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INTERNACIONAL 28 Cidade Nova • Julho 2015 • nº 7 MARTINA CAVALCANTI [email protected] Negócio da China oração de contrafilé na bra- sa. Esse foi o prato principal servido ao premiê chinês, Li Keqiang, em sua visita ao Brasil, no dia 19 de maio, para fir- mar um acordo que voltará a colo- car na mesa dos chineses carne bo- vina, exportada por oito frigoríficos brasileiros embargados desde 2012, em razão de uma suspeita não con- firmada de vaca louca. Em encontro com a presidente Dilma Rousseff, o primeiro-minis- tro assinou um total de 35 acordos bilaterais em diferentes áreas como infraestrutura, transporte, energia, agricultura, mineração, tecnologia e comércio. Um valor que supera os US$ 53 bilhões. A princípio é possível pensar que o resultado do encontro seja positivo para o Brasil, num ano de recessão econômica e cortes no Orçamento. No entanto, de acordo com especialistas de Relações Inter- nacionais e Economia ouvidos por Cidade Nova, os acordos, ainda não regulamentados, podem chegar a não ser concluídos e seus efeitos em longo prazo são questionáveis. “É uma carta de intenções en- tre os dois lados. São compromis- sos mútuos, mas não oficializados. Eles ajudam no sentido psicológico ao dar credibilidade para investi- dores estrangeiros com a percep- ção de que o Brasil não está isolado economicamente”, afirma José Au- gusto Guilhon, professor de Rela- ções Internacionais da Universida- de de São Paulo (USP) e pesquisador do Grupo de Estudos Brasil-Chi- na na Universidade de Campinas (Unicamp). “É bom devido à grande reper- cussão que teve nos outros países, não só na mídia, mas em centros de pesquisas internacionais e geoestra- tégicos. Porém, do ponto de vista prático, nos próximos dois anos em que essa crise vai continuar, não há nenhum efeito imediato”, pondera. Segundo o especialista, o fim do embargo aos frigoríficos é um dos únicos tratados de vigência imedia- ta. O potencial de exportação é de US$ 150 milhões por ano. Ele cita como certa também a retirada da barreira aos aviões da Embraer. Os dois países acordaram um financia- mento sobre a compra de 40 aerona- ves da empresa brasileira. Para Rogério Naques Faleiros, pro- fessor de Economia da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), o governo deve ter clareza na hora de regulamentar os acordos para não pôr tudo a perder. “Chineses são negocia- dores implacáveis, são duros de negó- cio e às vezes os acordos emperram em detalhes técnicos. Corre-se o ris- co de que seja uma grande fumaça”, afirma. “O governo brasileiro tem que ousar mais e ter mais clareza no pro- cesso de transferência de tecnologia e internalização visando aumento de produtividade e [solução de] gargalos na infraestrutura que são evidentes.” TRATADOS COMERCIAIS O principal parceiro comercial do Brasil assinou acordos que somam US$ 53 bilhões. O que esses tratados podem trazer ao país? C Roberto Stuckert Filho | PR

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Tratados Comerciais - O principal parceiro comercial do Brasil assinou acordos que somam US$ 53 bilhões. O que esses tratados podem trazer ao país?

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internacional

28 Cidade Nova • Julho 2015 • nº 7

martina [email protected]

Negócio da China

oração de contrafilé na bra-sa. Esse foi o prato principal servido ao premiê chinês, Li Keqiang, em sua visita ao

Brasil, no dia 19 de maio, para fir-mar um acordo que voltará a colo-car na mesa dos chineses carne bo-vina, exportada por oito frigoríficos brasileiros embargados desde 2012, em razão de uma suspeita não con-firmada de vaca louca.

Em encontro com a presidente Dilma Rousseff, o primeiro-minis-tro assinou um total de 35 acordos bilaterais em diferentes áreas como infraestrutura, transporte, energia, agricultura, mineração, tecnologia e comércio. Um valor que supera os US$ 53 bilhões.

A princípio é possível pensar que o resultado do encontro seja positivo para o Brasil, num ano de recessão econômica e cortes no Orçamento. No entanto, de acordo com especialistas de Relações Inter-nacionais e Economia ouvidos por

Cidade Nova, os acordos, ainda não regulamentados, podem chegar a não ser concluídos e seus efeitos em longo prazo são questionáveis.

“É uma carta de intenções en-tre os dois lados. São compromis-sos mútuos, mas não oficializados. Eles ajudam no sentido psicológico ao dar credibilidade para investi-dores estrangeiros com a percep-ção de que o Brasil não está isolado economicamente”, afirma José Au-gusto Guilhon, professor de Rela- ções Internacionais da Universida-de de São Paulo (USP) e pesquisador do Grupo de Estudos Brasil-Chi-na na Universidade de Campinas (Unicamp).

“É bom devido à grande reper-cussão que teve nos outros países, não só na mídia, mas em centros de pesquisas internacionais e geoestra-tégicos. Porém, do ponto de vista prático, nos próximos dois anos em que essa crise vai continuar, não há nenhum efeito imediato”, pondera.

Segundo o especialista, o fim do embargo aos frigoríficos é um dos únicos tratados de vigência imedia-ta. O potencial de exportação é de US$ 150 milhões por ano. Ele cita como certa também a retirada da barreira aos aviões da Embraer. Os dois países acordaram um financia-mento sobre a compra de 40 aerona-ves da empresa brasileira.

Para Rogério Naques Faleiros, pro-fessor de Economia da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), o governo deve ter clareza na hora de regulamentar os acordos para não pôr tudo a perder. “Chineses são negocia-dores implacáveis, são duros de negó-cio e às vezes os acordos emperram em detalhes técnicos. Corre-se o ris-co de que seja uma grande fumaça”, afirma. “O governo brasileiro tem que ousar mais e ter mais clareza no pro-cesso de transferência de tecnologia e internalização visando aumento de produtividade e [solução de] gargalos na infraestrutura que são evidentes.”

TRATADOS COMERCIAIS O principal parceiro comercial do Brasil assinou acordos que somam US$ 53 bilhões. O que esses tratados podem trazer ao país?

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Concentração A China é o principal parcei-

ro comercial brasileiro. Em 2014 as exportações destinadas ao país asiá-tico somaram US$ 40,6 bilhões e as importações chegaram a US$ 37,3 bilhões, gerando um fluxo comer-cial de US$ 77,9 bilhões, segundo números do Ministério do Desenvol-vimento, Indústria e Comércio Ex-terior (MDIC). Neste ano, de janei-ro a abril, o comércio entre as duas nações somou US$ 21,7 bilhões. O Brasil é o principal parceiro comer-cial da China na América Latina e o oitavo destino das importações chi-nesas, com 2,6% de participação.

Os acordos podem aumentar ainda mais a dependência do Brasil em relação à China, diz o professor de Economia da Universidade de Brasília (UnB) Jorge Saba Arbache. “Os chineses compraram bem me-nos do Brasil do que no ano passa-do. Corremos o risco de sair de uma situação de superávit comercial com a China para uma de déficit porque os preços das commodities [bens em estado bruto, sem processamento industrial] caíram. É uma relação extremamente assimétrica”, afirma.

Como solução, ele defende não só a diversificação de parceiros co-merciais, mas principalmente dos itens produzidos e exportados pelo Brasil. O MRE afirma que o Brasil vem diversificando suas parcerias econômicas e intensificando rela-ções comerciais com países africa-nos, com as economias sul-ameri-canas, com o EUA, e negociando o acordo Mercosul-União Europeia.

Matéria-prima x manufaturados

A maioria dos itens enviados pelo Brasil à China (84,4%) é composta por produtos básicos. A soja aparece em primeiro lugar, seguida por mi-

nérios, combustíveis, pastas de ma-deira e açúcar. Já a China tem como base da sua venda para o Brasil pro-dutos manufaturados, que ocupam quase a totalidade (98%) dos impor-tados ao país. Os destaques ficam para máquinas, produtos químicos, plásticos, automóveis, vestuário e instrumentos de precisão.

Os novos acordos, segundo o eco-nomista Rogério Faleiros, “reforçam a dependência brasileira em relação à exportação de bens primários. O fluxo que se estabelece me preocu-pa. No passado, o país ousou se ar-riscar na industrialização, mas nessa conjuntura volta a se concentrar na produção de commodities. Trata-se de uma reversão neocolonial. É um movimento cruel para a economia nacional, já que a participação da indústria no PIB é decadente”.

Os produtos básicos chegaram a re presentar 48,7% da receita de expor- tação em 2014, a maior participação em cerca de 40 anos, segundo dados do MDIC. Já as vendas de manufa-turados recuaram 13,7% em relação ao mesmo período de 2013 e somam 35,6% dos produtos exportados.

Para Guilhon, a relação entre os dois países é desigual e o Brasil ten-de a sair perdendo com os acordos. “Minério e petróleo podem ser subs-tituídos com grande facilidade por-que são commodities. A qualidade, definida internacionalmente, é a mes- ma em qualquer parte. O mesmo não acontece com o Brasil, já que depende da tecnologia e dos indus-trializados da China. Se o país não é capaz de competir nem internamen-te com os produtos de fora, quem dirá no mercado exterior”, critica.

O MRE não vê incompatibilida-de entre a exportação de commodi-ties e o desenvolvimento industrial e tecnológico. “Grandes exportado-res de produtos agrícolas, como os EUA, são também potências tecno-lógicas. Além disso, a agricultura é

hoje um setor intensivo em tecno-logia: a alta produtividade agrícola brasileira é o resultado de pesados e contínuos investimentos em bio-tecnologia”, assinalou o Ministério.

De acordo com o economista Ro-gério Faleiros, os acordos também tornam a economia do país vul-nerável ao preço internacional das commodities, que vem caindo nos últimos anos. “Na década passada, o preço foi ascendente, mas a tendên-cia se reverteu. Por isso e não só, o país teve vários problemas de déficit público e fiscal”, afirma.

O preço internacional da soja, item cuja participação corresponde a 40,9% nas exportações brasileiras para a China em 2014, caiu 35,5% em abril deste ano, em comparação com abril do ano passado, segundo o Índice de Preços Alimentos Fiesp--Deagro (Departamento do Agrone-gócio da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo).

Já o minério de ferro, segundo item mais exportado pelo Brasil aos chineses, acumula perda de 58,5% em valor no mercado internacional em um ano. Somente em 2015, a depreciação foi de 31,49%. Segun-do previsões, o preço atual de US$ 48,82 deve cair ainda mais. O Citi-group cortou as projeções para US$ 30 a tonelada até 2020.

Obras de infraestruturaA demanda por bens agrícolas

e outras commodities é crescente na China, na medida em que a sua gi-gantesca população de 1,3 bilhão de habitantes, um sétimo da popu-lação mundial, tem se urbanizado gradativamente nos últimos anos.

Em 1980, a população rural chi-nesa compunha 80% do total. Em 2010, os dois grupos se igualaram e, dois anos mais tarde, pela pri-meira vez na história chinesa, os habitantes das cidades superaram c

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os do campo. A renda per capita da China também aumentou, chegan-do à casa dos US$ 7 mil em 2011 e gerando uma grande quantidade de consumidores em potencial.

“O consumo urbano é diferen-te do rural. A busca por produtos e mercadorias novas é crescente, assim como a pressão chinesa pela apropria-ção de minério de ferro e bens primá-rios produzidos em outros lugares do mundo”, exemplifica Faleiros.

Para atender a essa grande de-manda, a ferrovia transoceânica, que pretende ligar o Brasil ao Oce-ano Pacífico, passando pelo Peru, é uma das obras mais ousadas de infraestrutura previstas no acordo, para possibilitar o envio de produ-tos primários do território brasileiro e latino-americano à China.

Mas a construção da ferrovia é considerada remota. Está previsto um estudo de viabilidade da obra, ainda sem valor definido, a ser rea-lizado pelos chineses. O documen-to com as conclusões deve ser apre-sentado até maio de 2016.

Segundo Faleiros, as dificuldades técnicas para a realização da obra são “tremendas”, pois seria neces-sário atravessar os Andes, a floresta amazônica e o Pantanal. O especia-lista também questiona se a maneira de realização da obra será benéfica para o Brasil. “Esse know-how será compartilhado ou seremos país hos-pedeiro de uma tecnologia comple-tamente estranha?”, indaga.

O economista José Guilhon res-salta a tendência de a obra benefi-ciar principalmente o país asiático. “Se a China conseguir realizar o pro-jeto, estará exportando materiais de construção, mão de obra técnica e engenharia”, diz.

Em resposta à reportagem, o MRE declarou que a infraestrutura resultante do investimento chinês já é, em si, um ganho para o Brasil. “A China tem feito investimentos

de alta tecnologia no Brasil. Esses investimentos seguem as leis bra-sileiras em termos de participação de capital nacional; contratação de mão de obra brasileira e utilização de fornecedores brasileiros.”

De acordo com Saba, a constru-ção de rodovias, portos e ferrovias pode ajudar a ativar a nossa econo-mia em recessão, mas é importante manter os investimentos em longo prazo. “No curto prazo, se o dinhei-ro for utilizado na totalidade, trará beneficio, porque tem entrada de dólar. Precisa saber se isso para em pé no longo prazo. O ultra curto prazismo já deu inúmeras provas de que não é a solução. Não podemos repetir nossos erros”, ressalta.

“Do ponto de vista politico é im-portante a China aparecer como um país que traz benefícios para a Amé-rica Latina e para o principal país da região, além de dar a imagem de que está ganhando terreno no quintal dos Estados Unidos”, afirma Guilhon. Junto com o canal da Nicarágua, também sob responsabilidade das companhias chinesas, a criação da ferrovia será uma alternativa ao canal do Panamá, que tem forte in fluência do governo norte-americano.

De acordo com Faleiros, os inves-timentos consolidam uma mudança geopolítica que vem sendo traçada ao longo dos anos. “Brasil, Argen-tina, Peru e Paraguai estão na alça de mira dos investimentos chineses e isso coloca questões geopolíticas mais amplas. A histórica predomi-nância norte-americana estabelecida no continente tem sido de alguma maneira contestada com essa apro-ximação com o governo chinês. O que esses investimentos evidenciam é um processo que já está em curso há pelo menos uma década”, afirma.

Segundo o MRE, a ferrovia é ape-nas uma alternativa e não significa necessariamente uma perda de ter-reno aos Estados Unidos na relação

com a América Latina. “Pelo con-trário, a ferrovia poderá inclusive beneficiar investimentos america-nos no Brasil e na América do Sul.”

Projeto para o paísSegundo Saba e Faleiros, os acor-

dos são positivos, mas ressaltam nossas mazelas sociais e econômi-cas, daí a necessidade de buscar um caminho próprio para que o Brasil tire o melhor das negociações e dos investimentos chineses.

A experiência da China na Zâm-bia deve servir de alerta, segundo Faleiros. “Os chineses transferem para o país toda a cadeia produtiva. Os trabalhadores geralmente não são africanos, mas chineses e de ou-tros lugares da Ásia, o que perpetua o ciclo de pobreza agravado pela de-gradação ambiental que a extração de minérios provoca”, exemplifica.

O economista também destaca a necessidade de que o país tenha uma política mais ativa e trace um projeto nacional claro. “Esses acor-dos têm potencial para completar as cadeias produtivas no nosso país? O projeto que temos é caminhar cada vez mais em direção às commodities ou assimilar tecnologia, empreen-der know how e realizar pesquisas em conjunto com a China?” E alfi-neta: “Quem vai bolar projetos para que eles tenham efeitos multiplica-dores e desenvolvam a tecnologia no Brasil? Eu não vejo ninguém: nem empresários nem políticos”.

De acordo com o Itamaraty, o go-verno se preocupa em garantir que a parceria tenha resultados equilibra-dos e promova o máximo de desen-volvimento para a economia brasilei-ra. “O Ministério de Planejamento, Orçamento e Gestão criou mecanis-mos de estudo e coordenação das oportunidades de investimento em estudo com a China”, afirmou o órgão em resposta à Cidade Nova.

martina [email protected]