu tambeacutem pela falta

de uma teoria epistolar desenvolvida ausecircncia que se confirma mesmo em tempos modernos Wilson nota

tambeacutem que mais precisamente nos anos 90 do seacutec XX as pesquisas tenderam a abandonar essa

comparaccedilatildeo da obra senequiana com o gecircnero ldquoensaiordquo poreacutem tambeacutem assumiram tacitamente que natildeo era

importante considerar as Epiacutestolas em alguma categoria fundamental Para a discussatildeo da obra senequiana

tal postura resulta segundo o estudioso numa efetiva falta de discussatildeo criacutetica sobre vaacuterios aspectos ainda

atualmente15

No Brasil dentre as diversas caracteriacutesticas do gecircnero epistolar jaacute abordadas vale lembrar que Ingedore

Braren (1999 p 41-43) jaacute havia notado a importacircncia da forma (ie da escolha do gecircnero epistolar) para os

fins dessa obra filosoacutefica senequiana Jaacute Marcos Martinho Dos Santos (1999) explora a metalinguagem ie

12 Cf Starobinky (2011 p 15) Segundo o Oxford English Dictionary a palavra ldquoessayrdquo tem sua origem no seacutec XV como verbo e como substantivo no seacutec XVI 13 Cf ldquoEpicoene or The Silent Woman v 46-47rdquo (JONSON HOLDSWORTH 1979 p 42) 14 Eacute curiosa a perspectiva de Gautier contra os ldquoensaiacutestasrdquo ele que foi um dos primeiros articuladores do Esteticismo na Europa no seacutec XIX e que popularizou a expressatildeo ldquolrsquoart pour lrsquoartrdquo utilizada anteriormente por Benjamin Constant (1767-1830) Oxford Encyclopedia of British Literature v 5 p 14 15 Habinek (1992) e Yun Lee Too (1994) satildeo dois exemplos de estudiosos que propotildeem uma reclassificaccedilatildeo das Epiacutestolas poreacutem segundo Wilson (2011 p 169) a maneira como esses dois artigos reclassificam a obra senequiana faz com que alguns aspectos do texto sejam considerados falta de consistecircncia ou de sinceridade e ldquoa complexa relaccedilatildeo tripla entre Secircneca Luciacutelio e noacutes o puacuteblico leitor eacute simplificada e mal representadardquo (the complex three-way relations between Seneca Lucilius andu s the Reading public is simplified and misrepresented)

[48]

a tematizaccedilatildeo da arte dialoacutegica nas epiacutestolas como sendo uma tentativa de retomar o dialogismo presente

no estudo da filosofia desde Platatildeo Ambas as abordagens destacando aspectos tatildeo fundamentais da

epistolografia de nosso autor acabam por evidenciar ainda uma lacuna a nosso ver natildeo menos importante

a falta de atenccedilatildeo sistemaacutetica a um aspecto imprescindiacutevel ao gecircnero epistolar Trata-se de uma lacuna que

de certa forma jaacute foi mencionada por Berno (2006 p 15) ldquoas intervenccedilotildees atribuiacutedas a Luciacutelio ndash que por sua

vez estatildeo ainda agrave espera de um estudo analiacuteticordquo 16 Em que medida esse aspecto das epiacutestolas senequianas

destoa do gecircnero ensaiacutestico ou reforccedila a jaacute tradicional aproximaccedilatildeo com as cartas eacute um ponto de que

pretendemos tratar Antes disso observaremos de que modo o leitor se apresenta no texto em apreccedilo

Interlocuccedilatildeo nas Epiacutestolas

Para uma melhor compreensatildeo da importacircncia da forma epistolar para a leitura ou recepccedilatildeo da obra

senequiana traremos alguns exemplos ressaltando a construccedilatildeo do interlocutor das Epiacutestolas Estamos

interessados na presente anaacutelise natildeo na construccedilatildeo do Luciacutelio-personagem-histoacuterico mas de um Luciacutelio-

leitor cuja atenccedilatildeo pode levar agrave compreensatildeo das Epiacutestolas17 sob uma oacutetica diferente Ora natildeo raro Secircneca

se dirige a seu interlocutor em suas epiacutestolas ldquoTalvez vocecirc venha perguntar o que estou fazendo eu que lhe

dou tais prescriccedilotildees Vou falar com vocecirc francamente [hellip]rdquo18 ou tambeacutem lsquosoacute quersquo vocecirc diz lsquoora quero folhear

(euoluere) esse livro ora aquelersquordquo19

Vemos que em passos desse teor Secircneca muitas vezes infere ou sugere o que Luciacutelio perguntaria em

determinado ponto da argumentaccedilatildeo da carta Poreacutem em outras passagens (Ep 21-4) podemos ler palavras

que o proacuteprio Luciacutelio (a nos fiarmos em Secircneca) teria escrito em outra carta ao seu amigo filoacutesofo Muitas

vezes como lemos na quarta epiacutestola do primeiro livro as palavras de Luciacutelio satildeo natildeo apenas citadas mas

tambeacutem corrigidas e em seguida utilizadas para a introduccedilatildeo de algum ensinamento ou novo assunto na

carta

Epistulas ad me perferendas tradidisti ut scribis amico tuo deinde admones me ne omnia cum eo ad te pertinentia communicem quia non soleas ne ipse quidem id facere ita eadem epistula illum et dixisti amicum et negasti Itaque si proprio illo uerbo quasi publico usus es et sic illum amicum uocasti (Ep 41 grifos nossos)

Vocecirc entregou conforme me escreve a um amigo seu as cartas para serem trazidas a mim em seguida vocecirc me adverte a natildeo conversar com ele sobre nada a seu respeito porque nem vocecirc mesmo tem o costume de fazer tal coisa Assim numa mesma carta vocecirc tanto disse

16 ldquoGli interventi attribuiti a Lucilio ndash che peraltro attendono ancora uno studio analiticordquo Em nosso Mestrado procuramos tratar natildeo apenas da intervenccedilatildeo atribuiacuteda a Luciacutelio como tambeacutem mais amplamente da construccedilatildeo e efeito da imagem desse destinataacuterio 17 Salvo outra indicaccedilatildeo o texto latino das epiacutestolas senequianas eacute citado da ediccedilatildeo de Reynolds (1965) 18 Interrogabis fortasse quid ego faciam qui tibi ista praecipio Fatebor ingenue (Ep 14) 19 Sed modo inquis hunc librum euoluere uolo modo illumrsquo (Ep 24)

[49]

como negou que ele eacute seu amigo Logo vocecirc empregou essa palavra que eacute especiacutefica feito uma geneacuterica

Esse ldquobate-papordquo eacute feito de pergunta e resposta esses diaacutelogos satildeo ora interrompidos ora continuados

dentro das cartas e entre as cartas Trata-se de um aspecto constante nas Epiacutestolas que ao nosso ver eacute

exatamente favorecido pelo gecircnero em que se inserem e que embora adotaacutevel por outros gecircneros eacute tiacutepico

de uma epiacutestola ndash essa ldquoconversa entre amigos ausentesrdquo (amicorum conloquia absentium)20 Para darmos mais

um exemplo na Ep 44 eacute reportada uma frase atribuiacuteda a Luciacutelio e logo em seguida Secircneca responde agrave

maneira dialoacutegica ldquolsquoEacute difiacutecilrsquo vocecirc diz lsquoconduzir o espiacuterito ao desprezo pela vidarsquo Mas vocecirc natildeo vecirc por quais

motivos fuacuteteis ela jaacute eacute menosprezadardquo21

Um modelo de diaacutelogo contiacutenuo entre Epiacutestolas temos nas cartas 7 e 8 Ambas comeccedilam com uma citaccedilatildeo de

pergunta de Luciacutelio22 Mas na carta 8 ele questionaria precisamente o ensinamento enviado na anterior

Perceber essas nuances tambeacutem eacute possiacutevel em razatildeo de se ter uma seacuterie epistolar que hoje assume-se se

encontra em ordem cronoloacutegica Trata-se de uma ordenaccedilatildeo privilegiada segundo Gibson (2012 p 62) jaacute

que da Antiguidade claacutessica temos outras coleccedilotildees epistolares ordenadas por outros criteacuterios que natildeo o

cronoloacutegico23

Nas cartas senequianas Luciacutelio se mostra tambeacutem um leitor ativo ie natildeo passivo aos ensinamentos do

filoacutesofo estoico ldquolsquoEnviersquo vocecirc diz lsquotambeacutem para noacutes as ideias mais eficazes que vocecirc tiver experimentadorsquordquo24

Podemos pois da passagem senequiana em apreccedilo depreender a expectativa de um leitor ativo de um leitor

que jaacute chega a seu mestre com questionamentos e observaccedilotildees algueacutem intencionado a aprender Nesse

sentido segundo o trecho a seguir Secircneca sugere que Luciacutelio aprimora os aprendizados ao expressaacute-los

melhor

Hunc sensum a te dicis non pauco melius et adstrictius menini lsquonon es tuum fortuna quod fecit tuumrsquo (Ep 810 grifos nossos)

Lembro-me de que vocecirc mesmo expressa esta ideia de um modo que natildeo eacute pouco melhor e mais conciso ldquoNatildeo eacute teu o que a fortuna fez teurdquo

20 A definiccedilatildeo se encontra em Ciacutecero (Fil 274) 21 lsquoDifficile estrsquo inquis lsquoanimum perducere ad contemptionem animaersquo Non uides quam ex friuolis causis contemnatur (Ep 44) 22 ldquoVocecirc pergunta o que julgar que se deva evitar acima de tudo A multidatildeordquo (Quid tibi uitandum praecipue existimes quaeris Turbam Ep 71) ldquoVocecirc diz ldquoVocecirc me manda evitar a multidatildeo afastar-me e ficar contente em minha consciecircnciardquo (lsquoTu mersquo inquis lsquouitare turbam iubes secedere et conscientia esse contentum Ep 81) 23 Sobre a ordenaccedilatildeo das Epiacutestolas e tambeacutem de outras coleccedilotildees epistolares latinas na antiguidade cf Gibson (2012) O estudioso em seu artigo primoroso considera as coleccedilotildees de epiacutestolas de Ciacutecero Secircneca Pliacutenio o Jovem Frontatildeo Siacutemaco e Ambroacutesio Agostinho Jerocircnimo Paulino de Nola e de Sidocircnio Apolinaacuterio Em suma o autor chama a comunidade cientiacutefica para uma urgente ldquodesfamiliarizaccedilatildeo das coleccedilotildees epistolograacuteficas antigasrdquo Isso porque o leitor moderno frequentemente equipara as cartas antigas a uma biografia quase que a uma autobiografia Poreacutem com exceccedilatildeo de Ciacutecero e Secircneca nenhum dos demais autores acima citados tem suas coleccedilotildees ordenadas por criteacuterios cronoloacutegicos haacute outros como a organizaccedilatildeo por tema (Jerocircnimo eacute um exemplo) ou por destinataacuterio (Pliacutenio o Jovem) 24 lsquoMittersquo inquis lsquoet nobis ista quae tam efficacia expertus esrsquo (Ep 64)

[50]

Jaacute no segundo livro haacute algumas especificaccedilotildees sobre a maneira de escrever de Luciacutelio e sobre sua evoluccedilatildeo

e aprendizado como leitor de Secircneca ldquoVocecirc ndash e eu sei disso Luciacutelio vecirc claramente que ningueacutem pode ter uma

vida feliz e nem toleraacutevel sem o amor pela sabedoriardquo25 Ademais mais adiante na troca epistolar a carta 34

ndash que jaacute foi alvo de muitas discussotildees pela ceacutelebre frase ldquoOpus mihi esrdquo (ldquovocecirc [ie Luciacutelio] eacute minha obrardquo Ep

342)26 ndash tambeacutem conteacutem referecircncias agrave interlocuccedilatildeo entre os missivistas por meio da escrita e leitura das

cartas

Cresco et exulto et discussa senectute recalesco quotiens ex iis quae agis ac scribis intellego quantum te ipse ndash nam turbam olim reliqueras ndash superieceris (Ep 341)

Cresccedilo e exulto e tendo-me desprendido da velhice reanimo-me todas as vezes em que age como escreve entendo o quanto impeliu a si mesmo pois anteriormente vocecirc jaacute se havia retirado da multidatildeo

Segundo Wilson as Epiacutestolas Morais individualmente natildeo tecircm uma forma narrativa nem mesmo se lidas em

seacuterie como uma coleccedilatildeo Isso porque em seu entender natildeo tecircm narrador haacute poucas accedilotildees narradas e

muitas interrupccedilotildees da continuidade Poreacutem o estudioso ressalta

mas ler as cartas senequianas de uma certa forma eacute anaacutelogo ao que se experimenta ao ler um romance epistolar Elas contam uma histoacuteria de uma relaccedilatildeo crescente entre o escritor e o recipiente e da progressiva profundidade e a resoluccedilatildeo da filosofia de ambos (WILSON 2001 p 185)

Ora diz-se que nos Ensaios podemos perceber uma pintura de si (STAROBINSKY 2011 p 19) Se nos

servirmos da mesma imagem trata-se de mais uma aproximaccedilatildeo entre os gecircneros Isso porque nas Epiacutestolas

haacute efetivamente um retrato Contudo diferente do ensaio em geral retrata-se em geral a interlocuccedilatildeo entre

os missivistas esta natildeo eacute uniacutevoca e linear mas pode ser depreendida por meio de uma anaacutelise sistemaacutetica

das intervenccedilotildees atribuiacutedas a Luciacutelio ou mais em geral ao leitor

Conclusatildeo

Ao trazermos trechos de cartas do primeiro ateacute o quarto livro (Ep 34) estamos longe do fim do epistolaacuterio

pois a obra senequiana que chegou ateacute noacutes eacute composta por 124 epiacutestolas Poreacutem ao nos fiarmos na referida

carta 34 Luciacutelio jaacute progrediu o suficiente para ser admirado Monica Natali (2000 p 684-685) ao discorrer

sobre os destinataacuterios das Epiacutestolas Morais faz trecircs distinccedilotildees entre os possiacuteveis destinataacuterios das cartas

Luciacutelio os poacutesteros (Ep 82 e Ep 213-5) e por fim o proacuteprio Secircneca27 Haacute quem como faz Natali (2000) para

25 Liquere hoc tibi Lucili scio neminem posse beate uiuere ne tolerabiliter quidem sine sapientae studio (Ep 161) 26 A passagem jaacute foi discutida por Mazzoli (1989 p 1855) Rolim de Moura (2015 p 288) Edwards (1997 p 30) e Schafer (2011 p 45) 27 Eacute preciso ressaltar que a apreensatildeo de um efetivo diaacutelogo entre os missivistas natildeo eacute consensual Segundo Natali Luciacutelio torna-se um mero espectador de um soliloacutequio do filoacutesofo a Ep 5 seria um exemplo disso Essa visatildeo que nosso estudo natildeo corroborou ateacute o momento seraacute discutida no aprofundamento de nosso Mestrado

[51]

explicar o uacuteltimo ponto afirme que Luciacutelio se torna um mero espectador de um soliloacutequio do filoacutesofo Contra

essa abordagem pode-se natildeo apenas lembrar de passos como os que acima aventamos como tambeacutem

lembrar que por mais que muitas vezes Luciacutelio natildeo seja nem sequer mencionado no texto as proacuteprias cartas

natildeo existiriam sem sua imagem pois que precisamente natildeo seriam cartas

A afirmaccedilatildeo acima citada de Starobinsky (2011 p 19) sobre o ensaio ser uma ldquopintura de sirdquo lembra-nos de

uma imagem senequiana presente nas epiacutestolas 9 e 34 a de um artista elaborando sua obra Em nossa anaacutelise

percebemos de fato a elaboraccedilatildeo de um leitor que enquanto lecirc eacute representado citado interpelado e

elogiado trata-se de um leitor que pergunta critica argumenta Ora embora o aspecto inceptivo seja

efetivamente um importante aspecto comum ao gecircnero ensaiacutestico e ao gecircnero epistolar essa primeira

apreciaccedilatildeo das cartas nos indica que nelas tal aspecto eacute guiado por um processo muacuteltiplo de leitura que a

cada uma se re-instaura (FOWLER 1997 p 16) Luciacutelio eacute pois um leitor que estaacute sendo esculpido e pintado

a cada epiacutestola um leitor que pode ser silenciado ou ignorado em abordagens que natildeo levem em conta o

gecircnero epistolar com o qual afinal o autor escolheu escrever a uacuteltima obra que deixou agrave posteridade

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Diaacutelogos entre a gratiarum actio de Pliacutenio e o Panegiacuterico a Teodoacutesio de Pacato Drepacircnio

Kaacutetia Regina Giesen

katiagiesengmailcom

Este estudo propotildee examinar a recepccedilatildeo do texto da gratiarum actio

de Pliacutenio a Trajano no panegiacuterico a Teodoacutesio de Pacato Drepacircnio

com o objetivo de demonstrar como o diaacutelogo entre esses textos

participa do processo de constituiccedilatildeo de um gecircnero laudatoacuterio

proacuteprio do periacuteodo imperial o panegiacuterico latino Como primeiro

texto da coleccedilatildeo composta por outros onze panegiacutericos e o mais

antigo dentre eles o discurso de Pliacutenio eacute considerado modelar para

os demais e representa um novo tipo de oratoacuteria para Roma natildeo

apenas por seu contexto de realizaccedilatildeo na presenccedila do princeps

mas por seu caraacuteter simultaneamente elogioso e aconselhador

Com a metade da extensatildeo do texto pliniano o discurso de Pacato

apresenta uma estrutura argumentativa tanto na ordem e tipos

dos argumentos quanto nas figuras utilizadas quase

completamente anaacuteloga ao seu predecessor Se como afirma

Ciacutecero (Brut 163) a doutrina oratoacuteria pode ser extraiacuteda natildeo apenas

dos tratados mas tambeacutem dos discursos deixados por um orador a

imitaccedilatildeo estrutural temaacutetica e estiliacutestica feita por Pacato confirma

a praacutetica pliniana como principal registro de uma concepccedilatildeo latina

sobre o elogio agrave eacutepoca imperial que se consolida a partir do seacutec II

[54]

Afirmar a influecircncia do Panegiacuterico de Pliacutenio o Jovem a Trajano (100 dC)1 sobre algum dos discursos que

compotildeem o conjunto de panegiacutericos tardios conhecido como XII Panegyrici Latini (seacutec III-IV)2 natildeo eacute nem uma

novidade mdash uma vez que esse tem sido um tema debatido por estudiosos tanto da obra pliniana quanto dos

textos advindos da Antiguidade Tardia3 mdash nem uma tarefa simples dado que essa influecircncia natildeo eacute sempre

facilmente identificaacutevel4 Por outro lado as formas de interaccedilatildeo entre esses textos eacute muacuteltipla pois conforme

destacam Gibson e Rees (2013 p 154) ldquocomo modelo o Panegiacuterico poderia operar em um ou mais de vaacuterios

niacuteveis lexical retoacuterico estiliacutestico geneacuterico intelectual e ideoloacutegicordquo5 o que amplia as formas possiacuteveis de

leitura comparativa desses textos para aleacutem de uma intertextualidade mais restrita

Em vista dessa complexidade eacute proposto neste breve estudo o exame de alguns aspectos da recepccedilatildeo do

texto da gratiarum actio de Pliacutenio a Trajano em apenas um desses escritos elogiosos posteriores o panegiacuterico

a Teodoacutesio de Pacato Drepacircnio Tal proposta tem o objetivo de demonstrar como o diaacutelogo entre eles

participa do processo de constituiccedilatildeo de um gecircnero laudatoacuterio proacuteprio do periacuteodo imperial o panegiacuterico

latino especificamente em uma vertente laudatoacuteria pliniana Considerando as diversas possibilidades de

leitura jaacute mencionadas esta discussatildeo se concentra em observar como satildeo apropriados pelos autores dois

1 Conhecido desde o seacutec V dC (Sid Apoll Epist 8103) sob o nome de Panegiacuterico ade Trajano ou simplesmente Panegiacuterico essa obra eacute o resultado de uma gratiarum actio um discurso de agradecimento pronunciado por Pliacutenio ao Senado romano em setembro do ano 100 dC quando o orador foi nomeado consul suffectus Embora a ocasiatildeo tivesse como caracteriacutestica principal a gratidatildeo ao imperador o discurso pliniano se configura mormente como um elogio agraves virtudes e accedilotildees de Trajano que havia assumido o poder dois anos antes 2 Em 1433 foi descoberto em Mainz por Johannes Aurispa um manuscrito contendo o discurso de Pliacutenio e mais onze composiccedilotildees encomiaacutesticas oficiais de autoria diversa mdash algumas anocircnimas mas todas originaacuterias de escolas gaulesas de retoacuterica mdash e destinadas a diferentes imperadores que governaram entre os seacuteculos III e IV Nixon e Rodgers (1994 p 4) informam que esse manuscrito foi perdido poreacutem o conjunto foi preservado por coacutepias remanescentes e ficou conhecido desde entatildeo como XII Panegyrici Latini Para ediccedilotildees e comentaacuterios sobre eles cf Galletier (1949) Nixon e Rodgers (1994) e Rees (2012) 3 Garciacutea-Ruiz (2013 p 195) destaca a existecircncia de certa tradiccedilatildeo comeccedilada por Boissier (1984) em se considerar que os discursos elogiosos tardios possuiacuteam como modelo principal tanto em termos temaacuteticos quanto estruturais apenas o texto pliniano Para Pichon (1906 p 209-291) o posicionamento do discurso de Pliacutenio no iniacutecio da coleccedilatildeo torna inescapaacutevel a comparaccedilatildeo entre o elogio a Trajano e os demais Tambeacutem Klotz (1911 p 535) enumera uma seacuterie de ecos textuais entre os doze discursos Com o objetivo de fazer repensar essa posiccedilatildeo original estaacutetica e modelar do Panegiacuterico de Pliacutenio poreacutem Nixon e Rodgers (1994 p 3) destacam a existecircncia de uma tradiccedilatildeo de discursos elogiosos desde os tempos da Repuacuteblica e afirmam que ldquoO Panegiacuterico de Pliacutenio apenas aconteceu de ser o primeiro desses discursos que sobreviveurdquo (ldquoPlinyrsquos Panegyricus merely happens to be the first of such speeches to have survivedrdquo) Ainda sobre a complexidade dessas relaccedilotildees cf Rees (2011) Gibson Rees (2013) Henderson (2013) Gibson (2013) e Kelly (2015) 4 Rees (2011 p 183) argumenta que a influecircncia do texto pliniano nos panegiacutericos posteriores eacute de difiacutecil demonstraccedilatildeo pois natildeo haacute um processo de referecircncia ou intertextualidade expliacutecito O nome de Pliacutenio por exemplo natildeo eacute aludido por nenhum dos panegiristas tardios Similarmente Garciacutea-Ruiz (2013 p 196) observa que apenas o texto de Pacato (389 dC) segundo da coleccedilatildeo e o de Claacuteudio Marmentino (362 dC) posicionado como terceiro apresentam exemplos mais abundantes de ideias e expressotildees derivadas do elogio de Pliacutenio a Trajano Os outros nove textos da coleccedilatildeo apresentam de acordo com a analista um interesse variado poreacutem bastante mais limitado por essas formas de referenciar 5 ldquoas a model the Panegyricus could operate on one or more of several levels lexical rhetorical stylistic generic intellectual and ideologicalrdquo

[55]

temas principais fortemente interligados a construccedilatildeo discursiva da sinceridade nos contextos

encomiaacutesticos e o recurso da comparaccedilatildeo como ferramenta textual e argumentativa

O breve conjunto de reflexotildees que seraacute desenvolvido no decorrer deste ensaio possui uma dupla motivaccedilatildeo

De um lado ele participa de uma discussatildeo de nota de rodapeacute iniciada durante o desenvolvimento de um

artigo ainda em processo de publicaccedilatildeo escrito em coautoria com Natan Henrique Taveira Baptista sobre

as estruturas epidiacuteticas e as relaccedilotildees poliacuteticas no texto do panegiacuterico de Pacato Drepacircnio De outro mdash e na

verdade como consequecircncia da primeira mdash elas integram uma parte ainda natildeo completamente consolidada

da tese de doutorado em andamento em que se buscaraacute demonstrar que a praacutetica pliniana eacute o principal

registro de uma concepccedilatildeo teoacuterico-praacutetica latina sobre o elogio agrave eacutepoca imperial (para qual natildeo haacute em latim

textos teoacutericos contemporacircneos) e que se consolida como modelo a partir do seacutec II influenciando os

panegiristas posteriores Por isso os comentaacuterios realizados neste trabalho destacam os elementos

relacionados agrave sinceridade e agrave comparaccedilatildeo como sinalizadores de uma reflexatildeo em certo niacutevel

metadiscursiva a respeito da constituiccedilatildeo dos textos encomiaacutesticos ou seja eles satildeo interpretados

sobretudo no texto de Pliacutenio como indiacutecios de uma teorizaccedilatildeo sobre o proacuteprio panegiacuterico como gecircnero

Desse modo sua apariccedilatildeo e uso por Pacato configuram uma confirmaccedilatildeo dessas estruturas como

constituintes do gecircnero em desenvolvimento e do papel de Pliacutenio como principal modelo no contexto

imperial6

Embora haja um intervalo de quase trecircs seacuteculos entre o pronunciamento em setembro de 100 do

agradecimento de Pliacutenio em honra de Trajano e da realizaccedilatildeo em 389 do panegiacuterico de Pacato Drepacircnio ao

imperador Teodoacutesio haacute uma diversidade de fatores contextuais e cotextuais que fazem com que uma leitura

comparativa ou paralela entre eles seja quase inevitaacutevel Os paralelos entre esses dois discursos tecircm iniacutecio

na proacutepria conformaccedilatildeo de sua tradiccedilatildeo manuscrita uma vez que o conjunto dos Panegyrici Latini chegou ateacute

a atualidade em uma ordem natildeo cronoloacutegica de modo que o elogio a Teodoacutesio mesmo sendo temporalmente

o uacuteltimo ou seja o mais recente eacute alocado como segundo do conjunto logo apoacutes o texto de Pliacutenio que eacute

mantido nessa posiccedilatildeo inicial independentemente da cronologia7 Essa disposiccedilatildeo foi estabelecida muito

6 Natildeo se nega a presenccedila e a importacircncia dos textos de Ciacutecero sobretudo Pro Marcello e Pro lege Manilia ou mesmo do De clementia de Secircneca como modelos encomiaacutesticos que podem ter influenciado na constituiccedilatildeo do panegiacuterico latino como gecircnero retoacuterico (cf Nixon Rodgers 1994 p 1-4 Pernot 2005 p 171-181 Gibson 2011 p 105 Braund 2012) Todavia defendemos a especificidade da influecircncia pliniana dados os contextos condiccedilotildees e recursos especiacuteficos envolvidos na produccedilatildeo de seu discurso 7 De acordo com a disposiccedilatildeo dos manuscritos o primeiro discurso eacute o de Pliacutenio seguido pelo panegiacuterico de Pacato de Claacuteudio Mamertino de Nazaacuterio de alguns cujos autores satildeo desconhecidos e de Eumecircnio Com o objetivo de tornar mais clara a observaccedilatildeo e referecircncia do conjunto a criacutetica moderna buscou estabelecer uma ordem cronoloacutegica entre esses textos e com isso uma dupla numeraccedilatildeo foi proposta como convenccedilatildeo mais comum para as obras acadecircmicas (Rees 2012 p 23) os nuacutemeros colocados fora de parecircnteses ou colchetes indicam a ordem transmitida pela Antiguidade enquanto os nuacutemeros usados entre parecircnteses ou colchetes referem a posiccedilatildeo do texto cronologicamente estabelecida na antologia (cf Rees 2017 p 313-314)

[56]

provavelmente pelo proacuteprio Pacato Drepacircnio8 que ao fazecirc-lo natildeo apenas reafirma o texto de Pliacutenio como o

mais antigo da coleccedilatildeo mas tambeacutem o indica como o principal modelo para o gecircnero dos panegiacutericos latinos

posteriores9 Nessa mesma linha de raciociacutenio portanto o texto de Pacato seria o segundo mais importante

e por isso a ideia de uma comparaccedilatildeo e mesmo disputa entre os dois textos ganha mais forccedila A posiccedilatildeo de

segundo entre os panegiacutericos pode ser notada tambeacutem na proacutepria extensatildeo do discurso Com pouco menos

da metade de capiacutetulos que conteacutem o panegiacuterico pliniano que eacute o mais extenso da antologia o texto de

Pacato eacute entre os tardios o com maior nuacutemero de capiacutetulos

Outras semelhanccedilas entre os textos de Pliacutenio e Pacato podem ser encontradas nas condiccedilotildees gerais de sua

produccedilatildeo e pronunciamento Ambos os panegiristas por exemplo ascenderam na carreira puacuteblica sob

imperadores anteriores agravequeles que foram elogiados em seus discursos ambos fazem loas a priacutencipes

originaacuterios da Hispacircnia e ambos recebem novos cargos administrativos de importacircncia apoacutes realizarem seus

discursos laudatoacuterios10 (REES 2013 p 242-243) Desses aspectos talvez o mais importante seja a

percepccedilatildeo de que tanto Pliacutenio quanto Pacato elogiam em Roma imperadores que acabaram de ascender ao

poder em um contexto conturbado mas ambos os oradores jaacute estavam razoavelmente consolidados como

figuras puacuteblicas o que implica uma ascensatildeo pregressa desses oradores sob governantes discursivamente

opostos aos que agradecem e elogiam11 Pliacutenio louva Trajano que assumiu o comando sobre o impeacuterio em

98 dois anos apoacutes do assassinado de seu antecessor12 e antagonista Domiciano uacuteltimo dos imperadores

flavianos Pacato elogia Teodoacutesio que havia vencido no ano anterior o usurpador Magno Maacuteximo pelo

domiacutenio das Gaacutelias13

No que se refere ao contexto especiacutefico de recitaccedilatildeo desses discursos tambeacutem alguns paralelos podem ser

encontrados O panegiacuterico de Pliacutenio foi pronunciado no Senado estando Trajano presente como forma de

agradecimento pelo consulado recebido pelo orador Tais circunstacircncias satildeo referidas ao longo do proacuteprio

texto Pliacutenio caracteriza sua fala como um discurso de agradecimento em diferentes momentos (cf Pan 11

41 903) e se dirige diretamente aos senadores desde o iniacutecio quando afirma ldquoBem e sabiamente pais

8 Tal hipoacutetese eacute elencada por Pichon (1906 p 290-291) e permanece de acordo com Gibson e Rees (2013 p 218 nota 6) validada pela criacutetica posterior 9 Para Galletier (1949 pvii) le modegravele du genre para Roger Rees (2013 p 242) o primus o megaacutelito o imoacutevel 10 Tal ascensatildeo pode ser um dos indicativos do sucesso dos textos laudatoacuterios que eles apresentaram a seus governantes Apoacutes a entrega de sua laudatio as conexotildees com Ausocircnio e sua condiccedilatildeo de orador levaram Pacato a receber o proconsulado da Aacutefrica em 390 e tornar-se comes rei privatae em 393 (NIXON RODGERS 1994 p 439) Pliacutenio por sua vez que assumia o cargo de cocircnsul em 100 se manteve atuante em diferentes causas e tornou-se por volta de 110 governador da Bitiacutenia 11 Sobre os paradoxos da ascensatildeo pliniana sob Domiciano cf Kelly (2015 p 229) e Whitton (2015) Sobre a posiccedilatildeo de Pacato como parte dos comites de Maacuteximo cf Sordi (2002 p 315) 12 Natildeo se trata nesse caso de um antecessor direto uma vez que apoacutes o assassinato de Domiciano Nerva assumiu o poder poreacutem durante um periacuteodo bastante curto 13 A declamaccedilatildeo do panegiacuterico de Pacato ocorreu no momento da volta de Teodoacutesio agrave capital Roma para oficializar a posse das Gaacutelias ocupadas por Magno Clemente Maacuteximo que havia usurpado o poder sobre o Impeacuterio Romano ocidental desde 383 ateacute agosto de 388 quando foi derrotado por Teodoacutesio (KELLY 2015 p 215-217)

[57]

conscritos nossos antepassados instituiacuteram que deveriacuteamos iniciar com preces os discursos []rdquo (Plin Pan

11 Grifo nosso)14 Tambeacutem o imperador eacute referido em segunda pessoa ao longo do discurso como ocorre

em Pan 43 ldquoNos dois casos Ceacutesar Augusto ages com moderaccedilatildeo mdash tanto ao natildeo permitir que te demos

graccedilas em outro lugar quanto ao permitirrdquo15 O texto de Pacato por sua vez foi declamado na presenccedila de

senadores e do consilium do imperador (formado por altos membros da elite oficiais de alto escalatildeo e

comandantes militares) como parte das festividades triunfais de Teodoacutesio Tal contexto imediato tambeacutem eacute

anunciado ainda nos primeiros paraacutegrafos do discurso momento em que o orador busca pela exposiccedilatildeo de

sua modeacutestia captar a benevolecircncia de sua audiecircncia

Se houve um dia algueacutem Imperador Augusto que prestes a falar justamente tenha tremido em tua presenccedila por certo este sou eu e natildeo soacute eu mesmo o sinto mas tambeacutem vejo que assim pode parecer a estes que participam do teu conselho [] Para caacute veio o senado como ouvinte a quem por causa do amor em ti com o qual ele foi dotado eacute difiacutecil satisfazer a respeito de ti [hellip] (Pan Lat 2[12]12-3)16

Nesse caso se pode pensar que eacute como se Pacato observasse a si mesmo em uma conjuntura tanto de

produccedilatildeo quanto de recepccedilatildeo bastante proacutexima daquela em que se encontrava Pliacutenio e portanto recorresse

a muitos dos recursos discursivos desse seu predecessor assim como a estruturas lexicais frasais e mesmo

certos posicionamentos poliacuteticos (REES 2013 p 246) Para Gibson (2013 p 219) por exemplo a

justaposiccedilatildeo dos textos de Pliacutenio e Pacato natildeo evoca apenas e necessariamente um paralelo retoacuterico em

termos estruturais ou textuais em um sentido mais estrito Para o analista em concordacircncia com Garcia-Ruiz

(2013 p 205-215) essa sequecircncia suscita tambeacutem a comparaccedilatildeo entre os imperadores tardios e a figura

imperial de Trajano razatildeo pela qual algumas estrateacutegias discursivas tambeacutem satildeo imitadas

Diante desse quadro relativo agrave ascensatildeo de novos governantes o primeiro elemento de aproximaccedilatildeo entre

os dois discursos laudatoacuterios eacute a urgecircncia de ambos em declarar sua sinceridade logo no iniacutecio de sua

declamaccedilatildeo A aplicaccedilatildeo de teacutecnicas para o efeito de sinceridade eacute para Bartsch (1994 p 149) talvez o

principal aspecto do texto pliniano classificaacutevel pela autora como uma verdadeira obsessatildeo17 Embora para

Bartsch (1994) esse seja na verdade um indiacutecio de que nenhuma sinceridade eacute mais possiacutevel nos louvores

defendemos que o uso de tal recurso tem como finalidade a criaccedilatildeo discursiva de um novo campo para o

exerciacutecio do epidiacutetico pois o panegirista afirma apresentar diante de Trajano uma forma renovada de

discursos de agradecimento Nesse contexto Pliacutenio suplica a Juacutepiter da seguinte maneira ldquo[] que meu

14 ldquoBene ac sapienter patres conscripti maiores instituerunt ut rerum agendarum ita dicendi initium a precationibus capererdquo (Plin Pan 11) Todas as traduccedilotildees do Panegiacuterico citadas neste texto satildeo de autoria de Lucas Lopes Giron 15 ldquoVtrumque Caesar Auguste moderate et quod alibi tibi gratias agi non sinis et quod hic sinisrdquo (Plin Pan 43) 16 ldquoSi quis umquam fuit imperator Auguste qui te praesente dicturus iure trepidaverit eum profecto me esse et ipse sentio et his qui consilium tuum participant videri posse viacutedeo [] Huc accedit auditor senatus cui cum difficile sit pro amore quo in te praeditus est de te satis fieri []rdquo (Pan Lat 2[12]11-3) Todas as traduccedilotildees do texto de Pacato Drepacircnio satildeo de nossa autoria 17 ldquo[] a obsessatildeo do Panegiacuterico com as teacutecnicas de sinceridaderdquo [hellip] the Panegyricus obsession with the techniques of sincerityrdquo (BARTSCH 1994 p 149)

[58]

discurso seja digno de um cocircnsul digno do senado e digno do priacutencipe que em tudo o que for dito por mim

conste a liberdade a sinceridade e a verdade e que meu agradecimento esteja tatildeo distante da aparecircncia de

adulaccedilatildeo quanto estaacute de sua necessidaderdquo (Plin Pan 16)18

A primeira caracteriacutestica desse discurso eacute portanto a franqueza de suas palavras as quais o orador suplica

aos deuses que sejam primeiramente compatiacuteveis com sua condiccedilatildeo de cocircnsul com o senado e com o

priacutencipe19 e que sejam confirmadas pela verdade (veritas) pelo compromisso (fides) e pela liberdade (libertas)

A tal pedido o orador acrescenta que deseja que elas natildeo sejam interpretadas como adulaccedilatildeo algo que como

enfatiza Taacutecito (Hist 1112) conteacutem em si ldquoo vergonhoso crime de servidatildeordquo20 Nesse contexto importa

destacar que o panegirista quer afastar natildeo a adulaccedilatildeo em si mas a aparecircncia dela mdash species adulationis mdash

expressatildeo que denota natildeo a possibilidade de que o elogio seja de fato concebido como lisonja vazia ao

imperador mas que ele poderia ser assim mal interpretado pelos ouvintes

Para reforccedilar seu argumento Pliacutenio destaca que esse afastamento deve ser proporcional a sua falta de

necessidade expressatildeo que denota um elogio natildeo forccedilado pelo imperador mas realizado de boa vontade

pelo panegirista21 Desse modo Pliacutenio busca afirmar seu discurso como louvor sincero ante os deuses o

senado e o imperador isso porque os tempos satildeo outros livres como afirma logo em seguida

Quanto a mim penso que natildeo somente o cocircnsul mas todos os cidadatildeos devem se esforccedilar para natildeo dizer do nosso priacutencipe aquilo que pareccedila poder ser dito de outro Que saiam e afastem-se entatildeo aquelas palavras que o medo forccedilava Natildeo digamos nada como antes pois nada sofremos como antes Nem falemos em puacuteblico sobre o priacutencipe o mesmo que antes pois natildeo falamos em particular o mesmo que antes Que a mudanccedila dos tempos seja manifesta pelos nossos discursos e que se entenda a partir do proacuteprio modo do agradecimento quem e em que momento acontecem Que em nada como um deus que em nada como uma divindade o louvemos Pois natildeo falamos de um tirano mas de um cidadatildeo natildeo falamos de um amo mas de um pai (Plin Pan 21-3 Grifos nossos)22

De acordo com essa linha de raciociacutenio quanto mais a audiecircncia e o proacuteprio priacutencipe concordarem com a

liberdade do periacuteodo mais sincero e verdadeiro eacute o elogio De outra maneira interpretar o discurso de

18 ldquo[] ut mihi digna consule digna senatu digna principe contingat oratio utque omnibus quae dicentur a me libertas fides ueritas constet tantumque a specie adulationis absit gratiarum actio mea quantum abest a necessitaterdquo 19 Tais personagens colocados nessa ordem frasal enfatizam a importacircncia das instituiccedilotildees republicanas ao longo de todo agradecimento realizado por Pliacutenio 20 ldquoquippe adulationi foedum crimen servitutis [] inestrdquo (Taacutec Hist 1112) 21 O restante do trecho do panegiacuterico trata do mesmo assunto A caracterizaccedilatildeo desse discurso como livre tambeacutem eacute feita por Pliacutenio em uma das cartas em que comenta o processo de revisatildeo e reescrita do agradecimento a Trajano na qual afirma que seu discurso mereceu uma versatildeo escrita (scribitur) natildeo por ter sido elaborado com mais habilidade oratoacuteria (eloquentius) mas sim porque mais livremente (liberius) e de mais boa vontade (Plin Ep 3183) 22 ldquoEquidem non consuli modo sed omnibus ciuibus enitendum reor ne quid de priacutencipe nostro ita dicant ut idem illud de alio dici potuisse uideaturQuare abeant ac recedant uoces illae quas metus exprimebat Nihil quale ante dicamus nihil enim quale antea patimur nec eadem de principe palam quae prius praedicemus neque enim eadem secreto quae prius loquimur Discernatur orationibus nostris diuersitas temporum et ex ipso genere gratiarum agendarum intellegatur cui quando sint actae Nusquam ut deo nusquam ut numini blandiamur non enim de tyranno sed de ciue non de domino sed de parente loquimurrdquo

[59]

agradecimento como falso ou bajulaccedilatildeo servil implica acusar o novo governo de tirania23 Tal ideia eacute

confirmada pela oposiccedilatildeo entre ldquoantesrdquo e ldquoagorardquo e pela afirmaccedilatildeo de que a mudanccedila dos tempos eacute

manifestada por meio de um tipo novo de elogios24 Nesse contexto o segundo principal recurso do

panegiacuterico de Pliacutenio (que seraacute discutido mais longamente ainda neste trabalho) eacute a comparaccedilatildeo a partir da

qual a ideia mesma de sinceridade pode ser construiacuteda Os elementos constituintes desse confronto satildeo

tambeacutem sumarizados ainda nesse trecho inicial De um lado seraacute louvado Trajano como figura de cidadatildeo e

de pai de outro seraacute vituperado Domiciano descrito como tirano25

Em um trecho que pode ser classificado como algo entre paraacutefrase siacutentese ou glosa das ideias de Pliacutenio

Pacato ainda nos primeiros paraacutegrafos do elogio afirma que

E tambeacutem isto me impeliu a discursar porque ningueacutem obrigava que eu discursasse de fato natildeo mais o louvor forccedilado e as vozes pressionadas pelo medo livravam do perigo do silecircncio Que seja passada e afastada aquela triste obrigaccedilatildeo de eloquecircncia servil quando a aprovaccedilatildeo mentirosa afagava um tirano truculento que cativava toda celebridade dos aplausos puacuteblicos com uma popularidade vazia quando faziam agradecimentos os sofredores e natildeo ter elogiado o tirano se classificava como acusaccedilatildeo de tirania Haacute agora igual liberdade para falar e silenciar e eacute tatildeo seguro louvar abertamente o priacutencipe quanto ter silenciado sobre ele (Pan Lat 2[12]22-4 Traduccedilatildeo e grifo nossos)26

Como pode ser notado a ligaccedilatildeo intertextual mais evidente entre os dois discursos estaacute na sentenccedila que

menciona um tipo de louvor anterior que era compelido pelo medo Em ambas as passagens satildeo utilizados

os mesmos vocaacutebulos ainda que em ordem e formas diferentes ldquonon enim iam coacta laudatio et expressae

metu voces periculum silentii redimuntrdquo (Pan Lat 2[12]22) e ldquoQuare abeant ac recedant uoces illae quas metus

exprimebatrdquo (Plin Pan 21) Todavia a mesma seacuterie de ideias utilizada nos paraacutegrafos iniciais de Pliacutenio eacute

aplicada nesse trecho de Pacato

Em primeiro lugar estaacute o argumento de que o elogio natildeo eacute coagido pela forccedila poliacutetica do imperador mas

impulsionado pela proacutepria liberdade de dizer Em segundo a menccedilatildeo ao afastamento de uma eloquecircncia

servil legada a tempos anteriores marcados justamente pela ausecircncia de autonomia (Pan Lat 2[12]23 Plin

Pan 16) Nesses dois aspectos Pacato ao mesmo tempo parafraseia e sintetiza as teses elencadas por Pliacutenio

Em terceiro lugar eacute identificaacutevel a menccedilatildeo agrave figura do tirano com a qual por consequecircncia o elogiado deveraacute

23 Sobre essa atribuiccedilatildeo da responsabilidade interpretativa agrave audiecircncia cf Bartsch (1994 p 160-161) 24 De acordo com Christopher Kelly (2015 p 226) essa antiacutetese entre o periacuteodo anterior e o vigente eacute um dos dispositivos estruturais mais importantes de Pliacutenio 25 Nessa passagem nenhuma pessoa em particular eacute citada diretamente todavia a menccedilatildeo a ldquoum deusrdquo e em seguida a ldquoum amordquo remete agrave figura de Domiciano uma vez que dominus et deus eacute um tiacutetulo comumente atribuiacutedo a ele Sobre as evidecircncias dessas denominaccedilotildees cf Jones (1992 p 107-109) 26 ldquoQuin et illud me impulit ad dicendum quod ut dicerem nullus adigebat non enim iam coacta laudatio et expressae metu voces periculum silentii redimunt Fuerit abieritque tristis illa facundiae ancillantis necessitas cum trucem dominum auras omnes plausuum publicorum ventosa popularitate captantem mendax adsentatio titillabat cum grates agebant dolentes et tyrannum non praedicasse tyrannidis accusatio vocabatur Nunc par dicendi tacendique libertas et quam promptum laudare principem tam tutum siluisse de principerdquo

[60]

ser contraposto Por fim Pacato reafirma a franqueza de suas palavras por meio do argumento de que o

silecircncio natildeo eacute mais interpretado como traiccedilatildeo por isso poderia calar-se mas escolheu o fazer Nesses dois

uacuteltimos argumentos ideias que estavam presentes natildeo apenas no comeccedilo mas ao longo da gratiarum actio a

Trajano satildeo de certo modo desenvolvidas jaacute de iniacutecio no texto dedicado a Teodoacutesio A caracterizaccedilatildeo do

governante anterior como tirano truculento e sanguinaacuterio por exemplo ocorre em diferentes momentos ao

longo do texto pliniano (Plin Pan 204-6 483-5) enquanto a ponderaccedilatildeo sobre o silecircncio eacute feita na segunda

metade do discurso (Plin Pan 531-3)27

Natildeo se trata nesse caso de afirmar que Pacato se apoiou uacutenica e exclusivamente no texto de Pliacutenio ou que

natildeo modificou e adaptou muitas outras estrateacutegias advindas de sua formaccedilatildeo oratoacuteria no processo de

produccedilatildeo de seu discurso Para Rees (2013 p 244-247) os recursos estiliacutesticos sobretudo os tipos de

ornamentaccedilatildeo retoacuterica do texto de Pacato Drepacircnio satildeo bastante originais de origem poeacutetica e refletem as

transformaccedilotildees proacuteprias do periacuteodo Todavia pela observaccedilatildeo comparativa dos textos fica evidente que a

obra encomiaacutestica pliniana influenciou de maneira bastante direta as escolhas estruturais temaacuteticas e em

alguns casos textuais do panegirista tardoantigo Eacute a partir de tal interpretaccedilatildeo que se torna possiacutevel

localizar Pliacutenio como modelo e paradigma encomiaacutestico

No entanto o que faz com que se entenda haver uma recepccedilatildeo do texto pliniano no panegiacuterico a Teodoacutesio

natildeo eacute apenas a supracitada caracterizaccedilatildeo do elogio como sincero mas o fato de que nos dois discursos

muito dessa ficccedilatildeo de franqueza se constroacutei a partir da constante e insistente comparaccedilatildeo entre o atual

imperador e o governante (ou os governantes) que o antecedeu (antecederam) Tal estrutura textual e

argumentativa eacute uma das caracteriacutesticas mais marcantes do Panegiacuterico de Pliacutenio considerada ainda um fator

de diferenciaccedilatildeo de seu modelo laudatoacuterio em relaccedilatildeo agrave tradiccedilatildeo latina28 O indiacutecio da importacircncia desse

artifiacutecio retoacuterico eacute dado pela metalinguagem do proacuteprio texto da gratiarum actio onde o panegirista afirma

Tudo pais conscritos que eu digo ou disse de outros priacutencipes tem a intenccedilatildeo de mostrar por quanto tempo corromperam-se e depravaram-se os costumes do principado que nosso pai agora reforma e corrige Aleacutem disso natildeo se faz um elogio adequado sem uma comparaccedilatildeo (Plin Pan 531-3 Grifo nosso)29

27 No contexto da gratiarum actio a Trajano o silecircncio natildeo eacute sinocircnimo de liberdade tatildeo diretamente quanto no texto de Pacato Em outras duas menccedilotildees agrave possibilidade de silenciar-se o texto deixa impliacutecitos os riscos dessa accedilatildeo Em Pan 251 o panegirista justifica sua prolixidade pela afirmaccedilatildeo de que o silecircncio sobre qualquer feito do princeps poderia ser interpretado como desaprovaccedilatildeo enquanto em Pan 536 ao silecircncio sobre os males de tempos anteriores eacute atribuiacuteda tambeacutem uma criacutetica ao tempo presente 28 Sobre a recepccedilatildeo do modelo comparativo e antiteacutetico de elogio realizado por Pliacutenio em contextos posteriores cf Pailler 2003 29 ldquoOmnia Patres Conscripti quae de aliis principibus a me aut dicuntur aut dicta sunt eo pertinent ut ostendam quam longa consuetudine corruptos depravatosque mores principatus parens noster reformet et corrigat Alioqui nihil non parum grate sine comparatione laudaturrdquo

[61]

Natildeo eacute originalmente de Pliacutenio o Jovem a ideia de que elogio requer que dois ou mais elementos sejam

comparados pois ela eacute jaacute apontada por Aristoacuteteles (Rh1366a-1368b Trad de Manuel Alexandre Juacutenior et

alii) de acordo com quem

Deve-se poreacutem comparar com pessoas de renome pois resulta amplificado e belo se se mostrar melhor que os virtuosos [] A amplificaccedilatildeo enquadra-se logicamente nas formas de elogio pois consiste em superioridade e a superioridade eacute uma das coisas belas Pelo que se natildeo eacute possiacutevel comparar algueacutem com pessoas de renome eacute pelo menos necessaacuterio comparaacute-lo com as outras pessoas visto que a superioridade parece revelar a virtude

Semelhantemente Ciacutecero destaca que ldquotambeacutem a comparaccedilatildeo com outros homens notaacuteveis eacute ilustre num

elogiordquo (Cic De orat 2348 Trad de Maximiano Augusto Gonccedilalves)30 conselho obedecido pelo proacuteprio

orador no Pro Marcello (5) quando afirma equiparar (conferri) mentalmente ou em diaacutelogos privados os

feitos e virtudes de Ceacutesar aos homens mais ilustres de povos estrangeiros e concluir que seu elogiado eacute o

melhor entre eles Quintiliano tambeacutem registra a comparaccedilatildeo como um dos elementos essenciais da

amplificaccedilatildeo dos discursos ldquoconsidero que a amplificaccedilatildeo eacute composta por quatro gecircneros principais adiccedilatildeo

comparaccedilatildeo racionalizaccedilatildeo acumulaccedilatildeordquo (Quint Inst 843 Traduccedilatildeo nossa)31 Eacute diante de tal tradiccedilatildeo que

Lausberg (1998 p 191) afirma acertadamente que ldquo[] comparatio eacute especialmente adequada para o gecircnero

epidiacutetico em que caracteriacutesticas da histoacuteria poesia ou mito satildeo retratadas como tendo sido superadas pelo

sujeito que estaacute sendo elogiadordquo32

Todavia como fica evidente quando se observam as ponderaccedilotildees dos autores antigos sobre esse recurso a

comparaccedilatildeo eacute no contexto elogioso em geral definida pelo uso de exemplos positivos Contrariando essa

posiccedilatildeo poreacutem o agradecimento de Pliacutenio a Trajano se constroacutei mormente pelo confronto do novo

imperador natildeo com os precedentes mais ilustres mas com os exemplos anteriores qualificados se natildeo como

tiranos ao menos como governantes imperfeitos33 Desse modo a censura mais que o louvor eacute trazida para

o primeiro plano do discurso de agradecimento a Trajano Para aleacutem de afirmar as virtudes e feitos do

princeps grande parte do elogio de Pliacutenio se dedica a negar a possibilidade de que ele seja similar aos que

governaram antes Como destaca o texto do panegiacuterico ldquo[] eacute o primeiro dever dos cidadatildeos pios diante de

um imperador oacutetimo atacar os que natildeo lhe satildeo semelhantes pois natildeo teraacute amado suficientemente os bons

priacutencipes aquele que natildeo odeie os maus o bastanterdquo (Plin Pan 531-2 Grifos nossos)34

30 ldquoEst etiam cum ceteris praestantibus viris comparatio in laudatione praeclarardquo 31 ldquoQuattuor tamen maxime generibus video constare amplificationem incremento comparatione ratiocinatione congerierdquo 32 ldquoComparatio is especially suited to the epideictic genus in that features of history poetry or myth are portrayed as having been surpassed by the subject being praisedrdquo 33 Haacute no texto do Panegiacuterico tambeacutem exemplos positivos aos quais Trajano eacute comparado (cf Pan 134-5 291-2 354 556-7 574-5 804 841-2 e 886-8) poreacutem a relevacircncia deles eacute minorada pela contiacutenua oposiccedilatildeo ao passado funesto que eacute elaborado ao longo do discurso 34 ldquo[hellip] hoc primum erga optimum imperatorem piorum civium officium est insequi dissimiles Neque enim satis amarit bonos principes qui malos satis non oderitrdquo (Plin Pan 531)

[62]

A finalidade ou a funccedilatildeo dessa comparaccedilatildeo e consequente vitupeacuterio eacute destacada logo em seguida quando o

panegirista aconselha incluindo-se entre os aconselhados que

[] Devemos agir assim em nossas conversas privadas nas puacuteblicas e em nossas accedilotildees de graccedilas e lembremo-nos de que o melhor enaltecimento para um imperador vivo eacute repreender seus antecessores que mereceram Pois quando a posteridade se cala quanto a um mau priacutencipe eacute manifesto que o priacutencipe atual faz as mesmas coisas (Plin Pan 536)35

O exerciacutecio aberto da censura a anteriores eacute de acordo com esse argumento prova da sinceridade e da

legitimidade do elogio atual ainda que nesse caso o vitupeacuterio natildeo esteja contraposto ao elogio mas ao

silecircncio Tais elementos de antiacutetese satildeo evocados ao longo de todo o Panegiacuterico de Pliacutenio seja por meio da

construccedilatildeo de um modelo negativo mais geneacuterico geralmente caracterizado pelo uso da terceira pessoa do

singular de modo que parece referir a todos os predecessores (184 241-5 361-2 412-3 421-3 451-3

471-2 501-3 581-4 633-7 653 663 704-7 711-3 794-6 881-3 911-2) quanto pela menccedilatildeo

indireta a um modelo negativo poreacutem direcionada de modo que eacute possiacutevel identificar sobretudo a figura de

Domiciano (23 145 331-4 483-5 495-8 52 541-3 571-2 623 763-5 81-82 832-6 941-3)36

Esse recurso eacute utilizado tambeacutem por Pacato ainda que de maneira um pouco diversa Diferentemente de

Pliacutenio cujo exerciacutecio comparativo pode ser notado ao longo de todo o panegiacuterico de maneira que quase

todos os itens elogiados em Trajano satildeo em sequecircncia vituperados em outros Pacato concentra o vitupeacuterio

a Maacuteximo entrecortado pelo elogio a Teodoacutesio entre os capiacutetulos 21 e 29 aos quais acrescenta em

2(12)313 uma siacutentese comparativa entre eles ldquo[] por fim contigo o compromisso com ele a perfiacutedia

contigo as leis divinas com ele o sacrileacutegio contigo a justiccedila com ele a injuacuteria contigo a clemecircncia dececircncia

religiatildeo com ele a impiedade devassidatildeo crueldade e a combinaccedilatildeo de todos os crimes e dos piores viacutecios

[]rdquo37 Portanto embora partam como apresentado no exame dos seus capiacutetulos iniciais de um mesmo

princiacutepio comparativo o modo como cada um dos oradores dispotildeem essa antiacutetese em seus discursos eacute

diferente Ainda assim o trecho destinado ao confronto entre os imperadores eacute no texto de Pacato bastante

extenso de modo que ocupa parte relevante de sua argumentaccedilatildeo

35 ldquoHoc secreta nostra hoc sermones hoc ipsae gratiarum actiones agant meminerintque sic maxime laudari incolumem imperatorem si priores secus meriti reprehendantur Nam quum de malo principe posteri tacent manifestum est eadem facere praesentemrdquo 36 Como destaca Christopher Kelly (2015 p 227) ldquoo valor de Trajano sua generosidade sua prudecircncia financeira seu respeito pelas leis destacam-se muito mais claramente em comparaccedilatildeo com a covardia ganacircncia excesso e tirania de Domiciano []rdquo (ldquoTrajanrsquos valor generosity financial prudence and respect for the laws stand out all the more clearly in comparison to Domitianrsquos cowardice greed excess and tyranny [hellip]rdquo) 37 ldquoPostremo tecum fidem secum perfidiam tecum fas secum nefas tecum ius secum iniuriam tecum clementiam pudicitiam religionem secum impietatem libidinem crudelitatem et omnium scelerum postremorumque vitiorum [] collegiumrdquo

[63]

Como natildeo eacute propoacutesito deste estudo analisar exaustivamente todos os trechos comparativos em cada um dos

textos encomiaacutesticos destaca-se aqui uma passagem principal em que os elementos escolhidos para a

comparaccedilatildeo satildeo semelhantes em ambos os discursos Em Pan Lat 2(12)21 Pacato associa de modo

bastante proacuteximo ao que faz Pliacutenio em Pan 474-6 e 481 o espaccedilo fiacutesico das casas e da cidade agrave relaccedilatildeo do

imperador com os cidadatildeos Nesse contexto Teodoacutesio e Trajano satildeo relacionados a casas e cidades abertas

jaacute que querem mostrar sua face e seu interior Ambos natildeo temem sair agrave rua e serem vistos e abordados pelos

suacuteditos a quem segundo os panegiristas atendem sem inspirar medo Domiciano e Maacuteximo por outro lado

inflados por sua pretensa divindade se fecham em paredes e templos rodeados por soldados Ainda que natildeo

possa ser notada uma equivalecircncia vocabular ou frasal entre os trechos argumentos bastante semelhantes

satildeo empregados Nas palavras de Pacato Drepacircnio

Mas quatildeo diferente foi o costume dos nossos priacutencipes anteriores (de quais falo eacute sabido) os quais pensavam que a grandeza real era diminuiacuteda e tornada vulgar se eles natildeo estivessem confinados no interior do edifiacutecio Palatino tal qual um templo de Vesta para em segredo os consultar uma veneraccedilatildeo oculta (Pan Lat 2(12)213)38

Esse trecho iniciado por Quantum aliter illorum principum evoca uma estrutura razoavelmente comum no

texto pliniano que com frequecircncia inicia sua contraposiccedilatildeo com vocaacutebulos semelhantes (quantumquam

dissimilis quam diversum mdash Plin Pan 204 653 821) Tal arranjo poreacutem natildeo eacute utilizado no trecho em que

ideias semelhantes satildeo desenvolvidas por ele cujo indiacutecio de antiacutetese eacute fornecido por um Ille tamen cujo valor

expressivo eacute similar a ldquoaquele (cuja identidade vocecirc audiecircncia conhece)rdquo indireta tatildeo claramente

apresentada por Pacato

Ele poreacutem entre aquelas paredes e muros em que parecia proteger sua vida fechou consigo a trapaccedila as conspiraccedilotildees e o deus vingador dos crimes A Pena separou e quebrou as proteccedilotildees e entrou por caminhos apertados e obstruiacutedos como se por portas abertas e umbrais receptivos De nada servia entatildeo a sua pretensa divindade de nada serviam aqueles quartos secretos e crueacuteis esconderijos onde era tomado pelo temor pela soberba e pelo oacutedio aos homens (Plin Pan 491)39

Permanece portanto na relaccedilatildeo entre essas duas passagens a menccedilatildeo agraves paredes fechadas aos locais

escuros e secretos e agrave presunccedilatildeo de divindade dos imperadores Tais caracteriacutesticas em ambos os casos

todavia expressam natildeo apenas o risco que como tiranos representariam para os cidadatildeos mas o temor que

possuem de perderem sua grandeza por meio do contato com os demais

38 ldquoAt quanto aliter illorum principum mos fuit (quos loquar notum est) qui maiestatem regiam imminui et volgari putabant nisi eos intra repositum Palatinae aedis inclusos tamquam aliquod Vestale secretum veneratio occulta consuluisset nisi intra domesticam umbram iacentes solitudo provisa et silentia late conciliata vallassentrdquo 39 ldquoIlle tamen quibus sibi parietibus et muris salutem suam tueri videbatur dolum secum et insidias et ultorem scelerum deum inclusit Dimovit perfregitque custodias poena angustosque per aditus et obstructos non secus ac per apertas fores et invitantia limina irrupit longeque tunc illi divinitas sua longe arcana illa cubilia saevique secessus in quos timore et superbia et odio hominum agebaturrdquo

[64]

O segundo trecho em que se nota certa equivalecircncia entre os dois panegiacutericos eacute na verdade parte

constituinte dessa mesma reflexatildeo sobre o isolamento e desconfianccedila tiracircnica Tanto Pliacutenio quanto Pacato

ilustram esse argumento com a comparaccedilatildeo de seus respectivos priacutencipes a monstros que se escondem em

cavernas A respeito de Domiciano Pliacutenio afirma que

[] demoramos e permanecemos como em uma casa comum onde haacute pouco aquela crudeliacutessima besta havia cercado com muitiacutessimo terror quando como que fechada em uma caverna ora lambia o sangue dos familiares ora se entregava agrave carnificina e ao massacre dos cidadatildeos mais ilustres [] Ningueacutem ousava aproximar-se e dirigir-lhe a palavra sempre buscava as trevas e o misteacuterio e nunca saiacutea de sua solidatildeo senatildeo para causar a solidatildeo (Pan 483 e 5)40

Pacato por sua vez que reserva todo o capiacutetulo 26 para um vitupeacuterio direto e ininterrupto de Maacuteximo

nessa oportunidade explicita a comparaccedilatildeo do usurpador agrave figura mitoloacutegica de Cariacutebdis41

Aquele nosso pirata acumulava tudo aquilo que havia saqueado em todas as partes para a perda nossa e dele na caverna de sua Cariacutebdis Digo Cariacutebdis ela apoacutes ter tragado navios repletos diz-se que regurgita os naufraacutegios e coloca nos litorais de Taormina os navios retorcidos no fundo (Pan Lat 2[12]264)42

O aspecto de semelhanccedila nesse contexto eacute a monstruosidade de ambos os imperadores que de suas

respectivas cavernas figurativamente se alimentam dos cidadatildeos ou de seus bens Tal monstruosidade eacute em

ambos os discursos encomiaacutesticos parte da amplificaccedilatildeo que eacute o principal recurso da prosa epidiacutetica (Arist

Rh 1368a Quint Inst 8427) cujo efeito nesse caso eacute transformar Maacuteximo e Domiciano nos piores

exemplos de imperadores em relaccedilatildeo aos quais as imagens positivas de Teodoacutesio e Trajano satildeo cada vez mais

valorizadas

Mais uma vez estaacute evidente que as referecircncias entre os dois textos natildeo se datildeo frequentemente por meio de

menccedilotildees citaccedilotildees ou intertextos diretos mas pela apropriaccedilatildeo de estruturas argumentativas mais amplas

que verificadas e interpretadas colocam os textos em paralelo Desse modo o que se apresenta eacute a questatildeo

teoacuterica mais abrangente em torno dos discursos epidiacuteticos que natildeo se refere apenas agrave estrutura ou ao estilo

mas tambeacutem a como esse tipo de discurso precisaria ser pensado diante das diferentes condiccedilotildees de

produccedilatildeo e pronunciamento exigidas em ambiente imperial Pliacutenio e Pacato administram em seu texto na

40 ldquoRemoramur resistimus ut in communi domo quam nuper immanissima bellua plurimo terrore munierat quum velut quodam specu inclusa nunc propinquorum sanguinem lamberet nunc se ad clarissimorum civium strages caedesque proferret []on adire quisquam non adloqui audebat tenebras semper secretumque captantem nec unquam ex solitudine sua prodeuntem nisi ut solitudinem faceretrdquo 41 Conforme descreve Grimal (2005 p 74) Cariacutebdis era uma filha da Terra e de Poseidon que tendo devorado alguns animais do rebanho de Geacuterion foi punida por Zeus que a transformou em um monstro e a lanccedilou no fundo do mar Assim passou a viver no estreito de Messina onde ldquoabsorvia trecircs vezes por dia uma grande quantidade de aacutegua do mar arrastando para as suas fauces tudo que flutuava Deste modo engolia os navios que se encontravam nessas paragens Depois expelia a aacutegua que tinha absorvidordquo (GRIMAL 2005 p 74) 42 ldquoNoster ille pirata quidquid undecumque converrerat id nobis sibique periturum in illam specus sui Charybdim congerebat Charybdim loquor quae cum plena navigia sorbuerit dicitur tamen reiectare naufragia et contortas fundo rates Tauromenitanis litoribus exponererdquo

[65]

interligaccedilatildeo entre sinceridade e comparaccedilatildeo pelo negativo o que Kelly (2015 p 217) chamou de ldquoparadoxo

inevitaacutevel dos louvoresrdquo Trata-se de uma caracteriacutestica intriacutenseca aos textos de tipo epidiacutetico ocasionada

sobretudo por seu aspecto cerimonial Ao panegirista eacute requisitado que louve algueacutem mas ao mesmo

tempo seu louvor estaacute continuamente sob um olhar desconfiado que duvida natildeo soacute de sua importacircncia mas

de sua veracidade Nos panegiacutericos examinados neste trabalho os oradores constroem certas estruturas que

buscam garantir a legitimidade desse mesmo elogio Uma dessas estruturas eacute a admissatildeo do fato de que o

louvor pode de fato ser adulaccedilatildeo e que na verdade o foi no contexto anterior mas natildeo o eacute no contexto

presente em que eacute possiacutevel falar abertamente dos defeitos de um imperador anterior43 Essa eacute uma

problemaacutetica proacutepria do louvor imperial romano para a qual Pliacutenio parece encontrar uma soluccedilatildeo que Pacato

reconhece concorda adota e desenvolve Diante dessas aproximaccedilotildees as relaccedilotildees estabelecidas por Pliacutenio

e Pacato satildeo consistentemente explicadas por Kelly (2015 p 217) quando este afirma que ldquoo brilho de um

orador jaz natildeo na invenccedilatildeo de algo completamente novo [] mas em como elementos costumeiros do elogio

satildeo selecionados e costurados da maneira mais apropriada para as circunstacircncias presentesrdquo44

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43 Esse processo tem efetividade apenas diante de uma seacuterie de outros argumentos que satildeo tecidos ao longo dos discursos como os conselhos sejam abertos ou velados a esses imperadores presentes Nesse sentido mesmo alguns erros dos governantes elogiados satildeo admitidos em contexto retoacuterico Cf Pan Lat 2(12) 231 44 ldquoThe brilliance of an orator lay not in the invention of some startlingly novel argument [hellip] but in how customary elements of praise were selected and knitted together in a manner most appropriate to present circumstancesrdquo

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Lector studiose o leitor nas Metamorfoses de Apuleio

Rayana da Costa Teles Barreto

grayana07007gmailcom

Isabella Tardin Cardoso

itardincardosogmailcom

O presente artigo que sumariza parte

da pesquisa de Mestrado em andamento no

Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Linguiacutestica

do IEL ndash Unicamp foi desenvolvido com

apoio da Coordenaccedilatildeo de Aperfeiccediloamento

de Pessoal de Niacutevel Superior (CAPES) ndash

Coacutedigo de Financiamento 001

(Processo n 888873348102019-00)

Este estudo trata das imagens e do papel atribuiacutedo ao leitor no

romance antigo Metamorphoses (Metamorphoseon Libri) de Apuleio

(125-170 dC) tambeacutem conhecido como O Asno de Ouro (Asinus

Aureus) desde sua recepccedilatildeo na Antiguidade tardia Com esse

enfoque pretende-se colaborar com interpretaccedilotildees mais recentes

que embora evidenciem a complexidade alusiva do texto apuleiano

(HARRISON 2003) ainda natildeo apontam para uma revisatildeo

sistemaacutetica do estatuto de um leitor que as reconheceria Ao

considerar as referecircncias expliacutecitas ao leitor vai-se apontar para

caracteriacutesticas nele inferidas que ao mesmo tempo apontam para

seu papel nas narrativas sobrepostas bem como no consequente

jogo de espelhamentos que conforme defendemos se fazem notar

na ficccedilatildeo apuleiana

[68]

Introduccedilatildeo

Escrito no seacuteculo II de nossa era1 as Metamorfoses (ou O Asno de Ouro)2 de Apuleio (125-170 dC) conta a

histoacuteria de um jovem abastado de nome Luacutecio que ao viajar para Tessaacutelia mdash uma cidade conhecida por ser o

antro da magia mdash acaba se metamorfoseando em asno Apoacutes a transformaccedilatildeo fatiacutedica motivada pela

curiosidade e o desejo de conhecer a ars magica o jovem protagonista passa a enfrentar diversos reveses ateacute

retornar agrave forma humana o que se deu atraveacutes da intervenccedilatildeo da deusa Iacutesis

Tratamos aqui de uma obra de ficccedilatildeo escrita em prosa mdash algo que se considera inovador para a Roma da

eacutepoca de Apuleio3 mdash e que modernamente ainda que natildeo sem polecircmica (HARRISON 1999 p xi) eacute

classificada no gecircnero ldquoromancerdquo antigo4 Ora a natureza episoacutedica do texto convida o leitor a apreciar

diferentes histoacuterias (as uariae fabulae que o narrador propotildee logo no iniacutecio da obra Apul Met 11) Todas

elas segundo salientamos podem ser alinhavadas na narrativa principal isto eacute nas aventuras de Luacutecio Essa

afirmaccedilatildeo nos parece necessaacuteria porque nas leituras que foram feitas ao longo dos seacuteculos estudiosos nem

sempre vislumbraram coesatildeo e coerecircncia no texto apuleiano

Ateacute o iniacutecio do seacuteculo XX a criacutetica sobre a ficccedilatildeo apuleiana pouco ou nada valorizava o caraacuteter fragmentaacuterio

da narrativa considerando-a sobretudo desarmocircnica Nesse sentido as Metamorfoses apresentariam uma

linha narrativa confusa e inconsistente em muito devido agrave referida sobreposiccedilatildeo de episoacutedios (PERRY 1967

HARRISON 2003)5 Dentre as criacuteticas agrave ficccedilatildeo apuleiana uma diz respeito mais diretamente agrave recepccedilatildeo as

Metamorfoses eram destinadas a um puacuteblico pouco exigente os leitores do tempo de Apuleio (CAVALLO

1997)

Hoje em dia se sabe que a ficccedilatildeo apuleiana superou sua eacutepoca e teve amplo impacto sobre autores ceacutelebres

posteriores como Petrarca (1304-1374) Boccaccio (1313-1375) Shakespeare (1564-1616) para citar

apenas alguns renascentistas mais famosos No portuguecircs destacam-se nada menos que Fernando Pessoa

(1888-1935) e Machado de Assis (1839-1908) Tudo isso evidencia a recepccedilatildeo bastante profiacutecua que teve a

obra em tempos modernos Eacute notoacuterio que as dificuldades em reconstituir o horizonte de expectativa

1 Sobre a dataccedilatildeo das Metamorfoses apuleianas cf Harrison (2000 p 9-10) e Barreto Cardoso (2018 p 27) 2 Vale notar que o duplo tiacutetulo da ficccedilatildeo apuleiana jaacute aparece em sua recepccedilatildeo na Antiguidade Tardia como testemunham leitores studiosissimi no seacuteculo IV Santo Agostinho (cf De Ciuitate Dei 18 18) se refere agrave ficccedilatildeo apuleiana como Asinus Aureus (SANDY 1997 p 233 HARRISON 1999 p xxvi-xxvii) Em seguida Fulgecircncio (seacuteculos V-VI dC) menciona ambos os tiacutetulos (Metamorfoses em Myth 36 e Expos Serm Ant 36 O Asno de Ouro em Expos Serm Ant 17 40) O tiacutetulo Metamorfoses (Metamorphoseon libri) eacute o uacutenico mencionado nos manuscritos no entanto a expressatildeo O Asno de Ouro costuma ser mais empregada cf discussatildeo em Harrison (2000 p 210-1) e Barreto Cardoso (2018 p 28) 3 Para um panorama dos leitores antigos das Metamorfoses apuleianas cf Barreto Cardoso (2018) 4 Dentre os ldquoromancesrdquo produzidos em Roma antiga a obra de Apuleio eacute a uacutenica transmitida integralmente uma vez que o Satyricon de Petrocircnio (seacuteculo I d C) apresenta trechos lacunares e corrompidos (CONTE 1994 p 559) Sobre o gecircnero ldquoromancerdquo antigo de modo geral cf Callebat (1998) Harrison (1999) 5 Para um panorama das criacuteticas cf Teixeira (2000) que analisa em especial o papel de Perry (1967) no debate sobre a obra Cf ainda Barreto Cardoso (2018 p 29)

[69]

previsto na Teoria de Recepccedilatildeo de Jauss (1967) de uma obra tal como as Metamorfoses de Apuleio se devem

agrave escassez de testemunhos acerca de sua recepccedilatildeo coeva algo comum agraves demais ficccedilotildees em prosa da

Antiguidade (HARRISON 2003 CARVER 2007) Aleacutem disso eacute verdade que o primeiro registro

remanescente sobre Apuleio uma carta escrita por Seacutetimo Severo (imperador de Roma entre 193 e 211 dC)

natildeo eacute nada elogioso para o leitor de Apuleio

Maior fuit dolor quod illum pro litterato laudandum plerique duxistis cum ille neniis quibusdam anilibus occupatus inter Milesias Punicas Apulei sui et ludicra litteraria consenesceret (Septimus Severus SHA Clod Alb 12 12 grifos nossos)

Foi uma dor maior para mim que muitos de vocecircs consideraram que ele merece louvor como homem de literatura ao passo que ele se ocupava com certos absurdos ou outras ninharias para mulheres velhas e estava ficando senil entre os contos puacutenicos milesianos de seu caro Apuleio e tais trivialidades literaacuterias (Traduccedilatildeo nossa)

Posteriormente o parecer de Macroacutebio (entre os seacuteculos IV-V dC) em O sonho de Cipiatildeo (Somnium Scipionis)

condena a ficccedilatildeo em prosa propriamente dita ao consideraacute-la mera provocaccedilatildeo destinada a um puacuteblico

menos instruiacutedo

Auditum mulcent hellipargumenta fictis casibus amatorum referta quibus vel multum se Arbiter exercuit vel Apuleium non nunquam lusisse miramur Hoc totum fabularum genus quod solas aurium delicias profitetur e sacrario suo in nutricum cunas sapientiae tractatus eliminat (Macrobius Somn 1 2 8)

Nossa audiccedilatildeo fica encantada por enredos cheios das vicissitudes fictiacutecias dos amantes sobre as quais Petrocircnio despendeu muito trabalho e com os quais nos surpreendemos que frequentemente mesmo Apuleio se tenha divertido Todo esse tipo de histoacuteria uma vez que serve apenas aos prazeres dos ouvidos o tratado da sabedoria expulsa de seu santuaacuterio e impele aos berccedilos das amas (Traduccedilatildeo nossa)

Referida como ldquoninharias para mulheres velhasrdquo e ldquoliteratura de berccedilos de amasrdquo uma menccedilatildeo francamente

pejorativa nas passagens acima referidas a ficccedilatildeo em prosa de Apuleio era desde seus primeiros registros

remanescentes apontada como sendo destinada a um puacuteblico menos instruiacutedo do que senadores e autores

dignos desse nome6 No entanto conforme sugerimos na proacutexima seccedilatildeo o texto apuleiano contava tambeacutem

com a possibilidade de ter um leitor um pouco mais sofisticado

O lector nas Metamorfoses

O leitor eacute abertamente referido pela narrativa ao longo dos onze livros que compotildeem as Metamorfoses de

Apuleio A seguir elencaremos uma amostra de passos em que a menccedilatildeo a tal puacuteblico eacute mais expliacutecita

Vejamos inicialmente como isso se daacute no proacutelogo da obra

6 Sobre a menccedilatildeo aos contos milesianos nessa passagem cf Barreto Cardoso (2018 p 32)

[70]

At ego tibi sermone isto Milesio uarias fabulas conseram auresque tuas beniuolas lepido susurro permulceam mdash modo si papyrum Aegyptiam argutia Nilotici calami inscriptam non spreueris inspicere mdash figuras fortunasque hominum in alias imagines conuersas et in se rursum mutuo nexu refectas ut mireris (Apul Met 11 grifos nossos)

Com esta minha narrativa mileacutesia eu gostaria de entrelaccedilar para ti histoacuterias variadas e afagar os teus bem-dispostos ouvidos com um elegante sussurro ndash desde que natildeo desdenhes lanccedilar os olhos sobre um papiro egiacutepcio escrito com a sutileza de um caacutelamo do Nilo Iraacutes apreciar com espanto as metamorfoses operadas na figura e na fortuna de seres humanos que assumiratildeo outras formas ateacute retomarem novamente a condiccedilatildeo inicial no termo de uma cadeia de reciacuteprocas ligaccedilotildees

No proacutelogo das Metamorfoses (11) mais precisamente na expressatildeo inicial at ego tibi (literalmente ldquomas eu a

tirdquo) jaacute se apontou que o emprego do dativo eacutetico tibi seguido do pronome ego logo no iniacutecio da narrativa

associa o falante do proacutelogo diretamente ao seu destinataacuterio7 No final desse passo lecirc-se

En ecce praefamur ueniam siquid exotici ac forensis sermonis rudis locutor offendero Iam haec equidem ipsa uocis immutatio desultoriae scientiae stilo quem accessimus respondet Fabulam Graecanicam incipimus Lector intende laetaberis (Apul Met 11 grifos nossos)

E desde jaacute apelo agrave tua benevolecircncia para o caso de te ofender a sensibilidade ao exprimir-me com pouca elegacircncia na liacutengua do foacuterum para mim estrangeira Aliaacutes estas variaccedilotildees de linguagem ateacute vecircm ao encontro do gecircnero que eu cultivo como um cavaleiro que salta de montada ndash pois eacute da Greacutecia que provem a histoacuteria que passarei a narrar Leitor presta atenccedilatildeo vais ficar deleitado (Trad de D Leatildeo 2007 grifos nossos)

Por meio das palavras lector intende laetaberis (isto eacute ldquoleitor presta atenccedilatildeo vais ficar deleitadordquo) conclui-

se portanto a promessa de entreter o leitor por meio de histoacuterias variadas (uarias fabulas) Por um lado tal

anuacutencio da variedade pode levar a pressupor num primeiro momento uma menor exigecircncia quanto agrave leitura

que poderia ser mais dispersa menos aprofundada mdash tal como a obra foi considerada por muito tempo pelos

estudiosos Mas por outro lado a riqueza de detalhes e uma cadeia complexa de possiacuteveis interpretaccedilotildees

presentes no proacutelogo tambeacutem exigem a atenccedilatildeo do leitor (lector intende) Essa passagem das Metamorfoses

efetivamente se tornou desde o seacuteculo XX objeto de grande interesse nas pesquisas sobre a obra

Apoacutes o proacutelogo a proacutexima menccedilatildeo direta ao leitor ocorre apenas no livro nove das Metamorfoses (9 30)

Sed forsitan lector scrupulosus reprehendens narratum meum sic argumentaberis Vnde autem tu astutule asine intra terminos pistrini contentus quid secreto ut adfirmas mulieres gesserint scire potuisti Accipe igitur quem ad modum homo curiosus iumenti faciem sustinens cuncta quae in perniciem pistoris mei gesta sunt cognoui (Apul Met 930 grifos nossos)

Mas talvez leitor escrupuloso tu venhas criticar a minha narraccedilatildeo com argumentos deste tipo ldquoE entatildeo como eacute que tu um burro tatildeo astuto mas que estava encerrado no interior do moinho conseguiste saber o que essas mulheres andavam a maquinar ainda por cima em segredo como tu mesmo afirmasrdquo Pois fica entatildeo a conhecer a forma como este homem

7 Para uma anaacutelise mais completa das referecircncias ao narrador e ao leitor no proacutelogo cf Barreto Cardoso (2018)

[71]

curioso disfarccedilado embora sob o aspecto de um jumento se inteirou de toda a trama urdida para causar a perdiccedilatildeo do meu moleiro (Trad de D Leatildeo 2007 grifos nossos)

O narrador Luacutecio nessa ocasiatildeo conta a histoacuteria de um adulteacuterio segundo a qual um moleiro apoacutes descobrir

as traiccedilotildees de sua mulher e pedir o divoacutercio eacute assassinado por uma feiticeira a pedido da esposa Em tal

passagem por um lado o leitor imaginado pelo narrador eacute caracterizado como escrupuloso (lector

scrupulosus) a ponto de poder questionar sobre a proacutepria coerecircncia ou verossimilhanccedila da narrativa Por

outro lado qualificar o narrador Luacutecio como curiosus (ldquoesse homem curioso disfarccedilado embora sob o aspecto

de um jumentordquo) em meio a tatildeo chamativo episoacutedio tem um efeito reciacuteproco de enfatizar a curiosidade do

leitor e despertar o interesse na narraccedilatildeo

Em outro passo a referecircncia a um leitor criacutetico se daraacute natildeo pelo substantivo lector e sim pelo pronome

indefinido nequis (mais precisamente nequis reprehendat isto eacute ldquoque ningueacutem me repreendardquo) Ali o

narrador interrompe sua digressatildeo filosoacutefica quando pressupotildee certa insatisfaccedilatildeo do puacuteblico (Apul Met

1033)

Contudo antes disso o leitor jaacute fora adjetivado e dessa vez eacute qualificado como um optime lector isto eacute um

leitor oacutetimo ldquobenignordquo (lector optime Apul Met 102) Nesta menccedilatildeo o lector eacute convidado pelo narrador a

ldquotrocar os socos rasteiros pela elevaccedilatildeo do coturnordquo (a socco ad coturnum ascendere) Com referecircncia aos

calccedilados emblemaacuteticos de cada gecircnero dramaacutetico (o soco para o cocircmico e o coturno para o traacutegico) o leitor

eacute advertido que leraacute daquele trecho em diante algo proacuteximo de uma ldquotrageacutediardquo (tragoedia em que se usavam

coturnos) natildeo mais uma peccedila ou histoacuteria (fabula) qualquer

Eacute na uacuteltima passagem em que o termo lector eacute mencionado que se pressupotildee seu interesse (isto eacute seu studium

referido pelo adjetivo studiosus) Trata-se de um interesse quanto a novos acontecimentos ocorridos na

ocasiatildeo em que Luacutecio havia sido convertido agrave religiatildeo Isiacuteaca e retomado sua forma humana Nesse momento

novamente se interrompe a narrativa dos fatos o que evoca uma possiacutevel intervenccedilatildeo do leitor

Quaeras forsitan satis anxie studiose lector quid deinde dictum quid factum dicerem si dicere liceret cognosceres si liceret audire Sed parem noxam contraherent et aures et lingua ltista impiae loquacitatisgt illae temerariae curiositatis (Apul Met 1123 grifos nossos)

Talvez oacute leitor desejoso de aprender tu te perguntes com ansioso interesse o que depois se disse e se fez Di-lo-ia se fosse liacutecito dizecirc-lo e tu ficarias a saber se te fosse liacutecito escutar Poreacutem tanto a liacutengua como os ouvidos iriam incorrer em falta idecircntica aquela por iacutempia loquacidade estes por temeraacuteria curiosidade (Trad de D Leatildeo 2007 levemente modificada por noacutes grifos nossos)

Esta derradeira menccedilatildeo ao lector na obra Metamorfoses contrasta com o que se diz daquela no proacutelogo da

obra trecho em que notadamente se evoca os ouvidos do leitor A ldquotemeraacuteria curiosidaderdquo (illae temerariae

curiositatis) eacute um elemento que como apontamos em estudo anterior (BARRETO CARDOSO 2017)

caracteriza natildeo apenas o narrador Luacutecio como tambeacutem a personalidade de Psiquecirc Para aleacutem dos possiacuteveis

[72]

significados que o termo curiositas possa evocar dentro da narrativa8 tal analogia mostra-se expressiva Isso

porque a curiositas eacute a nosso ver o fio condutor das Metamorfoses que permite precisamente costurar os

pequenos episoacutedios que as compotildeem Essa analogia entre o narrador principal e a personagem de um dos

episoacutedios mais importantes dentre os que integram o romance como um todo eacute aqui estendida ao proacuteprio

leitor Conforme DeFillipo (1999 p 276 traduccedilatildeo nossa) afirma

O fato de que Luacutecio e o scrupulosus lector teriam recebido uma puniccedilatildeo igual por meio da curiositas sugere que ambos satildeo igualmente culpados por ela Mas eacute difiacutecil compreender se a curiositas eacute mera curiosidade pois ao narrar acerca dos ritos isiacuteacos Luacutecio natildeo estaria satisfazendo seu proacuteprio desejo de conhecer mas antes os nossos como leitores do romance 9

Consideraccedilotildees finais

Ao tratar dos excertos referentes ao leitor no texto das Metamorfoses eacute possiacutevel constatar que a curiositas

mdash tema fundamental e recorrente no enredo mdash eacute tambeacutem associada ao processo narrativo Isso ocorre

quanto agrave sua produccedilatildeo (embasando mais de uma vez a verossimilhanccedila relativa agrave autoridade do narrador)

mas tambeacutem quanto agrave sua recepccedilatildeo na medida em que tambeacutem assim o lector eacute caracterizado Ocorre pois

a identificaccedilatildeo do leitor com o proacuteprio narrador-personagem esse eacute um dos efeitos da proximidade entre

Luacutecio Psiquecirc e o lector (scrupulosus studiosus optimus) ressaltada pelo vieacutes da curiosidade

Eacute tentador reconhecer que haveria aqui mdash nos moldes do que defendem teoacutericos modernos na linha da

Teoria da Recepccedilatildeo (JAUSS 1994 ISER 2002 [1989]) ou da ldquoReader-response criticismrdquo (FISH 1992) mdash um

aceno para o reconhecimento da funccedilatildeo que o leitor teria na narrativa do romance apuleiano Eacute de se

perguntar se tal reconhecimento apontaria mesmo para uma dependecircncia do papel do leitor isto eacute para se

inferir que Apuleio reconhecia que a tal leitor caberia dar coesatildeo ele mesmo agraves mais frouxas relaccedilotildees entre

as fabulae

Esses aspectos mereceratildeo ainda uma investigaccedilatildeo mais aprofundada em nossa pesquisa levando em conta

tambeacutem referecircncias menos diretas ao leitor ao longo do texto apuleiano e em outra fase o papel do tradutor

como leitor privilegiado da obra No entanto por ora dentre os efeitos da identificaccedilatildeo narradorndash

personagensndashleitor na estrutura e interpretaccedilatildeo desse romance antigo jaacute podemos constatar um aspecto

bastante significativo para sua recepccedilatildeo ao transferir tal caracteriacutestica para o leitor a ficccedilatildeo apuleiana

tematiza o proacuteprio ato de leitura e sua permanente metamorfose

8 Cf Barreto Cardoso (2017) 9 ldquoThe fact that Lucius and the scrupulosus lector would contract an equal punishment for curiositas suggests that they are both equally guilty of it But this is difficult to understand if curiositas is mere curiosity for in telling about the Isiac rites Lucius would not be satisfying his own desire to know but rather ours as readers of the novelrdquo

[73]

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A

construccedilatildeo do eacutethos do autor no Octavius de Minuacutecio Feacutelix

Marcela da Penha Coco

marcelapcocogmailcom

Neste estudo discutimos alguns aspectos da construccedilatildeo do eacutethos

de Minuacutecio Feacutelix no preacircmbulo de sua obra Octavius Nosso

objetivo ao analisar como Minuacutecio Feacutelix articula as relaccedilotildees de

amizade entre as personagens apresentadas no diaacutelogo Octavius eacute

demonstrar que tornando as personagens modelos claramente

dicotocircmicos o autor constroacutei de forma sutil sua posiccedilatildeo em relaccedilatildeo

ao discurso apologeacutetico cristatildeo enunciado ao longo da obra de

modo a utilizar de estruturas retoacuterico-discursivas claacutessicas

conhecidas e esperadas do puacuteblico letrado do periacuteodo e portanto

a expressar uma autoridade persuasiva Visamos aleacutem disso

demostrar que o eacutethos construiacutedo ao longo do preacircmbulo de

Octavius tem uma premissa clara ser compatiacutevel com o objetivo de

criar uma identidade cristatilde para os adeptos do cristianismo

primitivo no final do seacuteculo II e iniacutecio do III de nossa era Para esse

fim nos embasaremos estudos da Retoacuterica Antiga parte essencial

da educaccedilatildeo ou paideia antiga e dos Estudos do Discurso

contemporacircneos nossos

A partir do seacuteculo IV os entrelaccedilamentos de Estado Romano e

Igreja cristatilde se tornam mais amplos e complexos se por um lado

haacute o interesse em manter relaccedilotildees e posiccedilotildees por aqueles

pertencentes agrave Igreja por outro existiam perspectivas adversas a

esses interesses Das Como defende Cameron (1991 p 129-130)

escrever acerca do governo imperial nos seacuteculos IV e V era versar

[75]

sobre o imperador daiacute a produccedilatildeo de diversos panegiacutericos praacutexis que natildeo foi ignorada no desenvolvimento

da retoacuterica cristatilde que por sua vez antes de optar por uma via de confronto fez a escolha por uma que

minimizava as tensotildees demostrando a importacircncia do apoio imperial para a Igreja cristatilde Tal esforccedilo pode

ser observado no empenho para equalizar as praacuteticas cristatildes aos interesses da poliacutetica imperial

principalmente no governo de Constantino I Por isso podemos dizer que no seacuteculo IV jaacute havia um

determinado aparato que permitia posiccedilotildees menos veladas e mais consistentes no sentido da possibilidade

de manifestaccedilotildees independentes da posiccedilatildeo ocupada pelo indiviacuteduo que tomasse para si a tarefa de emitir

um discurso fosse ele favoraacutevel ou contraacuterio agrave Igreja cristatilde tendo isso se dado sem duacutevida atraveacutes do uso

da formaccedilatildeo educacional retoacuterica compartilhada por cristatildeos e politeiacutestas (CAMERON 1991 p 129-130)

No entanto o contexto do seacuteculo IV eacute radicalmente distinto de periacuteodos anteriores como o que circundou a

produccedilatildeo da obra Otaacutevio de Minuacutecio Feacutelix Nosso objeto de pesquisa foi produzido em um contexto de

distintas praacuteticas religiosas entre os seacuteculos II e III no qual Minuacutecio Feacutelix se esforccedilou na tentativa por

equilibrar o peso da tradiccedilatildeo politeiacutesta muito presente na sociedade romana frente agrave nova praacutetica religiosa

cristatilde Para Marta Alesso (2006 p 32) o seacuteculo II eacute significativo no que diz respeito a um esforccedilo mais

concentrado para a produccedilatildeo de discursos de cunho apologeacutetico cristatildeo em funccedilatildeo das querelas fruto das

imagens discursivas produzidas tanto por cristatildeos acerca dos praticantes da religio1 politeiacutesta quanto por

estes em relaccedilatildeo aos primeiros Nesse sentido argumenta Alesso (2016 p 32) foi imperativo aos apologistas

cristatildeos adequarem seus discursos ao ambiente e aos ouvintes para evidenciarem uma imagem do

cristianismo contraacuteria agrave produzida pelos autores pagatildeos

Para Moreschini e Norelli (2014 p 442) a proviacutencia romana da Aacutefrica teve elevada importacircncia nos seacuteculos

II e III no contexto do desenvolvimento da literatura cristatilde tendo o processo de difusatildeo do cristianismo

exigido o enfrentamento da ldquonecessidade de dirigir-se a uma classe social elevada e interessada na culturardquo

(MORESCHINI NORELLI 2014 p 442) Na perspectiva dos autores (MORESCHINI NORELLI 2014 p

442) a principal caracteriacutestica da proviacutencia era a ldquoforte romanizaccedilatildeordquo elemento que foi expresso nas

1 O termo latino religio traduzido com frequecircncia por religiatildeo exige a tentativa de tornar mais niacutetido as distinccedilotildees de seu uso na Antiguidade Claacutessica sob o ponto de vista dos praticantes dos cultos politeiacutestas e o uso proposto pelos autores cristatildeos Para Cristiane Azevedo (2010 p 91-92) o deslocamento que ocorre no significado do termo religio foi importante para atender o anseio de demarcar fronteiras entre os cultos politeiacutestas e cristatildeos Nelson Bondioli (2014 p 21) aponta que ldquoo termo podia apresentar duas acepccedilotildees dependendo do autor que o utilizava uma conectando-o ao termo religare no sentido da existente ligaccedilatildeo entre os homens e os deuses e outra ao termo religere enfatizando a necessidade da devida observacircncia religiosardquo Portanto religere estaacute intrinsicamente ligado ao sentido defendido por Ciacutecero no diaacutelogo De Natura Deorum obra na qual ele afirma a superioridade dos romanos na observacircncia dos cultos aos deuses (Cic Nat Deo II 8) Em contraponto os autores cristatildeos optaram pelo uso na acepccedilatildeo religere Para Carlo Prandi (1999 p 256) os escritores cristatildeos como Lactacircncio (240-320 EC) buscaram ldquoredirecionar o termo religio de modo que fosse capaz de exprimir tanto o conceito de transcendecircncia segundo o pensamento cristatildeo quanto ndash mais do que o comportamento do crente ndash a natureza da relaccedilatildeo de feacute instaurada pelo cristianismo entre o humano e o niacutevel divinordquo Dessa maneira o uso cristatildeo do termo religio se distancia da acepccedilatildeo que prima pelo zelo aos ritos associados aos cultos deslocando-se para a ligaccedilatildeo que os cristatildeos deveriam ter ou desenvolver com a divindade cristatilde

[76]

manifestaccedilotildees literaacuterias cristatildes uma vez que ldquoa retoacuterica percorre profundamente as obras de todos os

escritores africanos do seacuteculo III os quais a possuiacuteam decerto jaacute antes da conversatildeordquo de modo que

O seacuteculo III dC eacute o periacuteodo em que eacute preponderante na vida cultural cristatilde a proviacutencia romana da Aacutefrica esse fato natildeo passa do natural prosseguimento em acircmbito cristatildeo de uma evoluccedilatildeo da cultura latina pagatilde que no seacuteculo II tinha sido essencialmente africana Tertuliano Minuacutecio e Cipriano satildeo equivalentes naturais no plano da cultura e da literatura cristatilde de Frontatildeo e Apuleio (MORESCHINI NORELLI 2014 p 426)

Em contraste com o final do seacuteculo II e iniacutecio do III periacuteodo estimado da escrita de Octavius no seacuteculo IV ldquoos

escritores cristatildeos tinham ousado em quase todos os gecircneros da literatura tradicionalrdquo (LEMOS 2009 p 93)

Emular os autores tradicionais natildeo deixou de ser algo valorado de forma positiva contudo

As formas tradicionais ganharam novos conteuacutedos para expressar a doutrina cristatilde polemizar comunicar dogmas [] e especialmente preservar por escrito uma memoacuteria que dava aos seguidores de Cristo um passado comum referecircncias para organizar a vida suas praacuteticas cotidianas e se posicionarem no Impeacuterio e em relaccedilatildeo ao monarca (LEMOS 2009 p 93)

O diaacutelogo Octavius tem sido classificado por muitos autores como uma apologia Johannes Quasten (2004 p

460) defende ser essa a primeira apologia produzida em Roma e situa Minuacutecio Feacutelix ao lado de importantes

nomes da histoacuteria do cristianismo como Hipoacutelito de Roma (170 ndash 235) conhecido por sua erudiccedilatildeo e

Novaciano (200 ndash 258) o primeiro teoacutelogo a escrever em liacutengua latina Quasten ainda aponta que o diaacutelogo

Octavius faz uma defesa esmerada da feacute cristatilde mas busca natildeo ser ofensivo aos praticantes dos cultos

politeiacutestas Victor Sanz Santacruz (2000 p 23) em concordacircncia com o teor apologeacutetico da obra afirma que

uma das caracteriacutesticas mais expressivas de Octavius satildeo as influecircncias literaacuterias greco-romanas de Minuacutecio

Feacutelix notaacuteveis em meio ao diaacutelogo estando entre elas Platatildeo e Ciacutecero

Argentino Cescon (2015 p 25) tambeacutem eacute categoacuterico na defesa do caraacuteter filosoacutefico religioso da obra de

Minuacutecio Feacutelix e aponta que seu objetivo eacute ldquoapologeacutetico missionaacuteriordquo Em mesma perspectiva Silva (1990 p

38) ressalta o empenho de Minuacutecio Feacutelix em propor a adesatildeo agrave praacutetica religiosa cristatilde ao longo do diaacutelogo

buscando refutar as acusaccedilotildees mais recorrentes aos cristatildeos como a de incesto e que ele ldquorestringe-se ao

objectivo de formalizar uma nova cultura que tenha como objetivo remover os obstaacuteculos agrave aceitaccedilatildeo da feacute

cristatilderdquo (SILVA 1990 p 38) Nesse quesito a nosso ver satildeo de especial relevacircncia para esclarecer quaisquer

duacutevidas em relaccedilatildeo ao conteuacutedo apologeacutetico de Octavius os testemunhos de Lactacircncio no livro V de

Instituiccedilotildees Divinas e de Satildeo Jerocircnimo na obra Sobre os Homens Ilustres pois ambos os autores apontam as

contribuiccedilotildees de Minuacutecio Feacutelix na difusatildeo e defesa da feacute cristatilde (MORESCHINI NORELLI 2005 p 213)

Entretanto usaremos o termo apologia em nosso trabalho mas natildeo como um gecircnero discursivo A apologia

natildeo era um gecircnero literaacuterio bem definido na Antiguidade como a eacutepica ou a trageacutedia Somente a partir do

seacuteculo II podemos verificar o uso do termo em sentido de defesa do discurso cristatildeo (EDWARDS et al 1999

[77]

p 1-2) Mas o termo apologia jaacute era usado em contextos distintos desde o seacuteculo IV AEC como nas obras

Apologia a Soacutecrates de Platatildeo e de Xenofonte ambas defesas do filoacutesofo (ARZANI VENTURINI 2011 p 3)

ou na Apologia de Apuleio de Madaura (125-170) defesa do processo de acusaccedilatildeo de uso de magia para

contrair matrimocircnio com uma viuacuteva de condiccedilatildeo abastada (EDWARDS et al 1999 p 3) Lima Neto (2015 p

209-228) esclarece acerca da Apologia de Apuleio de Madaura afirmando que havia outras acusaccedilotildees contra

Apuleio como as de ser eloquente e belo e de ter produzido escritos de cunho eroacutetico entre outras As

acusaccedilotildees aleacutem de irem de encontro agrave tentativa de fortalecer o suposto uso de magia para seduzir Emiacutelia

Pudentila tambeacutem traziam prejuiacutezos agrave imagem de filoacutesofo de Apuleio e consequentemente aos argumentos

utilizados em sua defesa A principal diferenccedila entre os dois exemplos mencionados claro eacute que na Apologia

a Soacutecrates natildeo haacute intenccedilatildeo de reverter a sentenccedila uma vez que esta jaacute havia sido cumprida enquanto no

caso de Apuleio o objetivo eacute promover sua absolviccedilatildeo o que corrobora a definiccedilatildeo de Marta Alesso (2006

p 32) para quem a ldquoapologia em seu princiacutepio era um discurso juriacutedico dirigido a funcionaacuterios puacuteblicosrdquo

Segundo Edwards e outros (1999 p 4) haacute uma relativa distinccedilatildeo nas produccedilotildees de cunho apologeacutetico cristatildeo

dos primeiros seacuteculos da era comum essas obras a priori natildeo se destinavam a refutaccedilotildees nem mesmo agrave

ampliaccedilatildeo do nuacutemero de adeptos ao cristianismo a preocupaccedilatildeo de tais investimentos residiria no desejo de

extinguir as duacutevidas e solidificar a escolha dos novos cristatildeos ajustando suas praacuteticas com os pressupostos

jaacute existentes como seria por exemplo a funccedilatildeo das cartas do apoacutestolo Paulo aos Coriacutentios O termo apologia

foi utilizado com maior frequecircncia para designar obras que buscam promover a defesa do discurso cristatildeo

sobretudo apoacutes o seacuteculo II (EDWARDS et al 1999 p 1) Assim a apologia passou a significar a defesa de uma

determinada causa relevante para o emissor sendo ela no caso dos escritores cristatildeos a defesa do discurso

cristatildeo Como defende Richard A Norris Jr (2004 p 36 apud SANTOS 2017 p 62-63) ldquoo objetivo de tais

escritos eram em geral persuadir as autoridades de que as frequentes perseguiccedilotildees locais eram injustas

desnecessaacuterias e indignas de governantes esclarecidosrdquo Tambeacutem havia ldquouma explicaccedilatildeo das crenccedilas das

praacuteticas e da moral cristatildes que caminhavam para uma defesa Aleacutem disso as apologias tinham em sua base

uma refutaccedilatildeo de seus criacuteticos e apresentavam o cristianismo como superior agraves demais crenccedilasrdquo (SANTOS

2017 p 62-63) Empregamos portanto o termo em nossa pesquisa para analisar a obra de Minuacutecio Feacutelix

entendendo apologia natildeo como um gecircnero discursivo mas sim como uma forma mais simples e direta de

definir o conteuacutedo exposto no Octavius atraveacutes de um diaacutelogo esse sim um gecircnero tradicional de

conhecimento de toda a elite romana

Conforme Marta Alesso (2006 p 32) o gecircnero diaacutelogo foi na segunda metade do seacuteculo II EC muito

utilizado nos discursos de refutaccedilatildeo A estrutura que permite intercalar as falas das personagens favorecia a

exposiccedilatildeo dos pontos a serem confrontados e era de domiacutenio ldquoespecialmente por aqueles educados nas

escolas gregasrdquo (ALESSO 2006 p 32) Uma vez que a formaccedilatildeo intelectual da elite romana fosse ela cristatilde

ou politeiacutesta era compartilhada o conhecimento dos paracircmetros literaacuterios valorizados era de domiacutenio de

[78]

toda a aristocracia romana e o diaacutelogo filosoacutefico como forma de debate de ideias era um gecircnero

reconhecido Para Maingueneau (2018 p 244) a fluidez do gecircnero diaacutelogo o torna adequado a contrapor

diferentes conteuacutedos e ldquosua proximidade com o intercacircmbio conversacionalrdquo favorece a exposiccedilatildeo de pontos

de vistas discordantes sem um formato riacutegido propiciando a reflexatildeo

O emprego do gecircnero diaacutelogo na literatura latina sobretudo nos diaacutelogos de reflexatildeo filosoacutefica vem da

influecircncia da literatura grega sempre fonte de inspiraccedilatildeo principalmente os autores considerados claacutessicos

Um exemplo expressivo do emprego do gecircnero na literatura grega eacute Platatildeo (427ndash347 AEC) que acumulou

entre suas obras mais de vinte diaacutelogos dentre eles Fedro O Banquete e Timeu (REIS 2016 p 1) Para

Albrecht (1997 p 447) uma das peculiaridades dos diaacutelogos platocircnicos eacute a exposiccedilatildeo das falas das

personagens de maneira contiacutenua forma semelhante agrave que observamos no diaacutelogo Octavius apontado como

sendo um represente da literatura cristatilde (ALBRECHT 1997 p 447) Na literatura latina jaacute podemos

encontrar o gecircnero diaacutelogo sendo empregado por Ciacutecero Para Giuseppe Cambiano (2010 p 272) os

diaacutelogos de Ciacutecero foram compostos seguindo estrutura semelhante ao ldquoprocedimento judiciaacuteriordquo e que

quanto ao conteuacutedo este ldquonatildeo eacute constituiacutedo por temaacuteticas ou argumentaccedilotildees radicalmente novas com

respeito agravequelas jaacute elaboradas pela tradiccedilatildeo filosoacutefica gregardquo A tiacutetulo de exemplo podemos apontar o

diaacutelogo entre Veleio Lucilio Blabo e Cota no De Natura Deorum escrito em 45 AEC que traz as trecircs correntes

filosoacuteficas o epicurismo defendido pelo primeiro o estoicismo representado pelo segundo e por fim Cota

fazendo a defesa da academia (VENDEMIATTI 2003 p 12)

Todos os membros das elites do Impeacuterio Romano que passavam por algum niacutevel de escolaridade teriam

portanto familiaridade com o diaacutelogo como gecircnero apropriado para a filosofia e para a expressatildeo de

conceitos Para Joseacute Joaquim Pereira Melo (2011 p 37) a formaccedilatildeo educacional dos cristatildeos eacute resultado da

integraccedilatildeo que ocorreu entre a paideiacutea grega que congregava todos os valores formativos de virtude

acumulados pela tradiccedilatildeo por meio da literatura grega e da biacuteblia2 Esse equiliacutebrio entre educaccedilatildeo claacutessica e

doutrina cristatilde eacute fruto da compreensatildeo de que um trabalho de seleccedilatildeo e adaptaccedilatildeo dos elementos culturais

claacutessicos poderia gerar proveito para o cristianismo Contudo ldquoo ideal religioso dos cristatildeos estava alinhado

2 Segundo Jaeger (2018 p 351) a siacutentese da paideiacutea eacute uma educaccedilatildeo eacutetica e poliacutetica pois ldquonos tempos claacutessicos eacute essencial a ligaccedilatildeo entre a alta educaccedilatildeo e a ideia do Estado e da sociedaderdquo O uso do termo paideia eacute identificado a partir do V AEC Para Jaeger (2018 p 23) isso significa que para compreender a formaccedilatildeo educacional grega em sua amplitude eacute necessaacuterio recuar ao periacuteodo anterior a seu surgimento Ainda em sua perspectiva o ldquotema essencial da histoacuteria da formaccedilatildeo grega eacute antes o conceito de areteacute que remonta a tempos mais antigos [] a palavra ldquovirtuderdquo na sua acepccedilatildeo natildeo atenuada pelo uso moral e como expressatildeo do mais alto ideal cavalheiresco unido a uma conduta cortecircs e distinta e ao heroiacutesmo guerreiro talvez pudesse exprimir o sentido da palavra gregardquo E assim atraveacutes da expansatildeo do significado e da importacircncia do termo paideiacutea e ao relacionaacute-lo agrave ldquomais alta areteacute humanardquo pode-se combinar o ldquoconjunto de todas as exigecircncias ideais fiacutesicas e espirituais [] no sentido de uma formaccedilatildeo espiritual conscienterdquo (JAEGER 2018 p 335)

[79]

com a formaccedilatildeo cultural claacutessica mas sem se esquecer que a segunda deveria estar agrave serviccedilo da primeirardquo

(MELO 2011 p 40)

Esse ciacuterculo que inclui a formaccedilatildeo intelectual a seleccedilatildeo a adaptaccedilatildeo e o compartilhamento dos saberes pela

aristocracia romana natildeo eacute novidade no mundo romano Nos termos de Jaeger foi ldquodas necessidades mais

profundas da vida do Estado que nasceu a ideia da educaccedilatildeo a qual reconheceu no saber a nova e poderosa

forccedila espiritual daquele tempo para a formaccedilatildeo de homens e a pocircs a serviccedilo dessa tarefardquo (JAEGER 2018 p

337)

Jaeger (2018 p 339) pinta um cenaacuterio em que o aprendiz contava com um preceptor que recebia pagamento

pelos preciosos serviccedilos prestados Podemos de antematildeo concluir que uma vez que o acesso era

prerrogativa da aristocracia eram os interesses desse grupo social que detinha posiccedilotildees expressivas na

estrutura estatal objetos de demanda nas atividades desempenhadas na atuaccedilatildeo puacuteblica A educaccedilatildeo

aristocrata na Greacutecia e depois em Roma centrava-se no uso puacuteblico da palavra com os corretos gecircneros

modos e formas aprendidos na escola e reconhecidos pelos pares em suma era uma educaccedilatildeo retoacuterico-

literaacuteria Aquele que a detinha estaria apto ao ofiacutecio de enunciar tendo sido esse tipo de ensino aplicado

tambeacutem ao discurso cristatildeo (MELO 2011 p 33-45) Eacute portanto nesse ciacuterculo de formaccedilatildeo intelectual que

situamos Minuacutecio Feacutelix autor de Octavius

A biografia de Minuacutecio Feacutelix eacute bem sucinta pois sabemos muito pouco a seu respeito Octavius eacute a uacutenica obra

conhecida do autor na qual podemos encontrar algumas informaccedilotildees a seu respeito sendo dentre elas o

dado de que ele vivia em Roma verificado na ocasiatildeo da visita do amigo que daacute nome agrave obra (Oct 21) Price

(1999 p127) respaldado por uma fala de Ceciacutelio defende que provavelmente Minuacutecio Feacutelix fosse natural

do norte da Aacutefrica o que o autor natildeo contradiz ao longo da obra3 Temos tambeacutem atraveacutes de Lactacircncio (240

ndash 320) no livro V da obra Instituiccedilotildees Divinas a informaccedilatildeo de que Minuacutecio Feacutelix era advogado dispunha de

prestiacutegio em seu meio social e que sua obra respondia a uma necessidade latente como afirma

Segue-se que a sabedoria e a verdade estatildeo necessitadas de uma forma adequada E se casualmente pessoas cultas se dedicam elas natildeo satildeo suficientes para defendecirc-las Entre as que conheccedilo estaacute Minuacutecio Feacutelix advogado notaacutevel entre os de sua cidade seu livro intitulado Otaacutevio demonstra o bom defensor da verdade que poderia ser se tivesse se dedicado totalmente a esta missatildeo (Lac Div Inst 521-22 traduccedilatildeo nossa)

A referecircncia agrave obra de Minuacutecio Feacutelix eacute precedida de uma inflamada criacutetica na qual o apologista argumenta

que a rejeiccedilatildeo de muitos ao discurso cristatildeo eacute fundamentada na apreciaccedilatildeo ao discurso eloquente Lactacircncio

argumenta que isso se devia ao fato de aqueles considerados saacutebios e cultos apreciarem ouvir e ler conteuacutedos

que lhe proporcionassem gozo pela eloquecircncia mesmo que esse tema natildeo exaltasse o bem e que suplantasse

3 A fala de Ceciacutelio (Oct 96) ldquonosso concidadatildeo de Cirtardquo eacute uma referecircncia a Frontatildeo orador natural da cidade mencionada

[80]

a verdade em sua oacutetica que advoga sobre a verdade cristatilde (Div Inst 515-20) Minuacutecio Feacutelix eacute lembrado

ainda por Satildeo Jerocircnimo (347-419) que faz alusatildeo agrave erudiccedilatildeo do autor e a uma segunda obra de autoria dele

(SANTACRUZ 2000 p 5)4

Em linhas gerais Octavius eacute um diaacutelogo cujo tema geral eacute motivado por uma demonstraccedilatildeo de reverecircncia agrave

divindade tradicional Serapis O texto compreende a fala de trecircs personagens Ceciacutelio praticante da religio

politeiacutesta Otaacutevio adepto ao cristianismo e o proacuteprio autor Minuacutecio Feacutelix que atua como mediador do

diaacutelogo que eacute disposto em quatro momentos a saber preacircmbulo discurso de Ceciacutelio intervenccedilatildeo do

mediador e discurso de Otaacutevio Para fins deste trabalho nos deteremos apenas em alguns aspectos do

preacircmbulo pois eacute nas paacuteginas iniciais da obra que Minuacutecio Feacutelix busca estabelecer alguns pontos de

importacircncia inclusive uma identidade vaacutelida para os adeptos do cristianismo

O primeiro aspecto que nos chama a atenccedilatildeo eacute a disparidade existente quando da descriccedilatildeo das duas

personagens que apresentaratildeo seus pontos de vista no decorrer do diaacutelogo apologeacutetico Isso se manifesta

nos adjetivos elencados para fazer menccedilatildeo a Otaacutevio que eacute apresentado como ldquocompanheiro fideliacutessimordquo

(fidelissimi contubernalis) ldquodouto e santordquo (eximius et sanctus) enquanto Ceciacutelio eacute apresentado como ldquoainda

ligado a vaidades supersticiosasrdquo (superstitiosis vanitatibus etiamnunc inhaerentem) (Oct 11-4)5 Mais adiante

o perfil traccedilado para Otaacutevio inclui menccedilatildeo agrave sua famiacutelia composta por sua esposa e filhos Estes recebem

especial atenccedilatildeo mencionados por serem agradaacuteveis e apesar de pequenos e ainda falarem de forma

hesitante o que diziam expressava o que ldquohavia de mais docerdquo (loquellam ipso offensantis linguae fragmine

dulciorem)6 A uacuteltima linha do trecho eacute reservada a Ceciacutelio poreacutem para registrar seu gesto de reverecircncia ao

passarem diante de um templo dedicado agrave divindade Seraacutepis (Oct 21-4)7

A partir do gesto de Ceciacutelio o diaacutelogo se desenvolve e o texto de Minuacutecio Feacutelix segue na perspectiva de

alinhar o comportamento daqueles que jaacute eram adeptos ao cristianismo e tambeacutem promover novas adesotildees

Otaacutevio repreende severamente Minuacutecio Feacutelix por receber em sua casa e manter a seu lado nos espaccedilos

puacuteblicos um homem cujas praacuteticas seriam de pessoas ignorantes ou supersticiosas (Oct 31) Percebe-se

claramente nesse ponto a ecircnfase na dicotomia entre as duas personagens Otaacutevio ainda prossegue

alertando Minuacutecio Feacutelix que a omissatildeo deste diante da praacutetica errocircnea de Ceciacutelio ldquorecai em igual medida

sobre ambosrdquo (Oct 31)

4 Satildeo Jerocircnimo faz referecircncia a uma segunda obra Sobre o destino ou Contra os matemaacuteticos como sendo de possiacutevel autoria de Minuacutecio Feacutelix poreacutem ainda que ela tenha existido natildeo chegou a nossos dias (SANTACRUZ 2000 p 9-10) 5 Todas as citaccedilotildees da obra em portuguecircs satildeo da traduccedilatildeo proposta por Cescon (2015) 6 Natildeo podemos esquecer que a inocecircncia das crianccedilas eacute uma toacutepica cara ao cristianismo ressaltada no Novo Testamento no Evangelho de Mateus 1914 ldquoDeixai as crianccedilas e natildeo as impeccedilais de virem a mim porque de tais eacute o reino dos ceacuteusrdquo 7 Trata-se de uma deidade egiacutepcia que teve o culto expandido no mundo helecircnico e romano (SANTACRUZ 2000 p 55)

[81]

Um detalhe nos chama atenccedilatildeo na repreensatildeo de Otaacutevio ponto que caminha no sentido de corroborar o

objetivo apologeacutetico No iniacutecio do preacircmbulo Minuacutecio Feacutelix afirma que a conexatildeo resultante dos viacutenculos de

amizade existentes entre ele e Otaacutevio seria de uma ordem em que natildeo haveria quaisquer espaccedilos para

discordacircncias ou seja natildeo existiria entatildeo razatildeo para o incidente narrado adiante Contudo eacute exatamente

na relaccedilatildeo entre pares discordantes que ocorre a abertura para enunciar o discurso cristatildeo Dessa forma

Minuacutecio Feacutelix delega a Otaacutevio a tarefa de colocar em evidecircncia a propagaccedilatildeo desse discurso A nosso ver tal

articulaccedilatildeo visa conservar sua habilidade de dialogar com pessoas diversas e em espaccedilos distintos

possivelmente parte do prestiacutegio atestado por Lactacircncio como apontado anteriormente Percebemos

assim que antes mesmo de dar agraves personagens vozes e espaccedilo para suas proacuteprias falas Minuacutecio Feacutelix

cuidadosamente evoca lugares para ambos atraveacutes da demarcaccedilatildeo de perfis identitaacuterios preacutevios A questatildeo

entatildeo se potildee no campo do estabelecimento de uma identidade em oposiccedilatildeo agrave outra ou seja a do cristatildeo e a

do politeiacutesta

No que tange ao estabelecimento das identidades Kathryn Woodward nos lembra que

As identidades satildeo fabricadas por meio da marcaccedilatildeo da diferenccedila Essa marcaccedilatildeo da diferenccedila ocorre tanto por meio de sistemas simboacutelicos de representaccedilatildeo quanto por meio de forma de exclusatildeo social A identidade pois natildeo eacute o oposto da diferenccedila a identidade depende da diferenccedila (WOODWARD 2018 p 40 grifo nosso)

Em concordacircncia com Woodward Tomaz Tadeu da Silva (2014 p 76) afirma que o processo de construccedilatildeo

da identidade assim como da diferenccedila depende de ldquocriaccedilotildees sociais e culturaisrdquo ou seja ambas satildeo forjadas

em meio aos espaccedilos de conviacutevio social e de exerciacutecio de poder A criaccedilatildeo de novos marcadores de identidade

tem como consequecircncia direta a delimitaccedilatildeo do diferente e na obra Octavius o diferente se manifesta na

figura de Ceciacutelio que tem praacuteticas religiosas distintas das de Otaacutevio apontado jaacute na abertura do texto como

modelo a ser seguido pela voz de Minuacutecio Feacutelix

Essa concordacircncia de Minuacutecio Feacutelix isto eacute a voz construiacuteda na obra (e natildeo autor empiacuterico ao qual natildeo temos

acesso) com a marcaccedilatildeo de uma identidade cristatilde eacute feita atraveacutes da construccedilatildeo e da manifestaccedilatildeo de um

eacutethos do autor Minuacutecio Feacutelix na obra Antes mesmo do iniacutecio do diaacutelogo e das falas de Ceciacutelio e Otaacutevio haacute a

construccedilatildeo de um eu que discursa o eu de Minuacutecio tatildeo elaborado como qualquer uma das personagens e tatildeo

efetivo no convencimento quanto elas

O eacutethos do enunciador eacute tambeacutem um instrumento retoacuterico-discursivo Dominique Maingueneau (2018 p

272) afirma que a edificaccedilatildeo de um eacutethos eacute efeito de interaccedilotildees diversas e ldquoimplica uma maneira de se

movimentar no espaccedilo socialrdquo O enunciador se move em direccedilatildeo a compreender quais satildeo as bases vaacutelidas

para alcanccedilar o ecircxito pretendido uma vez que ldquoo destinataacuterio o identifica com base num conjunto difuso de

representaccedilotildees sociais avaliadas de modo positivo ou negativo de estereoacutetipos que a enunciaccedilatildeo contribui

para afirmar ou modificarrdquo (MAINGUENEAU 2018 p 272) Na medida em que Minuacutecio Feacutelix afirma

[82]

concordar com todos os posicionamentos de Otaacutevio seu eacutethos se apresenta de forma intolerante para com o

diferente marcando assim mais uma vez sua posiccedilatildeo na obra E embora sua praacutetica possa ser a escolha por

uma posiccedilatildeo intermediaria mdash pois Minuacutecio Feacutelix sustenta no discurso ser amigo tanto de Ceciacutelio quanto de

Otaacutevio mdash ele age no sentido de fazer dessa posiccedilatildeo aparente um mecanismo para ampliar a abrangecircncia do

discurso contido na obra reafirmando os valores presentes no eacutethos de juiz imparcial manifesto desde o

princiacutepio do diaacutelogo

Maingueneau (20018 p 72) especiacutefica ainda que no processo de construccedilatildeo do eacutethos ocorre a evocaccedilatildeo de

um fiador e este eacute apresentado de maneira a dar ecircnfase aos elementos salientados no eacutethos em construccedilatildeo

O fiador permite que seja identificado o tom presente no discurso enunciado pois na perspectiva de

Maingueneau ldquoqualquer discurso escrito mesmo que negue possui uma vocalidade especiacutefica que permite

relacionaacute-lo a uma fonte enunciativardquo de modo que ldquoa leitura faz emergir uma origem enunciativa uma

instacircncia subjetiva encarnada que exerce o papel de fiadorrdquo (MAINGUENEAU 2018 p 72) Ao fiador satildeo

atribuiacutedos qualitativos frutos das representaccedilotildees socialmente construiacutedas com a finalidade de tornar

niacutetidos estereoacutetipos que congregam caracteres positivos identificaacuteveis pelos destinataacuterios Portanto o papel

a ser desempenhado por ele eacute significativo no encadeamento das representaccedilotildees que confluem na

elaboraccedilatildeo do eacutethos pois na adesatildeo ao discurso eacute necessaacuterio que o fiador tenha condiccedilotildees de gerar no

destinataacuterio o desejo de incorporar ldquoum conjunto de esquemas que correspondem a uma maneira especiacutefica

de se relacionar com o mundordquo (MAINGUENEAU 2018 p 272) Essa incorporaccedilatildeo vai aleacutem de um processo

de identificaccedilatildeo pois haacute ldquoum mundo eacuteticordquo em que o fiador estaacute inserido e ao qual por meio dele os

destinataacuterios podem ter acesso (MAINGUENEAU 2018 p 272)

Nesse sentido na fala de Minuacutecio Feacutelix a respeito da adesatildeo de ambos ao cristianismo mdash ldquosoacute ele conhecia as

minhas supersticcedilotildees pagatildes soacute ele era participante dos meus erros e quando dissipado o nevoeiro emergi

das trevas a luz da sabedoria e da verdade ele natildeo rejeitou o companheiro mas o que eacute mais maravilhoso

correu a frenterdquo (Oct 14) mdash para aleacutem de ser esclarecido que foi ele quem conduziu o amigo Otaacutevio ao

cristianismo ele usa de si mesmo para indicar qual seria o comportamento esperado daqueles que tecircm a

mesma oportunidade Dessa maneira ao exaltar o comportamento de Otaacutevio Minuacutecio Feacutelix expotildee quais satildeo

seus proacuteprios os valores e consequentemente o seu eacutethos aleacutem de construir isso por meio de afirmativas que

o conecta ao amigo a quem ele diz ldquoconcordava comigo em querer ou natildeo querer os mesmos objetivos ao

ponto de acreditar que uma soacute alma fosse repartidardquo (Oct 13) Parece-nos assim que o eacutethos do autor eacute

manifesto de modo ostensivo como modelo para os demais cristatildeos e tem como fiador Otaacutevio a quem satildeo

atribuiacutedos qualitativos que abrange sua imagem puacuteblica apontado como ldquobom fideliacutessimo companheiro

varatildeo excelente e iacutentegrordquo (Oct 11-3) O fiador do eacutethos de Minuacutecio Feacutelix congrega dessa forma virtudes

desejaacuteveis a um homem pertencente agrave elite aristocraacutetica romana tornando assim possiacutevel a materializaccedilatildeo

do conjunto de valores socialmente construiacutedos mobilizados a fim de explicitar o eacutethos de Minuacutecio Feacutelix

[83]

Minuacutecio Feacutelix ao enunciar as atividades laborais de ambos em Roma e afirmar que estava de feacuterias assim

como Otaacutevio mdash uma vez que a viagem agrave Oacutestia se deu pois ldquoas feacuterias haviam interrompido os trabalhos

judiciaisrdquo (Oct 23) mdash os situa geograficamente no centro do poder poliacutetico romano demostrando que os

cristatildeos natildeo estavam destinados a locais perifeacutericos no Impeacuterio O autor coloca ainda em destaque o valor

dos viacutenculos entre pares Ao apontar os qualitativos de Otaacutevio ele diz de modo evidente qual o perfil de com

quem se devia cultivar esses viacutenculos ou seja preferencialmente com cristatildeos como ele e Otaacutevio Todavia

as praacuteticas religiosas no impeacuterio eram heterogecircneas de forma que a relaccedilatildeo entre membros da aristocracia

que natildeo haviam aderido ao cristianismo era comum como mostra a amizade de Minuacutecio Feacutelix e Ceciacutelio

chamado por Otaacutevio de ldquogente supersticiosardquo (Oct 34) Entretanto a toleracircncia nesse caso tem finalidade

especiacutefica os pesos satildeo distintos na relaccedilatildeo entre eles A promoccedilatildeo da doutrina cristatilde estaacute no centro dessa

relaccedilatildeo e mais que promover essa feacute o autor de Octavius tem a tarefa de descortinar como um verdadeiro

cristatildeo devia se comportar

Por fim o preacircmbulo de Octavius evidencia a estreita relaccedilatildeo de Minuacutecio Feacutelix atraveacutes do eacutethos exposto com

os paracircmetros culturais claacutessicos e isso eacute manifesto desde a escolha do gecircnero da obra passando pelo modo

de dispor o conteuacutedo apologeacutetico evitando os pontos mais sensiacuteveis a fim de expor que a adesatildeo agrave feacute cristatilde

natildeo era excludente da manutenccedilatildeo dos valores aristocraacuteticos Minuacutecio Feacutelix externa assim em seu ponto de

vista a compatibilidade da erudiccedilatildeo claacutessica com a praacutetica religiosa cristatilde expondo ainda aos pares que

desempenhavam funccedilotildees expressivas na sociedade romana que em suas atuaccedilotildees poderia ser exigido o

conviacutevio com outros pares que embora detivessem a mesma formaccedilatildeo intelectual eram praticantes dos

cultos politeiacutestas Se por um lado isso poderia ser incocircmodo por outro era oportunidade de difundir a

praacutetica religiosa cristatilde e ademais uma circunstacircncia propiacutecia para solidificar a identidade cristatilde construiacuteda

por meio dos elementos simboacutelicos mobilizados na edificaccedilatildeo do eacutethos minuciano

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A censura aos espetaacuteculos na literatura claacutessica e o De Spectaculis de Tertuliano

Natan Henrique Taveira Baptista

natanbaptistagmailcom

O presente capiacutetulo que sumariza parte

da dissertaccedilatildeo de mestrado do autor

foi desenvolvido com apoio da Fundaccedilatildeo

de amparo agrave pesquisa e inovaccedilatildeo do

Espiacuterito Santo (Fapes) entre 2015 e 2017

Este estudo comenta os usos de textos claacutessicos ndash gregos latinos e

judaicos ndash na construccedilatildeo da criacutetica aos espetaacuteculos por Tertuliano

de Cartago (c 160-230) Mesmo que o pensador africano rechace

o conhecimento e a tradiccedilatildeo natildeo paleocristatilde ou seja externa agrave

seita religiosa que se firmava na transiccedilatildeo do seacuteculo segundo para

o terceiro sua argumentaccedilatildeo condenatoacuteria natildeo eacute era total

novidade dentro do arcabouccedilo discursivo de sua eacutepoca Ao

contraacuterio sua retoacuterica utiliza temas motivos e linhas de raciociacutenio

da literatura pregressa como combustiacutevel intelectual para o

vitupeacuterio aos spectacula imperiais Assim a partir da preacutedica de

Tertuliano quanto aos espaccedilos destinados agraves praacuteticas de

entretenimento e convivecircncia examinamos a reafirmaccedilatildeo do

sentimento de pertenccedila e propoacutesito a todo o tempo reiterado no

discurso cristatildeo que tornaria possiacutevel o acesso do neoacutefito agrave

comunidade paleocristatilde Operou-se no discurso de Tertuliano

uma proposta de mudanccedila na compreensatildeo das categorias de

[87]

lazer e espetaacuteculos puacuteblicos indicativo importante da tentativa de transformaccedilatildeo de consciecircncia que se

baseou na criacutetica ao comportamento da sociedade romana desde os primeiros anos do paleocristianismo no

norte da Aacutefrica

Antes de discutir a criacutetica paleocristatilde eacute necessaacuterio pautar a censura e a condenaccedilatildeo aos espetaacuteculos por

grupos anteriores visto que a elite literaacuteria e filosoacutefica estoica e os componentes da religiatildeo judaica jaacute

apresentavam segmentos contraacuterios aos espetaacuteculos muito antes do surgimento da criacutetica por parte dos

pensadores eclesiaacutesticos Assim a despeito da pecha de grupo coeso nomeados sobre a complicada eacutegide

de ldquopagatildeosrdquo1 os integrantes da sociedade romana tradicional e adeptos da filosofia estoica por exemplo

natildeo partilhavam da plena adesatildeo aos espetaacuteculos Os estudos sobre a complexidade social dos grupos

aglomerados pela terminologia ldquopaganismordquo (CAMERON 2011 ROSA 2008 BAPTISTA 2015 p 25-45)

mostraram que dentro dele nunca existiu um apoio indiscriminado aos jogos de circo ou anfiteatro e das

apresentaccedilotildees de teatro Aleacutem disso os estudos dessas criacuteticas mostram que vaacuterios autores cristatildeos com

destaque para Tertuliano fizeram uso da filosofia e da literatura claacutessica ao assumirem para si a negaccedilatildeo

dos espetaacuteculos em sua forma mais tradicional reproduzindo em termos evangeacutelicos a criacutetica antecedente

Essa constataccedilatildeo ampara o entendimento sobre a natureza fluida das fronteiras religiosas romanas

No caso dos jogos do circo do teatro e do anfiteatro a criacutetica pagatilde veio em grande parte de um pequeno

grupo vinculado ao estoicismo que por vaacuterios motivos natildeo coadunava com o interesse das massas

populares e de grande parte dos estamentos superiores pelos jogos2 Quando os estoicos criticavam esse

tipo de manifestaccedilatildeo cultural eles natildeo defendiam a sua aboliccedilatildeo mas censuravam audiecircncia e os

patrocinadores do espetaacuteculo Por essas razotildees Mammel (2014 p 605) sustenta que ldquo[] muitas das

acusaccedilotildees da elite literaacuteria popular aos espetaacuteculos em estilo romano foram motivadas em grande parte

pelo elitismo e esnobismo intelectualrdquo De fato natildeo era raro que os espetaacuteculos romanos fossem vistos com

certo desdeacutem como algo proacuteprio do uulgus das massas comuns e dos segmentos sociais inferiores ou

menos instruiacutedos Dessa maneira a criacutetica aos jogos funcionou em grande medida como um artifiacutecio

retoacuterico de distinccedilatildeo entre os que os apreciavam ou seja os plebeus incultos e os que os rejeitavam devido

1 O termo paganismo refere-se em geral a uma coletividade grandemente difusa de accedilotildees praacuteticas e crenccedilas heterogecircneas religiosas antigas formada entre outras manifestaccedilotildees pelo culto ciacutevico romano ndash privado e puacuteblico ndash pelos cultos advindos do Oriente e pelo culto ao imperador associados a uma identidade tradicional (CAMERON 2011 p 3-13) Entretanto essa terminologia apresenta vaacuterias dificuldades teoacutericas O paganismo ndash e o paleocristianismo ndash natildeo pode ser tratado como sistemas homogecircneos e muito menos como religiotildees cristalizadas Seria mais correto designaacute-las de religiotildees ou sistemas religiosos Assim o uso do termo paganismo neste trabalho natildeo possui cunho pejorativo ou de decreacutescimo simboacutelico nem deve ser visto de maneira equivocada como se houvesse uma unidade religiosa na Antiguidade romana (ROSA 2008 p 15-20) Antes trabalhamos com a noccedilatildeo de cristianismos e paganismos uma vez que essas realidades religiosas se encontravam disseminadas pela bacia do Mediterracircneo sendo praticadas de modo diversificado no interior das diferentes comunidades agregadas pelo impeacuterio tardoantigo 2 Para uma discussatildeo recente sobre o estoicismo cf Barbosa e Castro (2020 p 56-68)

[88]

agrave educaccedilatildeo elevada que haviam recebido Possuir interesses compartilhados com o populus natildeo era

apropriado para um cidadatildeo romano bem nascido e por isso mesmo portador de urbanitas (WIEDEMANN

1992 p 141-144 WISTRAND 1992 p 62 MAMMEL 2014 p 605)3

Entre o fim da Repuacuteblica e o Impeacuterio o lazer gradualmente foi incorporado pelas categorias mais populares

da sociedade Para a elite romana as inconveniecircncias do lazer surgiram quando o tempo livre o otium

alcanccedilou tambeacutem os estratos mais baixos que se encontravam fora do controle das autoridades (TONER

1995 p 23 ss)4 Foi por isso que de acordo com Pliacutenio o Jovem (Ep 96 Pan 464-6) faltavam aos

espetaacuteculos a seueritas e a grauitas condizentes com os homens de estrato superior motivo este para a

censura agrave participaccedilatildeo de membros da elite romana ndash e no limite do proacuteprio imperador ndash nos espetaacuteculos

Taacutecito (Ann 1414-15) chegou a qualificar o desejo de Nero em participar das corridas de bigas como

studium foedum (desejo vergonhoso) e Suetocircnio principalmente nas biografias de Tibeacuterio (352) e Caliacutegula

(541) se une a Pliacutenio na criacutetica qualificando a participaccedilatildeo nos espetaacuteculos como algo profundamente

degradante e digno de desprezo (WISTRAND 1992 p 30 ss BELL 2014 p 496)

Podemos sistematizar a criacutetica estoica aos jogos apoacutes Wistrand (1992) e Mammel (2014) em cinco

argumentos principais O primeiro deles era a repeticcedilatildeo e a falta de novidade ou variaccedilatildeo nas competiccedilotildees

Em seguida questionava-se a perda de tempo que de acordo com os criacuteticos poderia ter sido dedicado a

outras atividades mais proveitosas intelectualmente tais como o estudo ou a leitura O terceiro alvo de

censura era a enormidade dos salaacuterios e as fortunas dos atletas mais famosos Em quarto lugar criticava-se

o despertamento de emoccedilotildees natildeo condizentes com o estatuto do filoacutesofo nos espaccedilos puacuteblicos dada a

sociabilidade com toda sorte de atores sociais Finalmente os estoicos admoestavam sobre os perigos das

aglomeraccedilotildees para o indiviacuteduo sobretudo as confusotildees criadas e as multidotildees que se deixavam arrastar

pelos arredores desses ambientes luacutedicos5

3 Vrbanitas era um conceito muito caro aos romanos desde a Res Publica ficando particularmente associado aos escritos de Ciacutecero (De or 2216-291) de Horaacutecio (Ep 110 24-6) e de Quintiliano (Inst 63) (MARQUES JUacuteNIOR 2008 p 15 ss MIOTTI 2010 p 17 ss) Ciacutecero jaacute a expressava como transliteraccedilatildeo de um sentimento de completude ao associar vivecircncia citadina altamente urbanizada e polidez Sendo assim a exaltaccedilatildeo da vida na cidade era propiacutecia ao bom gosto ao requinte agrave cultura e agrave elegacircncia Sobre as diferentes acepccedilotildees do conceito dentro da retoacuterica claacutessica cf Ramage (1963 p 390-414) e Goodman (2007 p 12) 4 Afinal ldquoa base para o tratamento discriminatoacuterio das atividades de lazer foi a distinccedilatildeo entre a vida de lazer um preacute-requisito da elite e a vida de trabalho que era a marca de uma existecircncia plebeacuteia A partir desta perspectiva tradicional o lazer era uma parte natural e legiacutetima da cultura de elite ao passo que para os trabalhadores era uma tentaccedilatildeo potencialmente perigosa e uma distraccedilatildeo de suas principais preocupaccedilotildeesrdquo (TONER 1995 p 25) 5 Nesse sentido uma voz destoante da tradiccedilatildeo filosoacutefica foi Frontatildeo (c 100-170) cocircnsul gramaacutetico retoacuterico e advogado originaacuterio da Numiacutedia tambeacutem no norte da Aacutefrica (Ad M Caes 235) Ele se coloca contra a tradiccedilatildeo filosoacutefica quando trata as confusotildees e explosotildees no espaccedilo do circo e os proacuteprios jogos de maneira muito mais despreocupada e em grande parte descontraiacuteda ao escrever aos seus amigos e a Marco Aureacutelio a situaccedilatildeo (Ad M Caes 211-5 Ad amicos 231-3) Em sua opiniatildeo natildeo se deveria perder de vista que os jogos mantinham a populaccedilatildeo de bom humor e agradavam a eles coletivamente assim sua continuidade deveria ser preservada sendo o papel do imperador natildeo negligenciar um aspecto social que era importante para os seus suacuteditos (BELL 2014 p 120-126)

[89]

Sobre a repeticcedilatildeo enfadonha dos jogos Pliacutenio (Ep 961) foi bastante enfaacutetico ao apontar que ldquonatildeo tecircm

novidade natildeo tecircm variaccedilatildeo natildeo tecircm nada para o qual uma visatildeo natildeo seria suficienterdquo6 Ciacutecero (Ep 71)

teceu a mesma criacutetica mas direcionada agraves uenationes uma vez que segundo ele quem assistisse a uma jaacute

teria assistido a todas as outras Jaacute Marco Aureacutelio em suas Meditaccedilotildees (6461) deixava claro que ldquotal como

os espetaacuteculos no circo ou de outros locais de diversatildeo nos cansam com a sua perpeacutetua repeticcedilatildeo das

mesmas coisas numa monotonia que torna o espetaacuteculo enfadonho tambeacutem o mesmo se passa com toda a

experiecircncia da vida []rdquo7

Os membros da elite romana tambeacutem eram unacircnimes em afirmar que os homens de posiccedilatildeo elevada

deveriam despender seu tempo livre em atividades mais valiosas intelectualmente e natildeo com a banalidade

dos espetaacuteculos Eram nos momentos de otium que os intelectuais deveriam estar envolvidos em atividades

voltadas para os estudos filosoacuteficos e literaacuterios Para eles o oacutecio poderia ser entendido como ldquo[] um

espaccedilo de tempo de descanso do corpo e recreaccedilatildeo do espiacuterito um tempo livre do trabalho que se dava

para depois retomar as atividades cotidianas ao trabalho e ao de serviccedilo puacuteblico O oacutecio romano consistia

como se vecirc em natildeo trabalharrdquo (BETANCUR SEPUacuteLVEDA 2008 p 05) Na Roma republicana os uacutenicos

indiviacuteduos que poderiam desfrutar do oacutecio eram os notaacuteveis isto eacute uma minoria que natildeo trabalhava e que

vivia dos lucros produzidos por artesatildeos comerciantes e trabalhadores agriacutecolas Eacute por isso que na

Antiguidade Claacutessica o otium era uma peccedila essencial da vida das elites8

De acordo com a ideologia aristocraacutetica romana os estratos sociais eram repartidos de acordo com os

recursos econocircmicos dos quais dispunham A partir dessa concepccedilatildeo de mundo os escravos camponeses e

negociantes natildeo poderiam desfrutar de uma vida feliz isto eacute de uma vida proacutespera e privilegiada do

aristocrata Esses homens ditos ociosos correspondiam moralmente ao ideal de ser humano e mereciam

por isso serem cidadatildeos por inteiro Os notaacuteveis da sociedade romana ldquonatildeo se consideravam superiores agrave

meacutedia da humanidade como os nobres do Antigo Regime consideravam-se a humanidade plena e inteira a

humanidade normal portanto os pobres eram moralmente inferiores [afinal] natildeo viviam como se deveria

viverrdquo (VEYNE 2009 p 115) Uma categoria abastada letrada e desejosa de reservar para si o controle da

poliacutetica exaltava o oacutecio afortunado como produto de uma cultura literaacuteria e de uma carreira puacuteblica O

trabalho da elite consistia no cumprimento dos deveres ciacutevicos e na administraccedilatildeo de seu patrimocircnio

6 ldquoNihil novum nihil varium nihil quod non semel spectasse sufficiatrdquo (Trad nossa comparada a Betty Radice 1969) 7 ldquoὭσπερ προσίσταταί σοι τὰ ἐν τῷ ἀμφιθεάτρῳ καὶ τοῖς τοιούτοις χωρίοις ὡς ἀεὶ τὰ αὐτὰ ὁρώμενα καὶ τὸ

ὁμοειδὲς προσκορῆ τὴν θέαν ποιεῖ τοῦτο καὶ ἐπὶ ὅλου τοῦ βίου πάσχεινrdquo (Trad Alex Martins 2002) 8 Na concepccedilatildeo da elite romana otium poderia equivaler a uma designaccedilatildeo temporal mas no contexto poliacutetico foi utilizado no sentido de um estado desejaacutevel de tranquilidade e seguranccedila (Pax e Concordia) Para aleacutem dessas duas categorias otium tambeacutem pode ser compreendida como um conceito qualitativo reflexo do caraacuteter moral do cidadatildeo romano Fagan (2006) distingue duas principais caracterizaccedilotildees do otium romano O otium de qualidade no sentido de contemplaccedilatildeo encontrava-se expresso nas atividades edificantes como a leitura e a escrita e tambeacutem na caccedila (Sen Ep 823) Jaacute o otium negativo relacionado agrave ociosidade e agrave preguiccedila apresentava-se no descanso nas tabernas ou na inatividade do pensamento nos espetaacuteculos de massa corrompendo a mente dos jovens e a disciplina dos soldados

[90]

(TONER 1995 p 26) Assim o trabalho implicaria obrigaccedilatildeo ao passo que o lazer implicaria ludicidade e

entretenimento para o corpo e mente Embora antagocircnicos lazer e trabalho do ponto de vista das elites

romanas encontravam-se intrinsecamente relacionados e amalgamados a um ideal de plenitude da vida

ciacutevica Em suma para os estoicos os espetaacuteculos e o lazer envolvidos nessa praacutetica eram passiacuteveis de

censura pois os membros da elite poderiam tornar-se presos ou viciados aos passatempos triviais das

massas e negligenciar as atividades mais apropriadas para o seu lugar social como por exemplo o estudo

das artes liberais (Tac Dial 293 WISTRAND 1992 p 43)

Os autores estoicos demonstram aleacutem disso aversatildeo agravequeles que enriqueceram com os jogos Todavia se

um senador recebesse o governo de uma proviacutencia mediante faustoso salaacuterio era considerado um homem

de respeito em conformidade com o ideal de vida poliacutetica A concepccedilatildeo antiga do trabalho era marcada por

uma seacuterie de ponderaccedilotildees a partir da posiccedilatildeo social pois natildeo dependiam da atividade que o indiviacuteduo

exercesse Um notaacutevel natildeo era definido pelo que fizesse natildeo importava o que fosse Poreacutem um homem

ordinaacuterio era classificado a partir da atividade que exercesse fosse sapateiro ou professor Para ser um

romano devia possuir patrimocircnio Quando um notaacutevel proclamava em seu epitaacutefio ter sido um bom

agricultor por exemplo ele desejava exprimir que teve talento para administrar suas terras e natildeo que havia

sido um agricultor de profissatildeo Os notaacuteveis obtinham honra consagrando-se agrave filosofia agrave eloquecircncia ao

direito agrave poesia Por isso a cidade lhes erguia estaacutetuas ndash tais atividades eram publicamente reverenciadas

via-se nelas respeito ou algo a respeitar-se Um romano por tradiccedilatildeo se definia por meio delas Ele dizia por

exemplo fui cocircnsul e filoacutesofo Foi por isso que Juvenal (Sat 7106-14) e Marcial (1074) lamentaram o fato

de aurigas e gladiadores serem premiados com riqueza fama sucesso e reconhecimento ao passo que

gramaacuteticos poetas e oradores trabalhavam em relativa pobreza e obscuridade (WISTRAND 1992 p 45)

Outra criacutetica dos estoicos aos jogos se referia agraves emoccedilotildees que despertavam emoccedilotildees natildeo condizentes de

acordo com eles com o estatuto do filoacutesofo razatildeo pela qual recomendavam atenccedilatildeo para com a

racionalidade o prazer e a virtude Defendiam desse modo que o homem deveria ser governado pela

racionalidade e natildeo pelas emoccedilotildees animalescas (uoluptates) Os prazeres nessa perspectiva deveriam ser

usufruiacutedos com moderaccedilatildeo a fim de natildeo tornarem o homem suave ou deacutebil (mollis) (WISTRAND 1992 p

12 MAMMEL 2014 p 606) Os espetaacuteculos eram portanto vistos como perigosos pois despertavam no

espectador segundo os filoacutesofos emoccedilotildees prazeres e instintos primitivos e sensuais desviando a atenccedilatildeo

do objetivo mais elevado que eram as atividades racionais (WISTRAND 1992 p 142-3) Diante disso a

soluccedilatildeo proposta era a moderaccedilatildeo dos prazeres que forneceria inclusive aliacutevio agrave mente do filoacutesofo Mas

para aqueles que natildeo conseguissem controlar a si proacuteprios a rejeiccedilatildeo completa aos prazeres seria a melhor

opccedilatildeo Os jogos eram vistos como um risco ateacute mesmo para aquele que possuiacutesse conhecimento filosoacutefico

quanto mais para aquele que natildeo o possuiacutea (MAMMEL 2014 p 606 ss) Essa criacutetica foi fundamental pois

os cristatildeos dela se valeram criando assim seus proacuteprios argumentos para a censura aos espetaacuteculos

[91]

Amiano Marcelino (14618-20 1572 38432) por exemplo foi conhecido pela sua famosa criacutetica satiacuterica

agrave sociedade romana participante dos espetaacuteculos puacuteblicos Para esse autor a principal acusaccedilatildeo imputada

ao circo era a loucura (furor) ou seja a perda de autocontrole manifestada na obsessatildeo que levava as

multidotildees a se interessar por tudo que se relacionava aos jogos circenses (JIMEacuteNEZ SAacuteNCHEZ 2001 p

462-463 BELL 2014 p 499) Essa criacutetica foi comumente repetida tal como um toacutepos retoacuterico ou seja uma

linha argumentativa na forma de lugar comum (Quint Inst 851-2 861-2 91-3) tanto na literatura

claacutessica pagatilde ou gentia quanto na literatura patriacutestica9 Tertuliano (Spect 161-3) usa exatamente a mesma

argumentaccedilatildeo para apresentar a pompa que marcava o iniacutecio dos ludi circenses comeccedilando com a chegada

tumultuada e freneacutetica dos espectadores ao espaccedilo luacutedico Nas palavras do rigorista africano a populaccedilatildeo

[] chegava jaacute esbravejante [cum furor] agitada cega e incitada a fazer apostas O pretor eacute lerdo os olhos rodam dentro da urna dele com as sortes Desde este lugar pendem para o sinal os ansiosos e uma soacute eacute a voz de uma soacute insacircnia Observe a insacircnia de sua futilidade lsquojogoursquo dizem e anunciam um apoacutes o outro aquilo que ao mesmo tempo foi visto por todos Eu apreendo o testemunho de sua cegueira natildeo veem o que foi jogado pensam ser o lenccedilo [que dava o sinal] mas eacute a imagem do diabo caiacutedo do alto (Tert Spect 161-3)10

Em outra de sua obra o rigorista afirma que o cristatildeo natildeo devia deixar-se arrastar ldquo[] pelos deliacuterios do

circo ou pelas atrocidades da arena ou pelas torpezas do teatrordquo (Tert Cult fem 184)11 Nestas e em outras

passagens desse tratado (Spect 152 161-4) e de outros fica expliacutecito que o furor marcava a perda do

autocontrole sendo um dos motivos principais para que os paleocristatildeos fossem proibidos de frequentar os

espaccedilos puacuteblicos especialmente o circo Tertuliano se inclui em uma tradiccedilatildeo discursiva ao repetir a

mesma admoestaccedilatildeo efetuada pelos filoacutesofos estoicos anteriores a ele mas tambeacutem marcando o iniacutecio de

uma recomendaccedilatildeo que foi repetida por uma longuiacutessima tradiccedilatildeo de autores posteriores a ele e

igualmente ligados agrave patriacutestica12

9 A escrita de Tertuliano comporta um estilo literaacuterio que manifesta sua formaccedilatildeo em retoacuterica especialmente pelo uso do exemplum (Tert Ad Her 44962 Cic Inv 1496 Quint Inst 5116) e de longi temporis praescriptio e traditio para discutir seus argumentos Esse estilo se apresenta com a utilizaccedilatildeo de exemplos histoacutericos cotidianos e filosoacuteficos para convencer a um puacuteblico geral (SIDER 1971 p 111) mas tambeacutem por um texto conciso contundente em rimas em ritmos e em figuras como simetria paralelismo assonacircncia aliteraccedilotildees circunloacutequios metaacuteforas aleacutem de paromoia (mesmas palavras paralelas em duas ou mais frases) homeoteleuton (rima baseada no teacutermino dos sintagmas) e homoiorcatarcta (palavras com iniacutecio similar) (MELRO 1974 p 21-22) 10 ldquo[] iam cum furore venientem iam tumultuosum iam caecum iam de sponsionibus concitatum tardus est illi praetor semper oculi in urna eius cum sortibus volutantur dehinc ad signum anxii pendent unius dementiae una vox est cognosce dementiam de vanitate lsquomisitrsquo dicunt et nuntiant invicem quod simul ab omnibus visum est teneo testimonium caecitatis non vident missum quid sit mappam putant sed est diaboli ab alto praecipitati figurardquo (Traduccedilatildeo nossa) Agradecemos a gentileza de Kaacutetia Regina Giesen no apoio e correccedilatildeo da traduccedilatildeo deste excerto 11 ldquocirci furoribus aut arenae atrocitatibus aut scenae turpitudinibusrdquo (Trad Fernando Melro 1974) 12 As queixas dos escritores da patriacutestica posteriores ndash com especial destaque para Novaciano Cipriano Agostinho e Isidoro que transcreveu o capiacutetulo nono do De Spectaculis quase ipsis litteris ndash e as contiacutenuas alegaccedilotildees contra a ida aos espetaacuteculos provam que a tentativa de Tertuliano teve pouco sucesso pelo menos nos dois primeiros seacuteculos apoacutes sua vida tendo relativa forccedila apenas quando foram constituiacutedos alguns dos conciacutelios da Igreja nos finais do quarto e iniacutecio do quinto seacuteculos ndash como o Terceiro e Quarto conciacutelio de Cartago em 397 e em 419 ndash quando foram tomadas medidas para impedir que os cristatildeos especialmente cleacuterigos e seus filhos frequentassem ou organizassem os jogos puacuteblicos

[92]

A uacuteltima criacutetica estoica aos jogos eacute vista principalmente em Secircneca em seu seacutetimo conjunto de Cartas a

Luciacutelio Tal criacutetica concernia ao elemento mais perigoso e censuraacutevel dos ludi para um filoacutesofo ou seja as

multidotildees Secircneca em sua admoestaccedilatildeo ao jovem Luciacutelio afirmou que as multidotildees tinham o poder de

corromper o homem prudente que se esforccedilava para viver virtuosamente porque despertava nele emoccedilotildees

primitivas e o fazia retornar agrave condiccedilatildeo de homem vicioso e pernicioso (MAMMEL 2014 p 607)13 Nas

palavras de Secircneca (Ep 71-2)

queres saber qual eacute a coisa que com maior empenho deves evitar A multidatildeo Ainda natildeo estaacutes em estado de frequentaacute-la em seguranccedila Eu confesso-te sem rodeios a minha proacutepria fraqueza nunca regresso com o mesmo caraacutecter com que saiacute de casa algo do que jaacute pusera em ordem eacute alterado algo do que jaacute conseguira eliminar regressa O mesmo que sucede aos doentes que uma longa debilidade natildeo deixa ir a parte alguma sem recaiacuteda nos acontece a noacutes cujo espiacuterito se estaacute refazendo de uma prolongada enfermidade Eacute-nos prejudicial o conviacutevio com muita gente natildeo haacute ningueacutem que nos natildeo pegue qualquer viacutecio nos contagie nos contamine sem noacutes darmos isso Por isso quanto maior eacute a massa a que nos juntamos tanto maior eacute o perigo Mas nada eacute tatildeo prejudicial para o bom caraacuteter como o haacutebito de descansar nos jogos em seguida eacute que o viacutecio sutilmente rasteja atraveacutes da avenida de prazer sobre aquele [que assiste aos jogos] []14

Nos espetaacuteculos de circo em que as aglomeraccedilotildees eram particularmente maiores o prazer e as emoccedilotildees

eram potencializadas fazendo com que o espectador ao regressar agrave casa se sentisse ldquo[] mais ganancioso

mais ambicioso mais voluptuoso e ainda mais cruel e desumano por ter estado entre tantos seres

humanosrdquo (Sen Ep 73)15 Finalmente para Secircneca e para os demais estoicos o perigo da multidatildeo residia

em sua capacidade de drenar as capacidades intelectuais e a forccedila moral dos filoacutesofos (Sen Ep 76)

Todas as criacuteticas acima assinaladas convergem para um ponto a elite romana em geral e os estoicos

especificamente se opunham aos espetaacuteculos de modo a definir e mais que isso defender a sua identidade

de elite filosoacutefica em clara oposiccedilatildeo agrave cultura popular e aos entretenimentos apreciados pelas camadas

sociais inferiores formada em grande parte por iletrados ou pessoas de escolaridade insipiente Essa

Isso mostra que essa ainda era uma praacutetica corrente nos seacuteculos posteriores e sua diminuiccedilatildeo converge com a atenuaccedilatildeo do evergetismo durante o desmantelamento do centro poliacutetico imperial (BAPTISTA 2015 p 248-260) 13 ldquoO estoicismo pretendeu atraveacutes de sua doutrina moral fornecer meios para que o homem pudesse garantir sua felicidade Ao assegurar o conhecimento de como o homem deveria agir a partir da identificaccedilatildeo dos bens e dos males morais e consequente atenuaccedilatildeo das paixotildees o filoacutesofo estoico estava certo de que dessa forma o homem estaria agindo conforme sua natureza E ainda que embora fosse naturalmente apropriado preferir a riqueza e a sauacutede agrave pobreza e agrave doenccedila esses bens considerados como preferiacuteveis e natildeo-preferiacuteveis natildeo fariam diferenccedila na conquista da felicidade idealmente entendida como ataraxiacutea ou seja a tranquilidade da almardquo (GUIMARAtildeES 2009 p 98) 14 ldquoQuid tibi vitandum praecipue existimes quaeris Turbam Nondum illi tuto committeris Ego certe confitebor inbecillitatem meam numquam mores quos extuli refero Aliquid ex eo quod conposui turbatur aliquid ex iis quae fugavi redit Quod aegris evenit quos longa inbecillitas usque eo adfecit ut nusquam sine offensa proferantur hoc accidit nobis quorum animi ex longo morbo reficiuntur Inimica est multorum conversatio nemo non aliquod nobis vitium aut commendat aut inprimit aut nescientibus adlinit Utique quo maior est populus cui miscemur hoc periculi plus est Nihil vero tam damnosum bonis moribus quam in aliquo spectaculo desidere Tunc enim per voluptatem facilius vitia subrepunt []rdquo (Trad Segurado e Campos 1991 com pequenas modificaccedilotildees nossas) 15 ldquoAvarior redeo ambitiosior luxuriosior immo vero crudelior et inhumanior quia inter homines fuirdquo (Trad Segurado e Campos 1991 com pequenas modificaccedilotildees nossas)

[93]

oposiccedilatildeo natildeo era constituiacuteda por uma rejeiccedilatildeo total e indiscriminada aos espetaacuteculos mas ao perigo que

representavam para o bem-estar intelectual e moral dos homens de bem da elite (MAMMEL 2014 p 607)

Em Tertuliano essa criacutetica foi transmutada e adaptada Em sua obra o paleocristatildeo tambeacutem alude aos

perigos da coletividade pois ldquoAssim como o engodo do dinheiro das honras da gula da devassidatildeo e da

gloacuteria eacute concupiscecircncia tambeacutem eacute concupiscecircncia o engodo do prazer e uma espeacutecie de prazer eacute a ida aos

espetaacuteculosrdquo (Spect 142)16 Tornavam-se assim perturbados ldquo[] com as aacutescuas do furor e da biacutelis da ira e

do desesperordquo (Spect 152)17 pois toda a assistecircncia a um espetaacuteculo provocava emoccedilotildees natildeo espirituais

mesmo naqueles que conseguissem apreciar ldquoo espetaacuteculo modesta e retamente por atender ao respeito

que a si deve ou ainda por imposiccedilatildeo da idade ou do temperamento natildeo se livra ao abalo espiritual e ao

fogo sob as cinzas duma paixatildeo larvadardquo (Spect 155)18 O atleta nesse contexto tinha participaccedilatildeo decisiva

na contaminaccedilatildeo pecaminosa pois era um ldquo[] inquietador de tanta cabeccedila vatilde e agitador de tantas paixotildees

cingido da coroa rostral como sacerdote coroado e pintalgado como rufiatildeo de alcouce a quem o diabo

embelezou para arremeter contra Elias e o arrebatar em um carro por esses ares forardquo (Spect 232)19

No que concerne aos judeus a sua oposiccedilatildeo a maioria das tradiccedilotildees greco-romanas como deturpadoras da

cultura da moralidade ancestral e das tradiccedilotildees religiosas judaicas pode ser visualizada em um contexto

muito antigo ainda no periacuteodo poacutes-alexandrino O conflito decorrente das atitudes helenizadas como a

instituiccedilatildeo dos jogos pode ser confirmado jaacute no Segundo Livro de Macabeus (49-15 18-19) Essa narrativa

apresenta um tom criacutetico agrave valorizaccedilatildeo da cultura helecircnica e luacutedica de ginaacutesio durante o final do reinado de

Seleuco IV Filopaacuteter (186 ndash 176 aC) precedido por Antiacuteoco IV Epiacutefacircnio que governou a Siacuteria Palestina

entre 175 e 164 aC (GIORDANI 2001 p 150 KIPPENBERG 1988 p 77) Vaacuterias das atitudes do governo

helenizado ndash especialmente as que reforccedilavam o estigma de outsiders sociais e poliacuteticos dos judeus pelos

seus costumes distintos ou maciccedila capacidade de agir como coletivo ndash levaram a conflitos com as

autoridades nos quais se destacou o papel de Judas Macabeu que liderou uma seacuterie de revoltas contra o

Impeacuterio Selecircucida entre os anos de 167 e 160 aC (RUSSELL 1973 p 18 ASURMENDI 2004 p 426) A

atitude de resistir agravequeles considerados opressores da feacute tradicional pode ser vista durante grande parte

da histoacuteria do povo judaico chegando tambeacutem agrave promoccedilatildeo ostensiva dos jogos e espetaacuteculos sob o governo

do rei-cliente Herodes I o Grande de 37 a 4 aC Segundo Rajak (2003 p 3)

Herodes que era de uma famiacutelia idumeia mas que havia se convertido ao judaiacutesmo chamou a si mesmo natildeo soacute Philoroacutemaios um amante de Roma mas tambeacutem um amante dos

16 ldquoNam sicut pecuniae vel dignitatis vel gulae vel libidinis vel gloriae ita et voluptatis concupiscentia est species autem voluptatis etiam spectaculardquo 17 ldquo[] non furore non bile non ira non dolore inquietarerdquo 18 ldquoNam et si qui modeste et probe spectaculis fruitur pro dignitatis vel aetatis vel etiam naturae suae condicione non tamen immobilis animi est et sine tacita spiritus passionerdquo 19 ldquo[] tot animarum inquietator tot furiarum minister tot statuum ut sacerdos coronatus vel coloratus ut leno quem curru rapiendum diabolus adversus Elian exornavitrdquo

[94]

gregos e seu orgulho em sua proacutepria cultura grega expressaram-se em atos como a fundaccedilatildeo de cidades gregas e benfeitorias para os Jogos Oliacutempicos Atos que natildeo se limitaram ao mundo pagatildeo mas tiveram um impacto tambeacutem dentro da Palestina judaica Como resultado a clivagem entre os judeus se intensificou

De fato para os judeus um grupo eacutetnico-religioso que guardava certo distanciamento da cultura pagatilde os

espetaacuteculos ndash natildeo importando seu estilo niacutevel de violecircncia ou competitividade ndash eram censuraacuteveis por

razotildees morais consuetudinaacuterias (MCCLISTER 2008 p 131 PATRICH 2002 p 231-9) Dentro do

pensamento judaico a reaccedilatildeo aos jogos foi tambeacutem evidenciada pelo historioacutegrafo Flaacutevio Josefo que

descreve vaacuterias objeccedilotildees aos espetaacuteculos instituiacutedos por Herodes sempre elucidando sua preocupaccedilatildeo

com a defesa da cultura e moralidade judaicas uma vez que os jogos levariam os homens agrave negligecircncia da feacute

(KASHER 1996 p 152-6) Um trecho em especial embora longo merece ser citado

Assim Herodes com poder absoluto e plena liberdade para fazer o que queria natildeo teve receio de se afastar cada vez mais das tradiccedilotildees de nossos antepassados Aboliu os nossos antigos costumes que lhe deveriam ser inviolaacuteveis para introduzir outros trazendo assim uma estranha mudanccedila na disciplina que mantinha o povo no cumprimento do dever Comeccedilou por instituir jogos lutas e corridas que se faziam cada cinco anos em honra de Augusto e mandou construir para esse fim um circo em Jerusaleacutem e um grande anfiteatro fora da cidade Esses dois edifiacutecios eram soberbos mas contraacuterios aos nossos costumes que natildeo nos permitem assistir a semelhantes espetaacuteculos [] O circo era rodeado de inscriccedilotildees em louvor a Augusto e de trofeacuteus das naccedilotildees que ele tinha vencido Havia ouro e prata ricos vestuaacuterios e pedras preciosas Mandou tambeacutem vir de todas as partes grande quantidade de animais ferozes como leotildees e outros animais cuja forccedila extraordinaacuteria ou alguma qualidade rara suscitava admiraccedilatildeo e curiosidade [] Mas os judeus o consideravam uma deturpaccedilatildeo e uma corrupccedilatildeo da disciplina de seus antepassados Nada lhes parecia mais iacutempio que expor homens ao furor das feras por um prazer tatildeo cruel ou abandonar os santos costumes para abraccedilar os de naccedilotildees idolatras Os trofeacuteus que lhes pareciam cobrir figuras de homens natildeo lhes eram menos insuportaacuteveis porque violavam inteiramente as nossas leis Herodes vendo-os com esses sentimentos julgou natildeo dever usar de violecircncia Falou-lhes com muita afabilidade procurando fazecirc-los compreender que aquele temor procedia apenas de uma vatilde supersticcedilatildeo Mas natildeo conseguiu persuadi-los Convictos de que ele cometia um graviacutessimo pecado declararam que ainda que tolerassem o resto natildeo permitiriam jamais em suas cidades imagens ou figuras de homens porque a sua religiatildeo o proibia expressamente Herodes facilmente concluiu por essas palavras que o uacutenico meio de acalmaacute-los era livraacute-los daquele engano Levou alguns deles ao circo mostrou-lhes vaacuterios trofeacuteus e perguntou-lhes o que pensavam que eram Eles responderam que eram figuras de homens Entatildeo ele mandou tirar todos os ornamentos restando apenas os cabides sobre os quais estavam pendurados Todos acharam graccedila e o tumulto acalmou-se Quase todos vieram a tolerar com facilidade o resto mas alguns natildeo mudaram os seus sentimentos nem a sua opiniatildeo O horror que tinham aos costumes estrangeiros lhes fazia crer que natildeo podiam ser introduzidos sem prejuiacutezo das tradiccedilotildees de nossos antepassados e sem causar a ruiacutena da naccedilatildeo Assim natildeo consideraram mais Herodes seu rei e sim um inimigo E resolveram antes expor-se a qualquer coisa que tolerar tatildeo grande mal (Jos AJ 11660 grifo nosso)20

20 Διὰ τοῦτο καὶ μᾶλλον ἐξέβαινεν τῶν πατρίων ἐθῶν καὶ ξενικοῖς ἐπιτηδεύμασιν ὑποδιέφθειρεν τὴν πάλαι

κατάστασιν ἀπαρεγχείρητον οὖσαν ἐξ ὧν οὐ μικρὰ καὶ πρὸς τὸν αὖθις χρόνον ἠδικήθημεν ἀμεληθέντων ὅσα

πρότερον ἐπὶ τὴν εὐσέβειαν ἦγεν τοὺς ὄχλους πρῶτον μὲν γὰρ ἀγῶνα πενταετηρικὸν ἀθλημάτων

κατεστήσατο Καίσαρι καὶ θέατρον ἐν Ἱεροσολύμοις ᾠκοδόμησεν αὖθίς τ᾽ ἐν τῷ πεδίῳ μέγιστον ἀμφιθέατρον

περίοπτα μὲν ἄμφω τῇ πολυτελείᾳ τοῦ δὲ κατὰ τοὺς Ἰουδαίους ἔθους ἀλλότρια [] τό γε μὴν θέατρον

ἐπιγραφαὶ κύκλῳ περιεῖχον Καίσαρος καὶ τρόπαια τῶν ἐθνῶν ἃ πολεμήσας ἐκεῖνος ἐκτήσατο χρυσοῦ τε

ἀπέφθου καὶ ἀργύρου πάντων αὐτῷ πεποιημένωντὰ δ᾽ εἰς ὑπηρεσίαν οὐδὲν οὕτως ἦν οὔτ᾽ ἐσθῆτος τίμιον οὔτε

[95]

De acordo com Josefo os espetaacuteculos romanos eram uma afronta agraves tradiccedilotildees e agrave moralidade ancestral dos

judeus elementos centrais na definiccedilatildeo de sua identidade cultural Assim a oposiccedilatildeo a eles era um meio de

defender e definir a identidade judaica contra as influecircncias estrangeiras tidas como perniciosas Em Sobre

as Guerras Judaicas elaborada entre 75 e 79 do mesmo autor fica claro que os jogos tambeacutem significavam

para os judeus uma referecircncia agrave autoridade romana exercida sobre sua terra natal bem como a

consequente perda da estabilidade e autonomia poliacutetica A edificaccedilatildeo do mais famoso anfiteatro o Coliseu

ou Anfiteatro Flaacutevio era uma lembranccedila constante dos horrores da guerra da Judeia pois

a construccedilatildeo do Coliseu comeccedilou no iniacutecio dos anos 70 apoacutes a conclusatildeo da primeira guerra judaica e os prisioneiros judeus podem ter trabalhado nele [] A inscriccedilatildeo dedicatoacuteria na fachada da estrutura anunciava para os espectadores alfabetizados que [IMP T CAES VESPASIANVS AVG AMPHITHEATRUM NOVUM EX MANVBIS FIERI IVSSIT] ldquo[O Imperador Ceacutesar] Vespasiano [Augusto] fez esse [novo anfiteatro] a ser erigido a partir dos despojos [de guerra Isto eacute de sua vitoacuteria na Judeacuteia]rdquo [] O anfiteatro mais famoso do Impeacuterio Romano eacute assim um monumento agrave sujeiccedilatildeo dos judeus (MACLEAN 2014 p 585)

Aleacutem disso Josefo (BJ 21 31 55-6) registra que Tito teria executado milhares de judeus cativos atirando-

os aos animais ou obrigando-os a lutar entre si O triunfo que Vespasiano e Tito celebraram em Roma no

veratildeo de 71 incluiu uma procissatildeo de prisioneiros judeus Em certa medida os locais destinados a esses

espetaacuteculos coletivos funcionavam como instrumentos de controle social como mecanismos de dissuasatildeo

aos que de alguma forma atentassem contra os interesses imperiais Era o caso das minorias religiosas por

vezes estigmatizadas como inimigos de Roma Em suma os espetaacuteculos puacuteblicos teriam auxiliado na

humilhaccedilatildeo dos judeus Quando Josefo afirmou que os espetaacuteculos levavam agrave negligecircncia das observacircncias

da feacute (mesmo argumento empregado em 2 Mac 413-15) ele se referia muito mais do que meramente ao

tempo despendido nos espetaacuteculos pois enfatizava maldade impiedade praacuteticas estranhas subordinaccedilatildeo

e idolatria proacuteprios do recinto dos jogos que minavam seus costumes e regras de feacute e praacutetica diluindo

σκευῆς λίθων ὃ μὴ τοῖς ὁρωμένοις ἀγωνίσμασιν συνεπεδείκνυτο παρασκευὴ δὲ καὶ θηρίων ἐγένετο λεόντων τε

πλείστων αὐτῷ συναχθέντων καὶ τῶν ἄλλων ὅσα καὶ τὰς ἀλκὰς ὑπερβαλλούσας ἔχει καὶ τὴν φύσιν ἐστὶν

σπανιώτερα [] ἀσεβὲς μὲν γὰρ ἐκ προδήλου κατεφαίνετο θηρίοις ἀνθρώπους ὑπορρίπτειν ἐπὶ τέρψει τῆς

ἀνθρώπων θέας ἀσεβὲς δὲ ξενικοῖς ἐπιτηδεύμασιν ἐξαλλάττειν τοὺς ἐθισμούς πάντων δὲ μᾶλλον ἐλύπει τὰ

τρόπαια δοκοῦντες γὰρ εἰκόνας εἶναι τὰς τοῖς ὅπλοις περιειλημμένας ὅτι μὴ πάτριον ἦν αὐτοῖς τὰ τοιαῦτα

σέβειν οὐ μετρίως ἐδυσχέραινον Ἐλάνθανον δ᾽ οὐδὲ τὸν Ἡρώδην ἐκταραττόμενοι καὶ βίαν μὲν ἐπάγειν

ἄκαιρον ᾤετο καθωμίλει δ᾽ ἐνίους καὶ παρηγόρει τῆς δεισιδαιμονίας ἀφαιρούμενος οὐ μὴν ἔπειθεν ἀλλ᾽ ὑπὸ

δυσχερείας ὧν ἐδόκουν ἐκεῖνον πλημμελεῖν ὁμοθυμαδὸν ἐξεβόων εἰ καὶ πάντα δοκοῖεν οἰστά μὴ φέρειν

εἰκόνας ἀνθρώπων ἐν τῇ πόλει τὰ τρόπαια λέγοντες οὐ γὰρ εἶναι πάτριον αὐτοῖς Ἡρώδης δὲ τεταραγμένους

ὁρῶν καὶ μὴ ῥᾳδίως ἂν μεταπεσόντας εἰ μὴ τύχοιεν παρηγορίας καλέσας αὐτῶν τοὺς ἐπιφανεστάτους εἰς τὸ

θέατρον παρήγαγεν καὶ δείξας τὰ τρόπαια τί ποτ᾽ ἔστιν ὃ δοκεῖ ταῦτα αὐτοῖς ἐπύθετο τῶν δὲ ἐκβοησάντων

ἀνθρώπων εἰκόνες ἐπιτάξας ἀφαιρεθῆναι τὸν περιθέσιμον κόσμον ἐπιδείκνυσιν αὐτοῖς γυμνὰ τὰ ξύλα τὰ δ᾽

εὐθὺς ἦν ἀποσυληθέντα γέλως καὶ πλεῖστον εἰς διάχυσιν ἐδυνήθη τὸ καὶ πρότερον αὐτοὺς ἐν εἰρωνείᾳ τίθεσθαι

τὰς κατασκευὰς τῶν ἀγαλμάτων Τοῦτον δὲ τὸν τρόπον αὐτοῦ παρακρουσαμένου τὸ πλῆθος καὶ τὴν ὁρμὴν ἣν

ἐπεπόνθεισαν ἐξ ὀργῆς διαχέαντος οἱ μὲν πλείους εἶχον ὡς μεταβεβλῆσθαι καὶ μὴ χαλεπαίνειν ἔτι τινὲς δ᾽

αὐτῶν ἐπέμενον τῇ δυσχερείᾳ τῶν οὐκ ἐξ ἔθους ἐπιτηδευμάτων καὶ τὸ καταλύεσθαι τὰ πάτρια μεγάλων

ἡγούμενοι ἀρχὴν κακῶν ὅσιον ᾠήθησαν ἀποκινδυνεῦσαι μᾶλλον ἢ δοκεῖν ἐξαλλαττομένης αὐτοῖς τῆς

πολιτείας περιορᾶν Ἡρώδην πρὸς βίαν ἐπεισάγοντα τὰ μὴ δι᾽ ἔθους ὄντα καὶ λόγῳ μὲν βασιλέα τῷ δ᾽ ἔργῳ

πολέμιον φαινόμενον τοῦ παντὸς ἔθνους (Trad Vicente Pedroso 2005)

[96]

aquilo que os fazia um grupo coeso religiosamente Esse argumento que eacute reciclado por Tertuliano sob um

vieacutes paleocristatildeo por exemplo quando afirmava que a ida aos espetaacuteculos aleacutem de perigosa pois qualquer

um poderia ser dominado por legiotildees satacircnicas por estarem afastados de Deus e em espaccedilo demoniacuteaco

(Spect 261-4) causava um movimento da perda de controle do corpo e do espiacuterito uma vez que os

espectadores nem a si mesmos se pertenciam trazendo a hipocrisia e a incoerecircncia para dentro da

comunidade paleocristatilde (Spect 165)

A alteridade judaica assim como a paleocristatilde seacuteculos depois teria sido demarcada dentre outras

variaacuteveis pela recusa aos jogos muito embora tenhamos conhecimento de que dentre os espectadores do

circo ou do anfiteatro houvesse judeus Essa praacutetica pode ser confirmada pois segundo Weiss (1999 p

44) havia assentos reservados para os judeus em teatros provinciais MacLean (2014 p 585) afirma que

[] uma parte substancial de judeus foram provavelmente os cidadatildeos romanos e portanto elegiacutevel para se misturar com o resto do puacuteblico [] Judeus em Roma teriam se encontrado na posiccedilatildeo de negociar identidades muacuteltiplas simultaneamente em primeiro lugar decidir se a assistir aos jogos entatildeo se a sentarem-se uns com os outros ou se misturar com o resto da multidatildeo e finalmente como responder agraves demonstraccedilotildees de valor marcial e do imperialismo que eram encenadas na arena

McClister (2008 p 141) interpretando o deuterocanocircnico 1 Livro dos Macabeus (114-15) esclarece

sobre a praacutetica de reversatildeo da circuncisatildeo por epispasmo ciruacutergico uma indicaccedilatildeo de como os elementos

ou marcadores da etnia judaica foram menos fixos do que poderiacuteamos supor O autor de Macabeus retrata

que ldquoconstruiacuteram entatildeo em Jerusaleacutem uma praccedila de esportes (γυμνάσιον gymnaacutesium) segundo os

costumes das naccedilotildees restabeleceram seus prepuacutecios e renegaram a Alianccedila sagrada Assim associaram-se

aos pagatildeos e se venderam para fazer o malrdquo21 A razatildeo para o ato de reconstruccedilatildeo do prepuacutecio se deveu ao

fato de que para gregos e romanos era considerado inaceitaacutevel um homem frequentar um banho puacuteblico

ou ginaacutesio circuncidado Mediante esse relato o fato de alguns judeus decidirem participar em uma das

instituiccedilotildees heleniacutesticas mais importantes o ginaacutesio diz muito sobre o grau de aculturaccedilatildeo heleniacutestica e das

mudanccedilas propiciadas por Herodes no cotidiano e nas sociabilidades da Palestina judaica (MCCLISTER

2008 p 141) Essas interaccedilotildees sociais natildeo eram propriamente uma novidade uma vez que

a disseminaccedilatildeo gradual do poder romano criou uma situaccedilatildeo em que literalmente centenas de grupos eacutetnicos distintos adotaram aspectos da cultura romana pelo menos em algum grau Este foi um processo complexo que envolveu vaacuterios niacuteveis de aceitaccedilatildeo ativa compulsatildeo aquiescecircncia e resistecircncia O espetaacuteculo como uma encenaccedilatildeo puacuteblica de normas e praacuteticas dos romanos era um cenaacuterio particularmente importante onde esse processo foi desenrolado (MACLEAN 2014 p 585)

21 ldquoκαὶ ᾠκοδόμησαν γυμνάσιον ἐν Ιεροσολύμοις κατὰ τὰ νόμιμα τῶν ἐθνῶν καὶ ἐποίησαν ἑαυτοῖς ἀκροβυστίας

καὶ ἀπέστησαν ἀπὸ διαθήκης ἁγίας καὶ ἐζευγίσθησαν τοῖς ἔθνεσιν καὶ ἐπράθησαν τοῦ ποιῆσαι τὸ πονηρόνrdquo (Trad Biacuteblia de Jerusaleacutem 2006) A criaccedilatildeo do ginaacutesio e a valorizaccedilatildeo da cultura helecircnica podem ser observadas tambeacutem no 2 Livro de Macabeus (49-15 18-19) e em Flaacutevio Josefo (AJ 12237-41)

[97]

Estudos recentes como Weiss (1999 p 23-49) e Maclean (2014 p 578-589) demonstraram tambeacutem que

os judeus da Palestina comeccedilaram a aceitar os jogos romanos como parte de seu background sociocultural jaacute

no final do primeiro seacuteculo o que foi atestado pela proliferaccedilatildeo de espetaacuteculos e jogos naquela regiatildeo ao

longo do segundo e terceiro seacuteculos Em outras palavras a reaccedilatildeo judaica aos jogos e espetaacuteculos exprimiu

natildeo apenas um diaacutelogo entre centro e periferia entre estabelecidos e outsiders mas tambeacutem entre os

proacuteprios membros de um grupo religioso na fronteira com integrantes de diversos estamentos sociais que

entravam em conflito e diaacutelogo no ambiente urbano e que deviam por meio de suas praacuteticas e

representaccedilotildees criar e diferir a si mesmos na criaccedilatildeo e coesatildeo de uma identidade de modo que ao mesmo

tempo gerenciassem da melhor forma possiacutevel suas interaccedilotildees na complexidade do dia a dia

Nosso objetivo foi identificar as principais objeccedilotildees aos jogos levantadas por grupos diferentes dentro da

cultura romana especialmente os estoicos e os judeus Isso foi feito de maneira a evidenciar que existiam

diversas criacuteticas aos espetaacuteculos anteriores ao cristianismo e que elas alimentam de alguma maneira as

reflexotildees dos Padres da Igreja No Impeacuterio cada grupo criava uma autorrepresentaccedilatildeo mediante rejeiccedilatildeo

ou aceitaccedilatildeo de determinados marcadores culturais negociando no cotidiano sua identidade processo

para o qual os espetaacuteculos contribuiacuteram sobremaneira Significa dizer tambeacutem que nem sempre a dimensatildeo

retoacuterica corresponde a uma praacutetica coerente e homogecircnea ndash quando o cotidiano estava em pauta a palavra

e a accedilatildeo poderiam ser elementos avessos

A oposiccedilatildeo agrave ida aos espetaacuteculos estava intimamente ligada aos processos de autorrepresentaccedilatildeo e

formaccedilatildeo da identidade Segundo Mammel (2014 p 603) ldquo[] a proacutepria cultura de espetaacuteculo romano [e

tambeacutem helecircnica] desempenhou um papel fundamental na formaccedilatildeo de muitos aspectos da identidade

romana e para a sociedade romana como um todo ateacute mesmo a oposiccedilatildeo aos espetaacuteculos forneceu um

meio de automodificaccedilatildeo individual e dentro do grupordquo Isso significa dizer que ao rejeitar e denunciar as

mazelas reais ou simboacutelicas dos jogos romanos os criacuteticos foram capazes de se definir e posicionar-se em

relaccedilatildeo a outros grupos antigos Para os estoicos a alteridade era manifesta no comportamento das massas

incultas Para os judeus e em breve para os paleocristatildeos os jogos significavam corrupccedilatildeo violecircncia

escravidatildeo e subserviecircncia diante dos pagatildeos que mesmo compartilhando certo background cultural

possuiacuteam outros coacutedigos de moralidade e de identidade

Nesse sentido a disciplina proposta por Tertuliano natildeo seria totalmente ineacutedita uma vez que dentre as

principais ideias do cartaginecircs se destacam os argumentos tomados de empreacutestimo altamente

influenciados pelas correntes filosoacuteficas epicurista ciacutenica e gnoacutestica e como visto neste trabalho estoica

Sobre o uso da filosofia na teologia de Tertuliano Roberts (1924 p 42) afirmou

[98]

quando olhamos para obras de Tertuliano natildeo encontramos qualquer posiccedilatildeo sistemaacutetica adotada que natildeo seja baseada na leitura biacuteblica [] Ele de fato aceita algumas das ideias pagatildes em circulaccedilatildeo desde que elas natildeo contradigam as Escrituras [] por exemplo em De anima onde as ideias teacutecnicas dos estoicos sobre a natureza da alma satildeo implementadas contra Hermoacutegenes embora mais tarde os Padres natildeo considerassem tais ideias como neutras ou objetivas mas sim ao contraacuterio do ensino inspirado Ele era tambeacutem muito disposto a fazer uso de argumentos filosoacuteficos para mostrar o erro da heresia Mas parece que isso tudo satildeo espeacutecies de ferramentas retoacutericas para discutir com os pagatildeos afinal ele poderia igualmente rejeitar em outros contextos um mesmo argumento utilizado por ele

A partir da anaacutelise de Roberts e por meio interpretaccedilatildeo de uma passagem de Sobre a prescriccedilatildeo dos hereges

(79-13) podemos afirmar que a autoridade maacutexima para Tertuliano natildeo seria encontrada em ideias

inventadas ou desenvolvidas por homens e sim apenas na inspiraccedilatildeo divina Em um trecho exaltado arguiu

O que tem Atenas a ver com Jerusaleacutem Que relaccedilatildeo haacute entre a Academia e a Igreja O que os hereges tecircm com os cristatildeos Nossas instruccedilotildees vecircm do poacutertico de Salomatildeo que ensinou ele mesmo que o Senhor deve ser procurado na simplicidade de coraccedilatildeo Fora com todas as tentativas de criar um cristianismo estoico platocircnico e dialeacutetico (Tert Praes her 79-11)22

Assim mesmo que utilizasse vaacuterios argumentos da filosofia Tertuliano (Praes her 712-13) a rejeitou

completamente pois para ele a experiecircncia cristatilde devia ser vivida por experiecircncia empiacuterica Ele afirmava

que esta era a verdade revelada e vivenciada diariamente recusando-se assim a adulteraacute-la com qualquer

outro material meramente transitoacuterio fosse de matriz filosoacutefica ou dos demais textos escritos claacutessicos

(JOHNSON 2001 p 63 ROBERTS 1924 p 42 ss)

Ao mesmo tempo ele tambeacutem polemizou ldquo[] com os autores romanos baseando-se e utilizando as

referecircncias das representaccedilotildees sistematizaccedilotildees e argumentaccedilotildees sobre a religiatildeo romana que se

encontram nestes mesmos autoresrdquo (AMES 2008 p 55) Em grande medida as principais influecircncias

literaacuterias claacutessicas para os autores paleocristatildeos eram os escritores latinos escolares consagrados com os

quais eacute provaacutevel que o cartaginecircs tenha sido alfabetizado23 Fica clara aqui a recepccedilatildeo paleocristatilde dos

claacutessicos da cultura pagatilde uma vez que as formas e gecircneros greco-romanos foram continuamente

22 ldquoQuid ergo Athenis et Hierosolymis quid academiae et ecclesiae quid haereticis et christianis Nostra institutio de porticu Solomonis est qui et ipse tradiderat Dominum in simplicitate cordis esse quaerendum Viderint qui Stoicum et Platonicum et dialecticum christianismum protuleruntrdquo (Trad Cristiana de Assis Serra 2001) 23 Especialmente importante para Tertuliano assim como tambeacutem para toda a tradiccedilatildeo da patriacutestica latina posterior a ele satildeo obras como o Sobre a Natureza dos Deuses de Ciacutecero ou as Antiguidades das coisas humanas e divinas de Varratildeo (AMES 2008 p 47-48) Aleacutem disso em Sobre os espetaacuteculos (58) Tertuliano tambeacutem faz uso de uma obra claacutessica muito relevante para a temaacutetica luacutedica de autoria de Suetocircnio no princiacutepio do segundo seacuteculo nomeada como Ludicrae Historiae hoje perdida Segundo o testemunho do proacuteprio esse trabalho de Suetocircnio foi a fonte principal para elucidar os aspectos mais teacutecnicos as origens mitoloacutegicas e religiosas dos jogos e elementos luacutedicos e a relaccedilatildeo dos espetaacuteculos com as festas religiosas romanas presentes no De spectaculis (58) Contudo Tertuliano em seu texto fez somente menccedilatildeo ao autor e natildeo agrave obra Dessa forma a posteridade soacute conheceu o tiacutetulo dessa obra graccedilas agrave menccedilatildeo da mesma no nono livro das Noites Aacuteticas (de Aulo Geacutelio (973) ldquoa partir desta uacuteltima podemos deduzir algumas das caracteriacutesticas do trabalho deste historioacutegrafo [Suetocircnio] Nela se examinavam quatro tipos de espetaacuteculos os ludi circenses os theatrici os athletici e finalmente o munus gladiatorio ndash era provaacutevel que estivesse compreendido tambeacutem os ludi uenatoriirdquo (JIMEacuteNEZ SAacuteNCHEZ 2001 p 16)

[99]

absorvidos e renovados das mais diferentes formas pelos autores cristatildeos Elucidativo eacute perceber que

mesmo Tertuliano fazendo uso em seu texto dos autores claacutessicos como Varratildeo (Ling 5154 em Spect 53)

Suetocircnio (Ludicra Historia em Spect 58) e Virgiacutelio (Georg 3113-114 em Spect 92) em outra parte de sua

obra renegou toda a literatura pagatilde Assim o apologista explicitou que os ouvidos e os olhos do verdadeiro

cristatildeo deveriam estar a serviccedilo do espiacuterito e para que isso fosse efetuado o fiel deveria rejeitar toda a

literatura claacutessica vista como profana em especial as obras de trageacutedia e comeacutedia (Tert Spect 175)

Mesmo que ele proacuteprio tenha utilizado o conhecimento e os textos claacutessicos Tertuliano foi peremptoacuterio

toda a literatura claacutessica natildeo deveria ser lida nem citada pois isso seria consentir com seu conteuacutedo

lascivo criminoso e devasso (Spect 294) A justificativa para que ele acessasse essa tradiccedilatildeo portanto era

a de exposiccedilatildeo do engano demoniacuteaco presente nesses textos

O emprego do gecircnero apologeacutetico pelos autores latinos paleocristatildeos mediante a apropriaccedilatildeo dos cacircnones

claacutessicos principalmente em momentos de enfrentamento retoacuterico representava uma estrateacutegia

discursiva de um grupo que lutava pelo estabelecimento de sua identidade e por maior influecircncia social em

um contexto de desigual de distribuiccedilatildeo do poder e de busca de legitimidade social (SIDER 1978 p 340)

Em grande medida isso se explica segundo Corbeill (2007 p 70) porque a praacutetica retoacuterica especialmente

nos periacuteodos republicano e imperial romanos trabalhou de modo a reafirmar o pensamento hieraacuterquico

existente ou propor uma contestaccedilatildeo por meio do embate discursivo ou do convencimento da audiecircncia

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Entre manuscritos e impressos do corpus Cypriani a transmissatildeo das obras de Cipriano de Cartago

Carolline da Silva Soares

carollinesgmailcom

A produccedilatildeo literaacuteria de Cipriano eacute vasta sobretudo se

consideramos o breve periacuteodo em que ocupou o episcopado de

Cartago entre 249 e 258 e redigiu os seus escritos Considerava

Tertuliano o seu mestre e de fato foi muito influenciado pelos

escritos dele Poreacutem seu estilo literaacuterio natildeo eacute impetuoso como o de

Tertuliano pelo contraacuterio sua maneira de escrever eacute considerada

mais calma tranquila e ponderada (CARDOSO 2011 p 182) O

corpus Cypriani tal como o conhecemos hoje abarca 81 cartas e 13

tratados de extensatildeo proveniecircncia e conteuacutedo muito diversos

Algumas cartas se perderam e provavelmente alguns de seus

sermotildees tambeacutem Cipriano foi liacuteder eclesiaacutestico eminentemente de

accedilatildeo como demonstra sua intensa correspondecircncia

O objetivo em nossa tese de doutorado foi demonstrar como se

desenvolveu o conflito em torno do rebatismo dos lapsi na

comunidade cartaginesa liderada por Cipriano e analisar a defesa

que ele fez acerca da autoridade episcopal bem como da ldquopurezardquo

da Igreja Assim selecionamos as 81 cartas e oito dos tratados de

Cipriano ndash Ad Donatum Ad Demetrianum De lapsis De catholicae

Ecclesiae unitate De mortalitate De habitu uirginum De opere et

eleemosynis e De bono patientiae ndash como fonte documental do nosso

[103]

trabalho Tais tratados nos permitiram elucidar as praacuteticas cotidianas dos cristatildeos em interaccedilatildeo com os

adeptos de outras crenccedilas em Cartago e as admoestaccedilotildees de Cipriano com a finalidade de disciplinar a

congregaccedilatildeo cartaginesa com vistas a manter a unidade da igreja Por isso neste artigo iremos tratar apenas

dos oito tratados que utilizamos para a escritura de nossa tese

A composiccedilatildeo dos tratados

Considerados em conjunto e tendo em conta o conteuacutedo e a forma Cipriano possui 13 tratados autecircnticos

que podem ser repartidos em pelo menos trecircs grupos O primeiro deles se refere aos tratados de teor

apologeacutetico como eacute o caso do Ad Donatum Quod idola dii non sint Ad Demetrianum Ad Fortunatum e Ad

Quirinum o segundo grupo aos escritos de teor disciplinar tais como o De lapsis De catholicae Ecclesiae

unitate e De mortalitate e o terceiro por sua vez abrange os sermotildees e exortaccedilotildees pastorais como o De

habitu uirginum De dominica oratione De opere et eleemosynis De bono patientiae e De zelo et lioure

As Epistulae de Cipriano

A preeminecircncia da igreja de Cartago os impasses da atividade pastoral a cronologia dos conciacutelios sua

periodicidade e os temas neles discutidos entre outros assuntos satildeo aspectos que a correspondecircncia de

Cipriano nos permite conhecer com riqueza de detalhes (SALCEDO GOacuteMEZ 2002 p 9) A correspondecircncia

de Cipriano eacute abundante e nos traz informaccedilotildees valiosas sobre a organizaccedilatildeo da Igreja a disciplina

eclesiaacutestica os fundamentos da doutrina e a liturgia As Epistulae nos informam sobretudo acerca do

cotidiano de um bispo influente numa das proviacutencias mais importantes do Impeacuterio Romano em meados do

seacuteculo III dC

As cartas que compotildeem o corpus Cypriani foram destinadas tanto a indiviacuteduos em geral cleacuterigos quanto a

grupos de trecircs ou quatro pessoas e tambeacutem agraves congregaccedilotildees de diversas localidades especialmente agrave de

Cartago1 O estilo de Cipriano foi quase sempre o de um orador mesmo quando ele escreve a pessoas

privadas2

O epistolaacuterio tal como o possuiacutemos hoje foi constituiacutedo pouco a pouco Cipriano guardava coacutepia das

correspondecircncias que enviava e a elas juntava as respostas que recebia Assim tinha sempre agrave matildeo as cartas

que havia escrito podendo exibi-las ou enviaacute-las a outros destinataacuterios Agrave Epistula 20 por exemplo mdash

1 A foacutermula ldquoaos presbiacuteteros aos diaacuteconos e a todo o povordquo eacute frequente nas Epistulae Cypriani 2 Quanto a isso eacute importante ressaltar que Cipriano antes da sua conversatildeo ensinava retoacuterica em Cartago

[104]

enviada ao clero de Roma com a finalidade de justificar o fato de ter fugido durante a perseguiccedilatildeo de Deacutecio

mdash Cipriano anexou a coacutepia de treze cartas destinadas aos sacerdotes de Cartago aos confessores aos

exilados e a todos os fieacuteis Assim o proacuteprio autor comeccedilou a compor coleccedilotildees de cartas agrupadas por tema3

Das 81 peccedilas que compotildeem o corpus epistolar nas ediccedilotildees modernas 59 foram escritas por Cipriano para

indiviacuteduos ou agraves comunidades 16 foram escritas a Cipriano ou ao clero de Cartago e se referem a assuntos

do episcopado e seis cartas satildeo coletivas oriundas dos siacutenodos nos quais Cipriano foi o principal ou o uacutenico

redator (DONNA 1964 p ix) O corpus epistolar de Cipriano eacute uma fonte indispensaacutevel para a Histoacuteria da

Igreja e do Direito Canocircnico sobretudo por ser de um periacuteodo turbulento para os cristatildeos na medida em que

nos informa sobre os problemas e as controveacutersias que Cipriano e demais liacutederes eclesiaacutesticos tiveram que

enfrentar em meados do seacuteculo III num contexto de perseguiccedilatildeo (GARCIacuteA SANCHIDRIAacuteN 1998 p 35)4

Algumas cartas nos trazem o eco das palavras de personalidades da eacutepoca como Novaciano Corneacutelio

Estevatildeo e Firmiliano de Cesareia e nos revelam as esperanccedilas os temores a vida e a morte enfim o

cotidiano dos cristatildeos em uma das proviacutencias mais importantes do Impeacuterio Romano

O contexto em que o bispo escreveu as suas cartas foi o das duas perseguiccedilotildees aos cristatildeos a de Deacutecio em

250 e a de Valeriano em 258 eacutepoca marcada tambeacutem pela atuaccedilatildeo episcopal de Cipriano jaacute que foi bispo

entre 249 e 258 Os conciacutelios provinciais realizados todos os anos em Cartago quando havia uma pausa na

perseguiccedilatildeo permitiram que Cipriano e os outros bispos africanos com seus correligionaacuterios da Numiacutedia e

da Mauritacircnia discutissem os problemas mais urgentes enfrentados pela Igreja (DONNA 1964 p x)

A importacircncia dos fatos que satildeo expostos nas epistulae de Cipriano mdash duas perseguiccedilotildees em oito anos dois

cismas entre sete e oito conciacutelios provinciais uma discordacircncia que dividiu a igreja em dois campos

antagocircnicos mdash eacute mais que suficiente para estimular o historiador a explorar as cartas cipriacircnicas Em meio a

esses eventos destaca-se a atuaccedilatildeo de Cipriano como bispo de Cartago

A carta no periacuteodo da Antiguidade era o principal suporte de comunicaccedilatildeo e circulaccedilatildeo de notiacutecias em uma

sociedade como a greco-romana na qual natildeo existiam meios de comunicaccedilatildeo de massa As missivas

tornaram-se um veiacuteculo importante para a troca de informaccedilotildees tanto em acircmbito privado quanto puacuteblico

No entanto natildeo iremos tratar neste artigo acerca das especificidades do gecircnero epistolar na Antiguidade

haja vista que jaacute fizemos isso em um outro artigo intitulado O gecircnero epistolar na Antiguidade a importacircncia

das cartas de Cipriano para a Histoacuteria do cristianismo norte africano (seacuteculo III dC) publicado em 2013 na revista

3 Entre as 81 epistulae podemos distinguir quatro grupos de temas principais aquelas que tratam de assuntos de disciplina (1 a 4) as que tratam da perseguiccedilatildeo de Deacutecio da reconciliaccedilatildeo dos apoacutestatas e da luta contra os cismaacuteticos (5 a 68) as que tratam do batismo ministrado pelos dissidentes (69 a 75) e as que tratam da perseguiccedilatildeo de Valeriano (76 a 81) (BAYARD 1945 p xlvi) 4 Eacute importante ressaltar que quase todos os manuscritos diferem em relaccedilatildeo ao nuacutemero e a ordem das cartas

[105]

Histoacuteria e Cultura Diante disso iremos agora nos reportar agrave transmissatildeo das obras de Cipriano ao longo do

tempo ateacute chegar aos dias atuais

A transmissatildeo do corpus Cypriani

As obras de Cipriano foram escritas em latim e possivelmente sob a forma de codex o livro com paacuteginas que

substituiu o volumen mdash livro-rolo de papiro ou pergaminho mdash a partir do seacuteculo II dC e tornou-se o suporte

preferido dos escritores cristatildeos e de seus leitores5 Foram os cristatildeos tanto os do Ocidente quanto os do

Oriente que mais rapidamente adotaram o codex de tal forma que a maior parte da literatura cristatilde foi desde

o iniacutecio conservada nesse tipo de suporte

Apoacutes a redaccedilatildeo os libelli e epistulae de Cipriano foram reproduzidos e disseminados entre as comunidades

cristatildes Era muito comum na Antiguidade especialmente nos ciacuterculos cristatildeos que aquilo que circulava por

escrito fosse natildeo apenas lido mas ouvido de maneira coletiva o que pode ter contribuiacutedo para a

disseminaccedilatildeo da obra de Cipriano pois um uacutenico livro poderia ser compartilhado por muitas pessoas (FOX

1998 p 155) Durante o periacuteodo imperial romano quando os textos eram escassos e natildeo havia um niacutevel

muito elevado de alfabetizaccedilatildeo um uacutenico leitor por meio da leitura puacuteblica transmitiria informaccedilotildees para

um puacuteblico bem maior que o de leitores propriamente ditos

A partir do seacuteculo XI o ofiacutecio dos copistas mdash geralmente monges beneditinos mdash eacute intensificado Nesse

periacuteodo a Igreja era responsaacutevel pela preservaccedilatildeo de boa parte da produccedilatildeo literaacuteria da Antiguidade Os

monges copistas viviam grande parte da vida dentro das bibliotecas eclesiaacutesticas mdashscriptoria mdash copiando as

obras antigas com o objetivo de aumentar o acervo das igrejas e monasteacuterios (QUEIROZ 2008) Quanto

mais vezes uma obra fosse copiada maiores eram as chances de que fosse preservada (HOFFMAN 2010 p

109) Algumas obras no entanto apesar de bastante conhecidas e lidas durante a Antiguidade e Idade Meacutedia

experimentaram um processo de transmissatildeo complexo Esse eacute o caso dos escritos de Cipriano

Desde Hartel (1868-1871) a difusatildeo dos manuscritos que contecircm os libelli e as epistulae de Cipriano tem sido

objeto de estudo por meio de numerosos e importantes trabalhos como The tradition of manuscripts a study

in the transmission of St Cyprian (1961) de Beacutevenot Cyprianische Untersuchungen de Koch (1926) Contributo

allo studio della tradizione manoscritta degli Opuscula di Cipriano (1972) de Moreschini Le Codex Veronensis de

saint Cyprien (1968) de Petitmengin Note sulla tradizione manoscritta di alcuni trattati di Cipriano (1971) de

5 Acerca do sucesso e da praticidade do codex no Mundo Antigo sobretudo nos ciacuterculos cristatildeos ver a discussatildeo contida em Chartier e Cavallo (2002) e Gamble (1995)

[106]

Simonetti e Die cyprianische Briefsammlung (1904) de Von Soden que redefiniram a histoacuteria da tradiccedilatildeo

manuscrita embora ela ainda natildeo tenha sido plenamente elucidada

Podemos no entanto fixar o nome a localizaccedilatildeo e a descriccedilatildeo senatildeo de todos mas dos principais

manuscritos Satildeo conhecidos cerca de 200 manuscritos de Cipriano anteriores ao seacuteculo XV dos quais vinte

foram redigidos antes do seacuteculo X Eles se encontram dispersos por vaacuterios paiacuteses da Europa especialmente

na Franccedila e na Itaacutelia A Inglaterra conserva algumas paacuteginas do codex mais antigo de 400 aproximadamente

conservado no British Museum o Add 40615 A e alguns manuscritos que derivam deste confeccionados no

seacuteculo XII

Os dois manuscritos completos mais antigos dos tratados de Cipriano satildeo denominados S e V O primeiro

encontra-se em Paris eacute o codex Parisianus lat 10592 de meados do seacuteculo VI Ele pertencia ao chanceler

Seacuteguier daiacute o seu antigo nome Seguierianus e sua sigla S Ele fazia parte do fundo Coislin 185 CLA V 602 S

conteacutem os seguintes tratados Ad Donatum De habitu uirginum De lapsis De oratione dominica De catholicae

Ecclesiae unitate De mortalitate De bono patientiae De opere et eleemosynis Ad Fortunatum e as epistulae

Alguns manuscritos satildeo incompletos no iniacutecio ou no fim e agraves vezes em ambos Apesar de alguns erros

grosseiros e facilmente identificaacuteveis detectados por Molager (1982 p 56) esse codex continua a ser um

dos mais valiosos

O codex Veronensis era do seacuteculo VI e pertencia aos cacircnones de Verona Ele desapareceu no seacuteculo XVI

poreacutem sabemos de sua existecircncia graccedilas a Latino Latini que em marccedilo de 1559 fez anotaccedilotildees criacuteticas nas

margens de uma ediccedilatildeo de Cipriano feita por Erasmo e publicada em Lyon em 1537 A comparaccedilatildeo efetuada

por Latini entre V e a ediccedilatildeo de Erasmo encontra-se conservada na Biblioteca de Naacutepoles e compotildee o fondo

Brancacciano Rari A 19 Eacute considerado um documento de base e foi utilizado por Dom R Weber na coleccedilatildeo

do Corpus Christianorum Em um artigo denominado Le codex Veronensis de Saint Cyprien para a Revue des

Eacutetudes Latines Petitmengin (1972) relata a histoacuteria desse manuscrito A credibilidade do codex Veronensis foi

contestada por pesquisadores como Hartel (1868-1871) que natildeo o utiliza por consideraacute-lo merae

coniecturae A mesma atitude ceacutetica eacute adotada por Beacutevenot (1971) em sua ediccedilatildeo do De catholicae Ecclesiae

unitate Martin (1960) ao contraacuterio confere ao codex Veronensis grande autoridade (summae auctoritatis) Eacute

Petitmengin (1968) que no artigo citado acima reabilita plenamente V Para o autor o manuscrito deriva de

uma espeacutecie de ldquoediccedilatildeo criacuteticardquo estabelecida na Aacutefrica logo apoacutes a morte de Cipriano O codex Veronensis

contecircm os tratados Ad Donatum De habitu uirginum De opere et eleemosynis De zelo et liuore De catholicae

Ecclesiae unitate De mortalitate De bono patientiae De lapsis Ad Fortunatum De oratione dominica Ad Quirinum

Quod idola dii non sint e as epistulae

[107]

Haacute uma diversidade de outros coacutedices que contecircm as obras de Cipriano como Q M Y W G entre outros Q

denominado codex Trecensis 581 eacute proveniente de Saint-Amand ou de Salzbourg e estaacute localizado na

Biblioteca Municipal de Troyes Franccedila Eacute originaacuterio dos seacuteculos VIII e IX e conteacutem a maior parte dos tratados

e das cartas M eacute proveniente dos Codices Latini Antiquiores IX estaacute localizado na Biblioteca de Munique e eacute

oriundo dos seacuteculos VIII-IX Ele se origina de Q e apresenta o mesmo conteuacutedo Y tambeacutem estaacute localizado na

Biblioteca de Munique e eacute da primeira metade do seacuteculo IX Jaacute o codex Wirceburgensis representado pela letra

W localiza-se na Biblioteca da universidade de Wurtzbourg Uma parte desse manuscrito eacute do iniacutecio do

seacuteculo IX (folhas 1 a 43) e a outra parte eacute de meados desse mesmo seacuteculo Ele compreende quase todos os

tratados de Cipriano e foi corrigido por alguns editores que o denominaram Wordf ou Wmg nome que se impotildee

frequentemente6 G denominado codex Sangallensis 89 estaacute localizado em Saint-Gall Suiacuteccedila eacute tambeacutem

proveniente do seacuteculo IX e conteacutem cinco tratados de Cipriano De bono patientiae De oratione dominica De

opere et eleemosynis De mortalitate e o De catholicae Ecclesiae unitate Esse manuscrito difere muito de W mas

eacute muito proacuteximo de S e de V Beacutenevot o inclui em sua classificaccedilatildeo e o alocou na primeira classe dos

manuscritos de Cipriano7

As ediccedilotildees das obras de Cipriano comeccedilam a ser elaboradas na segunda metade do seacuteculo XV A primeira

refere-se agrave Editio princeps Romana editada em Roma em 1471 por J Andreas depois contamos com a Editio

Veneta de Venise Franccedila editada em 1471 que se configura como uma recuperaccedilatildeo da ediccedilatildeo precedente

com algumas modificaccedilotildees ortograacuteficas em seguida temos a Editio Veneta tambeacutem de Venise redigida em

1483 que conteacutem algumas melhorias em relaccedilatildeo agrave anterior com um breve sumaacuterio ao iniacutecio de cada tratado

e das Cartas A Editio Memmingensis elaborada em Memmingen Alemanha no ano 1477 possui um texto

6 De acordo com Molager (1982 p 58) o manuscrito comporta algumas interpolaccedilotildees inuacuteteis e agraves vezes errocircneas Jaacute Hartel (1868-1871) o considera como um dos melhores manuscritos de Cipriano Beacutevenot (1961) apesar de consideraacute-lo importante natildeo o utiliza 7 Como dito anteriormente existem cerca de 200 manuscritos com as obras de Cipriano no entanto natildeo eacute nossa intenccedilatildeo aqui listar todos Pretendemos apenas evidenciar o quatildeo profiacutecua foi a multiplicaccedilatildeo desses manuscritos ao longo dos seacuteculos e consequentemente a leitura dos escritos de Cipriano Por isso preferimos trazer as informaccedilotildees acerca dos outros manuscritos em anexo Os manuscritos tambeacutem foram agrupados em famiacutelias pelo fato de apresentarem semelhanccedilas entre si Poreacutem mesmo assim eacute difiacutecil articulaacute-las Hartel (1868-1871) pensa que tais famiacutelias de manuscritos podem ser distinguidas em trecircs grupos LNP MGT e CR Segundo esse autor os dois primeiros grupos satildeo provenientes de um arqueacutetipo que remonta ao seacuteculo VII ou VIII Ao contraacuterio de Hartel von Soden (1904) defende que a hipoacutetese para a formaccedilatildeo da primeira famiacutelia eacute vaacutelida no entanto acerca da segunda famiacutelia considera que T deve ser separado de MG Quanto agrave famiacutelia CR para von Soden ela natildeo existe7 Em sua obra The tradition of MSS A study in the transmission of St Cyrianrsquos Treatises Beacutevenot (1961 p 94-95) reuacutene os manuscritos semelhantes para estabelecer o texto do De catholicae Ecclesiae unitate Uma primeira classe de manuscritos inclui as famiacutelias M (m p e em apoio o codex de Oxford) W (WY) L (a u e em apoio l w) P (P k e em apoio Vatic Reg Lat 117 Turin D IV 37 Escurial S I II) Entre as famiacutelias W e L Beacutevenot inclui o manuscrito G isolado A segunda classe de manuscritos compreende as famiacutelias D (D com os manuscritos cistercienses Berlin Th Lat Fol 700 Dijon 124 Paris Nouv Acq Lat 1792 Bamberg Patr 64) E (e f com o segundo Oxford Bodl 210 Lambeth 106 Oxford New Coll 130) Beacutevenot coloca B entre as famiacutelias D e E em seguida apoacutes E coloca um manuscrito de Berne Bibl Bongarsiana 235 (aparentado com V) Uma terceira classe inclui a famiacutelia H composta por H T e h Pierre Petitmengim concorda com todos os agrupamentos de Beacutevenot mas confere ao codex Veronensis maior importacircncia que o antecessor atestando que ele possui informaccedilotildees que nenhum outro manuscrito apresenta

[108]

semelhante ao da editio romana mas conteacutem os tratados e as Cartas em uma ordem mais loacutegica e por fim haacute

a Editio Dauentriensis de Daventry Inglaterra elaborada em 1477 que conteacutem apenas alguns tratados

As ediccedilotildees datadas do seacuteculo XVI satildeo a Editio Ramboltiana redigida em Paris em 1512 que se configura

como uma recuperaccedilatildeo da editio Veneta mas com uma nova classificaccedilatildeo das Cartas divididas em quatro

livros a Editio Erasmiana de Basel Suiacuteccedila de 1520 que comporta em seu iniacutecio a Passio Cypriani e conteacutem

apenas alguns tratados Essa ediccedilatildeo eacute muito conhecida em razatildeo das notas de Erasmo que compreende

sendo usada como referecircncia para outras ediccedilotildees como a editio Erasmiana de Basel redigida em 1530 que

conteacutem o Ad Fortunatum e a editio Erasmiana de Colocircnia elaborada em 1544 que inclui um novo index mais

abundante que o antigo e melhor repartido Apoacutes as ediccedilotildees de Erasmo contamos com a Editio Manutiana

proveniente de Roma de 1563 preparada por Latino Latini o qual utilizou o manuscrito V natildeo usado nas

ediccedilotildees de Erasmo8 a Editio Moreliana de Paris redigida em 1564 que conteacutem vaacuterios tratados ineacuteditos mas

erroneamente atribuiacutedos a Cipriano e as uacuteltimas cartas e por fim a Editio Pameliana da Antueacuterpia Beacutelgica

elaborada em 1568 que segundo Hartel (1868-1871 p LXXXII) natildeo eacute uma ediccedilatildeo confiaacutevel

As ediccedilotildees organizadas no seacuteculo XVII satildeo apenas duas a Editio Rigaltiana de Paris elaborada em 1648 por

Rigault e a Editio Oxoniensis de Oxford de 1682 compostas por Fell e Pearson que utilizaram numerosos

manuscritos alguns muito antigos Essa ediccedilatildeo oferece um meacuterito a ordem cronoloacutegica das epistulae se

aproxima da ordem correta que possuiacutemos Outra ediccedilatildeo existente eacute a Editio Baluziana elaborada em Paris

e comeccedilou a ser impressa em 1717 e 1718 Essa ediccedilatildeo eacute baseada na comparaccedilatildeo de numerosos coacutedices e

nos comentaacuterios de Latini Aleacutem disso ela foi copiada vaacuterias vezes no seacuteculo XIX em Milatildeo em 1835 e em

Paris em 1836 Em 1844 a coleccedilatildeo Migne de Paris reproduziu a Editio Baluziana com numerosas correccedilotildees

Podemos contar ainda com as Editiones Krabingeri de Tubinga Alemanha que foram elaboradas em duas

etapas a primeira parte datada de 1853 conteacutem os tratados De catholicae Ecclesiae unitate De lapsis e De

habitu uirginum e a segunda de 1859 possui os tratados Ad Donatum De dominica oratione De mortalitate

Ad Demetrianum De opere et eleemosynis De bono patientiae e De zelo et liuore Essas ediccedilotildees foram compostas

por Krabinger e satildeo as primeiras ediccedilotildees alematildes das obras de Cipriano O autor utilizou os manuscritos das

abadias de Bamberg e de Wurtzbourg valendo-se tambeacutem da comparaccedilatildeo criacutetica do codex Veronensis daiacute as

excelentes correccedilotildees que essas ediccedilotildees possuem

Em relaccedilatildeo agraves ediccedilotildees criacuteticas mais recentes as mais utilizadas satildeo a de Hartel (1868-1871) Hans Von Soden

(1904) e Bayard (1925) A ediccedilatildeo de Hartel intitulada S Thasci Caecilii Cypriani Opera Omnia foi redigida em

8 Quando Latino Latini percebeu que havia modificado profundamente o texto do manuscrito V ele natildeo deixou seu nome ser incluiacutedo na ediccedilatildeo por isso ela possui o nome de Manutius

[109]

Viena entre 1868 e 1871 e compotildee a seacuterie do Corpus Scriptorum Ekklesiasticorum Latinorum (CSEL)9 Essa

ediccedilatildeo foi durante um seacuteculo a grande ediccedilatildeo consultada pelos especialistas Hoje apesar das deficiecircncias

relacionadas agrave traduccedilatildeo os editores ainda a utilizam Em sua ediccedilatildeo Hartel adotou mais de quarenta

manuscritos descrevendo-os em seu prefaacutecio de acordo com o grau de importacircncia Possivelmente Hartel

conhecia uma quantidade bem maior de manuscritos mas como eles continham muitas interpolaccedilotildees o

autor considerou-os irrelevantes

Hans von Soden (1904) em sua ediccedilatildeo intitulada Die cyprianische Briefsammlung cita 431 manuscritos dos

quais apenas 157 contecircm um corpus relevante segundo o autor Von Soden utilizou o estudo de Hartel

principalmente sob o ponto de vista de uma criacutetica severa De seu vasto trabalho emergiram conclusotildees

importantes (BAYARD 1945 p xl)

Outro grande editor das obras de Cipriano eacute Bayard que possui a melhor ediccedilatildeo moderna das cartas

denominada Correspondance editada em Paris em 192510 Em relaccedilatildeo agrave criacutetica textual Bayard natildeo despreza

nem a classificaccedilatildeo de Hartel e nem a de von Soden Ele considera que a criacutetica dos textos deve ser feita com

precauccedilatildeo uma vez que os manuscritos satildeo resultado da junccedilatildeo ou reuniatildeo de outros Eacute por isso por

exemplo que apesar da diferenccedila de origem existente entre os manuscritos pode-se constatar uma

concordacircncia textual entre alguns

As possibilidades de pesquisa a partir do Corpus Cypriani

O episcopado de Cipriano durou apenas nove anos de 249 a 258 Em tatildeo pouco tempo no entanto o bispo

produziu um consideraacutevel nuacutemero de obras que nos informam acerca da vida e dos problemas enfrentados

pelos cristatildeos numa eacutepoca de instabilidade no Impeacuterio Romano e de crise dentro da igreja cartaginesa uma

vez que o periacuteodo em que Cipriano escreveu suas obras foi marcado pelas primeiras perseguiccedilotildees oficiais aos

cristatildeos primeiramente com Deacutecio e depois com Valeriano

As cartas e tratados de Cipriano trazem importantes informaccedilotildees acerca do dia-a-dia dos cristatildeos

cartagineses de meados do seacuteculo III Poreacutem mesmo diante de um material tatildeo profiacutecuo percebemos que os

estudos produzidos acerca dos escritos de Cipriano ainda satildeo escassos principalmente no que tange ao

cotidiano dos cristatildeos e agrave interaccedilatildeo com os adeptos do paganismo e do judaiacutesmo no espaccedilo da cidade de

9 O CSEL eacute uma seacuterie de ediccedilotildees criacuteticas dos Padres latinos da Igreja publicada pelo comitecirc da Academia de Ciecircncias da Aacuteustria 10 Em relaccedilatildeo agrave numeraccedilatildeo das Cartas em nenhum manuscrito elas aparecem ordenadas cronologicamente Mesmo os manuscritos mais completos natildeo trazem essa ordem Eacute o caso de V que dispotildee as correspondecircncias em duas partes primeiro as cartas escritas por Cipriano e depois as cartas endereccediladas ao bispo Nas cartas enviadas por Cipriano a ordem eacute a seguinte aos maacutertires ao clero e ao povo de Cartago ao clero e ao povo de Roma e agraves seacutes da Aacutefrica

[110]

Cartago As anaacutelises baseadas nas obras de Cipriano muitas vezes focam um vieacutes teoloacutegico pouco

contribuindo para o conhecimento histoacuterico Em relaccedilatildeo aos estudos em liacutengua portuguesa a produccedilatildeo

historiograacutefica eacute praticamente nula sendo mais comum os trabalhos em liacutengua inglesa espanhola e francesa

Muitos satildeo os temas tratados por Cipriano em suas obras no entanto um dos nossos objetivos foi o de

analisar os coacutedigos de conduta contidos nas cartas e tratados que visavam a disciplinarizaccedilatildeo dos fieacuteis e a

ldquopurificaccedilatildeordquo da igreja cartaginesa em meados do seacuteculo III Aleacutem disso a interaccedilatildeo social entre os adeptos

dos sistemas religiosos em Cartago mdash cristianismo paganismo e judaiacutesmo mdash eacute outro aspecto relevante da

nossa pesquisa O fato de alguns cristatildeos apoacutes a conversatildeo natildeo abandonarem seus haacutebitos e costumes

antigos identificados com o modus uiuendi pagatildeo eou judaico como por exemplo a presenccedila nas sinagogas

nos teatros nas arenas nos anfiteatros nas termas e nas festas ciacutevicas nos levou a conjecturar que nem

sempre os cristatildeos se propunham a cumprir as determinaccedilotildees emanadas pelas lideranccedilas eclesiaacutesticas como

Cipriano

Averiguamos o cotidiano as relaccedilotildees de sociabilidade e os intercacircmbios culturais e religiosos entre os

cristatildeos e os adeptos das outras crenccedilas bem como a relaccedilatildeo dos fieacuteis com os espaccedilos da cidade greco-

romana Com o intuito de orientar a congregaccedilatildeo cartaginesa que julgava ter relaxado nos costumes e

praacuteticas Cipriano recomendou aos cristatildeos alguns coacutedigos disciplinais que deveriam ser adotados

Destacamos portanto a importacircncia da obra de Cipriano em virtude do anseio que demonstra de regular a

congregaccedilatildeo cartaginesa na medida em que tenta apartar os cristatildeos dos adeptos de outras crenccedilas e dos

espaccedilos citadinos que o bispo avaliava como perigosos impuros e por isso capazes de poluir a assembleia

Tomando como ponto de partida essas informaccedilotildees preliminares identificamos as propostas de

Cipriano que visavam agrave formaccedilatildeo de um cristatildeo ldquolegiacutetimordquo livre de hibridismos e ldquoimpurezasrdquo Tal cristatildeo

se caracterizaria por exemplo pelo zelo agrave continecircncia sexual pela esmola caridade oraccedilatildeo e disciplina aleacutem

de por ser um devoto que respeitasse a autoridade episcopal a legitimidade do bispo e natildeo frequentasse os

espaccedilos proibidos da cidade proacuteprios de pagatildeos e judeus

A essa conjuntura somam-se as primeiras perseguiccedilotildees oficiais aos cristatildeos Iniciadas pelo imperador

Deacutecio quando este assumiu a puacuterpura imperial em 249 e pretendeu restaurar a pax deorum elas

tiveram prosseguimento com Valeriano em 253 que deu continuidade agrave poliacutetica persecutoacuteria de Deacutecio

Assim investigamos tambeacutem como tais perseguiccedilotildees e a situaccedilatildeo de instabilidade que marcou o Impeacuterio

durante o seacuteculo III influenciaram a atuaccedilatildeo pastoral de Cipriano em Cartago

Evidenciamos os conflitos e os problemas que afetaram a ecclesia de Cartago em meados do seacuteculo III e as

atitudes e soluccedilotildees tomadas pelo bispo Cipriano para tentar superar todas essas dificuldades Em seus

escritos Cipriano esclarece a sua linha de raciociacutenio acerca do que eram segundo ele as atitudes e praacuteticas

[111]

de um cristatildeo ilegiacutetimo Evidenciamos as caracteriacutesticas que Cipriano elencou e que demonstram as atitudes

de um verdadeiro cristatildeo ou seja de um cristatildeo considerado legiacutetimo livre de hibridismos

Segundo o seu testemunho Cipriano considerava que um cristatildeo verdadeiramente comprometido com os

ensinamentos de Cristo natildeo deveria afrontar a autoridade estabelecida isto eacute o poder episcopal uma vez

que o bispo fora escolhido por Deus eleito pelo povo e confirmado por seus correligionaacuterios Logo Cipriano

esperava que um legiacutetimo cristatildeo natildeo duvidasse da posiccedilatildeo ocupada por seu ldquopastorrdquo A disciplina deveria

reger a conduta de um verdadeiro cristatildeo de tal modo que os conselhos e ordens do bispo deveriam ser

cumpridos Natildeo era permitida ao cristatildeo a circulaccedilatildeo pelos espaccedilos considerados perigosos da cidade

(termas teatro circo sinagoga entre outros) Ele deveria ao contraacuterio trabalhar e se dedicar quase que

exclusivamente agrave sua comunidade

Poreacutem nem todos os cristatildeos seguiram as prescriccedilotildees do bispo desencadeando um problema dentro da

comunidade cartaginesa que precisou ser discutido e resolvido por Cipriano A questatildeo sobre os lapsi por

exemplo foi debatida nos conciacutelios e o rebatismo foi permitido mediante o cumprimento da penitecircncia

Aquele indiviacuteduo que havia negado a feacute cristatilde estaria fora da verdadeira Igreja enquanto o cristatildeo que natildeo

houvesse adorado aos deuses pagatildeos e aleacutem disso confirmado a sua feacute no cristianismo seria considerado um

cristatildeo legiacutetimo

Percebemos mediante as obras de Cipriano que a disciplina eclesiaacutestica foi um dos pilares dos ensinamentos

do bispo Ao mesmo tempo em que o rebanho era aconselhado a natildeo se relacionar com os adeptos de outras

crenccedilas e a natildeo frequentar os espaccedilos perigosos da cidade o bispo aconselhou o cristatildeo a ter sempre

paciecircncia a praticar a esmola a oraccedilatildeo e seguir sempre a disciplina Evitava-se assim o contato com seres e

espaccedilos considerados como fontes de contaacutegio de perigo e impureza De tal forma Cipriano prezou por uma

comunidade pura livre de indiviacuteduos hiacutebridos

Ao estabelecer a disciplina Cipriano afirma que soacute havia uma verdadeira Igreja e que ldquonatildeo haacute mais que um soacute

Deus e um soacute Cristo e uma soacute igreja e uma soacute caacutetedra estabelecida pela palavra do Senhor sobre Pedrordquo De

tal forma condenava todo aquele que estava fora dessa Igreja pois ldquonatildeo pode estabelecer outro altar novo

sacerdoacutecio fora desse uacutenico altar e uacutenico sacerdoacuteciordquo Segundo o discurso de Cipriano todo aquele que estaacute

fora da verdadeira e uacutenica Igreja ldquoeacute aduacuteltero eacute iacutempio eacute sacriacutelego todo aquele que institui uma loucura humana

[uma nova Igreja] violando as disposiccedilotildees divinasrdquo (Ep 43 V 2)

Consideraccedilotildees finais

Diante deste esboccedilo ao decidirmos estudar o cotidiano dos cristatildeos e o desenvolvimento das comunidades

[112]

cristatildes norte-africanas em Cartago durante o seacuteculo III dC tivemos o intuito de contribuir com os estudos

acerca da Histoacuteria do Cristianismo no norte da Aacutefrica tomando como base o testemunho de Cipriano

Os estudos tradicionais acerca da Histoacuteria da Igreja por se pautarem em larga medida numa leitura

teoloacutegica e doutrinal tenderam a deixar de lado os aspectos poliacutetico-administrativos e disciplinares da

organizaccedilatildeo das comunidades cristatildes e o funcionamento da Igreja no cotidiano lacuna que preenchemos em

parte com a nossa pesquisa que diz respeito agrave congregaccedilatildeo norte-africana de Cartago em meados do seacuteculo

III dC

Assim por intermeacutedio de nossas fontes mdash as cartas e os tratados elaborados por Cipriano mdash realizamos um

estudo mais amplo acerca do testemunho desse autor ainda pouco estudado sobretudo nos meios

acadecircmicos brasileiros Acreditamos que a produccedilatildeo de uma tese explorando o conjunto de sua obra

representa uma contribuiccedilatildeo para o avanccedilo da pesquisa no Brasil concernente agrave Histoacuteria do Cristianismo

norte-africano e do cotidiano dos diversos grupos religiosos na ciuitas cartaginesa

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PARTE II

A PERMANEcircNCIA DOS

CLAacuteSSICOS NA DIACRONIA

Em diaacutelogo a Retoacuterica claacutessica a arte poeacutetica medieval e a saacutetira trovadoresca

Fernanda Scopel Falcatildeo

fernanda-scopelhotmailcom

Para meus estudos sobre as tenccedilotildees galego-portuguesas nos quais

procuro sempre analisar os recursos retoacuterico-poeacuteticos

empregados pelos trovadores e jograis em suas cantigas estudei as

artes poeacuteticas latino-medievais e trovadorescas para identificar os

expedientes mais apreciados no Medievo europeu e peninsular

Pude constatar a jaacute sabida influecircncia da retoacuterica claacutessica na

elaboraccedilatildeo desses tratados e consequentemente dada sua

valorizaccedilatildeo e difusatildeo das composiccedilotildees galego-portuguesas Dadas

as limitaccedilotildees naturais de um texto em formato de artigo farei aqui

um apanhado sinteacutetico mas que exemplificaraacute a influecircncia

permanecircncia e atualizaccedilatildeo da retoacuterica claacutessica na teoria e na

praacutetica poeacutetica medieval e trovadoresca

Retomo inicialmente Aristoacuteteles autor do tratado mais conhecido

sobre o assunto que define a retoacuterica como ldquoa capacidade de

descobrir o que eacute adequado a cada caso com o fim de persuadirrdquo (Rh

121355b) A Retoacuterica claacutessica pode ser entendida entatildeo como

uma disciplina que identifica e sistematiza os elementos e

mecanismos uacuteteis ao convencimento ou persuasio considerando

que a funccedilatildeo de um determinado discurso eacute persuadir para docere

delectare eou movere Seguindo o preceito aristoteacutelico em sua

evoluccedilatildeo a disciplina foi atualizada e adaptada agrave realidade

discursiva de cada contexto espaccedilo-temporal em que esteve

inserida Segundo Massaud Moiseacutes (2013 p 393-395) a Retoacuterica

grega era um misto de oratoacuteria e poesia na passagem para os

[117]

romanos a Retoacuterica se separa da Poeacutetica assumindo funccedilatildeo especificamente oratoacuteria e entre os medievais

a Retoacuterica reaproveita as liccedilotildees gregas e sobretudo romanas e se mescla com a Gramaacutetica e a Poeacutetica ndash o

que teria ocorrido especialmente na Peniacutensula Ibeacuterica1

O sistema da Retoacuterica medieval manteacutem portanto as estruturas essenciais da claacutessica recuperando-as

poreacutem de acordo com as necessidades comunicativas do medievo Assim quando entre os medievais os

sermotildees as cartas e as obras literaacuterias surgem como novas modalidades comunicativas o cultivo pragmaacutetico

dos saberes da Retoacuterica claacutessica daacute origem agrave ars praedicandi aplicada agrave pregaccedilatildeo eclesiaacutestica agrave ars dictaminis

voltada para a escrita de cartas e agrave ars poetria nome dado agrave gramaacutetica preceptiva ou retoacuterica da versificaccedilatildeo

As artes poetriae compostas entre os seacuteculos XII e XIII2 foram escritas em sua maioria por professores de

Gramaacutetica e se baseavam principalmente no Da invenccedilatildeo de Ciacutecero e na Retoacuterica a Herecircnio sendo tambeacutem em

certa medida herdeiros de Aristoacuteteles Horaacutecio Quintiliano Isidoro de Sevilha entre outros Embora essas

poeacuteticas fossem redigidas em latim e voltadas agrave instruccedilatildeo escolar seus preceitos certamente tocaram a

produccedilatildeo poeacutetica em vernaacuteculo e influenciaram a formaccedilatildeo do gosto esteacutetico no Duzentos e no Trezentos e

os novos tratados que viriam a surgir Na esteira das artes poetriae com o fortalecimento dos idiomas

autoacutectones outras poeacuteticas foram redigidas em liacutenguas romacircnicas e voltadas agraves novas produccedilotildees

comunicativo-literaacuterias em vernaacuteculo mormente ligadas agrave cultura trovadoresca

As artes poeacuteticas latino-medievais possuem caraacuteter didaacutetico-preceptivo e se utilizam da

[] teacutecnica da ldquoexplicaccedilatildeo de textosrdquo propostos natildeo soacute para o serviccedilo do velho meacutetodo do ldquocomentaacuteriordquo como tambeacutem para imitaccedilatildeo de poetas ou oradores cuja excelecircncia comprovada conduziraacute o aluno agrave criaccedilatildeo perfeita Aleacutem do ldquosentidordquo examinava-se tambeacutem o aspecto ldquoteacutecnicordquo das obras com vistas a colher ldquoexemplosrdquo de estilo e composiccedilatildeo de que resultava o elenco de regras e normas da dispositio [] eacute assim que nasce todo um corpo ldquonovordquo de doutrinas destinadas a completar os tratados dos teoacutericos antigos (MONGELLI 1999 p 96)

Conquanto o conteuacutedo dessas poeacuteticas natildeo diferisse muito daquele convencionado nos manuais de

Gramaacutetica e Retoacuterica antigos (MONGELLI 2009 p XXXIII) os conhecimentos foram atualizados e

adaptados ao ensino de arte poeacutetica Assim como natildeo se destinavam agrave produccedilatildeo dos gecircneros judicial

deliberativo e demonstrativo mas agrave composiccedilatildeo literaacuteria o tratamento das cinco operaccedilotildees dimensotildees ou

fases da elaboraccedilatildeo do discurso (inventio dispositio elocutio actio ou pronuntiatio e memoria) eacute aplicado nesse

1 Mais tarde na Renascenccedila haveraacute o retorno da retoacuterica oratoacuteria (MOISEacuteS 2013 p 394) Nos tempos modernos e poacutes-modernos vemos os recursos retoacutericos presentes na construccedilatildeo dos diversos modos discursivos mormente na publicidade e os estudos contemporacircneos conjugam a multiplicidade de formas retoacutericas que nos precederam sobretudo a retoacuterica claacutessica ensinada desde o seacuteculo V aC com a Retoacuterica em sentido lato enquanto arte do discurso em geral 2 A Ars versificatoria (1175) de Matthieu de Vendocircme a Poetria nova (1208-1216) e o Documentum de modo et arte dictandi et versificandi ambos de Geoffrey de Vinsauf a Ars versificatoria (1215) de Gervais de Melkley a Parisiana poetria (1220) e o De arte prosaica metrica et riacutetmica de John de Garlande e o Laborintus (1250) de Eberhard o Alematildeo

[118]

sentido de modo que predominam os conhecimentos relativos agrave estrutura e ao estilo evidenciando-se as

liccedilotildees sobre amplificaccedilatildeo e abreviaccedilatildeo escolha vocabular correccedilatildeo gramatical e ornamentaccedilatildeo

Outro ponto de diferenccedila entre os antigos e os medievais esteve no fato de que enquanto a Retoacuterica claacutessica

se preocupou mais com o estudo estrutural de palavras e grupos de palavras a medieval cuidou de aleacutem

disso observar as relaccedilotildees sintaacuteticas e semacircnticas tanto das microestruturas quanto do todo da composiccedilatildeo

e de inter-relacionar as funccedilotildees esteacutetica e discursiva Assim as operaccedilotildees retoacutericas deixaram de ser

encaradas apenas como componentes estruturais e passaram a categorias criativas e funcionais

Dos procedimentos da organizaccedilatildeo utilizados na dispositio a amplificaccedilatildeo e a abreviaccedilatildeo tiveram grande

importacircncia na ars poetria latino-medieval que lhes deu sentidos distintos daqueles que possuiacuteam nos

tempos antigos

Enquanto o termo amplificatio era utilizado pelos retoacutericos da Antiguidade com a acepccedilatildeo de fazer valer uma ideia ou realizaacute-la para contribuir desse modo com a valorizaccedilatildeo dessa ideia ndash assim se expressou Quintiliano e o recolheu Alcuiacuteno ndash recebeu uma acepccedilatildeo distinta na Idade Meacutedia Durante o periacuteodo medieval a amplificaccedilatildeo esteve mais ligada agrave redaccedilatildeo e ao desenvolvimento de uma ideia Da mesma maneira se por abbreviatio na eacutepoca claacutessica se entendia a atenuaccedilatildeo de um pensamento riacutegido nas artes poetriae latino-medievais passou a designar os diversos meios de encurtar o discurso Na retoacuterica medieval pode-se afirmar que virtualmente qualquer modificaccedilatildeo no discurso com o uso de tropos e figuras se daacute sob amplificaccedilatildeo ou abreviaccedilatildeo

Dos modos assinalados para introduzir variaccedilatildeo em uma mateacuteria dada ou algum elemento de originalidade na composiccedilatildeo poeacutetica foi a amplificaccedilatildeo o procedimento que mais atenccedilatildeo captou e mais extensamente foi tratado nas artes poetriae

Dentro da amplificaccedilatildeo se estudaram os distintos meacutetodos dos quais podia o escritor servir-se para realccedilar um tema desenvolvendo-o por meio da reiteraccedilatildeo das mesmas ideias ou conceitos sob diferentes aspectos ou recorrendo a diversos procedimentos estiliacutesticos (CALVO REVILLA 2010 p 25-26 traduccedilatildeo minha)

O peso outorgado agrave elocutio ndash expressatildeo linguiacutestica do pensamento (mateacuteria conteuacutedo provas ideias

argumentos etc) elaborado na inventio e organizado na dispositio ndash tambeacutem foi um dos aspectos mais

destacados na evoluccedilatildeo da Retoacuterica antiga para as poeacuteticas medievais conquanto ldquoos teoacutericos que sobre ela

se debruccedilam muito pouco acrescentam do ponto de vista formal agraves bases aristoteacutelicas e ciceronianasrdquo

(MONGELLI 1999 p 90)

Na Retoacuterica medieval o ornatus teve o grande lugar de destaque entre as qualidades elocutivas Ampla

influecircncia veio mais uma vez das liccedilotildees do autor da Retoacuterica a Herecircnio para quem os ornamentos3 colaboram

3 Os ornamentos citados pelo autor da Retoacuterica a Herecircnio repeticcedilatildeo conversatildeo complexatildeo transposiccedilatildeo contenccedilatildeo exclamaccedilatildeo interrogaccedilatildeo arrazoado sentenccedila contraacuterio membro articulaccedilatildeo continuidade paridade semelhanccedila de desinecircncia casual semelhanccedila de terminaccedilatildeo agnominaccedilatildeo subjeccedilatildeo gradaccedilatildeo definiccedilatildeo transiccedilatildeo correccedilatildeo ocultamento disjunccedilatildeo conjunccedilatildeo adjunccedilatildeo reduplicaccedilatildeo interpretaccedilatildeo comutaccedilatildeo permissatildeo dubitaccedilatildeo expediecircncia desligamento rescisatildeo conclusatildeo (Auct ad Her 419-41)

[119]

com a dignidade tornando o discurso distinto pela variedade ndash ldquoVariar mantendo a unidade era um preceito

baacutesico da poeacutetica medievalrdquo (MONGELLI VIEIRA 2003 p 81) A oposiccedilatildeo entre ornatus dificillis e facilis da

Retoacuterica a Herecircnio traduziu-se no Trovadorismo na oposiccedilatildeo entre o trobar clus (ou car escur cobert sotil

prim) estilo elevado de escrita hermeacutetica e obscura e o trobar leu (ou leugier ou pla) menos rebuscado e mais

acessiacutevel Martin de Riquer distingue ainda um terceiro modo intermediaacuterio o trobar ric que eacute elevado e um

tanto hermeacutetico mas sem a obscuridade marcante do trobar clus o que nos faz lembrar do trio de genera

elocutionis (subtile medium e sublime)

Para os tratadistas do Duzentos e do Trezentos as operaccedilotildees elocutivas satildeo o suporte baacutesico que constitui

a literariedade de um poema mas esta soacute eacute visualizada e melhor compreendida pragmaticamente (CALVO

REVILLA 2008 p 67) Nesse sentido os tratadistas medievais recomendavam o embelezamento da

linguagem ldquocom o fim de lsquomoverrsquo os ouvintes ou leitores [] a crer em algo ou a fazecirc-lordquo (MONGELLI VIEIRA

2003 p 120-121) e os tropos e figuras passam a ser encarados como uacuteteis recursos de persuasatildeo

De acordo com Heinrich Lausberg a persuasio se concretiza pela criaccedilatildeo de um elevado grau de credibilidade

entre o poetaorador e seu puacuteblicojuiz sendo obtida sobretudo quando o poeta constroacutei os procedimentos

da amplificatio na dispositio dirigidos psicologicamente ou mais ao intelecto ou mais aos afetos do puacuteblico

Nesse processo as virtutes elocutionis atuam enquanto recursos de persuasatildeo quando servem como

incrementum agrave execuccedilatildeo da amplificatio na realizaccedilatildeo intelectual e afetiva da persuasio por meio do docere

do delectare e do movere O docere aplicado ao genus subtile eacute a influecircncia intelectual que o poeta exerce sobre

o puacuteblico e eacute praticado pelos poetas ldquocomo finalidade didaacutectica da poesia dentro da utilidade intelectual e

moral da mesmardquo (LAUSBERG 2004 p 105) O docere possui dois graus de intensidade ldquo1) A comunicaccedilatildeo

(dar a conhecer) p ex na propositio e na narratio 2) A prova (com funccedilatildeo de probare) p ex na argumentatiordquo

(p 104) Os afetos tambeacutem aparecem em dois graus um mais suave o ethos e um mais violento o pathos No

ethos o delectare aplicaacutevel ao genus medium eacute a influecircncia afetiva pretendida e exercida pelo poeta sobre o

puacuteblico ldquocom a finalidade de nele excitar favoravelmente ao partido afectos suavesrdquo (p 105) Eacute notadamente

indicado para se obter a benevolentia ldquoe aparece aleacutem disso no discurso geralmente como ornatusrdquo (p 105)

No pathos o movere aplicaacutevel ao genus sublime eacute a influecircncia afetiva pretendida e exercida pelo poeta sobre

o puacuteblico ouvinte com o objetivo provocar afetos violentos ldquoNa poesia o pathos eacute atribuiacutedo com efeito agrave

trageacutedia e a certas poesias narrativasrdquo (LAUSBERG 2004 p 105-106)

Lausberg (2004 p 105) destaca ainda o uso do ridiculum na persuasio via virtutes elocutiones embora seja

considerado uma variante do ethos ndash ldquopode ser inerente agrave materia (p ex na comeacutedia) ou que pode tambeacutem

ser acrescentado agrave materia como ornatus de pensamentordquo ndash o ridiculum eacute aplicaacutevel aos trecircs genus e serve

como instrumento de persuasatildeo De acordo com Georges Minois (2003 p 106) o riso eacute uma excelente

ferramenta ao orador ou poeta porque o torna simpaacutetico ao auditoacuterio ldquodesperta a atenccedilatildeo ou ao contraacuterio

desvia-a embaraccedila o adversaacuterio enfraquece-o intimida-ordquo

[120]

Das poeacuteticas latino-medievais um destaque vai para a Poetria nova do inglecircs Geoffrey de Vinsauf por ser

considerada uma das artes mais eruditas influentes e difundidas no Ocidente europeu a partir do seacuteculo XIII

um manual avanccedilado destinado aos estudantes que jaacute possuem uma base gramatical e retoacuterica consolidada

(CALVO REVILLA 2008 p 17) Seu tiacutetulo eacute um eco das suas principais fontes a Ars poetica de Horaacutecio

tambeacutem chamada de Poetria no Medievo e a Retoacuterica a Herecircnio chamada ainda de Retoacuterica nova (em oposiccedilatildeo

ao De inventione de Ciacutecero conhecido como a Rhetorica vetus) Assim concebido o seu tiacutetulo parece revelar

a intenccedilatildeo de Vinsauf de atualizar a obra de Horaacutecio de acordo com as necessidades da escola medieval

A poeacutetica vinsaufiana abarca o estudo das cinco operaccedilotildees retoacutericas inventio dispositio elocutio memoria e

actio seguindo o esquema da Retoacuterica antiga mas adaptando os preceitos claacutessicos para o uso na composiccedilatildeo

poeacutetica Vinsauf preocupa-se com a ldquolsquoorganicidadersquo da obra desde o momento de sua concepccedilatildeo ateacute o da sua

execuccedilatildeordquo (MONGELLI VIEIRA 2003 p 79) Trabalha as operaccedilotildees retoacutericas de modo interdependente

manifestando a importacircncia de a invenccedilatildeo adequada a disposiccedilatildeo elegante a beleza da expressatildeo a

memoacuteria eficiente e a performance pragmaacutetica (tom e intensidade da voz expressatildeo facial gesto movimentos

corporais) atuarem em conjunto (Poetria Nova 80-85) As operaccedilotildees retoacutericas funcionam portanto

subordinadas ldquoao plano original desenhado pelo autor um princiacutepio que teve amplo acolhimento entre os

escritores dos seacuteculos XII e XIIIrdquo (CALVO REVILLA 2008 p 68 traduccedilatildeo minha)

No tratamento dos recursos elocutivos o autor se mostra ldquoplenamente consciente da estreita imbricaccedilatildeo

que na praacutetica e como processo operacional manteacutem a elocutio com a inventio e com a dispositiordquo (CALVO

REVILLA 2008 p 69 traduccedilatildeo minha) Assim por exemplo ao abordar as escolhas vocabulares trabalha

sua adequaccedilatildeo agrave significaccedilatildeo pretendida na inventio agrave ordenaccedilatildeo e ao estilo propostos na dispositio e na

elocutio sempre de maneira a conformar-se com o propoacutesito geral da obra ao abordar as figuras e tropos

natildeo os entende como adornos meramente exteriores mas como recursos ligados ao niacutevel semacircntico-

intensional do discurso Destarte o tratadista demanda o princiacutepio do aptum ou decorum e orienta que o

poeta apoacutes compreender e estabelecer o alcance da mateacuteria a ser tratada deve adornaacute-la com palavras

tropos e figuras que correspondam agrave sua interioridade que sejam reflexos dela pois o discurso soacute teraacute razatildeo

se os ornamentos interior e exterior estiverem em conformidade (Poetria Nova 743-761) Nesse sentido a

percepccedilatildeo vinsaufiana da elocutio natildeo se limita a

um plus meramente ornamental mas um plus significativo que dota o discurso de gravidade superior contribui com sua doutrina para enriquecer o conceito de poeticidade e defender uma concepccedilatildeo verdadeira da essecircncia do discurso literaacuteriopoeacutetico eliminando a tentaccedilatildeo de limitaacute-lo a uma mera acumulaccedilatildeo repetitiva de adornos as figuras e tropos natildeo satildeo concebidas como simples deslocamentos e modificaccedilotildees no niacutevel semacircntico-extensional mas em termos de adorno interior pois fazem referecircncia direta ao niacutevel semacircntico-intensional atendendo agrave sua natureza diferencial qualitativa (CALVO REVILLA 2008 p 70 traduccedilatildeo minha)

[121]

Aleacutem disso para o autor da Poetria nova os recursos de expressividade linguiacutestica eliminam o taedium e

promovem um ldquodeleite que por si mesmo fortalece a eficaacutecia da memoacuteriardquo (Poetria nova 2025-2026 traduccedilatildeo

minha) Ao contribuiacuterem com a memoria tambeacutem auxiliam a actio pois favorecem a memorizaccedilatildeo tanto do

compositor quanto do puacuteblico o que ajuda a garantir a eficaacutecia da performance a conexatildeo do poeta com os

ouvintes e o deleite destes o que fomenta o convencimento Percebe-se portanto que a elocutio estaacute inter-

relacionada com as demais operaccedilotildees retoacutericas de modo a garantir a eficaacutecia do discurso e atingir o objetivo

da comunicaccedilatildeo retoacuterica a persuasio

Natildeo obstante o preceito de interconexatildeo entre as operaccedilotildees ndash ou talvez justamente devido a esse preceito

que lega complexidade e multifuncionalidade agrave elocutio ndash a doutrina do estilo possui uma vultosa

representatividade de 835 na redaccedilatildeo da Poetria sobretudo no que tange ao tratamento do ornatus cuja

seccedilatildeo eacute a mais extensa da obra Dos 2120 versos 1770 compreendem os processos elocutivos destes

1232 tratam dos ornamentos ndash mais da metade do total de versos

Embora o autor natildeo tenha feito uma clara delimitaccedilatildeo eacute possiacutevel identificar que a Poetria possui sete seccedilotildees

A primeira (versos 1-42) eacute um prefaacutecio agrave guisa de panegiacuterico dedicando a obra ao Papa Inocecircncio III Na

segunda seccedilatildeo (versos 43-86) satildeo dadas as observaccedilotildees iniciais mormente ligadas agrave intellectio e agrave inventio e

gerais sobre a composiccedilatildeo poeacutetica com algumas alusotildees a processos da dispositio Esta no entanto eacute

apresentada de fato na terceira seccedilatildeo (versos 87-202) na qual o autor daacute atenccedilatildeo agraves partes do discurso e faz

a claacutessica distinccedilatildeo entre ordo artificialis e naturalis Na quarta seccedilatildeo (versos 203-1973) temos a doutrina

relativa agrave elocutio que se inicia com os meacutetodos de amplificaccedilatildeo4 e de abreviaccedilatildeo5 depois trata dos recursos

estiliacutesticos ndash dividindo-os entre gravitasornata difficultasornatus gravis6 e levitasornata facilitasornatus levis

(trinta e cinco figuras de dicccedilatildeo7 e dezenove figuras de pensamento8) ndash e por fim dos processos de conversatildeo

e determinaccedilatildeo A quinta seccedilatildeo (versos 1974-2034) eacute sobre a memoria a sexta (versos 2035-2069) sobre a

actiopronuntiatio e a uacuteltima (versos 2017-2120) um epiacutelogo em que tambeacutem se louva o Papa

Vinsauf trata sobre o uso do ridiculum ao versar sobre os meacutetodos de amplificaccedilatildeo e explicar como a

apoacutestrofe pode ser usada para criticar e ridicularizar os visados ldquoSe quiseres levantar-te plenamente contra

os ridiacuteculos levanta-te desta forma louva mas chistosamente acusa mas graciosamente sendo em tudo

apropriado [] E o que estava agraves escuras camuflado resplandeceraacute sob a luzrdquo (Poetria nova 432-436

4 Amplificaccedilatildeo por repeticcedilatildeo periacutefrase comparaccedilatildeo apoacutestrofe personificaccedilatildeo digressatildeo descriccedilatildeo e oposiccedilatildeo 5 Abreviaccedilatildeo por ecircnfase inciso ablativo absoluto implicaccedilatildeo fusatildeo de proposiccedilotildees e assiacutendeto 6 Metaacutefora onomatopeia antonomaacutesia metoniacutemia periacutefrase hipeacuterbato hipeacuterbole sineacutedoque catacrese e alegoria 7 Anaacutefora epiacutefora siacutemploce poliptoto antiacutetese apoacutestrofe interrogaccedilatildeo dialogismo ou raciociacutenio interrogativo sentenccedila contraacuterio membrum orationis inciso periacuteodo isoacutecolo homeoptoto homeoteleuto paronomaacutesia prolepse gradaccedilatildeo definiccedilatildeo transiccedilatildeo correccedilatildeo pretericcedilatildeo disjunccedilatildeo conjunccedilatildeo adjunccedilatildeo reduplicaccedilatildeo interpretaccedilatildeo comutaccedilatildeo concessatildeo indecisatildeo eliminaccedilatildeo assiacutendeto reticecircncia e conclusatildeo 8 Distribuiccedilatildeo repreensatildeo litote descriccedilatildeo divisatildeo acumulaccedilatildeo expoliccedilatildeo comoraccedilatildeo antiacutetese comparaccedilatildeo exemplo imagem retrato etopeia dialogismo prosopopeia alusatildeo concisatildeo demonstraccedilatildeo

[122]

traduccedilatildeo minha) Essas recomendaccedilotildees lembram por um lado aquelas referentes ao jugar de palabras

afonsino e tambeacutem por outro o recurso da equivocatio utilizado nas cantigas escarninhas galego-

portuguesas

Dado o rigor na elaboraccedilatildeo a Poetria nova alcanccedilou fama e foi utilizada por muitos estudantes e autores da

eacutepoca convertendo-se no ldquomanual baacutesico de introduccedilatildeo sobre a arte poeacutetica como manifestam os quase

duzentos manuscritos que foram sendo encontrados pela Europa cinquenta no seacuteculo XIII setenta no XIV e

sessenta no seacuteculo XVrdquo (CALVO REVILLA 2008 p 20 traduccedilatildeo minha) tendo sido muito citada como o foi

ldquopor Erasmo que numa carta a Cornelius Gerard a coloca na companhia de Horaacutecio e Quintilianordquo

(MONGELLI VIEIRA 2003 p 79) e copiada ateacute o seacuteculo XVII E o fato de a Poetria ter circulado com alguma

frequecircncia unida agrave Ars poetica horaciana e a obras literaacuterias como as de Boeacutecio e de Virgiacutelio e o fato de

Vinsauf ter residido por um periacuteodo na Espanha aumentam a chance de as cortes reais e senhoriais

peninsulares terem tomado conhecimento dos seus tratados

Os trovadores provenccedilais tiveram acesso a uma formaccedilatildeo musical e retoacuterica teoacuterica e praacutetica nas cortes e

nos centros culturais em que se estudavam as disciplinas do Trivium e do Quadrivium o que fica patente na

anaacutelise das cantigas uma vez que as letras das canccedilotildees trovadorescas com o grande nuacutemero de recursos

gramaticais e estiliacutesticos nelas empregados ldquorevelam de modo indubitaacutevel que os poetas que as compuseram

tinham uma soacutelida base retoacuterica que corresponde aos e se encaixa com os dados que possuiacutemos sobre o

ensino de poeacutetica e da ars bene dicendi de seu tempordquo (RIQUER 1992 t I p 71 traduccedilatildeo minha) Estudiosos

como Martin de Riquer ainda apontam a equivalecircncia entre a inventio e o trobar acenam para as semelhanccedilas

retoacutericas entre os trovadores provenccedilais e os poetas do Renascimento caroliacutengio destacam a traduccedilatildeo ao

romacircnico de conceitos retoacuterico-latinos e concluem que a arte dos trovadores reproduz os ensinamentos que

estes aprenderam nas escolas

[] uma parte de seu credo poeacutetico eacute no fundo uma transferecircncia para a liacutengua vulgar daquilo que vinham teorizando para a composiccedilatildeo latina nos tratados de retoacuterica que estudaram Assim vemos que expressotildees frequentes como ldquocolorir um cantordquo ldquopolir um cantordquo ldquopassar a limardquo ndash que se encontram entre outros em Cercamon Raimbaut drsquoAurenga Guiraut de Bornelh Arnaut Daniel ndash traduzem os conceitos de colores rhetorici verba polita inventio perpolita que as artes poeacuteticas medievais herdaram da retoacuterica latina e desenvolveram com assiduidade (RIQUER 1992 t I p 73 traduccedilatildeo minha)

Na Provenccedila o grande compecircndio do trovar satildeo as Leys drsquoamors redigidas pelo toulousano Guilhem

Molinier9 para a Compagnie du Gai Savoir10 Elas apresentam uma extensa prescriccedilatildeo de normas para a

9 Haacute trecircs redaccedilotildees das Leys A primeira eacute a de Molinier escrita em prosa entre 1328 e 1338 a partir desta Joan de Castellnou fez suas duas reescritas uma em verso entre 1337 e 1343 e outra em prosa entre 1355-1356 10 A companhia foi fundada em 1323 pelos ldquosete trovadores de Toulouserdquo Em 1694 alccedilou-se ao estatuto de academia passando a chamar-se Acadeacutemie des Jeux Floraux A academia ainda estaacute em atividade realiza periodicamente concursos e outros eventos e manteacutem um site com informaccedilotildees e arquivos diversos httpjeuxflorauxfr

[123]

composiccedilatildeo de poemas acompanhadas de exemplos considerando formas estilos correccedilatildeo gramatical e

adequaccedilatildeo agrave cortesia e agrave moral medievais com o objetivo de ensinar a compor agrave moda dos trovadores

provenccedilais As Leys drsquoamors satildeo assim uma compilaccedilatildeo orgacircnica e sistemaacutetica de

[] tudo que eacute preciso fazer e natildeo fazer [] tatildeo exaustiva que qualquer um de noacutes poderia ndash aplicando as normas ilustradas por Guilhem Molinier ndash armar-se em trovador e fazer de Bernart de Ventadorn ou Arnaut Daniel se a sua ambiccedilatildeo chegasse a tanto Poderia escolher entre 11 espeacutecies de versos e 28 de rima 11 geacuteneros poeacuteticos e 35 tipos de cobra mas teria que precaver-se dos 55 ldquoviacuteciosrdquo principais nos quais podem incorrer os poetas inexperientes e que nem sequer os mais famosos trovadores souberam evitar (TAVANI 1999 p 28)

Para se ter uma ideia da dilataccedilatildeo da ars de Molinier e de como o tratadista versou agrave exaustatildeo a mateacuteria

relacionada ao trovar provenccedilal basta folhear os iacutendices de rubricas dos trecircs tomos da ediccedilatildeo organizada

por Joseph Anglade e verificar se nossa contagem natildeo estiver equivocada nada menos que trezentas e doze

rubricas sumarizando os conteuacutedos das quase seiscentas paacuteginas do tratado Em seus ldquoEacutetudes sur les Leys

drsquoamorsrdquo Joseph Anglade analisou os livros I e II da sua ediccedilatildeo das Leys identificou que o toulousano valeu-

se de um sem-nuacutemero de citaccedilotildees e alusotildees agrave tradiccedilatildeo precedente (ANGLADE 1919 t IV p 145-163)11 e

concluiu que a doutrina das Leys eacute preponderantemente influenciada pela Retoacuterica a Herecircnio e pelo De

inventione de Ciacutecero mas tambeacutem por Aristoacuteteles Secircneca Donato Isidoro de Sevilha e outros pensadores

greco-latinos e latino-medievais pela Biacuteblia e pelas artes de trovar anteriores a Molinier (ANGLADE 1919

t IV p 53-108)

Na Peniacutensula Ibeacuterica por sua vez a Retoacuterica foi aprendida sobretudo por meio do ensino formal inicialmente

nas escolas romanas depois nas escolas monacais e finalmente nas universidades (LAUSBERG 2004 p 13-

14) Aleacutem disso sabe-se que a Retoacuterica influiu na mentalidade e na cultura do Medievo ibeacuterico o que se

comprova pela presenccedila de menccedilotildees diretas e indiretas ao conhecimento retoacuterico em documentos e

ldquocontextos aparentemente mais alheios a tal disciplinardquo (p 19) ndash mas de alguma forma relacionados ao

contexto de produccedilatildeo da liacuterica trovadoresca

O acesso aos conteuacutedos de arte poeacutetica pelos trovadores galego-portugueses foi fomentado por Afonso X

cuja corte era um verdadeiro centro cultural e de saber do Medievo Afonso X natildeo se dedicou

especificamente a um tratado de Retoacuterica mas contemplou-a em outras obras suas como o Setenario e Las

siete partidas No Setenario o rei Saacutebio trata da Retoacuterica como a arte que ensina a falar de maneira elegante e

digna de modo que aquele que vier a argumentar mova os coraccedilotildees dos ouvintes para levaacute-los mais ainda ao

ponto desejado E entre as estrateacutegias para falar de maneira elegante e digna o monarca recomenda os

11 O editor tambeacutem estudou os tratadistas trovadorescos que compuseram subsequentemente agraves Leys e tambeacutem verificou que eles muito se reportaram direta ou indiretamente aos conteuacutedos estabelecidos por Molinier (ANGLADE 1919 t IV p 108-120)

[124]

recursos do ornatus como relevantes natildeo soacute para o falar ffermoso que desvelava a cortesia como tambeacutem

para a eficaacutecia da persuasio

A quem usar dessa arte muito conveacutem procurar que a razatildeo seja ornada (ldquoque a colorerdquo) de

modo a causar boa impressatildeo nas vontades dos que a ouvirem E conveacutem ainda que seja

elegante para que leve ao desejo de aprendecirc-la e de saber argumentaacute-la E que se exponha

com dignidade nem muito depressa nem muito devagar E que se apresente cada razatildeo onde

conveacutem de acordo com aquilo de que se quer falar E que se exponha amorosamente nem

muito rijo ou muito bravo nem tampouco muito frouxo mas em bom som comedido sem

elevar ou abaixar demais a voz E haacute de procurar que a expressatildeo que usar esteja de acordo com

a razatildeo que disser (Setenario 38-47)

Percebe-se portanto que assim como o fizeram os tratadistas das artes poetriae em seu Setenario Afonso X

distinguiu os ornamentos como importantes recursos para a ars bene dicendi e contemplou a correccedilatildeo

gramatical a persuasio e o ornatus de maneira estritamente relacionada

Na ldquoPartida segundardquo de Las siete partidas Afonso X se utiliza de seus conhecimentos retoacutericos ao expor as

praacuteticas discursivas da corte intertextualizando com noccedilotildees da disciplina claacutessica Pela Lei 29 do tiacutetulo IX

sabemos que quando o monarca se reuacutene no palaacutecio para falar com os homens pode fazecirc-lo com trecircs

objetivos distintos para deliberar os pleitos para comer ou para fablar en gasaiado (Las siete partidas 2929)

O fablar en gasaiado era o momento quando o rei se encontrava com seus suacuteditos para conversar

agradavelmente e nesse fablar poderiam ser trecircs os modos discursivos utilizados o departir o retraer e o jugar

de palabras12 para os quais o rei prescreveu normas de conveniecircncia e de caraacuteter retoacuterico que devem ser

seguidas pelos que quisessem ser bem acolhidos e permanecer na corte Aqueles que natildeo agissem conforme

as saacutebias leis seriam penalizados com a expulsatildeo do palaacutecio e da corte (Las siete partidas 2929) Assim

conforme a Lei 29 ao departir eacute preciso considerar o entendimento dos ouvintes ldquofalando das coisas com

razatildeo para chegar agrave verdade delasrdquo (Las siete partidas 2929 traduccedilatildeo minha) Na sequecircncia a Lei 30 define

o retraer como a narraccedilatildeo de fatos ldquocomo foram ou satildeo ou pode vir a serrdquo (Las siete partidas 2930 traduccedilatildeo

minha) e destaca a recepccedilatildeo o modo o tempo e o lugar do retraer13 num eco do conceito retoacuterico de narraccedilatildeo

presente na Retoacuterica a Herecircnio14 e tambeacutem das liccedilotildees de Ciacutecero que no De oratore (2008) destaca a

importacircncia de se observarem as circunstacircncias de lugar e tempo de niacutevel estilo e decoro durante a

12 Montoya Martiacutenez relaciona o departir o retraer e o jugar de palabras aos modos dialeacutetico narrativo e satiacuterico respectivamente (1991 p 366) 13 ldquoRetraer en los fechos o en las cosas commo fueron o son o pueden seer es grant bien estanccedilia a los que ello saben abenir E para esto seer fecho commo conviene deven y seer catadas tres cosas tienpo e lugar e manera tienpo deven catar que convenga a la cosa sobre que quier rretraer mostrando por buena palabra o por buen enxenplo o por buena fazanna otra que semeje con aquella para alabar la buena o para desatar la mala e otrosy deven catar lugar de guysa que lo que rretrayeren que lo digan a tales omnes que se aprovechen dello asy commo sy quisieren castigar a omne escaso diziendole enxenplos de omnes grandes e al cobarde de los esforzados e manera deven catar para rretraer de guysa que digan por palabras conplidas e apuestas lo que dixieren e que semege que saben bien aquello que dizen otrosy que aquellos a quien lo dixieren ayan sabor de lo oyr e de lo aprenderrdquo (Las siete partidas 2930) 14 ldquoNarraccedilatildeo eacute a exposiccedilatildeo das coisas como ocorreram ou como poderiam ter ocorridordquo (Auct ad Her 14)

[125]

elaboraccedilatildeo do discurso Por fim na Lei 30 o rei traz agrave baila o jugar de palabras que consistia em apresentar

fatos e exemplos agraves avessas sem desonra ou fuacuteria de modo que os homens os aproveitassem rindo-se e

alegrando-se ndash uma estrateacutegia retoacuterica de produccedilatildeo escarninha muito pertinente agrave saacutetira galego-portuguesa

O tratado trovadoresco do acircmbito galego-portuguecircs que conhecemos eacute uma poeacutetica anocircnima e fragmentaacuteria

que nos chegou apensa ao Cancioneiro da Biblioteca Nacional e eacute habitualmente designada como Arte de trovar

Apesar de sua relevacircncia o que nos restou dessa poeacutetica eacute aleacutem de lacunar muito sinteacutetico e generalizante

pois os preceitos normatizados natildeo satildeo descritos em minuacutecias natildeo satildeo apresentados exemplos de como

empregar os recursos descritos as questotildees relativas ao campo da moral natildeo satildeo desenvolvidas de forma

suficiente natildeo se considera a performance das cantigas as definiccedilotildees e descriccedilotildees arroladas muitas vezes

natildeo correspondem ao que na praacutetica foi realizado pelos trovadores e jograis Por conseguinte a Arte de trovar

possui um caraacuteter mais descritivo e menos didaacutetico servindo portanto mais como uma breve apresentaccedilatildeo

de artifiacutecios empregados pelos trovadores e jograis e menos como meacutetodo que ensina a compor agrave moda

trovadoresca galego-portuguesa Por conta disso natildeo deve ser considerada ldquouma obra destinada agrave instruccedilatildeo

de futuros trovadores mas um guia informativo para o admirador de cantigas trovadorescas proacuteprio como

tal a introduzir o leitor na magniacutefica antologia que acaba de abrirrdquo (DrsquoHEUR 1975 p 380 traduccedilatildeo minha)

A despeito do pouco rigor no tratamento da mateacuteria eacute possiacutevel perceber que junto com as prescriccedilotildees

esteacuteticas trovadorescas o anocircnimo autor cultiva a moral eacutetica da conveniecircncia cortesatilde Conforme DrsquoHeur o

recorrente uso de ldquoconveacutemrdquo e ldquonatildeo conveacutemrdquo ao lado de ldquodevemrdquo e ldquopodemrdquo eacute significativo nesse sentido por

representar na redaccedilatildeo do tratadista uma moral de respeito e sujeiccedilatildeo agraves convenccedilotildees jaacute estabelecidas

(1975 p 384)

Conquanto o tratadista anocircnimo escuse-se de fazer referecircncias diretas ao sistema retoacuterico antigo e ao

medieval natildeo trovadoresco a menccedilatildeo agrave equivocatio (Arte de trovar 35) como marcador constitutivo e

distintivo das cantigas de escaacuternio revela segundo Lausberg uma niacutetida ligaccedilatildeo com a ars claacutessica segundo

a qual os verba aequivoca podiam servir agrave dissimulatio retoacuterica encobrindo no contexto satiacuterico galego-

portuguecircs uma ironia propositada (2004 p 19) Nota-se que permanecem valorizados na Arte teacutecnicas e

recursos que os demais tratados medievais tomavam como pertinentes para se alcanccedilar a elegacircncia e a

eficaacutecia do discurso como destacado no subcapiacutetulo anterior pois se apresentam questotildees relativas agrave

correccedilatildeo gramatical agrave escolha vocabular e ao emprego de ornamentos

No que tange particularmente ao tratamento da elocutio eacute importante mencionar primeiro o resultado do

levantamento feito por Simone Marcenaro para identificar os ornamentos de estilo presentes nas cantigas

satiacutericas Entre os expedientes mais utilizados estatildeo a repeticcedilatildeo a ironia e algumas figuras da argumentatio

como a prosopopeia a etopeia e a amplificatio entre outras aleacutem de cores da Retoacuterica como a acumulaccedilatildeo

a metoniacutemia a sineacutedoque a periacutefrase a metaacutefora a hipeacuterbole a similitude a antiacutetese o epiacuteteto a sentenccedila e

[126]

a interrogaccedilatildeo retoacuterica (2010 p 105) Considerando-se esse saldo resulta natildeo soacute curioso como sobretudo

relevante questionar por que da extensa gama de ornamentos de estilo que poderiam ser ou foram utilizados

nas cantigas trovadorescas pelos trovadores e jograis o anocircnimo autor da Arte se limitou a descrever

modalidades relacionadas agrave repeticcedilatildeo com destaque para o dobre e o mozdobre

Ponderando a concisatildeo com que a poeacutetica foi elaborada tal seleccedilatildeo poderia revelar que o tratadista

reconheceu a relevacircncia dos recursos de repeticcedilatildeo na poesia trovadoresca galego-portuguesa ou ao menos

a sua recorrecircncia pois na leitura das cantigas e tenccedilotildees observa-se o acesso a diversos tipos de repeticcedilatildeo

foneacutetico-fonoloacutegica morfossintaacutetica e semacircntico-discursiva Essa curiosidade torna-se ainda mais

significativa se concordarmos com Seacuteveacuterine Abiker que em seu Lrsquoeacutecho paradoxal ndash eacutetude stylistique de la

reacutepeacutetition dans les reacutecits brefs en vers XIIegrave-XIVegrave siegravecles afirma que a repeticcedilatildeo estaacute presente em toda obra da

Idade Meacutedia evidenciando uma espeacutecie de estilo medieval e merece por isso ser investigada nas produccedilotildees

literaacuterias da eacutepoca (2008 p 9 28)

Assim apoacutes a anaacutelise destes e de outros diversos tratados latino-medievais e trovadorescos pude observar

que os medievais valorizavam a aproximaccedilatildeo e a complementaccedilatildeo entre inventio dispositio e elocutio com a

beleza do pensamento sendo sustentada pela beleza da expressatildeo por sua vez sustentada pelas palavras

bem escolhidas e ornamentos bem adequados Eles concediam atenccedilatildeo especial aos recursos elocutivos e

recomendavam que persuasio e ornatus fossem trabalhados de maneira estritamente relacionada na

elaboraccedilatildeo do texto poeacutetico pois a ornamentaccedilatildeo elaborada apropriadamente era considerada elemento

decisivo para o cumprimento das finalidades retoacutericas de docere delectare e movere Entre os recursos

elocutivos os tratadistas medievais em suas teorias e os trovadores e jograis em sua praacutetica davam lugar

de destaque aos que funcionam por meio de processos e mecanismos iterativos que se tornaram uma das

fortes marcas do estilo medieval conformando uma espeacutecie de esteacutetica da repeticcedilatildeo Como jaacute dito na

retoacuterica medieval foi a amplificaccedilatildeo o procedimento que mais atenccedilatildeo captou e que mais extensamente foi

tratado nas artes poetriae e dentro da amplificaccedilatildeo se estudaram os distintos meacutetodos dos quais podia o

escritor servir-se para realccedilar um tema desenvolvendo-o por meio da reiteraccedilatildeo das mesmas ideias ou

conceitos sob diferentes aspectos

Esse efeito da repeticcedilatildeo sobre o receptor do discurso tambeacutem foi observado pelos gregos e latinos e os

procedimentos iterativos foram classificados e recomendados pela Retoacuterica antiga Para essa disciplina a

repeticcedilatildeo eacute um mecanismo que atua em todas as operaccedilotildees retoacutericas e funciona como recurso de persuasatildeo

servindo como incrementum agrave execuccedilatildeo da amplificatio na realizaccedilatildeo intelectual e afetiva da persuasio ndash

processo que jaacute explicamos antes Natildeo eacute agrave toa pois que Ciacutecero no Orator inclui a repeticcedilatildeo entre os recursos

de retoacuterica mais importantes que devem ser aprendidos e empregados pelo perfeito orador (Orat 39135)

[127]

Ainda no ldquoDe ridiculisrdquo (De oratore) de Ciacutecero e no ldquoDe risurdquo (Institutio oratoria) de Quintiliano a repeticcedilatildeo

participa como mecanismo para o riso em alguns dos gecircneros do ridiculum que os autores elencam15

A Retoacuterica claacutessica organiza diversas formas e processos iterativos especialmente no conjunto das figuras de

palavras (figurae elocutionis) e de pensamento (figurae sententiae) As figuras de repeticcedilatildeo foram consagradas

pelas poeacuteticas latino-medievais que muito valorizaram os procedimentos iterativos e tambeacutem satildeo

aproveitadas pelas poeacuteticas trovadorescas conquanto estas tenham vestido tais expedientes de uma nova

nomenclatura

Na Poetria nova de Geoffrey de Vinsauf a repeticcedilatildeo estaacute presente em vaacuterios processos estudados e

recomendados participa do mecanismo de uma figura de pensamento a expolitio e de quinze figuras de

dicccedilatildeo anaacutefora (repetitio) epiacutefora (conversio) siacutemploce (complexio) poliptoto (traductio) isoacutecolo (compar)

homeoptoto (similiter cadens) homeoteleuto (similiter desinens) paronomaacutesia (adnomnatio) gradaccedilatildeo

(gradatio) transiccedilatildeo (transitio) correccedilatildeo (correctio) disjunccedilatildeo (disjunctio) polissiacutendeto (conjunctio)

reduplicaccedilatildeo (conduplicatio) interpretaccedilatildeo (interpretatio) quiasmo (commutatio) eacute um dos meacutetodos da

amplificatio com o uso da interpretatio e da expolitio enquanto meio de dizer o mesmo vaacuterias vezes de modo

diferente participa da conversatildeo cujo mecanismo ndash substituiccedilatildeo de uma categoria gramatical por outra com

o fim de escolher uma forma mais agradaacutevel e assim alcanccedilar a beleza do ornatus ndash relaciona-se com o da

paronomaacutesia e corresponde ao do poliptoto

Nas Leys drsquoamors occitacircnicas o artifiacutecio da repeticcedilatildeo eacute referido em dois momentos na seccedilatildeo sobre as

construccedilotildees viciosas e na seccedilatildeo sobre estrofaccedilatildeo No primeiro momento Molinier condena a replicacio (ou

replicacioacute ou replicatio) enumeraccedilatildeo contiacutenua de palavras com siacutelabas iguais e de mesmo som porquanto

geradora de cacossiacutenteto (construccedilatildeo viciosa gerada por colocaccedilatildeo inadequada de palavras)16 Contudo

Molinier enfatiza que a repeticcedilatildeo natildeo eacute considerada incorreta se houver intercalaccedilotildees ldquoDizemos da

repeticcedilatildeo contiacutenua Porque se haacute a repeticcedilatildeo descontiacutenua de uma palavra ou de uma siacutelaba o viacutecio da

replicacio deixa de existirrdquo (Leys drsquoamors 352 traduccedilatildeo minha) Aleacutem disso a repeticcedilatildeo sequencial eacute

permitida17 se for decorrente do emprego de artigos pronomes preposiccedilotildees nomes proacuteprios proveacuterbios

15 Conforme Ivan Neves Marques Jr os gecircneros do ridiacuteculo considerados por Ciacutecero e Quintiliano em seus De ridiculis

(De oratore) e De risu (Institutio oratoria) respectivamente satildeo anedotas metaacutefora ironia alegoria ambiguidade

hipeacuterboles repreensatildeo de estultice simulaccedilatildeo maliacutecia interpolaccedilatildeo de versos adaptaccedilatildeo ou uso de proveacuterbios frases

absurdas quebra de expectativa paronomaacutesia dissimulatiosimulatio dissimulatio ex ambiguitas ambiguidade que se

aproxima do enigma similitude com ambiguidade fictio ex ironia (MARQUES JR 2008 p 151) 16 Como nos seguintes exemplos citados ldquoPrestres prezican provizetzrdquo ldquoVerges vergiers verdejans vergenalsrdquo ldquoDona donans donam dos divinalsrdquo ldquoRogiers rugish ravial raviosrdquo ldquoRestauramens restauram restauransrdquo ldquoLos peccadors per peccatz pecz peccansrdquo ldquoBonas noelas lauzaretz Las avols cascus calaretzrdquo ldquoDieus dona nos nostra vianda Laqual cascus fizels demandardquo ldquocor ferms fay far faytz francz e fis el flaaelig fals fols vils et aclisrdquo (Leys drsquoamors 352-58) 17 Curiosamente a despeito de a menccedilatildeo agrave replicacio estar inserida na parte das Leys que trata dos viacutecios a lista de exemplos condenados (Leys drsquoamors 352-58) eacute menos extensa que a dos exemplos abonados (Leys drsquoamors 358-68)

[128]

refratildees citaccedilotildees etc ou constituinte das quaysh replicacios18 Molinier tambeacutem aprova o uso das figuras de

repeticcedilatildeo da Retoacuterica claacutessica desde que seu uso seja feito com propriedade O tratadista toulousano

encerra a discussatildeo concluindo que ldquosatildeo refinadas e engenhosas as composiccedilotildees em que a repeticcedilatildeo eacute

elaborada intencional e arrazoadamenterdquo (Leys drsquoamors 362 traduccedilatildeo minha)

No outro passo das Leys os mecanismos de figuras de repeticcedilatildeo satildeo acessados como marcadores

constitutivos e distintivos de algumas modalidades de cobla O mecanismo da anaacutefora estaacute presente nas

coblas capdenals que ocorrem quando ldquocada verso comeccedila com a(s) mesma(s) palavra(s) ou a mesma frase

ou quando cada estrofe comeccedila com a(s) mesma(s) palavra(s) ou a mesma fraserdquo (Leys drsquoamors 3282 traduccedilatildeo

minha) O mecanismo da epiacutefora estaacute nas coblas retronchadas que ocorrem ldquoquando eacute repetida a mesma

palavra no final de cada verso ou de dois em dois ou de trecircs em trecircs ou mais de acordo com a vontade do

poeta ou quando no final de cada estrofe eacute repetido o mesmo verso ou dois mesmos versosrdquo (Leys drsquoamors

3286 traduccedilatildeo minha) O da siacutemploce que eacute a combinaccedilatildeo de anaacutefora e epiacutefora estaacute nas coblas duplicativas

que seriam assim a combinaccedilatildeo de coblas capdenals e retronchadas ldquoA cobla duplicativa se faz quando cada

verso comeccedila com a(s) mesma(s) palavra(s) ou a mesma frase e termina com a(s) mesma(s) palavra(s) ou a

mesma fraserdquo (Leys drsquoamors 3288 traduccedilatildeo minha) O mecanismo da epanadiplose estaacute nas coblas

recordativas que ocorrem ldquoquando a primeira palavra do verso eacute repetida no final do mesmo verso ou quando

o primeiro verso de uma estrofe eacute repetido ao final dessa mesma estroferdquo (Leys drsquoamors 3284 traduccedilatildeo

minha) E o da anadiplose nas coblas capfinidas e capcaudadas ldquoA cobla eacute chamada capfinida porque a palavra

siacutelaba ou oraccedilatildeo que termina a estrofe torna-se o iniacutecio da proacuteximardquo a cobla capcaudada (Leys drsquoamors 3280

traduccedilatildeo minha)

Na Arte de trovar galego-portuguesa destacam-se como formas de repeticcedilatildeo o dobre e o mozdobre como

vimos O dobre consiste em repetir certa palavra uma ou duas vezes ao longo de uma estrofe sendo

conveniente que apareccedila a mesma palavra ou outra que forme um dobre na mesma posiccedilatildeo em todas as

estrofes e tambeacutem na finda

Dobre eacute o recurso que consiste em dizer uma palavra duas vezes ou mais em cada estrofe

Devem usaacute-lo com moderaccedilatildeo e se o fizerem em uma estrofe conveacutem que o faccedilam em todas

as outras podendo variar as palavras dobradas em cada estrofe mas sempre na mesma

posiccedilatildeo e da mesma maneira em todas as estrofes E devem igualmente usar o dobre nas

findas da mesma forma (Arte de trovar 45 traduccedilatildeo minha)

18 As quaysh replicatios satildeo pseudorrepeticcedilotildees natildeo viciosas como nos seguintes exemplos citados ldquopatz platzrdquo ldquocambra bassardquo ldquonegra garsardquo ldquobel hlatrdquo ldquocambra belardquo ldquoplen punhrdquo ldquopren pardquo ldquotray tostrdquo ldquolaysha saysha seguramenrdquo ldquoPestre tutorrdquo ldquoPolpra planardquo ldquoQuar clucardquo ldquoTutritz testardardquo ldquopupils prepauzardquo ldquocascus cloquiersrdquo ldquoTursquo afolas lrsquoaybrerdquo ldquoMola lima Amara raba Cara rima Causa sanctardquo ldquoara rira aquel srsquoafola la lenguardquo ldquotrastot es plerdquo ldquotot es talatrdquo ldquoe tant es tramrdquo ldquoou tant es tristardquo ldquoclar lumrdquo ldquosucre rozatnzegre razimrdquo ldquoflac layronatrdquo (Leys drsquoamors 358-62)

[129]

O dobre eacute a repeticcedilatildeo simples portanto sem variaccedilotildees morfoloacutegicas como nas figurae elocutionis de

repeticcedilatildeo por igualdade formal completa E quando utilizado em posiccedilatildeo de rima o dobre eacute equivalente ao

mot refranh provenccedilal

O mozdobre segundo a Arte ldquoeacute igual ao dobre quanto ao entendimento das palavras mas estas variam pois

mudam os tempos verbais E como jaacute vos disse do dobre igualmente o mozdobre deve ser empregado em

todas as estrofes e findas na mesma posiccedilatildeo e da mesma maneira para ficar melhor elaboradordquo (Arte de trovar

46 traduccedilatildeo minha) Assemelhado ao poliptoto e agrave figura etimoloacutegica o mozdobre eacute portanto a repeticcedilatildeo

que apresenta variaccedilotildees morfoloacutegicas e assim como o dobre pode aparecer no iniacutecio interior ou fim de um

verso desde que seja precisa a correspondecircncia entre os versos que se ligam pelo mozdobre E quando

empregado em posiccedilatildeo de rima o mozdobre eacute equivalente agrave rim derivatiu provenccedilal

Na praacutetica trovadoresca aleacutem do dobre e do mozdobre os trovadores e jograis utilizaram ainda outros

procedimentos por exemplo o enjambement os conectores (e que pero ca ndash quando fazem a articulaccedilatildeo

sintaacutetica de um verso a outro ou de uma estrofe a outra) e o leixa-pren ndash equivalente agrave anadiplose o leixa-pren

eacute um mecanismo de repeticcedilatildeo da ldquomesma palavra no fim dum verso ou estrofe e no comeccedilo do seguinte ou

na repeticcedilatildeo do mesmo verso no fim duma estrofe e no comeccedilo da outra que segue imediatamente ou

atraveacutes de uma estrofe interpostardquo (BELTRAN 2000 p 386)

Do mesmo modo que as figuras de repeticcedilatildeo contempladas pela Retoacuterica antiga as formas de repeticcedilatildeo

presentes nas cantigas e tenccedilotildees satiacutericas galego-portuguesas contribuem para o ornatus e funcionam na

realizaccedilatildeo intelectual e afetiva da persuasio sendo aplicaacutevel aos trecircs genus servindo ao ensinar e provar ao

deleitar e ao comover A repeticcedilatildeo pode obrar ainda como provocadora de riso o que por sua vez tambeacutem

colabora com o processo retoacuterico de ensinar provar deleitar e comover No caso da repeticcedilatildeo por exemplo

pode-se buscar a adesatildeo do puacuteblico por meio de repeticcedilotildees semanticamente baseadas esse jogo de

associaccedilotildees ainda pode provocar o ridiacuteculo essa comicidade igualmente conquista a atenccedilatildeo da audiecircncia

manteacutem sua adesatildeo e consequentemente colabora para o seu convencimento Mesmo os ecos sonoros das

repeticcedilotildees as aliteraccedilotildees assonacircncias e rimas podem relacionar-se ao jogo da persuasatildeo ao organizarem ao

longo da cantiga uma mnemocircnica e expressiva seacuterie de apelos focircnicos e semacircnticos aos ouvintes Percebe-

se com isso que os recursos de repeticcedilatildeo satildeo multifuncionais e ateacute mais significativos quando operam em

niacuteveis interligados

Como se vecirc a retoacuterica claacutessica influiu na elaboraccedilatildeo dos tratados de arte poeacutetica latino-medievais e

trovadorescos e essa permanecircncia atualizada igualmente marcou presenccedila na praacutetica poeacutetica medieval e

trovadoresca De fato em um estudo em que analisei as tenccedilotildees de Lourenccedilo (FALCAtildeO 2015) por exemplo

constatei que o segrel natildeo somente teve a ldquocapacidade de descobrir o que eacute adequado a cada caso com o fim

de persuadirrdquo (Arist Rh 121355b) como tambeacutem construiu uma retoacuterica da impertinecircncia realizada textual

[130]

e discursivamente por meio de ferramentas iterativas Tal estrateacutegia retoacuterica era adequada agrave atuaccedilatildeo de

Lourenccedilo nas tenccedilotildees pois estas deveriam ser marcadas por traccedilos de oposiccedilatildeo de acordo com a Arte de

trovar e tambeacutem porque a perseveranccedila eacute um dos cinco fundamentos da Retoacuterica de acordo com as Leys

drsquoamors De tal modo se os trovadores lhe vinham frequentemente travar para taxaacute-lo de incompetente o

segrel deveria para defender-se e debater de acordo com os preceitos valorizados em seu meio

trovadoresco contrapor-se aos interlocutores persistindo no autoelogio para afirmar sua capacidade O

modus faciendi de Lourenccedilo em suas tenccedilotildees aproxima-se nesse sentido das noccedilotildees aristoteacutelicas de

inconveniecircncias convenientes e de despropoacutesitos a propoacutesito (Arist Poet 1454a) muito adequadas ao texto

satiacuterico desde os tempos antigos segundo Joatildeo Adolfo Hansen (2011 p 151)

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VINSAUF G de Poetria nova Ed y trad A M Calvo Revilla Madrid Arco 2008 (Coleccioacuten Perspectivas Textos)

A

carta-prefaacutecio

da Utopia de Thomas More encenaccedilatildeo textual de uma arte poeacutetica

Ana Claacuteudia Romano Ribeiro

acrribeirounifespbr

A carta-prefaacutecio que Thomas More endereccedila a Pieter Gillis

antecede os livros I e II da Utopia publicada em finais de 1516 em

Lovaina sob o tiacutetulo Libellus vere aureus nec minus salutaris quam

festiuus de optimo reip statu deque noua insula Vtopia authore

clarissimo viro Thoma Moro inclytae ciuitatis Londinensis ciue amp

vicecomite cura M Petri Aegidii Antuerpiensis amp arte Theodorici

Martini Alustensis Typographi almae Louaniensium Academiae nunc

primum acuratissime editus (Um livrinho verdadeiramente de ouro natildeo

menos salutar que divertido sobre a melhor forma de repuacuteblica e sobre

a nova ilha de Utopia por Thomas More autor e homem ilustriacutessimo

cidadatildeo da iacutenclita cidade de Londres e xerife aos cuidados do mestre

antuerpiense Pieter Gillis e pelas artes de Dieryck Martens de Alost

tipoacutegrafo da veneraacutevel academia de Lovaina agora acuratissimamente

editado pela primeira vez) Ela natildeo foi enviada ao seu remetente mas

a Erasmo que estava cuidando da ediccedilatildeo da Utopia juntamente com

Pieter Gillis More a expediu em 3 de setembro de 1516 juntamente

com o manuscrito do libellus aureus e uma carta para o proacuteprio

Erasmo (Opus epist 2 ep 461 p 339 ll 1-2) na qual escreve

ldquoEnvio-te nosso lsquoNenhum lugarrsquo (Nusquama) em nenhum lugar

(nusquam) bem escritordquo

A carta-prefaacutecio talvez seja o paratexto mais publicado nas ediccedilotildees

da Utopia Ela precede o grande diaacutelogo dos livros I e II que trazem

[133]

respectivamente uma discussatildeo sobre o funcionamento das instituiccedilotildees poliacuteticas sociais e econocircmicas da

Inglaterra quinhentista e em seguida e em contraponto a descriccedilatildeo da repuacuteblica utopiana feita por Rafael

Hitlodeu um marinheiro-filoacutesofo portuguecircs Antecede agrave narraccedilatildeo de acontecimentos ndash citados numa ordem

cronoloacutegica natildeo linear nos livros I e II ndash que comeccedilam em 1497 na casa do cardeal Morton passam por uma

das viagens de Amerigo Vespucci e pela estadia de Hitlodeu na Utopia para terminar em 1515 em um jardim

em Antueacuterpia O espaccedilo geograacutefico correspondente a esse iacutenterim eacute mais extenso do que o que se conhecia

entatildeo o leitor passa da Europa (Inglaterra Beacutelgica e Franccedila) agrave Iacutendia e ao Novo Mundo de fronteiras

desconhecidas onde se encontra a ilha de Utopia e outras terras incoacutegnitas

Pieter Gillis secretaacuterio-geral de Antueacuterpia1 a partir de 1510 conheceu More em setembro de 1515 na

missatildeo diplomaacutetica e comercial nos Paiacuteses Baixos citada no comeccedilo do livro I da Utopia2 Ele foi o primeiro

editor das cartas de Erasmo junto ao impressor Dieryck Martens na cidade de Lovaina Aleacutem disso tambeacutem

preparou ediccedilotildees de obras de Poliziano (1510) Rodolphus Agricola (1511) Esopo (1513) Luciano de

Samoacutesata (1518) e uma Summa legum diversorum imperatorum (1517) sobre as fontes do coacutedigo justiniano

A carta-prefaacutecio eacute publicada nas quatro primeiras ediccedilotildees acrescida de anotaccedilotildees marginais que tambeacutem

seratildeo acrescentadas aos livros I e II Natildeo se sabe ao certo se essas notas marginais foram elaboradas apenas

por Erasmo ou se Gillis tambeacutem colaborou com isso3

Na primeira ediccedilatildeo ela traz o tiacutetulo PRAEFATIO in opus de optimo reipublicae statu (ldquoPrefaacutecio agrave obra sobre a

melhor forma de repuacuteblicardquo) suprimido a partir da segunda ediccedilatildeo Na terceira e quarta ediccedilotildees (de marccedilo e

novembro de 1518 publicadas em Basileia por Johann Froben) suas primeiras linhas seratildeo enquadradas

com a mesma moldura que encontramos no frontispiacutecio da quarta ediccedilatildeo ornada com anjos-bebecircs (os putti)

de Hans Holbein A repeticcedilatildeo da moldura daacute agrave carta-prefaacutecio uma posiccedilatildeo de destaque entre os demais

paratextos que natildeo satildeo enquadrados e cria um ritmo tipograacutefico que daacute um caraacuteter de retomada agrave carta-

prefaacutecio

Elizabeth McCutcheon (1983 p 5) mostrou que a carta-prefaacutecio tambeacutem pode ser lida como um guia poeacutetico

e hermenecircutico da Utopia uma ars poetica participando de uma esteacutetica do engano honesto que se funda no

1 Aires Nascimento lembra que eacute no porto de Antueacuterpia ldquocentro das novidades do Novo Mundordquo que chegam especiarias trazidas pelos navios portugueses que tinham nesta cidade uma feitoria de onde distribuiacuteam as mercadorias ldquoA feitoria portuguesa [em Antueacuterpia] data de 1499 e a lsquonaccedilatildeorsquo que a compotildee tem reconhecimento desde 1511 com casa na rua Kipdorp posta agrave disposiccedilatildeo do feitor pela cidade tem um estatuto de favorecimento o feitor eacute simultaneamente diplomata e agente econocircmicordquo (MORVS 2006 p 373 n 31) 2 Sobre esta missatildeo ver Surtz ldquoSt Thomas More and his utopian embassy of 1515rdquo (1953) e Hexter ldquoMorersquos visit to Antwerp in 1515rdquo em CW4 ndash esta sigla designa doravante o volume 4 de The Complete Works of St Thomas More (ver a referecircncia completa em MORE 1965) Sobre Gillis ver o artigo de Nauwelaerts (1967) 3 Gillis em sua carta a Busleyden informa tecirc-las adicionado agrave ediccedilatildeo da Utopia juntamente com o tetraacutestico e o alfabeto utopiano sem dizer explicitamente se as teria elaborado ele mesmo o frontispiacutecio da segunda ediccedilatildeo publicada em Paris em 1517 nas prensas de Gilles de Gourmond informa que elas satildeo de autoria de Erasmo

[134]

paradoxo e visa ldquoexercitar a mente a imaginaccedilatildeo e o senso moral do leitorrdquo De fato a carta-prefaacutecio introduz

ao leitor agrave poeacutetica geral do livro que mescla real e potencial o que foi o que eacute e o que poderia ter sido O

gecircnero utoacutepico ldquoescapa agraves categorias claacutessicasrdquo ldquosegue uma loacutegica e possui uma coerecircncia que lhe satildeo

proacutepriasrdquo ldquomistura incessantemente detalhes plausiacuteveis ao relato fictiacutecio e ao inverossiacutemilrdquo (PREacuteVOST

2015 p 439) artifiacutecios semacircnticos e sintaacuteticos como a dupla negaccedilatildeo que despista o espiacuterito do leitor e tem

como resultado o embaccedilamento das fronteiras entre o objetivo e o subjetivo a verdade e a quimera o preciso

e o ambiacuteguo a realidade e o sonho (PREacuteVOST 2015 p 442)

A loacutegica e a poeacutetica da Utopia aparecem no uso de ldquopalavras-enigma e conceitos auto-destrutoresrdquo

(PREacuteVOST 2015 p 440) e ldquoconceitos negativos que estouram como bolhas de sabatildeordquo (PREacuteVOST 2015 p

441) a comeccedilar por Utopia ndash palavra cunhada por More que indica o natildeo-lugar que mesmo sendo um natildeo-

lugar seraacute descrito em detalhes no livro II Antes de chamar sua ilha de Utopia More pensou em Nusquama

ndash topocircnimo certamente menos adequado ao elogio da cultura grega que percorre a obra A capital da ilha eacute

Amaurota forma criada a partir do substantivo ἀμαυρός ldquodifiacutecil de enxergarrdquo ldquoobscurordquo na segunda carta a

Gillis More a define como ldquocidade evanescenterdquo (urbem evanidam) Na primeira ediccedilatildeo da Utopia Amaurota

se chamava Mentiranum Outros vocaacutebulos criados a partir do grego satildeo Anidro ldquosem aacuteguardquo nome do rio

que atravessa Amaurota acorianos povos ldquosem territoacuteriordquo alaopolitas ldquocidadatildeos sem naccedilatildeordquo nefelogetas

ldquocidadatildeos nascidos de uma nuvemrdquo polileacuteritas ldquomuitos absurdosrdquo anemolianos que derivam seu nome de

ἄνεμος ldquoventordquo Todos esses nomes de lugares e de povos e outros espalhados pelos livro I II e tambeacutem

pelos paratextos ldquoreafirmam sem cessar o quinhatildeo de inanidade que entra na Utopiardquo (PREacuteVOST 2015 p

440) e que jaacute estaacute anunciado na carta-prefaacutecio

Vale lembrar que o relato da descriccedilatildeo da Utopia foi feito por Rafael Hitlodeu marinheiro-filoacutesofo portuguecircs

cujo nome eacute marcado pelo paradoxo Satildeo Rafael pode aludir ao nome da embarcaccedilatildeo de Vasco da Gama que

abriu a rota para as Iacutendias em 1498 ao nome do anjo que daacute a receita para Tobias curar seu pai da cegueira

(Tobias 10) e em hebreu Rafael quer dizer ldquoDeus curourdquo A este nome marcado pela referecircncia biacuteblica e pela

referecircncia agraves navegaccedilotildees junta-se um sobrenome cuja etimologia sugere um personagem haacutebil em contar

lorotas ou bagatelas (hythlos que resultaraacute num verbo significando ldquofalar bobagensrdquo e daios ldquohaacutebilrdquo) ldquoque faz

brilhar invenccedilotildeesrdquo ldquocelui qui fait briller des inventionsrdquo na traduccedilatildeo de Delcourt (MORE 1936 p 22)

ldquoespecialista em disparatesrdquo e ldquomercador de disparatesrdquo traduccedilatildeo de nonsense peddler na ediccedilatildeo da Martins

Fontes por Camargo e Cipolla (MORE 2009) ou ainda ldquomensageiro sem noccedilatildeordquo na traduccedilatildeo de Gouvecirca

Junior (MORE 2017) Poreacutem daios tambeacutem significa ldquodestruidor exterminadorrdquo aquele que eacute hostil a algo

portanto Hitlodeu seria tambeacutem algueacutem hostil agraves tolices ou seja um saacutebio

Eacute o relato desse personagem de nome paradoxal e de ethos paradoxal como mostrou Sylvester (1968) que

More-personagem na carta a Pieter Gillis diz ter transcrito

[135]

A carta-prefaacutecio natildeo escapa do modelo retoacuterico amplamente difundido agrave sua eacutepoca nela podemos encontrar

salutatio exordium narratio petitio e conclusatildeo A linguagem da carta eacute semelhante agrave dos livros I e II

apresentando por exemplo figuras de som variadas repeticcedilotildees e paralelismos liacutetotes enargeia metaacuteforas

ironia humor e tom satiacuterico em uma linguagem variada4

Ela comeccedila com uma salutatio simples sem epiacutetetos (Thomas Morus Petro Aegidio salutem dicit Thomas More

sauacuteda Pieter Gillis TIN 2005 p 48-49) Segue-se o exordium que mescla o toacutepos da modeacutestia com a captatio

benevolentia

Sinto-me quase envergonhado meu cariacutessimo Pieter Gillis por enviar-te este livrinho sobre a repuacuteblica utopiana depois de praticamente um ano sendo que (natildeo duvido) tu o esperavas em um mecircs e meio porque sabias que para este trabalho aliviado da preocupaccedilatildeo com a invenccedilatildeo e natildeo precisando pensar na disposiccedilatildeo dos assuntos era preciso apenas repetir o que junto contigo ouvi contar Rafael e por isso nem havia porque me preocupar com o modo de dizer jaacute que o relato dele natildeo podia ser elegante tendo sido em primeiro lugar feito de improviso e sem preparaccedilatildeo e depois por uma pessoa como sabes natildeo tatildeo douta em latim quanto em grego assim quanto mais perto minha escrita chegar da simplicidade negligente dele mais perto estaraacute da verdade que eacute a uacutenica coisa agrave qual devo e devoto meu empenho

Neste trecho da carta de More a Gillis ldquoinvenccedilatildeo [] disposiccedilatildeo [] modo de dizerrdquo operaccedilotildees retoacutericas que

o talento de Hitlodeu havia executado traduzem inueniendi [] dispositione [] eloquendo enumeradas no

quinto livro da Instituiccedilatildeo oratoacuteria de Quintiliano no qual ele diz que ldquoa retoacuterica eacute a ciecircncia de inventar dispor

e dizer adequadamente com boa memoacuteria e atitude dignardquo ndash ldquoRhetorice est inueniendi recte et disponendi et

eloquendi cum firma memoria et cum dignitate actionis scientiardquo (Inst 51054) Dizendo o que natildeo elaborou e o

que natildeo fez More-personagem chama a atenccedilatildeo do leitor para o que More-autor de fato elaborou e fez

Liacutetotes e ironia que construiratildeo todo o edifiacutecio ficcional da Utopia mediante formulaccedilotildees obliacutequas marcam

a carta-prefaacutecio desde seu iniacutecio e retomam a negaccedilatildeo ambiacutegua jaacute anunciada no nome da ilha do natildeo-lugar e

no nome de Rafael Hitlodeu

More-personagem atribui a simplicidade de sua tarefa de mero transcritor ao fato de Hitlodeu ter feito um

relato que ldquonatildeo podia ser eleganterdquo pois foi feito ldquode improviso e sem preparaccedilatildeordquo e em uma liacutengua que ele

dominava menos que o grego o que resultou em um estilo de ldquonegligente simplicidaderdquo No iniacutecio do livro I

Gillis apresenta Hitlodeu ldquonatildeo eacute ignorante em liacutengua latina e eacute doutiacutessimo na gregardquo ndash ldquolatinae linguae non

indoctus amp graecae doctissimusrdquo (4832-335) A imprecisatildeo expressa pela liacutetotes sobre o quanto Hitlodeu sabe

latim mascara a complexidade do discurso latino do marinheiro portuguecircs cuja variedade estiliacutestica foi

demonstrada por Edward Surtz e Elizabeth McCutcheon6

4 Para uma traduccedilatildeo completa da carta-prefaacutecio seguida do original latino ver Ribeiro (2018) 5 Estes nuacutemeros referem-se agrave paacutegina e linhas da jaacute citada CW4 6 Ver por exemplo Surtz (1967) e McCutcheon (1971 1983 2015a 2015b)

[136]

ldquoNatildeo ser ignorante em latimrdquo parece apontar para a insuficiecircncia no manejo da liacutengua mais do que para a

excelecircncia imprecisatildeo que sugere um efeito de ironia porque se opotildee agrave proacutepria escrita do livro utoacutepico e a

observaccedilotildees como a de Quintiliano e Erasmo acerca da capacidade de improvisar ldquocertamente o maior fruto

dos estudosrdquo ndash ldquomaximus uero studiorum fructus est [] ex tempore dicendi facultasrdquo (Inst 1071) ndash ou ainda

algo que se consegue com muito exerciacutecio e bons modelos como afirma Erasmo (TIN 2005 p 114) Para

Erasmo ldquopureza e propriedade de estilo satildeo alcanccedilados pelo diligente exerciacutecio de escrita acompanhado pela

cuidadosa revisatildeo e o estudo em profundidade de diversos escritoresrdquo (TIN 2005 p 52) Ou seja o discurso

improvisado de Hitlodeu soacute pode ser fruto de muito estudo informaccedilatildeo que nuanccedila o fato de ele natildeo ser ldquotatildeo

douto em latim quanto em gregordquo

Por outro lado eacute certo que o tom de conversa domina e emoldura a Utopia que eacute um longo coloacutequio e

predomina tambeacutem nas cartas que compotildeem os paratextos Podemos aproximaacute-lo do que explica Erasmo em

sua Breviacutessima e muito resumida foacutermula de elaboraccedilatildeo epistolar a carta ldquoum coloacutequio entre ausentesrdquo (ele cita

Libacircnio) ldquonada traz que a difira de uma conversaccedilatildeo do cotidiano em linguagem comumrdquo (TIN 2005 p 51)

Vale notar que a mesma expressatildeo que qualifica o discurso de Hitlodeu feito ldquode improviso e sem

preparaccedilatildeordquo (ldquosubitarius atque extemporalisrdquo) aparece na Breviacutessima foacutermula na qual Erasmo aconselha que

ldquoo estilo epistolar deve ser simples e mesmo bastante descuidado no sentido de um descuido estudadordquo para

que pareccedila ldquonatildeo trabalhado e quase improvisado e sem preparaccedilatildeordquo (ldquopaene subitus atque extemporariusrdquo)

Quintiliano nas Instituiccedilotildees oratoacuterias (9437) cita uma passagem de Ciacutecero que se refere a uma non ingratam

neglegentiam indicando um discurso que se atenta mais para o que quer dizer do que para a forma com que

se diz (eacute um trecho que trata de ditongos e hiatos)

Enfim eacute importante perceber que o discurso utoacutepico como notaram McCutcheon e Surtz (1983 p 37) natildeo

eacute homogecircneo sua forma varia alternando trechos elaborados e formulaccedilotildees simples Como percebeu

Erasmo

o estilo oratoacuterio que [More] alcanccedilou se inclina mais agrave estrutura isocraacutetica e agrave sutileza dialeacutetica do que agravequela fluente correnteza do estilo ciceroniano ainda que natildeo seja inferior a Marco Tuacutelio em elegacircncia E uma vez que quando jovem dedicou-se por muito tempo a escrever poesia reconheceraacutes o poeta em sua prosa (ERASMO DE ROTTERDAM 2013 p 175 trad de Elaine Sartorelli)

Voltemos agrave carta Thomas More continua

Confesso meu caro Pieter que por estarem prontas essas coisas de fato subtraiacuteram boa parte de minhas preocupaccedilotildees porque quase nada ficou por fazer em caso contraacuterio imaginaacute-las e organizaacute-las poderia demandar um engenho nem iacutenfimo nem completamente indouto aleacutem de natildeo pouco tempo e aleacutem de aplicaccedilatildeo Mas se me fosse exigido que escrevesse natildeo somente com verdade mas tambeacutem com eloquecircncia para fazer isso na verdade natildeo poderia dispor nem de tempo nem de aplicaccedilatildeo Eacute verdade poreacutem que suprimidas estas tarefas que me fariam tanto suar restaria apenas isto escrever o que ouvi de modo simples ndash um negoacutecio de nada

[137]

A toacutepica da modeacutestia se mescla agrave toacutepica do relato que se diz ser mera transposiccedilatildeo o que eacute recorrente nas

descriccedilotildees de paiacuteses utoacutepicos seja por motivaccedilatildeo luacutedica seja para escapar da censura No acircmbito da

literatura inglesa vale lembrar um trecho do proacutelogo dos Contos da Cantuaacuteria

Natildeo julgueis minha falta de fineza Pois hei de descrever falas e feitos De maneira veraz e sem rodeios Conforme eu ouvi as frases eu repito Conveacutem reproduzir dito por dito Numa histoacuteria que envolve tanta gente As coisas como foram fielmente A grossura das falas respeitando Nenhuma sordidez amenizando Do contraacuterio a verdade morre expira E o conto eacute sem sabor pura mentira7

Este trecho tambeacutem relaciona mutatis mutandis a transposiccedilatildeo do relato de outrem agrave fidelidade agrave

simplicidade do estilo e agrave veracidade Voltemos agrave carta Depois de explicar o quanto e por que eacute injustificaacutevel

seu atraso no envio da Utopia o personagem More se desculpa argumentando falta de tempo que lhe eacute

requerido pelas obrigaccedilotildees do trabalho da casa e pelas necessidades do corpo Ele diz o seguinte

[] mesmo tratando-se de um negoacutecio tatildeo de nada meus outros negoacutecios me deixaram tempo para praticamente menos que nada Tantas vezes haacute processos forenses conduzo alguns defendo alguns arbitro alguns como advogado sentencio alguns como juiz tantas vezes visito este por uma obrigaccedilatildeo aquele por um negoacutecio tantas vezes fora dedico quase todo o meu dia a alguns e o que resta aos meus que para mim isto eacute para as letras nada resta Sim pois quando volto para casa tenho que confabular com a minha esposa brincar com as crianccedilas conversar com os criados ndash todas essas coisas eu coloco na categoria dos negoacutecios pois satildeo necessaacuterias (e tecircm que ser necessaacuterias a natildeo ser que queiras ser um estranho em tua casa) e eacute preciso dar total atenccedilatildeo aos teus companheiros de vida sejam os que a natureza proveio sejam os que o acaso produziu sejam os que escolheste a quem tratas com a maior amabilidade mas sem que teu companheirismo os corrompa e a indulgecircncia natildeo transforme os criados em senhores Nessas ocupaccedilotildees que mencionei vatildeo-se dias meses anos Logo em que momento escreveriacuteamos E natildeo disse o que quer que seja a respeito do sono e nem tampouco da comida que a muitos natildeo consome menos tempo que o sono que some com quase metade da nossa vida Tempo para mim poreacutem eu consigo somente quando de vez em quando o furto ao sono e agrave comida e como ele eacute pouco e porque isso jaacute eacute alguma coisa lenta e finalmente terminei a Utopia e a ti meu caro Pieter a envio para que a leia e me avise caso algo nos tenha escapado

Minha traduccedilatildeo tem repeticcedilotildees que buscam reproduzir as figuras de som do texto latino figuras que

parecem sublinhar a longa enumeraccedilatildeo das obrigaccedilotildees do narrador Chamo a atenccedilatildeo para este trecho em

particular Em poucas linhas soam as aliteraccedilotildees e assonacircncias em s em o em m e n sono consome sono

some somente sono (somno absumit somnus adsumit solum somno) Em outras ocasiotildees jaacute chamei a atenccedilatildeo

para a presenccedila de figuras de som na Utopia e o sentido dessa presenccedila no contexto das relaccedilotildees entre

7 Proacutelogo geral dos Contos da Cantuaacuteria na traduccedilatildeo de Joseacute Francisco Botelho em Chaucer (2013 p 45)

[138]

humanistas e escolaacutesticos no seacuteculo XVI e para o fato de que elas marcam posiccedilatildeo quanto ao uso da

linguagem sabedoria e eloquecircncia poesia e histoacuteria podem coexistir num mesmo discurso8

A carta-prefaacutecio continua alternando narratio e petitio com a confissatildeo de um possiacutevel lapso de memoacuteria

[] se natildeo desconfio de mim (oxalaacute eu tivesse tanto de engenho e conhecimento quanto de memoacuteria da qual seguramente natildeo sou destituiacutedo) natildeo confio poreacutem com seguranccedila para crer que nada tenha podido me escapar

More explica que seu pajem John Clement ldquoque comeccedilou a verdejar nas letras latinas e gregasrdquo discorda

dele quanto ao tamanho da ponte ldquoque se estende sobre o rio Anidrordquo e corta a capital Amaurota (CW4

4020) Preocupado pede a Gillis que verifique essa informaccedilatildeo

Se com ele consentes eu tambeacutem assentirei e aceitarei meu lapso mas se natildeo te acordas escreverei o que me pareccedila eu mesmo me recordar []

O narrador diz estar cuidando ldquopara que natildeo haja falsidades no livrordquo Ele continua ldquose houver algo de

ambiacuteguo prefiro dizer uma mentira sem querer que mentir de propoacutesito porque prefiro ser honesto a ser

espertordquo A distinccedilatildeo entre mentir sem querer e mentir de propoacutesito eacute uma citaccedilatildeo de Aulo Geacutelio (NA XI 11

1-4) autor muito apreciado pelos humanistas Nesta passagem afirma-se o pacto de leitura da Utopia a

convenccedilatildeo irocircnica e humoriacutestica que permitiraacute ao leitor ler uma imensa mentira que poreacutem trataraacute de uma

imensa verdade ou seja da concretude cotidiana do viver associado

A carta tambeacutem pede a Gillis que confira com Hitlodeu natildeo apenas essa informaccedilatildeo mas tambeacutem que lhe

pergunte a localizaccedilatildeo precisa da ilha de Utopia jaacute que More natildeo teve a ideia de perguntar e um ldquodevoto e

teoacutelogo de profissatildeordquo (CW4 425-6) foi apontado para ser bispo dos utopianos Por fim uma uacuteltima

solicitaccedilatildeo que Gillis pergunte ao marinheiro portuguecircs se ele natildeo gostaria de revisar Utopia ou se natildeo

preferiria ele mesmo escrever seu relato ldquocom seus proacuteprios esforccedilosrdquo (CW4 4221-22)

Termino com a apresentaccedilatildeo do final da carta-prefaacutecio que traz um verdadeiro cataacutelogo caricato de maus

leitores diametralmente opostos aos bons leitores da repuacuteblica das letras que se delineia no conjunto dos

paratextos das quatro primeiras ediccedilotildees da Utopia A carta se encerra com a promessa de que o trabalho de

redaccedilatildeo seraacute revisado e com uma saudaccedilatildeo final a Gillis assim como uma evocaccedilatildeo ao bom conselho dos

amigos e agrave amizade que os unia O cataacutelogo comeccedila depois que More diz que natildeo sabe se conseguiraacute publicar

seu livro

porquanto satildeo tatildeo variados os gostos dos mortais tatildeo difiacuteceis de contentar o caraacuteter de alguns tatildeo desagradaacuteveis os espiacuteritos tatildeo absurdos os juiacutezos que aqueles que alegres e contentes satildeo indulgentes com seu estro parecem ser natildeo pouco mais felizes do que quem se atormenta com preocupaccedilotildees para publicar algo que possa ser uacutetil e prazeroso para outros desdenhosos e ingratos Tantos ignoram o conhecimento muitos o menosprezam

8 Ver Ribeiro (2015a 2015b 2016 2018)

[139]

Os baacuterbaros rejeitam como sendo aacuterduo o que quer que natildeo seja completamente baacuterbaro os sabichotildees desprezam como sendo trivial o que quer que natildeo abunde em palavras obsoletas haacute a quem soacute agrade o que eacute antigo e agrave maioria apenas o que eacute seu Este eacute tatildeo severo que natildeo admite brincadeiras aquele tatildeo insulso que natildeo suporta o sal [Chama de ldquonarizes chatosrdquo os homens sem nariz] Alguns satildeo tatildeo narizes-chatos que temem qualquer nariz assim como teme a aacutegua toda pessoa mordida por um catildeo raivoso Outros satildeo voluacuteveis a tal ponto que aprovam uma coisa sentados e outra coisa em peacute [Proveacuterbio] Estes se sentam nas tavernas e entre copos julgam o engenho dos escritores e com grande autoridade e a seu bel-prazer como se os puxassem pelos cabelos condenam cada um de seus escritos

enquanto eles proacuteprios ficam seguros ἒξω βέλους (ldquofora da mirardquo) como se costuma dizer porque satildeo tatildeo lisos e raspados por toda parte que natildeo tecircm nenhum fio de homem honesto por onde possam ser apanhados Haacute ainda quem seja tatildeo ingrato que mesmo deleitando-se ao extremo com a obra natildeo por isso ame mais o autor [Admiraacutevel comparaccedilatildeo] natildeo satildeo dessemelhantes aos convidados sem educaccedilatildeo que recebidos generosamente com um suntuoso banquete laacute se fartando voltam ao lar sem terem agradecido agravequeles que os convidaram Vai agora prepara agraves tuas expensas um banquete para esses homens de tatildeo delicado paladar tatildeo variados gostos e aleacutem do mais de espiacuterito tatildeo inclinado a lembrar e a agradecer

De toda forma meu caro Pieter faccedila como disse em relaccedilatildeo a Hitlodeu depois disso seraacute conveniente deliberar novamente sobre essas coisas Mas se o livro estiver de acordo com a vontade dele como o trabalho da escrita estaacute terminado e agora estaacute tarde para ser saacutebio [esta expressatildeo eacute um proveacuterbio explicado por Erasmo em um dos Adaacutegios]9 quanto ao que resta editar seguirei o conselho dos amigos e em primeiro lugar o teu Adeus dulciacutessimo Pieter Gillis e tua excelente esposa Ama-me como de costume pois eu o amo ainda mais que costumo

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MORVS T Vtopia ou A melhor forma de governo Estudo introdutoacuterio agrave Utopia moriana por J V de Pina Martins Ediccedilatildeo fac-similada Basileia Ioannes Froben novembro 1518 Ediccedilatildeo criacutetica traduccedilatildeo e notas de comentaacuterio por A A Nascimento Lisboa Calouste Gulbenkian 2006

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Antiguidade claacutessica e judaica em Joseacute de Siguenza e Luis Cabrera de Coacuterdoba (Espanha seacutec XVI-XVII)

Camila Cristina Souza Lima

tamicalegmailcom

Nos reinos ibeacutericos ao longo do seacuteculo XVI a arquitetura reacutegia e

religiosa era edificada seguindo o que seus contemporacircneos

chamavam de ldquoarquitetura modernardquo e em menor quantidade

tambeacutem era realizada uma arquitetura ldquoagrave maneira antigardquo A origem

dos artiacutefices para se realizar as obras de uma ou outra forma

variava sendo que no caso da antiga muitos deles vinham da

Peniacutensula Itaacutelica atraveacutes de italianos ou ateacute mesmo portugueses ou

castelhanos que passavam por uma estadia de aprendizagem em

que a arquitetura antiga romana era redescoberta e formava novo

referencial para as edificaccedilotildees a serem realizadas Esse meacutetodo natildeo

substituiacutea completamente a arquitetura moderna que indicava

continuidade em relaccedilatildeo agraves obras realizadas em fins da Idade

Meacutedia

Segundo Fernando Marias o seacuteculo XVI era marcado por um

bilinguismo dos mestres nos canteiros de obra pois ainda que o

retorno agrave antiguidade fosse uma novidade reconhecida a

arquitetura moderna ainda respondia bem agraves necessidades e aos

interesses dos comitentes Em suas palavras ldquo[] el goacutetico

[arquitetura moderna] continuoacute dando satisfaccioacuten a unas

demandas representativas concretas a las que daba solucioacuten sus

formas habiacutean sido identificadas a unas funciones y unos

significados especiacuteficos []rdquo (MARIAS 1992 p 9)

[142]

A escolha entre a arquitetura agrave maneira moderna ou agrave maneira antiga nesse momento vinculava-se ao

discurso que se pretendia transmitir em tais construccedilotildees agrave imagem de poder pretendida e agrave narrativa que

legitimava a construccedilatildeo daqueles reinos justificados pela defesa da feacute Esse contexto eacute a base para a

discussatildeo que propomos nas paacuteginas que se seguem Devido agraves particularidades do processo de

fortalecimento do poder real nos reinos ibeacutericos em princiacutepios da Idade Moderna a maneira como a

antiguidade seria apresentada pelos autores aqui em questatildeo Joseacute de Siguenza (1544-1606) e Luis Cabrera

de Coacuterdoba (1559-1623) ao escreverem sobre a edificaccedilatildeo do Monasterio de San Lorenzo El Real del

Escorial desenvolveria argumentos que dialogavam com os autores italianos que valorizavam a antiguidade

em detrimento da arquitetura moderna que se realizava ateacute entatildeo mas com aspectos que reforccedilavam o

discurso religioso Nossa intenccedilatildeo natildeo eacute comparar os dois autores aos autores italianos mas traccedilar algumas

caracteriacutesticas mais marcantes em seus argumentos sobre a valorizaccedilatildeo da antiguidade romana Antes de

tratar especificamente das palavras de Siguenza e Cabrera de Coacuterdoba apresentaremos brevemente

algumas consideraccedilotildees sobre a importacircncia da arquitetura moderna ateacute o seacuteculo XVI em Castela

A arquitetura moderna tambeacutem chamada de ldquogoacuteticardquo na historiografia foi introduzida a sul dos Pirineus a

partir de modelos do Norte da Franccedila nos seacuteculos XIII e XIV Era a expressatildeo arquitetocircnica da influecircncia

francesa em tempos de reconquista como tambeacutem tinha sido a romacircnica introduzida pelos monasteacuterios e

abadias cluniacenses no seacuteculo XII em Leatildeo e Castela Ainda que em fins da Idade Meacutedia as lutas contra os

muccedilulmanos tenham sido conduzidas predominantemente pelo clero e pela nobreza local e os edifiacutecios

religiosos tenham incorporado em seu processo construtivo matildeo de obra versada na arquitetura de

influecircncia muccedilulmana chamada na historiografia muitas vezes como ldquomudejarrdquo os prelados e abades

cistercienses proacuteximos dos monarcas Alfonso VIII (1155-1214) e Fernando III (1199-1252) ainda preferiam

edificar seus mosteiros sob a influecircncia francesa (LAMBERT 1990)

Dessa forma o goacutetico e o mudeacutejar que lembravam a presenccedila cristatilde e islacircmica conviviam assim como

cristianismo judaiacutesmo e islamismo tinham convivido na Peniacutensula Ibeacuterica durante boa parte da Idade Meacutedia

O conviacutevio entre religiotildees e maneiras de se edificar natildeo desapareceria apoacutes a subida ao poder dos Reis

Catoacutelicos ainda que suas expressotildees fossem abandonadas progressivamente em benefiacutecio de uma imagem

de um reino cristatildeo em construccedilatildeo

A mudanccedila de postura em favor de uma arquitetura que apresentasse em sua escolha a imagem de uma

monarquia cristatilde se deveu entre outros motivos agrave necessidade de se vincular agrave Cristandade sem levantar

suspeitas sobre a ortodoxia dos reis e dos reinos ibeacutericos construiacutedos apoacutes as guerras contra os muccedilulmanos

Fazem parte desse processo a instalaccedilatildeo da Inquisiccedilatildeo para forccedilar os conquistados agrave conversatildeo e para a

fiscalizaccedilatildeo dessa conversatildeo bem como a expulsatildeo dos judeus em 1492 decisatildeo tomada pelos Reis Catoacutelicos

em resposta agrave forte pressatildeo das populaccedilotildees urbanas cristatildes e dos pregadores franciscanos (MARTIacuteNEZ

MILAN 2007)

[143]

Isabel de Castela (1451-1504) e Fernando de Aragatildeo (1452-1516) encomendavam seus edifiacutecios em

ldquoarquitetura modernardquo com influecircncia flamenca e germacircnica o que continuaria a ser realizado ateacute o seacuteculo

XVI Nesse momento de consolidaccedilatildeo do cristianismo na peniacutensula durante o reinado dos Reis Catoacutelicos os

artiacutefices que trabalhavam em suas obras eram na maioria de origem flamenga (MARIAS 1992) Ainda que

existisse um pequeno nuacutemero de artiacutefices versados na arquitetura antiga a monarquia se mantinha mais

apegada agrave moderna A aristocracia ainda que reafirmasse valores tradicionais sobretudo de pertencimento

a uma famiacutelia que justificava seus privileacutegios e seu papel poliacutetico formou a clientela preferencial na

introduccedilatildeo de elementos italianos na arquitetura imprimindo certa aparecircncia de modernidade em suas

iniciativas Em 1488 segundo Victor Nieto Alcaide pela primeira vez um edifiacutecio foi construiacutedo agrave maneira

antiga na Espanha sob a iniciativa do cardeal Don Pedro Gonzaacuteles de Mendonza o Coleacutegio de Santa Cruz de

Valladolid (NIETO ALCAIDE MORALES CHECA CREMADES 1993)

Poreacutem com a mudanccedila de dinastia no seacuteculo XVI dos Trastamaras aos Habsburgos e o reinado de Carlos I

de Espanha (1500-1558) que tambeacutem acumularia o imponente tiacutetulo imperial de Rei dos Romanos1 como

Imperador Carlos V a arquitetura agrave maneira antiga ganhou espaccedilo no mecenato reacutegio Eacute fundamental nesse

sentido lembrar o palaacutecio construiacutedo por Pedro Machuca para o rei anexo agrave Alhambra O monarca visitou a

Alhambra em suas nuacutepcias com Maria de Portugal em 1526 o que teria feito o casal real desejar edificar

tambeacutem em Granada optando por construir um palaacutecio anexo ao suntuoso edifiacutecio muccedilulmano de

arquitetura romana

Segundo Frommel (2018) apesar do imperador natildeo ser muito versado em arquitetura e conhecer muito

melhor a edificaccedilatildeo agrave maneira moderna em detrimento da antiga havia importantes homens em sua corte na

Alhambra que influenciariam sua decisatildeo sobre seu novo palaacutecio Estavam junto ao rei em sua estadia na

cidade Luis Hurtado de Mendoza (1489-1566) governador da Alhambra que conhecia a Itaacutelia e era homem

de confianccedila do rei e Francisco de los Cobos (1477-1547) que demonstrava interesse pela arquitetura

antiga Tambeacutem acompanhava o imperador Baldassare Castilione (1478-1529) embaixador do papa cujo

interesse pelas construccedilotildees da Roma Antiga se expressava em sua provaacutevel participaccedilatildeo na redaccedilatildeo da Carta

de Rafael ao papa Leatildeo X sobre as ruiacutenas romanas texto que engrandecia os antigos construtores e colocava

seus edifiacutecios ndash que passavam a ser conhecidos a partir dos estudos e das escavaccedilotildees das ruiacutenas no entorno

da cidade papal ndash como novos modelos para engrandecer o territoacuterio pontifiacutecio reforccedilando a imagem do

Papa como herdeiro dos antigos imperadores Nesse texto a arquitetura antiga eacute apresentada como

referencial para aleacutem dos limites dos territoacuterios papais Outro nome importante era o embaixador veneziano

Andrea Navageno (1483-1529) que fora pintado por Rafael Sanzio (1483-1520) e visitara com ele o Teatro

Mariacutetimo em 1516

1 Carlos V se tornou rei da Espanha em 1516 e imperador do Sacro Impeacuterio em 1519

[144]

Esses homens devem ter desempenhado papel fundamental na escolha do arquiteto que deveria levar a cabo

o desejo do rei de construir seu palaacutecio anexo agrave Alhambra Pedro Machuca (1490-1550) e dessa forma em

edificar agrave maneira antiga Frommel traccedila paralelos desse palaacutecio com outros edifiacutecios construiacutedos na Itaacutelia

naquele momento e que eram marcados pela presenccedila do paacutetio circular em seu interior como o Palazzo

Gravina em Naacutepolis ou a Vila Madama dos Meacutedicis

Com a construccedilatildeo desse palaacutecio a arquitetura agrave antiga dialoga com o passado islacircmico Nesse momento

como jaacute mencionado Rafael Sanzio escrevia sua Carta a Leatildeo X sobre as ruiacutenas de Roma a qual deveria

acompanhar uma seacuterie de desenhos realizados a partir de suas observaccedilotildees das reliacutequias da antiga capital do

impeacuterio que sobreviveram As palavras de Rafael satildeo muito importantes para se compreender como se dava

a valorizaccedilatildeo do passado romano em detrimento da arquitetura que se realizava ateacute entatildeo

Haacute muitos Santiacutessimo Padre que medindo com seu pequeno juiacutezo as coisas grandiacutessimas que se escrevem dos romanos sobre suas faccedilanhas militares e sobre a cidade de Roma o que diz respeito a admiraacutevel arte riqueza ornamentos e grandezas dos edifiacutecios acham que estas sejam mais fabulosas que verdadeiras Mas comigo costuma acontecer o contraacuterio pois considerando a divindade daquelas almas antigas a partir dos vestiacutegios que ainda vemos das ruiacutenas de Roma opino natildeo ser mais aleacutem da razatildeo acreditar que muitas coisas que parecem impossiacuteveis para noacutes para elas eram faciacutelimas (SANZIO 2010 p 45)2

Em suas palavras eacute expressa a defesa da Roma antiga como um ambiente aacuteureo de homens e conhecimentos

louvaacuteveis que se encontravam distantes daqueles tempos mas que poderiam e deveriam ser resgatados

como heranccedila aos homens de princiacutepios da Idade Moderna marcando claramente a existecircncia de um hiato

que separa o passado imperial romano do momento em que se escreve esse elogio Essa postura que foi

amplamente discutida na historiografia e que seria fundamental para compreender a Europa Moderna eacute

retomada por diversos autores da eacutepoca Rafael (2010 p 45) continua sua valorizaccedilatildeo de Roma

No entanto pareceu que o tempo sendo invejoso da gloacuteria dos mortais natildeo confiando totalmente apenas em suas proacuteprias forccedilas acordou-se com a fortuna e com os baacuterbaros profanos e celerados os quais agrave lima voraz e agrave mordida venenosa daquele acrescentaram sua iacutempia forccedila o ferro e o fogo e todas as maneiras aptas de arruinaacute-la

A apresentaccedilatildeo da decadecircncia do mundo romano devido aos povos baacuterbaros que se instalaram nos

territoacuterios do impeacuterio que se desagregavam tambeacutem eacute bastante recorrente nos autores Queremos ressaltar

isso para indicar as particularidades da escrita sobre a arquitetura agrave antiga que surgiria na Espanha conforme

a arquitetura moderna sedia espaccedilo agraves influecircncias que vinham da Itaacutelia

A iniciativa de Carlos V eacute um marco importante nesse processo de abertura do mecenato reacutegio para a

arquitetura agrave antiga pois seu palaacutecio construiacutedo por Machuca ao lado da Alhambra indicava a possibilidade

da arquitetura romana ser adequada e decorosa para comunicar a imagem do rei em seus edifiacutecios Tafuri

2 Carta ao Papa Leatildeo X Manuscrito de Mantua Traduccedilatildeo de Luciano Migliaccio e Maria Luiza Zanatta

[145]

(1993) ao estudar esse palaacutecio reforccedila o discurso de Carlos V atraveacutes desse palaacutecio que voltado agrave

valorizaccedilatildeo da arquitetura antiga reforccedilava a imagem de seu poder universal como Rei dos Romanos

aproximando-se do discurso papal de sua eacutepoca

Se Carlos V tinha como importante mensagem expressar na arquitetura o seu poder imperial enquanto

herdeiro de Roma seu filho Felipe II (1527-1598) teria outras mensagens a transmitir Seu reinado foi

marcado pelo reforccedilo da imagem de pertencimento da Espanha agrave Cristandade e do papel de seus

governantes como importantes defensores da feacute catoacutelica seja contra seus inimigos internos (reformas

religiosas e heresias) bem como seus inimigos externos (avanccedilo turco) aleacutem do papel missionaacuterio

evangelizador nas colocircnias americanas que colocavam os reinos ibeacutericos como os continuadores da obra dos

apoacutestolos de Cristo de levar a palavra a todos os cantos da Terra Diferentemente de seu pai Felipe II era

conhecedor da arquitetura antiga e tinha em sua biblioteca os principais tratados daquele momento

(PARKER 2004)

Aleacutem disso Felipe II passou a governar todos os reinos peninsulares com a incorporaccedilatildeo de Portugal em

1580 devido agrave morte do rei cardeal Dom Henrique (1512-1580) que sucedera Dom Sebastiatildeo (1554-1578)

apoacutes seu desaparecimento no norte da Aacutefrica e conduzira a questatildeo sucessoacuteria que acabaria por coroar o

monarca castelhano tambeacutem como rei lusitano Na arquitetura a principal obra realizada para sintetizar a

mensagem de poder religioso desse monarca eacute o Monasterio de San Lorenzo El Real del Escorial tambeacutem

chamado apenas de Escorial e o responsaacutevel pela traccedila geral do edifiacutecio e da execuccedilatildeo da faacutebrica tambeacutem

chamado para se ocupar das construccedilotildees reais em termos gerais como arquiteto do rei foi Juan Bautista de

Toledo (c 1515-1567) espanhol que tinha atuado em Roma junto a Michelangelo homem versado na

arquitetura antiga especialmente nas obras edificadas sob patrociacutenio papal

Nossa intenccedilatildeo em fazer essas primeiras consideraccedilotildees eacute explicitar o contexto em que a arquitetura antiga

ganha relevacircncia junto aos monarcas espanhoacuteis chegando inclusive ao principal espaccedilo de expressatildeo da

monarquia na Idade Moderna o Escorial que ainda hoje eacute o local de enterramento dos membros da famiacutelia

real Pretendemos reforccedilar a importacircncia da escolha de Felipe II em construir um palaacutecio para si junto a um

monasteacuterio onde tambeacutem seria o panteatildeo dinaacutestico trazendo artiacutefices da Itaacutelia ou versados na arquitetura

antiga quando ainda se edificava consideravelmente em arquitetura agrave maneira moderna a qual tinha

importante apelo agraves questotildees religiosas e agrave lembranccedila da Reconquista aleacutem de relacionar-se agrave imagem de

pertencimento agrave Cristandade Nesse momento o discurso de legitimaccedilatildeo do poder real ainda reforccedilava a

lembranccedila das guerras contra os muccedilulmanos Devemos lembrar que Felipe II incentivava a escrita da

Histoacuteria valorizando esses eventos colocando-se como continuador de seus antepassados na defesa da feacute

catoacutelica contra o Islatilde quando aconteciam as lutas contra os turcos em Lepanto (GARCIA CARCEL 2003)

[146]

O monarca tambeacutem empreendia avanccedilos contra as populaccedilotildees remanescentes dos muccedilulmanos Segundo

Martiacutenez Pentildeas e Herreros Cepeda (2011) a situaccedilatildeo dessas populaccedilotildees mudou drasticamente entre o

reinado de Carlos V e Felipe II de forma que a relativa toleracircncia aos seus costumes fosse substituiacuteda por

uma incorporaccedilatildeo dessas pessoas ao modo de viver dos cristatildeos sobretudo apoacutes o Conciacutelio de Trento Em

1566 o monarca elaborou uma pragmaacutetica em que os mouriscos deveriam aprender castelhano abandonar

sua liacutengua vestes instrumentos e cacircnticos em ateacute trecircs anos aleacutem de criar uma comissatildeo que averiguaria os

tiacutetulos das terras em que viviam as quais poderiam ser confiscadas caso a documentaccedilatildeo natildeo estivesse

adequada o que acabou por gerar uma onda de revoltas iniciadas em Granada na noite de Natal de 1568

que avanccedilou para o norte de Maacutelaca e se prolongou ateacute o veratildeo de 1571 quando foram sufocadas pelas

tropas lideradas por Don Juan irmatildeo bastardo do rei

Devido a essas particularidades do territoacuterio espanhol a maneira como a relaccedilatildeo entre arquitetura antiga e

moderna foi apresentada no discurso de valorizaccedilatildeo do Escorial se construiu de maneira particular sem

perder de vista a questatildeo religiosa e o paganismo dos antigos Dois homens que serviram ao monarca e

acompanharam a faacutebrica do Escorial tiveram papel fundamental na construccedilatildeo dessa imagem escrita

O primeiro deles foi Joseacute de Siguenza monge jerocircnimo e importante nome dessa ordem religiosa que

habitou o Escorial desde sua fundaccedilatildeo aleacutem de ter sido cronista da ordem e ter desempenhado importantes

cargos nessa que se tornaria a principal casa jerocircnima (ASENJO PELEGRINA 1979) Tomaremos como base

para nossas consideraccedilotildees apenas algumas de suas obras sobre a construccedilatildeo do Escorial e sua Historia de la

Orden de San Jeroacutenimo

O segundo autor de que trataremos eacute Luis Cabrera de Coacuterdoba proveniente de uma famiacutelia nobre dedicada

agraves armas Seu pai tinha sido o responsaacutevel pelos pagamentos daqueles que trabalharam na faacutebrica do

Escorial o que permitiu a ele proximidade com o rei a quem serviu desde cedo como enviado a outros reinos

Apoacutes a morte de Felipe II Cabrera passou a servir agrave rainha Dona Margarida de Aacuteustria quando comeccedilou a

escrever obras de caraacuteter histoacuterico como a Historia de Felipe II Historia para entenderla y escribirla Advertencia

sobre la educacioacuten del Priacutencipe Elogium Rui Gomenzeii Relactio vitae mortisque Caroli infantis Philippi II

Relaciones de las cosas sucedidas en las cortes de Espantildea desde 1599 hasta 1614 e o poema Laurentina (PEREZ

BLANCO 1975) Tomamos como referecircncia sua Historia de Felipe II e o poema Laurentina

Os dois autores tratam do peso da imagem religiosa desse edifiacutecio poreacutem no discurso de Siguenza esse

aspecto eacute ainda mais presente pois a histoacuteria da construccedilatildeo do Escorial eacute apresentada pelo autor como parte

importante da histoacuteria da proacutepria ordem Como Siguenza foi cronista da Ordem de Satildeo Jerocircnimo a

construccedilatildeo do Escorial eacute narrada como parte de uma Histoacuteria maior que comeccedilaria nas obras do monge

sobre a vida de Satildeo Jerocircnimo passando pelo surgimento da ordem e chegando ao seu aacutepice de

desenvolvimento com a fundaccedilatildeo de San Lorenzo el Real del Escorial Por isso suas palavras datildeo ecircnfase

[147]

sobretudo agrave edificaccedilatildeo espiritual com a vinda dos monges diante da possibilidade de se alojarem onde seria

aquela grande casa aos rituais de consagraccedilatildeo dos espaccedilos da igreja agrave participaccedilatildeo dos monges em todo o

processo e agrave presenccedila do monarca no local sobretudo destacando a narraccedilatildeo dos uacuteltimos dias de vida do rei

e seu exemplo de homem de feacute perante a morte

Esses dois autores indicaram que o Escorial foi construiacutedo para responder a diversos desejos do governante

Em primeiro lugar era a memoacuteria da primeira vitoacuteria do monarca em 10 de agosto de 1557 na Batalha de

San Quintin contra o rei francecircs

Fue eacutesta la primera de la victorias que tuvo Felipe II y acerto por celestial acuerdo aacute ser en 10 diacuteas de Agosto fiesta del glorioso maacutertir San Lorenzo espantildeol aacute quien su nintildeez tuvo este piadoso Priacutencipe singular devocioacuten entendioacute que un principio tan ilustre de sus cosas le veniacutea por su favor e intercesiones en el cielo y asiacute desde aquel punto concibioacute en su pecho un alto propoacutesito de hacerle alguacuten sentildealado servicio (SIGUENZA 2003 p 13)

Era tambeacutem o local de sepultura do imperador Carlos V que acabaria por se converter em panteatildeo dinaacutestico

Como apresentou Cabrera no testamento de Carlos V outorgado em Flandres em 6 de junho de 1554 o

imperador tratava de seu funeral e de sua esposa a imperatriz que estava sepultada na Capilla Real de

Granada sem deixar um edifiacutecio definido para seu sepultamento ldquoConfiaba de su obediecircncia [de Felipe II] y

piedad se le daria con tal pompa y suntuoso edifiacutecio que ningun griego itaacutelico oacute aleman emperador le haya

tenido semejante []rdquo (CABRERA 2009-2010 p 370) A funccedilatildeo de ser sepulcro digno de um imperador

aparece com destaque nos dois autores reforccedilando a imagem de Felipe II como herdeiro de Carlos V

sobretudo na defesa da feacute

Aleacutem disso o Escorial deveria servir como monasteacuterio e como palaacutecio proacuteximo de Madrid para que o rei

pudesse se retirar inclusive quando estivesse preparando-se para a vida eterna no local em que seu corpo

repousaria na Terra O edifiacutecio ndash cuja primeira plana foi traccedilada por Juan Bautista de Toledo (c 1515-1567)

espanhol que retornava da Itaacutelia sendo depois finalizado por Juan de Herrera (1530-1597) ndash era marcado

pela sobriedade e austeridade grandioso em suas dimensotildees e na implantaccedilatildeo em solo seco e plano rodeado

de montanhas que davam destaque ao monasteacuterio na paisagem poreacutem sem ornamentos apresentando-se

como uma fortaleza da feacute onde se fundiam a imagem de um rei austero e piedoso ao reino que havia se

colocado no centro do palco das lutas religiosas em defesa do papa

Nas palavras de Cabrera o papel do edifiacutecio de guardar a memoacuteria das gloacuterias militares eacute reforccedilado em

retomada agrave tradiccedilatildeo antiga Nesse sentido o Escorial deveria ser a imagem das vitoacuterias do monarca ao longo

de seu reinado No interior do edifiacutecio nas dependecircncias do palaacutecio real havia pinturas de duas importantes

batalhas vencidas por Felipe II contra os turcos em Lepanto (1571) e nos Accedilores (1583) durante as guerras

contra D Antoacutenio prior do Crato que questionava seu direito de sucessatildeo ao trono lusitano

[148]

Ao apresentar a relaccedilatildeo entre a tradiccedilatildeo antiga e a necessidade de se guardar a memoacuteria das batalhas

Cabrera demonstra que sua postura em relaccedilatildeo ao passado romano natildeo era de pura admiraccedilatildeo e reverecircncia

pois a Antiguidade eacute vista com ressalvas devido ao aspecto religioso daquele tempo Cabrera de Coacuterdoba

reforccedila o costume antigo de se celebrar vitoacuterias militares que deveriam ser eternizadas e relembradas ano

a ano argumento que eacute apresentado tanto em sua Historia de Felipe II como em seu poema Laurentina em

homenagem a Satildeo Lourenccedilo maacutertir espanhol em cujo dia de celebraccedilatildeo se realizou a primeira vitoacuteria de

Felipe II que seria eternizada no Escorial Apesar de se rememorar agrave Antiguidade o costume antigo eacute

rebaixado por ser guiado por uma religiatildeo que eacute qualificada pelo autor como ldquocega e profanardquo

Y para dar las gracias inmortales seguacuten su religioacuten ciega y profana a quien tenian por dioses principales venerados con pompa soberana y para que adelante los mortales no confiasen en su gloria vana viendo que sus mayores fenecieron los que la fiesta y causa instituyeron (CABRERA DE COacuteRDOBA 1975 p 102)

Na Laurentina reforccedila-se a necessidade de memoacuteria atraveacutes da lembranccedila de momentos que foram objeto

de festas e de comemoraccedilotildees como o iniacutecio da Repuacuteblica de Roma ldquoEl refugio cuando desterrados los

Tarquinos por Bruto el sabio fueron y los primeros coacutensules criadosrdquo (CABRERA DE COacuteRDOBA 1975 p

102-103) Tambeacutem se relembra a fuga dos hebreus do Egito ldquolos de Israel de Egipto libertados una fiesta a

su Dios siempre hicieron ofrecieacutendole en ella sacrificio por tan inmenso y raro beneficiordquo (CABRERA DE

COacuteRDOBA 1975 p 103) A escolha de eventos que retomavam as gloacuterias dos romanos e dos antigos

hebreus buscando referecircncias nos autores latinos e no Antigo Testamento apontava que esses dois modelos

de Antiguidade deveriam ser fonte de inspiraccedilatildeo para seus contemporacircneos

Na sequecircncia Cabrera de Coacuterdoba (1975 p 103) reafirma a superioridade de seu tempo pela religiatildeo

De alliacute recibioacute en uso nuestra gente que estaacute con el bautismo aventajada el celebrar las fiestas comuacutenmente por alguna victoria sentildealada templos instituyendo santamente do queda la memoria eternizada para gloria de Dios y honra del mundo y confusioacuten y pena del profundo

Para lembrar as vitoacuterias eternizadas por edifiacutecios religiosos satildeo apresentados o Mosteiro de Alcobaccedila

construiacutedo por D Afonso I de Portugal para celebrar a vitoacuteria que levou agrave fundaccedilatildeo do reino a construccedilatildeo de

Santa Maria de Tudia por Don Diego Loacutepez de Haro em homenagem agrave vitoacuteria contra os mouros e a igreja

de Toledo em que satildeo celebradas diversas vitoacuterias contra o islatilde (Navas de Tolosa Muradal Salado expugnacioacuten

de Oraacuten) Por tudo isso a primeira vitoacuteria de Felipe II natildeo poderia deixar de ser lembrada com um edifiacutecio

digno desse rei

Aleacutem de suas proacuteprias conquistas o Escorial tambeacutem deveria fazer justiccedila ao passado glorioso que Felipe II

herdava dos antigos reis dos territoacuterios que naquele momento estavam sob seu governo Assim como seus

antecessores tinham lutado contra os infieacuteis o novo rei continuava esse legado lutando contra os

muccedilulmanos e contra os protestantes na Europa Por isso eacute dada tanta importacircncia agrave memoacuteria desses

[149]

antigos reis no proacutelogo do poema reforccedilando o viacutenculo de Portugal a essa heranccedila mediante a fundaccedilatildeo de

Lisboa e das ordens militares em Portugal bem como a morte prematura de Dom Sebastiatildeo sobrinho de

Felipe II Natildeo apenas a unidade geograacutefica peninsular tinha sido restaurada mas a unidade religiosa pois

eram herdeiros dos antigos visigodos Todos os reinos cristatildeos estavam unidos sob o comando daquele que

se colocava como maior defensor da Cristandade em momento de quebra da unidade religiosa na Europa

apoacutes as Reformas Religiosas Por isso a ilustraccedilatildeo do frontispiacutecio da Historia de Felipe II de Cabrera

apresentava o Escorial ao fundo com Felipe II armado protegendo a Igreja apresentando-se alegoricamente

contra as heresias O autor usa os termos ldquoheresiardquo e ldquoheregesrdquo para qualificar aqueles que seguiam Lutero

Calvino e a igreja reformada por Henrique VIII da Inglaterra

Siguenza em sua Histoacuteria sobre a fundaccedilatildeo do Escorial tambeacutem apresenta o argumento de que os edifiacutecios

deveriam guardar feitos gloriosos poreacutem os uacutenicos feitos dignos de memoacuterias seriam aquelas em que a

providecircncia divina se manifesta na accedilatildeo dos reis Natildeo apenas as batalhas deveriam ser lembradas ndash

argumento muitas vezes apresentado por Cabrera para tratar dos grandes feitos de Felipe II ndash mas ainda

mais deveria ser valorizada a feacute do governante vitorioso Dessa forma o edifiacutecio deveria se apresentar como

um sinal da fidelidade do monarca agrave religiatildeo catoacutelica

Reconociendo los muchos y grandes benefiacutecios que de Dios Nuestro Sentildeor hemos recebido y cada diacutea recibimos y cuando Eacutel ha sido servido de encaminhar y guiar los nuestros hechos y los nuestros negoacutecios a su santo servicio y de sostener o mantener estos nuestros reinos en su santa fe y religion y en paz y justicia entendendo con esto cuaacutento sea delante de Dios pia y agradable obra y grato testimonio y reconocimiento de los dichos benefiacutecios el edificar y fundar iglesias y monasteacuterios donde su santo nombre se bendisse y alaba y su santa fe con la doctrina y ejemplo de los religiosos siervos de Dios se conserva y aumenta y para que asiacute mismo se ruegue e interceda a Dios por nos y por los Reyes nuestros antecessores y sucessores y por el bien de nuestras animas y la conservacioacuten de nuestro Estado real [] (SIGUENZA 2003 p 12-13)

Outro aspecto importante na maneira com que Siguenza e Cabrera tratam do passado romano eacute a escolha

que fazem sobre quem deveria ser considerado culpado pela decadecircncia do Impeacuterio Romano Na Peniacutensula

Ibeacuterica ndash que foi marcada pelo longo periacuteodo de domiacutenio muccedilulmano e pelas guerras entre cristatildeos e

islacircmicos na origem da formaccedilatildeo de seus reinos em fins da Idade Meacutedia ndash os godos representavam a

lembranccedila de uma presenccedila cristatilde anterior agrave conquista dos mouros Essa memoacuteria justificava as guerras de

reconquista de um territoacuterio que antes fora cristatildeo e que deveria voltar a ser governado por monarcas que

professassem essa religiatildeo Dessa forma os autores satildeo cuidadosos em apresentar os godos como baacuterbaros

atrasados e causadores do decliacutenio da Antiguidade Por isso Siguenza e Cabrera costumavam representar

os muccedilulmanos como responsaacuteveis pela decadecircncia em que o territoacuterio ibeacuterico se encontrava a qual deveria

ser superada com o estudo e o conhecimento sobre os antigos romanos

Siguenza em sua Histoacuteria da Orden de San Jeroacutenimo (1907) explica o surgimento da Ordem de Satildeo Jerocircnimo

como um renascer nesse caso da religiatildeo de Satildeo Jerocircnimo Nessa obra o autor indica que a origem da ordem

[150]

deveria ser buscada atraveacutes dos primeiros seguidores de Satildeo Jerocircnimo entre os seacuteculos IV e V Apoacutes a morte

do santo segundo Siguenza seus seguidores aos poucos teriam descuidado dos costumes permitindo que

assim dois seacuteculos apoacutes sua morte o islamismo conseguisse destruir o legado do santo A maneira como se

refere ao islamismo eacute bastante pejorativa ldquo[] salio del infierno al mundo el maldito Mahoma con su secta

prevalecio increyblemente en estos siglos miserables tan llenos de carne y sangre []rdquo (SIGUENZA 1907 p

5) Siguenza entatildeo apresenta a histoacuteria dos jerocircnimos por meio da imagem de um rio ldquocaudaloso que se

esconde por lo secreto de sus entrantildeas largo espacio y torna despues con nueva claridad y frescura a

aparecer a nuestros ojos ansi torno al mundo cerca de los antildeos de 1350 esta sagrada religionrdquo (SIGUENZA

1907 p 5)

Por isso o retorno da ordem era esperado e tinha sido prenunciado por inuacutemeros profetas de fins da Idade

Meacutedia dentre os quais se destacam uma princesa Santa Briacutegida que vivia proacuteximo ao papa Gregoacuterio XI e

Tomassucio que motivara a vinda de homens da Itaacutelia para a Peniacutensula Ibeacuterica para viverem como eremitas

experiecircncia que depois desembocaria no surgimento da nova ordem religiosa

Apesar de natildeo tratar especificamente da queda do Impeacuterio Romano a imagem de um passado a ser

retomado associado agrave ideia de decliacutenio e renascimento presente nos discursos de valorizaccedilatildeo da

Antiguidade romana aparece de forma semelhante na maneira com que Siguenza constroacutei sua histoacuteria da

ordem de Satildeo Jerocircnimo

Quanto aos edifiacutecios Siguenza tende a valorizar a localizaccedilatildeo e a salubridade do espaccedilo escolhido pelos

religiosos jerocircnimos para edificarem seus monasteacuterios a possibilidade de recolhimento e afastamento do

mundo que esse espaccedilo escolhido poderia propiciar e a maneira como eram edificados propiciando

seguranccedila aos monges se fossem duraacuteveis e pouco sujeitos agraves intempeacuteries climaacuteticas Mesmo os edifiacutecios

mais simples eram valorizados como obra dos monges ndash sobretudo quando determinavam o estabelecimento

em um certo local ndash devendo eles serem acima de tudo adequados agrave vida monaacutestica Em Guadalupe em um

dos mais ceacutelebres mosteiros de Satildeo Jerocircnimo ndash junto ao santuaacuterio mariano que recebia inuacutemeros peregrinos

de toda a peniacutensula ndash a obra do edifiacutecio ndash construiacutedo antes dos jerocircnimos se estabelecerem no local ndash mais

elogiada foi um aqueduto construiacutedo durante o priorado de Toribio Fernandez apresentado como ldquodigna de

que se ponga a par con cualquier outra de las famosas antiguasrdquo (SIGUENZA 1975 p 235) Dessa forma uma

boa obra estaacutevel bem edificada poderia ser comparada a uma obra da Antiguidade para que fossem

explicitadas suas qualidades

Ainda assim quando se trata especificamente do Escorial Siguenza (2003 p 264) destaca a relaccedilatildeo do

edifiacutecio com o passado romano e o coloca como um representante da superaccedilatildeo da arquitetura produzida

durante a Idade Meacutedia

[151]

Luego en poniendo los pies en los umbrales de la puerta principal [do Escorial] se comienza a discubrir una majestade grande y desusada en los edifiacutecios de Espantildea que habia tantos siglos que estaba sepultada en la barbaacuterie oacute groseriacutea de los godos y aacuterabes que sentildeoreaacutendose de ella por nuestro pecado apenas nos dejaron luz de cosa buena ni de primor ni en letras ni en las artes

Nesse trecho o autor coloca lado a lado os godos mas o motivo principal da decadecircncia que poderia ser vista

nas artes e na escrita desse periacuteodo eram os pecados daqueles homens

Siguenza provavelmente tinha conhecimentos de arquitetura e toma como referecircncia do bem edificar as

obras e conhecimentos dos antigos Ainda assim quando em sua Historia de la Orden de San Jeroacutenimo

apresenta edifiacutecios frequentemente realizados em arquitetura moderna anteriores agrave construccedilatildeo de San

Lorenzo el Real del Escorial faz criacuteticas mesmo que ainda valorize o que foi construiacutedo por considerar que satildeo

resultado do limite de conhecimento dos homens daquele tempo Dessa maneira tenta valorizar o que

poderia ser melhor realizado na arquitetura moderna considerada inferior em relaccedilatildeo agraves obras antigas Por

exemplo quando a Ordem de Satildeo Jerocircnimo passou a habitar junto ao santuaacuterio de Guadalupe em 1389

durante o reinado de D Juan I e os monges edificaram ali um mosteiro Siguenza (1975 p 237) fez a seguinte

avaliaccedilatildeo da arquitetura

Lo primero que edifico [o frei Fernado de Yaacutentildeez] fue um claustro grande no muy vistoso ni de buena proporcion en los anchos y largos porque sabian poco los maestros de aquel tempo de las buenas architeturas de que usaron los antigos y se han tornado a resucitar agora con todo esso el claustro es devoto y religioso []

A arquitetura dos antigos eacute a boa arquitetura para Siguenza As consideraccedilotildees sobre a arquitetura moderna

sempre a colocam como limitada e de menor qualidade o que pode ser percebido em seus comentaacuterios sobre

diferentes mosteiros jerocircnimos Tambeacutem eacute significativo ressaltar as palavras que utilizou para fazer seu

elogio ao arquiteto Juan Bautista de Toledo que tinha sido trazido da Itaacutelia para ser o arquiteto do rei ou

seja para atuar nas diferentes intervenccedilotildees que o monarca realizaria nos seus edifiacutecios jaacute existentes bem

como nas faacutebricas que seriam construiacutedas a partir de novas iniciativas Assim escreve Siguenza (2003 p 38)

Juan Bautista de Toledo arquitecto mayor que ya aacute este tempo iba haciendo la idea y el disentildeo de esta faacutebrica hombre de muchas partes escultor y que entendia bien el dibujo sabiacutea lengua latina y griega tenia mucha noticia de filosofia y matemaacuteticas hallandose al fin en el nuchas de las partes que Vitruacutevio priacutencipe de los arquitectos quiere que tengan los que han de ejercitar la arquitectura y llamarse maestro en ella

Saber sobre desenho escultura matemaacutetica filosofia liacutengua grega e latina e conhecer os ensinamentos de

Vitruacutevio eram as qualidades que faziam de Juan Bautista de Toledo arquiteto digno de edificar o Escorial

Ainda assim quando Cabrera e Siguenza explicam a escolha da planta desse edifiacutecio natildeo eacute um templo ou

outro edifiacutecio admiraacutevel da Antiguidade imperial romana que eacute exaltada como inspiraccedilatildeo para o arquiteto

nem a planta eacute justificada em termos tratadiacutesticos Cabrera indica na Laurentina que a organizaccedilatildeo dos

claustros do edifiacutecio forma uma grelha o que teria como intenccedilatildeo relembrar o martiacuterio de Satildeo Lourenccedilo

[152]

assado por natildeo ter revelado ao imperador romano onde se encontrava a riqueza dos cristatildeos segundo a

Legenda Aacuteurea (VARAZZE 2003) ldquo[] que todo una parilla ha parecido en que el patroacuten Laurencio fuera

usado [hellip]rdquo (CABRERA 1975 p 150)

Para Siguenza Felipe II se apresentava como um novo Salomatildeo ao edificar o Escorial pelo empenho em fazer

uma obra digna para ser ofertada a Deus

[] la maneira de fabricar esta iglesia y labor de ella imito mucho aacute la del mismo Salomon la traza e ingenio fueacute que la piedra toda se labrase en las canteras de surte que al pie de la obra ni en el templo apenas se oyese el golpe del pico ni martillo [] (SIGUENZA 2003 p 105)

O Escorial seria muitas vezes associado agrave arquitetura do Templo de Salomatildeo poreacutem este natildeo eacute apresentado

como modelo para o monasteacuterio de Felipe II mas retomado em funccedilatildeo do estabelecimento de uma imagem

bastante valorizada em princiacutepios da Idade Moderna por meio da qual se elogiam monarcas que edificam

casas admiraacuteveis como retrato de sua devoccedilatildeo religiosa agrave memoacuteria do rei Salomatildeo o rei construtor do Antigo

Testamento Os Trastacircmaras membros da dinastia que antecedeu agrave dos Habsburgos na Espanha jaacute

utilizavam a iconografia salomocircnica para representar seus monarcas dentre os quais estatildeo Afonso X (1221-

1284) Enrique II (c 1333-1379) Juan I (1358-1390) e Enrique IV (1425-1474) (MIacuteNGUEZ 2007) Essa

imagem continuaria a ser utilizada pela monarquia

Natildeo apenas a escrita sobre o Escorial evoca a lembranccedila do rei Salomatildeo mas o proacuteprio edifiacutecio apresenta a

imagem desse antigo rei em destaque Na entrada principal do mosteiro haacute uma estaacutetua de Satildeo Jerocircnimo e

das armas reais Ao adentrar por esse portatildeo principal avista-se um pequeno paacutetio que marca uma transiccedilatildeo

entre o exterior do edifiacutecio e a entrada para a basiacutelica espaccedilo sagrado do conjunto Esse paacutetio chamado de

Patio de los Reyes eacute marcado pela presenccedila de estaacutetuas de antigos reis judeus na fachada da igreja a saber

Davi Salomatildeo Ezequiacuteas Josafat Manaseacutes e Josiacuteas

Segundo Martiacuten Gonzaacutelez (1994) cada um dos reis foi pensado por conta de sua relaccedilatildeo com o Templo de

Salomatildeo buscando dessa forma fortalecer a imagem do Escorial como novo Templo de Salomatildeo Essa

interpretaccedilatildeo eacute reforccedilada pelas palavras de Cabrera ao descrever a fachada da igreja do Escorial em seu

poema Laurentina Davi recebeu a incumbecircncia de construir um templo para ser morada divina e segundo

Cabrera (1975 p 157) tambeacutem tinha reunido os materiais para a construccedilatildeo do edifiacutecio

Fijardo estaacute David al diestro lado porque los materiales ha traiacutedo para el templo que el hijo ha edificado porque Dios que eacutel le hiciese no ha querido que la inocente sangre ha derramado tiene su arpa y cetro esclarecido el denuedo mostrando en el semblante con que la horrenda muerto dio al gigante

A segunda estaacutetua eacute a de Josafat lembrado como rei ldquoque del sagrado templo fue devotordquo (CABRERA 1975

p 157) e pelos sacrifiacutecios que ofereceu Segundo Martiacuten Gonzaacutelez (1994) Josafat seria lembrado por

[153]

destruir os bosques dos povos idoacutelatras e por restaurar as funccedilotildees do templo e por isso leva na matildeo a naveta

instrumento para se guardar os incensos de uso lituacutergico

A terceira estaacutetua mencionada por Cabrera na Laurentina eacute de Ezequias ldquoque los iacutedolos falsos derribarardquo

(CABRERA 1975 p 157) Ezequias eacute lembrado tambeacutem por ter enriquecido o templo ldquocon muy preciadas

joyas que le dierardquo (CABRERA 1975 p 158) Na sequecircncia eacute apresentada a figura central Salomatildeo indicado

como instrumento para que Deus atraveacutes de sua accedilatildeo realizasse um templo segundo seus desejos e

sabedoria

Estaacute el primero en la siniestra mano el saacutebio Salomoacuten hijo querido del divino profeta soberano que el templo celebrado ha construido En potencia y saber no hombre humano sino del cielo al suelo conducido para mostrarnos Dios de su potencia alguna partecilla en su sapiecircncia

Ao lado de Salomatildeo eacute apresentado Manaseacutes que apoacutes o periacuteodo de cativeiro na Babilocircnia ao se encontrar

livre e de volta a sua terra ldquoun fuerte muro en la cuidad fundara que de David el nombre conservarardquo

(CABRERA 1975 p 158) Cabrera explica que por fortalecer o templo e protegecirc-lo sua estaacutetua eacute

apresentada com um compasso Por fim eacute apresentado Josias que traz um pergaminho na matildeo direita

representando o texto do Deuteronocircmio ldquopor quien la ley al Pueblo publicarardquo (CABRERA 1975 p 158) e

que tambeacutem teria realizados obras no templo

A imagem do Templo de Salomatildeo eacute fundamental pois funde os argumentos de Siguenza e Cabrera sobre a

principal mensagem deixada no Escorial Se o edifiacutecio deveria guardar as vitoacuterias militares que soacute tinham

valor porque se relacionavam a um rei que agia em favor da providecircncia divina colocando-se como defensor

da Igreja Catoacutelica o principal edifiacutecio a ser lembrado na Antiguidade deveria ser o Templo de Salomatildeo por

representar a maior honra a Deus a quem Felipe II queria servir de forma destacada entre todos os demais

governantes da Europa de seu tempo

A relaccedilatildeo do monasteacuterio de Felipe II com o Templo de Salomatildeo era parte de uma seacuterie de referecircncias

apresentadas por Cabrera em que momentos e aspectos da Antiguidade romana satildeo relembrados

juntamente com o passado cristatildeo e judaico Ou seja para aleacutem do Impeacuterio Romano a Antiguidade a ser

emulada e valorizada era aquela dos tempos de Israel de onde nasceria o cristianismo As duas tradiccedilotildees se

fundem para formar o passado remoto que deveria ser relembrado como o embriatildeo dos reinos cristatildeos

Em sua Historia de Felipe II Cabrera apresenta as qualidades do monarca comparando-o aos reis do Antigo

Testamento a outros monarcas da cristandade e a imperadores romanos Dessa forma Felipe II deveria ser

lembrado como um governante justo como Josias honrado como Davi penitente e defensor da religiatildeo como

seu pai Carlos V Tambeacutem como jaacute apontado deveria ser associado a Salomatildeo por ter edificado o maior

templo a Deus Era semelhante a Constantino por favorecer a igreja grave como o imperador Nerva

prudente como Felipe da Macedocircnia piedoso como Antonino sendo ainda comparado a Afonso o Saacutebio a

[154]

Luis XI da Franccedila a Juacutelio Ceacutesar a Dom Joatildeo II de Portugal a Fernando e Isabel de Castela a Teodoacutesio a

Moiseacutes etc

Em resumo ainda que o Escorial tenha sido edificado segundo os preceitos apresentados pelos tratadistas

italianos que valorizavam a Antiguidade Romana o discurso sobre o valor e a memoacuteria desse edifiacutecio natildeo

poderiam apenas relembrar os tempos dos imperadores de Roma pois as necessidades de seu tempo

sobretudo no que diz respeito agrave forma como se legitimava o poder como defensor da cristandade precisava

valorizar um discurso cristatildeo Por isso os autores que tiveram destaque na escrita sobre esse edifiacutecio

Siguenza e Cabrera apresentam os costumes romanos a serem retomados pelos homens de seu tempo

sempre lembrando que seu tempo poderia ter perdido os conhecimentos do passado buscados na leitura dos

antigos e nas escavaccedilotildees de ruiacutenas mas que a religiatildeo cristatilde os fazia melhores que os saacutebios romanos Assim

natildeo apenas os godos seriam motivo da decadecircncia desse tempo aacuteureo mas os muccedilulmanos grandes inimigos

dos reinos ibeacutericos desde suas formaccedilotildees precisavam tambeacutem figurar como culpados ainda que fossem

muito posteriores aos tempos do Impeacuterio Romano

Dessa forma ainda que a arquitetura moderna fosse considerada pelos autores inferior agrave dos antigos ainda

deveria ser valorizada quando era sinal da devoccedilatildeo dos homens de seu tempo Por fim a valorizaccedilatildeo da

Antiguidade romana sempre era relembrada dando espaccedilo para a valorizaccedilatildeo do passado cristatildeo do tempo

dos Hebreus e do Antigo Testamento Portanto o discurso sobre o ressurgir do conhecimento sobre os

antigos foi adequado pelos autores aqui apresentados agraves necessidades discursivas de Felipe II de

apresentar-se no Monasterio de San Lorenzo El Real del Escorial como promotor da defesa da Igreja Catoacutelica

no contexto das Reformas das lutas contra os muccedilulmanos e da missionaccedilatildeo que marcaram o seu reinado

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A insocircnia como tema nas silvas de Estaacutecio (Silu 54) e Quevedo (Silva Segunda)

Luiza Helena R de Abreu Carvalho

luizahcarvalhogmailcom

As Siluae de Estaacutecio satildeo um conjunto de trinta e dois poemas de

caraacuteter elogioso-circunstancial divididos em cinco livros sendo os

quatro primeiros organizados pelo proacuteprio autor e o uacuteltimo

poacutestumo Nos quatro livros organizados pelo proacuteprio o autor a

seleccedilatildeo de vinte e sete poemas eacute acompanhada de prefaacutecios em

prosa em que Estaacutecio dedica os textos a nobres patronos ou amigos

e explica tambeacutem as suas escolhas poeacuteticas O uacuteltimo livro poreacutem

eacute composto por apenas cinco poemas completos e um fragmentado

Dessa forma as Siluae possuem sempre um destinataacuterio podendo

ser tanto o imperador Domiciano quanto qualquer outro membro-

patrono das elites das sociedades de Roma e de Naacutepoles regiatildeo na

qual Estaacutecio nasceu e para a qual tambeacutem se mudou no final de sua

vida Os poemas satildeo relacionados com a vida puacuteblica e poliacutetica mas

tambeacutem expressam aspectos ligados ao cotidiano da vida privada

(NAGLE 2004 p 14)

A coleccedilatildeo de poemas no entanto possui algumas questotildees

controversas que satildeo levantadas pelos estudiosos das silvas como

por exemplo a definiccedilatildeo do seu tiacutetulo Wray (2007 p 127) explica

que enquanto alguns criacuteticos enxergam o tiacutetulo dos poemas

estacianos como um problema interpretativo outros o incorporam

[157]

na discussatildeo O termo que significa ldquoflorestardquo1 pode se referir agraves temaacuteticas variadas que a obra comporta2

ou assumindo uma complexidade metafoacuterica pode remeter agrave madeira natildeo polida crua ou seja agrave mateacuteria-

prima da obra literaacuteria (WRAY 2007 p 128-129)3 Assumimos na anaacutelise que fizemos no mestrado e

portanto neste capiacutetulo que eacute um recorte do trabalho inicial a primeira concepccedilatildeo do que pode significar o

termo silva pois acreditamos na incorporaccedilatildeo dessa produccedilatildeo na tradiccedilatildeo liacuterica devido principalmente na

heterogeneidade das temaacuteticas4

Natildeo apenas a heterogeneidade dos assuntos tratados as silvas de Estaacutecio tambeacutem possuem outra

caracteriacutestica especiacutefica quanto agrave temaacutetica elas satildeo sempre elogiosas e por isso satildeo desenvolvidas a partir

do gecircnero retoacuterico epidiacutetico5 Outro ponto relevante acerca da adequaccedilatildeo dos poemas de Estaacutecio agrave retoacuterica

epidiacutetica se encontra nas ocasiotildees explicitadas por Menandro Retor no seacuteculo IV para compor um elogio eou

vitupeacuterio Na obra Sobre o epidiacutetico o retor grego divide os discursos de acordo com determinados eventos

explica como louvar e em quais pontos o orador deve tocar a fim de tecer seu elogio A sistematizaccedilatildeo

menandrina no entanto eacute entendida como uma compilaccedilatildeo da praacutetica oratoacuteria e poeacutetica elogiosa da qual

Estaacutecio participa Desse modo observamos na heterogeneidade temaacutetica estaciana situaccedilotildees que foram

mais tarde compiladas por Menandro como o elogio ao imperador (Men Rhet 22368) nas Siluae 21 e 22

o epitalacircmio (Men Rhet 26399) no poema 12 o louvor de aniversaacuterio (Men Rhet 28 412 Silu 27) louvor

a viagens (Men Rhet 25395 Silu 32) assim como tambeacutem lamentaccedilotildees e consolaccedilotildees (Men Rhet 29413-

414 211418-422 216434-437 Silu 21 26 33 34 55)

1 Aleacutem da acepccedilatildeo de ldquoflorestardquo e elementos relacionados aos bosques o termo silva aparece no Dicionaacuterio Etimoloacutegico Latino-Portuguecircs de Francisco Saraiva como ldquomultidatildeordquo ldquogrande nuacutemerordquo ldquoabundacircnciardquo e remetendo especificamente agrave produccedilatildeo de Estaacutecio aparecem as acepccedilotildees ldquocoleccedilatildeordquo ldquomiscelacircneardquo e ldquovariedaderdquo 2 Para Charles McNelis (2007 p 279) ldquonada eacute como as Siluae na literatura romana restante em termos de diversidade e variaccedilatildeo Os trinta e dois poemas de Estaacutecio contecircm por exemplo envios emocionados ndash tanto tristes como celebratoacuterios ndash para a famiacutelia e amigos elogio de objetos fiacutesicos (estaacutetuas banhos vilas e uma estrada) e pessoas incluindo o imperador Domiciano e discussotildees de animais (e ateacute mesmo uma aacutervore) Essa ampla variedade de temas implica em toacutepicos como o jantar a natureza o poder imperial a vida familiar a sexualidade o patronato o casamento a morte a retoacuterica a educaccedilatildeo e as artes apenas para citar alguns Os poemas entatildeo contecircm pontos de interesse para quase todos os interessados na Roma imperial e consequentemente merece a atenccedilatildeo e o interesse de muitos criacuteticosrdquo ldquoThere is nothing else like the Silvae in extant Roman literature in terms of diversity and range Statiusrsquos thirty-two poems contain for example emotional addresses mdash both sad and celebratory mdash to family and friends praise of physical objects (statues baths villas and a road) and people including the emperor Domitian and discussions of animals (and even a tree) Such a wide variety of themes implicates topics such as dining nature imperial power family life sexuality patronage marriage death rhetoric education and the arts just to name a few The poems then contain points of interest for almost anyone interested in imperial Rome and consequently deserve the attention and interest of many criticsrdquo 3 Wray (2007 p 139-142) interpreta a acepccedilatildeo de silva como mateacuteria-prima e como relativa ao engenho ao talento natural em oposiccedilatildeo agravequilo que necessita de ser trabalhado pela arte Para o criacutetico Estaacutecio escreve as Siluae para mostrar o seu dom natural assim como tambeacutem escreveu a Tebaida para mostrar sua arte 4 Para saber mais sobre o desenvolvimento geneacuterico da silva cf Carvalho (2018) 5 Natildeo trataremos aqui sobre as especificidades da retoacuterica e seus gecircneros discursivos mas para saber mais cf Aristoacuteteles (Rh 1358b)

[158]

Essa heterogeneidade dos temas nos poemas estacianos se tornou uma marca na permanecircncia das silvas no

Renascimento e na Modernidade inicial aleacutem do seguimento desses poemas com a retoacuterica epidiacutetica ndash seja

na vertente elogiosa ou vituperante Neste trabalho analisamos duas silvas uma de Estaacutecio autor romano

do seacuteculo I e a outra de Francisco de Quevedo localizado na Espanha do seacuteculo XVII considerando alguns

dos oitos pontos de intertextualidade explicados por Barchiesi (2001 p 142-145) para o entendimento do

texto literaacuterio Esses pontos satildeo especialmente a) a noccedilatildeo de que a intertextualidade eacute um evento natildeo um

objeto logo natildeo eacute algo fixo mas dinacircmico e por isso passiacutevel de mutaccedilotildees b) a compreensatildeo de que

primeiramente eacute produzido o modelo e depois o texto por ele imitado e a interpretaccedilatildeo requer do leitor uma

anaacutelise de ambos os textos e c) a dupla via de perspectiva que o intertexto abrange ou seja o texto mais

novo pode afetar a interpretaccedilatildeo do modelo e natildeo apenas o contraacuterio em outras palavras a

intertextualidade pressupotildee uma ldquopossibilidade de reverter a direcionalidade de uma referecircncia

intertextualrdquo (FOWLER 1997 p 20)6

Sabendo dessas consideraccedilotildees observamos que a emulaccedilatildeo das silvas estacianas por Francisco de Quevedo

se daacute de maneira complexa natildeo sendo dessa forma uma coacutepia simples e descuidada dos poemas do primeiro

autor Por exemplo se Estaacutecio utiliza a temaacutetica da viagem (os propemptikagrave) para louvar o destinataacuterio na

Silua 32 jaacute Quevedo na Silva Quinta tambeacutem faz uso do mesmo tema poreacutem a finalidade se difere daquela

antiga pois o autor censura nesse poema a ganacircncia daqueles que partem para as Grandes Navegaccedilotildees

seguindo entatildeo a vertente do vitupeacuterio da retoacuterica epidiacutetica Outra temaacutetica usada por Estaacutecio que tambeacutem

eacute emulada pelo autor moderno espanhol eacute a descriccedilatildeo de lugares como as vilas por exemplo representando

respectivamente as silvas de nuacutemeros 22 e Silva XXI ambas composiccedilotildees de caraacuteter elogioso cujos

personagens louvados satildeo membros das elites romana e espanhola Poacutelio e Gonzalo Chaacutecon7 Neste trabalho

escolhemos tratar das silvas que possuem uma temaacutetica relativamente abstrata que eacute o sonho mas que

tambeacutem satildeo claramente emulaccedilotildees que Quevedo faz do autor romano

Sono e insocircnia na Silua 54 de Estaacutecio e Silva Segunda de Quevedo

Os poemas de Quevedo sobre a temaacutetica do sono8 ndash ou melhor de seu contraacuterio a insocircnia ndashsatildeo chamados

por Candelas Colodroacuten (1997 p 197) de ldquosilvas da noiterdquo ou de poemas noturnos9 A Silva Segunda que conta

com a epiacutegrafe El Suentildeo eacute uma imitaccedilatildeo da Silva 5410 de Estaacutecio que tem como o tiacutetulo posterior Somnus

Inicialmente destacamos que o poema de Estaacutecio conta com um nuacutemero significativamente menor de versos

6 ldquoThe possibility of reversing the directionality of intertextual referencerdquo 7 Para saber mais sobre a emulaccedilatildeo quevediana das silvas descritivas cf Carvalho amp Leite (2020) 8 Sobre poemas que tecircm como tema o sono cf Teraacuten Elizondo (2009) e Cacho Casal (2003) 9 A temaacutetica da insocircnia na composiccedilatildeo de Quevedo eacute trabalhada por Gonzalo Sobejano (1982) que tece comparaccedilotildees acerca da circunstacircncia em duas silvas ldquoA voacutes estrelasrdquo e ldquoCom que culpa tatildeo graverdquo 10 Utilizamos a traduccedilatildeo ineacutedita da Silva 54 feita por Leni Ribeiro Leite em versatildeo cedida pela autora

[159]

ndash apenas dezenove ndash em relaccedilatildeo ao de Quevedo que possui oitenta e dois versos Diferente de todo o resto

das Siluae de Estaacutecio esse poema se destaca pela especificidade da extensatildeo Cabe lembrar que essa

produccedilatildeo por pertencer ao quinto livro lanccedilado apoacutes a morte do poeta latino natildeo foi selecionada pelo

proacuteprio autor para publicaccedilatildeo podendo ter sido ou natildeo da vontade dele o seu conhecimento puacuteblico (NAGLE

2004 p 4)11

Observamos na exposiccedilatildeo dos aspectos intertextuais da recepccedilatildeo da silva e as caracteriacutesticas conceptistas

quevedianas que a dispositio eacute a propriedade que mais se assemelha entre os poemas Dessa forma

especificamente esse poema do escritor espanhol sobre o sonho pode ser considerado como uma amplificatio

daquele estaciano (CANDELAS COLODROacuteN 1997 p 199) Ambas as composiccedilotildees como afirma Leite

(2017 p 535) possuem como proecircmios a aproximaccedilatildeo da imagem do poeta que natildeo consegue dormir com

algum culpado ou criminoso ldquoPor que crime mereci jovem Sono mais gentil dos deuses ou por que erro

que soacute eu pobre de mim carecesse de teus donsrdquo (Silu 54 1-2)12 e ldquoCom que culpa tatildeo grave Sono brando

e suave Pude em largo desterro merecer Que se afaste de mim o teu esquecimento mansordquo13 Nos dois

poemas o questionamento pelo motivo da insocircnia funciona como abertura das composiccedilotildees sendo

acrescentada ainda por Quevedo a razatildeo de buscar o sono que natildeo eacute para descansar mas para alcanccedilar

uma imagem da morte ldquoPois eu natildeo te busco por ser descanso Mas por ser muda imagem da morterdquo14

Imediatamente apoacutes o questionamento introdutoacuterio do poema de Estaacutecio o eu-liacuterico daacute iniacutecio agrave toacutepica do

locus amoenus apropriando-se de elementos da natureza para indicar que eles tambeacutem adormecem ou ficam

menos agitados com o cair da noite Alude desse modo agrave tranquilidade noturna do local

Todo o rebanho estaacute em silecircncio e os paacutessaros e as feras e as copas curvadas simulam sonos cansados e os rios selvagens diminuem seu som morre o tremor das aacuteguas e aquietam-se os mares reclinados sobre os litorais (Stat Silu 543-6) 15

O eu-liacuterico da silva quevediana utiliza o mesmo lugar-comum do poeta latino com propoacutesito semelhante O

intertexto presente estaacute relacionado agrave tranquilidade do local pois em ambos os textos eacute construiacuteda a mesma

11 Natildeo nos interessa todavia buscar o intuito editorial de Estaacutecio ndash ateacute porque acreditamos na impossibilidade deste percurso ndash mas elencar questotildees singulares da Silua 54 a fim de identificarmos os elementos intertextuais entre esse poema com a Silva Segunda do poeta moderno Esse fato eacute aqui destacado apenas como uma das possibilidades de compreender a especificidade dessa silva e de certo descolamento formal que ela possui em relaccedilatildeo ao restante da obra 12 Crimine quo merui iuvenis placidissime divum quove errore miser donis ut solus egerem Somne tuis 13 iquestCon queacute culpa tan grave Suentildeo blando y suave Puede en largo destierro merecerte Que se aparte de miacute tu olvido manso 14 Pues no te busco yo por ser descanso Sino por muda imagen de la muerte 15 tacet omne pecus volucresque feraeque et simulant fessos curvata cacumina somnos nec trucibus fluviis idem sonus occidit horror aequoris et terris maria adclinata quiescunt

[160]

imagem na qual os elementos naturais descansam junto com o sol poente os riachos e rios adormecem

juntamente com os prantos do poeta que por sua vez tambeacutem caem em simultaneidade com a noite

De sossego os tens desconhecidos De tal maneira que ao morrer o dia Com luz enferma vi que permitia O Sol que se dirige ao Poente Com os peacutes torpes ao ponto cega e fria Caiu das estrelas brandamente Os riachos puros Se adormecem ao som do meu pranto E ao seu modo tambeacutem dorme o rio (Quevedo Silva Segunda 18-26) 16

Apoacutes essa ambientaccedilatildeo introdutoacuteria sobre a condiccedilatildeo do insone ambos os poetas lanccedilam matildeo de

personificaccedilotildees mitoloacutegicas para efetuar uma contraposiccedilatildeo entre noite e dia em cujo intervalo o episoacutedio

de insocircnia ocorre O sujeito-liacuterico do poema de Estaacutecio utiliza metonimicamente a figura da deusa Febe

(Phoebe) que representa as noites de lua cheia de Eetes (Oetaeae) como personificaccedilatildeo do dia jaacute que eacute filho

de Heacutelio personificaccedilatildeo do Sol de Pafos (Paphiae) que eacute filho de Aurora com Ceacutefalo e utilizado para

representar o amanhecer bem como de Titocircnia (Tithonia)

Jaacute retornando pela seacutetima vez Febe observa meus olhos cansados a fitar Tantas vezes as luzes do Eeta e de Pafos me veem novamente E tantas vezes Titocircnia passa diante de nossos queixumes E comiserada nos esparge com seu chicote geacutelido (Stat Silu 54 7-10) 17

Na Silva Segunda de Quevedo o poeta manteacutem a personificaccedilatildeo de Aurora para referir-se ao amanhecer

como nos versos 12-14 ldquoMadrugam mais em mim do que nas Auroras Laacutegrimas nesta planiacutecie Que

amanhece para o mal sempre cedordquo18 Tambeacutem nos versos seguintes a personificaccedilatildeo do Sono com letra

maiuacutescula aproxima a composiccedilatildeo quevediana da estaciana Gibson (1996 p 462) analisa a Silua 54 de

Estaacutecio como um hino19 pois identifica os elementos desta composiccedilatildeo a partir da deificaccedilatildeo do Sono

ldquoobjetivando persuadir um deus para exercer o seu poder de modo favoraacutevelrdquo20 A silva El Suentildeo de Quevedo

pode ser interpretada de modo semelhante a de Estaacutecio ou seja como uma suacuteplica do vigilanteviacutegil ao Sono

16 De sosiego los tienes ignorantes De tal manera que al morir el dia Con luz enferma viacute que permitia El Sol que le mirasen em Poniente Con pies torpes al punto ciega y friacutea Cayoacute de las estrellas blandamente Los arroyuelos puros Se adormecen al soacuten del llanto mio Y aacute su modo tambien se duerme el rio 17 Septima iam ridens Phoebe mihi respicit aegras stare genas totidem Oetaeae Paphiaeque revisunt lampades et totiens nostros Tithonia questus praeterit et gelido spargit miserata flagello 18 Madrugan mas en miacute que em las Auroras Laacutegrimas aacute este llano Que amanece aacute mi mal siempre temprano 19 Menandro (11331) explica que as composiccedilotildees nomeadas como hinos satildeo aquelas que se dirigem aos deuses podendo ser chamadas ainda de maneira especiacutefica dependendo do deus para o qual se referem como melhor explicado no capiacutetulo primeiro No caso da Silu 54 os elementos encomiaacutesticos possuem a funccedilatildeo de mostrar a bondade do destinataacuterio para que a prece do autor seja atendida 20 ldquoaims to persuade a god to exercise his power favourablyrdquo

[161]

para que o visite durante a noite pois seus olhos jaacute estatildeo muito cansados (ldquoE tanto que persuade a tristeza

A meus dois olhos que nasceram antes Para chorar do que para ver-te oacute Sonordquo)21

O entendimento de ambos os poemas como uma suacuteplica ao Sono se confirma no final das duas composiccedilotildees

O sujeito-liacuterico do poema de Estaacutecio de modo mais sucinto (v 14-19) pede ao Sono que se aproxime dele

tocando-o com a sua varinha a fim de que o auxilie a dormir Jaacute o de Quevedo utiliza alguns versos a mais

para a sua suacuteplica final Apesar da ampliaccedilatildeo dos versos do poeta moderno os elementos intertextuais com

o poema estaciano que caracterizam a solicitaccedilatildeo satildeo claros o eu-poeacutetico tambeacutem pede que o Sono o toque

com o mesmo objeto ou seja a sua vara e que ele se aproxime daquele que sofre com a insocircnia ainda que de

maneira branda e suave

Mas agora ai se algueacutem durante longa noite contido nos braccedilos entrelaccedilados da amada te expulsa sono para longe vem de laacute para mim nem exijo que tu lances sobre os meus olhos todas as tuas asas (que peccedilam isso os mais afortunados) toca-me com a ponta de tua varinha eacute suficiente ou passa por mim levemente com os joelhos no ar (Stat Silu 54 14-19)22 Toca-me com a ponta da sua vara Ouviratildeo ao menos o ruiacutedo de tuas plumas Minhas desventuras sumas Que eu natildeo quero ver-te cara a cara Nem que faccedilas mais caso De mim que ateacute passar por mim brandamente [] Me tire brando sonho desta insocircnia Ou de alguma parte E te prometo enquanto vejo o Ceacuteu Acordarei apenas para louvaacute-lo (Quevedo Silva Segunda 80-86 91-94)23

Apesar dos elementos semelhantes que aproximam os dois poemas sobre o Sono haacute visotildees que afastam os

motivos impliacutecitos nas composiccedilotildees Candelas Colodroacuten (1997 p 199) discute alguns desses aspectos e

constroacutei uma aproximaccedilatildeo do eu-poeacutetico do poema de Quevedo com um amante Nesse caso o sofrimento

do sujeito-liacuterico seria atribuiacutedo a razotildees amorosas que estariam indicadas em trechos como ldquocuidados

vigilantesrdquo ldquominhas doresrdquo ldquomeu gemidordquo Natildeo acreditamos no entanto que os termos identificados sejam

suficientes para responsabilizar o amor pelo sofrimento do sujeito-poeacutetico

21 Y tanto que persuade la tristeza A mis ojos que nacieron antes Para llorar que para verte Suentildeo 22 at nunc heu si aliquis longa sub nocte puellae brachia nexa tenens ultro te Somne repellit inde veni nec te totas infundere penas luminibus compello meis++hoc turba precatur laetior extremo me tange cacumine virgae sufficit aut leviter suspenso poplite transi 23 Toacutecame con el cuento de tu vara Oiraacuten siquiera el ruido de tus plumas Mis desventuras sumas Que yo no quiero verte cara aacute cara Ni que hagas mas caso De miacute que hasta pasar por mi de passo [] Quiacutetame blando suentildeo este desvelo O de eacutel alguna parte Y te prometo mientras viere el Cielo De desvelarme soacutelo en celebrarte

[162]

Candelas Colodroacuten (1997 p 199) ao continuar comparando as composiccedilotildees antiga e moderna afirma

inclusive que aquela natildeo parece ter motivo para ter sido escrita pois natildeo existe a circunstacircncia amorosa O

livro cinco de Estaacutecio no entanto eacute uma obra carregada de lamentaccedilotildees Dos cinco poemas existentes trecircs

satildeo lamentos o 51 eacute um epiceacutedio agrave Priscila o 53 eacute um epiceacutedio ao pai de Estaacutecio e o 55 ao seu filho as outras

duas silvas satildeo a 52 um elogio a Crispino e a 54 sobre o Sono Com exceccedilatildeo da silva 52 portanto que eacute um

encocircmio os outros poemas satildeo queixas pela memoacuteria de eventos tristes como a morte dos familiares do

poeta e da esposa de seu amigo O enredo da silva 54 que eacute a insocircnia do eu-liacuterico estaacute portanto em

consonacircncia com a temaacutetica do livro como um todo pois as causas dos lamentos dos poemas do livro cinco

tambeacutem podem ser lidas como motivos pelos quais o sujeito-poeacutetico permanece inquietamente vigilante

Consideraccedilotildees finais

Tentamos mostrar nesse curto capiacutetulo que as composiccedilotildees analisadas possuem elementos intertextuais que

as aproximam assim como que as afastam No exemplo das silvas sobre o sono (Silu 54 e Silva Segunda) a

extensatildeo dos poemas eacute um dos pontos que os afastam jaacute que o poema estaciano eacute menor e portanto menos

detalhado sobre o tema sendo a silva de Quevedo considerada uma amplificaccedilatildeo da de Estaacutecio Jaacute os pontos

de aproximaccedilatildeo tambeacutem giram em torno dos lugares-comuns utilizados por ambos os poetas sendo o

primeiro deles a indagaccedilatildeo de qual falta eou crime os poetas estatildeo pagando por natildeo conseguir adormecer

No decorrer do poema ambos os autores fazem uso da toacutepica do locus amoenus a fim de demonstrar a

tranquilidade dos elementos da natureza que tambeacutem repousam das personificaccedilotildees mitoloacutegicas buscando

ornamentar antiteticamente os versos contrapondo dia e noite e por fim a motivaccedilatildeo dos dois autores

parece ser semelhante ambos suplicam ao deus Sono para fazecirc-los uma visita

Aleacutem dessas caracteriacutesticas intertextuais observadas no par de poemas acima consideramos que a

instituiccedilatildeo geneacuterica da silva se deu na Antiguidade com Estaacutecio Alguns aspectos de imitaccedilatildeo e emulaccedilatildeo da

produccedilatildeo de silvas de Quevedo ilustram essa permanecircncia do gecircnero como eacute o caso da heterogeneidade

temaacutetica das composiccedilotildees ndash natildeo explicitada nesse trabalho jaacute que eacute apenas um recorte analiacutetico de um dos

poemas de ambos os autores ndash da utilizaccedilatildeo de elementos mitoloacutegicos que coloca cada autor como

participante de uma tradiccedilatildeo erudita e da retoacuterica epidiacutetica como vetor temaacutetico A permanecircncia da silva

como produccedilatildeo iniciada na Antiguidade se daacute tambeacutem devido agrave importacircncia da nomenclatura utilizada pelos

autores que pode enfatizar ainda a mescla de temas presentes na obra A partir da conceituaccedilatildeo teoacuterica

acerca da intertextualidade e da Recepccedilatildeo dos claacutessicos e a via de matildeo dupla interpretativa a qual estatildeo

abertos os textos de maneira geral e as composiccedilotildees em silva de maneira especiacutefica entendemos a

importacircncia das silvas renascentistas e modernas para a constituiccedilatildeo e solidificaccedilatildeo do gecircnero estaciano

[163]

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A ecirccfrase como artifiacutecio retoacuterico em Sermotildees de Antonio Vieira

Barbara Faria Tofoli

barbarafariatgmailcom

A partir de uma pesquisa sobre a recepccedilatildeo da ecirccfrase nas praacuteticas

letradas modernas pretendemos neste artigo compreender os

diversos sentidos atribuiacutedos a essa figura retoacuterica aleacutem de analisar

seu uso como recurso linguiacutestico em alguns sermotildees do jesuiacuteta

Antonio Vieira cujo discurso delineado pela Retoacuterica Claacutessica

serve-se da ecirccfrase para legitimar ou construir uma argumentaccedilatildeo

Diante disso primeiramente satildeo apresentadas algumas noccedilotildees

vinculadas agrave Recepccedilatildeo dos Claacutessicos assim como agrave Retoacuterica Antiga

para que entatildeo sejam discutidas definiccedilotildees vinculadas agrave ecirccfrase A

anaacutelise consistiraacute em delimitaccedilatildeo e discussatildeo de trechos ecfraacutesticos

presentes no Sermatildeo de Santo Inaacutecio (1669) e no Sermatildeo de Santo

Antocircnio (aos Peixes) (1654) a fim de que nesses a ecirccfrase seja

associada ao caraacuteter retoacuterico presente nos escritos do autor

A Recepccedilatildeo dos Claacutessicos se configura de forma a confrontar o

caraacuteter fixo e tradicional vinculado aos estudos claacutessicos a fim de

que estes sejam mantidos para aleacutem do autotelismo

(MARTINDALE 2006 p 2) Compreendida desta maneira a

recepccedilatildeo seria uma forma de diaacutelogo com o passado claacutessico em

que natildeo se prioriza nenhum dos lados de modo que natildeo se faccedila

ldquouma leitura canocircnica do modelo claacutessico em detrimento de sua

recepccedilatildeordquo (BAKOGIANNI 2016 p 116) Sobre a teoria da

recepccedilatildeo compreende-se ainda que essa

[165]

rejeita a existecircncia de um texto uacutenico original objetivo e fixo que tem de ser examinado como uma forma de arte pura como argumentariam o neocriticismo e muitos teoacutericos poacutes-modernos Em vez disso na recepccedilatildeo noacutes falamos em ldquotextosrdquo no plural porque a cada vez que um texto eacute lido ele estaacute sendo recebido e interpretado de uma nova maneira Isso tem se mostrado ser de especial valor para o estudo dos claacutessicos em que os textos e a cultura material do mundo antigo sobrevivem apenas de forma fragmentaacuteria Textos claacutessicos satildeo em geral incompletos controversos recuperados de uma variedade de fontes e reinterpretados por cada geraccedilatildeo de estudiosos de Claacutessicas A recepccedilatildeo dos claacutessicos concentra-se na forma como o mundo claacutessico eacute recebido nos seacuteculos subsequentes e em particular nos aspectos das fontes claacutessicas que satildeo alterados marginalizados ou negligenciados (BAKOGIANNI 2016 p 115)

O padre Antonio Vieira leitor dos preceptistas antigos recupera princiacutepios claacutessicos em seus escritos a fim

de comover seus ouvintes em favor da Corte portuguesa e da Igreja Catoacutelica Propomos agrave vista disso a

leitura de sermotildees vieirianos de forma que os entendamos como textos constituiacutedos por aspectos retoacutericos

da Antiguidade Claacutessica recepcionados e interpretados em sua posteridade

De acordo com Martindale (2006 p 11-2) a recepccedilatildeo se associa agrave pluralidade estando o presente e o

passado sempre imbricados um no outro Assim ao escrever no Brasil do seacuteculo XVII o padre Antonio Vieira

transforma elementos da Antiguidade Claacutessica muito presentes em sua obra em elementos vivos do seu

presente estabelecendo uma instacircncia de recepccedilatildeo do mundo claacutessico ndash no que nos interessa aqui da Arte

Retoacuterica Antiga ndash em seu presente O imbricamento passado-presente de Antonio Vieira pode ser lido

atraveacutes dos usos de elementos teoacutericos e praacuteticos da Retoacuterica Claacutessica em seus sermotildees Neste artigo

observaremos a recuperaccedilatildeo de um elemento especiacutefico a ecirccfrase isto eacute uma descriccedilatildeo detalhada e viacutevida

que expotildee aos olhos o que eacute descrito (Theoacuten Prog 118-20) como expediente retoacuterico na produccedilatildeo

sermoniacutestica do padre Antonio Vieira como exemplo de sua constante e criativa recepccedilatildeo da Retoacuterica

Claacutessica a partir da noccedilatildeo de que a construccedilatildeo da histoacuteria seiscentista se daacute em retomada agrave Antiguidade

greco-romana (SINKEVISQUE 2013 p 47) Vieira faz uso da elocuccedilatildeo em seus sermotildees para persuadir e

mesmo porque jesuiacuteta se aproxima dos ditames da Retoacuterica (DE MARTINI 2011 p 94) a partir da

manipulaccedilatildeo de artifiacutecios linguiacutesticos diversos como a ecirccfrase sendo esta utilizada natildeo somente enquanto

procedimento ornamental conforme compreendido modernamente mas como importante instrumento

argumentativo de apoio a pretensotildees poliacutetico-religiosas

Para alcanccedilar o objetivo proposto seratildeo primeiramente tecidas consideraccedilotildees em torno da Retoacuterica Antiga

e da ecirccfrase assim como de funccedilotildees e elementos a ela vinculados a fim de que posteriormente possamos

delimitar passagens que contenham descriccedilotildees ecfraacutesticas em sermotildees vieirianos analisando-as de forma a

compreender como esse artifiacutecio retoacuterico foi posto em uso pelo autor 1 Os sermotildees examinados satildeo o Sermatildeo

1 Em relaccedilatildeo a obras dos seacuteculos XVII e XVIII natildeo se tem acesso aos escritos originais mas a textos retocados para publicaccedilatildeo o que leva agrave existecircncia de diferentes versotildees para um mesmo texto (MAINGUENEAU 2010 p 103) Portanto os textos do padre Vieira podem apresentar distintas versotildees o que nos leva agrave necessidade de escolha de corpus por ediccedilatildeo

[166]

de Santo Inaacutecio (1669) e Sermatildeo de Santo Antocircnio (aos Peixes) (1654) consultados na compilaccedilatildeo organizada

por Alcir Peacutecora (2001) de sermotildees do padre Antonio Vieira

A Retoacuterica entendida na Antiguidade Claacutessica como ldquoa arte de falar bemrdquo natildeo se define a partir da

gramaacutetica da eacutetica ou da dialeacutetica mas pela perspectiva de utilizar o que for necessaacuterio para persuadir o

receptor em funccedilatildeo de uma causa proacutepria (HANSEN 2012 p 164) de forma a questionar ou defender um

argumento Essas satildeo as proacuteprias proposiccedilotildees da natureza retoacuterica como afirma Aristoacuteteles (Rh 11354a)

Ainda segundo Aristoacuteteles (Rh 11355b) a Retoacuterica estaria vinculada agrave capacidade de se alcanccedilar o que seja

adequado a determinado caso com o intento de persuadir Quintiliano no prefaacutecio do Livro I da Instituiccedilatildeo

Oratoacuteria incorpora agrave qualidade elocutiva o eacutethos2 do enunciador ao declarar que a fim de que se suceda o

convencimento preza-se pela formulaccedilatildeo do discurso assim como pelo caraacuteter daquele que o enuncia ou

seja pelo eacutethos Nesse sentido a confluecircncia entre artifiacutecios linguiacutestico-argumentativos e a demonstraccedilatildeo

virtuosa do orador se acentua enquanto recurso persuasivo natildeo podendo portanto ser o enunciador

desvinculado de sua enunciaccedilatildeo ou sua causa desprendida de seus atributos Buscamos assim conduzir o

olhar aos sermotildees do padre Antonio Vieira para aleacutem de seu aspecto linguiacutestico jaacute que o autor demonstra

estar imerso nos acontecimentos temas e questotildees de seu tempo (PEacuteCORA 1994 p 39) Nossa

argumentaccedilatildeo portanto vai ao encontro do que acrescenta Peacutecora

Nessa perspectiva natildeo apenas seria inoacutecuo considerar a qualidade de seus [de Vieira] textos fora de sua propriedade retoacuterico-poliacutetica como ainda mais natildeo seria possiacutevel caracterizar corretamente uma e outra isentando-as de seu peso teoloacutegico e com ele de seu vetor teoloacutegico Retoacuterica e esteacutetica (e jaacute o termo ldquoesteacuteticardquo eacute aiacute anacrocircnico) para ele natildeo valeriam mais que como efeito e multiplicaccedilatildeo desse efeito cujo sentido e causa natildeo eacute o coacutedigo linguumliacutestico ou o gosto literaacuterio mas a manifestaccedilatildeo da vontade divina entre os homens (PEacuteCORA 1994 p 41)

A proposta de examinar escritos do padre Antonio Vieira a partir do uso da ecirccfrase natildeo suprime o

reconhecimento dos componentes poliacuteticos e religiosos amalgamados agrave sua produccedilatildeo sermoniacutestica

Relevante seria entatildeo assumir tal entroncamento a fim de que a dedicaccedilatildeo disposta agrave retomada de

preceitos retoacutericos nos sermotildees vieirianos natildeo permita anacronismos ldquoestetizantesrdquo e ldquolaicizantesrdquo

(PEacuteCORA 1994 p 44) ou ainda a dispersatildeo do motivo pelo qual Vieira se utiliza desses recursos para

persuadir Destarte os ditames da instituiccedilatildeo retoacuterica cuja durabilidade se deu desde o ldquotempo de Platatildeo e

Aristoacuteteles ateacute a revoluccedilatildeo romacircntica na segunda metade do seacuteculo XVIIIrdquo (HANSEN 2012 p 159) satildeo

recuperados nos sermotildees de Vieira de forma a fundamentar sua argumentaccedilatildeo em favor das causas do

Estado portuguecircs e da Igreja Catoacutelica

2 Para Quintiliano (Inst 628) o termo eacutethos que natildeo tem correspondente em latim se vincula ao caraacuteter e agrave moral exigindo que o orador nesse sentido apresente boa iacutendole para que seu discurso seja legitimado

[167]

Segundo consta na Retoacuterica (31404b) de Aristoacuteteles conveacutem ao discurso produzir uma linguagem natildeo

familiar poreacutem clara elaborando-se de uma maneira solene que promova admiraccedilatildeo e convenccedila mediante

as provas de persuasatildeo que residem no ldquocaraacutecter moral do oradorrdquo no proacuteprio discurso e no ldquomodo como se

dispotildeerdquo o ouvinte sendo este levado a sentir emoccedilatildeo diante do enunciado (Rh 11356a) Observa-se na

Retoacuterica a Herecircnio (12) convir ao orador discorrer sobre os elementos instituiacutedos pelo costume e pelas leis

conservando o ldquoassentimento dos ouvintesrdquo e atingindo sua atenccedilatildeo ao estimular o paacutethos3 de modo a

agradaacute-los e persuadi-los a favor de sua causa No caso de Vieira como este mesmo sugere no Sermatildeo da

Sexageacutesima para se converter uma alma por meio de um sermatildeo

haacute de haver trecircs concursos haacute de concorrer o pregador com a doutrina persuadindo haacute de concorrer o ouvinte com o entendimento percebendo haacute de concorrer Deus com a graccedila alumiando (VIEIRA Sermatildeo da Sexageacutesima 31)

Dessa maneira para aproximar o ouvinte do discurso levando-o ao entendimento e agrave emoccedilatildeo e assim

persuadindo-o com o amparo da graccedila divina os recursos retoacutericos satildeo admitidos natildeo enquanto meros

elementos ornamentais mas como constituintes da elegantia sermonis a partir da qual os artifiacutecios claacutessicos

serviam a uma ldquotradiccedilatildeo discursiva professada pela eloquecircncia contrarreformistardquo (SILVA OLIVEIRA 2014

p 58) assim como ao convencimento

No Sermatildeo da Sexageacutesima (43) Vieira nos adverte sobre a relevacircncia da imagem para o aspecto persuasivo

do sermatildeo jaacute que a ldquoalma rende-se muito mais pelos olhos que pelos ouvidosrdquo Imagem nesse sentido seria

ldquoa evocaccedilatildeo pelas palavras de uma percepccedilatildeo sensorialrdquo e um recurso capaz de estimular a imaginaccedilatildeo

(SARAIVA 1980 p 31-2) No discurso de Vieira eacute a imagem amalgamada ao conteuacutedo daquilo que se diz

valendo-se por seu contexto (SARAIVA 1980 p 42) Esta preceptiva eacute proacutepria da Retoacuterica Antiga na

Retoacuterica a Herecircnio (337) o autor afirma ser importante construir imagens capazes de aderir agrave memoacuteria e no

De Oratore (286) Ciacutecero diz ser preciso fazer imagens daquilo que se queira guardar Dessa maneira a

composiccedilatildeo de imagens por meio do enunciado contribui como procedimento persuasivo ao deslocar

componentes textuais de seu aspecto verbal para o natildeo-verbal a partir da visualizaccedilatildeo dos objetos do

discurso

Ainda o auctor ad Herennium (3357) destaca a visatildeo como o sentido mais agudo jaacute que se reteacutem mais

facilmente o que eacute trazido ao espiacuterito a partir do olhar mesmo que o objeto retido natildeo possa ser visto mas

memorizado por meio de imagens o que se vincula agrave fantasia como termo teacutecnico da Retoacuterica ao demandar

ldquoa visualizaccedilatildeo de imagens ausentesrdquo (RODOLPHO 2012 p 127) Segundo Quintiliano (Inst 6229) fantasia

eacute o meio pelo qual as coisas ausentes satildeo representadas na imaginaccedilatildeo com tanta vividez como se as

3 De acordo com Quintiliano (Inst 628-10) paacutethos estaacute associado ao termo latino adfectus (emoccedilatildeo) sendo acionado ao estimular uma reaccedilatildeo emocional no ouvinte comovendo-o

[168]

tiveacutessemos diante do olhar Logo a fantasia parece se relacionar aos mecanismos ecfraacutesticos (RODOLPHO

2012 p 141) como um elemento de assimilaccedilatildeo visual do que estaacute sendo lido o que contribui para o

convencimento do que se enuncia no discurso Quanto agrave enargia Quintiliano (Inst 8361) a identifica como

o procedimento que expotildee diante dos olhos ao tornar claro natildeo soacute enquanto ornato mas em funccedilatildeo da

argumentaccedilatildeo de uma causa pois contribui para que ela pareccedila mais verdadeira (RODOLPHO 2012 p 154)

A ecirccfrase como elemento textual se situa como desencadeador da enargia que seria a figura retoacuterica que

estimula o visual por meio de uma descriccedilatildeo detalhada e viacutevida Rodolpho (2012 p 176) classifica fantasia

como a ldquovisualizaccedilatildeo de uma imagem ausenterdquo enargia como a ldquofigura que dispotildee diante dos olhosrdquo e

ecirccfrase como um ldquoprocesso utilizado para produzir tal resultadordquo o que aponta para a indissociabilidade de

tais elementos

Entendemos assim a ecirccfrase em seu sentido amplo como um fenocircmeno retoacuterico-poeacutetico que realccedila o

escrito por meio de uma descriccedilatildeo verbal detalhada e viacutevida em que se compotildee um quadro do objeto descrito

e a partir da qual se gera a enargia ou evidecircncia figuras de pensamento que conferem vivacidade agrave imagem

verbal (RODOLPHO 2011 p 188) ou ainda como um procedimento elocutivo utilizado na descriccedilatildeo e

evidenciaccedilatildeo de toacutepicos narrativos como os de lugar pessoa espaccedilo fiacutesico accedilotildees ou caraacuteter de modo a

amplificar o discurso sendo ela disposta como ornato instrutivo vinculado agrave narraccedilatildeo (SINKEVISQUE 2013

p 47) Eacute um elemento constituinte da Retoacuterica Antiga que chega com algumas modificaccedilotildees agrave

modernidade4 Na ecirccfrase expotildee-se algo a partir da opiniatildeo comum que se tem sobre aquilo com

ldquoautoridade clareza e nitidezrdquo efetuando-se um discurso engenhoso e digno de encocircmio (HANSEN 2006 p

87) Por meio desse recurso o autor se situa como inteacuterprete de uma cena atribuindo ldquoqualidades elocutivas

agrave imagem descritardquo (HANSEN 2006 p 86) aleacutem de causar a impressatildeo de que essa imagem esteja proacutexima

do receptor gerando assim uma vividez responsaacutevel por articular no destinataacuterio a assimilaccedilatildeo do que eacute

enunciado no discurso (HANSEN 2012 p 171)

Enquanto estrutura mimeacutetica a ecirccfrase se relaciona aos modelos retoacutericos da imitaccedilatildeo de toacutepoi oratoacuterios e

poeacuteticos (HANSEN 2006 p 88) Mimetizando o toacutepos de acordo com a opiniatildeo tida como verdadeira em

relaccedilatildeo agravequilo que se diz o autor faz recorrer agrave memoacuteria do leitor que possivelmente apresenta a mesma

opiniatildeo e se maravilha com o conhecido sendo exposto por meio de um enunciado ecfraacutestico (HANSEN

2006 p 88) Nos sermotildees de Vieira isso acontece natildeo soacute como uma consonacircncia de perspectivas mas

tambeacutem para reforccedilar a opiniatildeo desejada no ouvinte

A educaccedilatildeo claacutessica a que se submeteu o padre Vieira eacute clara em sua obra pois este aleacutem de citar inuacutemeros

autores antigos ndash como Oviacutedio e Luciacutelio (Sermatildeo de Santo Antocircnio 51) ndash e princiacutepios retoacutericos ndash como jaacute

4 A ecirccfrase em seu sentido moderno eacute compreendida como descriccedilatildeo de uma obra de arte (pintura ou escultura) associando-se assim agrave representaccedilatildeo verbal de uma imagem visual (WEBB 2009 p 1)

[169]

demonstrado ndash os incorpora agrave sua proacutepria maneira de escrever Durante a leitura dos sermotildees encontramos

em diversos momentos pequenas ecirccfrases isoladas utilizadas em funccedilatildeo da legitimaccedilatildeo de algum

comentaacuterio do autor em outros ecirccfrases mais extensas que se vinculam agrave temaacutetica do sermatildeo como um

todo A ecirccfrase enquanto figura retoacuterica se situa nesses sermotildees como elemento persuasivo ao deleitar e

orientar a compreensatildeo do leitorouvinte tornando-o favoraacutevel agrave causa defendida pelo autor Eacute portanto

com base nas noccedilotildees retoacutericas da Antiguidade Claacutessica que se verificaratildeo trechos ecfraacutestiscos em sermotildees

do padre Antonio Vieira natildeo os isentando contudo de sua configuraccedilatildeo poliacutetica e religiosa jaacute que a

utilizaccedilatildeo desse procedimento retoacuterico por Vieira se daacute em funccedilatildeo dessas duas instacircncias

Pesquisas literaacuterias atuais sobre o discurso religioso costumam ser escassas segundo Maingueneau (2010

p 100) devido ao enfraquecimento da cultura religiosa o qual faz com que se estudem textos religiosos

apenas para verificar seu entorno e suas interferecircncias sendo descartados seus possiacuteveis aspectos literaacuterios

De acordo com o autor o sermatildeo se encaixa na categoria de ldquoenunciaccedilatildeo monologal oralrdquo (MAINGUENEAU

2010 p 104-105) tendo como objetivo aperfeiccediloar a compreensatildeo da doutrina e provocar uma conduta

adequada por parte dos fieacuteis Em relaccedilatildeo ao pregador este deve dar a impressatildeo de falar naturalmente como

se fosse direcionado pelo Espiacuterito Santo assumindo um eacutethos inspirado (MAINGUENEAU 2010 p 108) Em

qualquer eacutepoca o ldquodispositivo do sermatildeo catoacutelico articula trecircs lugaresrdquo sendo esses o dos ouvintes o do

pregador e acima de todos a niacutevel celestial o da divindade (MAINGUENEAU 2010 p 110)

O Sermatildeo de Santo Inaacutecio (1669) proferido em Lisboa no Real Coleacutegio de Santo Antatildeo se inicia com a

passagem biacuteblica de Lucas 1236 ldquoEt vos similes hominibus expectantibus Dominum suumrdquo5 O sermatildeo expotildee a

multiplicidade de figuras representadas por Santo Inaacutecio fundador da Companhia de Jesus sendo ele

associado a diversos outros santos e considerado ldquosiacutentese de todos os patriarcas das demais ordens

religiosasrdquo segundo afirma Alcir Peacutecora (2001 p 120) ao introduzir o texto Nos dois paraacutegrafos iniciais

tem-se a descriccedilatildeo de Inaacutecio de Loiola ao ler um livro sobre a vida dos Santos dispostos diante dos olhos de

Inaacutecio de Loiola como exemplos a serem seguidos como sugere o proacuteprio Vieira

Toma Inaacutecio o livro nas matildeos lecirc-o ao princiacutepio com dissabor pouco depois sem fastio ultimamente com gosto e dali por diante com fome com acircnsia com cuidado com desengano com devoccedilatildeo com laacutegrimas

[]

Lia Inaacutecio as vidas dos confessores e comeccedilando como eles pelo desprezo da vaidade tira o colete despe as galas e assim como se ia despindo o corpo se ia armando o espiacuterito Lia as vidas dos anacoretas e jaacute suspirava pelos desertos e por se ver metido em uma cova de Manresa onde sepultado acabasse de morrer ao mundo e comeccedilasse a viver ou a ressuscitar a si mesmo Lia as vidas dos doutores e pontiacutefices e ainda que o natildeo afeiccediloaram as mitras nem as tiaras delibera-se a aprender para ensinar e a comeccedilar os rudimentos da gramaacutetica entre os meninos conhecendo que em trinta e trecircs anos de corte e guerra ainda

5 ldquoE sejais voacutes semelhantes aos homens que esperam seu Senhorrdquo (Traduccedilatildeo nossa)

[170]

natildeo comeccedilara a ser homem Lia as vidas ou as mortes valorosas dos maacutertires e com sede de derramar o sangue proacuteprio quem tinha derramado tanto alheio sacrifica-se a ir buscar o martiacuterio a Jerusaleacutem oferecendo as matildeos desarmadas agraves algemas os peacutes aos grilhotildees o corpo agraves masmorras e o pescoccedilo aos alfanjes turquescos Lia finalmente as vidas e as peregrinaccedilotildees dos apoacutestolos e soando-lhe melhor que tudo aos ouvidos as trombetas do Evangelho toma por empresa a conquista de todo o mundo para dilatar a feacute para o sujeitar agrave Igreja e para levantar novo edifiacutecio sobre os alicerces e ruiacutenas do que eles tinham fundado (VIEIRA Sermatildeo de Santo Inaacutecio 11-2)

Santo Inaacutecio enquanto lecirc sobre as vidas dos confessores dos anacoretas dos maacutertires e dos apoacutestolos as

integra agrave sua proacutepria vida reunindo em seu ser as diversas qualidades presentes em outros santos A

enargia neste caso eacute destacada jaacute que essas vidas satildeo expostas diante dos olhos de Santo Inaacutecio o qual ao

formular fantasiosamente imagens associadas aos santos as recolhe como constituintes de si mesmo Lendo

por exemplo sobre os anacoretas imaginava-se no deserto e em uma cova de Manresa e sobre os maacutertires

via-se derramar o proacuteprio sangue Se o proacuteprio Inaacutecio fantasiosamente formulava imagens a partir daquilo

que lia fez o mesmo Vieira com seus ouvintes apropriando-se da ecirccfrase para expor-lhes os atributos dos

santos Sendo Inaacutecio fundador da Companhia de Jesus eacute como se esses diversos atributos fossem da mesma

maneira componentes da proacutepria instituiccedilatildeo o que acabaria por enaltececirc-la aleacutem de dignificar os jesuiacutetas

como um todo Essas questotildees podem ser alcanccediladas ainda no seguinte excerto

Pocircs Deus diante dos olhos a Inaacutecio estampados naquele livro os mais famosos e os mais formosos originais da santidade natildeo de um reino ou de uma idade senatildeo de todas as idades e de toda a Igreja e copiando Inaacutecio em si mesmo de um a humildade de outro a penitecircncia de um a temperanccedila de outro a fortaleza de um a paciecircncia de outro a caridade e de todos e cada um aquela virtude e graccedila em que foram mais eminentes saiu Inaacutecio com quecirc Com um Santo Inaacutecio com uma imagem da mais heroacuteica virtude com uma imagem da mais consumada perfeiccedilatildeo com uma imagem da mais prodigiosa santidade enfim com um santo natildeo semelhante e parecido a um soacute santo senatildeo semelhante e parecido a todos Et vos similes hominibus (VIEIRA Sermatildeo de Santo Inaacutecio 24)

Os santos satildeo colocados diante dos olhos de Inaacutecio de forma que ele possa fantasiosamente imaginar e

assimilar suas virtudes (humildade penitecircncia temperanccedila fortaleza paciecircncia caridade) integrando-as a

si mesmo Dessa maneira eacute Santo Inaacutecio composto por esses diversos atributos enquanto lecirc sobre os santos

estruturando-se assim como imagem que por seu caraacuteter compoacutesito natildeo pode ser representada de uma

uacutenica maneira Enfermo Inaacutecio vem um pintor retrataacute-lo e a cada olhar que lanccedila ao santo o percebe de

maneira distinta tendo de recomeccedilar o desenho ateacute abandonar o trabalho por perceber que Inaacutecio natildeo

possuiacutea uma imagem singular mas representava as diversas figuras que lhe serviram de exemplo

Potildee-se encoberto o pintor olha para Santo Inaacutecio forma ideacuteia aplica os pinceacuteis ao quadro e comeccedila a delinear-lhe as feiccedilotildees do rosto Toma a olhar (coisa maravilhosa) o que agora viu jaacute natildeo era o mesmo homem jaacute natildeo era o mesmo rosto jaacute natildeo era a mesma figura senatildeo outra muito diferente da primeira Admirado o pintor deixa o desenho que tinha comeccedilado lanccedila segundas linhas comeccedila segundo retrato e segundo rosto olha terceira vez (nova maravilha) o segundo original jaacute tinha desaparecido e Santo Inaacutecio estava outra vez transtornado com novo aspecto com novas feiccedilotildees com nova cor com nova proporccedilatildeo com nova figura Jaacute o pintor se pudera desenganar e cansar mas a mesma maravilha o instigava a insistir Insta repetidamente olha e toma a olhar desenha e toma a desenhar mas sendo o

[171]

objeto o mesmo nunca pode tomar a ver o mesmo que tinha visto porque quantas vezes aplicava e divertia os olhos tantos eram os rostos diversos e tantas as figuras novas em que o santo se lhe representava Pasmou o pintor e desistiu do retrato pasmaram todos vendo a variedade dos desenhos que tinha comeccedilado e eu tambeacutem quero pasmar um pouco agrave vista deste prodiacutegio (VIEIRA Sermatildeo de Santo Inaacutecio 31)

Esse incidente eacute retratado por meio de uma ecirccfrase cujo conteuacutedo simboliza a temaacutetica principal do sermatildeo

Temos o uso dos verbos no presente (potildee deixa olha) as caracterizaccedilotildees constantes (encoberto

maravilhosa admirado transtornado) e o encadeamento de accedilotildees Por conta da descriccedilatildeo eacute como se

acompanhaacutessemos o pincel em sua tentativa de retratar Santo Inaacutecio os primeiros traccedilos delineados e as

conseguintes percepccedilotildees de que aquele semblante jaacute natildeo era mais o mesmo por conter um ldquonovo aspecto

com novas feiccedilotildees com nova cor com nova proporccedilatildeo com nova figurardquo Apesar disso o pintor maravilhado

insiste e retornando o olhar a Santo Inaacutecio o percebe ainda assim de maneira diferente ficando a pintura

portanto composta por muacuteltiplas faces as quais representam o proacuteprio caraacuteter multifacetado do santo em

questatildeo jaacute que como nos apresenta Vieira ldquoEra Inaacutecio um mas semelhante a muitos e quem era semelhante

a muitos soacute se podia retratar em muitas figurasrdquo (Sermatildeo de Santo Inaacutecio 32)

Um pouco adiante vemos uma nova descriccedilatildeo de Inaacutecio desta vez em uma cova observado por Ezequiel

que o percebe tambeacutem a partir de uma imagem natildeo uniforme retratando diversos outros santos (Sermatildeo de

Santo Inaacutecio 36) Potildee Ezequiel os olhos em Santo Inaacutecio e primeiramente o vecirc perseguido pensando ser ele

entatildeo Satildeo Clemente Depois enxerga nele Satildeo Jerocircnimo

Toma a olhar para se firmar mais no que via e jaacute a representaccedilatildeo era outra Viu a Inaacutecio em uma cova com uma cruz e uma caveira diante lanccedilado em terra cingido de ciliacutecios chorando infinitas laacutegrimas jejuando vigiando orando disciplinando-se com cadeias de ferro lutando fortemente contra as tentaccedilotildees e ferindo os peitos nus com uma pedra dura persuadiu-se Ezequiel que era S Hierocircnimo

As diversas imagens associadas ao santo satildeo expostas de forma que da mesma maneira que o enxerga

Ezequiel consigamos avistaacute-lo devido aos mecanismos ecfraacutesticos neste trecho acionados a descriccedilatildeo

espacial (cova terra cadeias) os materiais (cruz ferro pedra) o choro (infinitas laacutegrimas) e o encadeamento

de accedilotildees (chorar jejuar vigiar orar disciplinar-se lutar ferir)

Pensa entatildeo Inaacutecio ser Santo Atanaacutesio ao vecirc-lo poreacutem ldquovestido em ornamentos sacerdotais e com um

Menino Jesus vivo nas matildeosrdquo o associa a Santo Simeatildeo Ateacute que o vecirc como Satildeo Martinho ndash ldquotrajado de galas

e plumas tinha junto a si um pobre mendigo tirava o chapeacuteu tirava a capa e despojando-se das proacuteprias

roupas cobria com elas o pobre soldado e despindo-se a si para cobrir o pobrerdquo Estando contudo Inaacutecio

ldquoarrebatado no ar com os braccedilos caiacutedos com o rosto inflamado com os olhos pregados no ceacuteu acusando com

suspiros a brevidade da noite e dando queixas ao solrdquo Ezequiel o percebe como Santo Antocircnio Inaacutecio eacute pois

percebido como Satildeo Lourenccedilo ateacute ser reconhecido

[172]

Viu subitamente um incecircndio que chegava da terra ao ceacuteu e no meio dele a Inaacutecio abrasado em vivas chamas de fogo e zelo de amor de Deus de fogo e zelo de amor do proacuteximo E ainda que Ezequiel parecendo-lhe que seria S Lourenccedilo formou um L foram tantas as transfiguraccedilotildees e tatildeo diversas as figuras em que Inaacutecio variou o rosto o gesto as accedilotildees que acabaram de se desenganar os olhos do profeta como se tinham desenganado os do pintor Ali ficaram ambos os retratos suspensos e imperfeitos e acabou de conhecer o ceacuteu e a terra que o retrato de Inaacutecio senatildeo podia reduzir a uma soacute figura e que natildeo podia ser copiado em uma soacute imagem como os outros santos quem era feito agrave semelhanccedila de todos Et vos similes hominibus

As imagens associadas agraves visotildees que Ezequiel tem de Santo Inaacutecio satildeo descritas de forma que as percebamos

no ato de leitura a partir da pormenorizaccedilatildeo de especificidades tais quais localizaccedilatildeo espacial (cova terra

ceacuteu) vestimentas (plumas chapeacuteu capa) materiais (ferro pedra fogo) ou ateacute mesmo expressotildees faciais do

santo (choro laacutegrimas suspiro) que conferem maior vividez agrave cena

A partir do capiacutetulo quinto do sermatildeo Vieira tece consideraccedilotildees sobre ldquoo verdadeiro retrato de Santo

Inaacuteciordquo sendo apresentadas diversas de suas caracteriacutesticas assim como expostas de quais santos ele as

herdou para se tornar ldquosemelhante sem semelhanterdquo Neste caso ldquoSemelhante porque tomou os gecircneros

sem semelhante porque acrescentou as diferenccedilas Semelhante porque imitou a semelhanccedila de cada um

sem semelhante porque uniu em si as semelhanccedilas de todosrdquo (Sermatildeo de Santo Inaacutecio 55) O discurso se finda

demonstrando como em Santo Inaacutecio foram ajuntadas as perfeiccedilotildees de todos os santos sendo ele ldquoum fruto

que conteacutem em si todos os saboresrdquo (Sermatildeo de Santo Inaacutecio 71) e seu fruto a Companhia de Jesus instituiccedilatildeo

favorecida por todos esses atributos

Outro sermatildeo do padre Vieira o Sermatildeo de Santo Antocircnio (aos Peixes) (1654) pregado em Satildeo Luiacutes do

Maranhatildeo apresenta uma alegoria6 de peixes de forma a demonstrar as caracteriacutesticas boas e ruins que

pode ter um pregador Nele consta primeiramente a passagem de Lucas 513 Vos estis sal terrae (voacutes sois sal

da terra) em referecircncia aos pregadores que sendo sal da terra devem mantecirc-la conservada Dispondo

assim de um discurso alegoacuterico Vieira faz uma apresentaccedilatildeo de viacutecios e virtudes humanas

Diante da proposta de que salguem a terra os pregadores e natildeo se deixando a terra salgar Vieira decide fazer

como Santo Antocircnio ndash que foi sal na terra e no mar ndash e ao inveacutes de pregar agraves pessoas prega aos peixes (Sermatildeo

de Santo Antocircnio aos Peixes 1) Primeiramente Vieira lanccedila o olhar agraves virtudes dos peixes para que

posteriormente possa destacar seus viacutecios Dentre as virtudes pois estatildeo a obediecircncia e a dedicaccedilatildeo agrave

palavra divina (Sermatildeo de Santo Antocircnio aos Peixes 24) assim como o distanciamento dos humanos que Santo

Antocircnio tambeacutem praticara (Sermatildeo de Santo Antocircnio aos Peixes 25-6) Discorre entatildeo Vieira sobre o santo

peixe de Tobias

6 Assumindo a concepccedilatildeo de alegoria vinculada agrave de tropo temos ldquoa transposiccedilatildeo semacircntica de um signo em presenccedila para um signo em ausecircncia A transposiccedilatildeo baseia-se na relaccedilatildeo possiacutevel entre um ou mais traccedilos semacircnticos dos significadosrdquo (HANSEN 1986 p 14)

[173]

Ia Tobias caminhando com o Anjo S Rafael que o acompanhava e descendo a lavar os peacutes do poacute do caminho nas margens de um rio eis que o investe um grande peixe com a boca aberta em accedilatildeo de que o queria tragar Gritou Tobias assombrado mas o anjo lhe disse que pegasse no peixe pela barbatana e o arrastasse para terra que o abrisse e lhe tirasse as entranhas e as guardasse porque lhe haviam de servir muito Fecirc-lo assim Tobias e perguntando que virtude tinham as entranhas daquele peixe que lhe mandara guardar respondeu o Anjo que o fel era bom para sarar da cegueira e o coraccedilatildeo para lanccedilar fora os Democircnios (VIEIRA Sermatildeo de Santo Antocircnio aos Peixes 31)

Nesse trecho percebemos uma descriccedilatildeo do acontecido com Tobias de forma que acompanhemos suas

accedilotildees desde a caminhada ao rio ateacute a captura do peixe cujo fel eacute vinculado agrave cura da cegueira ndash fiacutesica ou

espiritual ndash e agrave expulsatildeo de democircnios Os mecanismos ecfraacutesticos satildeo acionados por meio da localizaccedilatildeo

espacial (margens de um rio) da descriccedilatildeo do peixe (grande boca aberta barbatana) e do encadeamento de

accedilotildees

Adiante Vieira passa a enaltecer a resistecircncia da reacutemora ndash ldquopeixezinho tatildeo pequeno no corpo e tatildeo grande

na forccedila e no poder que natildeo sendo maior de um palmo se se pega ao leme de uma nau da Iacutendiardquo (Sermatildeo de

Santo Antocircnio aos Peixes 32) ndash e a autoridade do torpedo cujos efeitos podemos perceber por meio da

descriccedilatildeo de um quadro que nos eacute apresentado

Estaacute o pescador com a cana na matildeo o anzol no fundo e a boacuteia sobre a aacutegua e em lhe picando na isca o Torpedo comeccedila a lhe tremer o braccedilo Pode haver maior mais breve e mais admiraacutevel efeito De maneira que num momento passa a virtude do peixezinho da boca ao anzol do anzol agrave linha da linha agrave cana e da cana ao braccedilo do pescador (VIEIRA Sermatildeo de Santo Antocircnio aos Peixes 33)

Os mecanismos ecfraacutesticos acionados nesse trecho se vinculam aos verbos conjugados no presente (estaacute

pode passa) responsaacuteveis por conferir maior vividez agrave narraccedilatildeo assim como agraves especificidades espaciais

por conta da localizaccedilatildeo dos objetos (cana na matildeo anzol no fundo boacuteia na aacutegua) e ao excerto final em que

observamos a vibraccedilatildeo do peixe do anzol ao pescador Deve-se elaborar uma pregaccedilatildeo dessa maneira seu

alcance deve se assemelhar agrave vibraccedilatildeo do torpedo Para finalizar o discurso dos louvores Vieira fala sobre

outra espeacutecie de peixe

Navegando de aqui para o Paraacute (que eacute bem natildeo fiquem de fora os peixes da nossa costa) vi correr pela tona da aacutegua de quando em quando a saltos um cardume de peixinhos que natildeo conhecia e como me dissessem que os Portugueses lhe chamavam Quatro-Olhos quis averiguar ocularmente a razatildeo deste nome e achei que verdadeiramente tecircm quatro olhos em tudo cabais e perfeitos

[]

Filosofando pois sobre a causa natural desta Providecircncia notei que aqueles quatro olhos estatildeo lanccedilados um pouco fora do lugar ordinaacuterio e cada par deles unidos como os dois vidros de um reloacutegio de areia em tal forma que os da parte superior olham direitamente para cima e os da parte inferior direitamente para baixo (VIEIRA Sermatildeo de Santo Antocircnio aos Peixes 34-5)

[174]

Temos nesse excerto uma pequena descriccedilatildeo do peixe quatro-olhos que possui distinta visatildeo Quando se

inicia entatildeo o vitupeacuterio aos viacutecios desaprova-se o fato de que os peixes comem uns aos outros isto eacute os

grandes comem os pequenos (Sermatildeo de Santo Antocircnio aos Peixes 41-7) o que tambeacutem acontece entre os

humanos quando prejudicam uns aos outros Em seguida Vieira discorre sobre a ignoracircncia dos peixes

facilmente enganados

Toma um homem do mar um anzol ata-lhe um pedaccedilo de pano cortado e aberto em duas ou trecircs pontas lanccedila-o por um cabo delgado ateacute tocar na aacutegua e em o vendo o peixe arremete cego a ele e fica preso e boqueando ateacute que assim suspenso no ar ou lanccedilado no conveacutes acaba de morrer Pode haver maior ignoracircncia e mais rematada cegueira que esta Enganados por um retalho de pano perder a vida (VIEIRA Sermatildeo de Santo Antocircnio aos Peixes 48)

Nesse trecho tem-se uma narraccedilatildeo que alcanccedila nosso olhar por meio de mecanismos ecfraacutesticos como o uso

do tempo presente (toma lanccedila arremete) as especificidades atribuiacutedas aos objetos (pedaccedilo de pano

cortado e aberto cabo delgado) e o encadeamento de accedilotildees

Em seguida fala Vieira sobre os pegadores parasitas comparados aos aduladores pois ficam na companhia

de peixes grandes a fim de garantirem seu sustento e proteccedilatildeo Ainda sobre eles diz que da mesma forma

que se mantecircm vivos nas proximidades de um tubaratildeo com ele tambeacutem padecem

Rodeia a nau o Tubaratildeo nas calmarias da Linha com os seus Pegadores agraves costas tatildeo cerzidos com a pele que mais parecem remendos ou manchas naturais que os hoacutespedes ou companheiros Lanccedilam-lhe um anzol de cadeia com a raccedilatildeo de quatro Soldados arremessa-se furiosamente agrave presa engole tudo de um bocado e fica preso Corre meia companha a alaacute-lo acima bate fortemente o conveacutes com os uacuteltimos arrancos enfim morre o Tubaratildeo e morrem com ele os Pegadores (VIEIRA Sermatildeo de Santo Antocircnio aos Peixes 54)

A descriccedilatildeo nos eacute oferecida ao olhar devido ao uso de verbos no presente (rodeia lanccedilam engole) agraves

caracteriacutesticas dadas aos pegadores (cerzidos remendos manchas) por estarem tatildeo proacuteximos dos tubarotildees

aos adveacuterbios (furiosamente fortemente) que auxiliam na visualizaccedilatildeo da cena e ao encadeamento de

accedilotildees Enfim de forma a finalizar o discurso repreensivo formando uma imagem Vieira descreve o polvo

como oportunista traidor e hipoacutecrita

O Polvo com aquele seu capelo parece um Monge com aqueles seus raios estendidos parece uma Estrela com aquele natildeo ter osso nem espinha parece a mesma brandura a mesma mansidatildeo E debaixo desta aparecircncia tatildeo modesta ou desta hipocrisia tatildeo santa testemunham constantemente os dois grandes Doutores da Igreja Latina e Grega que o dito Polvo eacute o maior traidor do mar Consiste esta traiccedilatildeo do Polvo primeiramente em se vestir ou pintar das mesmas cores de todas aquelas cores a que estaacute pegado As cores que no Camaleatildeo satildeo gala no Polvo satildeo maliacutecia as figuras que em Proteu satildeo faacutebula no polvo satildeo verdade e artifiacutecio Se estaacute nos limos faz-se verde se estaacute na areia faz-se branco se estaacute no lodo faz-se pardo e se estaacute em alguma pedra como mais ordinariamente costuma estar faz-se da cor da mesma pedra (VIEIRA Sermatildeo de Santo Antocircnio aos Peixes 510)

[175]

O polvo assim nos eacute apresentado por meio de uma ecirccfrase que o descreve enquanto o compara a outros

seres (monge estrela camaleatildeo) destacando suas caracteriacutesticas fiacutesicas de forma metafoacuterica (capelo raios

vestir-se de cores) Os verbos estatildeo no tempo presente de forma a aproximar a descriccedilatildeo do ouvinte e ao

evidenciar a camuflagem do polvo Vieira o faz de maneira com que acompanhemos suas transiccedilotildees

pigmentaacuterias entre verde branco pardo e rochoso

O sermatildeo se finda com uma despedida aos peixes em que se destaca seus privileacutegios por natildeo serem humanos

(Sermatildeo de Santo Antocircnio aos Peixes 6) Mediante um discurso alegoacuterico Vieira se utiliza de particularidades

dos peixes para representar virtudes e viacutecios humanos e a fim de trazer ao olhar dos ouvintes seus dizeres

persuadindo emprega a ecirccfrase enquanto recurso retoacuterico integrante de um modelo de convencimento o

qual busca imitar

De acordo com Hansen (2000 p 322) verifica-se que os princiacutepios que regimentam a doutrina da agudeza

seiscentista recuperam autores claacutessicos e seus ensinamentos sendo esses dispersados tambeacutem atraveacutes da

ordem dos jesuiacutetas da qual Vieira era integrante A retomada agrave Antiguidade Claacutessica era convenccedilatildeo entre

autores dos seacuteculos XVII que formulavam seus discursos em retorno agrave Retoacuterica Antiga O padre Antonio

Vieira retoma diversos autores e artifiacutecios antigos incorporando-os agrave sua escrita de forma a convencer seu

auditoacuterio a favor das causas do Estado Portuguecircs e da Igreja Catoacutelica

Deste modo deve-se considerar que as formas de expressatildeo do seacuteculo XVII atuam alinhadas aos topoi teoloacutegicos sem assentir por outro lado que o olhar pragmaacutetico as restrinja evitando assim que natildeo se eliminem certas arguacutecias produzidas especialmente por Vieira dentro dos sermotildees (SILVA OLIVEIRA 2014 p 55)

Vieira para persuadir em favor de suas causas vinculadas ao Estado portuguecircs e agrave Igreja Catoacutelica lanccedilou

matildeo dos ditames retoacutericos e utilizou a ecirccfrase enquanto recurso capaz de gerar enargia por serem os olhos

o meio pelo qual se rende uma alma Assim ldquosobem os pregadores ao puacutelpito potildeem-nos diante dos olhos

tantas vezes a Lei de Deusrdquo (Sermatildeo da Quinta Quarta-Feira da Quaresma 34)

Os sermotildees Sermatildeo de Santo Inaacutecio (1669) e Sermatildeo de Santo Antocircnio (aos Peixes) (1654) apresentam

descriccedilotildees ecfraacutesticas dispostas no discurso em funccedilatildeo de uma proposiccedilatildeo No Sermatildeo de Santo Inaacutecio temos

ecirccfrases mais isoladas e longas utilizadas para dignificar Santo Inaacutecio e a Companhia de Jesus perante outras

instituiccedilotildees religiosas No Sermatildeo de Santo Antocircnio (aos Peixes) as ecirccfrases satildeo menores e dispersas por todo

o discurso de forma a apresentar alegoricamente os viacutecios e as virtudes humanas que podem atingir os

pregadores

Os trechos ecfraacutesticos apresentados para aleacutem de uma ornamentaccedilatildeo sermoniacutestica satildeo evidenciados como

integrantes da argumentaccedilatildeo de Vieira ldquoDistanciando-nos das leituras anacrocircnicas eacute possiacutevel perceber que

o ornato linguiacutestico natildeo eacute portanto o alvo da desaprovaccedilatildeo de Vieirardquo (SILVA OLIVEIRA 2014 p 58) mas

[176]

um recurso utilizado para atingir seu leitorouvinte sendo que um dos artifiacutecios linguiacutesticos manipulados por

Vieira eacute a ecirccfrase cuja vividez descritiva aproxima o escrito do destinataacuterio e fortalece a argumentaccedilatildeo

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O Republicanismo claacutessico e a Cultura Poliacutetica na Revoluccedilatildeo Americana (1775-1783)

Julio Morguetti Neto

jmorguettinetogmailcom

Este texto foi desenvolvido a partir de um estudo em que

analisamos o desenvolvimento do pensamento poliacutetico de John

Adams (1735-1826) um dos pais fundadores do processo

revolucionaacuterio americano e idealizador de um projeto poliacutetico

republicano pautado em concepccedilotildees que remontam aos ideais

claacutessicos romanos Apoiamos nossa pesquisa nos modelos

propostos pelos Estudos da Recepccedilatildeo uma corrente teoacuterica que

visa discutir como determinadas ideias conceitos e interpretaccedilotildees

discutidas e localizadas em uma dada temporalidade foram

transmitidas recebidas e apropriadas em um contexto diverso da

sua proposiccedilatildeo inicial

Diante disso nosso intuito eacute analisar como o pensamento do

poliacutetico e orador romano Marco Tuacutelio Ciacutecero (106-43 aC) eacute

resgatado e apropriado na elaboraccedilatildeo das concepccedilotildees poliacuteticas de

John Adams no contexto do processo da Revoluccedilatildeo Americana

Propomo-nos a discutir como o pensamento claacutessico permanecia

relevante ao debate poliacutetico do momento e como Adams pauta suas

concepccedilotildees sobre republicanismo e o desenvolvimento das

atividades puacuteblicas e ciacutevicas que deveriam nortear os rumos da

nascente repuacuteblica americana

Para analisar o pensamento de Adams e a influecircncia de Ciacutecero na

sua trajetoacuteria poliacutetica exploramos a publicaccedilatildeo epistolar do

[179]

advogado americano principalmente as cartas trocadas com sua esposa Abigail Adams e com Thomas

Jefferson outro dos fundadores do processo revolucionaacuterio sendo ainda companheiro rival e amigo de

Adams Buscando uma delimitaccedilatildeo melhor de nosso corpus de anaacutelise utilizamos as correspondecircncias com

Abigail que foram produzidas desde o momento da participaccedilatildeo no Congresso Continental da Filadeacutelfia em

1775 ateacute o final de seu mandato enquanto presidente em 1801 Jaacute as correspondecircncias com Jefferson satildeo

aquelas trocadas a partir de 1812 quando ambos retomam a amizade apoacutes o fim do mandato de Jefferson

e continuam a trocar cartas ateacute o fim de suas vidas em 1826 O paralelo que traccedilamos com Ciacutecero se daacute

tambeacutem atraveacutes das cartas Devido agrave vasta produccedilatildeo do orador romano utilizamos como apoio para

criarmos uma anaacutelise da recepccedilatildeo de suas ideias as epiacutestolas Ad familiares em que Ciacutecero se comunicava com

a esposa o filho e o irmatildeo e as Ad Atticum nas quais Ciacutecero se comunica com seu amigo Tito Pompoacutenio Aacutetico

Por fim apresentamos algumas proposiccedilotildees pensadas a partir do conceito de Cultura Poliacutetica e guiamos

nosso debate baseados nas formulaccedilotildees inicialmente desenvolvidas por Serge Berstein (1992) Tecemos

ainda algumas propostas de abordagem sobre esse conceito como possibilidades de estudo sobre a

formaccedilatildeo do pensamento poliacutetico republicano nos Estados Unidos e o desenvolvimento de uma cultura

poliacutetica americana

A Revoluccedilatildeo Americana eacute um evento de grande impacto nos rumos do pensamento poliacutetico durante o seacuteculo

XVIII Os colonos americanos

sabiam que eram um experimento mas estavam confiantes de que pelos proacuteprios esforccedilos

poderiam refazer sua cultura recriar o que eles pensavam e acreditavam Sua Revoluccedilatildeo

contou a eles que o nascimento de uma pessoa natildeo limitaria o que ela poderia se tornar

Repentinamente tudo parecia possiacutevel Os liacutederes Revolucionaacuterios se deparavam com a

incriacutevel tarefa de criar fora de sua heranccedila britacircnica sua proacutepria identidade nacional Eles

tiveram a oportunidade de realizar um mundo ideal de colocar em praacutetica os princiacutepios

amplos e tolerantes do Iluminismo [] (WOOD 2009 p 3-4)1

Situando-se no continente americano e sendo uma naccedilatildeo ainda natildeo reconhecida perante os Estados

europeus o pensamento poliacutetico norte-americano permanecia agraves margens das discussotildees e debates centrais

como o pensamento Iluminista mas isso natildeo significava que essas ideias natildeo pudessem escapadas da Europa

alcanccedilar tambeacutem a Ameacuterica

1 ldquoAmericans knew they were an experiment but they were confident they could by their own efforts remake their

culture re-create what they thought and believed Their Revolution told them that peoplersquos birth did not limit what they

might become

Suddenly everything seemed possible The Revolutionary leaders were faced with the awesome task of creating out of

their British heritage their own separate national identity They had an opportunity to realize an ideal world to put the

broadminded and tolerant principles of the Enlightenment into practice [hellip]rdquo

[180]

Uma das principais obras historiograacuteficas a aprofundar os fatores que levaram ao rompimento dos colonos

com sua metroacutepole e o desenvolvimento de um pensamento poliacutetico colonial americano foi a do historiador

Bernard Bailyn The ideological origins of the American Revolution (1967) Ele analisa a produccedilatildeo panfletaacuteria

desenvolvida nas Treze Colocircnias durante o seacuteculo XVIII passando pelos eventos que levaram a eclosatildeo do

conflito com a Inglaterra e chegando ateacute a formaccedilatildeo da constituiccedilatildeo americana

Sua tese eacute centrada em como esses panfletos representaram as origens ideoloacutegicas da Revoluccedilatildeo Americana

(BAILYN 1992 p x) Esse movimento natildeo foi espontacircneo ou fruto de uma situaccedilatildeo momentacircnea que acabou

se desenvolvendo em um conflito

O argumento as reivindicaccedilotildees e contra reivindicaccedilotildees os medos e as apreensotildees que

preenchiam os panfletos cartas jornais e papeacuteis do estado durante os anos revolucionaacuterios

foram de fato ouvidos atraveacutes do seacuteculo O problema natildeo aparecia para mim ser por que

aconteceu uma Revoluccedilatildeo mas sim como um explosivo amaacutelgama poliacutetico e ideoloacutegico

primeiro veio a ser agravado por que permaneceu tatildeo potente durante anos de

tranquilidade superficial e por que finalmente foi detonado no momento em que foi

(BAILYN 1992 p xv)2

O pensamento que motivou as accedilotildees e insatisfaccedilotildees coloniais foram sendo fomentados nas colocircnias pelo

proacuteprio pensamento poliacutetico inglecircs Isso se deve aos desdobramentos posteriores agrave Revoluccedilatildeo Gloriosa

(1688-1689) que efetivou a supremacia do Parlamento sobre os desiacutegnios do monarca intensificando os

debates acerca das novas disposiccedilotildees poliacuteticas que se apresentavam Para Bailyn a influecircncia do

pensamento poliacutetico inglecircs ndash principalmente do pensamento mais radical desenvolvido durante a Guerra

Civil Inglesa (1642-1649) e o periacuteodo Republicano inglecircs (1649-1660) ndash e as criacuteticas de poliacuteticos e opositores

ao governo britacircnico da virada para o seacuteculo XVIII (BAILYN 1992 p 34) seriam as principais influecircncias para

o movimento revolucionaacuterio americano

Precisamos evidenciar que mesmo que esse pensamento poliacutetico de origem inglesa seja a principal fonte de

inspiraccedilatildeo Bailyn natildeo deixa de citar outras influecircncias como o pensamento religioso de matriz puritana

(BAILYN 1992 p 32) os pensadores iluministas muito citados e discutidos nas rodas europeias (BAILYN

1992 p 26) e claro a influecircncia constante do pensamento claacutessico provenientes de textos gregos e latinos

(BAILYN 1992 p 23)

Essa obra de Bernard Bailyn se torna uma das bases para a compreensatildeo do pensamento poliacutetico norte-

americano sendo assim as prerrogativas dessas formulaccedilotildees poliacuteticas se encontram no radicalismo do

2 ldquoThe argument the claims and counter-claims the fears and apprehensions that fill the pamphlets letters newspapers

and state papers of the Revolutionary years had in fact been heard throughout the century The problem no longer

appeared to me to be simply why there was a Revolution but how such an explosive amalgam of politics and ideology

first came to be compounded why it remained so potent through years of surface tranquility and why finally it was

detonated when it wasrdquo

[181]

seacuteculo XVII chegando ateacute os opositores poliacuteticos no parlamento inglecircs do iniacutecio do seacuteculo XVIII Sem deixar

de constatar as influecircncias de outras correntes de pensamento que se apresentavam na geraccedilatildeo

revolucionaacuteria como as abstraccedilotildees iluministas a teologia puritana e as analogias claacutessicas (BAILYN 1992 p

53-54)

As anaacutelises de Bailyn sobre o uso dos panfletos trouxeram uma nova perspectiva para o debate da Histoacuteria

Poliacutetica dos Estados Unidos incentivando outros projetos que trabalhassem essa temaacutetica aleacutem de buscar

nas influecircncias inglesas uma prerrogativa para secessatildeo colonial Sob a luz da contribuiccedilatildeo que buscamos

desenvolver com nossa pesquisa trazendo as discussotildees que tecircm crescido acerca dos Estudos da Recepccedilatildeo

(MARTINDALE THOMAS 2006) suas aplicaccedilotildees dentro do contexto da Histoacuteria ameacuterica e pautados na

influecircncia da tradiccedilatildeo claacutessica (KALLENDORF 2007) apresentamos a criacutetica feita por Carl J Richard em sua

obra The founders and the classics Greece Rome and the American Enlightenment (1995) sobre o texto de

Bernard Bailyn

Richard alega que deixar a influecircncia do pensamento claacutessico fora das anaacutelises das origens do pensamento

poliacutetico americano eacute negligenciar um relevante aspecto de composiccedilatildeo social sobre a produccedilatildeo histoacuterica dos

Estados Unidos e dos principais membros da geraccedilatildeo revolucionaacuteria A criacutetica de Richard (1995 p 2) pode

ser definida sob duas premissas equivocadas de Bailyn

Uma foi a da total dependecircncia dos pais fundadores3 sobre os Whigs4 britacircnicos do seacuteculo

XVII e iniacutecio do XVIII em relaccedilatildeo agrave interpretaccedilatildeo da histoacuteria antiga motivado pelo

conhecimento claacutessico daqueles ser ldquosuperficialrdquo Existem evidecircncias abundantes de que

Thomas Jefferson John Adams James Madison James Wilson John Dickinson Patrick

Henry e numerosos outros fundadores leram e interpretaram obras claacutessicas por eles

mesmos Segundo Bailyn assume que a interpretaccedilatildeo Whig da histoacuteria antiga foi totalmente

proacutepria de seus membros Mas de fato essa interpretaccedilatildeo era largamente (ou totalmente)

a criaccedilatildeo de historiadores gregos e romanos aristocratas nostaacutelgicos descontentes pelas

disputas monaacuterquicas e democraacuteticas sobre o poder de suas classes Permanentes no cacircnon

claacutessico que dominou o mundo ocidental desde a Idade Meacutedia esses historiadores claacutessicos

foram efetivamente a uacutenica fonte de conhecimento sobre a histoacuteria antiga disponiacutevel no

seacuteculo XVIII5

3 Forma comum utilizada pela historiografia americana para chamar os principais envolvidos no processo de

Independecircncia das Treze Colocircnias e na formaccedilatildeo das estruturas poliacuteticas da nascente repuacuteblica 4 Uma das maneiras de denominar o grupo mais liberal de poliacuteticos presentes no parlamento inglecircs apoacutes a consolidaccedilatildeo

da Revoluccedilatildeo Gloriosa (1688-1689) Esse termo eacute muito utilizado na cultura anglo-saxocircnica para enfatizar grupos

liberais 5 ldquoOne was that the founders were entirely dependent upon seventeenth ndash and early eighteenth - century British Whigs

for their interpretation of ancient history because their own classical learning was ldquosuperficialrdquo But there is abounding

evidence that Thomas Jefferson John Adams James Madison James Wilson John Dickinson Patrick Henry and

numerous other founders read and interpreted classical works for themselves Second Bailyn assume that the Whig

interpretation of ancient history was entirely their own creation But in fact this interpretation was largely (though not

entirely) the creation of Greek and Roman historians nostalgic aristocrats disgruntled by monarchical and democratic

[182]

A obra de Bailyn considera a influecircncia do pensamento claacutessico apenas como um apoio como uma

sustentaccedilatildeo do pensamento radical inglecircs do seacuteculo XVII Mesmo tendo acertado que o pensamento inglecircs

norteia alguns temas e assuntos priorizados pelos revolucionaacuterios ele falha ao natildeo identificar que os

proacuteprios escritos claacutessicos foram os influenciadores do pensamento radical inglecircs

O pensamento claacutessico passou pelo que poderiacuteamos chamar de ldquoPermanecircnciardquo ou ldquoRecepccedilatildeordquo durante

seacuteculos chegando ao pensamento humanista do periacuteodo renascentista moderno e servindo de modelo para

os debates nos seacuteculos seguintes Na visatildeo de Charles Martindale (2006 p 1-2) podemos trabalhar com a

Recepccedilatildeo em diversas aacutereas das humanidades

Recepccedilatildeo dentro dos claacutessicos engloba todos os trabalhos relacionados com o material poacutes-

claacutessico muito do qual em outros departamentos de humanidades podem ser descritos com

outras denominaccedilotildees por exemplo histoacuteria acadecircmica histoacuteria do livro estudos de cinema

e miacutedia histoacuteria da performance estudos de traduccedilatildeo resposta do leitor e criacutetica da voz

pessoal estudos poacutes-coloniais medievais ou de neolatim []6

Os pensadores gregos e latinos se configuraram como canocircnicos na literatura europeia sendo identificados

como siacutembolos de virtude e de elevaccedilatildeo social por aqueles que podiam adentrar aos ciacuterculos de debates

Os studia humanitatis visavam natildeo apenas o domiacutenio de um estilo especiacutefico do Latim mas a

reivindicada superioridade dos antigos romanos sobre os estrangeiros (barbari) e na

Renascenccedila dos letrados sobre os natildeo-letrados ndash uma superioridade que era de uma soacute vez

econocircmica social e cultural (SCHEIN 2008 p 78)7

Em suma um texto natildeo fica limitado ao seu periacuteodo histoacuterico jaacute que a complexa cadeia de recepccedilotildees faz com

que esse texto seja compreendido de diversas maneiras atraveacutes da Histoacuteria (MARTINDALE 2006 p 4)

As matrizes para o desenvolvimento de um pensamento poliacutetico americano satildeo influenciadas ou ateacute mesmo

adaptadas pelo pensamento poliacutetico claacutessico atraveacutes por exemplo das noccedilotildees de democracia e da repuacuteblica

romana Ideias de organizaccedilatildeo poliacutetica virtude liberdade e representatividade permeiam por toda a

literatura revolucionaacuteria americana trazendo como modelos as concepccedilotildees da antiguidade Os conceitos

natildeo se mantiveram estaacuteveis por todos esses seacuteculos outras linhas e vertentes de epistemologia se

encroachments upon the power of their class Fixtures in the classical canon which had dominated the western world

since the Middle Ages these classical historians were virtually the sole source of the knowledge concerning ancient

history available in the eighteenth centuryrdquo 6 ldquoReception within classics encompasses all work concerned with postclassical material much of which in other

humanities departments might well be described under different rubrics for example history of scholarship history of

the book film and media studies performance history translation studies reader response and personal voice criticism

postcolonial studies medieval and Neo-Latin []rdquo 7 ldquoThe studia humanitatis aimed not only at mastery of a particular style of Latin but at a superiority claimed by the

ancient Romans over foreigners (barbari) and in the Renaissance by the educated over the uneducated ndash a superiority

that was at once economic social and culturalrdquo

[183]

desenvolveram e como natildeo haacute produccedilatildeo de discurso sem outras vozes sobrepostas novas linhas e correntes

surgiram e influenciaram outras uma vez que se pode ldquocompreender o discurso como objeto cultural

produzido a partir de certas condicionantes histoacutericas em relaccedilatildeo dialoacutegica com outros textosrdquo (FIORIN

2016 p 10)

Quando utilizamos o conceito de Recepccedilatildeo natildeo o fazemos de maneira estaacutetica como se o seu sentido fosse

transmitido de uma maneira imutaacutevel e como se aos colonos daquela eacutepoca bastasse compreender o seu

significado e aplicaacute-lo Trabalhamos os Estudos da Recepccedilatildeo de uma forma ativa por se tratar de um conceito

que tal qual o de ldquotradiccedilatildeordquo natildeo pode ser enclausurado de uma modo inflexiacutevel pois

No estudo da recepccedilatildeo assim como em qualquer lugar ldquotradiccedilatildeordquo natildeo deve ser invocada

defendida ou atacada como uma ideia Platocircnica mas deve ser vista como uma ferramenta

flexiacutevel para sugerir novas perspectivas em diferentes ocasiotildees e formas O conceito estaacute aiacute

para ser utilizado (BUDELMAN HAUBOLD 2008 p 25)8

Nosso objeto de anaacutelise se concentra sobre a figura de John Adams um dos pais fundadores dos Estados

Unidos da Ameacuterica indiviacuteduo extremamente atuante nos eventos que levaram agrave separaccedilatildeo das colocircnias e ao

desenvolvimento das estruturas governamentais propostas na constituiccedilatildeo de 1787 Adams eacute um

personagem histoacuterico complexo como muitos dos pais fundadores Sua trajetoacuteria poliacutetica eacute vasta sendo um

renomado advogado de Boston e criacutetico agraves posturas inglesas frente agraves colocircnias como quando escreveu A

dissertation on the Canon and the Feudal law e Instructions of the town of Braintree to their representatives ambas

no ano de 1765 advertindo sobre os perigos da retirada de direitos e do principal fundamento da

constituiccedilatildeo inglesa o consenso (THOMPSON 2000 p 28) Adams foi um membro importante do

Congresso Continental da Filadeacutelfia realizado no ano de 1775 com o intuito de organizar as representaccedilotildees

das colocircnias frente aos ingleses Ele foi um dos principais articuladores da aprovaccedilatildeo da Declaraccedilatildeo de

Independecircncia sendo que suas falas foram consideradas providenciais para o convencimento dos outros

representantes Adams registrou em seu diaacuterio que sua eloquecircncia nesses debates seria comparada somente

a de Demoacutestenes durante as Filipiacutecas9 e aos discursos de Ciacutecero nas Catilinaacuterias10 (FARREL 1989 p 520)

Durante os anos da Guerra de Independecircncia Adams serviu de diplomata na Franccedila Holanda e

posteriormente para os acordos de paz Inglaterra Foi eleito vice-presidente de George Washington por oito

anos sendo eleito em seguida como segundo presidente dos Estados Unidos Nesse momento sua carreira

8 ldquoIn the study of reception as indeed elsewhere lsquotraditionrsquo should not be invoked defended or attacked as a Platonic

idea but should be seen as a pliable tool for suggesting new perspectives in different ways on different occasions The

concept is there for the takingrdquo 9 Um conjunto de discursos proferidos por Demoacutestenes contra Felipe II da Macedocircnia conclamando os atenienses a

lutar contra ele jaacute que representava uma ameaccedila agrave Greacutecia 10 Uma seacuterie de quatro discursos ceacutelebres de Ciacutecero pronunciados em 63 aC Satildeo uma denuacutencia contra a conspiraccedilatildeo

pretendida pelo senador Luacutecio Seacutergio Catilina

[184]

poliacutetica encontra uma seacuterie de entraves Adams perde a disputa presidencial para Thomas Jefferson e no

ano de 1812 decide se retirar da vida puacuteblica John Adams11 dedicou sua vida aos debates puacuteblicos e

poliacuteticos formando junto com uma seacuterie de outros homens a chamada geraccedilatildeo revolucionaacuteria como aponta

a obra Revolutionary Characters What made the founders different (2006) de Gordon Wood

A geraccedilatildeo revolucionaacuteria foi o ponto de partida para o desenvolvimento da repuacuteblica americana e

consequentemente de uma corrente poliacutetica que se estruturou a partir de meados do seacuteculo XVIII e

continuou durante o XIX Essa corrente de pensamento poliacutetico tem como fundamento as concepccedilotildees da

repuacuteblica romana Para essa geraccedilatildeo a Repuacuteblica Romana

representa o primeiro exemplo em nossa histoacuteria de um governo constitucional operando

em larga escala durante seacuteculos Teve que lidar com problemas e dilemas poliacuteticos e sociais

sem precedentes em estilo e magnitude Produziu novos modelos de lei de governo que

permanentemente afetou as caracteriacutesticas das democracias ocidentais Seu legado eacute uma

das mais duradouras influecircncias da antiguidade (MITCHEL 2001 p 128)12

A construccedilatildeo desse pensamento poliacutetico norte-americano e sua fundaccedilatildeo passam pelos elementos claacutessicos

devido ao processo de formaccedilatildeo educacional O sistema de ensino do seacuteculo XVIII americano eacute a base dessa

influecircncia sendo que sua origem se relaciona aos sistemas desenvolvidos pelos ingleses durante o seacuteculo

XVI permanecendo imutaacuteveis ateacute o seacuteculo XIX (MAHONEY 1958 p 93 RICHARD 1995 p 12)

O acesso agrave educaccedilatildeo naquela eacutepoca natildeo era algo simples dava-se de uma maneira privada muitas vezes com

um tutor ou escolas gramaticais e posteriormente poderia ser aprimorado nas universidades sendo a base

de todos os estudos o conhecimento e aprendizado do latim e em alguns casos do grego (RICHARD 1995

p 13) Muitos dos pais fundadores passaram por esses mesmos sistemas educacionais O curriacuteculo era

basicamente o mesmo sendo a retoacuterica e a oratoacuteria dois pontos centrais na difusatildeo das obras claacutessicas desde

o periacuteodo colonial combinando-se com o desenvolvimento de uma cultura americana e levando agrave

compactaccedilatildeo dos valores poliacuteticos e sociais que viriam a ser discutidos nos anos revolucionaacuterios como

aponta James Farrell (2011 p 416)

Teoria e praacutetica da retoacuterica claacutessica eram fundamentadas na suposiccedilatildeo de que um discurso

puacuteblico eloquente era uma necessidade praacutetica para uma sociedade livre Tais modelos e

11 Para um aprofundamento maior sobre a vida e os feitos de John Adams conferir a obra de McCullough (2001) 12 ldquoIn summary the Roman Republic represents the first example in our history of constitutional government operated

on a grand scale and extending over centuries It had to contend with social and political issues and dilemmas

unprecedented in kind and in magnitude It produced new modes of law and government that have permanently affected

the character of Western democracies Its legacy is one of the most enduring influences of antiquityrdquo

[185]

doutrinas apelavam para uma comunidade poliacutetica construiacuteda sobre a afirmaccedilatildeo de uma

independecircncia nacional e liberdade pessoal13

A influecircncia das obras claacutessicas era perpetrada por diversas razotildees fossem por motivos acadecircmicos

poliacuteticos ou ateacute mesmo pelo lazer elas eram comuns e faziam parte de um certo condicionamento social

dessa eacutepoca Toda a geraccedilatildeo revolucionaacuteria foi influenciada de maneira direta ou indireta ativa ou passiva

por obras da antiguidade grega e latina Dessa maneira as interpretaccedilotildees desses homens sobre os conceitos

e ideias principalmente acerca da repuacuteblica romana influenciaram as construccedilotildees poliacuteticas que se

desenvolveram nas Treze Colocircnias nos anos seguintes Essa construccedilatildeo social levou os envolvidos nos

eventos revolucionaacuterios tendo eles reconhecido isso ou natildeo agrave ideia de que

eles mesmos foram condicionados pela sua sociedade como um todo pelo sistema

educacional em particular a venerar os claacutessicos Os fundadores foram condicionados ainda

crianccedilas a associar as obras de certos autores republicanos agrave virtude social e pessoal Esse

condicionamento social foi tatildeo bem-sucedido que deixou muitos dos fundadores incapazes

de imaginar o ensinamento da virtude independente do ensino dos claacutessicos e

consequentemente fez a transmissatildeo dessa heranccedila claacutessica um assunto urgente Ateacute

mesmo na ldquoEra da Razatildeordquo a tradiccedilatildeo triunfou (RICHARD 1995 p 38)14

Importante salientar apoacutes essa anaacutelise de Richard que tendemos a enxergar o termo ldquotradiccedilatildeordquo sendo

utilizado como uma fonte de conhecimentos acessiacuteveis aos criadores das configuraccedilotildees poliacuteticas americanas

ndash como jaacute propomos com Budelman e Haubold (2008 p 25) ndash e natildeo como uma acepccedilatildeo fechada que foi

transmitida atraveacutes dos seacuteculos de uma maneira imutaacutevel ateacute ser compreendida em sua essecircncia pelos pais

fundadores

O foco de nossa pesquisa nos leva a abordar os caminhos da Recepccedilatildeo dos pensamentos claacutessicos na

Revoluccedilatildeo Americana com o foco direcionado para a influecircncia de Ciacutecero em John Adams Tendo visto o

desenvolvimento dessa base claacutessica no desenrolar de um pensamento poliacutetico americano refletimos sobre

o desdobrar de uma Cultura Poliacutetica que se forma nos Estados Unidos no seacuteculo XVIII Ao pensarmos nessa

cultura poliacutetica estamos nos baseando nas anaacutelises iniciadas por Serge Berstein (1992) de forma que

pensemos as possibilidades de aplicaccedilatildeo e ampliaccedilatildeo das anaacutelises sobre a formaccedilatildeo histoacuterica de um

pensamento poliacutetico proacuteprio norte-americano

13 ldquoClassical rhetorical theory and practice were grounded on the assumption that eloquent public speech was a practical

necessity in a free society Such doctrines and models appealed to a political community built upon the assertion of

national independence and personal libertyrdquo 14 ldquo[hellip] That they themselves had been conditioned by their society as a whole and by their educational system in

particular to venerate the classics The founders were conditioned as children to associate the works of certain ancient

republican author with personal and societal virtue This social conditioning was so successful that it left many of the

founders unable to imagine the teaching of virtue independent of the teaching of the classics and consequently made

the transmission of the classical heritage an urgent concern Even in the lsquoAge of Reasonrsquo tradition triumphedrdquo

[186]

Ao traccedilarmos uma linha da construccedilatildeo das definiccedilotildees sobre Cultura Poliacutetica podemos partir das deacutecadas de

1950 e 1960 nas quais o conceito passa a ser empregado com a motivaccedilatildeo de que era preciso ldquocompreender

melhor a origem dos sistemas poliacuteticos democraacuteticos partindo da percepccedilatildeo da insuficiecircncia dos paradigmas

iluministas que viam o homem como ator poliacutetico racionalrdquo (MOTTA 2009 p 16) Esses questionamentos

partem do campo das ciecircncias sociais tendo Gabriel Almod e Sidney Verba como seus principais porta-vozes

nesse contexto O conceito de Cultura Poliacutetica passa a ser utilizado pelos historiadores por volta dos anos

1980 e 1990 com os debates em torno das criacuteticas feita agrave escola dos Annales O historiador Reneacute Remond

em sua obra Por uma Histoacuteria Poliacutetica (1996) propotildee um retorno do campo do poliacutetico para as anaacutelises

historiograacuteficas portanto

esse movimento de recuperaccedilatildeo e renovaccedilatildeo da histoacuteria poliacutetica implicou a incorporaccedilatildeo de

novas ideias e conceitos que afirmavam a natildeo limitaccedilatildeo do poliacutetico ao fato agrave dimensatildeo do

tempo curto Eacute justamente neste sentido que a apropriaccedilatildeo do conceito de cultura poliacutetica eacute

apresentada como ldquorenovadorardquo para a histoacuteria poliacutetica na medida em que lhe possibilita

superar o fato e entrar em contato com fenocircmenos duradouros e estaacuteveis no tempo

(NEacuteSPOLI 2015 p 363)

Essa nova perspectiva natildeo pretendia se manter atrelada aos assuntos pertinentes agraves questotildees do Estado ou

das suas instituiccedilotildees passando assim a abordar as massas as associaccedilotildees civis os meios de comunicaccedilatildeo

enfim o poder definido principalmente em suas bases sociais e culturais (NEacuteSPOLI 2015 p 365

RONSANVALLON 1995)

Essas novas perspectivas abrem a exploraccedilatildeo do campo do poliacutetico e no centro dessas novas abordagens

estaacute o conceito de Cultura Poliacutetica Para nos aprofundarmos nas abordagens sobre esse conceito e

debatermos possibilidades de uma breve anaacutelise sobre o contexto norte-americano trabalhamos com a

definiccedilatildeo proposta por Serge Berstein (2009 p 31) de que

Os historiadores entendem por cultura poliacutetica um grupo de representaccedilotildees portadoras de

normas e valores que constituem a identidade das grandes famiacutelias poliacuteticas e que vatildeo muito

aleacutem da noccedilatildeo reducionista de partido poliacutetico Pode-se concebecirc-la como uma visatildeo global

do mundo e de sua evoluccedilatildeo do lugar em que ocupa o homem e tambeacutem da proacutepria

natureza dos problemas relativos ao poder visatildeo que eacute partilhada por um grupo importante

da sociedade num dado paiacutes e num dado momento da sua histoacuteria

Eacute uma definiccedilatildeo bastante ampla sobre as possibilidades de se trabalhar com tal conceito por isso algumas

ressalvas precisam ser feitas A noccedilatildeo de Cultura Poliacutetica estaacute em conexatildeo com a cultura global de uma

sociedade poreacutem natildeo se confunde totalmente com ela jaacute que seu campo de accedilatildeo se pauta sobre as questotildees

poliacuteticas (BERSTEIN 1998 p 352) Ao utilizarmos essa conceituaccedilatildeo natildeo podemos cair na perspectiva de

alcanccedilar uma cultura poliacutetica nacional No interior de um paiacutes existe uma gama de culturas poliacuteticas que

possuem valores compartilhados mas representam uma variedade de discursos em disputa (BERSTEIN

1998 p 354)

[187]

Uma outra ressalva que devemos fazer eacute natildeo pensarmos no conceito como uma categoria de hierarquizaccedilatildeo

entre as culturas poliacuteticas dentro de um paiacutes ou ateacute mesmo em comparaccedilatildeo com outros Principalmente

quando colocamos em perspectiva uma anaacutelise que pode nos encaminhar para uma visatildeo em que as

democracias ocidentais seriam modelos idealizados e representantes da modernizaccedilatildeo das sociedades

como se existisse uma escala entre as diversas concepccedilotildees poliacuteticas e o modelo democraacutetico ocidental

representasse seu objetivo uacuteltimo (BERSTEIN 1998 p 352)

Por ser um conceito com uma acepccedilatildeo bem diversa natildeo podemos pensar que as diferentes culturas poliacuteticas

dentro de uma sociedade satildeo estanques ldquocomo se estivessem encerradas dentro de si mesmas e imunes ao

contato com as outras concorrentes na disputa pelo espaccedilo puacuteblico e pelo controle do Estadordquo (MOTTA

2009 p 22)

O foco para analisar a formaccedilatildeo de uma determinada cultura poliacutetica reside principalmente em

compreender como determinado comportamento poliacutetico se configurou e prevaleceu em um determinado

contexto a partir de questionamento como que possibilidades levaram a essas determinaccedilotildees e quais foram

as suas consequecircncias Assim a formaccedilatildeo de uma cultura poliacutetica acaba por se definir como um fenocircmeno

individual interiorizado pelo homem e um fenocircmeno coletivo partilhado por grupos numerosos (BERSTEIN

1998 p 360)

Enquanto fenocircmeno poliacutetico natildeo podemos enxergar a Revoluccedilatildeo Americana como um evento

monocromaacutetico Jaacute apontamos brevemente duas perspectivas para se analisar as origens do pensamento

poliacutetico americano uma pelo vieacutes da influecircncia do pensamento radical inglecircs do seacuteculo XVII e da virada para

o XVIII como foi apontado por Bernard Bailyn (1967) em contraposiccedilatildeo com a predominacircncia da influecircncia

do pensamento republicano claacutessico como a obra de Carl J Richard (1995) busca nos orientar

Pensando em outras perspectivas de anaacutelises evidenciando uma das perspectivas apontadas tanto por

Berstein quanto por Motta haveria uma determinada mudanccedila de paradigma entre o periacuteodo revolucionaacuterio

e os primeiros anos da formaccedilatildeo das estruturas poliacuteticas nacionais dos Estados Unidos As obras de Joyce

Appleby (1992) e Gordon S Wood (1969) apontam que houve nos anos inicias da naccedilatildeo uma ldquovirada do

lsquorepublicanismo claacutessicorsquo que enfatizava cidadania e coesatildeo social para um lsquoliberalismorsquo (ou lsquorepublicanismo

modernorsquo) que ansiava por direitos individuais e um mercado autorreguladordquo (RICHARD 1995 p 3)15

mostrando como as caracteriacutesticas de uma cultura poliacutetica mais predominante podem adaptar-se agraves

mudanccedilas experimentadas pelas sociedades ao longo do tempo (MOTTA 2009 p 22)

15 ldquoa shift from lsquoclassical republicanismrsquo which emphasized civic duty and social cohesion to lsquoliberalismrsquo (or lsquomodern

republicanismrsquo) which stressed individual rights and the self-regulating marketplacerdquo

[188]

Devido agrave efervescecircncia das questotildees poliacuteticas durante a segunda metade do seacuteculo XVIII nas Treze Colocircnias

a possibilidade de se trabalhar com o conceito de Cultura Poliacutetica eacute vasta Uma das propostas apontadas por

Motta eacute ldquoa existecircncia de vetores sociais responsaacuteveis pela reproduccedilatildeo das culturas poliacuteticasrdquo (MOTTA 2009

p 23) A pesquisa que temos em andamento sobre como o pensamento do estadista romano Ciacutecero foi

determinante para o desenvolvimento das concepccedilotildees poliacuteticas e ciacutevicas de John Adams perpassa pela

anaacutelise desses vetores sociais Serge Berstein (1998 p 356) chama esses vetores de ldquocanais da socializaccedilatildeo

da poliacutetica tradicionalrdquo por meio dos quais ele aponta possiacuteveis exemplos da manifestaccedilatildeo desses canais

em primeiro lugar a famiacutelia onde a crianccedila recebe mais ou menos um conjunto de normas

de valores de reflexotildees que constituem sua primeira bagagem poliacutetica que conservaraacute

durante a vida ou rejeitaraacute quando adulto Depois outros como escola liceu universidades

Quando analisamos o contexto em que John Adams viveu percebemos claramente essas influecircncias O

aspecto da religiatildeo junto com o da famiacutelia se apresenta como um possiacutevel elemento para essa formulaccedilatildeo

poliacutetica de Adams Seu pai foi um diaacutecono na cidade de Braintree mas cumpriu com sua participaccedilatildeo

enquanto cidadatildeo Em uma carta escrita ao amigo Benjamin Rush no ano de 1812 Adams16 se questiona

O que preservou essa raccedila dos Adams em todas as suas ramificaccedilotildees em nuacutemeros sauacutede

paz conforto e mediocridade Eu acredito que a religiatildeo sem a qual teriam se tornado

libertinos presunccedilosos eacutebrios apostadores passariam fome congelariam com o frio

escalpelado pelos iacutendios etc etc etc teriam sucumbido e desaparecidohellip (MCCULLOUGH

2001 p 30)17

O pensamento dos pais fundadores eacute complexo alguns inclusive ldquoalgumas vezes interpretavam a virtude

claacutessica pela luz do cristianismordquo (RICHARD 1995 p 7) e essa complexidade se transmite no entendimento

que podemos levar sobre o desenrolar de culturas poliacuteticas estadunidenses na segunda metade do seacuteculo

XVIII

As perspectivas abertas pela Nova Histoacuteria Poliacutetica satildeo vastas ao nos depararmos com um periacuteodo tatildeo feacutertil

quanto o processo que culminou na Revoluccedilatildeo Americana e no desenvolvimento das suas estruturas e

instituiccedilotildees poliacuteticas que serviram de exemplo para diversos modelos republicanos a posteriori O campo da

Histoacuteria Poliacutetica agora renovado possui possibilidades a serem exploradas inclusive quando buscamos

outras perspectivas de possibilidades teoacutericas como as propostas pelos Estudos da Recepccedilatildeo seguindo as

perspectivas propostas por Charles Martindale (1992 2006) Esboccedilamos apenas alguns apontamentos que

precisam de uma maior profundidade em um trabalho de focirclego uma vez que as possibilidades para essas

anaacutelises satildeo diversas

16 John Adams to Benjamin Rush July 19 1812 Adams Papers Massachusetts Historical Society 17 ldquoWhat has preserved this race of Adamses in all their ramifications in such numbers health peace comfort and

mediocrity I believe it is religion whitout wich they would have been rakes fops sots gamblers starved with hunger

or frozen with cold scalped by Indians etc etc etc been melted away an disappearedhelliprdquo

[189]

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de Heroacutedoto foram o Rāmāyana

da Heacutelade o helenismo de Friedrich Max Muumlller

Matheus Vargas de Souza

matheussagravgmailcom

A citaccedilatildeo que daacute nome a esta apresentaccedilatildeo e tiacutetulo a este texto foi

extraiacuteda de uma das muitas obras de Friedrich Max Muumlller (1860

p 17) Agrave medida em que os temas deste volume satildeo a traduccedilatildeo e a

recepccedilatildeo parece relevante trazer para a discussatildeo uma figura tatildeo

proliacutefica nos estudos relativos agrave cultura indiana Eacute verdade que o

autor em questatildeo foi responsaacutevel pela divulgaccedilatildeo de dezenas de

textos em sacircnscrito bem como pela cristalizaccedilatildeo de determinadas

visotildees a respeito da cultura indiana da Antiguidade e por esta

razatildeo natildeo parece pertinente a um compecircndio dedicado aos

Estudos Claacutessicos ao menos imediatamente Esperamos mostrar

no entanto que foi entre outras coisas atraveacutes da recepccedilatildeo dos

claacutessicos que Muumlller estabeleceu suas interpretaccedilotildees a respeito da

Iacutendia Antiga e atraveacutes delas empenhou-se em divulgar traduccedilotildees

dos textos indianos para o Ocidente europeu do seacuteculo XIX Para

nosso objetivo limitar-nos-emos a discutir as ideias apresentadas

por Muumlller em um de seus textos que mais dialogam com a cultura

claacutessica no qual ele evidencia muitas das perspectivas que

acompanharam toda sua produccedilatildeo e a de seus seguidores

[191]

Friedrich Max Muumlller nasceu em Dessau na Alemanha no ano de 1823 Tinha aptidatildeo para a muacutesica mas foi

dissuadido de seguir a carreira por Felix Mendelssohn Decidiu entatildeo se dedicar agraves Letras Claacutessicas Estudou

na Universidade de Leipzig onde teve contato com disciplinas como Hebraico Aacuterabe Psicologia

Antropologia mas por intermeacutedio de Hermann Brockhauss ndash primeiro a ocupar a cadeira de Sacircnscrito

naquela universidade ndash Muumlller foi persuadido a se dedicar aos textos da Iacutendia Antiga Aos vinte anos de

idade motivado em seus estudos por Brockhauss publicou uma traduccedilatildeo do Hitopadesha compecircndio de

faacutebulas indianas Chegou a frequentar as aulas de Franz Bopp fundador da filologia comparada e as do

filoacutesofo Friedrich Schelling Em 1845 quando foi de Berlim a Paris Eugegravene Burnouf o encorajou a produzir

uma editio princeps do Rig Veda como de fato o fez alguns anos depois com a ajuda de Hayman Wilson e o

apoio da Companhia das Iacutendias Orientais Dali por diante Muumlller se dedicou agrave vasta produccedilatildeo a respeito da

cultura indiana sendo o responsaacutevel pela ediccedilatildeo da monumental coleccedilatildeo The Sacred Books of the East atraveacutes

da qual foram divulgadas traduccedilotildees de dezenas de textos da Iacutendia Antiga entre meados do seacuteculo XIX e o

iniacutecio do XX vale reforccedilar que a atuaccedilatildeo intelectual de Muumlller se deu quase em sua totalidade no espaccedilo do

Impeacuterio Britacircnico tendo lecionado nas universidades de Glasgow e Oxford recusando inclusive convite para

lecionar na receacutem-criada Universidade de Estrasburgo (MACDONELL 1901 p 151-157)

Por enquanto estabelecemos entatildeo que Max Muumlller foi uma autoridade na aacuterea de estudos indianos

atuando como filoacutelogo acima de tudo Foi tambeacutem o responsaacutevel por um vasto processo de traduccedilatildeo e

divulgaccedilatildeo da cultura indiana em um primeiro momento para o Impeacuterio Britacircnico e na sequecircncia com alcance

ampliado Escreveu sobre a literatura indiana e sua histoacuteria bem como foi responsaacutevel pela criaccedilatildeo de um

novo meacutetodo de estudos sobre a religiatildeo antiga enquanto Ciecircncia da Religiatildeo atraveacutes da chamada Mitologia

Comparada (ELIADE 2010 [1957] p 11 RIES 2017 [1982] p 111-113) Haacute muito mais que poderiacuteamos

falar sobre Max Muumlller para aleacutem dessa resumida biografia mas as informaccedilotildees de que dispomos jaacute satildeo

suficientes para nosso propoacutesito Neste artigo olharemos com bastante atenccedilatildeo para apenas um de seus

textos

Em 1859 Muumlller publicou sua Histoacuteria da Antiga Literatura Sacircnscrita na qual buscou fazer um balanccedilo das

fontes disponiacuteveis para tentar construir uma histoacuteria coerente para a literatura da Iacutendia Antiga No livro

elaborou um vasto capiacutetulo introdutoacuterio em que esclareceu seu pensamento a respeito da literatura e

cultura indiana dentro do que entendia pela categoria de raccedila ariana Efetivamente Muumlller se dedicou a

pensar a respeito dos povos indo-europeus arianos em sua nomenclatura comparando algumas culturas e

lanccedilando maior atenccedilatildeo agrave indiana no intuito de melhor classificaacute-la Perceberemos que nesse texto Muumlller

revela de forma mais niacutetida o uso dos ldquoclaacutessicosrdquo especialmente dos gregos como modelo comparativo

categorizante Eacute atraveacutes desse criteacuterio claacutessico logo ocidental logo europeu logo civilizado que a leitura da

cultura indiana fica necessariamente comprometida seja deliberadamente ou natildeo

[192]

Max Muumlller inicia o texto relembrando o trabalho de William Jones e a importacircncia de seus esforccedilos como

pioneiro nas traduccedilotildees do Sacircnscrito no mundo europeu esforccedilos que Muumlller denomina como ldquoponto de

partida da filologia sacircnscritardquo (MUumlLLER 1860 [1859] p 1) Aleacutem disso ele comenta como uma profusatildeo de

intelectuais ndash divididos entre historiadores filoacutelogos e filoacutesofos ndash havia se voltado para a bem preservada

literatura indiana a seu tempo e que a presenccedila de tal literatura jaacute oferecia por si soacute um impulso para os

estudos a seu respeito assim como a presenccedila de uma ampla produccedilatildeo a seu respeito impulsionava os

esforccedilos no campo da filologia comparada (MUumlLLER 1860 [1859] p 1-2)

Em pouco menos de meio seacuteculo o sacircnscrito ganhou seu proacuteprio lugar na repuacuteblica do ensino lado a lado com o grego e o latim Os privileacutegios que essas duas liacutenguas gozam no sistema educacional da Europa moderna vatildeo gradualmente ser compartilhados com o sacircnscrito Mas [] ningueacutem que deseje estudar a histoacuteria daquele ramo da humanidade da qual noacutes mesmos pertencemos e descobrir nos primeiros germes da linguagem religiatildeo e mitologia de nossos antepassados a sabedoria drsquoEle que natildeo eacute o Deus apenas dos judeus pode no futuro dispensar algum conhecimento a respeito da liacutengua e da antiga literatura da Iacutendia (MUumlLLER 1860 p 2-3)1

Muumlller desta forma procurava reafirmar seu campo de estudos em rivalidade com as Letras Claacutessicas mas

algo que demonstra jaacute desde o princiacutepio de suas reflexotildees eacute seu intenso envolvimento pessoal com a religiatildeo

e a ponte direta e nada mascarada que evidenciava em seu estudo da literatura e religiatildeo indiana Muumlller era

um protestante bastante assiacuteduo e se propunha a desvendar saberes milenares de povos antigos em parte

para encontrar a sabedoria divina no fazer humano e as raiacutezes da histoacuteria humana dentro de uma linha cristatilde

(OLIVEIRA 2010 p 24-25)2 Mais adiante veremos com muita clareza que a relaccedilatildeo de Muumlller com suas

pesquisas era natildeo apenas cientiacutefica ou erudita mas espiritual

Seguindo em seu raciociacutenio Max Muumlller procurou defender que os esforccedilos sobre o Sacircnscrito eram ainda

recentes e maiores dado que as Letras Claacutessicas vinham sendo estudadas haacute mais tempo e que os

renascentistas aleacutem de serem homens extraordinaacuterios tiveram o auxiacutelio de gregos refugiados na Itaacutelia no

estudo da literatura helecircnica Curiosamente Muumlller fez uma comparaccedilatildeo direta entre esses gregos

refugiados e os bracircmanes de seu tempo estes dificilmente estavam dispostos a auxiliar com traduccedilotildees e

informaccedilotildees valiosas quando natildeo eram enganadores incapazes de conduzir um sentido histoacuterico agrave literatura

1 Todas as traduccedilotildees de Muumlller aqui apresentadas satildeo de nossa autoria ldquoIn little more than half a century Sanskrit has gained its proper place in the republic of learning side by side with Greek and Latin The privileges which these two languages enjoy in the educational system of modern Europe will scarcely ever be shared by Sanskrit But [] no one who desires to study the history of that branch of mankind to which we ourselves belong and to discover in the first germs of the language religion and mythologie of our forefathers the wisdom of Him who is not the God of the Jews only can for the future dispense with some knowledge of the language and ancient literature of Indiardquo 2 Muumlller chegou a defender ldquoque Jafeacute filho de Noeacute teria partido rumo agrave Iacutendia depois da dispersatildeo das naccedilotildees apoacutes a construccedilatildeo da Torre de Babel Para fazer jus agraves genealogias biacuteblicas e considerando que o Buddha histoacuterico propagou sua filosofia aproximadamente em 500 aC restava-lhe datas os Vedas entre 1500 e 500 aC para fazer valer a histoacuteria biacuteblicardquo (OLIVEIRA 2010 p 25) perspectiva que natildeo se sustenta uma vez que Muumlller se valeu de um meacutetodo especulativo de sobreposiccedilotildees de camadas linguiacutesticas (glottochronology) que natildeo eacute aceito atualmente pela constataccedilatildeo de que as liacutenguas mudam aleatoriamente sem sistemas esquematizados preacute-definidos (OLIVEIRA 2010 p 25)

[193]

mas apenas filosoacutefico-religioso Segundo ele aleacutem disso a literatura grega tambeacutem contava por si soacute com

Homero Heroacutedoto e Tuciacutedides o que naturalmente facilitaria os estudos a seu respeito (MUumlLLER 1860

[1859] p 3-4) Sem esclarecer muito bem o que quer dizer com isso mas dando a entender jaacute de antematildeo

algum valor maior conferido agraves obras dos autores gregos dentro de uma perspectiva histoacuterica ele criticou a

ausecircncia de estudos sistemaacuteticos da literatura sacircnscrita e retomou as colocaccedilotildees de Niebuhr como exemplo

de que a filologia deveria ser amplamente empregada nos estudos relativos agraves fontes antigas indianas O

ponto de Muumlller eacute que diferentemente de Niebuhr que se absteve de falar da Iacutendia por conta da ausecircncia de

criacutetica filoloacutegica consistente das fontes outros historiadores de seu tempo eventualmente se propunham a

fazer consideraccedilotildees sobre dado momento da histoacuteria da Iacutendia utilizando fontes que natildeo necessariamente

pertenciam ao periacuteodo que estudavam (MUumlLLER 1860 [1859] p 4-6) Eacute neste momento que o autor

estabelece uma maacutexima verdadeiramente tragicocircmica ldquoNenhuma naccedilatildeo foi a este respeito tratada mais

injustamente que a Iacutendiardquo (MUumlLLER 1860 [1859] p 6)3 O ponto eacute coerente muito foi dito sobre a Iacutendia sem

qualquer precisatildeo histoacuterica sem qualquer estudo concreto das fontes No entanto veremos que Muumlller natildeo

foi tatildeo mais justo com os indianos quanto pensava

Sua criacutetica entatildeo se volta aos acadecircmicos

[] nos estudos do grego e do latim a distinccedilatildeo entre conhecimento uacutetil e inuacutetil quase desapareceu e os objetos reais do estudo destas antigas liacutenguas tem sido quase totalmente perdido Mais da metade das publicaccedilotildees dos classicistas tecircm tratado apenas de impedir nosso acesso agraves grandes obras [master-works] dos antigos [] Um espiacuterito similar infectou a filologia sacircnscrita [] Conhecimento que natildeo tem objetivo para aleacutem de si mesmo eacute na maioria dos casos mero pretexto para vaidade [] A teste de um verdadeiro acadecircmico eacute ser capaz de encontrar o que eacute realmente importante [] O objetivo e alvo da filologia em seu mais elevado sentido eacute apenas um - aprender o que o homem eacute aprendendo o que o homem tem sido (MUumlLLER 1860 p 7-8)4

Eacute a partir daqui que Max Muumlller comeccedila a desenhar o cerne de seu pensamento a respeito da proacutepria

produccedilatildeo e do sentido do estudo dos antigos indianos Com efeito o que ele defende eacute que a filologia tem um

compromisso de aproximar o ser humano de suas origens e deste modo de sua natureza Tornamos a ver os

transbordos da relaccedilatildeo espiritual e religiosa que Max Muumlller tinha com seu proacuteprio trabalho os estudos das

sociedades antigas natildeo podem se perder em questotildees demasiado especiacuteficas e pontuais mas devem

responder a demandas universalizantes e edificantes da sociedade moderna O que estaacute por traacutes destas

colocaccedilotildees no entanto eacute que ele estaacute se referindo a si proacuteprio como modelo Desta forma os estudos do

sacircnscrito assim como os do grego e do latim deveriam seguir os meacutetodos de Muumlller segundo sua loacutegica E

3 ldquoNo nation has in this respect been more unjustly treated than the Indiardquo 4 ldquo[] in Greek and Latin scholarship the distinction between useful and useless knowledge has almost disappeared and the real objects of the study of these ancient languages have been well nigh forgotten More than half of the publications of classical scholars have tended only to impede our access to the master-works of the ancients [] A similar spirit has infected Sanskrit philology [] Knowledge which has no object beyond itself is in most cases but a pretext for vanity [] The test of a true scholar is to be able to find out what is really important [] The object and aim of philology in its highest sense is but one - to learn what man is by learning what man has beenrdquo

[194]

que meacutetodos satildeo estes Aqueles que foram aparecendo pouco a pouco e todas as suas obras quando

continuamente sequestrava os textos da Antiguidade indiana e os cristalizava como fontes para o estudo das

relaccedilotildees espirituais do homem com o mundo e em uacuteltima anaacutelise com Deus Em um momento futuro

pretendemos nos dedicar com mais afinco agrave ideia que adiantamos de que Max Muumlller foi um dos principais

responsaacuteveis pelo estigma filosoacutefico-religioso que circunscreveu a literatura sacircnscrita dentro dos estudos de

mitologia comparada e afins ao menos no mundo moderno porque se natildeo foi de longe o primeiro a difundir

a ideia de que os indianos natildeo tecircm Histoacuteria e historiografia impulsionou fortemente tal ideia atraveacutes de suas

dezenas de obras e alunos Retomando nosso objetivo limitamo-nos a esclarecer que Muumlller se propocircs a

trabalhar de maneira histoacuterica e tal qual um Tuciacutedides a depurar a literatura sacircnscrita disponiacutevel no intuito

de extrair a Histoacuteria da Antiguidade indiana possiacutevel atraveacutes de uma cronologia para a literatura veacutedica

(MUumlLLER 1860 [1859] p 8-10 64)

O principal objetivo dos ensaios seguintes seraacute colocar a antiguidade do Veda em sua luz proacutepria Por antiguidade no entanto eacute entendido natildeo apenas a distacircncia cronoloacutegica da eacutepoca do Veda para nossa proacutepria [] mas tambeacutem e ainda mais a distacircncia entre o estado intelectual moral e religioso dos homens como representado a noacutes durante a eacutepoca veacutedica comparada com aquela de outros periacuteodos da histoacuteria - uma distacircncia que pode ser medida apenas pelas revoluccedilotildees e o progresso da mente humana (MUumlLLER 1860 [1859] p 11)5

Curiosamente apoacutes se reportar agrave ideia de diferentes grupos eacutetnico-linguiacutesticos ou em seus termos

diferentes raccedilas (arianos semitas e turanianos) Muumlller defendeu que o grupo hindu subdivisatildeo da chamada

raccedila ariano teria sido o uacuteltimo a dispersar (MUumlLLER 1860 [1859] p 14) Defendemos que isso gera

automaticamente a primeira impressatildeo de que seus membros seriam estaacuteticos inertes atrasados desde os

primoacuterdios mais originais Ele tambeacutem defendeu que hindus gregos e alematildees seriam um ramo agrave parte no

grupo indo-europeu dadas as supostas particularidades de suas linguagens que Muumlller natildeo expotildee de

maneira clara para logo em seguida fazer longas consideraccedilotildees sobre a grandeza da raccedila ariana (MUumlLLER

1860 [1859] p 14-15) ldquoEm disputa contiacutenua entre si e com as raccedilas semiacutetica e turaniana estas naccedilotildees

arianas se tornaram os senhores da histoacuteria e parece ser sua missatildeo ligar todas as partes do mundo atraveacutes

dos clamores de civilizaccedilatildeo comeacutercio e religiatildeordquo (MUumlLLER 1860 [1859] p 15)6

Natildeo impressiona que Max Muumlller tenha sido um dos nomes apropriados pelos nazistas em tempos futuros7

mas no que compete ao seacuteculo XIX o que Muumlller estaacute defendendo de antematildeo eacute que haacute um sentido da

5 ldquoThe principle object of the following essays will be to put the antiquity of the Veda in its proper light By antiquity however is meant not only the chronological distance of the Veda age from our own [] but also and still more the distance between the intellectual moral and religious state of men as represented to us during the Vedic age compared with that of other periods of history - a distance which can only be measured by the revolutions and the progress of the human mindrdquo 6 ldquoIn continual struggle with each other and with Semitic and Turanian races these Aryan nations have become the rulers of history and it seems to be their mission to link all parts of the world together by the claims of civilisation commerce and religionrdquo 7 Baijayanti Roy relembra que ainda que criticado em certa medida por seu ecletismo por sua perspectiva de uma religiatildeo futura de caraacuteter mais ecleacutetico Friedrich Max Muumlller foi a referecircncia por exemplo de Paul Deussen Leopold

[195]

Histoacuteria e uma posiccedilatildeo privilegiada dos alematildees (incluindo ele mesmo) nesse sentido progressista Ele

poreacutem comenta que o grupo que formou os indianos natildeo faz parte deste ramo de arianos destinado agrave

civilizaccedilatildeo este ramo eacute composto por gregos e romanos a justificativa os indianos contaram com fronteiras

naturais quase intransponiacuteveis que mantiveram sua cultura distanciada do mundo greco-romano (MUumlLLER

1860 [1859] p 15-16) Haacute aqui um argumento impliacutecito de que soacute haacute civilizaccedilatildeo por via grega e

posteriormente romana Uma vez que os indianos permaneceram apartados do contato com este mundo

natildeo contribuiacuteram com a grandeza dos arianos do primeiro escalatildeo Para o autor satildeo relevantes para a

Histoacuteria porque satildeo arianos e natildeo podem ser ignorados mas satildeo tambeacutem inferiores e atrasados

Muumlller entatildeo chega ao cliacutemax para nossa anaacutelise uma comparaccedilatildeo direta entre os indianos e os gregos Em

linhas gerais defende que a Iacutendia assim como a Greacutecia passou por disputas internas e conflitos mas que

seus efeitos foram infinitamente distintos Para ele se na Greacutecia haacute o fim das tiranias e a organizaccedilatildeo de

novas repuacuteblicas ndash cuja fonte natildeo eacute citada mas eacute provavelmente Tuciacutedides (Histoacuteria da Guerra do Peloponeso

I 18) ndash na Iacutendia os xaacutetrias satildeo derrotados pelos bracircmanes mas estes apenas impotildeem novo modelo de

dominaccedilatildeo moral que Muumlller posteriormente tentaria utilizar como justificativa para desqualificar os

Purānās enquanto fonte histoacuterica etc (MUumlLLER 1860 [1859] p 17 61) Portanto estaria aqui o primeiro

momento em sua concepccedilatildeo em que a Iacutendia teria ficado para traacutes O segundo momento diz ele eacute quando as

duas culturas se encontram com o Outro e eacute aqui que ele escreve a frase que tomamos emprestada para o

tiacutetulo de nossa apresentaccedilatildeo Sua comparaccedilatildeo das Histoacuterias8 de Heroacutedoto com o Rāmāyana de Valmiki eacute o

penuacuteltimo passo desse esforccedilo de parear gregos e indianos com perfeiccedilatildeo Ele encerra essa comparaccedilatildeo com

o conflito interno entre dois grupos rivais mediante uma comparaccedilatildeo entre Tuciacutedides e Vyasa com seu

Mahābhārata (MUumlLLER 1860 [1859] p 17-18) Esse esforccedilo de comparaccedilotildees eacute apenas mais uma das

evidecircncias do imperium das referecircncias ldquoclaacutessicasrdquo sobre os estudos do Oriente construindo

necessariamente uma Iacutendia idealizada limitada atrasada estanque primitiva ainda que complexa pior

ainda com os meacutetodos da filologia e da histoacuteria como ferramenta principal da produccedilatildeo de um saber senatildeo

falso equivocado Como em um efeito dominoacute ter os claacutessicos como paracircmetro (em funccedilatildeo de um

pensamento ocidental) eacute o golpe que derruba a primeira peccedila do dominoacute

Muumlller comeccedila a elaborar comparaccedilotildees cada vez mais extensas entre a Greacutecia e a Iacutendia e devemos ter em

mente que ele jaacute se colocou como intimamente relacionado com as duas afinal o alematildeo pertenceria a um

ramo especial do indo-europeu juntamente com o grego e o sacircnscrito Ele posteriormente apenas mostra a

von Shroumlrder e Houston Stewart Chamberlain intelectuais que se converteram ao culto do ldquoCristianismo Germacircnicordquo no qual havia o discurso da superioridade ariana como alicerce este grupo posteriormente seria um aliado do nazismo (ROY 2016 p 226 MARCHAND 2009 p 309 319) Aleacutem disso Muumlller teria desempenhado notaacutevel influecircncia sobre o intelectual proacute-nazista Hans Guumlnther (ROY 2016 p 227 ARVIDSSON 2006 p 41) 8 ldquoAs Musas de Heroacutedotordquo como Max Muumlller coloca eacute uma referecircncia agrave divisatildeo alexandrina das Histoacuterias em nove livros intitulados com os nomes das Musas

[196]

ordem na escala sendo pressuposto que como alematildeo estaacute acima de todos buscando demonstrar que os

indianos satildeo especiais mas que permaneceram inferiores em relaccedilatildeo aos gregos dos quais ele Max Muumlller

assim como a Europa de seu tempo era mais proacuteximo e herdeiro direto

Greacutecia e Iacutendia satildeo em verdade dois poacutelos opostos no desenvolvimento histoacuterico do homem ariano Para os gregos a existecircncia eacute plena de vida e realidade para os hindus ela eacute um sonho uma ilusatildeo O grego estaacute em casa onde ele nasce todas as suas energias pertencem a seu paiacutes ele resiste e cai juntamente com os seus e estaacute pronto para sacrificar ateacute mesmo sua vida pela gloacuteria e independecircncia da Heacutelade O hindu entra neste mundo como um estranho todos os pensamentos de sua vida satildeo direcionados para outro mundo ele natildeo toma partido mesmo onde ele eacute conduzido a agir e quando ele sacrifica sua vida isto natildeo eacute para nada aleacutem de ser levado dela (MUumlLLER 1860 [1859] p 18)9

Eacute evidente a enxurrada de generalizaccedilotildees idealizadas e seletivas que Muumlller propotildee em seu texto No que

tange aos gregos por exemplo a primeira pergunta que poderiacuteamos fazer a Max Muumlller seria que gregos

Afinal dizer que todo grego estaacute atrelado a sua cidade e que vive e morre por sua naccedilatildeo ou que ldquotodas as suas

energias pertencem a seu paiacutesrdquo eacute ignorar a existecircncia de mercenaacuterios gregos servindo inclusive aos persas

fato a respeito do qual Xenofonte nos ofereceu um testemunho bastante claro em sua Anaacutebase Aleacutem disso

a respeito do sentido filosoacutefico dado agrave vida pelos indianos em total oposiccedilatildeo ao dos gregos o autor comete

um pequeno deslize se levarmos em conta a existecircncia da crenccedila na μετεμψύχωσις metempsyacutechosis na

transmigraccedilatildeo da alma para outro corpo apoacutes a morte presente em diversas obras filosoacuteficas gregas e

entendida por diversas perspectivas10 Isso nos daacute brecha a pensar que o entendimento dos gregos a esse

respeito natildeo era necessariamente uniforme

Adiante Muumlller ainda completa ldquoNatildeo impressiona que uma naccedilatildeo como a indiana se importou tatildeo pouco com

histoacuteriardquo (MUumlLLER 1860 [1859] p 18)11 Haveria nos indianos uma aura de profunda espiritualidade

filosoacutefica incapaz de pensar a respeito dos problemas mundanos das questotildees praacuteticas Esse discurso tem

suas bases na literatura eacute claro mas eacute escandalosa a ausecircncia de um questionamento simples como viveram

esses anos todos as pessoas comuns da Iacutendia Afinal sabemos que nem todos os gregos eram Soacutecrates ou

9 ldquoGreece and India are indeed the two opposite poles in the historical development of the Aryan man To the Greeks existence is full of life and reality to the Hindu it is a dream an illusion The Greek is at home where he is born all of his energies belong to his country he stands and falls with his party and is ready to sacrifice even his life to the glory and independence of Hellas The Hindu enters this world as a stranger all his life thoughts are directed to another world he takes no part even where he is driven to act and when he sacrifices his life it is but to be delivered from itrdquo 10 A tiacutetulo de exemplo ver Platatildeo Feacutedon 81b Menecircxino 81a A Repuacuteblica 614 Fedro 248d Goacutergias 525c Plotino Eneacuteades 1111-12 296 10-28 342 439 7141-8 Dioacutegenes Laeacutercio tambeacutem fala a respeito da crenccedila de Pitaacutegoras na transmigraccedilatildeo da alma (Vidas e Doutrinas dos Filoacutesofos Ilustres 836) existem muitos outros exemplos que poderiacuteamos debater com maior profundidade em um outro momento mas reforccedilamos desde jaacute que natildeo ignoramos os debates a respeito da relevacircncia da ideia da transmigraccedilatildeo da alma dentro do sistemas filosoacuteficos de pensadores gregos como o caso de Plotino que ora tem a transmigraccedilatildeo diminuiacuteda em seu sistema por determinadas interpretaccedilotildees ora a tem levada em maior consideraccedilatildeo por outro grupo de acadecircmicos (STAMELLOS 2016 p 49-50) Para aleacutem da filosofia o relato de Heroacutedoto eacute bastante significativo a alma seria imortal e habitaria outro corpo apoacutes a morte do corpo anterior dentro das crenccedilas egiacutepcias o que Heroacutedoto (Histoacuterias 2123) revela em seguida eacute que houvera gregos os quais ele natildeo nomeia que partilharam dessa crenccedila 11 ldquoNo wonder that a nation like the Indian cared so little for historyrdquo

[197]

Heroacutedoto da mesma forma como nem todos os indianos eram Vyasa Muumlller despreocupado com esse tipo

de questionamento se deixou levar exclusivamente pela carga espiritual que carregava consigo e se

maravilhava com os indianos dizendo ldquoSua existecircncia na Terra era para eles um problema sua vida eterna

uma certezardquo (MUumlLLER 1860 [1859] p 19)12 O que eacute relevante no entanto nessa constataccedilatildeo da

perspectiva religiosamente enviesada de Muumlller eacute que isso era um dos pilares de um sistema epistemoloacutegico

ao qual estava alinhado os pilares eram o cristianismo e a heranccedila claacutessica como alicerces do Ocidente e

consequentemente da civilizaccedilatildeo Foi dessa forma que Muumlller manipulou diferentes tipos de informaccedilotildees

para criar uma perspectiva estanque e simultaneamente exoacutetica da Iacutendia Antiga

Muumlller segue sua comparaccedilatildeo entre gregos e indianos por vaacuterias frentes Em dado momento compara a

expressatildeo sacircnscrita परिय आतमा priya ātmā (Vyasa Bhāgavata Purāṇa 32538)13 que ele traduz por ldquoteu

querido Eurdquo (MUumlLLER 1860 [1859] p 20)14 com a expressatildeo grega φίλον ἧτορ fiacutelon heacutetor (Homero Iliacuteada

5670 Odisseia 160 4804 7269 etc) No trecho da Iliacuteada para natildeo nos estendermos demais neste ponto

a expressatildeo eacute traduzida por Frederico Lourenccedilo de maneira mais literal como ldquoseu querido coraccedilatildeordquo

enquanto Carlos Alberto Nunes traduziu apenas por ldquona almardquo e Augustus Taber Murray por ldquowithin himrdquo

O que transcende as traduccedilotildees no entanto eacute um sentido de iacutentimo e de subjetividade portanto haveria uma

correspondecircncia direta entre a expressatildeo grega e a sacircnscrita ambas se referem ao caro querido Ser do

indiviacuteduo Adiante compara tambeacutem a expressatildeo आतमान आतमना पशय ātmānam ātmanā paśya que Max Muumlller

traduz por ldquove-te a ti mesmordquo (MUumlLLER 1860 [1859] p 21-22)15 com o aforismo γνῶθι σεαυτόν

(Xenofonte Ditos e feitos memoraacuteveis de Soacutecrates 42 Platatildeo Caacutermides 164d Protaacutegoras 343a-343b Fedro

229e Filebo 48c Leis II 923a Alcibiacuteades I 124a 129a 132c Aristoacutefanes As Nuvens 842 Pausacircnias

Descriccedilatildeo da Greacutecia 1024) o ldquoconheccedila-serdquo ou de forma mais empertigada ldquoconhece-te a ti mesmordquo famoso

proveacuterbio deacutelfico popularizado como conduta de Soacutecrates Muumlller ainda completa essa segunda comparaccedilatildeo

defendendo que a expressatildeo sacircnscrita teria um sentido ainda mais profundo que a grega (MUumlLLER 1860

[1859] p 21-22)

12 ldquoTheir existence on earth was to them a problem their eternal life a certaintyrdquo 13 A expressatildeo natildeo foi inserida no texto de Muumlller escrita no abugida devanaacutegari mas apenas transliterada Buscamos oferecer a grafia correta dos termos individualmente para garantir mais visibilidade ao devanaacutegari mas reforccedilamos que a grafia pode mudar de acordo com certas regras de formaccedilatildeo de palavras compostas No trecho que utilizamos como referecircncia e que natildeo eacute citado por Muumlller os termos satildeo grafados agrave maneira como escrevemos sendo inclusive sequenciais O Bhāgavata Purāṇa tambeacutem eacute comumente chamado de Śrīmad Bhāgavatam 14 ldquothy dear selfrdquo 15 ldquosee [thy]self by [thy]selfrdquo Os colchetes foram empregados por Max Muumlller Novamente o texto de Muumlller natildeo incluiacutea grafia em devanaacutegari mas apenas uma transliteraccedilatildeo Disponibilizamos a grafia correta das palavras quando escritas individualmente Dentro das limitaccedilotildees atuais de nossa pesquisa natildeo encontramos a expressatildeo grafada desta maneira em nenhum dos textos sacircnscritos antigos ainda assim haacute uma passagem da Bhagavad Gītā que traz todos os termos no

mesmo verso चवातमनातमान पशयननातमपरन तषयपरत caivātmanātmānam paśyannātmani tuṣyati traduzido como ldquoe onde se contenta no si-mesmo observando o si-mesmo por meio do si-mesmordquo (Vyasa Bhagavad Gītā 620 Trad Carlos Eduardo G Barbosa) O sentido eacute portanto similar agrave expressatildeo que Muumlller utilizou na forma de epigrama

[198]

Ainda que apresentando um contiacutenuo deslumbramento com a cultura indiana isso natildeo conduz a nada

diferente da submissatildeo de tal cultura ao teacutelos eurocecircntrico Muumlller joga a comparaccedilatildeo para o campo histoacuterico

efetivamente o contato entre os gregos e os indianos Suas fontes satildeo Estrabatildeo e Megaacutestenes Atraveacutes do

primeiro reforccedila que a filosofia indiana tem por meta central natildeo permitir ao indiviacuteduo pender para os

prazeres ou para a dor16 Eacute atraveacutes do segundo no entanto que procura justificar melhor seu argumento

Assim o relato que Megaacutestenes oferece a respeito dos indianos nos mostra o mesmo personagem abstrato e passivo que noacutes encontramos atraveacutes de toda a literatura poacutes-veacutedica dos bracircmanes e que em grande medida explica a ausecircncia de qualquer coisa similar a uma literatura histoacuterica nesta naccedilatildeo de filoacutesofos [] Um povo de tatildeo peculiar traccedilo mental jamais estaria destinado a tomar um partido significativo no que eacute chamado de histoacuteria do mundo (MUumlLLER 1860 [1859] p 28-29)17

Quase como se estivesse desculpando Muumlller emenda ldquoNenhum povo certamente causou uma impressatildeo

mais favoraacutevel sobre os gregosrdquo (MUumlLLER 1860 [1859] p 29)18 Eacute evidente que boa parte do que citamos

satildeo afirmaccedilotildees profundamente arbitraacuterias Natildeo iremos entrar no meacuterito de qual cultura gerou maior impacto

positivo nos gregos ainda que reforcemos que isso pode ser bastante difiacutecil de afirmar Em todo caso o que

importa eacute que onde Muumlller escreveu ldquosobre os gregosrdquo ele em verdade deveria ter escrito ldquosobre mimrdquo

Muumlller natildeo pocircde deixar de justificar sua paixatildeo pela Iacutendia da mesma forma como natildeo conseguiu submetecirc-la

a uma classificaccedilatildeo em que permanecia inevitavelmente abaixo dos claacutessicos (gregos em especial) dos quais

Muumlller seria um herdeiro A respeito da passividade do abstratismo que ele menciona natildeo deveriacuteamos levar

em consideraccedilatildeo que foram os indianos que impuseram um limite ao exeacutercito de Alexandre19 Devemos

desconsiderar de igual forma a complexidade da literatura sacircnscrita que natildeo se limita Muumlller bem sabia a

textos filosoacutefico-religiosos Isso eacute suficiente para natildeo caracterizarmos o indiano antigo de maneira

homogecircnea e universalizada como se todos fossem verdadeiros eremitas O proacuteprio Muumlller reconheceu

16 A leitura europeia de relatos como o de Estrabatildeo e dos proacuteprios modernos especialistas na cultura indiana aleacutem da tradiccedilatildeo que se formava em entender que a filosofia oriental continuamente pende para a religiatildeo foi o que possibilitou uma fixaccedilatildeo da ideia da filosofia indiana em um atrelamento contiacutenuo com o campo religioso Desconsiderando colocaccedilotildees como a de Cornford (1912 p 261-263) a respeito da percepccedilatildeo de que a filosofia natildeo se tornou tatildeo menos religiosa no mundo grego muitos historiadores da filosofia chegaram a estigmatizar a filosofia heleniacutestica julgando que tal pensamento eacute produto de uma decadecircncia do pensamento grego na medida de seus contatos com o pensamento oriental a filosofia heleniacutestica teria deixado de procurar a resoluccedilatildeo de questotildees universais e passado a ser utilizada

como meacutetodo de conduta com fins agrave ἀταραξία ataraxiacutea (CHAUIacute p 18-26 34-36) 17 ldquoThus the account which Megasthenes gives of the Indians shows us the same abstract and passive character which we find throughout the whole post-Vedic literature of the Brahmans and which to a great extent explains the absence of anything like historical literature among this nation of philosophers [] A people of this peculiar stamp of mind was never destined to act a prominent part in what is called the history of the worldrdquo 18 ldquoNo people certainly made a more favourable impression upon Greeks than the Indiansrdquo 19 A respeito disso o proacuteprio Megaacutestenes reproduzido por Diodoro comenta que Alexandre teria desistido de cruzar o Ganges por receio do confronto com os gandaridae (Biblioteca Histoacuterica 235-42) Plutarco tambeacutem relatou que apoacutes o embate contra o rei Poro o exeacutercito de Alexandre se tornou arredio e perdeu a motivaccedilatildeo para prosseguir (Vida de Alexandre 62) Ora um homem como Max Muumlller poderia dar mais atenccedilatildeo ao fato de Poro ter sido derrotado e ter se tornado um Saacutetrapa mas eacute necessaacuterio notarmos que a luta contra Poro ter sido suficiente para diminuir o moral do exeacutercito se o relato for real eacute algo bastante significativo e indica minimamente que os indianos antigos natildeo seriam tatildeo passivos para os gregos como eram para Muumlller

[199]

adiante que os indianos natildeo eram tatildeo submissos a conquistadores mas essa constataccedilatildeo natildeo modificou o

sistema bem montado que tinha em sua reflexatildeo e ele prosseguiu

O gecircnio da naccedilatildeo grega deve seu crescimento feliz e saudaacutevel agrave liberdade e agrave independecircncia nacional As canccedilotildees homeacutericas eram endereccediladas a um povo orgulhoso de seus heroacuteis reais ou lendaacuterios Se a Peacutersia tivesse esmagado o cavalheirismo da Greacutecia nunca teriacuteamos ouvido os nomes de Heroacutedoto Eacutesquilo Soacutefocles Fiacutedias e Peacutericles Onde o sentimento de nacionalidade foi despertado o poeta se orgulha de ser ouvido por sua naccedilatildeo e uma naccedilatildeo se orgulha de ouvir seu poeta Mas em tempos de degradaccedilatildeo nacional o gecircnio dos grandes homens se afasta das realidades da vida e encontra seu uacutenico consolo na busca da verdade na ciecircncia e na filosofia Soacutecrates Platatildeo e Aristoacuteteles surgiram quando a naccedilatildeo grega comeccedilou a declinar e sob o peso do primeiro domiacutenio macedocircnio da tirania romana a vida do gecircnio grego desapareceu enquanto suas produccedilotildees imortais continuaram na memoacuteria de outras naccedilotildees mais livres O indiano nunca conheceu o sentimento de nacionalidade e seu coraccedilatildeo nunca tremeu na expectativa de aplausos nacionais Natildeo havia heroacuteis para inspirar um poeta ndash nenhuma histoacuteria convocar um historiador A uacutenica esfera em que a mente indiana se encontrava em liberdade para agir criar e adorar era a esfera da religiatildeo e da filosofia [] os hindus eram uma naccedilatildeo de filoacutesofos Suas lutas eram as lutas do pensamento seu passado o problema da criaccedilatildeo seu futuro o problema da existecircncia [] como um todo a histoacuteria natildeo fornece uma segunda instacircncia onde a vida interior da alma absorveu tatildeo completamente todas as faculdades praacuteticas de um povo inteiro e de fato quase destruiu aquelas qualidades pelas quais uma naccedilatildeo ganha seu lugar na histoacuteria Por conseguinte poderia ser justamente dito que a Iacutendia natildeo tem lugar na histoacuteria poliacutetica do mundo [] Uma expediccedilatildeo como a de Alexandre nunca poderia ter sido concebida por um rei indiano e a ambiccedilatildeo dos conquistadores nativos nos poucos casos em que existia nunca ultrapassou os limites da proacutepria Iacutendia [] Mas se a Iacutendia natildeo tem lugar na histoacuteria poliacutetica do mundo certamente tem o direito de reivindicar seu lugar na histoacuteria intelectual da humanidade Quanto menos a naccedilatildeo indiana participasse das lutas poliacuteticas do mundo e gastasse suas energias nas faccedilanhas da guerra e na formaccedilatildeo de impeacuterios mais ela assentava e concentrava todos os seus poderes para o cumprimento da importante missatildeo reservada a ele na histoacuteria do Oriente A histoacuteria parece ensinar que toda a raccedila humana necessitava de uma educaccedilatildeo gradual antes que pudesse na plenitude dos tempos confessar as verdades do cristianismo (MUumlLLER 1860 [1859] p 30-32)20

20 ldquoThe genius of the Greek nation owes its happy and healthy growth to liberty and national independence The Homeric songs were addressed to a people proud of its heroes whether real or legendary If Persia had crushed the chivalry of Greece we should never have heard the names of Herodotus Aeschylus Sophocles Phidias and Pericles Where the feeling of nationality has been roused the poet is proud to be listened to by his nation and a nation is proud to listen to her poet But in times of national degradation the genius of great men turns away from the realities of life and finds its only consolation in the search after truth in science and philosophy Socrates Plato and Aristotle arose when the Greek nation began to decline and under the heavy grasp first of Macedonian swayrsquo then of Roman tyranny the life of the Greek genius ebbed away while its immortal productions lived on in the memory of other and freer nations The Indian never knew the feeling of nationality and his heart never trembled in the expectation of national applause There were no heroes to inspire a poet mdash no history to call forth a historian The only sphere where the Indian mind found itself at liberty to act to create and to worship was the sphere of religion and philosophy [] The Hindus were a nation of philosophers Their struggles were the struggles of thought their past the problem of creation their future the problem of existence [] taken as a whole history supplies no second instance where the inward life of the soul has so completely absorbed all the practical faculties of a whole people and in fact almost destroyed those qualities by which a nation gains its place in history It might therefore be justly said that India has no place in the political history of the world [] An expedition like- that of Alexander could never have been conceived by an Indian king and the ambition of native conquerors in those few cases where it existed never went beyond the limits of India itself [] But if India has no place in the political history of the world it certainly has a right to claim its place in the intellectual history of mankind The less the Indian nation has taken part in the political struggles of the world and expended its energies in the exploits of war and the formation of empires the more it has fitted itself and concentrated all its powers for the fulfilment of the

[200]

Eacute evidente a demonstraccedilatildeo de um projeto poliacutetico de cogniccedilatildeo do mundo colonial Muumlller se vale de uma certa

concepccedilatildeo do mundo grego A partir dessa concepccedilatildeo defende que o mundo do ramo ariano eacute aquele que

seguiu na direccedilatildeo da Histoacuteria Poliacutetica da humanidade e portanto determinou os rumos para a estratificaccedilatildeo

social as formas de governo os conceitos poliacuteticos baacutesicos de um futuro mundo universal universalizado

pelo Ocidente Ora Muumlller jaacute havia determinado que o ramo ao qual pertencia era este o ramo das accedilotildees

poliacuteticas o ramo merecedor de pertencer agrave Histoacuteria Poliacutetica Ainda que tenha afirmado que Kant teria

norteado sua obra ao longo de toda sua carreira Max Muumlller se mostrou um verdadeiro hegeliano quando

pensou sobre a Histoacuteria Universal Dentro desse pensamento limitou os indianos agrave Histoacuteria Intelectual da

humanidade Muumlller seguindo seu proacuteprio raciociacutenio seria superior em duas medidas Primeiro por ser

supostamente um herdeiro direto da cultura claacutessica segundo por ser germacircnico e assim desfrutar de uma

proximidade maior com os gregos e os hindus em relaccedilatildeo a outros povos europeus modernos

Aqui eacute claro fica evidente a atitude duacutebia de Muumlller em relaccedilatildeo a seu posicionamento discursivo no jogo

poliacutetico dos impeacuterios europeus Por um lado ele se coloca como um indiviacuteduo dotado de maior aptidatildeo para

lidar com seus temas de estudo e de maior proximidade com as sociedades mais desenvolvidas da

Antiguidade Por outro no entanto torna-se uma espeacutecie de representante do Impeacuterio Britacircnico ele

categoriza e torna cognosciacutevel o indiano conferindo a ele um espaccedilo limitado na Histoacuteria alijando-o da

Histoacuteria Poliacutetica da posiccedilatildeo de mando e limitando-o agrave Histoacuteria Intelectual da humanidade Resumidamente

o que Muumlller disse atraveacutes de seu trabalho mutatis mutandis foi ldquotemos muito a aprender com eles estes

pobres coitados tatildeo exoacuteticos e maravilhosos que precisam do nosso direcionamento que ficam melhor

governados pelo ramo mais legiacutetimo da raccedila ariana aprenderemos com eles sobre o pensamento humano

mas quando o tema for a poliacutetica e as relaccedilotildees de dominaccedilatildeo ele deve ser verbalizado em nossos termos

afinal pertence apenas a noacutesrdquo Embora tenhamos pretensotildees de discutir essa questatildeo mais a fundo em um

momento futuro da pesquisa gostariacuteamos de propor que natildeo foi por acaso que Muumlller recusou o convite para

lecionar na Universidade de Estrasburgo permanecendo atuando no interior do Impeacuterio Britacircnico A

produccedilatildeo de Muumlller segue a loacutegica do colonialismo natildeo apenas por ele ser um intelectual europeu mas

tambeacutem para que dispusesse de espaccedilo na ordem do discurso do Impeacuterio Britacircnico que tinha a Iacutendia como

uma de suas possessotildees

E quanto ao helenismo O ldquohelenismordquo de Friedrich Max Muumlller ao qual nos referimos desde o princiacutepio

consistiu precisamente na construccedilatildeo de um modelo idealizado de Greacutecia em parte inspirado na produccedilatildeo

intelectual do seacuteculo XIX mas em parte motivado pela retoacuterica do proacuteprio Muumlller Desta forma a partir desse

modelo idealizado que conferia sentido ao proacuteprio mundo de Muumlller construir entatildeo um modelo oposto que

correspondesse agrave Iacutendia Assim o resultado era duplo Max Muumlller legitimava sua condiccedilatildeo e a do proacuteprio

important mission reserved to it in the history of the East History seems to teach that the whole human race required a gradual education before in the fullness of time it could be admitted to the truths of Christianityrdquo

[201]

Impeacuterio Britacircnico por ser herdeiro legiacutetimo do ramo mais poderoso do grupo chamado ariano (indo-

europeu) e assegurava a aceitaccedilatildeo de suas conclusotildees como verdadeiras pela comunidade acadecircmica e pela

elite de sua eacutepoca agrave medida que respeitava a ordem do discurso vigente para pensarmos um pouco nos

termos de Foucault o que incluiacutea a utilizaccedilatildeo da Antiguidade ldquoclaacutessicardquo para a fundamentaccedilatildeo de uma

retoacuterica especiacutefica Essa praacutetica recorrente na eacutepoca foi demonstrada nos escritos de Marx Engels Weber

Adam Smith Nietzsche e Hegel por Neville Morley (MORLEY 2009 p 141-161)

Podemos reconhecer que as culturas grega e indiana eram absolutamente diferentes Sim podemos Isso

estaacute expliacutecito nas fontes de que dispomos sejam escritas iconograacuteficas arqueoloacutegicas No entanto natildeo

podemos deixar de notar que as interpretaccedilotildees conferidas a essa constataccedilatildeo por vezes vecircm dotadas de

certa maacute feacute de maneira consciente ou natildeo Haacute que se notar que as afirmaccedilotildees precipitadas de Muumlller pecam

pela idealizaccedilatildeo exacerbada de um mundo grego livre autocircnomo nacionalista mas o fazem propositalmente

para relegar aos indianos as caracteriacutesticas imediatamente opostas servis desprovidos de uma vida poliacutetica

complexa e saudaacutevel desprovidos de identidade nacional A ldquonaccedilatildeo de filoacutesofosrdquo de Muumlller eacute uma retoacuterica

criada lado a lado com a idealizada sociedade grega do mesmo Muumlller A recepccedilatildeo dos claacutessicos eacute desta

forma moldada de acordo com o proacuteprio posicionamento poliacutetico (LEONARD PRINS 2010 p 1-2) e com a

intenccedilatildeo clara de produzir um argumento plausiacutevel para uma ideia enviesada Atraveacutes dessa operaccedilatildeo

fundamentada em retoacuterica pura Muumlller exclui o mundo indiano da Histoacuteria Poliacutetica seguindo na esteira de

Hegel e desta forma o manteacutem imediatamente acorrentado agrave tutela europeia Um povo desprovido de

Histoacuteria Poliacutetica natildeo teria assim muito o que fazer a natildeo ser aceitar a dominaccedilatildeo e acima de tudo se

regozijar preparando-se para as verdades do Cristo e para uma vida civilizada de acordo com os termos do

proacuteprio Max Muumlller A contribuiccedilatildeo do Oriente dos indianos acima de tudo seria apenas no que se refere agrave

religiatildeo ao pensamento estando portanto longe do campo da accedilatildeo No campo da accedilatildeo deveriam apenas

ficar quietos passivos E suas ideias caminhariam seguindo essa loacutegica em direccedilatildeo ao engrandecimento da

complexidade intelectual do Ocidente esse grande desbravador libertador de primitivos Essa conclusatildeo

nos faz recordar as palavras jaacute citadas aqui do proacuteprio Muumlller que se julgava tatildeo preciso em seu estudo a

respeito dos indianos ldquonenhuma naccedilatildeo foi a este respeito tratada mais injustamente que a Iacutendiardquo (MUumlLLER

1860 [1859] p 6)

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Elementos claacutessicos em Esauacute e Jacoacute de Machado de Assis

Marihaacute Barbosa e Castro

marihacastrogmailcom

A partir do seacuteculo XX os estudos sobre a teoria da recepccedilatildeo

ganharam notoriedade entre criacuteticos e teoacutericos de literatura Essas

investigaccedilotildees se preocupam em analisar a participaccedilatildeo do receptor

na interpretaccedilatildeo de uma obra partindo do princiacutepio de que a leitura

eacute um consenso entre os elementos trazidos pelo texto e pelo seu

inteacuterprete Entretanto mais do que atentar para o exerciacutecio

corriqueiro de leitura a teoria da recepccedilatildeo se volta para a anaacutelise

das obras de arte (literaacuterias ou natildeo) como confluecircncia de textos e

multiplicidade de influecircncias apropriando-se dos conceitos de

intertextualidade propostos por Julia Kristeva e de dialogismo de

Mikhail Bakhtin Ao assumir a dinacircmica existente no exerciacutecio de

interpretaccedilatildeo delegando relevacircncia tambeacutem ao papel do

inteacuterprete a teoria da recepccedilatildeo assume que a obra de arte natildeo

possui um significado uacutenico e estaacutetico encerrado em si mesmo pois

seu sentido se modificaraacute a cada leitura em cada contexto Existem

portanto diversas possibilidades de leitura para todo o texto Essa

maneira de compreender a recepccedilatildeo estaacute fundamentada no

modelo proposto por Hans Robert Jauss que considera os aspectos

histoacutericos e formais de uma obra trabalhando com teorias

antagocircnicas como o Formalismo Russo e o Marxismo A teoria da

recepccedilatildeo sendo assim traz a novidade do enfoque no leitor

[205]

Essa nova corrente teoacuterica tambeacutem atingiu os Estudos Claacutessicos provocando um redimensionamento

significativo da aacuterea A tendecircncia de enxergar o claacutessico ndash entendido aqui como a cultura a literatura e as

obras de arte produzidas durante a Antiguidade grega e romana ndash como algo fixo e que pode ser

compreendido em seus proacuteprios termos tem sido bastante criticada A publicaccedilatildeo do livro Redeeming the text

(2003) de Charles Martindale configura-se como um marco da reflexatildeo sobre os Estudos Claacutessicos

associados agrave teoria da recepccedilatildeo aleacutem de observar a rede intertextual existente entre as obras da

Antiguidade claacutessica ndash que envolve conceitos como imitatio e aemulatio ndash propotildee que tambeacutem as

interpretaccedilotildees posteriores dos textos claacutessicos e a literatura em outros momentos do tempo tenham grande

influecircncia sobre a literatura grega e romana Afinal o olhar que lanccedilamos sobre a Antiguidade estaacute sempre

marcado por nossa maneira de enxergar o mundo por mais que tentemos nos posicionar fora de nossas

caracteriacutesticas eacute impossiacutevel assumir o olhar do leitor grego ou romano primeiros destinataacuterios dos claacutessicos

Aleacutem disso nossa leitura carrega diversas outras sendo influenciada por uma longa trajetoacuteria de

interpretaccedilotildees e recepccedilotildees de uma mesma obra A leitura da Eneida atualmente eacute amplamente influenciada

por obras como Os Lusiacuteadas de Camotildees e A divina comeacutedia de Dante Alighieri O modo como enxergamos o

mundo claacutessico passa pelo Renascimento europeu Entende-se portanto que a Antiguidade e a

Modernidade estatildeo sempre relacionadas em constante diaacutelogo para compreender uma eacute necessaacuterio pensar

sobre a outra William W Batstone ao analisar os estudos sobre recepccedilatildeo aponta que Charles Martindale

ldquo[] encontra na teoria da recepccedilatildeo tanto o enriquecimento do significado atraveacutes da recepccedilatildeo do passado

como a libertaccedilatildeo do significado para o leitor individual no presenterdquo (BATSTONE 2008 p 14)1 Martindale

portanto rompe com o pensamento que enxerga a anaacutelise histoacuterica da recepccedilatildeo da Eneida como uma

distorccedilatildeo da visatildeo original da obra Incluir a recepccedilatildeo como assunto a ser explorado pelos Estudos Claacutessicos

permite ainda ampliar o campo de trabalho dos classicistas e renovar o interesse pela literatura grega e

romana

Enfraquece-se portanto a ideia de que o mundo claacutessico soacute poderia ser estudado e compreendido por meio

da remissatildeo aos textos e materiais produzidos na Antiguidade (manuais de retoacuterica tratados poeacuteticos etc)

Embora muitos elejam esse procedimento como meacutetodo de anaacutelise a possibilidade de utilizar conceitos e

teorias contemporacircneas para refletir sobre a Antiguidade se torna cada vez menos estranha aos classicistas

O incentivo a novas anaacutelises das obras da Modernidade em que o elemento claacutessico se faz presente eacute outro

aspecto em que a teoria da recepccedilatildeo procura trabalhar Para esse tipo de anaacutelise eacute imprescindiacutevel o

conhecimento sobre a cultura e a literatura dos antigos e por isso os classicistas seriam os estudiosos com a

melhor condiccedilatildeo para trabalhar a recepccedilatildeo dos claacutessicos

1 Todas as traduccedilotildees apresentadas neste estudo satildeo nossas ldquo[hellip] finds in reception theory both the enrichment of meaning by the reception of the past and the liberation of meaning for the individual reader in the presentrdquo

[206]

A teoria da recepccedilatildeo associada aos Estudos Claacutessicos eacute ainda uma aacuterea recente e em desenvolvimento Natildeo

se pode falar sobre uma metodologia e nem mesmo sobre uma terminologia estabelecida Natildeo haacute consenso

sequer sobre o uso da palavra ldquorecepccedilatildeordquo para designar o processo de assimilaccedilatildeo de outros textos e

culturas outros termos como ldquoapropriaccedilatildeordquo jaacute foram sugeridos entretanto Martindale (2007 p 300)

reforccedila a utilizaccedilatildeo de ldquorecepccedilatildeordquo

Alguns se queixam de que lsquorecepccedilatildeorsquo sugere um papel passivo para o leitor (isso deve em parte refletir as outras associaccedilotildees da palavra em inglecircs) e preferem ldquoapropriaccedilatildeordquo Mas devemos nos lembrar de que lsquorecepccedilatildeorsquo foi adotada justamente por sublinhar o caraacuteter dinacircmico e dialoacutegico do exerciacutecio de leitura (de fato lsquoapropriaccedilatildeorsquo tomar posse de algo minimiza a possibilidade de diaacutelogo a capacidade do texto de resistir agraves nossas tentativas de dominaacute-lo sua capacidade de modificar nossa sensibilidade)2

Trabalhos como ldquoReception and Traditionrdquo (BUDELMANN HAUBOLD 2008) de Felix Budelmann e

Johannes Haubold se dedicam agrave reflexatildeo sobre as diferenccedilas entre tradiccedilatildeo recepccedilatildeo e permanecircncia ndash

fenocircmenos que natildeo possuem limites bem marcados entre si e que sempre estiveram presentes no jogo

literaacuterio atraveacutes de procedimentos como a imitatio e a aemulatio ndash procurando fixar noccedilotildees claras sobre esses

conceitos e ainda estabelecer qual seria a dinacircmica existente entre eles e como poderiam ser explorados

pelos estudos de recepccedilatildeo do claacutessico

Martindale (2007 p 298) afirma que o termo ldquotradiccedilatildeordquo carrega uma conotaccedilatildeo passiva contrastando com

o sentido de ldquorecepccedilatildeordquo ldquoa etimologia de lsquotradiccedilatildeorsquo por exemplo do latim lsquotraderersquo sugere transmissatildeo do

material do passado para o presente lsquoRecepccedilatildeorsquo por contraste pelo menos segundo o modelo da Escola de

Constance opera com uma temporalidade diferente envolvendo uma participaccedilatildeo ativa dos leitoresrdquo3 A

tradiccedilatildeo estaria relacionada agrave noccedilatildeo de estabilidade e fixidez mas nem sempre indicaria uma relaccedilatildeo de

submissatildeo do presente ao passado por traacutes da palavra ldquotradiccedilatildeordquo haacute muitos significados tornando difiacutecil a

fixaccedilatildeo de um conceito Aleacutem de ser facilmente verificaacutevel que natildeo existe somente uma tradiccedilatildeo e mesmo

compreendendo que o conceito se baseia na ideia de constacircncia natildeo podemos ignorar o movimento de

transmissatildeo que fundamenta toda tradiccedilatildeo Para Martindale (2007 p 300) esse movimento se

caracterizaria pelo seu estabelecimento confortaacutevel e natildeo contestado que torna possiacutevel a continuidade de

uma tradiccedilatildeo ldquolsquoTradiccedilatildeordquo por contraste poderia implicar que o processo de transmissatildeo eacute confortavelmente

incontestadordquo4 Jaacute Felix Budelmann e Johannes Haubold (2008 p 25) defendem que ldquono estudo da recepccedilatildeo

2 ldquoSome complain that ldquoreceptionrdquo suggests a passive role for the reader (this may in part reflect the other associations of the word in English) and prefer ldquoappropriationrdquo (eg Hall 2004 61) But we should remember that ldquoreceptionrdquo was adopted precisely to underline the dynamic and dialogic character of reading (indeed ldquoappropriationrdquo making onersquos own downplays the possibility of dialogue the capacity of the text to resist our attempts to master it its capacity to modify our sensibility)rdquo 3 ldquoThe etymology of ldquotraditionrdquo for example from the Latin tradere suggests a ndash usually benign ndash handing down of material from the past to the present ldquoReceptionrdquo by contrast at least on the model of the Constance school operates with a different temporality involving the active participation of the readersrdquo 4 ldquolsquoTraditionrsquo by contrast might imply that the process of transmition is comfortably uncontestedrdquo

[207]

como em qualquer outro lsquotradiccedilatildeorsquo natildeo deve ser invocada defendida ou atacada como uma ideia platocircnica

mas deve ser vista como uma ferramenta flexiacutevel para sugerir novas perspectivas em diferentes caminhos e

em diferentes ocasiotildees5 Uma das preocupaccedilotildees dos estudos de recepccedilatildeo dos claacutessicos seria justamente

tentar compreender esse movimento em diversos momentos da histoacuteria ldquoRecepccedilatildeordquo se diferenciaria de

ldquotradiccedilatildeordquo por conjugar noccedilotildees de dinamismo dialogismo e leitura trabalhando com a ideia do consenso A

permanecircncia do elemento claacutessico se torna possiacutevel atraveacutes da coexistecircncia e da interaccedilatildeo entre recepccedilatildeo e

tradiccedilatildeo ldquonoacutes precisamos manter a tradiccedilatildeo em vista quando estudamos a recepccedilatildeo e vice e versardquo

(BUDELMANN HAUBOLD 2008 p 24)6 A recepccedilatildeo traz ao claacutessico sempre algo novo eacute possiacutevel que a

atualizaccedilatildeo do interesse por muitas obras da Antiguidade tenha como referencial a presenccedila destas na

literatura posterior

A maneira como a literatura antiga se estabeleceu nas sociedades posteriores se fundamenta em uma

tradiccedilatildeo que idealiza o mundo grego e romano O termo ldquoclaacutessicordquo que passou por vaacuterios deslocamentos de

significado atraveacutes dos anos inicialmente relacionado a uma noccedilatildeo de estratificaccedilatildeo social passou a designar

o conjunto de melhores autores da Antiguidade os modelos oficiais de excelecircncia literaacuteria Essa ideologia se

apoiava em um discurso que legitimava certos valores e determinadas ordens sociais O claacutessico era

portanto uma instituiccedilatildeo com seus mecanismos de manutenccedilatildeo Durante os seacuteculos XIV e XV a fluecircncia em

latim claacutessico era um recurso de ascensatildeo social tendo sido o ensino da liacutengua obrigatoacuterio em qualquer

escola voltada para a educaccedilatildeo de jovens da nobreza As instituiccedilotildees de ensino se esforccedilavam por ensinar a

seus alunos as Humanidades por considerarem que a leitura dos claacutessicos e o aprendizado do latim e do

grego eram condiccedilotildees indispensaacuteveis para o refinamento cultural e para a formaccedilatildeo de homens civilizados

O claacutessico pois era muito visado por seu valor socioeconocircmico e mercadoloacutegico tendo sido um elemento de

diferenciaccedilatildeo entre os indiviacuteduos Nos seacuteculos seguintes sobretudo a partir do comeccedilo do seacuteculo XX o

claacutessico passa por uma gradativa perda de seu estatuto fruto das profundas mudanccedilas estruturais da

sociedade O cacircnone que antes incluiacutea apenas obras da Antiguidade jaacute contemplava autores

contemporacircneos e novas classes passam a ter acesso agrave escola provocando uma modificaccedilatildeo dos curriacuteculos

escolares Essa trajetoacuteria do termo e de sua posiccedilatildeo social faz parte do que hoje chamamos de uma tradiccedilatildeo

claacutessica Estudiosos como Seth L Schein (2008) defendem que eacute responsabilidade dos classicistas refletir

sobre esse processo e ajudar os estudantes a compreendecirc-lo ao lanccedilar olhares criacuteticos por todo o trajeto

percorrido pelo claacutessico Schein (2008 p 84) faz uma anaacutelise da recepccedilatildeo da literatura antiga observando os

lugares por ela ocupados em diferentes momentos da histoacuteria ldquoNoacutes classicistas a professores temos a

oportunidade e a responsabilidade de compreender e resistir agrave construccedilatildeo institucional de uma literatura

5 ldquoIn the study of reception as indeed elsewhere lsquotraditionrsquo should not be invoked defended or attacked as a Platonic idea but should be seen as a pliable tool for suggesting new perspectives in different ways on different occasionsrdquo 6 ldquoWe need to keep tradition in view when studying reception and vice versardquo

[208]

canocircnica e de uma tradiccedilatildeo claacutessica autossuficiente e ajudar os estudantes a compreender o processo

histoacuterico pelo qual textos satildeo apropriados e transformados7

Surge portanto outra questatildeo como investigar e que aproveitamento obter da anaacutelise literaacuteria pautada nos

estudos de recepccedilatildeo e permanecircncia do claacutessico Talvez seja esse o ponto mais incerto entre os estudiosos

afinal a aacuterea eacute ainda recente e natildeo se propotildee a encontrar uma metodologia que sirva para todas as ocasiotildees

cada contexto necessitaraacute de uma abordagem especiacutefica Entretanto eacute possiacutevel dizer que os trabalhos que

se apoiarem nessa maneira de compreender o claacutessico e a interaccedilatildeo entre o presente e o passado deveratildeo

ultrapassar a simples constataccedilatildeo de que uma obra conversa com a outra Eacute preciso transpor a abordagem

superficial e redutora atraveacutes de uma metodologia consistente que reflita sobre o como e o porquecirc da

permanecircncia claacutessica Parece ser uma saiacuteda razoaacutevel analisar os trabalhos que se proponham a refletir sobre

a recepccedilatildeo em vaacuterios aspectos que relacionem duas obras ou dois autores que observem a trajetoacuteria de um

texto ou de um conjunto de textos de um mesmo autor que analisem as alusotildees e citaccedilotildees encontradas na

obra de um uacutenico autor dentre outros procedimentos

No Brasil livros como Permanecircncia claacutessica visotildees contemporacircneas da antiguidade greco-romana (2010) de

Bruno Vieira e Maacutercio Thamos marcam o despertar para esse novo encaminhamento dos Estudos Claacutessicos

Haacute ainda outros trabalhos que comeccedilam a trilhar o caminho dos estudos de recepccedilatildeo dos claacutessicos como ldquoA

Greacutecia de Machado de Assisrdquo (2001) de Jacyntho Lins Brandatildeo ldquoShakespeare e o drama satiacutericordquo de Erick

Ramalho e a dissertaccedilatildeo de mestrado de Priscila Maria Mendonccedila Machado Vrbs no Cosme Velho anaacutelise da

presenccedila da literatura latina em Memoacuterias Poacutestumas de Braacutes Cubas (2010) Este trabalho pretende se juntar a

tais colaboraccedilotildees empreendendo uma breve anaacutelise do romance Esauacute e Jacoacute de Machado de Assis

Destacamos inicialmente que o nuacutemero de referecircncias claacutessicas encontradas em Esauacute e Jacoacute (1904) eacute

substancialmente maior do que em Memorial de Aires (1908)8 Essa comparaccedilatildeo nos parece proveitosa uma

vez que ambos os romances estatildeo ligados pelo personagem-narrador-autor Joseacute da Costa Marcondes Aires

o conselheiro mas foram estruturados de maneira diversa Esauacute e Jacoacute eacute narrado em terceira pessoa

enquanto o Memorial de Aires um livro de memoacuterias como evidencia o proacuteprio tiacutetulo estaacute escrito em

primeira Ao abrirmos as paacuteginas de Esauacute e Jacoacute deparamo-nos em primeiro lugar com uma ldquoAdvertecircnciardquo

Quando o conselheiro Aires faleceu acharam-se-lhe na secretaacuteria sete cadernos manuscritos rijamente encapados em papelatildeo Cada um dos primeiros seis tinha o seu

7 ldquoWe classical scholars and teachers have a particular opportunity and responsibility to understand and resist the institutional construction of a self-serving literary Canon and classical tradition and to help students grasp the historical process by which texts are de-historicized appropriated and transformed so that they lose their Power to criticize and call into questionrdquo 8 Ao todo verificamos 34 referecircncias ao mundo claacutessico em Esauacute e Jacoacute enquanto em Memorial de Aires encontramos 16

[209]

nuacutemero de ordem por algarismos romanos I II III IV V VI escritos agrave tinta encarnada O seacutetimo trazia este tiacutetulo Uacuteltimo

A razatildeo desta designaccedilatildeo especial natildeo se compreendeu entatildeo nem depois Sim era o uacuteltimo dos sete cadernos com a particularidade de ser o mais grosso mas natildeo fazia parte do Memorial diaacuterio de lembranccedilas que o conselheiro escrevia desde muitos anos e era a mateacuteria dos seis Natildeo trazia a mesma ordem de datas com indicaccedilatildeo da hora e do minuto como usava neles Era uma narrativa e posto que figurasse aqui o proacuteprio Aires com o seu nome e tiacutetulo de conselho e por alusatildeo algumas aventuras nem assim deixava de ser a narrativa estranha agrave mateacuteria dos seis cadernos Uacuteltimo por quecirc (ASSIS 2018 p 49)

Aires ainda que escondido pelo veacuteu de um narrador onisciente eacute autor de Esauacute e Jacoacute Essa imbricada

operaccedilatildeo articulada pelo autor-empiacuterico Machado de Assis estaacute refletida tambeacutem nos diferentes niacuteveis de

elaboraccedilatildeo intertextual dos dois romances O Memorial em que o narrador fala de si em tom confessional

como se natildeo tivesse preparado a princiacutepio as paacuteginas para o puacuteblico leitor possui uma quantidade menor de

alusotildees ao mundo claacutessico quando comparado a Esauacute e Jacoacute construiacutedo como narrativa agrave parte que visava

provavelmente agrave publicaccedilatildeo

A hipoacutetese de que o desejo do finado fosse imprimir este caderno em seguida aos outros natildeo eacute natural salvo se queria obrigar agrave leitura dos seis em que tratava de si antes que lhe conhecessem esta outra histoacuteria escrita com um pensamento interior e uacutenico atraveacutes das paacuteginas diversas Nesse caso era a vaidade do homem que falava mas a vaidade natildeo fazia parte dos seus defeitos Quando fizesse valia a pena satisfazecirc-la Ele natildeo representou papel eminente neste mundo percorreu a carreira diplomaacutetica e aposentou-se Nos lazeres do ofiacutecio escreveu o Memorial que aparado das paacuteginas mortas ou escuras apenas daria (e talvez de) para matar o tempo da barca de Petroacutepolis (ASSIS 2018 p 49)

Na ldquoAdvertecircnciardquo de Memorial de Aires por sua vez ldquoM de Ardquo alega natildeo possuir habilidade semelhante agrave de

Aires para redigir a narrativa agrave maneira de Esauacute e Jacoacute tendo por isso apenas editado o Memorial para

transformaacute-lo em uma narraccedilatildeo seguida ldquoapesar da forma de diaacuterio que temrdquo

Quem me leu Esauacute e Jacoacute talvez reconheccedila estas palavras do prefaacutecio Nos lazeres do ofiacutecio escrevia o Memorial que apesar das paacuteginas mortas ou escuras apenas daria (e talvez decirc) para matar o tempo da barca de Petroacutepolis Referia-me ao Conselheiro Aires Tratando-se agora de imprimir o Memorial achou-se que a parte relativa a uns dous anos (1888-1889) se for decotada de algumas circunstacircncias anedotas descriccedilotildees e reflexotildees pode dar uma narraccedilatildeo seguida que talvez interesse apesar da forma de diaacuterio que tem Natildeo houve pachorra de a redigir agrave maneira daquela outra ndash nem pachorra nem habilidade Vai como estava mas desbastada e estreita conservando soacute o que liga o mesmo assunto O resto apareceraacute um dia se aparecer algum dia (ASSIS 2009 p 51)

Diante disso parece-nos razoaacutevel afirmar que a disparidade entre as referecircncias ao mundo claacutessico

encontradas em Esauacute e Jacoacute e Memorial de Aires tenha sido uma operaccedilatildeo consciente do autor empiacuterico que

buscou atribuir aos romances o jogo intertextual mais adequado ao contexto de cada um a narrativa

preparada por Aires para a publicaccedilatildeo possui maior abundacircncia de alusotildees do que o diaacuterio pretensamente

iacutentimo do conselheiro A preacute-suposiccedilatildeo expliacutecita de um leitor traz para o texto uma aposta maior no jogo

intertextual e a proacutepria discrepacircncia entre a quantidade de referecircncias ao mundo claacutessico dos dois romances

pode ser compreendida como um jogo empreendido pelo autor empiacuterico

[210]

Entretanto este trabalho concentrar-se-aacute nas referecircncias do romance Esauacute e Jacoacute elegendo aquelas que

oferecem mais frutos para uma anaacutelise da obra que tenha como princiacutepio os estudos recentes sobre a

recepccedilatildeo do claacutessico (evitando portanto a mera constataccedilatildeo da existecircncia de uma alusatildeo citaccedilatildeo ou

referecircncia ao mundo claacutessico no romance) Ainda na jaacute referida ldquoAdvertecircnciardquo de Esauacute e Jacoacute uma explicaccedilatildeo

sobre a escolha do tiacutetulo eacute apresentada ldquoQuanto ao tiacutetulo foram lembrados vaacuterios em que o assunto se

pudesse resumir Ab ovo por exemplo apesar do latim venceu poreacutem a ideia de dar estes dois nomes que o

proacuteprio Aires citou uma vez ESAUacute E JACOacuterdquo

A expressatildeo Ab ovo foi utilizada por Horaacutecio na Arte Poeacutetica em uma exposiccedilatildeo sobre o estilo mais adequado

para uma narrativa

Non fumum ex fulgore sed ex fumo dare lucem cogitat ut speciosa dehinc miracula promat Antiphaten Scyllamque et cum Cyclope Charybdim Nec reditum Diomedis ab interitu Meleagri nec gemino bellum Troianum orditur ab ouo semper ad euentum festinat et in medias res non secus ac notas auditorem rapit et quae desperat tractata nitescere posse relinquit atque ita mentitur sic ueris falsa remiscet primo ne medium medio ne discrepet imum (Hor Ars P 143-152) Que natildeo tira fumo das luzes mas lume do fumo para daiacute mostrar o espetaacuteculo pleno em prodiacutegios seja Antiacutefates Cila e Cariacutebdis junto ao Ciclope Nem inicia em morrer de Meleagro ao voltar Diomedes nem de um ovo gecircmeo comeccedila a guerra de Troia mas vai sempre direto ao assunto e no meio das coisas como se jaacute conhecidas pega o ouvinte e aquilo sem esperanccedila de brilho no trato deixa de lado eacute assim que ele mente mistura verdade no falso sem que do iniacutecio destoe o meio e do meio o arremate (Trad de Guilherme Gontijo Flores)9

Segundo a recomendaccedilatildeo de Horaacutecio eacute desnecessaacuterio que as narrativas tenham sempre como iniacutecio as

origens que engendraram um enredo a histoacuteria da guerra de Troia natildeo precisa ser contada a partir do

nascimento de Helena A guerra pode ser narrada in medias res ou seja comeccedilando pelo meio da histoacuteria

como de fato ocorre na Iliacuteada Entretanto o conselheiro Aires iniciaraacute sua narraccedilatildeo ab ovo contando a

histoacuteria dos irmatildeos Pedro e Paulo desde a gestaccedilatildeo

A referecircncia agrave Arte Poeacutetica natildeo aproveita apenas o conceito de narrativa Ab ovo ndash a que narra desde as

origens ndash mas tambeacutem o mito do nascimento de Helena Leda transformada em gansa potildee dois ovos de

onde nascem os gecircmeos Helena e Poacutelux filhos de Zeus em um ovo e Clitemnestra e Castor filhos de Tiacutendaro

em outro A referecircncia aos ovos gecircmeos (geminum ovum segundo a designaccedilatildeo de Horaacutecio no verso 7) que

9 Gostariacuteamos aqui de agradecer ao Dr Guilherme Gontijo Flores que gentilmente nos ofereceu a sua traduccedilatildeo antes mesmo de publicaacute-la

[211]

originaram dois pares de irmatildeos gecircmeos eacute ainda mais rica se pensarmos que Castor e Poacutelux constituem na

Antiguidade exemplo de amor fraterno tendo sido transformados na constelaccedilatildeo de Gecircmeos Entretanto o

tiacutetulo escolhido para o romance eacute Esauacute e Jacoacute tambeacutem uma referecircncia biacuteblica de briga e desentendimento

entre irmatildeos Esauacute e Jacoacute portanto oferecem um modelo muito distinto de fraternidade daquele

proporcionado por Castor e Poacutelux

Eacute possiacutevel sugerir que Machado de Assis ao recorrer ao conceito Ab ovo em um contexto de nascimento de

gecircmeos aproveita natildeo soacute a ideia de que sua narrativa teria iniacutecio nas origens das vidas de seus protagonistas

A possibilidade de narrar a histoacuteria da guerra de Troia desde o nascimento da mulher que gerou o conflito

entre gregos e troianos soacute existe porque ab ovo Helena estava destinada a engendrar a guerra Da mesma

forma os gecircmeos Pedro e Paulo desde a gestaccedilatildeo estatildeo destinados ao conflito ab ovo repetem o exemplo

dos irmatildeos Esauacute e Jacoacute (muito diferente da histoacuteria de uniatildeo entre irmatildeos de Castor e Poacutelux) Logo apoacutes o

anuacutencio da escolha do tiacutetulo para o romance uma citaccedilatildeo direta de um verso da Divina Comeacutedia de Dante

Alighieri (2009 p 60) chama a atenccedilatildeo e reforccedila a nossa leitura ldquoDigo que quando a alma malfadadardquo10 O

narrador anuncia atraveacutes dessa epiacutegrafe que vai contar a histoacuteria de duas almas mal nascidas que brigaram

e se odiaram desde o uacutetero segundo a cabocla Baacuterbara A questatildeo colocada ab ovo e que atravessaraacute e

concluiraacute a histoacuteria de Esauacute e Jacoacute eacute o oacutedio reciacuteproco dos dois irmatildeos

O capiacutetulo CXXI intitulado como Uacuteltimo encerra o romance e traz em primeiro lugar a referecircncia a Castor

e Poacutelux A uniatildeo momentacircnea de Pedro e Paulo diante do juramento recente feito para a matildee no leito de

morte rende aos irmatildeos a alcunha dos gecircmeos filhos de Leda Entretanto apesar da conciliaccedilatildeo temporaacuteria

ldquoo olho dos amigos natildeo tardou em descobrir que natildeo viviam bem pouco depois que se detestavamrdquo (ASSIS

2018 p 206 grifos nossos) Diante do burburinho dos deputados impressionados com a mudanccedila dos

irmatildeos que antes pareciam tatildeo amigos o conselheiro Aires afirma que Pedro e Paulo ldquosatildeo os mesmosrdquo (ASSIS

2018 p 206) A conclusatildeo de que tivessem brigado pela heranccedila natildeo recebeu resposta do conselheiro (que

tinha teacutedio agrave controveacutersia e portanto preferiu evitar debate) mas este conclui em pensamento que ldquoeles

eram os mesmos desde o uacuteterordquo (ASSIS 2018 p 206 grifos nossos)

Assim a conclusatildeo do romance retoma e reforccedila o conceito Ab ovo que o autor apontou antes mesmo de

anunciar a epiacutegrafe a aversatildeo reciacuteproca entre Pedro e Paulo era ldquopersistente no sangue como necessidade

virtualrdquo (ASSIS 2018 p 206) A visatildeo da profetisa Baacuterbara dessa briga fraternal reforccedila a nossa leitura No

primeiro capiacutetulo do romance intitulado Coisas futuras o autor sugere a releitura das Eumecircnides de Eacutesquilo

Relecirc Eacutesquilo meu amigo relecirc as Eumecircnides laacute veraacutes Piacutetia chamando os que iam agrave consulta ldquoSe haacute aqui Helenos venham aproximem-se segundo o uso na ordem marcada pela

10 ldquoDico che quando lrsquoanima mal natardquo (Trad de Italo Eugenio Mauro)

[212]

sorterdquo[] A sorte outrora a numeraccedilatildeo agora tudo eacute que a verdade se ajuste agrave prioridade e ningueacutem perca a sua vez de audiecircncia (ASSIS 2018 p 54-55)

No trecho acima o narrador refere-se agrave visita de Natividade e Perpeacutetua ao morro do Castelo onde morava

a cabocla Baacuterbara que conforme se dizia poderia prever o futuro A pequena cabocla eacute comparada agrave Piacutetia

sacerdotisa do templo de Apolo que previa sinas e destinos A alusatildeo ao antigo oraacuteculo justifica a consulta agrave

cabocla segundo o narrador um costume ldquovelho e velhiacutessimordquo (ASSIS 2018 p 54) Ao longo da obra muitas

outras referecircncias aos oraacuteculos antigos satildeo feitas e a cabocla do castelo eacute constantemente comparada com

sibilas e Piacutetia

As Eumecircnides encerram a trilogia de Eacutesquilo conhecida como Oresteia Orestes eacute levado a julgamento contra

as Fuacuterias que reclamam o seu direito de vingar os crimes cometidos entre consanguiacuteneos Orestes eacute

perseguido por elas apoacutes assassinar a sua proacutepria matildee Clitemnestra e Egisto para vingar o homiciacutedio de seu

pai Agamecircmnon O ambiente em que se desenvolve a Oresteia eacute marcado pela maldiccedilatildeo de Miacutertilo contra

Peacutelops e toda a sua descendecircncia Peacutelops eacute pai de Atreu e Tiestes que protagonizam um dos mais terriacuteveis

incidentes de crimes consanguiacuteneos da mitologia grega Atreu ao descobrir que sua esposa o traiacutea com seu

irmatildeo Tiestes o expulsa de Argos Tempos depois simula uma reconciliaccedilatildeo e faz com que Tiestes coma as

carnes de seus proacuteprios filhos em um banquete repetindo em alguma medida o exemplo de seu avocirc Tacircntalo

que servira aos deuses a carne de seu filho Peacutelops cuja vida foi restituiacuteda pelas divindades piedosas

A linhagem dos atridas marcada pela maldiccedilatildeo protagoniza diversas histoacuterias em que atridas fazem jorrar o

sangue de atridas Agamecircmnon imola Ifigecircnia para obter bons ventos em direccedilatildeo agrave Troia Clitemnestra torna-

se amante de Egisto ndash filho de Tiestes ndash e com ele assassina Agamecircmnon Orestes vinga o pai e tira a vida da

matildee e de Egisto tambeacutem seu consanguiacuteneo A Oresteia narra o assassinato de Agamecircmnon (Agamecircmnon) o

matriciacutedio vingativo de Orestes e o iniacutecio da perseguiccedilatildeo das Fuacuterias que desejam vinganccedila pela morte de

Clitemnestra (Coeacuteferas) e o julgamento seguido de absolviccedilatildeo de Orestes (Eumecircnides) Nas Eumecircnides

portanto a sucessatildeo de assassiacutenios entre os atridas tem fim com o julgamento de Orestes O ressentimento

das Fuacuterias diante da impossibilidade de vingar o matriciacutedio de Clitemnestra eacute aplacado por Atena que as

convence a renunciarem ao direito de vinganccedila e a assumirem uma nova funccedilatildeo As Fuacuterias transformam-se

em Eumecircnides natildeo mais deusas da vinganccedila e do sangue mas sim da beneficecircncia e do perdatildeo Destacamos

aqui o seguinte trecho do discurso persuasivo de Atena para convencer as Fuacuterias a aceitarem a absolviccedilatildeo

de Orestes

Tambeacutem espero que natildeo seja vosso intuito exacerbar como se os homens fossem galos a coacutelera no coraccedilatildeo dos cidadatildeos e neles instilar a sede de homiciacutedios

[213]

que lanccedila irmatildeos insanamente contra irmatildeos ateacute levaacute-los ao extermiacutenio reciacuteproco deixai que eles preservem sua valentia para lutar contra inimigos estrangeiros sempre ao alcance de quem traz no coraccedilatildeo um desejo febril de gloacuteria verdadeira mas natildeo queremos ter notiacutecia em tempo algum de paacutessaros lutando na mesma gaiola (Aesch Eum 1138-1149 Trad Maacuterio da Gama Kury)

Ao reler as Eumecircnides portanto o leitor natildeo apenas encontraraacute Piacutetia cuja fala Machado de Assis traz para o

seu romance mas tambeacutem uma trama cujo eixo principal eacute justamente aquilo que Atena natildeo mais deseja

ouvir em notiacutecias irmatildeos insanamente contra irmatildeos paacutessaros lutando na mesma gaiola As receacutem-tornadas

Eumecircnides confirmam os anseios da deusa

Jamais possa a discoacuterdia insaciaacutevel vociferar possessa na cidade e o poacute da terra nunca mais absorva o sangue escuro de seus proacuteprios filhos por causa de paixotildees inspiradoras de lutas fratricidas oriundas da acircnsia irresistiacutevel de vinganccedila que leva os homens agrave destruiccedilatildeo (Aesch Eum 1283-1290 Trad Maacuterio da Gama Kury)

As deusas beneacutevolas reiteram o temor das lutas fratricidas que levam os homens agrave destruiccedilatildeo Podemos

supor portanto que Machado de Assis natildeo queria que viacutessemos apenas Piacutetia e a fila de helenos aguardando

suas prediccedilotildees segundo os usos da sorte mas tambeacutem a maldiccedilatildeo dos atridas que levou Atreu e Tiestes a

disputarem Micenas de forma violenta e cruel Em alguma medida a disputa entre irmatildeos que marca a

maldiccedilatildeo dos atridas encontra eco em muitas histoacuterias biacuteblicas Caim e Abel Isaac e Ismael e Esauacute e Jacoacute

Machado de Assis representa em seu romance uma tensatildeo que atravessou as trageacutedias gregas e habita o

imaginaacuterio ocidental atraveacutes de todas as histoacuterias que nos constituem os conflitos entre consanguiacuteneos as

disputas entre irmatildeos os fratriciacutedios Natildeo por acaso os irmatildeos ganham os nomes dos apoacutestolos Pedro e

Paulo que protagonizam um conflito em Antioquia registrado no Novo Testamento (Gl 2 11-16) As

desavenccedilas entre os gecircmeos Pedro e Paulo encarnam ainda o embate poliacutetico de um tempo vivido por

Machado de Assis o conflito entre a monarquia e a repuacuteblica Consolidada a Repuacuteblica os gecircmeos tornam-

se deputados mas permanecem dissidentes poliacuteticos Esse conflito que atravessa o livro e perdura no uacuteltimo

capiacutetulo fora identificado pela primeira vez pela ldquoPiacutetia do Norterdquo (ASSIS 2018 p 262) a cabocla Baacuterbara

Assim Esauacute e Jacoacute repetindo o uso de muitas das antigas trageacutedias demonstra que as palavras do oraacuteculo se

cumprem natildeo importando quais tenham sido os esforccedilos dos heroacuteis e heroiacutenas para fugir do Destino

Percebemos portanto que as referecircncias claacutessicas de Esauacute e Jacoacute aqui analisadas produzem sentidos

significativos para a construccedilatildeo do romance

[214]

Referecircncias bibliograacuteficas

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Mulheres Travestidas do Parlamento de Aristoacutefanes ao Sertatildeo das Gerais de Rosa

Edinaura Linhares Ferreira Lima

edinaura01gmailcom

Neste artigo visamos discutir o processo de travestimento de

personagens masculinas em femininas em duas obras que apesar

de cronologicamente distantes possuem questotildees que mantecircm um

diaacutelogo intertextual e se cruzam em tempos diversos com

questionamentos humanos pertencentes a diferentes eacutepocas mas

que refletem os mecanismos de poder pertinentes ao ser humano

Nesse contexto o comedioacutegrafo grego Aristoacutefanes com sua peccedila

As mulheres no parlamento (393-392 aC) apresenta diaacutelogos que se

cruzam com a obra Grande Sertatildeo Veredas (1956) do escritor

brasileiro Joatildeo Guimaratildees Rosa

Decerto precisa-se entender um pouco do contexto no qual viveu

o comedioacutegrafo Aristoacutefanes isto eacute a Atenas do seacuteculo V aC Sabe-

se que nesse periacuteodo histoacuterico o teatro tinha um papel importante

na vida dos gregos e por esse motivo o poeta participou de

concursos de peccedilas teatrais Aristoacutefanes participou de vaacuterios

concursos entretanto essas competiccedilotildees eram incentivadas no

governo do tirano Pisiacutestrato como um subterfuacutegio para continuar e

se manter no poder e o estratagema foi usar as artes para a

manipulaccedilatildeo das camadas populares Aleacutem da arte ele tambeacutem

usou da religiatildeo e do culto de adoraccedilatildeo das massas aos deuses para

conseguir prestiacutegio popular e fazer com que as famiacutelias

aristocraacuteticas perdessem influecircncia diante dos mais pobres ldquo[]

afirmou-se que o grande desenvolvimento das festas religiosas e o

[216]

interesse pelas artes traccedilo caracteriacutestico dos tiranos gregos brotavam apenas do desiacutegnio de afastar da

poliacutetica as massas inquietas e distraiacute-las sem perigordquo (JAEGER 2013 p 278)

Desse modo diante de um contexto poliacutetico de falso interesse pelas artes e pela religiatildeo estas que foram

usadas para desviar a atenccedilatildeo da populaccedilatildeo da poliacutetica surgiram alguns comedioacutegrafos sendo Aristoacutefanes

um deles Estima-se que ele tenha escrito em torno de quarenta peccedilas durante sua vida O poeta chegou ateacute

a ganhar alguns dos concursos mas infelizmente poucas de suas peccedilas permaneceram e chegaram ateacute a

contemporaneidade pois muitas se perderam e de outras restaram apenas fragmentos ficando desse modo

onze peccedilas como As Nuvens As Vespas Lisiacutestrata As ratildes As mulheres no parlamento Os paacutessaros As

Tesmofariantes Os acarnienses Os Cavaleiros A paz As aves

Segundo Jaeger (2013 p 278)

Nenhuma exposiccedilatildeo da cultura do uacuteltimo terccedilo do Seacuteculo V pode passar por cima de um fenocircmeno para noacutes tatildeo estranho quanto atraente a comeacutedia aacutetica Eacute certo que os antigos a denominaram ldquoespelho da vidardquo nela se pensavam na natureza humana sempre igual e nas suas fraquezas

Aleacutem disso eacute importante ressaltar que o teatro representava uma determinada realidade cheia de conflitos

que no caso das comeacutedias ainda continuam sendo vaacutelidas O teatro grego representava a vida do cotidiano

grego junto ao contexto religioso isto eacute trata-se de segundo Vernant (2006 p 79-80) ldquo[] o jogo e a festa

a mascarada e o disfarce a experiecircncia de um desterro em relaccedilatildeo ao curso de norma das coisas enfim

fundar o teatro em que no palco a ilusatildeo ganha corpo e se anima e o fictiacutecio se mostra como se fosse

realidaderdquo

Desse modo o teatro estava no acircmbito religioso como uma forma de culto ao deus Dioniacutesio ocasiatildeo em que

havia a encenaccedilatildeo de peccedilas para os cidadatildeos gregos com um concurso de representaccedilotildees a serem exibidas

no festival de teatro Para um poeta da eacutepoca era um grande prestiacutegio ganhar o festival nas Dionisiacuteas pois

ldquoas trageacutedias e comeacutedias antes exibidas diante de incontaacuteveis multidotildees no vasto teatro ao ar livre eram

feitas para impressionar os estrangeiros com riqueza espiacuterito puacuteblico e supremacia artiacutestica de Atenasrdquo

(HAIGH 1907 p 8 traduccedilatildeo nossa)

Por isso precisa-se perceber que os comedioacutegrafos desse periacuteodo histoacuterico passaram a refletir sobre sua

democracia sobre a realidade que os cercava como cidadatildeos e sobre os problemas que poderiam refletir em

sua comunidade

A comeacutedia visa as realidades do seu tempo mais do que qualquer arte Por mais que isso a vincule a uma realidade temporal e histoacuterica eacute importante natildeo perder de vista que o propoacutesito fundamental eacute apresentar aleacutem da efemeridade das suas representaccedilotildees certos aspectos eternos do Homem que escapam agrave elevaccedilatildeo poeacutetica da epopeia e da trageacutedia (JAEGER 2013 p 415)

[217]

Para isso o comedioacutegrafo serviu-se do poder da palavra passando a usaacute-lo nas peccedilas como uma forma de

censurar essa sociedade A palavra construiria o discurso e ele era importante para persuadir as pessoas

Desse modo o poeta coacutemico colocou na performance do ator e na oratoacuteria advinda de seus textos uma

maneira de natildeo somente persuadir mas de provocar o riso ao mesmo tempo em que criticava os problemas

pouco discutidos e ignorados pela maioria do povo grego As peccedilas de teatro ldquocoincidem com o triunfo da

democracia a hegemonia de Atenas o nascimento da histoacuteria e a estatutaacuteria de Fiacutedias Eacute o seacutec V o seacuteculo de

Peacutericles o seacuteculo claacutessicordquo (BARTHES 1990 p 61)

Durante muito tempo a comeacutedia natildeo foi tatildeo estudada porque trata de assuntos constrangedores

escandalizadores que causam o risiacutevel no puacuteblico por ridicularizarem as pessoas e principalmente

debocharem de uma parte da populaccedilatildeo Segundo Jaeger (2013 p 415) ldquoa origem da comeacutedia se encontra

no incoerciacutevel impulso das naturezas mais comuns poderiacuteamos ateacute dizer na tendecircncia popular realista

observadora e criacutetica que escolhe como predileccedilatildeo imitar o que eacute mau censuraacutevel indignordquo

Desse modo na peccedila As mulheres no parlamento Aristoacutefanes mostra-nos por meio de um grupo de mulheres

que querem tomar o poder por meio da apropriaccedilatildeo poliacutetica a imitaccedilatildeo do discurso ou da retoacuterica masculina

isto eacute mediante a palavra o convencimento a incitaccedilatildeo do puacuteblico que estava na assembleia Aleacutem disso as

mulheres pegam as roupas dos maridos durante agrave noite colocam barbas falsas esforccedilam-se para andar e

falar como homens e datildeo um jeito de sair de casa durante alguns dias para tomarem sol e natildeo parecerem tatildeo

brancas jaacute que as mulheres gregas tomavam pouco sol pois natildeo saiacuteam da casa com frequecircncia Assim o plano

de tomada do poder seria concretizado na Assembleia um local puacuteblico proacuteprio dos homens gregos do qual

a mulher grega ateniense natildeo participava pois aquele local de fala era dado somente ao cidadatildeo grego

Aleacutem disso a personagem Praxaacutegora e as outras mulheres ficam insatisfeitas com o governo estabelecido

pelos homens gregos tambeacutem se encontram fartas da maacute administraccedilatildeo puacuteblica corrupta por meio da qual

se estabelecia a grande desigualdade social entre a aristocracia e o povo e entatildeo elas se irritam com o ganho

advindo de interesses particulares e natildeo coletivos Por isso a personagem convoca todas as mulheres

esposas de gregos para insuflarem o ambiente da assembleia com o discurso de tomada de poder sendo este

passado para as mulheres que saberiam administraacute-lo melhor

Ademais Praxaacutegora justifica os motivos que levariam as mulheres a exercerem um governo bem melhor do

que o dos homens Ela discursa mostrando os problemas existentes na sociedade grega acerca das mulheres

e a maneira conservadora de que as viviam dentro da sociedade ateniense elas cuidariam do governo da

mesma maneira cuidadosa que administram suas casas por serem mais conservadoras do que os homens

elas fariam tudo da mesma maneira que sempre fizeram poupariam a vida dos jovens pois por serem matildees

natildeo gostariam que seus filhos participassem de guerras e nem que eles morressem acabariam com os

[218]

conflitos e lutas entre os gregos Decerto elas saberiam lidar melhor com o dinheiro puacuteblico dividiriam de

modo mais igualitaacuterio e natildeo seriam enganadas jaacute que elas mesmas cuidariam da despesa e organizaccedilatildeo de

seus lares Eram aleacutem disso haacutebeis em enganar seus maridos cotidianamente

Apesar do discurso eloquente da assembleia e da tomada do poder questiona-se os detalhes dessa

administraccedilatildeo puacuteblica como funcionaria esse novo governo Assim eacute explicado que tudo seria repartido

todos deveriam entregar suas posses individuais e materiais todos os dias haveria um jantar coletivo para

todas as pessoas e a comida seria repartida de forma igualitaacuteria os filhos seriam do grupo natildeo haveria um

pai em particular apenas saberiam quem eacute a matildee isso o que colaboraria para que cada jovem tratasse os

mais velhos de forma justa pois qualquer um poderia ser seu pai Todos teriam relaccedilatildeo sexual com quem

quisessem tendo os velhos e as velhas e os feios e as feias prioridade na escolha dos parceiros mais jovens e

bonitos e em terem saciadas os seus desejos sexuais Em suma haveria a busca por uma sociedade mais

igualitaacuteria para todos mas ainda se apresentava resistecircncia de alguns contra o novo governo pois estes

estavam acostumados a terem privileacutegios individuais e a roubarem do povo Apesar de a peccedila ser irreal para

a eacutepoca a mulher ateniense casada com o cidadatildeo grego ateniense foi colocada como foco em uma lideranccedila

da poacutelis (πόλις)

Sob um ponto de vista similar agrave peccedila As mulheres no parlamento na obra Grande Sertatildeo Veredas do escritor

Joatildeo Guimaratildees Rosa aborda-se o travestimento feminino atraveacutes da personagem Diadorim que eacute uma

mulher travestida de homem O seu intuito era viver como um jagunccedilo dos sertotildees das Gerais seguindo seu

pai Joca Ramiro que era o maior liacuteder de um grupo de jagunccedilo dessa regiatildeo

A palavra ldquojagunccedilordquo e a instituiccedilatildeo da jagunccedilagem revestem-se assim de importacircncia estrateacutegica para se compreender o fenocircmeno da violecircncia e do crime no Brasil Ao retratar o paiacutes sob o acircngulo da jagunccedilagem Guimaratildees Rosa traz agrave tona o componente da violecircncia que estaacute na origem de todo poder constituiacutedo (BOLLE 2004 p 91-92)

Sem duacutevidas houveram inuacutemeros contextos para a criaccedilatildeo dos heroacuteis em Grande sertatildeo Veredas Diadorim eacute

jagunccedilo masculino valente desbravador destemido Diadorim eacute a proacutepria dualidade do ser partindo de

seus vaacuterios nomes e significados existentes ao longo da narrativa Primeiro em sua adolescecircncia eacute

apresentado ao leitor como Reinaldo que significa rei ou aquele que governa segundo conselhos Anos

depois quando jaacute homem eacute lhe dado o nome Diadorim que sendo esmiuccedilado abriga segmentos como Diaacute

que remete semanticamente ao Diabo a dea a Deus ao dia em suas conotaccedilotildees de tempo luz dor durar e

por fim ao uacuteltimo de todos os nomes Maria Deodorina da Feacute Bettancourt Marins

Os traccedilos baacutesicos da personagem mantecircm sempre uma mesma configuraccedilatildeo privilegiadora de algumas aacutereas da personalidade Sua posiccedilatildeo eacute numinosa na seacuterie filial como primogecircnita ou unigecircnita [] o pai natildeo tem filhos homens adultos ou natildeo os tem de todo Ela corta os cabelos enverga trajes masculinos abdica das fraquezas femininas - faceirice esquivanccedila sustos - cinge os seios e as ancas trata seus ferimentos em segredo assim como se banha

[219]

escondido Costuma ser descoberta quando ferida o corpo eacute desvendado guerreia morre (GALVAtildeO 1998 p 12)

Dessa maneira Diadorim natildeo eacute incrustado somente no romance Grande sertatildeo Veredas mas refaz-se

historicamente no Brasil no indiviacuteduo que habita o sertatildeo no homem que foi menosprezado pelos poderosos

da eacutepoca mas que mostrou que o sertanejo queria seu lugar de direito no sertatildeo Mesmo que fosse por meio

da forccedila da arma era assim que o homem sertanejo lidava matava e morria na base da faca e do fazer sangrar

do modo como fizeram Diadorim e seu inimigo Hermoacutegenes Esfaquearam-se e sangraram ateacute a morte de

ambos morrendo Diadorim com bravura e honra e cumprindo sua vinganccedila contra a morte de seu pai

Sangue Cortavam toucinho debaixo de couro humano esfaqueavam carnes Vi camisa de baetilha e vi as costas de homem remando no caminho para o chatildeo como corpo de porco sapecado e rapado [] Ao ferreio as facas vermelhas no embrulhaacutevel A faca a faca eles se cortaram ateacute os suspensoacuterios O diabo na rua no meio do redemunho Assim ah ndash mirei e vi ndash o claro claramente ai Diadorim cravar e sangrar o HermoacutegenesAh cravou ndash no vatildeo ndash e ressurtiu o alto esguicho de sangue porfiou para bem matar (ROSA 1994 p 855)

Decerto para apresentar o heroacutei Diadorim eacute necessaacuterio tambeacutem mostrar um dos contextos de criaccedilatildeo da

obra jaacute que eacute propagado o conhecimento que Rosa tinha do Brasil o autor era um homem que observava e

transmutava o paiacutes em suas obras o que tambeacutem fez em Grande Sertatildeo Veredas O criacutetico Antocircnio Cacircndido

(2002 p 122) jaacute mostrava em seu ensaio O homem dos avessos a enorme inspiraccedilatildeo que o escritor buscava

no povo brasileiro e na observaccedilatildeo documentaacuteria refletida em suas obras

a experiecircncia documentaacuteria de Guimaratildees Rosa a observaccedilatildeo da vida sertaneja a paixatildeo pela coisa e pelo nome da coisa a capacidade de entrar na psicologia do ruacutestico - tudo se transformou em significado universal graccedilas agrave invenccedilatildeo que subtrai a matriz regional para fazecirc-lo exprimir os grandes lugares comuns sem as quais a arte natildeo sobrevive dor juacutebilo oacutedio amor morte - para cuja oacuterbita nos arrasta a cada instante mostrando que o pitoresco eacute acessoacuterio e que na verdade o sertatildeo eacute o mundo

Com o intuito de adentrar na subjetividade da vida sertaneja Rosa colocou heroacuteis diferentes em seu

romance que natildeo habitavam espaccedilos urbanos e movimentados das grandes metroacutepoles mas nos apresentou

heroacuteis do sertatildeo que falavam viviam e mostravam um povo pouco conhecido do resto do Brasil Assim

tambeacutem jaacute salientava o tambeacutem escritor brasileiro Euclides da Cunha (1982 p 91) em sua obra Os Sertotildees

O sertanejo eacute antes de tudo um forte Natildeo tem o raquitismo exaustivo dos mesticcedilos neurastecircnicos do litoral [] Agrava-o a postura normalmente abatida num manifestar de displicecircncia que lhe daacute um caraacuteter de humildade deprimente [] Entretanto toda esta aparecircncia de cansaccedilo ilude [] Basta o aparecimento de qualquer incidente exigindo-lhe o desencadear das energias adormidas O homem transfigura-se [] e da figura vulgar do tabareacuteu canhestro reponta inesperadamente o aspecto dominador de um titatilde acobreado e potente num desdobramento surpreendente de forccedila e agilidade extraordinaacuterias

Indubitavelmente natildeo poderia ausentar-se a historicidade em suas narrativas Assim Rosa com o propoacutesito

de apresentar ao leitor o lugar comum de uma parcela excluiacuteda da sociedade retratou a figura de jagunccedilo ou

de cangaceiro Para Facoacute (1991) natildeo havia distinccedilatildeo entre os dois ambos representavam o sertanejo

[220]

valente tatildeo bem descrito no romance de Rosa este que criticou em seu livro e descreveu com minuacutecias o

contexto de violecircncia marginalidade e opressatildeo pelas quais passava o sertanejo

O Cangaccedilo fenocircmeno que reverberou no sertatildeo brasileiro na deacutecada de 30 foi uma resposta ao menosprezo

da elite dominante da figura do sertanejo pobre miseraacutevel castigado com a seca no sertatildeo Nordestino

desprovido de riquezas uma figura simploacuteria e cansada das injusticcedilas sociais Foi com a revolta dos

sertanejos que os jagunccedilos se fincaram no Nordeste revoltaram-se e pegaram em armas surgindo os

temidos cangaceiros

[] o presidente [] vangloriava-se de ter eliminado o cangaceirismo em todo o Cearaacute Perseguira-o eacute verdade prendera centenas de sertanejos insubmissos matara muitos destroccedilara grupos inteiros Mas a base fundamental a matriz do cangaceiro e do jagunccedilo permanecia intocada o monopoacutelio da terra onde o trabalhador vivia com o um semi-servo O latifuacutendio produzia o mal e o alimentava Provocava a miseacuteria entre os despossuiacutedos em cujo seio nasciam os bandoleiros que se voltavam contra o latifuacutendio ainda que de maneira inconsciente Mas a forccedila deste era tatildeo grande ainda que conseguia corrompecirc-los desviaacute-los do seu caminho de rebeliatildeo contra a ordem dominante e colocaacute-los a seu serviccedilo aliciando-os com os jagunccedilos para sua proacutepria defesa [] Eacute o capanga ou jagunccedilo na fazenda de um grande proprietaacuterio Os proacuteprios bandos autocircnomos se vecircem enredados nas malhas do latifundiaacuterio Para fugir agraves perseguiccedilotildees da poliacutecia ocultam-se [] numa grande fazenda abrigo em geral inviolaacutevel (FACOacute 1991 p 173)

Entatildeo do humilde e aparente subserviente homem que tirava o chapeacuteu de palha na presenccedila de pessoas

importantes desse homem sertanejo e nordestino surgiram os cangaceiros insubmissos Haacute ldquoa formaccedilatildeo de

grupos de cangaceiros que lutam de armas nas matildeos assaltando fazendas saqueando comboios e armazeacutens

de viacuteveres nas proacuteprias cidades e vilasrdquo (FACOacute 1991 p 34)

Decerto o jagunccedilo foi instituiacutedo em um contexto patriarcal e conservador Esses homens trabalhavam para

fazendeiros e poliacuteticos sendo em alguns momentos vistos como ladrotildees em outros como heroacuteis Eles

tinham no meio de outros sertanejos o seu lugar que tinha um papel masculino definido Assim Rosa

retratou em sua obra a sociedade patriarcal existente no Sertatildeo na deacutecada de 50 A sociedade retratada nos

sertotildees das Gerais era similar agrave do sertatildeo Nordestino

O nordestino eacute definido como um homem que se situa na contramatildeo do mundo moderno que rejeita suas superficialidades sua vida delicada artificial histeacuterica Um homem de costumes conservadores ruacutesticos aacutesperos masculinos O nordestino eacute definido como um macho capaz de resgatar aquele patriarcalismo em crise um ser viril capaz de retirar sua regiatildeo da situaccedilatildeo de passividade e subserviecircncia em que se encontrava (ALBUQUERQUE JUacuteNIOR 2013 p 150)

Dessa maneira Rosa criou seus jagunccedilos agrave moda dos bravos homens jaacute existentes na Caatinga brasileira Os

chamados cangaceiros foram comuns no Sertatildeo Nordestino e assim como os jagunccedilos dos sertotildees das

Gerais eram homens regidos por leis proacuteprias Em sua grande maioria eram homens viris que adentraram a

Caatinga na deacutecada de 30

[221]

Os maiores cangaceiros entendidos estes como os chefes de grupo de maior expressatildeo gostavam da vida do cangaccedilo Num sertatildeo profundamente conturbado pelas disputas entre chefes poliacuteticos lutas de famiacutelias ausecircncia de manifestaccedilotildees riacutegidas e eficazes de um poder puacuteblico longinquamente litoracircneo sertatildeo povoado por um tipo especial de homem individualista sobranceiro autocircnomo desacostumado a prestar contas de seus atos [] A figura do cangaceiro homem sem patratildeo vivendo das armas infenso a curvaturas era razoavelmente bem aceita naquele meio (MELLO 2004 p 116-117)

Assim os jagunccedilos de Rosa assemelhavam-se a tantos outros que existiram no paiacutes mas o personagem

Diadorim com seu travestimento tinha o intuito de criticar mostrando agrave sociedade que mesmo em uma

conjuntura patriarcal existem Diadorins seres androacutegenos ambiacuteguos que deixam agrave mostra aspectos da

sociedade brasileira natildeo visiacuteveis para a grande maioria dos brasileiros

A fumaccedila dos ticcedilotildees deu na cara de Diadorim ndash ldquoFumacinha eacute do lado ndash do delicadordquo [] Aquilo lufou De rempe tudo foi um atildeo e um catildeo mas o que havia de haver eu jaacute sabia Oap o assoprado de um refugatildeo e Diadorim estava de encontro no Fancho-Bode arrumou matildeo nele meteu um sopapo - um safano nas queixadas e uma sobarbada e calccedilou o peacute se fez em fuacuteria Deu com Fancho-Bode todo no chatildeo e jaacute se curvou encima e o punhal parou ponta diantinho da goela do dito bem encostado no gogoacute [] Diadorim mandou tambeacutem que Fancho se levantasse que puxasse tambeacutem da faca viesse melhor se desempenhar Mas o Fancho-Bode se riu amistoso []- ldquooxente Tu eacute manu velho patriacuteciordquo (ROSA 1994 p 219-220)

Conforme a personagem de Diadorim as mulheres gregas na peccedila As mulheres no Parlamento tambeacutem

utilizaram como subterfuacutegio o travestimento para que alcanccedilassem uma possiacutevel visibilidade e lideranccedila em

suas sociedades

Tanto na peccedila de Aristoacutefanes como no romance de Rosa as mulheres tinham seu lugar estabelecido Na

Greacutecia Antiga as funccedilotildees sociais da mulher eram a casa e os ritos religiosos Entatildeo os contextos de maior

permanecircncia das mulheres atenienses eram a famiacutelia o silecircncio o lar ou a casa (οἶκος) ou seja o seu lugar

era o privado natildeo lhes sendo possiacutevel andar nas ruas gregas desacompanhadas Segundo Ferraz Juacutenior

(1993 p 27) ldquoa palavra privado tinha o sentido deprivus de ser privado de daquele acircmbito em que o homem

submetido agraves necessidades da natureza buscava a sua utilidade no sentido de meios de sobrevivecircncia Nese

espaccedilo natildeo havia liberdaderdquo Por outro lado o lugar destinado ao homem era a poacutelis (πόλις) ao homem ao

puacuteblico ao cidadatildeo poliacutetico (πολίτικος) era permitido andar livremente pelas ruas atenienses

Tanto quanto em uma sociedade patriarcal agrave mulher era permitido o silecircncio tendo em vista que havia a

desconexatildeo com a famiacutelia no momento do casamento existindo uma ruptura completa entre a mulher e seus

laccedilos consanguiacuteneos Segundo Coulanges (1998 p 42) ldquoo casamento deu-lhe segundo nascimento

Doravante estaraacute colocada no lugar de filha de seu maridordquo

Assim a mulher ateniense era dada agrave famiacutelia do marido sendo deslocada do seu lugar de conviacutevio e afetos

com o qual natildeo teria mais contato A casa era a sede da famiacutelia e as relaccedilotildees familiares eram baseadas na

[222]

diferenccedila relaccedilatildeo de comando e de obediecircncia donde a ideia do pater famiacutelias do pai do senhor de sua

mulher seus filhos e seus escravos (FERRAZ JUacuteNIOR 1993 p 27) Isto eacute o pater famiacutelias era o homem que nas

sociedades antigas detinha para si o poder sobre o que houvesse de material escravo e feminino Segundo

Aristoacuteteles (Pol 1253b) apresentando uma definiccedilatildeo distinta e realista para o conceito o pater famiacutelias envolvia ldquoo

poder do senhorio [despotikecirc] sobre seus escravos marital [gamikecirc] o do marido sobre a mulher paternal [patrikecirc]

o do pai sobre os filhosrdquo

Na sociedade descrita pelo escritor Joatildeo Guimaratildees Rosa assim como na representada por Aristoacutefanes estaacute

enraizado o patriarcado contexto em que a mulher respeitada eacute a que habita os lares Para o leitor eacute colocada

claramente a visatildeo machista dos jagunccedilos no momento em que o heroacutei narra que as mulheres existem para a

satisfaccedilatildeo sexual do homem e que para poucas eacute dado um lar apenas agraves escolhidas para serem esposas

Aleacutem disso eacute colocado que natildeo existiam mulheres na vida de jagunccedilagem

[] Com natildeo terem mulher nenhuma laacute eles sacolejavam bestidades ndash ldquoSaindo por aiacuterdquo ndash dizia um ndash ldquoqualquer uma que seja natildeo me escapolerdquo Ao que contavam casos de mocinhas ensinadas por eles aproveitavelmente de seguida em horas safadas ndash ldquoMulher eacute gente tatildeo infelizrdquo ndash me disse Diadorim uma vez depois que tinha ouvido as estoacuterias (ROSA 1994 p 237)

Consoante o romance roseano o poder constituiacutedo pelos jagunccedilos brasileiros natildeo permitia que houvessem

mulheres lutando junto com os homens nas contendas e guerras que aconteciam nas lutas pelo poder

instituiacutedo dentro dos grupos de jagunccedilos Por esse motivo Diadorim ou Maria Diadorina apresentou-se

como homem para poder ser aceita e respeitada como um igual sendo de linhagem nobre e herdeira do

bando tendo tido como pai um liacuteder de um grande bando de jagunccedilos Assim era Diadorim uma mulher

escondida em meio a homens Segundo Galvatildeo (1998 p 12)

Essa personagem frequenta a literatura as civilizaccedilotildees as culturas a histoacuteria a mitologia Filha de pai sem concurso de matildee seu destino eacute assexuado natildeo pode ter amante nem filho Interrompe a cadeia das geraccedilotildees como se fosse um desvio de tronco central e a natureza a abandonasse por inviabilidade Sua potecircncia vital eacute voltada para traacutes para o pai natildeo tomaraacute outro homem Mulher maior de um lado acima da determinaccedilatildeo anatocircmica menor de outro suspensa do acesso agrave maturidade presa do laccedilo paterno mutilada nos muacuteltiplos papeacuteis que a natureza e sociedade lhe oferecem

Outro ponto em comum entre as obras eacute a grande oratoacuteria das personagens possuindo tanto Diadorim como

Praxaacutegoras o dom da oratoacuteria de convencer e incitar as outras personagens envolvidas Assim Diadorim

convence incita durante boa parte da trama do romance jaacute Praxaacutegoras faz incitaccedilatildeo agraves mulheres e depois

tenta convencer na Assembleia Segundo Ferreira (2010 p 15)

O termo persuadir origina-se de persuadere (per + suadere) Per como prefixo significa lsquode modo completorsquo Suadere equivale a lsquoaconselharrsquo [] Persuadir conteacutem em si o convencer (cum + vincere) [] Persuadir mover pelo coraccedilatildeo pela exploraccedilatildeo do lado emocional (as paixotildees) [] Convencer mover pela razatildeo pela exposiccedilatildeo de provas loacutegicas []

[223]

Sob o mesmo ponto de vista a peccedila As mulheres no parlamento e o livro Grande Sertatildeo Veredas trazem

reflexotildees sobre as accedilotildees do homem e o poder destinado ao masculino e a necessidade de travestimento do

feminino para conseguir ter vez e voz dentro de sociedades patriarcais As personagens criadas por

Aristoacutefanes e por Rosa fizeram-se ouvir mesmo que por meio de um estratagema Assim as mulheres usaram

de ardis para contornarem os mecanismos de poder presentes em suas sociedades

Portanto os escritores nos deixaram como legado o ensinamento de que a mulher pode participar de

determinados segmentos da sociedade aos quais anteriormente era vetado o puacuteblico feminino mostrando

ainda os autores que independentemente do tempo transcorrido entre as obras as mulheres devem

continuar a infringir as normas estabelecidas pelo patriarcado e que no final de suas trajetoacuterias elas podem

tomar para si um lugar que lhes eacute de direito retomando a voz em contextos prioritariamente masculinos

Referecircncias bibliograacuteficas

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MELLO F P Guerreiros do Sol Violecircncia e banditismo no Nordeste do Brasil Satildeo Paulo A Girafa 2004

ROSA J G Grande Sertatildeo Veredas Rio de Janeiro Nova Aguillar 1994

Cantaacuteteis de Chico Ceacutesar a poesia nordestina com um peacute na elegia latina

Sonia Aparecida dos Santos

ssantoscpsgmailcom

O presente trabalho foi realizado com

apoio do Conselho Nacional de

Desenvolvimento Cientiacutefico e Tecnoloacutegico

(CNPq)

Em um dos versos de Possessatildeo do ontem Jorge Luiacutes Borges afirma

que ldquotodo poema eacute com o tempo uma elegiardquo Eacute nessa concepccedilatildeo

lato sensu que muitas vezes modernamente se entende o gecircnero

que em sua origem era definido sobretudo por uma questatildeo

formal a presenccedila de diacutesticos formados por hexacircmetros e

pentacircmetros sucessivamente modelo que teve como uacuteltimo

representante em Roma o poeta Oviacutedio Apesar disso eacute fato que a

elegia atravessou o tempo e o espaccedilo e foi se transformando

reinventando-se e perpassou praticamente toda a produccedilatildeo liacuterica

ocidental chegando aos nossos dias Levando em conta essa

questatildeo o presente estudo se dedica agrave anaacutelise de alguns poemas

que compotildeem o livro Cantaacuteteis Cantos elegiacuteacos de amozade do

poeta e compositor paraibano Chico Cesar Em nossa anaacutelise

buscaremos perceber de que modo aspectos da elegia amorosa

romana sobretudo a ovidiana satildeo retomados e remodelados na

obra moderna atraveacutes de alusotildees agrave obra Amores

[225]

Introduccedilatildeo

ldquoTodo poema com o tempo eacute uma elegiardquo o verso de Jorge Luiacutes Borges presente no poema ldquoPossessatildeo do

ontemrdquo1 remete a uma concepccedilatildeo comumente utilizada acerca da definiccedilatildeo da esteacutetica elegiacuteaca isto eacute como

produccedilatildeo cuja temaacutetica se refere a assuntos lamentosos de ausecircncia luto e desengano

Sabemos que na Greacutecia do seacuteculo VII aC poreacutem a poesia elegiacuteaca natildeo se assentava sobre este ou aquele

tema quer de lamento ou natildeo mas versava sobre os mais diversos assuntos Aleacutem disso seu criteacuterio de

definiccedilatildeo era o meacutetrico sua forma tiacutepica era o diacutestico elegiacuteaco formado pela uniatildeo de um hexacircmetro seguido

de um pentacircmetro ambos de base datiacutelica2

Em Roma eacute notoacuterio que aleacutem de Corneacutelio Galo (aprox 69 aC ndash 26 aC) considerado o primeiro elegiacuteaco

romano e de Catulo (aprox 87-57 ou 54 aC) terem produzido elegias eacute uma triacuteade de poetas do periacuteodo

augustano Tibulo (aprox 60-19 a C) Propeacutercio (aprox 50-16 a C) e Oviacutedio (43 a C-17 d C) que

desenvolve a mais consistente produccedilatildeo desse tipo poeacutetico Tais autores foram aleacutem dos antecessores em

quem se inspiraram consolidando a elegia como um gecircnero literaacuterio propriamente dito dotando-a de uma

consistecircncia temaacutetica o que levou ao nascimento da elegia eroacutetica

Puacuteblio Oviacutedio Nasatildeo tido como o uacuteltimo dos elegiacuteacos augustanos deixa claro natildeo ter o viacutecio da modeacutestia

aleacutem de manifestar a certeza da proacutepria fama em seus epiacutelogos como ocorre por exemplo nos Amores em

que ao final do livro I ao mencionar a notoriedade de Galo e Tibulo bem como a expansatildeo e sobrevivecircncia

do metro elegiacuteaco coloca-se como parte de uma estirpe que jamais seraacute esquecida

Tityrus et fruges Aeneiaque arma legentur 25

Roma triumphati dum caput orbis erit

Donec erunt ignes arcusque Cupidinis arma

Discentur numeri culte Tibulle tui

Gallus et Hesperiis et Gallus notus Eois

Et sua cum Gallo nota Lycoris erit 30

Ergo cum silices cum dens patientis aratri

Depereant aeuo carmina morte carent

Cedant carminibus reges regumque triumphi

Cedat et auriferi ripa benigna Tagi

Vilia miretur uolgus mihi flauus Apollo 35

Pocula Castalia plena ministret aqua

Sustineamque coma metuentem frigora myrtum

Tiacutetiro e a ceifa e as armas de Eneacuteias cantadas

enquanto Roma reger o orbe

e enquanto houver armas fogo e arco para Cupido

se ensinaratildeo teus metros oacute Tibulo

Galo na Hespeacuteria e no Oriente haacute de ser

conhecido e com Galo sua Liacutecoris

Pois perecendo as rochas e os dentes do arado

com o tempo aos versos morte faltaraacute

Rendam-se aos versos reis e os triunfos dos reis

renda-se do Tejo a margem auriacutefera

Admire o vulgo o que eacute vil que o louro Apolo

taccedilas plenas me decirc de aacutegua castaacutelide

sustente eu nos cabelos o mirto que teme

1 O poema de Borges apresenta uma espeacutecie de definiccedilatildeo moderna de elegia aleacutem de referecircncias agrave morte e agrave perda ldquoSoacute o que morreu eacute nosso soacute eacute nosso o que perdemosrdquo traz ainda uma menccedilatildeo direta agrave Antiguidade ldquoIacutelion foi poreacutem Iacutelion perdura no hexacircmetro que a plangerdquo (BORGES 2016) 2 O diacutestico elegiacuteaco consiste em dois versos sendo um hexacircmetro e um pentacircmetro (mais precisamente chamado hexacircmetro duplamente cataleacutectico) O primeiro verso compotildee-se de seis peacutes daacutectilos (siacutelaba longa mdash siacutelaba breve mdash siacutelaba breve ou siacutelaba longa mdash siacutelaba longa) ao passo que o segundo verso eacute como o primeiro exceto pela falta das duas breves no terceiro e sexto peacutes Para mais informaccedilotildees sobre a questatildeo cf West (1974)

[226]

Atque ita sollicito multus amante legar

Pascitur in uiuis Liuor post fata quiescit

Cum suus ex merito quemque tuetur honos 40

Ergo etiam cum me supremus adederit ignis

Viuam parsque mei multa superstes erit

o frio e leia-me o inquieto amante

Pasta a Inveja entre os vivos descansa na morte

e a cada um a proacutepria honra assiste

Assim ao consumir-me o fogo derradeiro

de mim a grande parte ficaraacute

(Ov Am 11525-42 Trad Guilherme Horst Duque)

Ou ainda no final do Livro III em que ao se despedir pede a Vecircnus que procure um novo vate pois chegou

ao marco final de suas elegias Ademais evoca agora Virgiacutelio e Catulo e se coloca ao lado destes aleacutem de

referir-se agrave sua pequena cidade natal Sulmona que por gerar tamanho poeta tambeacutem torna-se grande

Quaere nouum uatem tenerorum mater Amorum 1

Raditur hic elegis ultima meta meis

Quos ego conposui Paeligni ruris alumnus

(Nec me deliciae dedecuere meae)

Siquid id est usque a proauis uetus ordinis heres 5

Non modo militiae turbine factus eques

Mantua Vergilio gaudet Verona Catullo

Paelignae dicar gloria gentis ego

Quam sua libertas ad honesta coegerat arma

Cum timuit socias anxia Roma manus 10

Atque aliquis spectans hospes Sulmonis aquosi

Moenia quae campi iugera pauca tenent

ldquoQuae tantum dicet potuistis ferre poetam

Quantulacumque estis uos ego magna uocordquo

Culte puer puerique parens Amathusia culti 15

Aurea de campo uellite signa meo

Corniger increpuit thyrso grauiore Lyaeus

Pulsanda est magnis area maior equis

Inbelles elegi genialis Musa ualete

Post mea mansurum fata superstes opus 20

Busca matildee dos Amores ternos novo vate

eis o marco final das elegias

as quais eu filho dos Pelignos escrevi

(minhas deliacutecias natildeo me denegriram)

e se isto conta equestre desde o bisavocirc

natildeo feito haacute pouco no tropel de guerras

Macircntua estima Virgiacutelio Verona a Catulo

Diratildeo que sou a gloacuteria dos pelignos

a quem levou a liberdade agraves justas armas

quando Roma temeu as matildeos amigas

Que algum turista ao ver os muros desta aquosa

Sulmona que tatildeo poucos campos tem

diga ldquoa ti que geraste tamanho poeta

por pequena que sejas chamo granderdquo

Belo menino e a amatuacutesia genitora

dos meus campos levai as aacuteureas flacircmulas

com tirso mais pesado abala-me o Lieu

pista maior reclamam meus cavalos

Imbeles elegias Musa alegre adeus

obra e vestiacutegio meu apoacutes a morte

(Ov Am 3151-20 Trad Guilherme Horst Duque)

Apesar de tanta confianccedila eacute de se supor todavia que Oviacutedio natildeo pudesse ter imaginado que para aleacutem de

2000 anos apoacutes a sua morte a elegia permaneceria tatildeo viva ainda que metamorfoseada quanto agrave forma

Assim na voz de poetas das mais diversas eacutepocas esse gecircnero literaacuterio vai ldquomudando de pele e

transformando-se em sonetos odes eacuteclogas baladas ou ateacute epiacutestolasrdquo (LAGE 2010 p 15)

Isso porque fossem ou natildeo inspirados direta ou indiretamente pelos poemas elegiacuteacos romanos

versejadores de todos os tempos imprimiram em seus poemas o cantar doloroso pela perda de um ente

querido de um amor da paacutetria ou ainda da proacutepria poesia Seria um tanto impreciso concordar totalmente

com Lage para quem mesmo que o termo ldquoelegiardquo tenha desaparecido em determinados periacuteodos3 sua

3 Sobre a questatildeo cf Lage (2010 p 15)

[227]

essecircncia se manteve sempre presente tomando outras formas poeacuteticas Mas sem duacutevidas no seacuteculo XVIII

o poeta e filoacutesofo Friedrich Schiller ao propor um resgate das formas poeacuteticas claacutessicas reaviva o referido

gecircnero E ele o faz mais uma vez relacionando a elegia ao sofrimento sentimento que segundo o autor

referido deveria ser transformado a partir de entatildeo de uma perda real em uma perda ideal4

Dessa forma mesmo que se tenha duacutevidas sobre a origem histoacuterica e sobre a definiccedilatildeo desse tipo de

produccedilatildeo na Antiguidade essa concepccedilatildeo de elegia como perda ou lamento pela perda (referida por poetas

antigos como Oviacutedio) atravessou o seacuteculo XIX apoacutes se consolidar no Romantismo mantendo-se em autores

modernos do seacuteculo XX e permanecendo ateacute os nossos dias

Muitos foram os poetas brasileiros modernos que resgataram a elegia (natildeo necessariamente no metro

elegiacuteaco) em suas obras Melhor dizendo resgataram o tom elegiacuteaco lamentoso soacute para mencionar alguns

exemplos Carlos Drummond de Andrade Viniacutecius de Moraes Manuel Bandeira Ferreira Gullar Ainda que

natildeo nomeiem seus poemas de elegias no fazer poeacutetico destes autores a temaacutetica da perda e do lamento daacute

um tom lutuoso agraves produccedilotildees Dentre esses versejadores estaacute Chico Cesar poeta compositor e muacutesico

paraibano que diferentemente dos seus antecessores e tambeacutem dos seus contemporacircneos da deacutecada de

1990 busca se aproximar da elegia claacutessica

Em seu livro Cantaacuteteis Cantos elegiacuteacos de Amozade somos apresentados a uma obra na qual ecoam natildeo

apenas aspectos da poesia amorosa e eroacutetica romana (sobretudo dos Amores de Oviacutedio) como tambeacutem

alusotildees por vezes diretas a escritores e obras de diversas esteacuteticas Com isso para usar uma expressatildeo com

a qual Isabelle Jouteur se refere a Oviacutedio Chico Ceacutesar cria um caleidoscoacutepio que a cada leitura revela uma

nova camada de interpretaccedilatildeo e instiga o leitor a decifraacute-la

Levando em conta essa cor inusitada que o poeta nordestino imprime agraves suas elegias em Cantaacuteteis

buscaremos analisar alguns elementos da poesia romana amorosa sobretudo ovidiana que satildeo retomados

na obra referida e de que maneira Chico Cesar atraveacutes de uma espeacutecie de antropofagia literaacuteria termina por

resgataacute-la e incorporaacute-la ao seu versejar moderno e nordestino

Chico Cesar e a poesia caleidoscoacutepica de Cantaacuteteis

Em Cantaacuteteis Cantos elegiacuteacos de amozade obra composta por 141 poemas todos compostos por 11 versos

com sete siacutelabas poeacuteticas cada somos apresentados a uma persona poeacutetica apaixonada que se declara para

uma musa da qual sequer sabemos o nome de modo direto descrevendo-se primeiro a si e ao seu versejar

para em seguida falar das qualidades sobretudo as intelectuais da puella docta

4 Para Schiller (2011 p 51) a perda ideal representaria ldquoa tristeza suscitada por alegrias que jaacute natildeo satildeo pelo desaparecimento da idade de ouro do mundo pela perda da felicidade dos anos da infacircncia do amor etcrdquo

[228]

Ao revelar seu suposto caso amoroso o poeta lanccedila matildeo de um tom brejeiro e por vezes jocoso e cria imagens

aparentemente desconexas mas que vatildeo se completando num mosaico plenamente compreensiacutevel mdash por

isso caleidoscoacutepico mdash sobretudo se levarmos em conta a referecircncia quase cronoloacutegica a autores e obras

tambeacutem da literatura brasileira e universal5 Aqui evocamos Achcar (1994 p 15) para quem ldquoa

lsquoliterariedadersquo de uma obra sua pertinecircncia a um gecircnero mesmo sua novidade satildeo necessariamente

produto de suas relaccedilotildees com obras anteriores presentes nela em alusotildees impliacutecitas ou expliacutecitas

intencionais ou natildeordquo

Eacute justamente a partir de alusotildees que o leitor eacute iccedilado para dentro do livro de Chico Cesar e pode compartilhar

com ele o prazer de reconhecer numa relaccedilatildeo de intertextualidade (CONTE BARCHIESI 2010 p 87)

passagens de obras que satildeo suas conhecidas e que foram ldquoantropofagizadasrdquo para compor Cantaacuteteis

Dessa forma estabelece-se desde o tiacutetulo um jogo de sentidos proposto ao leitor pelo poeta que seraacute

bastante recorrente nos poemas que compotildeem a obra6 Ao realizarmos uma anaacutelise percebemos que o

neologismo ldquocantaacuteteisrdquo pode denotar a uniatildeo do radical do verbo ldquocantarrdquo com a palavra ldquotaacuteteisrdquo (referecircncia

ao tato ou ao verbo tatear) abrindo a possibilidade para a leitura da referida palavra como cantos (poemas)

que podem ser tocados ou por que natildeo que tocam (tateiam) outros textos de outros poetas

Aleacutem disso a presenccedila do adjetivo ldquoelegiacuteacosrdquo qualificando o substantivo ldquocantosrdquo demonstra que Chico

Cesar faz uma referecircncia direta agrave elegia recorrendo nesse momento agrave bagagem cultural do leitor para

estabelecer com este uma relaccedilatildeo dialoacutegica a partir da evocaccedilatildeo de experiecircncias literaacuterias anteriormente

vividas elementos que conforme Jauss (1976 p 68) satildeo necessaacuterios para que o processo de recepccedilatildeo de

uma obra em particular se realize

Haacute finalmente o neologismo ldquoamozaderdquo que pode trazer numa camada menos oacutebvia de leitura a referecircncia

agraves cantigas de amigo medievais que denotavam justamente um eu-liacuterico neste caso feminino que ansiava

pelo ser amado como faz o nosso cantador paraibano Tais referecircncias e mesmo outras agraves Heroacuteides ovidianas

tambeacutem com vaacuterios poemas de eu-liacuterico feminino precisariam ser analisadas com mais cautela o que

pretendemos realizar em momento posterior de nossa investigaccedilatildeo

Em nosso estudo para aleacutem dessas questotildees mencionadas interessa-nos sobremaneira analisar alguns

poemas de Cantaacuteteis procurando perceber de que forma alguns elementos tiacutepicos da elegia amorosa romana

principalmente dos Amores de Oviacutedio satildeo remodelados no contexto moderno Certamente tais questotildees natildeo

5 Satildeo diversas as vezes em que Chico Cesar alude a obras e a autores conhecidos em algumas delas trazendo natildeo apenas temas mas trechos quase ipsis litteris de poemas ou de romances canocircnicos cf por exemplo CESAR 2005 p 14171923 Tal aspecto seraacute abordado por noacutes em um momento posterior uma vez que nosso foco neste artigo eacute a questatildeo da elegia ovidiana e sua recepccedilatildeo em Cantaacuteteis 6 Acreditamos que seria bastante revelador um trabalho que se debruccedilasse sobre os neologismos criados por Chico Cesar ao longo de Cantaacuteteis o que certamente traria agrave tona aspectos que passam despercebidos numa leitura artificial

[229]

se esgotariam no espaccedilo deste artigo e por isso escolhemos apenas uma delas para a nossa discussatildeo a

questatildeo metapoeacutetica

Os metapoemas em Cantaacuteteis

A metapoesia ou seja a referecircncia dentro de um poema aos gecircneros ao poeta agraves formas de produccedilatildeo

poeacutetica agraves obras jaacute consagradas eacute um elemento bastante presente na produccedilatildeo poeacutetica desde a Antiguidade

Assim por meio de metaacuteforas ou mesmo de menccedilotildees diretas sobretudo desde o periacuteodo alexandrino poetas

trouxeram agrave baila discussotildees acerca das caracteriacutesticas e importacircncia das obras que produzem Oviacutedio se

notabilizou por lanccedilar matildeo da metalinguagem em praticamente todas as suas obras Em Amores objeto de

nossa discussatildeo isso ocorre desde o epigrama de abertura que leremos na traduccedilatildeo de Lucy Ana De Bem

Qui modo Nasonis fueramus quinque libelli

tres sumus hoc illi praetulit auctor opus

Vt iam nulla tibi nos sit legisse uoluptas

at leuior demptis poena duobus erit

Tiacutenhamos sido haacute pouco cinco livrinhos de Nasatildeo

trecircs agora somos o autor preferiu esta agravequela obra

Se por acaso natildeo tiveres prazer algum em nos ler

ao menos retirados dois a pena seraacute mais leve

(Ov Am epigramma ipsius)

Ademais como costuma acontecer os poemas que abrem os livros I II e III satildeo de modo expliacutecito

programaticamente metapoeacuteticos Lucy Ana de Bem (2011 p 186) em sua excelente tese de doutoramento

A Metapoesia e confluecircncia geneacuterica nos Amores de Oviacutedio vai aleacutem e defende que ldquoa maior parte das elegias

dos Amores discorre sobre poesia enquanto nos fala de amorrdquo Assim para a estudiosa a questatildeo metapoeacutetica

tem na referida obra a mesma importacircncia que o amor

Acreditamos que algo semelhante aconteccedila em Cantaacuteteis Ali quando Chico Cesar lanccedila matildeo de alusotildees

diversas a textos literaacuterios ao longo da obra ele o faz natildeo apenas para descrever sua persona poeacutetica mas

tambeacutem a musa a quem canta elencando um conjunto de referecircncias prontas isto eacute lugares-comuns ou toacutepoi

a serem acessados pelo leitor que aceitar o jogo proposto pelo poeta (ISER 2002 p 105-18) e participar com

ele da construccedilatildeo natildeo apenas de um mas de diversos sentidos

Em seu primeiro ldquocantaacutetilrdquo7 Chico Cesar (2005 p 13) apresenta-nos um metapoema no qual um poeta

apaixonado confessa-se para uma musa de quem pouco saberemos ao longo da obra

seu poeta preferido

bem antes de ser ferido

jaacute era ferido antes

natildeo visitou as bacantes

as nereidas e as ninfas

7 Utilizaremos neste trabalho o neologismo cantaacutetil para nos referirmos aos poemas que compotildeem o livro de Cesar

[230]

quis beber de sua linfa

esperou e natildeo morreu

esse poeta sou eu

de lira desgovernada

deliro musa amada

oacuterfatildeo bisneto de orfeu (grifo nosso)

Curiosamente nos primeiros versos do poema haacute a utilizaccedilatildeo do pronome possessivo ldquoseurdquo de terceira

pessoa do singular o qual constroacutei uma ambiguidade podendo tanto se referir em terceira pessoa ao poeta

que fala quanto a uma tradiccedilatildeo de poetas que cantaram o fato de estarem feridos pelo amor dentre eles

Oviacutedio A persona poeacutetica que fala em Amores 1125-6 assim como o eu liacuterico de Cantaacuteteis estaacute tomada pelo

sentimento amoroso apoacutes ser flechado pelo deus Cupido

Me miserum certas habuit puer ille sagitas

Vror et in uacuo pectore regnat Amor

Desgraccedilado de mim Certeiras foram as setas daquele menino

Todo eu me inflamo e no coraccedilatildeo vazio passa a reinar o Amor

(Ov Am 1125-26 Trad Carlos Ascenso Andreacute)

Na sequecircncia do poema a utilizaccedilatildeo que Chico Cesar faz do adjetivo ldquopreferidordquo bem como os dois versos

que o sucedem mostram um jogo de sentido que aleacutem de revelar a escolha do poeta pela musa mostra que

natildeo eacute a primeira vez que o eu-liacuterico se encontra em estado de paixatildeo ldquoseu poeta preferido bem antes de ser

ferido jaacute era ferido antesrdquo Essa afirmaccedilatildeo nos lembra por exemplo a persona de Oviacutedio que tanto em Amores

quanto em Ars Amatoria estaacute menos preocupada em demonstrar exclusividade no amor por uma puella

somente que os elegiacuteacos anteriores

Haacute ainda outras chaves de leitura importantes no referido poema Ainda que de modo diferente dos antigos

poetas elegiacuteacos que recusavam gecircneros tomados como mais elevados como a eacutepica (ora alegando objeccedilatildeo

de algum deus ora ainda por alegarem que tal gecircnero estaria acima de suas forccedilas) o bardo paraibano deixa

claro que seu desejo eacute fazer elegias A referecircncia agraves bacantes neste caso personagens da trageacutedia homocircnima

de Euriacutepides as quais o eu-poeacutetico de Cantaacuteteis diz natildeo ter visitado parece representar ainda que de modo

indireto uma recusatio contra tal gecircnero elevado8 anaacuteloga agrave que faziam seus antecessores elegiacuteacos na

Antiguidade

No ldquocantaacutetilrdquo seguinte Chico Cesar (2005 p 14) prossegue com a construccedilatildeo da imagem do poeta

eu pra cantar natildeo vacilo

digo isso digo aquilo

digo tudo que se disse

digo veneza recife

8 A toacutepica da recusatio ou seja a recusa a cantar eacutepica e adesatildeo agrave elegia eacute segundo Bem (2011 p 90) uma invenccedilatildeo atribuiacuteda a Caliacutemaco e copiosa entre poetas augustanos e sobretudo entre os elegiacuteacos latinos

[231]

fortaleza que se abre

quero que o mundo se acabe

se natildeo disser o que sinto

digo a verdade minto

vertente me arrebata

minha voz eacute serenata

labareda e labirinto

Satildeo perceptiacuteveis neste caso referecircncias agrave tradiccedilatildeo as quais satildeo ancoradas em expressotildees que funcionam

como marcadores alusivos9 tais como ldquodigo tudo que se disse ou em vertente me arrebatardquo em que neste

caso o poeta marca sua filiaccedilatildeo natildeo apenas agrave corrente da literatura dita canocircnica mas tambeacutem agrave sua veia

nordestina Isso se daacute quando ele menciona espaccedilos geograacuteficos como Fortaleza ou Recife numa possiacutevel

alusatildeo ao Nordeste Aleacutem disso mostra-se no oitavo verso a utilizaccedilatildeo do fingimento poeacutetico em ldquodigo a

verdade mintordquo revelando a multiplicidade do eu poeacutetico (VASCONCELLOS 2016 p 85)

No ldquocantaacutetilrdquo 34 Chico Cesar aleacutem de continuar a descrever sua persona poeacutetica traz referecircncias diretas agrave

literatura antiga ao mencionar logo no primeiro verso Secircneca e em seguida Cupido e as Ninfas

secircneca natildeo sou - eu chico

rio tatildeo nordestinico

que tateia e se estatela

no peacute de sirigoela

plantado pelo cupido

performer impermitido

out-sider das baixadas

se ninfas apaixonadas

vecircm uivar na minha porta

uso a palavra que corta

ela tudo - vocecircs nadas (CEacuteSAR 2005 p 34)

O poeta inicia reforccedilando sua identidade nordestina visto que ao mesmo tempo em que parece negar

Secircneca diz ser Chico fundindo atraveacutes do duplo sentido seu nome ao rio Satildeo Francisco que atravessa o

Nordeste brasileiro Nessa imagem que remete agrave fluidez das formas nas Metamorfoses tambeacutem sua poesia

parece cruzar a produccedilatildeo literaacuteria de diversos periacuteodos mas desaguar em seu lugar de origem a tradiccedilatildeo

nordestina

A menccedilatildeo ao peacute de sirigoela planta oriunda do Nordeste brasileiro que neste caso foi plantada pelo Cupido

serve natildeo apenas para reforccedilar a imagem de nordestinidade da persona poeacutetica como tambeacutem alude aos

ceacutelebres de abertura do primeiro livro de Amores

9 Sobre a questatildeo cf Wills (1996) Hinds (1999) Vasconcellos (2001) e Prata (2002)

[232]

Arma gravi numero uiolentaque bella parabam

Edere materia conveniente modis

Par erat inferior versus risisse Cupido

Dicitur atque unum surripuisse pedem

Armas em ritmo pesado e combates violentos estava eu prestes

a cantaacute-los mdash o assunto assentava bem no metro

era igual o segundo verso [ao primeiro] Cupido soltou uma gargalhada

diz-se e surrupiou-lhe um peacute

(Ov Am 111-4 Trad Carlos Ascenso Andreacute)

Jaacute foi por demais discutido que na obra do poeta latino em que Cupido rouba um peacute do segundo verso (que

por isso natildeo teria mais seis e sim cinco peacutes) definindo a partir daiacute que Oviacutedio escreveria na forma tiacutepica da

produccedilatildeo elegiacuteaca Diferentemente eacute o que ocorre poreacutem no caso do poeta paraibano um peacute eacute ldquoplantadordquo

pelo deus do amor e curiosamente todos os ldquocantaacuteteisrdquo possuem natildeo seis mas sete siacutelabas poeacuteticas

Se nas palavras de Iser (2002 p 107) o texto eacute composto por jogo ldquo[] natildeo importa que novas formas o leitor

traz agrave vida todas elas transgridem mdash e daiacute modificam mdash o mundo referencial contido no textordquo

Eacute exatamente isso que Chico Cesar parece buscar um jogo de sentido com aqueles leitores que conhecem a

obra ovidiana e tambeacutem a poesia nordestina estabelecendo com esse puacuteblico uma espeacutecie de diaacutelogo a fim

de que seja possiacutevel interpretar e reinterpretar o texto de chegada para de algum modo acessar o texto de

partida

A musa de Cantaacuteteis entre a mulher e a proacutepria elegia

A imagem da amada musa inspiradora a quem os poetas elegiacuteacos antigos dedicavam seu canto era bastante

idealizada Nesse sentido muitas vezes tal mulher se encontrava acima das demais pelos seus dotes natildeo

apenas de beleza mas tambeacutem intelectuais passando a serem designadas como puella docta

Em Cantaacuteteis Chico Cesar se aproxima de Oviacutedio pois tal como jaacute se notou quanto agrave Corina em Amores Chico

Ceacutesar (2005 p 16) demora a mencionar o nome da amada a que se refere busca desenhaacute-la para o leitor

atraveacutes de descriccedilotildees tanto fiacutesicas quanto psicoloacutegicas

parecida pariceira

feiticcedilo de feiticeira

fetiche tabu e totem

que lha vejam e logo notem

a exterior beleza

e fato se tornem presa

da face rubra e as vistas

feito a sala de visitas

do castelo de sua alma

avistei perdi a calma

esqueci de outras conquistas

[233]

Eacute apenas no sexto ldquocantaacutetilrdquo que Chico Cesar apresenta-nos a amada a quem satildeo dedicados seus cantos

elegiacuteacos de ldquoamozaderdquo neste caso destacando os atributos fiacutesicos e a beleza dessa mulher que o enfeiticcedila

desejando que aqueles que a veem se tornem presas assim como ocorreu com ele O eu-liacuterico confessa que

ante tal visatildeo esquece outras conquistas ou seja a referida puella natildeo eacute a primeira por quem se apaixonou

mas eacute a partir desse momento a uacutenica que o interessa

Na sequecircncia em outro ldquocantaacutetilrdquo destaca agora suas qualidades intelectuais designando-a como detentora

de mil e uma artes leitora de Roland Barthes ou seja aleacutem de uma mulher de bastante beleza tambeacutem eacute

dotada de inteligecircncia e cultura

suas mil e uma artes

seus livros do roland barthes

que natildeo li natildeo sinto falta

seu beijo doce de flauta

seu olhar de pernilongo

sua danccedila rap jongo

clareiam minha cacircmara escura

escritora e escritura

li seus versos tonteci

e dessa tontice cai

na doenccedila que me cura (CEacuteSAR 2005 p 17)

Haacute ainda um jogo de sentido no oitavo verso escritora e escritura o qual pode fazer uma relaccedilatildeo entre a

mulher e a proacutepria poesia Esse jogo tambeacutem ocorre nos Amores de Oviacutedio em que a relaccedilatildeo ambiacutegua entre a

puella e a poesia muitas vezes aproxima o amor do proacuteprio fazer poeacutetico10

Essa relaccedilatildeo fica bastante direta no deacutecimo-primeiro ldquocantaacutetilrdquo de Chico Cesar (2005 p 21)

eacute a musa que elejo

na peleja em que pelejo

elemento de elegia

quentura na noite fria

vento brando em dia quente

iquestquanto ganha um gerente

para perguntar seu nome

quero ver se vocecirc some

quero embalar sua rede

tarde cedo seda sede

frame trama tremor fome

10 Sobre a questatildeo cf Bem (2011 p126) Ao discutir a questatildeo a estudiosa menciona Hardie para o qual comparaccedilotildees agrave jovem amada assim como agraves heroiacutenas da mitologia seratildeo apenas uma ldquopresenccedila discursivardquo um nome ligado a um corpo textual natildeo a um corpo fiacutesico Ainda nas palavras da autora ldquoNesse sentido a equivalecircncia entre a puella e a proacutepria elegia (a coleccedilatildeo elegiacuteaca dos Amores) fica ainda mais evidenterdquo

[234]

Jaacute no primeiro verso o poeta afirma que a musa eleita representa um elemento da proacutepria elegia ou seja

traz caracteriacutestica do referido gecircnero ademais alguns vocaacutebulos permitem verificar que essa mulher prende

o eu-liacuterico assim como Cupido faz com a voz que canta nos Amores ovidianos As palavras ldquorederdquo ldquotramardquo e a

polissemia entre ldquocedordquo (no sentido adverbial) e tambeacutem do verbo ldquocederrdquo ajudam a reforccedilar tal ideia

Consideraccedilotildees finais

Certamente haacute ainda muitos aspectos a serem investigados na obra aqui cotejada tanto no que diz respeito

aos poetas romanos antigos sobretudo Oviacutedio quanto agraves relaccedilotildees estabelecidas com obras da poesia e

literatura modernas Acreditamos que a anaacutelise de Cantaacuteteis natildeo apenas sob a luz da intertextualidade mas

tambeacutem das teorias da recepccedilatildeo pode vir a colaborar para que seja possiacutevel compreender de que modo

produccedilotildees aparentemente tatildeo distantes no tempo e no espaccedilo estabelecem com a participaccedilatildeo ativa do

leitor um diaacutelogo que nunca termina tornando possiacutevel por exemplo que a poesia nordestina tenha sim um

peacute (ou mais) na elegia latina

Referecircncias bibliograacuteficas

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Humanas e Naturais Universidade Federal do Espiacuterito Santo Vitoacuteria 2015

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[235]

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WILLS J Repetition in Latin Poetry figures of allusion Oxford Clarendon 1996

(paacutegina intencionalmente deixada em branco)

PARTE III

AS RELACcedilOtildeES (INTER)LINGUIacuteSTICAS

E A EXPERIMENTACcedilAtildeO CRIATIVA

NA TRADUCcedilAtildeO LUSOacuteFONA DOS CLAacuteSSICOS

Traduzindo a oralidade do grego claacutessico para o cearensecircs em A Paz de Aristoacutefanes

Ana Maria Ceacutesar Pompeu

amcpompeuhotmailcom

Manuela Maria Campos Sales

manu2fcgmailcom

Traduzimos com o Grupo de Estudos da Comeacutedia Aristofacircnica ndash

GECA a peccedila A Paz do grego para a linguagem matuta cearense o

Cearensecircs O texto grego primeiro foi traduzido da forma mais

literal possiacutevel cotejando outras traduccedilotildees da peccedila em portuguecircs

(em Portugal a de Maria de Faacutetima Silva 1989 e no Brasil as

dissertaccedilotildees de mestrado de Greice Drumond UFRJ 2002 e

Marcos Cardoso Gomes USP 1984) A seguir retraduzimos ou

traduzimos dentro da mesma liacutengua do portuguecircs formal para a

linguagem matuta que mais se aproxima da linguagem oral do

cotidiano a precisatildeo do verso grego bem como a expressividade e

a musicalidade das palavras e expressotildees Tal processo nos

proporcionou um entendimento muito mais aprofundado da liacutengua

e da cultura grega aleacutem de uma maior conscientizaccedilatildeo da nossa

proacutepria cultura e modo de falar quando buscamos as diversas

expressotildees regionais mais antigas ou mais recentes e o seu

contexto dentro do texto aristofacircnico Demostraremos parte do

resultado do nosso trabalho de traduccedilatildeo de A Paz de Aristoacutefanes

para o Cearensecircs

Em conjunto com os estudos realizados traduzimos A Paz de

Aristoacutefanes para a linguagem do cearense matuto promovendo

[239]

dessa forma um encontro da teoria do cocircmico com as suas origens instituiccedilotildees agraacuterias em Dioniso Nosso

trabalho de traduccedilatildeo utilizando da expressividade do falar matuto cearense faz adaptaccedilotildees dos termos

rurais gregos utilizados na peccedila que recria o nascimento agraacuterio da comeacutedia para os termos do falar

nordestino que eacute um aspecto fundamental do humor no Cearaacute divulgado em todo o Brasil atraveacutes de

diversos comediantes Tal expressividade eacute tiacutepica mesmo do homem ruacutestico do Nordeste brasileiro que

talvez natildeo se desgarre com facilidade de suas raiacutezes agraacuterias As expressotildees de maior teor cocircmico satildeo as

obscenas sejam elas sexuais ou escatoloacutegicas Verificamos durante a traduccedilatildeo de Lisiacutestrata a mais obscena

no sentido sexual dentre as peccedilas de Aristoacutefanes a larga utilizaccedilatildeo de termos relacionados agrave fauna e agrave flora

da zona rural grega E sendo tal peccedila especificamente urbana pois sua accedilatildeo eacute centrada na acroacutepole ateniense

os termos obscenos que trazem o campo para a cidade satildeo utilizados em abundacircncia em Lisiacutestrata

A primeira parte de Paz em que a Guerra reina no lugar dos deuses oliacutempicos eacute caracterizada por alimentos

improacuteprios e malcheirosos O escaravelho eacute um besouro que come fezes e Poacutelemos a Guerra prepara uma

mistura de todas as cidades gregas a serem trituradas em um pilatildeo Depois que a deusa Paz eacute libertada todos

os alimentos satildeo agradaacuteveis assim como os cheiros O escaravelho inverte sua situaccedilatildeo pois passa a puxar o

carro de Zeus e a comer a ambrosia de Ganimedes (Ar A Paz 722-4) da mesma forma que a situaccedilatildeo da

Greacutecia que era dominada pela guerra vista como sinocircnimo de morte passa a ser de alegrias da bebida da

comida da fartura no campo do sexo enfim da vida

No proacutelogo de A Paz dois servos amassam fezes para alimentar um escaravelho Um deles explica que o

patratildeo dos dois andava com uma mania de olhar para o ceacuteu e de se queixar a Zeus da guerra Jaacute havia tentado

subir degraus mas caiu e feriu a cabeccedila No dia anterior chegou com um escaravelho chamando-o de Peacutegaso

e dizendo que ele o levaria direto a Zeus E assim o vinhateiro Trigeu realmente monta o escaravelho e sobe

aos ceacuteus em busca de Zeus sob os olhares assustados de seus servos e filhas Ele explica a uma das filhas

que teve a ideia de montar um escaravelho por ter visto nas faacutebulas de Esopo que tal bicho foi o uacutenico a subir

agrave morada dos deuses O escaravelho tambeacutem parece representar a comeacutedia com todo o seu repertoacuterio

escatoloacutegico (e tambeacutem representa a anormalidade da guerra) dirigida por um servo de Dioniso Trigeu (de

Tryx ldquoborra de vinhordquo trygocircidia como komocircidia ldquocomeacutediardquo) vinhateiro e poeta cocircmico

Chegando laacute o vinhateiro bate agrave porta e quem atende eacute Hermes comunicando-lhe que Zeus e os outros

deuses estatildeo em uma parte mais elevada do ceacuteu e que deixaram Poacutelemos ldquoa Guerrardquo fazer o que quisesse

com os gregos pois os deuses estatildeo com eles irritados por estes preferirem a guerra tendo em vista que os

Oliacutempios tantas vezes lhes deram a oportunidade para a paz mas quem estava vencendo na ocasiatildeo natildeo a

queria Eirene ldquoa Pazrdquo foi presa por Poacutelemos numa caverna profunda Trigeu se oculta e vecirc o deus Guerra

com o seu pilatildeo pronto para transformar em poacute as cidades gregas Mas por falta de um pau de pilar ele chama

Tumulto Kydoimos para que vaacute pegar um em Atenas Este ao voltar informa ao deus que os atenienses

[240]

perderam o curtidor de couros que acabava com a Greacutecia numa referecircncia expliacutecita a Cleacuteon que morrera no

ano anterior ao da representaccedilatildeo desta peccedila na batalha de Anfiacutepolis Entatildeo o deus manda que Tumulto vaacute

conseguir o pau de pilar em Esparta Da mesma forma o servo do deus Guerra volta dizendo que tambeacutem

natildeo haacute mais tal instrumento entre os espartanos referindo-se certamente a Braacutesidas liacuteder que tambeacutem

morrera na mesma batalha que Cleacuteon Poacutelemos sai com Tumulto para fabricar um outro pau de pilar

Trigeu aproveita a ocasiatildeo e convoca o coro formado de gregos de todas as cidades que se unem para

libertar a deusa Paz enquanto Guerra estava ausente Hermes entatildeo aparece com predisposiccedilatildeo de

denunciar os propoacutesitos de Trigeu e do coro a Zeus mas Trigeu suplica-lhe que natildeo os denuncie lembrando-

lhe do pedaccedilo de carne que lhe trouxe como oferenda Depois diz que sabe de um complocirc que a Lua e o Sol

fazem contra os deuses oliacutempicos pois por serem os baacuterbaros os adoradores dos dois astros e os gregos os

outros deuses eles querem destruiacute-los para serem os uacutenicos a terem adoradores Hermes resolve entatildeo

ajudar orientando e incentivando uns e outros no trabalho de desobstruir a caverna para libertar a Paz

Desse modo Trigeu convence Hermes a ajudaacute-lo atraveacutes de um argumento coacutesmico os astros contra os

oliacutempios Os gregos natildeo trabalham da mesma forma os mais empenhados no trabalho satildeo os agricultores

aacuteticos que sentem muita falta da paz

Quando finalmente conseguem retirar a deusa da caverna ela traz junto de si Opora a deusa das colheitas

e Teoria a deusa das festividades A deusa Paz se mostra triste com os gregos pois a deixaram ser

aprisionada por tanto tempo e tambeacutem pela poliacutetica de Atenas Trigeu a conselho de Hermes desposaraacute a

deusa das colheitas Opora e entregaraacute aos Priacutetanes a deusa das festividades Teoria Na paraacutebase o coro

louva o poeta que livrou a comeacutedia das vulgaridades pois ele criou uma arte maior com belas palavras e

grandes ideias tambeacutem trouxe agrave cena os cidadatildeos mais poderosos e repete o que disse com as mesmas

palavras sobre Cleacuteon na comeacutedia anterior Vespas Trigeu volta para terra trazendo Opora e Teoria e daacute esta

uacuteltima aos Priacutetanes Depois ele sacrifica um cordeiro agrave deusa Paz e conta que viu no caminho do ceacuteu duas ou

trecircs almas dos poetas ditiracircmbicos Chega o adivinho Hieacuteracles que eacute recebido com indiferenccedila e que acusa

Trigeu de estar agindo contra a vontade dos deuses ao forccedilar a volta da paz Querendo comer os miuacutedos do

cordeiro sacrificado o adivinho eacute expulso por Trigeu que ordena a seu servo que o espanque

A segunda paraacutebase louva a vida no campo sob o reino da paz e maldiz aqueles que fazem a guerra obrigando

os camponeses a abandonarem seus lares Trigeu celebra suas bodas com Opora e recebe a visita dos agora

felizes fabricantes de foices e de jarras que lhe trazem muitos presentes de casamento Mas tambeacutem chegam

os entatildeo infelizes que estatildeo arruinados com o fim da guerra os fabricantes de penachos de capacetes de

couraccedilas de lanccedilas o vendedor de clarins pois natildeo tecircm para quem vender seus produtos Trigeu os insulta e

eles se vatildeo Entatildeo chegam dois garotos cantando o primeiro canta agrave guerra e diz ser filho de Lacircmaco Trigeu

manda-o embora O segundo garoto canta sobre o abandono do escudo e eacute o filho de Cleocircnimo o siacutembolo de

[241]

covardia sempre satirizado por Aristoacutefanes Trigeu o acolhe e convoca a todos a comerem agrave vontade e sai

carregado pelo coro como o feliz noivo que desposa a rainha dos frutos1

A permanecircncia no campo corresponde agrave vida feliz para a cidade na peccedila A Paz

Coro Pois nada eacute mais grato que jaacute estar semeando e o deus a garoar e um vizinho dizer ldquoDiz-me em tal tempo que faremos Comarquidesrdquo ldquoBeber me agrada enquanto o deus nos auxiliardquo Mulher potildee trecircs medidas de ervilha no fogo Mistura a elas gratildeos de trigo e pega os figos Que vaacute Sira chamar Manes do campo De modo algum se pode limpar vinhas hoje nem por-lhe terra que o chatildeo estaacute empapado De minha casa me tragam o tordo e os dois tentilhotildees Tinha um colostro laacute dentro e quatro nacos de lebre se eacute que natildeo os levou uma doninha ontem laacute dentro se mexia natildeo sei o quecirc e fuccedilava Traacutes trecircs deles pra noacutes oacute menino e o daacute pro pai ramos de mirto fresquinhos pedes a Esquinades E algueacutem do seu caminho chame Carinades que venha beber conosco enquanto refresca e ajuda o deus a nossa lavoura E quando a cigarra canta o doce canto alegra-me ir ver as vinhas de Lemnos se jaacute amadurecem ndash pois eacute a primavera que sazona ndash e o figo olhando crescido se jaacute estaacute maduro Eu apanho e como enquanto digo ldquoHoras amigasrdquo e o timo macerando faccedilo uma infusatildeo Entatildeo eu fico inchado sim com tanto veratildeo (Ar A Paz 1140-1169)2

Resolvemos descrever na proacutepria apresentaccedilatildeo da traduccedilatildeo como a nossa leitura em cearensecircs se faz a

partir do texto grego e como ela se expressa em uma escrita mais erudita para esclarecer as lacunas da

oralidade expressa na escrita da traduccedilatildeo matuta Desse modo sugerimos uma ediccedilatildeo triliacutengue de A Paz de

Aristoacutefanes Grego ndash Cearensecircs ndash Portuguecircs

Οἰκέτης Α αἶρ᾽ αἶρε μᾶζαν ὡς τάχιστα κανθάρῳ

Casecircro 1 Leva leva bolo ligerin pro rola-bosta

Criado 1 Leva leva bolo ligeiro para o escaravelho

1 O enredo da peccedila A Paz elaborado por noacutes na nossa tese de doutorado foi publicado em livro cf Pompeu (2011) 2 A traduccedilatildeo de Paz eacute de Marcos Cardoso Gomes (1984) presente em sua dissertaccedilatildeo de mestrado

[242]

ldquoCasecircrordquo eacute a transcriccedilatildeo da oralidade numa traduccedilatildeo de oikeacutetes que eacute formado pela mesma raiz de oicirckos casa

e eacute uma palavra comum ainda que normalmente natildeo se refira a um criado mas a algueacutem que toma conta de

uma casa para um patratildeo O mais apropriado talvez fosse ldquodomeacutesticordquo mas tambeacutem soacute eacute usado com a palavra

ldquoempregadordquo ldquoRola-bostardquo eacute a traduccedilatildeo mais apropriada para escaravelho que em grego eacute kaacutentharo

aludindo mais ao formato do inseto que se parece com um vaso de duas aselhas ou asas cacircntaro

ldquoEscaravelhordquo vem do latim Scarabaeu e jaacute deve se relacionar com a palavra grega skoacuter skatoacutes ldquoexcrementordquo

E por fim ldquoligerinrdquo eacute mais expressivo do que ldquoligeirordquo

Οἰκέτης Β ἰδού δὸς αὐτῷ τῷ κάκιστ᾽ ἀπολουμένῳ

Casecircro 2 Taiacute Daacute pra ele pra morrecirc da pioacute morte

Criado 2 Eis aiacute Daacute para ele para morrer da pior morte

ldquoTaiacuterdquo eacute um decircitico muito mais eficaz do que ldquoeis aiacuterdquo ou ldquoestaacute aiacuterdquo e da mesma forma que o grego idouacute eacute apenas

uma palavra natildeo duas ldquoPrardquo em vez de ldquoparardquo eacute uma reduccedilatildeo que daacute mais fluecircncia agrave fala ldquoMorrecircrdquo e ldquopioacuterdquo em

vez de ldquomorrerrdquo e ldquopiorrdquo isto eacute a retirada do ldquorrdquo final e a colocaccedilatildeo do acento traduzem a pronuacutencia mais

relaxada

καὶ μήποτ᾽ αὐτῆς μᾶζαν ἡδίω φάγοι

e nunca cumecirc bolo docin cuma esse

e nunca comer bolo docinho como esse

ldquoCumecircrdquo em vez de comer eacute apenas a expressatildeo da oralidade Consideramos ldquodocinrdquo mais expressivo do que

ldquodocinhordquo ou ldquoagradaacutevelrdquo e ldquocumardquo em vez de ldquocomordquo uma expressatildeo mais matuta

Οἰκέτης Α δὸς μᾶζαν ἑτέραν ἐξ ὀνίδων πεπλασμένην

Casecircro 1 Daacute ocircto bolo das bosta amassada dos burro

Criado 1 Daacute outro bolo das fezes amassadas dos burros

ldquoOcirctordquo em vez de ldquooutrordquo traduz a pronuacutencia de ou- por ocirc- e apresenta a reduccedilatildeo de -tro por -to Em ldquodas

bosta amassadardquo manteacutem-se o plural apenas em ldquodasrdquo e substitui-se ldquofezesrdquo por ldquobostardquo termo este muito

mais usado pelos camponeses cearenses Assim tambeacutem ocorre em ldquodos burrordquo sendo o plural mantido

apenas em ldquodosrdquo

Οἰκέτης Β ἰδοὺ μάλ᾽ αὖθις ποῦ γὰρ ἣν νῦν δὴ φερες

κατέφαγεν

Casecircro 2 Taiacute mais de novo Cadecirc o qui tu jaacute tava trazeno

Cumeu tudin

Criado 2 Eis aiacute mais de novo Pois onde estaacute o que tu agora trazias

Comeu tudo

ldquoCadecircrdquo eacute caracteriacutestico da linguagem oral O termo ldquotaiacuterdquo substitui ldquoeis aiacuterdquo Optou-se por ldquoquirdquo em vez de ldquoquerdquo

pois normalmente o ldquoerdquo final se pronuncia como ldquoirdquo e pela expressatildeo ldquotava trazenordquo em vez de ldquotraziardquo A forma

[243]

composta do imperfeito e a subtraccedilatildeo de partes das palavras (ldquoestavas trazendordquo para ldquotava trazenordquo) satildeo

muito mais utilizadas na fala comum Escolheu-se ldquotudinrdquo em vez de ldquotudordquo e ldquocumeurdquo em vez de ldquocomeurdquo

Οἰκέτης Α οὐ μὰ τὸν Δί᾽ ἀλλ᾽ ἐξαρπάσας

Casecircro 1 Natilde Pur Zeuzin feiz foi agarraacute

Criado 1 Natildeo por Zeus mas agarrou

Traduziu-se ldquonatildeordquo por ldquonatilderdquo ldquoNatilderdquo Eacute uma ecircnfase de negaccedilatildeo muito utilizada pelos cearenses Optou-se ldquopur

Zeuzinrdquo em vez de ldquopor Zeusrdquo enquanto apenas uma tentativa de expressar a linguagem matuta como ela

seria quando dirigida a Zeus jaacute que normalmente ouvimos ldquomeu Jesus Cristinrdquo ldquoPurrdquo eacute apenas a transcriccedilatildeo

da fala o ldquoordquo geralmente se torna ldquourdquo Por ldquofeiz foi agarraacuterdquo natildeo se pronuncia ldquofezrdquo mas ldquofeizrdquo e a

expressividade de ldquofez foirdquo eacute maior do que a fornecida por apenas ldquoagarrourdquo O termo ldquoagarraacuterdquo apenas perdeu

o ldquorrdquo e ganhou o acento

ὅλην ἐνέκαψε περικυλίσας τοῖν ποδοῖν

todin feiz uns bolin cuns peacutes e inguliu

todo fez uns bolinhos com as patas e engoliu

Optou-se ldquotodinrdquo em vez de ldquotodordquo pois o primeiro eacute mais sonoro e expressivo ldquoFezrdquo eacute substituiacutedo por ldquofeizrdquo

ldquobolinhosrdquo por ldquobolinrdquo ldquocom osrdquo por ldquocunsrdquo ldquoengoliurdquo por ldquoinguliurdquo

ἀλλ᾽ ὡς τάχιστα τρῖβε πολλὰς καὶ πυκνάς

Vai ligerin amassa uma ruma bem miudin

Mas ligeiro amassa muitos e compactos

Substituiu-se ldquoo mais raacutepido possiacutevelrdquo por ldquovai ligerinrdquo Utilizou-se ldquorumardquo pois eacute a forma mais utilizada para

expressar uma grande quantidade Em ldquobem miudinrdquo haacute duas ecircnfases sendo elas ldquobemrdquo e o -in Tal expressatildeo

substitui ldquocompactosrdquo forma muito elevada ldquoBem grandatildeordquo e bem piquininimrdquo satildeo expressotildees comuns para

o cearense

Οἰκέτης Β ἄνδρες κοπρολόγοι προσλάβεσθε πρὸς θεῶν

Casecircro 2 Homes ajuntadocirc dersquostrume ajude pelus deusu

Criado 2 Homens coletores de estrume ajudem pelos deuses

Optou-se por ldquohomesrdquo em vez de ldquohomensrdquo pois eacute apenas a transcriccedilatildeo da pronuacutencia mais comum por

ldquoajuntadocirc com a retirada do ldquorrdquo final e a colocaccedilatildeo do acento em vez de ldquocoletoresrdquo por ldquodrsquostrumerdquo em vez

de ldquoestrumerdquo pois eacute a forma reduzida reproduzida na fala ldquopelus deusurdquo no lugar de ldquopelos deusesrdquo na

tentativa de aproximaccedilatildeo do que seria ouvido se os camponeses cearenses invocassem os deuses como os

camponeses gregos

εἰ μή με βούλεσθ᾽ ἀποπνιγέντα περιιδεῖν

Srsquo ocecircs num quiseacute mim vecirc morrecirc sem forgo

Se vocecircs natildeo quiserem me ver morrer sem focirclego

[244]

Na passagem acima o termo ldquovocecircsrdquo eacute substituiacutedo por ldquosrsquoocecircsrdquo ldquonatildeordquo por ldquonumrdquo muito comum na linguagem

oral ldquoquiseremrdquo por ldquoquiseacuterdquo ldquome ver morrerrdquo por ldquomim vecirc morrecircrdquo e ldquofocirclegordquo por ldquoforgordquo pois normalmente

as palavras proparoxiacutetonas satildeo reduzidas na fala como no caso de substituiccedilatildeo de ldquolacircmpadardquo por ldquolampardquo

Οἰκέτης Α ἑτέραν ἑτέραν δός παιδὸς ἡταιρηκότος

Casecircro 1 Daacute ocircto e mais ocircto dum rapaz rapariga

Criado 1 Daacute outro e mais outro de um rapaz prostituto

Nesse trecho optou-se por Ocircto em vez de ldquooutrordquo ldquodumrdquo em vez ldquode umrdquo e ldquorapaz raparigardquo em vez de ldquorapaz

prostitutordquo O termo ldquoraparigardquo em cearensecircs significa ldquoprostitutardquo ldquoputardquo no feminino mas a expressatildeo eacute

amplamente utilizada a ponto de ser adjetivo para qualquer palavra ou expressatildeo como ocorre nesta

hipoteacutetica situaccedilatildeo ldquoMatildee - Menino cala essa bocardquo Menino - Rapariga de ldquocala essa bocardquo A palavra ainda

torna mais expressivo a passagem do texto que de alguma forma faz alusatildeo agrave passividade sexual do rapaz

prostituiacutedo

τετριμμένης γάρ φησιν ἐπιθυμεῖν

bem amassadinha ele diz que gosta

triturada pois ele diz apreciar

Optou-se por ldquobem amassadinhardquo ou ldquobem apertadinhardquo No trecho os escravos reclamam por terem que

fazer bolinhos de fezes para o rola-bosta

Οἰκέτης Β ἰδού

ἑνὸς μὲν ὦνδρες ἀπολελύσθαι μοι δοκῶ

Casecircro 2 Taiacute

Drsquouma coisa homes tocirc eacute livrin da silva

Criado 2 Eis aiacute

De uma coisa oacute homens penso estar livre

Nesse caso a expressatildeo ldquode umardquo eacute substituiacuteda por ldquodrsquoumardquo ldquoLivrin da Silvardquo eacute uma expressatildeo comum entre

os cearenses que expressa o fato de estar completamente livre O termo ldquolivrinrdquo jaacute designa ldquomuito livrerdquo

οὐδεὶς γὰρ ἂν φαίη με μάττοντ᾽ ἐσθίειν

Num tem quem diga qursquoeu como bolo amassano ele

Pois ningueacutem diria que eu como ao fazer o bolo

ldquoNum tem quem digardquo eacute uma expressatildeo comum na linguagem oral do cearense e eacute mais expressiva do que

ldquoningueacutem diriardquo Aleacutem disso optou-se por ldquoqursquoeurdquo em vez de ldquoque eurdquo e por ldquoamassano elerdquo em vez de

ldquoamassandordquo Em grego o termo eacute mesmo um particiacutepio

Οἰκέτης Α αἰβοῖ φέρ᾽ ἄλλην χἀτέραν μοι χἀτέραν

Casecircro 1 Ai ai Traz aiacute mais ocircto e ocircto e mais ocircto

Criado 1 Ai ai Traz mais outro e outro e mais outro

[245]

ldquoOutrordquo eacute substituiacutedo por ldquoocirctordquo estando a repeticcedilatildeo no texto grego e ldquotrazrdquo por ldquoTraz aiacuterdquo pois eacute mais

expressivo sendo o ldquoaiacuterdquo uma partiacutecula enfaacutetica

καὶ τρῖβ᾽ ἔθ᾽ ἑτέρας

e amassa mais ocirctos

e tritura mais outros

Traduziu-se nesse caso ldquooutrosrdquo por ldquoocirctosrdquo e ldquotriturardquo por ldquoamassardquo pois aquele primeiro termo eacute mais

comum do que o segundo

Οἰκέτης Β μὰ τὸν Ἀπόλλω γὼ μὲν οὔ

Casecircro 2 Deus alumiadocirc eu mermo natildeo

Criado 2 Por Apolo eu mesmo natildeo

Optou-se por ldquoDeus alumiadordquo com a retirada do ldquorrdquo final e a colocaccedilatildeo do acento em vez de ldquoPor Apolordquo

que eacute o deus representante da luminosidade do Sol que traz a peste e a cura e eacute pai de Ascleacutepio o deus da

Medicina Traduziu-se ainda ldquomesmordquo por ldquomermordquo porque o termo eacute muito comum na oralidade matuta

οὐ γὰρ ἔθ᾽ οἶός τ᾽ εἴμ᾽ ὑπερέχειν τῆς ἀντλίας

Eacute qui num guento mais natildeo o fedocirc da privada

Pois natildeo sou capaz de suportar o fedor do vaso

ldquoPoisrdquo que eacute uma forma mais elevada eacute substituiacuteda por ldquoeacute quirdquo ldquoNum guento mais natildeordquo eacute mais expressivo do

que ldquonatildeo sou capaz de suportarrdquo ldquoFedocircrdquo substitui ldquofedorrdquo e ldquoprivadardquo a palavra ldquovasordquo tendo em vista que a

primeira eacute mais popular do que a segunda Poderia tambeacutem ser ldquosentinardquo mas eacute um termo jaacute em desuso

Οἰκέτης Α αὐτὴν ἄρ᾽ οἴσω συλλαβὼν τὴν ἀντλίαν

Casecircro 1 Vocirc intatildeo eacute levaacute cum privada e tudo

Criado 1 Entatildeo levarei o proacuteprio vaso tomando-a

ldquoVocirc intatildeo eacute levardquo configura um modo expressivo de decisatildeo Na expressatildeo haacute a retirada do ldquorrdquo e colocaccedilatildeo do

acento substituindo ldquolevareirdquo ldquoComrdquo eacute substituiacutedo por ldquocumrdquo que eacute mais comum na linguagem oral dos

cearenses e ldquoo proacuteprio vasordquo por ldquocum privada e tudordquo

O enredo da peccedila trata da vida poliacutetica de Atenas trazendo novamente agrave discussatildeo os dilemas que

camponeses e citadinos sofriam em decorrecircncia da guerra e o que um indiviacuteduo eacute capaz de fazer para que a

paz seja estabelecida Diferente de Diceoacutepolis que negocia a paz somente para ele e sua famiacutelia em

Acarnenses Trigeu parte em busca da paz coletiva Ao tomar o escaravelho e sair do plano terreno dos

homens para adentrar no plano eteacutereo dos deuses Trigeu torna-se um heroacutei que transcende o espaccedilo em

prol da sociedade

[246]

Essa peccedila juntamente com Acarnenses e Cavaleiros formam o trio das peccedilas mais poliacuteticas de Aristoacutefanes

Lanccedilando-se um olhar sobre a peccedila aqui considerada pode-se observar uma dinacircmica entre opostos como

por exemplo Guerra versus Paz soldados versus agricultores astros versus olimpianos plano terrestre versus

plano eteacutereo fabricantes de armas versus fabricantes de instrumentos da lavoura o escaravelho no iniacutecio da

peccedila alimentando-se de fezes e apoacutes a libertaccedilatildeo da Paz saciando-se com ambrosia Ou seja o cenaacuterio eacute

controlado por um uacutenico elemento (Guerra ou Paz) e dependendo de quem estaacute no comando ele se modifica

Em A Paz um dos trechos que melhor representa a questatildeo dessa dicotomia eacute o trecho em que Trigeu

convoca todos gregos a se reunirem e se unirem em um uacutenico propoacutesito libertar a Paz que se encontrava

presa em uma caverna

Analisando os personagens envolvidos e ldquoempenhadosrdquo em libertar a deusa (soldados versus agricultores)

verificamos a presenccedila de atenienses megarenses beoacutecios argivos e posteriormente Trigeu e Hermes

convocados pelo coro Apoacutes longa tentativa Trigeu percebe que um grupo puxa para um lado e outro puxa

para o outro ou seja percebe que haacute entre aqueles que removem as pedras da caverna alguns que

atrapalham o serviccedilo ndash satildeo aqueles que fabricam armas ou que de algum modo lucram com a guerra e que

natildeo desejam seu fim O conselho de Hermes eacute que somente os lavradores removam as enormes pedras Com

o apoio do Coro os poucos agricultores os uacutenicos que queriam a Paz conseguem por fim libertar a Paz

juntamente com a Opora e a Teoria Outro trecho da peccedila que torna evidente o par ldquofabricantes de artefatos

de guerra versus fabricantes de instrumentos agraacuteriosrdquo ocorre logo apoacutes o resgate da Paz em que figuram

duas cenas os fabricantes de foices enxadas e demais objetos de lavoura e de argila que estatildeo

extremamente felizes pelo fim da guerra prontos a iniciar a produccedilatildeo de materiais para o comeacutercio em

oposiccedilatildeo aos fabricantes de armas que estatildeo a arrancar os cabelos

Hermes Tu natildeo vecircs aquele fabricante de penacho ali que arranca seus proacuteprios cabelos

Trigeu Este que faz as enxadas haacute pouco zombou daquele fabricante de espadas

Hermes Este fabricante de foices natildeo vecircs como tem prazer

Trigeu E como tratou mal o fabricante de lanccedilas (Ar A Paz 545-549)3

Em seguida como bem coloca Whitman (1964) os camponeses quando intimados por Trigeu que os convoca

como se estivessem no exeacutercito se preparam com seus instrumentos nas matildeos para o retorno ao campo

Trigeu Por Zeus a enxada era brilhante e preparada os tridentes brilham diante do sol (Ar

A Paz 568)4

Ainda segundo Whitman (1964) quando os que fabricam foices e enxadas celebram e consequentemente

zombam dos fazedores de armas que estatildeo arrancando os cabelos por natildeo haver mais compradores

3 A traduccedilatildeo de Paz eacute de Greice Ferreira Drumond (2002) 4 A traduccedilatildeo de Paz eacute de Greice Ferreira Drumond (2002)

[247]

interessados em suas mercadorias sugere-se um prenuacutencio das cenas finais quando Trigeu comeccedila sua

investida em tentar transformar elmos com penachos em espanadores espadas em enxadas ou as couraccedilas

em penicos por exemplo Esse confronto com as novas utilidades dadas por Trigeu aos artefatos de guerra

tornando-os utensiacutelios domeacutesticos tambeacutem faz parte dessa dicotomia Os mesmos objetos que antes eram

usados em batalhas se transformam em objetos de paz utilizados no cotidiano dos cidadatildeos Como as

mercadorias perdem o valor comercial os fabricantes de armas saem visivelmente transtornados diante do

protagonista com o prejuiacutezo em matildeos jaacute com os que fabricam foices por exemplo ocorre o inverso

Uma outra questatildeo a ser abordada eacute o figurino utilizado na performance Essa peccedila natildeo explora muito as

vestes dos personagens Na verdade de acordo com Compton-Engle (2015) em A Paz ocorre exatamente o

contraacuterio do que nas outras peccedilas Aristofacircnicas e haacute um silecircncio quanto agrave abordagem desse assunto haacute a

opccedilatildeo por citar somente duas vezes um traje espartano de guerra tambeacutem usado pelos taxiarcos atenienses

(v 303 e 1175) como bem explica Sousa e Silva (1984) Esse manto militar vermelho (φοινικίς phoinikis) era

usado por soldados espartanos e inserir um termo como esse apenas duas vezes em uma peccedila que tem como

tema central o fim da Guerra e o resgate e restituiccedilatildeo da Paz oferece uma interpretaccedilatildeo como propotildee

Compton-Engle (2015) isto eacute de que esse tipo de traje natildeo encontra espaccedilo nessa peccedila que soacute diz respeito

agrave paz Haacute uma outra suposiccedilatildeo que Whitman (1964) propotildee com relaccedilatildeo ao figurino afirmando o autor que

provavelmente o enredo tenha sido escrito em questatildeo de semanas o que pode justificar a escassez no que

concerne ao figurino das personagens

Conclusatildeo

O cearensecircs ou o portuguecircs matuto do Cearaacute foi apresentado em nosso estudo de Acarnenses de Aristoacutefanes

no livro Dioniso matuto uma abordagem antropoloacutegica do cocircmico na traduccedilatildeo de Acarnenses de Aristoacutefanes para

o cearensecircs

O falar matuto cearense consiste em usar apenas uma marca do plural (os priacutetane)

ldquoturdquo com o verbo na terceira pessoa (tu vai) retirar os erres finais e substituir por

acento na vogal anterior (aceitaacute embaixadocirc) o mesmo com as terminaccedilotildees em ndashou

(falocirc) cortar a siacutelaba inicial do verbo estaacute (tocirc taacute) repeticcedilotildees de natildeo mudando a

primeira forma (tu num taacute vendo natildeo) ldquohomerdquo por homem o ldquolhrdquo por ldquoirdquo (muieacute por

mulher aio por alho) falar no diminutivo substituindo ndashinho por ndashin40 (desse

tamanhin) ldquoprardquo ldquopros prasrdquo em vez de ldquoparardquo ldquopara osrdquo e ldquopara asrdquo usar

interjeiccedilotildees caracteriacutesticas(oxente Arre eacutegua Vixe) ecircnfases (euzin aqui oacute

abestaiadin vocirc eacute batecirc na porta) ldquomermordquo por ldquomesmordquo retirar o ldquolrdquo final de algumas

palavras (miserave por miseraacutevel terrive por terriacutevel) entonaccedilotildees caracteriacutesticas

(Pense numa sacudida grande) As alteraccedilotildees ou criaccedilotildees tecircm intuito expressivo

satildeo intensificadores do sentido Deixamos algumas palavras sem alteraccedilatildeo para

que se faccedilam entender melhor jaacute que natildeo haacute mais matuto que fale completamente

diferente dos citadinos e estes fazem graccedila imitando o falar matuto a ponto de

[248]

integrar alguns modos de expressotildees no cotidiano na comunicaccedilatildeo com os mais

proacuteximos que reconhecem o coacutedigo linguiacutestico tambeacutem natildeo exclusivo de uma

regiatildeo ou cidade Haacute sim o uso mais intenso de algumas caracteriacutesticas de falares

em determinadas regiotildees Os meios de comunicaccedilatildeo especialmente a telenovela

tecircm divulgado falares diversos dos matutos nordestinos ou natildeo do Brasil atraveacutes

do mundo (POMPEU 2014)

Propomos como conclusatildeo uma traduccedilatildeo contiacutenua como a linha que acrescentamos agrave nossa A Paz triliacutengue

em que cada um faccedila a sua sugestatildeo no dialeto de sua regiatildeo ampliando as possibilidades de expressividade

do camponecircs cearense ou de qualquer estado brasileiro para o enriquecimento da nossa pesquisa que jaacute

contou com variados dialetos dos integrantes do Grupo de Estudos da Comeacutedia de Aristoacutefanes ndash GECA

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WHITMAN C H Aristophanes and the Comic Hero Cambridge Harvard University 1964

A gruta

da Inveja traduccedilatildeo e criacutetica em Metamorfoses 2760-782 de Oviacutedio

Raimundo N Barbosa de Carvalho

raycarvalhouolcombr

Dentro do campo dos Estudos Claacutessicos em liacutengua portuguesa

vimos acontecer nos uacuteltimos trinta anos pelo menos um grande

desenvolvimento da praacutetica de traduccedilotildees poeacuteticas de poesias

claacutessicas dentro de uma tradiccedilatildeo tradutiva que remonta no

miacutenimo ao seacuteculo XVIII Embora possamos afirmar que durante

todo esse periacuteodo sempre se assistiu ao surgimento de importantes

traduccedilotildees poeacuteticas de obras claacutessicas essa modalidade de traduccedilatildeo

sofreu desde os primoacuterdios do seacuteculo XX um processo de

arrefecimento em virtude da ascensatildeo de outro tipo de traduccedilatildeo

que vigorou como apecircndice dos estudos claacutessicos de natureza

filoloacutegica a traduccedilatildeo em prosa seja ela literal ou ligeiramente

adaptada agrave linguagem contemporacircnea dentro do padratildeo

linguiacutestico adotado pelo mercado editorial Paradoxalmente o

fortalecimento dos Estudos Claacutessicos no Brasil com a crescente

profissionalizaccedilatildeo da pesquisa acadecircmica colaborou para fazer

nascer um novo ciclo de traduccedilotildees poeacuteticas de poesia latina em

especial Natildeo satildeo mais poetas avulsos com pouca formaccedilatildeo claacutessica

a se aventurarem no traslado da poesia latina em moldes

experimentais Os tradutores atuais de poesia claacutessica satildeo em sua

maioria professores e pesquisadores universitaacuterios munidos de

aparato criacutetico filoloacutegico e das mais amplas reflexotildees sobre a

traduccedilatildeo poeacutetica uma teia de textos que remonta a Ciacutecero e Satildeo

[250]

Jerocircnimo perfazendo uma longa e ininterrupta tradiccedilatildeo que se adensa e ganha profundidade de reflexatildeo

sistemaacutetica com os romacircnticos alematildees dos quais o seminal texto A tarefa do Tradutor de Walter Benjamin

eacute tributaacuterio

Sob o domiacutenio atual da praacutetica de traduccedilotildees claacutessicas podemos dizer que estamos numa direccedilatildeo inequiacutevoca

de valorizaccedilatildeo da esteacutetica do traduzir Jaacute natildeo contenta mais a pedestre reproduccedilatildeo de conteuacutedo das

traduccedilotildees literais nem haacute mais lugar para a pura invencionice daqueles amadores desprovidos de aparato

Portanto cremos um longo e persistente caminho foi trilhado e muito haacute ainda por ser feito Atingiu-se um

padratildeo a balizar os futuros empreendimentos no campo da traduccedilatildeo poeacutetica tanto da poesia em geral como

da poesia claacutessica em particular O que eacute necessaacuterio agora eacute voltarmos a atenccedilatildeo agrave dimensatildeo criacutetica da

atividade tradutoacuteria Cada gesto esteacutetico corresponde a um gesto criacutetico O porquecirc de se traduzir dessa ou

daquela maneira eacute algo a ser seriamente pesquisado e refletido As traduccedilotildees poeacuteticas que jaacute conteacutem em si

essa dimensatildeo criacutetica necessitam tambeacutem elas de serem criticamente recebidas e avaliadas

Infelizmente no domiacutenio da criacutetica de traduccedilatildeo estamos a anos-luz atrasados dos progressos que foram

feitos no campo da traduccedilatildeo poeacutetica propriamente dita Vigora ainda entre noacutes a anacrocircnica leitura sinoacutetica

entre original e traduccedilatildeo superdimensionando a auctoritas do primeiro em detrimento da dimensatildeo criativa

e criacutetica do segundo Busca-se o cotejo para caacutelculo das perdas e danos e para ressaltar diferenccedilas episoacutedicas

e pontuais Em geral quase nunca a traduccedilatildeo eacute vista como traduccedilatildeo Ela eacute de certa forma ignorada e

invisibilizada Para estes estudiosos a traduccedilatildeo eacute pura transparecircncia do original e soacute se torna objeto de sua

atenccedilatildeo quando ela destoa da visatildeo que ele tem do original Aiacute entatildeo ela se torna mesmo visiacutevel objeto de sua

ira travestida de cuidados filoloacutegicos que soacute mascaram a sua falta de aparato criacutetico que decirc conta das

operaccedilotildees processadas pela traduccedilatildeo criativa outro nome para a traduccedilatildeo poeacutetica

Eacute preciso portanto que o criacutetico de traduccedilatildeo se profissionalize e tenha conhecimento da vasta tradiccedilatildeo de

textos reflexivos sobre o fazer tradutoacuterio agrave qual me referi Sem o conhecimento desse conjunto de reflexotildees

teoacutericas o trabalho do criacutetico seraacute tatildeo somente limitado a um desacerto de opiniotildees sem proveito criacutetico

meros anaacutetemas adornados por uma retoacuterica de termos e conceitos ultrapassados que natildeo datildeo conta dos

fatos esteacuteticos que enformam a cadeia de sentidos que fazem da traduccedilatildeo poeacutetica texto a ser lido e

interpretado na sua dimensatildeo criativa independente do cotejo com a matriz que lhe deu origem mas que ao

ser cotejado com ela coloca-se como par pari passu com original

Em Pour une critique des tradutions John Donne Antoine Berman apresenta seu projeto de uma criacutetica

produtiva afirmando que desde o iluminismo a criacutetica sempre realccedilou a negatividade No entanto para

ele a criacutetica deve ser essencialmente positiva Na esteira de Friedrich Schlegel fundador da criacutetica moderna

o termo criacutetica eacute reservado para a anaacutelise de obras de qualidade pois a criacutetica puramente negativa natildeo eacute

uma criacutetica real Para anaacutelise de obras mediacuteocres ou de baixa densidade esteacutetica usa-se o termo

[251]

caracterizaccedilatildeo A criacutetica seria antes de tudo uma exigecircncia das proacuteprias obras literaacuterias para se

manifestarem se completarem e se perpetuarem A criacutetica tal como ele compreende permite garante e

estimula a circulaccedilatildeo da obra ainda que por vezes tente obscurececirc-la sufocaacute-la ou mesmo mataacute-la Seja qual

for o perigo a criacutetica liga-se ontologicamente agrave obra Nesse sentido a traduccedilatildeo eacute tatildeo importante quanto a

criacutetica para disseminaccedilatildeo das obras e a ela se relaciona estruturalmente pois natildeo eacute raro que tradutores se

voltem a obras de criacutetica para traduzir um livro atuando portanto como criacutetico em todos os niacuteveis Quando

se trata inclusive de uma retraduccedilatildeo fica impliacutecita ou expliacutecita uma criacutetica das traduccedilotildees anteriores que

revela um determinado estado da cultura da liacutengua e da literatura da eacutepoca em que foram realizadas

apontando e contextualizando as deficiecircncias e as inatualidades delas (BERMAN 1995 p 38-40) mas

tambeacutem se apropriando de suas qualidades como forma de realccedilar os valores permanentes daquelas

traduccedilotildees que mesmo envelhecidas se mantecircm iacutentegras e legiacuteveis para um leitor empenhado como soacutei ser

o tradutor-poeta-criacutetico

Eacute portanto sob essa perspectiva bermaniana que gostariacuteamos de abordar criticamente o conjunto de

traduccedilotildees de Metamorfoses 2760-782 que ora apresentamos em apecircndice Como jaacute sugere o tiacutetulo deste

ensaio a traduccedilatildeo de Bocage eacute o foco em volta do qual haacute de girar toda a reflexatildeo que pretendemos

desenvolver aqui Bocage nomeou o trecho de A gruta da Inveja muito apropriadamente e isso serve bem

aos seus interesses de tradutor mas pode ser tambeacutem compreendido metaforicamente como uma referecircncia

ao trabalho mesmo de traduccedilatildeo pois na pulsatildeo de traduzir muita carga afetiva positiva eou negativa eacute

despendida Traduz-se aquilo que se considera belo e relevante de se traduzir e ao se proceder agrave traduccedilatildeo

esta se faz a partir da crenccedila de que se pode fazer igual ou melhor aquilo que jaacute encontrou a perfeiccedilatildeo em

outro territoacuterio linguiacutestico Traduzir eacute medir forccedilas outrar-se sendo si mesmo invejar e ser objeto de inveja

A muitos o tradutor parece invisiacutevel mas eacute a traduccedilatildeo que muitas vezes torna o original invisiacutevel O leitor

ingecircnuo quase sempre acha que estaacute lendo uma obra quando na verdade estaacute lendo outra saiacuteda da verve

natildeo do autor anunciado na capa mas do seu tradutor escondido na ficha teacutecnica A teacutecnica do ilusionismo

empregada na traduccedilatildeo eacute na melhor das hipoacuteteses uma espeacutecie de desdobramento do jogo ficcional em que

uma nova instacircncia enunciativa se soma a outras jaacute existentes para a produccedilatildeo de um texto novo que guarda

com o antigo uma relaccedilatildeo mais ou menos conflituosa de parentesco Ser um leitor consciente e criacutetico de uma

traduccedilatildeo eacute compreender e tirar partido desse desdobramento que eacute um desdobramento tambeacutem do proacuteprio

leitor

Pois entatildeo vejamos Que tipo de metamorfose Bocage produz ao traduzir o trecho em questatildeo da obra

maacutexima de Oviacutedio Antes de responder a essa questatildeo cabe fazer algumas observaccedilotildees a respeito do sentido

e da forma desse original Trata-se de uma sequecircncia de vinte dois versos cujo sentido para ser bem

estabelecido depende totalmente do que vem antes e depois do que nele eacute narrado No original e nas

[252]

traduccedilotildees integrais do Livro II das Metamorfoses o trecho funciona como uma pequena digressatildeo em que o

poeta se utiliza da teacutecnica da mise en abyme para contar uma histoacuteria dentro da outra e assim ir saciando a

sua pulsatildeo de narrar O trecho portanto narra a descida de Minerva ao antro malcheiroso de Inveja para

pedir que esta inocule o veneno da inveja em Aglauro uma das filhas de Ceacutecropis rei de Atenas (esse pedido

vem logo apoacutes o trecho selecionado - Met II 784-785 - como vinganccedila pela conduta cobiccedilosa de Aglauro que

exigiu quantidades de ouro de Mercuacuterio para favorecer o seu amor pela irmatilde Herse aleacutem da impertinecircncia

de ter descoberto um pouco antes um segredo de Minerva ndash Met 2749-751)

Como daacute para perceber o trecho em questatildeo lido isoladamente natildeo chega a constituir uma unidade de

sentido completo e depende tanto do que foi narrado como do que vai ser narrado logo em seguida O que

levou Bocage entatildeo a isolaacute-lo e traduzi-lo Eacute que Bocage viu ali a oportunidade de inovar fazer diferente O

proacuteprio tradutor informa em nota que a versatildeo eacute salteada (OVIacuteDIO amp BOCAGE 2000 p 65) Ele elidiu a

presenccedila de Minerva e tudo o que se refere a accedilotildees e reaccedilotildees da deusa e se concentrou nos pormenores da

descriccedilatildeo do local e da figura medonha da Inveja criando um novo texto autocircnomo a partir do texto de

Oviacutedio mas ao mesmo tempo muito ovidiano Trata-se de uma eacutecfrase ou evidecircncia figura de retoacuterica assim

definida no dicionaacuterio Houaiss descriccedilatildeo viva e minuciosa de um objeto realizada com a enumeraccedilatildeo de

suas particularidades sensiacuteveis reais ou fantasiosas

Eacute sintomaacutetico que o Livro II das Metamorfoses comece justamente com uma eacutecfrase da Morada do Sol (vv 1-

18) que Bocage natildeo se interessou em verter embora tenha vertido outro passo do episoacutedio que ele intitulou

Precipiacutecio de Faetonte (vv 161-183) Dentre os 20 textos extraiacutedos das Metamorfoses Bocage compocircs

ainda nos mesmos moldes A gruta do Sono (Met 11592-645) Em nota ele informa que o episoacutedio natildeo

foi traduzido seguidamente [] porque natildeo pretendia verter senatildeo a descriccedilatildeo da gruta do sono e de seus

ministros (OVIacuteDIO amp BOCAGE 2000 p 113) Eacute que ao traduzir Oviacutedio Bocage natildeo o fez de maneira

ordinaacuteria Ele traduz imitando emulando ou seja ele procura organicamente recriar o texto ovidiano

dentro do jargatildeo literaacuterio de sua eacutepoca No poema Pena do Taliatildeo dirigido a seu desafeto Macedo Bocage

assim reflete sobre a sua arte de traduzir

Verter com melodia ardor pureza

O metro peregrino em luso metro

Dos idiotismos aplanando o estorvo

De um doutro idioma discernindo os gecircnios

O caraacuteter do texto expor na glosa

Eacute ser bugio ou papagaio Elmiro (OVIacuteDIO amp BOCAGE 2000 p 24)

Aleacutem do mais as traduccedilotildees de Bocage atestam o modo como os leitores daquele periacuteodo tendiam a ler a

obra-prima de Oviacutedio natildeo como canto contiacutenuo mas como um repositoacuterio de faacutebulas isoladas Talvez por

isso ele tenha se omitido de traduzir o ceacutelebre proacutelogo (Met I 1-5) no qual Oviacutedio expotildee o assunto e o

formato do poema As Transformaccedilotildees de Cacircndido Lusitano (pseudocircnimo do aacutercade Francisco Joseacute Freire)

[253]

embora se pretendam uma traduccedilatildeo completa (ainda que expurgadas das partes licenciosas) das

Metamorfoses de Oviacutedio jaacute indicam essa tendecircncia de leitura fragmentada em faacutebulas1 que no original latino

o poeta costurou com grande mestria umas e de forma um tanto quanto artificiosa outras mas natildeo deixando

nenhuma ponta delas fora dessa grande costura que constitui a estrutura dinacircmica do seu eacutepico De certa

forma a traduccedilatildeo dos quatro primeiros livros das Metamorfoses empreendida por Almeno outro aacutercade

contemporacircneo de Bocage manteacutem idealmente a forma ininterrupta do original De Almeno (pseudocircnimo

do Padre Joseacute do Coraccedilatildeo de Jesus) disse o prefaciador da ediccedilatildeo poacutestuma de sua traduccedilatildeo

Que diremos das virtudes da Locuccedilatildeo parte uacutenica em que pode ser mais seu

engenho a eloquecircncia e o gosto de um Tradutor Com ser Traduccedilatildeo em verso e de

um Poema tatildeo mimoso e delicado e ela tatildeo fiel e chegada ao texto eacute ao mesmo passo

mui pura e limpa nas palavras mui proacutepria e escolhida nos termos faacutecil e natural nas

expressotildees correta na gramaacutetica elegante na dicccedilatildeo luzida e airosa na frase

poeacutetica e rica em todos os primores e aticismo da Liacutengua sendo mui formosa coisa

ver substituiacutedas com todo garbo e ufania as maneiras polidas finas e engraccediladas de

Oviacutedio por outras equivalentes em nossa liacutengua e reproduzidas gentilmente na

coacutepia todas as galhardias e donaires da locuccedilatildeo todas as variaccedilotildees e floreios de

estilo do original

Assim trabalhava Almeno competindo a desafio com Oviacutedio e emparelhando com

ele em todos os seus extremos e gentilezas de seu Poema e felizmente para o Poeta

Romano teve a gloacuteria da invenccedilatildeo sem o que seria difiacutecil decidir do merecimento

entre os dois rivais (OVIacuteDIO 1805 p 18-19)

Estamos diante de trecircs tradutores poetas aacutercades que partem de uma poeacutetica comum e complementar cada

qual com seu desempenho concreto no exerciacutecio da traduccedilatildeo De Cacircndido Lusitano Castilho disse que era

erudito ldquotrabalhador incansaacutevel mas natildeo um poetardquo (PREDEBON 2006 p 112) Por outro lado tinha

Bocage em alta conta e agrave sua traduccedilatildeo das Metamorfoses colou versos inteiros do aacutercade notaacutevel como pode

observar o leitor ao comparar os dois textos Esse eacute um caso sui generis de retraduccedilatildeo em que o tradutor mais

recente traduz contra e a favor ao mesmo tempo do tradutor anterior Castilho como que restaura a

integridade do texto ovidiano aproveitando os estilhaccedilos da traduccedilatildeo fragmentaacuteria de Bocage

E isso ao inveacutes de obnubilar a poeacutetica tradutiva de Bocage a ressalta Castilho tenta se ombrear com Bocage

mas sabe que natildeo eacute paacutereo para ele na fatura do decassiacutelabo mesmo porque se trata de sensibilidades

poeacuteticas diferentes A utilizaccedilatildeo da teacutecnica da colagem eacute uma soluccedilatildeo intermediaacuteria e uma forma de desler e

reler o gesto criativo de Bocage ao traduzir de forma livre o texto das Metamorfoses como que

1 A divisatildeo do poema em faacutebulas enumeradas e com tiacutetulo natildeo demonstra somente didatismo mas mudanccedila de gecircnero jaacute que sob a perspectiva das poeacuteticas de Aristoacuteteles e Horaacutecio seguidas por Cacircndido Lusitano na elaboraccedilatildeo de sua proacutepria Arte Poeacutetica natildeo se contemplava a disposiccedilatildeo das Metamorfoses como um poema contiacutenuo o que direciona a leitura da obra como um conjunto de poemas de subgecircnero metamorfose Tambeacutem os expurgos indicam como a poeacutetica incorpora a censura e justifica a autoridade do tradutor para alterar o texto (PREDEBON 2006 p 74-75)

[254]

desentranhando dela aquilo que a sua mente destaca A essa gruta gruta da Inveja que o tradutor Bocage

esculpiu com os materiais selecionados do original Castilho faz entrar de novo Minerva refazendo dessa

forma a integridade do texto ovidiano A traduccedilatildeo de nossa lavra que tambeacutem vai disposta abaixo se

apropria dessa tradiccedilatildeo de traduccedilotildees das obras latinas procurando manter criacutetica e criativamente viva a

pulsatildeo do traduzir Ao inveacutes de nos mantermos dentro da linhagem decassilaacutebica agrave qual se ligam as quatro

traduccedilotildees aqui elencadas buscamos inovar traduzindo cada um dos hexacircmetros latinos por um verso

dodecassilaacutebico em portuguecircs o que permite a igualdade numeacuterica com o original A concisatildeo atingida pelos

antecessores eacute tambeacutem um estiacutemulo agrave busca de efeito semelhante As formas os torneios frasais o

vocabulaacuterio as vaacuterias camadas de linguagem todo seu repositoacuterio de textos que para muitos natildeo passa de

velharias de antigos alfarraacutebios eacute material para a reflexatildeo criacutetica que subjaz agrave atividade pensante da

traduccedilatildeo criativa Essa atividade pensante que se verifica no movimento da linguagem na traduccedilatildeo tambeacutem

ela quer capturar a atenccedilatildeo do leitor reflexivo e criacutetico capaz de distinguir os miacutenimos jogos de linguagem

que envolvem a operaccedilatildeo tradutoacuteria e faz disso um encanto paralelo e agrave parte distinto do encanto proacuteprio

da obra originaacuteria

Oviacutedio Metamorfoses 2760-782

Protinus Inuidiae nigro squalentia tabo 760

tecta petit domus est imis in uallibus huius

abdita sole carens non ulli peruia uento

tristis et ignaui plenissima frigoris et quae

igne uacet semper caligine semper abundet

Huc ubi peruenit belli metuenda uirago 765

constitit ante domum (neque enim succedere tectis

fas habet) et postes extrema cuspide pulsat

Concussae patuere fores Videt intus edentem

uipereas carnes uitiorum alimenta suorum

Inuidiam uisaque oculos auertit at illa 770

surgit humo pigre semesarumque relinquit

corpora serpentum passuque incedit inerti

utque deam uidit formaque armisque decoram

ingemuit uultumque una ac suspiria duxit

Pallor in ore sedet macies in corpore toto 775

nusquam recta acies liuent robigine dentes

pectora felle uirent lingua est suffusa ueneno

risus abest nisi quem uisi mouere dolores

nec fruitur somno uigilantibus excita curis

sed uidet ingratos intabescitque uidendo 780

successus hominum carpitque et carpitur una

suppliciumque suum est

[255]

Traduccedilatildeo de Cacircndido Lusitano (1771)

Sem demora

Busca da Inveja a habitaccedilatildeo imunda

Eacute esta em fundo vale uma medonha

Caverna que jamais o Sol visita 1075

Jamais nela entra vento ao frio inerte

Somente entrada daacute por isso sempre

Carece de Calor abunda em trevas

Apenas chega a Varonil Deidade

Paacutera fora da entrada (que entrar dentro 1080

Permitido natildeo lhe eacute) na porta bate

Crsquoo conto drsquoalta lanccedila aos golpes se abre

E aos olhos se lhe mostra o feio Monstro

Viacuteboras devorando de seus viacutecios

Mantimento comum Firmar a vista 1085

Nela natildeo pode volta-lhe o semblante

Do aspecto horrorizada Mas a Inveja

Assim que a vecirc da terra se levanta

E larga as serpes meias laceradas

Caminha a lentos passos e da Deusa 1090

Ao ver a fermosura e ricas armas

Suacutebito geme e aflitos ais arranca

Vive em seu rosto palidez medonha

E em todo o corpo lacircnguida fraqueza

O seu olhar nunca eacute direito os dentes 1095

Ferrugiacuteneos estatildeo liacutevidos sempre

De verde fel mostra pintado o peito

E em veneno mortal nadando a liacutengua

Nela jamais haacute riso senatildeo quando

Ao ver males alheios se deleita 1100

De cuidados soliacutecitos movida

Sempre o sono afugenta e estaacute agrave mira

Dos sucessos alegres que a devoram

Quer vecirc-los de contiacutenuo e o ver a dana

Sempre quer afligir e eacute afligida 1105

Sendo perpeacutetua pena de si mesma

[256]

Traduccedilatildeo de Almeno (1795)

Da inveja logo

agrave casa vai que negra peste escorre

A casa estaacute metida nos profundos

vales duma caverna nunca vista

do sol dos ventos nunca bafejada

sombria e aonde o ignavo gelo mora

falta-lhe sempre o fogo e abunda a treva

sempre Mal a virago belicosa

tremenda aqui chegou ante o aposento

para que nem lhe entrar se lhe concede

na cova e agraves portas com o conto bate

da lanccedila as portas ao bater se abriram

Vecirc dentro a Inveja a devorar as carnes

das viacuteboras que os seus furores nutrem

E vista aparta os olhos Mas da terra

preguiccedilosa ela se levanta e os meio

comidos corpos das serpentes deixa

E a passos lentos anda E com em armas

e aspecto viu gentil a Deusa geme

E de internos suspiros cobre a face

No rosto habita a palidez nos membros

a fome todos daacute olhado a tudo

Os dentes caacuterdeos de ferrugem tinha

Do fel verdeja o peito a liacutengua verte

veneno Foge o riso natildeo aquele

que alheias maacutegoas datildeo nem de cuidados

veladores chamada sono colhe

Mas vecirc com dor felizes os humanos

e vendo se definha e de parelha

morde e morde-se faz-se seu verdugo

[257]

Traduccedilatildeo de Bocage (1800)

Eacute a estacircncia da Inveja em gruta enorme

Laacute nuns profundos vales escondida

Aonde o Sol natildeo vai nem vai Favocircnio

Reina ali rigoroso eterno frio

De uacutemidas grossas neacutevoas sempre abunda

O monstro vive de vipeacutereas carnes

Dos seus tartaacutereos viacutecios alimento

Da morte a palidez lhe estaacute no aspecto

Magreza e corrupccedilatildeo nos membros todos

Olha sempre ao reveacutes ferrugem torpe

Nos asquerosos dentes lhe negreja

Vecirc-se o fel verdejar no peito imundo

Espumoso veneno a liacutengua verte

Longa o riso lhe jaz dos negros laacutebios

Soacute se nos mais haacute pranto haacute nela riso

Em natildeo vendo chorar lhe acode o choro

Natildeo goza de repouso um soacute momento

Os cuidados que a roem natildeo sofre sono

Mirra-se de pesar ao ver nos homens

Qualquer bem rala e rala-se a maligna

Eacute verdugo de si oacutedio de todos

[258]

Traduccedilatildeo de Feliciano de Castilho (1841)

Parte corre da Inveja ao lar soturno

ao lar que escorre em puacutetrido veneno

Eacute a estacircncia da Inveja em gruta enorme

Laacute nuns profundos vales escondida

Aonde o sol natildeo vai nem vai favocircnio

Reina ali rigoroso eterno frio

De uacutemidas grossas neacutevoas sempre abunda

Chegara ao siacutetio infesto a Deusa invicta

Ante a morada atroz suspende o passo

Que natildeo lhe eacute dado penetrar laacute dentro

Fere a porta coa lanccedila abriu-se a porta

vecirc-a ao fundo a comer vipeacutereas carnes

De seus tartaacutereos viacutecios alimento

Vecirc-a e para a natildeo ver desvia os olhos

Deixando em meio as serpes que tragava

Se ergue a custo da terra o monstro feio

Com tardo passo vem e ao ver Tritocircnia

formosa nas feiccedilotildees gentil nas armas

Gemeu ao seu gemido a encara a Deusa

Da morte a palidez lhe estaacute no aspeto

Magreza e corrupccedilatildeo nos membros todos

Olha sempre ao reveacutes ferrugem torpe

Nos asquerosos dentes lhe negreja

Vecirc-se o fel verdejar no peito imundo

Espumoso veneno a liacutengua verte

Longe o riso lhe estaacute dos negros laacutebios

Soacute se nos mais haacute pranto haacute nela riso

Natildeo goza de repouso um soacute momento

Os cuidados que a roem natildeo sofrem sonos

Mirra-se de pesar ao ver nos homens

Qualquer bem rala e rala-se a maldita

Eacute verdugo de si oacutedio de todos

[259]

Traduccedilatildeo de Raimundo Carvalho (2017)

Suacutebito busca o teto da Inveja infecto 760

de negro pus seu lar no mais profundo vale

escondido carente de sol e de vento

triste e farto de torpe frio e sempre falto

de fogo estaacute repleto de caligem sempre

Chegando laacute temiacutevel guerreira a virago 765

parou na porta entrar no teto era interdito

e com a ponta da lanccedila o batente golpeia

Ao golpe as portas se abrem vecirc dentro comendo

vipeacutereas carnes alimento de seus viacutecios

Inveja e vendo-a a vista desvia Mas esta 770

se ergue da esteacuteril terra e deixa mal roiacutedos

os corpos de serpente e em passo lento avanccedila

e quando viu a deusa em forma e ornada de armas

gemeu e o rosto em fundos suspiros franziu

A palidez lhe toma a face e o magro corpo 775

nunca eacute direto o olhar e o sarro borra os dentes

de fel verdeja o peito em liacutengua flui veneno

riso natildeo tem soacute quando vecirc a dor de algueacutem

nem frui do sono em vigilante afatilde desperta

mas vecirc com desagrado e se consome ao ver 780

o sucesso dos homens roacutei e se corroacutei

eacute seu supliacutecio

Referecircncias bibliograacuteficas

BERMAN A Por une critique des traductions John

Donne Paris Gallimard 1995

OVIDE Les Meacutetamorphoses Paris Belles Letres

1994

OVIDIO BOCAGE Metamorfoses Satildeo Paulo

Hedra 2000

OVIDIO As Metamorfoses Trad A Feliciano de

Castilho Rio de Janeiro Orgs Simotildees 1959

OVIacuteDIO Os quatro primeiros livros da

Metamorphose de P Ovidio Nasatildeo poeta romano

Traduzidos em verso solto portuguez por Almeno

Lisboa Typografia Lacerdina 1805 p 120-121

PREDEBON A Ediccedilatildeo do manuscrito e estudo das

Metamorfoses de Oviacutedio traduzidas por Francisco

Joseacute Freire Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Letras

Claacutessicas) ndash Faculdade de Filosofia Letras e

Ciecircncias Humanas Universidade de Satildeo Paulo

Satildeo Paulo 2006

O Satyricon

de Petrocircnio traduzido para o portuguecircs do Brasil uma anaacutelise das notas do tradutor

Liacutevia Mendes Pereira

liviamendesletrasgmailcom

No presente estudo seratildeo analisados trechos do Satyricon de

Petrocircnio em duas traduccedilotildees para a liacutengua portuguesa do Brasil por

meio da anaacutelise comparativa Utilizarei o texto latino na versatildeo da

Garnier (1934) e as traduccedilotildees publicadas de Paulo Leminski (1985)

e de Sandra Braga Bianchet (2004)

Pensando que a traduccedilatildeo assim como o original estatildeo abertos ao

interdiscurso e agraves possibilidades de dizer produzindo diversos

sentidos para um mesmo texto retomarei a definiccedilatildeo de ldquofunccedilatildeo

tradutorrdquo discutida por Solange Mittmann (2000) em que o

tradutor tenta criar a ldquoilusatildeordquo de que quem fala no texto da

traduccedilatildeo eacute o autor do original tentando mostrar uma ldquoidentificaccedilatildeo

total com o originalrdquo Evidenciaremos a presenccedila da ldquofunccedilatildeo

tradutorrdquo presente na construccedilatildeo das Notas de Tradutores

(doravante NT) as quais Solange Mittmann considera ldquonatildeo como

um discurso paralelo mas como um discurso extensivo ao discurso

do texto da traduccedilatildeordquo (MITTMANN 2000 p 2) Para a autora haacute

um distanciamento entre as duas vozes nas NT que criam a ilusatildeo

de que quem fala no texto ldquotraduccedilatildeordquo eacute o autor e de que quem fala

no texto ldquoNTrdquo eacute o tradutor

[261]

Friedrich Pretendo destacar que na traduccedilatildeo ldquotranscriaccedilatildeordquo de Paulo Leminski ao inveacutes de o tradutor tentar

criar a ilusatildeo de transparecircncia ele retoma a opacidade do texto de partida no texto de chegada em liacutengua

portuguesa ou seja ele recria o ldquojaacute opacordquo do texto original Trata-se assim de uma opccedilatildeo diferente das

traduccedilotildees filoloacutegicas e acadecircmicas que tentam criar a ldquoilusatildeo de transparecircnciardquo total do texto de partida

com uma interpretaccedilatildeo ldquodita como certardquo alicerccedilada em dicionaacuterios ou com a utilizaccedilatildeo das NT

O Satyricon de Petrocircnio e suas traduccedilotildees para liacutengua portuguesa do Brasil

O que eacute conhecido atualmente como Satyricon trata-se provavelmente do fragmento referente a trecircs livros

consecutivos XIV XV e XVI que faziam parte de uma obra mais ampla que natildeo chegou completa ateacute noacutes Satildeo

poucos os registros que falam sobre o suposto escritor do Satyricon os dados histoacutericos baseiam-se

principalmente no texto do ceacutelebre historiador Taacutecito (55-117 dC cf Anais XVI 18-19) que menciona uma

personalidade da corte do imperador Nero denominada Gaius Petronius arbiter elegantiae (ldquoCaio Petrocircnio

aacuterbitro da elegacircnciardquo) a quem se tem atribuiacutedo a autoria do texto

No Satyricon Petrocircnio retrata as manifestaccedilotildees sociais e o panorama cotidiano dos romanos A histoacuteria eacute

baseada nas peripeacutecias de Encoacutelpio narrador e personagem principal ndash que havia profanado o culto a Priapo

ndash Gitatildeo um rapaz por quem Encoacutelpio se apaixona e Ascilto com quem formam um triacircngulo amoroso sendo

que este uacuteltimo depois seraacute substituiacutedo por Eumolpo poeta de peacutessima categoria

A obra petroniana possui cinco traduccedilotildees em liacutengua portuguesa do Brasil A traduccedilatildeo de Paulo Leminski

lanccedilada em 1985 pela editora Brasiliense eacute a terceira delas A primeira foi editada em 1970 pela Editora

Atenas e relanccedilada no ano seguinte pela Ediouro Depois foi editada a traduccedilatildeo indireta do francecircs feita por

Marcos Santarrita no ano de 1981 pela editora Abril Apoacutes a traduccedilatildeo de Leminski surgiram soacute mais

recentemente outras duas traduccedilotildees Em 2004 lanccedilada pela editora Crisaacutelida a traduccedilatildeo de Sandra Braga

Bianchet foi a primeira ediccedilatildeo biliacutengue publicada no Brasil A mais recente eacute a de Claudio Aquati lanccedilada em

2008 pela editora Cosac Naify No presente trabalho como jaacute havia destacado utilizarei como corpora de

anaacutelise as traduccedilotildees de Paulo Leminski e Sandra Braga Bianchet

Eacute importante realccedilar pensando no contexto de produccedilatildeo de cada traduccedilatildeo que a versatildeo mais recente

produzida pela professora e pesquisadora de liacutengua latina Sandra Braga Bianchet (professora doutora da

UFMG) possui um caraacuteter acadecircmico e filoloacutegico e acompanha estudo importante da obra petroniana para

os estudos greco-romanos no Brasil Diferentemente dessas duas versotildees e como foi indicado pelo proacuteprio

poeta Paulo Leminski natildeo estava preocupado com questotildees filoloacutegicas em sua traduccedilatildeo O poeta declarou

que lhe interessava propor uma traduccedilatildeo com um ldquoolhar criativordquo seguindo um modelo tradutoacuterio que

dialogava com as ideias de Eliot e Pound

[262]

Anaacutelise dialoacutegica as notas do tradutor

Em sua maioria as traduccedilotildees acadecircmicas ainda possuem uma visatildeo tradicional e pretendem ocultar o

processo tradutoacuterio criando a ilusatildeo de que o texto traduzido carrega sem contaminaccedilatildeo o significado

transparente do texto original Poreacutem com o acesso agraves teorias da traduccedilatildeo agrave literatura comparada e agrave anaacutelise

do discurso jaacute natildeo podemos conceber a traduccedilatildeo simplesmente como transporte de significados de uma

liacutengua para outra Assim como estabeleceu Pecirccheux (1993 p 82) a traduccedilatildeo se resume na transmissatildeo de

um ldquoefeito de sentidordquo entre os pontos A e B ndash texto de partida e texto de chegada Dessa forma a estudiosa

Solange Mittmann (1999 p 223) destaca a noccedilatildeo de discurso partindo dessa perspectiva e contesta toda a

ldquoilusatildeordquo de que o texto carrega uma mensagem que faraacute transparecer as intenccedilotildees do autor do original

Segundo Mittmann (1999 p 223)

natildeo haacute uma via de matildeo uacutenica do autor para o leitor com o tradutor servindo de instrumento neutro intermediaacuterio capaz de apagar os obstaacuteculos de comunicaccedilatildeo eliminando as diferenccedilas entre os coacutedigos mas haacute produccedilatildeo de sentidos pelo autor pelo tradutor pelos leitores ou ainda entre todos os participantes do processo

Nesse sentido natildeo eacute o texto de partida que serve de base para que se produza um texto traduzido mas a

imagem que o tradutor faz desse texto do autor desse texto dos seus leitores da imagem que faz de si

proacuteprio dos outros discursos que atravessam esse texto e assim por diante portanto ldquoo processo tradutoacuterio

eacute um processo de produccedilatildeo do discurso da traduccedilatildeo que se materializaraacute no texto da traduccedilatildeordquo

(MITTMANN 1999 p 225) Seguindo esse pensamento podemos afirmar que cada traduccedilatildeo de um mesmo

texto teraacute suas especificidades e diferenccedilas pois seraacute resultado de diferentes condiccedilotildees de produccedilatildeo de

discurso e de diferentes relaccedilotildees de sentido Natildeo podemos nos esquecer que os textos traduzidos satildeo

direcionados a leitores diferentes em contextos linguiacutesticos e culturais diferentes assim nunca devemos ter

a ilusatildeo de que ler um texto eacute resgatar a mensagem precisa de seu autor ou seja possuir a ldquoilusatildeo de unidade

e homogeneidade do textordquo Muitas vezes os tradutores acadecircmicos tentam transferir essa ldquoilusatildeo de

unidade e homogeneidaderdquo para o texto traduzido como aponta Mittmann (1999 p 228) o sentido dado ao

texto pelo tradutor eacute determinado pelo interdiscurso ndash na leitura do original e na escrita da traduccedilatildeo A

heterogeneidade do discurso da traduccedilatildeo remete agrave constituiccedilatildeo de todo discurso ldquosempre outras vozes o

atravessam como um discurso transverso e lhe datildeo sustentaccedilatildeo como um preacute-construiacutedordquo essa pluralidade

aparece na presenccedila de outros discursos de outras vozes tanto no texto original como na traduccedilatildeo

Um bom exemplo desses discursos transversos e das diferentes vozes que o atravessam eacute a utilizaccedilatildeo pelos

tradutores das NT Como apontou Barros (2009 p 200) as NT passam a ser um local de visibilidade do

tradutor como profissional e ele consegue a partir delas ganhar uma marca proacutepria Mittmann tambeacutem

destaca que as NT funcionam como um ldquolugar em que o tradutor apresenta suas duacutevidas dialoga com o

leitor e com o autor apresenta os caminhos que percorreu e mostra sua visatildeo a respeito do processo em que

ele mesmo se encontrardquo (MITTMANN 2003 p 43) Na produccedilatildeo de notas o tradutor consegue aparecer

[263]

como produtor de um discurso explicitamente seu e tambeacutem adquiri a liberdade de dar suas opiniotildees fazer

correccedilotildees mostrar seus conhecimentos e interferir de alguma forma no texto Poreacutem muitas vezes essas

notas vatildeo sendo utilizadas para criar uma ilusatildeo de transparecircncia do texto original na traduccedilatildeo isso parte da

visatildeo tradicional de traduccedilatildeo vista como um processo de transposiccedilatildeo de um texto de uma liacutengua para outra

em que natildeo se admite o texto traduzido como outro original sendo entatildeo que a voz do tradutor apenas se

destaca por meio de notas

Retomando a noccedilatildeo de ldquofunccedilatildeo autorrdquo de Foucault como a funccedilatildeo que organiza a diversidade de posiccedilotildees-

sujeito criando o efeito de unidade e coerecircncia Mittmann (1999 p 232) propotildee estendecirc-la em uma ldquofunccedilatildeo

tradutorrdquo considerando-a

como a funccedilatildeo que organiza a heterogeneidade de vozes como a posiccedilatildeo sujeito do tradutor a posiccedilatildeo-sujeito do autor (ou a imagem que o tradutor tem dela) aleacutem das outras vozes vindas do interdiscurso e que entram no texto da traduccedilatildeo ou nas NT seja como preacute-construiacutedo (o Outro) seja como discurso transverso (o outro) como no caso de discursos de dicionaacuterios

Esta ldquofunccedilatildeo tradutorrdquo faz portanto com que se crie um ldquoefeito de responsabilidaderdquo por parte do tradutor

em reproduzir ou imitar o original assim o tradutor fica responsaacutevel pela produccedilatildeo ou pelo silenciamento de

sentidos Segundo Mittmann (2003 p 106) a ldquofunccedilatildeo-tradutorrdquo parte da tentativa de controlar os sentidos

do texto traduzido seguindo a interpretaccedilatildeo que o tradutor realizou do original Nessa perspectiva esta

funccedilatildeo tambeacutem tem o poder de criar a ldquoilusatildeordquo de que o tradutor estaacute apenas reproduzindo a voz do autor do

original Para a estudiosa essa ldquoilusatildeordquo jaacute estaacute arraigada nos leitores antes mesmo de efetuarem a leitura e eacute

exatamente esses efeitos de ldquoilusatildeordquo que pretendo desconstruir no decorrer da anaacutelise

Eacute evidente no processo tradutoacuterio que os tradutores busquem dicionaacuterios enciclopeacutedias e livros

especializados o que faz com que a relaccedilatildeo de sentidos do tradutor natildeo seja a mesma que a do autor do

original Poreacutem nas traduccedilotildees acadecircmicas como destacou Mittmann (2003 p 67) os tradutores recorrem

a esses discursos para garantir ao seu leitor que a traduccedilatildeo transfira o verdadeiro sentido expresso pelo

autor e muitas vezes o leitor da traduccedilatildeo acaba por aceitar os sentidos impostos pelos tradutores diante de

um discurso cientiacutefico visto como verdadeiro e especializado Interessa-nos portanto refletir sobre o

processo de produccedilatildeo desses sentidos instaurados especificamente nas NT considerando a subjetividade

nelas presente

As perspectivas diante dos objetivos das NT em processos tradutoacuterios satildeo muitas e podem ser divididas em

duas vertentes a que acredita que as NT servem para auxiliar na compreensatildeo do texto de chegada e por

outro lado a que acredita que as NT funcionam como uma abertura em que o tradutor demonstra de forma

decisiva sua participaccedilatildeo na criaccedilatildeo de um novo texto Paulo Roacutenai por exemplo eacute adepto da primeira

vertente e registrou que as notas satildeo fundamentais e devem ser utilizadas ldquoquando o texto

[264]

insuficientemente claro para os leitores de outra naccedilatildeo exige explicaccedilotildeesrdquo (ROacuteNAI 1981 p 100) Para ele

as notas devem ser exclusivamente explicativas e natildeo eacute permitido ao tradutor discutir ou contradizer o autor

do original sendo que as NT satildeo apenas um ldquofacilitador de leiturardquo Jaacute outra pesquisadora Dawn Alexis Duke

(1993) acredita na segunda vertente para ela toda traduccedilatildeo eacute recriaccedilatildeo portanto o tradutor tem um papel

ativo na interpretaccedilatildeo do original e este papel estaraacute presente tambeacutem nas formulaccedilotildees das NT ldquoEacute o mesmo

sujeito operando na traduccedilatildeo e na N do T e os dois textos refletiratildeo a leitura realizada por elerdquo (DUKE 1993

p 42) Para a estudiosa a primeira vertente mais tradicional considera as NT como um texto marginal

servindo apenas para acrescentar informaccedilotildees isso faz com que o tradutor tenha apenas ldquouma funccedilatildeo de

apresentador de informaccedilotildees a partir do lsquooriginalrsquo e natildeo de produtor de sentidos surgidos de sua leitura

particularrdquo (DUKE 1993 p 45) Mittmann (2003 p 120) resume essa questatildeo ao dizer que as NT

manifestam o resultado de uma interpretaccedilatildeo particular do tradutor que eacute diferente da realizada pelo autor

e se fazem em condiccedilotildees especiacuteficas e se dirigem a um puacuteblico tambeacutem diferente

Portanto demonstrarei diante da anaacutelise comparativa entre duas traduccedilotildees do Satyricon de Petrocircnio para

o portuguecircs do Brasil a realizada por Paulo Leminski em confronto com a realizada por Sandra Braga

Bianchet quais destas vertentes sobre a construccedilatildeo das NT cada tradutor se aproxima e quais as

consequecircncias dessa diferenciaccedilatildeo na formulaccedilatildeo das NT em cada texto traduzido

Efeitos de opacidade e transparecircncia em duas traduccedilotildees do Satyricon de Petrocircnio

Como jaacute foi destacado anteriormente as duas traduccedilotildees em questatildeo a de Paulo Leminski e a de Sandra Braga

Bianchet possuem uma diferenciaccedilatildeo essencial no objetivo do projeto tradutoacuterio de cada tradutor o que

considero como ponto de partida da anaacutelise Em seu trabalho Paulo Leminski poeta e tradutor objetivou

realizar uma traduccedilatildeo criativa renovando o texto petroniano imprimindo nela suas caracteriacutesticas poeacuteticas

e pretendendo um puacuteblico amplo Por outro lado Sandra Braga Bianchet professora universitaacuteria

pesquisadora sobre a Antiguidade claacutessica e tradutora realizou sua traduccedilatildeo como parte de investigaccedilatildeo

acadecircmica sobre o Satyricon de Petrocircnio como fonte para o estudo do latim vulgar incluso na aacuterea de

estudos linguiacutesticos e filoloacutegicos e voltada para um puacuteblico especializado

Partindo entatildeo desses pressupostos veremos logo na catalogaccedilatildeo geral das NT oferecidas pelos dois

tradutores que Leminski produz mais que o dobro de NT apresentadas por Bianchet totalizando 54 notas

nas quais haacute uma maior diversificaccedilatildeo comparadas agraves criadas pela tradutora Diante disso as NT formuladas

por Leminski podem ser classificadas em quatro tipos diferentes 1) notas explicativas que abrangem

conhecimentos sobre a sociedade e a cultura da Antiguidade romana e sobre especificidades de liacutengua latina

totalizando 29 notas 2) notas que destacam neologismos criados por Petrocircnio totalizando 8 notas 3) notas

que comentam caracteriacutesticas do texto de Petrocircnio totalizando 11 notas 4) notas que comentam o proacuteprio

processo tradutoacuterio totalizando 6 notas

[265]

Diferente de Leminski Bianchet apresenta um nuacutemero reduzido de NT 17 no total das quais todas elas satildeo

de caraacuteter estritamente explicativo subdividindo-se em quatro tipos 1) referecircncias agraves palavras gregas

presentes no texto latino totalizando 4 notas 2) destaque para neologismos criados por Petrocircnio

totalizando 3 notas 3) explicaccedilatildeo de termos e expressotildees que abrangem conhecimentos sobre cultura e

sociedade romana totalizando 8 notas 4) referecircncias a obras de outros autores citados por Petrocircnio

totalizando 2 notas

Assim sendo das notas formuladas pelos dois tradutores apenas cinco delas coincidem e fica evidente como

cada tradutor apesar de destacarem nestes momentos os mesmos toacutepicos o fazem de forma diferenciada

Primeiramente focalizando as notas referentes aos neologismos criados por Petrocircnio veremos que dos

quatro termos citados por Bianchet e dos nove termos por Leminski apenas um deles eacute coincidente A nota

coincidente entre as duas traduccedilotildees trata-se do neologismo latino fulcipedia que aparece no capiacutetulo LXXV

em uma das falas de Trimalquiatildeo A forma explicativa para o termo latino eacute formulada de forma diferente em

cada caso Retomemos entatildeo o texto latino1 [] sed Fortunata vetat Ita tibi videtur fulcipedia Suadeo bonum

tuum concoquas milva et me non facias ringentem amasiuncula aliquando experieris cerebrum meum (Sat LXXV

5-6 grifos nossos) Neste trecho Trimalquiatildeo estaacute em meio a um de seus discursos durante o banquete e

utiliza o termo em destaque para adjetivar sua esposa Fortunata enquanto dirige sua fala a ela Assim seraacute

observado como cada tradutor transpocircs este trecho e a forma como utilizou a nota para explicaacute-lo fazendo

referecircncia ao neologismo

Bianchet traduz o trecho da seguinte forma ldquo[] Mas Fortunata se opotildee Assim parece bom para vocecirc sua

escora-peacutes Eacute melhor vocecirc aproveitar a boa-vida sua fecircmea de abutre e natildeo me fazer mostrar os dentes de

raiva minha queridinha senatildeo vocecirc experimentaraacute minha coacutelerardquo (PETROcircNIO 2004 p131 grifos nossos)

Percebe-se que a tradutora escolhe transpor o termo para ldquoescora-peacutesrdquo em portuguecircs do Brasil e entatildeo

formula uma nota que diz ldquoescora-peacutes neologismo formado pelo verbo fulcio (escorar sustentar) + pes pedis

(os peacutes)rdquo (PETROcircNIO 2004 p 287) Dessa forma Bianchet indica o neologismo baseado em teor filoloacutegico

indicando a origem da formaccedilatildeo do termo apoiada provavelmente em dicionaacuterios Como apurado o

dicionaacuterio Faria (1994 p 233) indica o termo como ldquoApoio dos peacutes (Petr 756)rdquo e o Oxford (1968 p 743)

indica a formaccedilatildeo do termo ldquo[fulcio+pes+-ivis]rdquo oferecendo o seguinte significado ldquoa term of abuse applied

app to a person standing on her dignityrdquo Jaacute no comentaacuterio de Shmeling (2011 p 316) o estudioso oferece a

traduccedilatildeo do termo ldquomy high stepping (high-heeled)rdquo e comenta que Trimalquiatildeo faz nessa passagem uma

referecircncia ao passado de Fortunata como danccedilarina Embasando-se por essas definiccedilotildees pode-se perceber

que o termo eacute entendido de forma ampla e com diversos significados Maurice Rat (1934 p 491) tambeacutem

1 Os textos latinos aqui citados satildeo referentes agrave versatildeo editada por Maurice Rat (1934 Garnier) a qual se aproxima da utilizada pelo tradutor Paulo Leminski Indicarei eventuais divergecircncias caso haja com a versatildeo de A Ernout (1950 Belles Lettres) utilizada por Sandra Bianchet

[266]

destaca o termo em sua traduccedilatildeo para o francecircs e diz ser um ldquoinsulto obscurordquo apresentando sua formaccedilatildeo

filoloacutegica ldquo(Le mot fulcipedia vient de fulcio lteacutetayer calergt et de pes ltpiedgt)rdquo o tradutor sugere que

Trimalquiatildeo talvez esteja falando que Fortunata estaacute cambaleante Na traduccedilatildeo de Bianchet a tradutora

escolhe a forma literal do termo em portuguecircs do Brasil e utiliza simplesmente a junccedilatildeo do verbo ldquoescorarrdquo

com o substantivo ldquopeacutesrdquo os quais faz referecircncia em nota sem realizar uma interpretaccedilatildeo do contexto do

termo latino

De outro modo Leminski interpreta o contexto em que o termo estaacute inserido utilizando um vocaacutebulo que

natildeo remete especificamente ao significado filoloacutegico da palavra latina e explica em nota da seguinte forma

ldquoMas Monetaacuteria me reprime Aqui pra vocecirc decreacutepita Roacutei o osso que eu atiro sua gralha e natildeo me provoque

demais minha amaacutesia ou eu vou perder a cabeccedila com vocecircrdquo NT ldquoFulcipedia literalmente ldquoque natildeo se

aguenta em seus peacutesrdquo composto exclusivo de Petrocircniordquo (PETROcircNIO 1985 p 100-1 grifos nossos) Leminski

interpreta o termo como uma espeacutecie de xingamento jaacute que no contexto Trimalquiatildeo estaacute de certa forma

desclassificando sua companheira e utiliza o adjetivo ldquodecreacutepitardquo que segundo Caldas Aulete pode ter as

seguintes definiccedilotildees ldquoQue estaacute muito idoso fisicamente envelhecido e depauperado (pessoa decreacutepita) Diz-

se de animal muito velho e fraco Diz-se daquilo que foi gasto pelo uso ou exposiccedilatildeordquo O tradutor portanto

entende que ldquoalgo que natildeo se aguenta nos peacutesrdquo seria algo velho ou muito utilizado Diferente de Bianchet

Leminski natildeo traz a explicaccedilatildeo filoloacutegica da formaccedilatildeo do termo latino pautando-se apenas em apresentar o

termo como aparece no texto latino e oferecendo sua traduccedilatildeo como ele mesmo aponta ldquoliteralrdquo Essa

referecircncia agrave traduccedilatildeo literal na NT de Leminski eacute uma forma de indicar que no texto ldquotraduccedilatildeordquo haacute uma

interpretaccedilatildeo uma criaccedilatildeo e os termos natildeo aparecem em sua forma precisa de dicionaacuterio Leminski indica

ainda que o termo eacute um ldquocomposto exclusivo de Petrocircniordquo sua maneira de dizer que se trata de um

neologismo

Outra caracteriacutestica relevante da narrativa petroniana que os tradutores escolhem destacar em notas eacute a

apariccedilatildeo de palavras gregas em meio ao texto latino Como informado anteriormente quatro das notas

formuladas por Bianchet satildeo referecircncias agraves palavras gregas assim como cinco das notas elaboradas por

Leminski Uma dessas notas satildeo coincidentes no que se refere ao capiacutetulo XLVIII 8 no trecho em que

Trimalquiatildeo em um de seus soliloacutequios faz referecircncia agrave fala da Sibila de Cumas a qual supostamente o

personagem tinha visto com seus proacuteprios olhos Nam Sibyllam quidem Cumis ego ipse oculis meis vidi in ampulla

pendere et cum illi pueri dicerent Σίβυλλα τί θέλεις respondebat illa ἀποθανεῖν θέλω (Sat XLVIII 8 grifos

nossos) Petrocircnio grafa a fala da Sibila em grego mesclando a liacutengua grega ao texto latino Bianchet opta por

manter as palavras em grego em sua traduccedilatildeo ldquoEu mesmo vi com meus proacuteprios olhos a autecircntica Sibila de

Cumas suspensa em um vaso de barro e quando os garotos diziam a ela Σίβυλλα τί θέλεις ela respondia

ἀποθανεῖν θέλω (PETROcircNIO 2004 p 81 grifos nossos) E assim como esclarecimento das palavras gregas

em meio ao texto em portuguecircs a tradutora oferece a nota com a traduccedilatildeo destes termos ldquo- Sibila o que

[267]

queres ndash Quero morrerrdquo (PETROcircNIO 2004 p 287) Diferente disso Leminski traduz as palavras gregas

diretamente no texto da traduccedilatildeo ldquoE vi com meus proacuteprios olhos a sibila de Cumas suspensa dentro de uma

ampola e quando as crianccedilas perguntavam a ela - Sibila que queres Ela respondia - Eu quero morrerrdquo

(PETROcircNIO 1985 p 68 grifos nossos) E entatildeo o tradutor oferece a nota que apenas aponta que as palavras

no original aparecem em grego ldquoNo original a pergunta das crianccedilas e a resposta da Sibila estatildeo em gregordquo

(PETROcircNIO 1985 p 68) Neste exemplo vecirc-se novamente a diferenciaccedilatildeo entre a traduccedilatildeo filoloacutegica e a

recriaccedilatildeo Leminski natildeo escolhe grafar a palavra em grego na traduccedilatildeo ou oferecer sua referenciaccedilatildeo em

nota em nenhum dos casos em que ocorre o uso de palavras gregas na narrativa Por outro lado Bianchet

opta mais de uma vez em oferecer na traduccedilatildeo palavras grafadas em grego ou em latim e elucidar seus

significados por meio de notas Essa distinccedilatildeo nas escolhas dos dois tradutores esclarece o projeto tradutoacuterio

de cada um sendo que Leminski ambiciona um puacuteblico amplo que muito provavelmente natildeo conhece as

liacutenguas grega e latina e diferente disso Bianchet pretende falar com um puacuteblico especializado ou que tenha

um miacutenimo de conhecimento dessas liacutenguas antigas

Esta diferenccedila de escolhas aparece em mais um exemplo em que as notas satildeo coincidentes Trata-se da

expressatildeo madeia perimadeia presente no capiacutetulo LII 9 em ocasiatildeo do Banquete de Trimalquiatildeo em que o

personagem estimula os escravos a danccedilar Segundo Oxford (1968 p 1059) esta expressatildeo aparece

unicamente em grafia grega e se trata de ldquounexplained words used in a refrainrdquo utilizada exclusivamente no

Satyricon Shmeling (2011 p 216) tambeacutem destaca o termo em seu comentaacuterio e supotildee que estas duas

palavras sejam utilizadas em um tipo de muacutesica de encanto Na ediccedilatildeo da Garnier a expressatildeo aparece em

grego Atque ipse erectis supra frontem manibus Syrum histrionem exhibebat concinente tota familia Мάδεια

περιμάδεια (Sat LII 9 grifos nossos) e Maurice Rat apenas aponta em nota que se trata de uma expressatildeo

com sentido obscuro Leminski incorpora o sentido da cena em questatildeo na narrativa e traduz com uma

espeacutecie de canto religioso que provavelmente eacute uma das origens da expressatildeo ldquoE ei-lo braccedilos levantados

imitando os gestos do bufatildeo Syros enquanto a escravaria gritava - Meu Deus eacute lindo meu Deus que

maravilhardquo (PETROcircNIO 1985 p 72 grifos nossos) O tradutor apenas se limita a indicar em nota que esta

expressatildeo ou canto popular aparece grafado em grego no texto original latino ldquoEm grego no originalrdquo

(PETROcircNIO 1985 p 72) Diferente da Garnier na ediccedilatildeo da Belles Lettres a expressatildeo aparece

transliterada para o latim ldquomadeia perimadeiardquo e eacute a forma que Bianchet adota em sua traduccedilatildeo jaacute que eacute esta

ediccedilatildeo do texto latino que a tradutora tem como referecircncia Assim ela natildeo traduz a expressatildeo

apresentando-a em latim no texto traduzido e optando por explicaacute-la em nota ldquoE ele proacuteprio com as matildeos

erguidas sobre a testa imitava o ator Siro enquanto todos os criados cantavam em coro madeia perimadeiardquo

(PETROcircNIO 2004 p 85 grifos nossos) NT ldquoMadeia perimadeia tipo de refratildeo que acompanha uma danccedila

de origem e sentidos desconhecidos A ocorrecircncia da expressatildeo eacute atestada apenas neste trecho de Petrocircnio

(Ernaut)rdquo (PETROcircNIO 2004 p 287) Bianchet portanto prefere novamente manter os termos de liacutengua

latina no texto traduzido e apoia sua explicaccedilatildeo em comentaacuterio do tradutor e editor francecircs da Belles Lettres

[268]

Ernaut Mais uma vez fica expresso na comparaccedilatildeo das duas traduccedilotildees como a traduccedilatildeo filoloacutegica de

Bianchet pretende revelar o maacuteximo de transparecircncia do texto latino seguindo seus objetivos tradutoacuterios e

seu puacuteblico leitor especializado em oposiccedilatildeo agrave recriaccedilatildeo de Leminski que prefere sempre traduzir os termos

mesmo que sejam obscuros buscando uma equivalecircncia mesmo que seja apenas aproximada ao sentido do

texto latino Na traduccedilatildeo como recriaccedilatildeo o tradutor procura aproximar-se de um puacuteblico mais amplo natildeo

conhecedor das liacutenguas antigas e oferecer um efeito mais espontacircneo para o texto traduzido

Na sequecircncia mais um excerto em que Petrocircnio utiliza uma palavra advinda do grego e que possui um

sentido incerto pode ser destacado para elucidar essa diferenciaccedilatildeo entre as duas traduccedilotildees Trata-se do

termo embasicoetas presente no capiacutetulo XXIV 1 em que Encoacutelpio estaacute na festa da matrona Quartila e

quando jaacute estaacute cansado das brincadeiras dos animadores e danccedilarinos da festa pergunta pela embasicoetas

que a matrona lhe havia prometido lsquoQuaeso inquam domina certe embasicoetam2 jusseras darirsquo Complausit

illa tenerius manus et lsquoO inquit hominem acutum atque urbanitatis frontem3 Quid tu non intellexeras cinaedum

embasicoetam vocari (Sat XXIV 1 grifos nossos) Percebe-se que no texto latino esse termo causa um

efeito de estranhamento e ao mesmo tempo um tom irocircnico agrave cena Na realidade Petrocircnio brinca com o

termo latino embasicoetas que eacute um termo advindo do grego embasikoiacutetas que segundo o dicionaacuterio Greek-

english lexicon (LIDDEL SCOTT 1996) significa ldquoname of a cuprdquo e que o dicionaacuterio Grec-Franccedilais (BAILLY

2000) traz o significado ldquosorte de couperdquo e apresenta a variaccedilatildeo da palavra embasikoiacutetos como ldquoqui fait

entrer dans le litrdquo Assim o significado primeiro do termo grego refere-se somente a um copo de bebida e

sua variaccedilatildeo sugere algo ou algueacutem que estaacute na cama Jaacute o termo latino recebeu uma outra significaccedilatildeo na

narrativa petroniana segundo o dicionaacuterio Saraiva citando a partir da passagem de Petrocircnio o significado do

termo seria ldquocorruptorrdquo para o Oxford (1968 p 602) citando tambeacutem de Petrocircnio seria ldquoa pathic (in quot

also taken in a second sense perh = a sleeping-draught nightcap)rdquo ou seja no trecho petroniano o termo

latino incorporou o sentido tanto de uma bebida afrodisiacuteaca quanto de um homossexual passivo Nesse

sentido o Thesaurus Linguae Latinae (vol V p 450) indica o termo embasicoetas (-ae) advindo do termo grego

com o significado referente ao latino poculo ou seja um copo de bebida encantada filtro amoroso ou bebida

envenenada e tambeacutem relaciona o termo ao trecho da obra petroniana referindo-se nesse contexto ao

cinaedo Schmeling em seu comentaacuterio indica o termo etimologicamente como algo referente a ldquoir para camardquo

e indica aiacute o duplo sentido (a) ldquosomething like a lsquonight-cuprsquo lsquosleeping draughtrsquo and (b) cinaedusrdquo

(SCHMELING 2011 p 71) O estudioso cita a utilizaccedilatildeo do termo por Athenaeus como um tipo de copo e

por Juvenal referente a um copo em forma de falo como uma brincadeira sobre a fellatio que pode ser

relacionada agrave cena Pode-se sugerir portanto que Petrocircnio aproveitou essa dualidade do termo para inserir

um tom irocircnico ao diaacutelogo entre Encoacutelpio e Quartila unindo o estranhamento de um termo de origem grega

2 Na versatildeo Les Belles Lettres (1950) grafado embasicoetan 3 Na versatildeo Les Belles Lettres (1950) grafado urbanitatis vernaculae fontem

[269]

ao desconhecimento e confusatildeo do personagem que natildeo sabia seu significado e pensou ser o nome de um

tipo de bebida ou comida logo foi advertido por Quartila que se tratava de uma ldquobicha travestidardquo do latim

cinaedus

Primeiramente Bianchet escolhe em sua traduccedilatildeo apenas um dos sentidos do termo latino embasicoetas

voltado para o significado da palavra grega ou seja ldquouma taccedila especialrdquo mantendo com essa escolha a ideia

da confusatildeo feita pelo personagem que natildeo tinha entendido o que Quartila havida dito Ela traduz da

seguinte forma

ldquoPor favor minha senhora vocecirc natildeo me havia prometido uma taccedila especialrdquo Ela aplaudiu muito delicadamente e disse ldquoMas que homem perspicaz e que exemplo de educaccedilatildeo romana Por que vocecirc estaacute perguntando Vocecirc ainda natildeo percebeu que essa bicha eacute sua taccedila especialrdquo (PETROcircNIO 2004 p 41 grifos nossos)

Bianchet opta entatildeo por explicar o jogo de palavras criado por Petrocircnio inserindo uma NT ldquoEm todo esse

capiacutetulo e no XXVI Petrocircnio faz um jogo com o significado da palavra embasicoetas utilizando-a ora para se

referir ao nome de uma taccedila de formato obsceno ora como sinocircnimo de cinaedusrdquo (PETROcircNIO 2004 p 287)

Assim por meio da nota a tradutora consegue uma maneira de transferir ao leitor o humor existente na cena

Diferentemente na traduccedilatildeo de Leminski consegue-se perceber desde o iniacutecio a transposiccedilatildeo da brincadeira

instaurada por Petrocircnio no texto latino presente no proacuteprio texto traduzido em liacutengua portuguesa do Brasil

O tradutor escolhe preservar o jogo de palavras e traduz a primeira ocorrecircncia do termo latino por

ldquoHermafroditardquo que designa segundo Caldas Aulete (2007) ldquopessoa que possui os oacutergatildeos peculiares aos dois

sexosrdquo A traduccedilatildeo leminskiana se apresenta da seguinte forma

- E aquela tal de Hermafrodita que a senhora prometeu me dar

Ela bateu as matildeos com delicadeza

- Olha soacute como ele eacute esperto esse garotinho com educaccedilatildeo de escravo O que eacute que foi

gatinho Natildeo sabia que hermafrodita aqui quer dizer homossexual ativo

(PETROcircNIO 1985 p 40 grifos nossos)

Nesse sentido percebe-se que Leminski recria o texto em liacutengua portuguesa buscando o mesmo

procedimento utilizado pelo autor latino ao empregar uma palavra tambeacutem de origem grega que da mesma

forma causa o estranhamento e a confusatildeo do personagem Encoacutelpio que natildeo percebe de pronto que haacute uma

referecircncia oculta a um homem efeminado nas palavras do tradutor um ldquohomossexual ativordquo Segundo os

estudos de Richlin (1978 p287) o termo cinaedus refere-se geralmente ao ldquohomossexual passivordquo Na cena

em questatildeo trata-se de uma zombaria ao efeminado e na pretensatildeo de Quartila em assustar o jovem

Encoacutelpio daiacute a escolha de Leminski em traduzir por ldquohomossexual ativordquo reafirmando em liacutengua portuguesa

a ameaccedila zombeteira da anfitriatilde

[270]

Prosseguindo o tradutor tambeacutem utiliza uma nota para demarcar o jogo de palavras poreacutem a NT de

Leminski diferente de Bianchet natildeo funciona exatamente como uma explicaccedilatildeo filoloacutegica mas como parte

estiliacutestica da ironia que este pretende recuperar do trecho latino A nota diz o seguinte ldquoNo original

Embasicoetam palavra de origem grega que nosso pobre heroacutei pensa ser nome de uma mulherrdquo (PETROcircNIO

1985 p 40) Percebe-se que o tradutor natildeo utiliza a NT apenas para explicar a brincadeira advinda do texto

latino mas tambeacutem como uma nota esteacutetica que conversa com o restante do texto de forma que sua

interpretaccedilatildeo como tradutorleitorautor fique exposta Na traduccedilatildeo e com a formulaccedilatildeo da NT Leminski

faz com que o leitor volte ao texto de partida percebendo a brincadeira do autor latino ao utilizar um termo

grego de duplo sentido poreacutem acaba por modificar o espiacuterito da brincadeira para que essa obtenha o mesmo

efeito na liacutengua de chegada Em liacutengua latina a brincadeira eacute instaurada na confusatildeo entre ldquotaccedila de bebidardquo e

ldquohomossexual passivordquo ou ldquohomem efeminadordquo jaacute em liacutengua portuguesa Leminski joga com a ambiguidade

entre o ldquonome de uma mulherrdquo e um ldquohomossexual ativordquo Assim Leminski retoma o sentido latino do termo

cinaedus causando a desconfianccedila no jovem personagem que natildeo consegue identificar o sexo do

Embasicoetas ou para Leminski ldquoHermafroditardquo Nesse sentido na NT Leminski consegue recuperar sua

ldquofunccedilatildeo tradutorrdquo ao explicar para o leitor que no original se trata de uma palavra de origem grega e ao

mesmo tempo inclui sua ldquoidentidaderdquo e manteacutem a ldquoopacidaderdquo do texto de partida no texto de chegada

explicando a brincadeira que ele mesmo como tradutor criou ou seja mostrar a confusatildeo do personagem

diante da palavra ldquoHermafroditardquo pensando se tratar de um nome de mulher

Finalmente a uacuteltima nota coincidente entre os dois tradutores refere-se mais uma vez a um jogo de palavras

instaurado por Petrocircnio no capiacutetulo XLI 7 com a palavra liber Na ocasiatildeo do Banquete de Trimalquiatildeo foi

servido um grande javali vestindo um chapeacuteu de liberto4 pois ele havia sido rejeitado no banquete do dia

anterior e entatildeo recebida a liberdade retornando para o banquete desse dia narrado por Encoacutelpio Logo em

seguida entrou no salatildeo um jovem escravo atuando como Baco5 cantando e distribuindo uvas Ateacute que

Trimalquiatildeo resolve libertaacute-lo e o escravo transfere o chapeacuteu do javali para sua proacutepria cabeccedila Esta narrativa

eacute apresentada por Petrocircnio da seguinte maneira

Dum haec loquimur puer speciosus vitibus hederisque redimitus modo Bromium interdum Lyaeum Euhiumque confessus calathisco uvas circumtulit et poemata domini sui acutiacutessima vocecirc traduxit Ad quem sonum conversus Trimalchio lsquoDionyse inquit liber estorsquo Puer detraxit pileum apro capitique suo imposuit Tum Trimalchio rursus adjecit lsquoNon negabitis me inquit habere Liberum patremrsquo (Sat XLI 7 grifos nossos)

Como assinalou Schmeling (2011 p 161) em um primeiro niacutevel eacute faacutecil perceber o jogo de palavras que

Petrocircnio realiza com a palavra liber6 indicando liberdade na primeira ocorrecircncia sendo liberto o tal escravo

4 ldquoIt is a symbol of freedom which a slave upon becoming a freedman places on his headrdquo (SCHMELING 2011 p 157) 5 Deus do vinho tambeacutem chamado Dioniacutesio 6 ldquoLivre de condiccedilatildeo livre (socialmente falando)rdquo (FARIA 1994 p 314)

[271]

que como siacutembolo veste o chapeacuteu de liberto e a palavra Liber7 na segunda ocorrecircncia que faz referecircncia ao

deus Baco A brincadeira estaacute no fato de Trimalquiatildeo libertar um escravo chamado Dioniacutesio e fazer

referecircncia como uma forma de trocadilho com o nome primordial do deus Baco Como apontou Grimal

(1966 p 121) este deus eacute identificado em Roma com o antigo deus itaacutelico Liber Pater e refere-se

essencialmente ao deus da vinha do vinho e do deliacuterio miacutestico Para Schmeling (2011 p 161) haacute ainda uma

interpretaccedilatildeo mais aprofundada da cena que revela o desejo insatisfeito de Trimalquiatildeo em ter nascido livre

O personagem natildeo nasceu livre ele ganhou a liberdade de seu antigo dono mas no trocadilho ele procura se

colocar como ldquopai da liberdaderdquo poreacutem na verdade Liber pater eacute apenas a brincadeira em possuir e poder

libertar um escravo chamado Dionysus

Sendo assim a partir desses comentaacuterios observa-se como cada tradutor resolve o trocadilho em liacutengua

latina transposto para o portuguecircs do Brasil Primeiramente Bianchet como tem feito em todo texto

traduzido escolhe uma forma literal

Enquanto estaacutevamos conversando sobre essas coisas um escravo de bela aparecircncia coroado com ramos de videira e de hera mostrando que era um Dioniso ora barulhento ora relaxado ora exaltado serviu-nos uvas em um pequeno cesto e interpretou composiccedilotildees em verso de seu senhor com sua voz extremamente aguda Virando-se na direccedilatildeo do som Trimalquiatildeo disse Dioniso esteja livrerdquo O escravo tirou o barrete do javali e colocou-o em sua proacutepria cabeccedila Entatildeo Trimalquiatildeo mais uma vez acrescentou Vocecircs natildeo podem negar que a liberdade me acompanha desde que nasci pois eu tenho Liacuteber como pairdquo (PETROcircNIO 1985 p 67 grifos nossos)

Dessa maneira ela traduz a primeira ocorrecircncia do termo como ldquolivrerdquo referenciando agrave liberdade e a

segunda ocorrecircncia do termo como ldquoLiacuteberrdquo fazendo referecircncia ao deus Baco Nesta segunda ocorrecircncia a

tradutora utiliza a NT para explicar a referecircncia mitoloacutegica ldquoLiacuteber eacute uma antiga divindade latina que era

confundida com Bacordquo (PETROcircNIO 1985 p 287) O trocadilho presente no texto latino natildeo fica muito

evidente na traduccedilatildeo realizada por Bianchet que fez referecircncia apenas a Dioniacutesio na apresentaccedilatildeo do

escravo depois apenas explicou a referecircncia mitoloacutegica de Liber Poreacutem o sentido no que se refere agravequele

demonstrado por Schmeling foi apresentado na uacuteltima frase de Trimalquiatildeo traduzida por ela ldquoVocecircs natildeo

podem negar que a liberdade me acompanha desde que nascirdquo

Mais uma vez diferente de Bianchet Leminski prefere natildeo fazer uma traduccedilatildeo literal e transpotildee um sentido

que esteja ligado ao contexto da cena em questatildeo

Enquanto isso um jovem escravo beliacutessimo coroado com folhas de parreira se atribuindo os nomes de Baco Bromius Lyaeus e Evius dava volta agraves mesas com uma cesta de uvas que distribuiacutea a todos enquanto cantava com voz agudiacutessima os versos que seu senhor tinha composto A esse som voltou-se Trimalciatildeo - Dioniacutesio ndash disse ndash seja livre O escravo tirou o

7 ldquoAntiga divindade latina mais tarde confundida com Baco deus do vinhordquo (FARIA 1994 p 314)

[272]

chapeacuteu do javali e o colocou sobre a proacutepria cabeccedila Entatildeo Trimalciatildeo ndash Isso eacute que eacute ser um pai liberalrdquo (PETROcircNIO 1985 p 58 grifos nossos)

Uma primeira diferenciaccedilatildeo entre as duas traduccedilotildees estaacute no fato de que Leminski faz referecircncia aos

diferentes nomes oferecidos a Baco como ldquoBromius Lyaeus e Eviusrdquo os quais natildeo aparecem na traduccedilatildeo de

Bianchet Como apontou Schmeling (2011 p 160) essas referecircncias dizem respeito aos trecircs aspectos do

deus Dioniacutesio (Bromius Lyaeus e Euhius) os quais o escravo tambeacutem chamado Dioniacutesio e representando o

deus como o liacuteder de um ritual dionisiacuteaco iraacute incorporar mais adiante como Liber Leminski tambeacutem muito

diferente de Bianchet traduz a segunda ocorrecircncia de maneira espontacircnea demonstrando a sua proacutepria

interpretaccedilatildeo da fala de Trimalquiatildeo em um sentido como se o personagem estivesse se vangloriando de

estar libertando um escravo o que na verdade tambeacutem faz parte da brincadeira realizada por Petrocircnio Na

primeira ocorrecircncia da palavra liber do trecho Leminski formula uma nota ldquoEm latim lsquoLiber estorsquo trocadilho

intraduziacutevel sendo que Liber eacute um dos nomes do deus do vinho Dioniacutesio Baco Bromius Lyaeus e Evius Seria

ao mesmo tempo ldquoesteja livrerdquo e ldquoseja Bacordquo (PETROcircNIO 1985 p 58) Percebe-se portanto que Leminski

faz referecircncia ao trocadilho presente no texto latino e aproveita para expor o seu processo tradutoacuterio

comentando que este trocadilho eacute ldquointraduziacutevelrdquo O tradutor tambeacutem faz referecircncia agrave ligaccedilatildeo do deus Liacuteber

ao deus Baco e aproveita para explicar que aqueles outros nomes que aparecem no iniacutecio do trecho satildeo da

mesma forma referentes ao mesmo deus Por fim Leminski oferece duas traduccedilotildees possiacuteveis para a

expressatildeo Fica evidente mais uma vez a liberdade com que Leminski trabalha no texto da traduccedilatildeo em

correlaccedilatildeo com as NT por ele formuladas natildeo estando preso agrave tentativa de transparecircncia expondo-se como

tradutor e criador do texto traduzido Jaacute no caso de Bianchet ela segue o padratildeo acadecircmico e filoloacutegico

principalmente nas notas limitando-se a apresentar os termos de forma teoacuterica buscando a maacutexima

transparecircncia textual

Consideraccedilotildees finais

No caso dos exemplos destacados quando Bianchet escolhe dizer em nota que o autor do texto original faz

um jogo com certo termo esclarece os possiacuteveis significados deste termo amparada em dicionaacuterios e

escolhe traduzir apenas um desses significados ou somente referendaacute-lo com uma transcriccedilatildeo do termo

original ela deixa impliacutecito que todo o texto traduzido eacute transparente e soacute pontualmente haacute uma certa

opacidade Para ela essa opacidade pontual motivou a colocaccedilatildeo de uma nota na tentativa de retomar o

ldquosentido originalrdquo do texto de partida levando em consideraccedilatildeo os pressupostos do autor Cria-se entatildeo

uma ilusatildeo de homogeneidade na qual se insere o heterogecircneo quando na realidade ocorre o contraacuterio nas

palavras de Mittmann (2000 p 2) ldquoo heterogecircneo eacute constitutivo do discurso da traduccedilatildeo ndash como o era do

discurso original ndash e eacute sobre ele que se daacute o efeito de unidade atraveacutes da funccedilatildeo tradutorrdquo

[273]

Em outro sentido diferentemente disso na traduccedilatildeo de Paulo Leminski haacute a criaccedilatildeo de um outro efeito em

que o tradutor se apropria da ldquofunccedilatildeo tradutorrdquo e manteacutem a heterogeneidade do discurso do texto de partida

apresentando uma pluralidade de identidades e mantendo sua proacutepria identidade Hattnher (1994)

considera esse tipo de tradutor como um ldquotransmorfordquo ou seja ldquoo tradutor assume traccedilos e feiccedilotildees do autor

(ou autores) que traduz imprimindo na escrita do Outro sua proacutepria caligrafiardquo (HATTNHER 1994 p 33)

Hattnher comenta as notas de Leminski da traduccedilatildeo feita pelo poeta do romance Ask the Dust de John Fante

sendo que nesta traduccedilatildeo o poeta tambeacutem utiliza notas esteacuteticas Segundo o estudioso ldquoas notas de Leminski

comentam interpretam e questionam o texto original estabelecendo-lhes extensotildees e ampliando para o

leitor as possibilidades de desvendamento textualrdquo (HATTNHER 1994 p 35)

Assim como definiu Reacutegine Robin (1977 p 29) a ldquoopacidaderdquo maacutexima aparece na poesia em que o enunciado

eacute modalizado de maneira especiacutefica e o sujeito da enunciaccedilatildeo estaacute agrave disposiccedilatildeo de cada leitor que se

transforma tambeacutem num sujeito da enunciaccedilatildeo que assume um enunciado Parece-me portanto que Paulo

Leminski por ser poeta e por definir um projeto tradutoacuterio preacute-estabelecido de retomada da literalidade da

obra petroniana consegue assumir o papel de leitorautor e assumir-se como sujeito enunciador Pelo

contraacuterio como definiu Reacutegine Robin (1977 p 29) haacute a maacutexima ldquotransparecircnciardquo no enunciado do tipo

ldquomaacuteximardquo que eacute particular dos enunciados cientiacuteficos em que o sujeito do enunciado eacute como que apagado

Por essa razatildeo acredito que as traduccedilotildees acadecircmicas procuram uma maior transparecircncia e o apagamento

do sujeito enunciador poreacutem como em todo discurso haacute vozes que ocupam diferentes posiccedilotildees-sujeitos e

na traduccedilatildeo natildeo eacute diferente esse apagamento eacute apenas aparente causando uma ldquoilusatildeo de transparecircnciardquo

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A traduccedilatildeo como possibilidade de compreender mundos que natildeo satildeo meus

Augusto B de Carvalho Dias Leite

augustobrunoleitegmailcom

Apresentaccedilatildeo da questatildeo principal

a traduccedilatildeo demarca o limite do conhecimento

A traduccedilatildeo ou o ato de traduzir eacute uma evidente marca das relaccedilotildees

humanas Desde a accedilatildeo teacutecnica de verter um texto escrito para

outra liacutengua cuja conexatildeo se constroacutei entre a originalidade e a

coacutepia traduzida ao ato mais amplo e abstrato de compreender um

outro a traduccedilatildeo se exibe como limite e limiar simultaneamente

sempre disponibilizando a relaccedilatildeo entre um par de opostos um si

mesmo e um outro mdash um estranho ou estrangeiro A traduccedilatildeo nesse

sentido mais rico teoacuterico e abstrato natildeo eacute o simples fato ou ato de

transformar uma liacutengua em outra mas eacute a afirmaccedilatildeo da

possibilidade de um mesmo pensar o mundo a partir de outra liacutengua

quer dizer atraveacutes de outra linguagem isto eacute de outras

representaccedilotildees espirituais culturais Traduccedilatildeo portanto natildeo diz

respeito a uma teacutecnica apenas mas poderiacuteamos inicialmente dizer

refere-se agrave natureza mesma da linguagem em geral pois a traduccedilatildeo

eacute antes de mais nada a simples compreensatildeo

A partir desse panorama geral sobre a linguagem e a traduccedilatildeo como

compreensatildeo a pergunta teoacuterica a ser respondida por este breve

ensaio eacute a seguinte a traduccedilatildeo limita ou expande o conhecimento

Para tornar exequiacutevel a tarefa de elaborar hipoacuteteses sobre esse

[276]

questionamento parto do princiacutepio proposto na conclusatildeo da obra Warheit und Methode (1960) de Hans-

Georg Gadamer o qual afirma que o ser que pode ser compreendido eacute linguagem Ou seja a hermenecircutica eacute um

aspecto universal da filosofia e natildeo somente a base metodoloacutegica das chamadas ciecircncias do espiacuterito como

propuseram Johann Gustav Droysen e especialmente Wilhelm Dilthey1

Da traduccedilatildeo ou compreensatildeo como a natureza da linguagem

Wilhelm von Humboldt considerado o pai da filosofia moderna da linguagem destaca-se precisamente por

sua investigaccedilatildeo sobre a individualidade das liacutenguas como expressatildeo das culturas agraves quais se referem mdash

teoria que mais recentemente ganha o nome de relativismo linguiacutestico (ou hipoacutetese Sapir-Whorf) A partir de

suas investigaccedilotildees sobre o tema2 as liacutenguas seriam modulaccedilotildees peculiares dos espiacuteritos locais Nesse

sentido no que se refere ao tema da teoria da traduccedilatildeo em particular a linguagem se constitui como um limite

especial que se situa em cada cultura mdash ou cada naccedilatildeo povo nos termos tipicamente modernos de Von

Humboldt Haveria um mundo linguiacutestico proacuteprio em que se vive e este mundo seria meu anaacutelogo o meu

mundo que me cerca [Umwelt] e que por definiccedilatildeo limita ou condiciona a minha existecircncia minha visatildeo do

mundo [Weltanschauung] de acordo com Von Humboldt

O que nomeamos como cultura seria assim em larga medida representada por sua linguagem A linguagem

entatildeo seria uma composiccedilatildeo de representaccedilotildees de preconceitos mdash os conceitos previamente estabelecidos

mdash que me foram transmitidos e que me permitem interagir com o meu mundo Desse modo a traduccedilatildeo para

Humboldt exibe-se como um dos meios fundamentais de nos sentir estrangeiros quer dizer a traduccedilatildeo seria

entatildeo uma das peccedilas para a construccedilatildeo inequiacutevoca das fronteiras entre dois lados ou antiacutepodas o eu e o

outro Ao se traduzir a traduccedilatildeo evidenciaria portanto as diferenccedilas natildeo as semelhanccedilas

Em Orientalism (1978) Edward Said argumenta por exemplo que as traduccedilotildees foram um dos elementos

fundamentais para operar a ldquoorientalizaccedilatildeordquo o processo de delimitaccedilatildeo entre uma cultura ocidental e outra

oriental A traduccedilatildeo seria uma teacutecnica orientalista particular nas palavras de Said que serviu agrave tarefa de

evidenciar as fronteiras metafiacutesicas e fiacutesicas entre ocidente e oriente cujo material fora a simples linguagem

Em contrapartida a essa perspectiva sobre o problema das potecircncias da linguagem e mais especificamente

do papel da traduccedilatildeo Hans-Georg Gadamer em suas conclusotildees da obra jaacute citada interfere precisamente

nesse debate para nos esclarecer algo aparentemente banal mas que possui implicaccedilotildees importantes Para

Gadamer o mundo linguiacutestico proacuteprio em que se vive natildeo eacute uma barreira que impede todo conhecimento do ser em

1 Droysen em sua Historik (1882) e Dilthey em Einleitung in die Geisteswissenschaften (1882) e Der Aufbau der geschichtlichen Welt in den Geisteswissenschaften (1910) 2 Notadamente em Uumlber die Natur der Sprache im allgemeinen (1807) e Uumlber die Verschiedenheit des menschlichen Sprachbaues (1836)

[277]

si mas abarca fundamentalmente tudo aquilo a que pode expandir-se e elevar-se a nossa percepccedilatildeo Isto eacute assim

como afirma Walter Benjamin em Die Aufgabe des Uumlbersetzers (1923) a traduccedilatildeo eacute pensada por Gadamer

primeiramente como a expressatildeo da possibilidade de expandir os sentidos natildeo de encerraacute-los pois o ato de

traduzir nos diz Benjamin apresenta novos e diferentes modos de visar o mesmo aumentando assim as

maneiras de se compreender A vista disso a traduccedilatildeo antes de evidenciar as fronteiras culturais que

existiriam entre cada mundo linguiacutestico expressa a possibilidade proacutepria agrave linguagem de suprassumir essas

mesmas fronteiras e conhecer mundos que natildeo satildeo os meus A linguagem igualmente e portanto natildeo seria

expressatildeo de um limite de seu proacuteprio mundo mas eacute o meio atraveacutes do qual o sentido pode continuar sua

efetividade entre um mesmo e outro e a traduccedilatildeo como possibilidade efetiva eacute sua manifestaccedilatildeo mais proacutepria

Linguagem eacute toda e qualquer manifestaccedilatildeo do espiacuterito humano algo que natildeo se restringe agraves liacutenguas naturais

E a caracteriacutestica principal da linguagem seria para Gadamer a abertura para continuar o sentido ou melhor

a linguagem se caracterizaria por possuir a potecircncia de significar e ressignificar continuamente Esta

potecircncia que Gadamer resume no conceito de liguisticidade [Sprachlichkeit] encontra um anaacutelogo em Walter

Benjamin que em suas investigaccedilotildees sobre a teoria da linguagem aplicada ao problema da traduccedilatildeo mdash

particularmente no texto sobre a tarefa do tradutor mdash epitomiza esse mesmo aspecto da linguagem no termo

traduzibilidade [Uumlbersetzbarkeit] Porque traduccedilatildeo e compreensatildeo satildeo de modo igual uma disposiccedilatildeo do

espiacuterito humano que se exibe atraveacutes da linguagem linguisticidade e traduzibilidade guardam uma identidade

teoacuterica fundamental

Na linguagem haacute sempre traduzibilidade a liacutengua conteacutem os dispositivos de se abrir para o outro e natildeo se

ensimesmar ou absorver-se em si mesma a traduccedilatildeo Compreender eacute entatildeo perviver fazer continuar a viver

um determinado sentido Mas sobretudo eacute descolar-se dos preconceitos do meu mundo em direccedilatildeo a outros

A traduzibulidade enfim seria uma caracteriacutestica da linguagem que diz que haacute sentido disponiacutevel Trata-se de

um sinal ou marca da vida da linguagem que teria algo a dizer ou um sentido a emprestar sobretudo para uma outra

linguagem outro que natildeo eacute o mesmo Esse fato nos leva ateacute a definiccedilatildeo da traduccedilatildeo como um ato de

conhecimento do outro traduccedilatildeo como sugere Paul Ricœur seria assim hospedar o outro o estrangeiro

A linguagem que possui a potecircncia da traduzibilidade que em outras palavras eacute a possibilidade de dizer outras

coisas ou mais coisas eacute um organismo psicoloacutegico vivo que se exibe assim somente porque sua natureza eacute a

traduccedilatildeo De outra forma se traduzir natildeo fosse possibilidade mdash o que de fato eacute mdash seriacuteamos necessariamente

limitados por uma linguagem que se configuraria como somente nossa mdash o que de fato natildeo eacute

Os limites da minha linguagem denotam os limites de meu mundo

Os limites da minha linguagem denotam os limites de meu mundo afirma Ludwig Wittgenstein em seu

afamado Tractatus Logico-philosophicus (1921) Essa afirmativa transformada em uma interrogaccedilatildeo pode

[278]

receber tanto um laquosimraquo quanto um laquonatildeoraquo como resposta Sim porque haacute evidentemente uma identidade

entre a linguagem e a cultura que se retroalimentam tal como Von Humboldt demonstrou Natildeo porque

assim como Friedrich Schleiermacher afirma que compreender um autor melhor do que ele de si mesmo pode se

dar conta eacute a tarefa da hermenecircutica pode-se tambeacutem afirmar que superar o meu proacuteprio mundo (Umwelt)

ultrapassar a mim mesmo eacute a tarefa da linguagem que eacute a tarefa do tradutor tal como Benjamin nos ensina

Reconhecer os limites da minha linguagem eacute ao mesmo tempo o reconhecimento da situaccedilatildeo hermenecircutica em que

me encontro Mas reconhecer a traduzibilidade da linguagem eacute assumir a possibilidade que ela nos empresta de

superarmos o nosso mundo a partir da relaccedilatildeo com o outro expandindo ou continuando o sentido que assumimos

tambeacutem como nosso Haacute diferenccedilas (linguiacutesticas culturais e existenciais gerais) mas haacute tambeacutem um fator

comum que permite as liacutenguas comunicarem umas com as outras O fator comum pode ser chamado de

mundo ou experiecircncia e a traduccedilatildeo seria sua mais alta testemunha Portanto na traduccedilatildeo natildeo se trata

exatamente de ter empatia com o outro mas de continuar o sentido disponibilizado pelo outro de modo a

realizar o encontro ou relaccedilatildeo entre o mesmo e o outro

Traduzir diz respeito agrave continuidade dos sentidos disponiacuteveis naquilo que Benjamin chamou de

traduzibilidade E a linguagem portanto natildeo se encerra como a expressatildeo de uma cultura ou ponto de vista

(Von Humboldt) mas eacute uma cultura expressando o mundo de um ponto de vista que se expande em direccedilatildeo

a outros mundos na medida em que o fundamento da linguagem eacute a traduccedilatildeo (Gadamer) A traduccedilatildeo eacute o que

nos permite ampliar o nosso ponto de vista fundindo o meu horizonte o meu ponto de vista com um outro

apropriando-me de outros preconceitos que natildeo satildeo apenas meus pois a apropriaccedilatildeo de outros pontos de

vista isto eacute a compreensatildeo eacute a proacutepria natureza da linguagem que indiscutivelmente se refere

substancialmente agrave cultura A elaboraccedilatildeo da situaccedilatildeo hermenecircutica significa entatildeo a obtenccedilatildeo do horizonte de

questionamento correto para as questotildees que se colocam frente agrave tradiccedilatildeo mdash aquilo que nos foi transmitido

Um dilema colocado pelo fato da traduccedilatildeo o problema da alteridade

A muito conhecida paraacutebola biacuteblica de Babel (Gen 111-9) segundo a qual poderes divinos confundem3 as

liacutenguas da humanidade tornando as barreiras ou fronteiras comunicativas uma de suas condiccedilotildees

existenciais antes de introduzir a cataacutestrofe ou a trageacutedia da confusatildeo insoluacutevel entre as liacutenguas e culturas

segundo Ricœur a alegoria babeacutelica anuncia o chamado agrave traduccedilatildeo A traduccedilatildeo eacute apresentada

alegoricamente em Babel como condiccedilatildeo humana Traduzir ou melhor o trabalho de compreender o outro

ou de compreender (n)as diferenccedilas eacute um projeto eacutetico da humanidade do qual natildeo se pode desviar sem

contabilizar os prejuiacutezos

3 Babel compartilha a mesma raiz proto-semita de balal [confusatildeo]

[279]

Em termos teoacutericos e abstratos dispotildee-se dois lados opostos em contato necessaacuterio um eu e um outro

Atualiza-se a antiga questatildeo entre o Uno e o Muacuteltiplo entre a identidade e a diferenccedila cuja elaboraccedilatildeo

moderna mais relevante se encontra na Phaumlnomenologie des Geistes (1907) de G W F Hegel Na

fenomenologia hegeliana a finalidade da consciecircncia mdash ou o seu termo mdash eacute o reconhecimento ou o saber-se

consciente ou a superaccedilatildeo da solidatildeo espiritual Em termos eacuteticos tal finalidade estaacute enredada em uma

condiccedilatildeo ontoloacutegica de estranhamento que se opera entre a mesmidade e a diferenccedila internamente em

relaccedilatildeo agrave consciecircncia pois os diferentes momentos do movimento proacuteprio ao pensar satildeo simultaneamente

diferentes entre si estrangeiros um em relaccedilatildeo ao outro mas tambeacutem pertencem agrave unidade do movimento

ao se reconhecerem como tal Ou seja eacute proacuteprio ao movimento da consciecircncia porque eacute fundamentalmente

um movimento mdash devir mdash o estranhamento entre momentos diferentes Muacuteltiplos que contudo compotildeem

um mesmo Uno o movimento como fenocircmeno unitaacuterio e cujas singularidades satildeo estrangeiras uma em

relaccedilatildeo agraves outras Parmecircnides de Eleacuteia quem de fato inicia essa questatildeo admoesta ldquonatildeo separe o ser da

continuidade de seu proacuteprio serrdquo (DK28 B4) isto eacute o Muacuteltiplo [polla] eacute sempre Uno [hen] enquanto existecircncia

ou assim como se encontra em Platatildeo no diaacutelogo dedicado ao mestre da escola eleaacutetica ldquonem antes nem

depois o Uno eacute ao mesmo tempo com os outrosrdquo (Pl Prm 153e)

Em outras palavras visando transportar a reflexatildeo fenomenoloacutegica hegeliana e ontoloacutegica de Parmecircnides

para a teorizaccedilatildeo da traduccedilatildeo trata-se de um movimento especulativo que objetiva uma teoria da

hospitalidade mdash da acolhida do outro Com Hegel poderiacuteamos afirmar que eu mesmo sou estrangeiro em

relaccedilatildeo a mim e necessito me reconhecer em diferentes e muacuteltiplos momentos do movimento unitaacuterio da

consciecircncia Por isso faz parte dessa consciecircncia o acolhimento ou a hospitalidade do outro mdash ainda eu

mesmo mdash como momento insuperaacutevel o mesmo ou o proacuteprio eacute tambeacutem o estrangeiro do outro bem como o

outro eacute estrangeiro do mesmo pois hoacutespede eacute tanto quem acolhe como quem eacute acolhido Por fim pode-se

pensar em uma contrapartida filosoacutefica dessa questatildeo em relaccedilatildeo agrave linguagem e agrave traduccedilatildeo pois se traduzir

eacute uma tarefa fundamental da humanidade mdash da pluralidade existencial ou do reconhecimento enquanto

humano mdash conforme o mito de Babel hospedar o estrangeiro mdash sua liacutengua sua cultura sua histoacuteria sua

existecircncia mdash deve ser igualmente um imperativo eacutetico a natildeo se evitar

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Eacute permitida a reproduccedilatildeo parcial desta obra desde que citada a fonte e que natildeo seja

para qualquer fim comercial em contraacuterio constitui violaccedilatildeo da LDA 961098

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