neil gaiman - lugar nenhum

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1996-1997 by Neil Gaiman 2007 by Conrad Editora do Brasil Ltda. TTULO ORIGINAL: Neverwhere CAPA E DIAGRAMAO: Ana Solt EDIO: Mateus Potumati e Lgia Azevedo PREPARAO: Ricardo Liberal REVISO: Lucas Carrasco e Otaclio Nunes PRODUO GRFICA: Alberto Gonalves Veiga e Ricardo A. Nascimento

NEIL GAIMAN LUGAR NENHUMTraduo: Juliana Lemos

Para Lenny Henry, meu amigo e colega, que tornou tudo possvel, e para Merrilee Heifetz,

minha amiga e agente, que sempre deixa tudo melhor. NUNCA ESTIVE EM ST. JOHNS WOOD. NO OUSO IR AT L. Teria medo da noite infinita da floresta de abetos, medo de me deparar com uma taa vermelha de sangue e o bater de asas da guia. The Napoleon of Notting Hill, G. K. Chesterton If ever thou gavest hosen or shoon Then every night and all Sit thou down and put them on And Christ receive thy soul This aye night, this aye night Every night and all Fire and fleet and candlelight And Christ receive they soul If ever thou gavest meat or drink Then every night and all The fire shall never make thee shrink And Christ receive thy soul The Lyke Wake Dirge1Estrofes de The Lyke Wake Dirge (Balada ao Velar um Defunto), uma tradicional cano folclrica inglesa que fala sobre a passagem da alma pelo purgatrio. uma advertncia para que os vivos sejam generosos com os pobres e, assim, evitem o sofrimento aps a morte. Uma possvel traduo: Se j deste meias e sapatos/Ento todas as noites/Senta-te e cala-os/E Cristo receber tua alma/Nesta noite, nesta noite/E em todas as outras noites/O calor do lar e a luz das velas/E Cristo1

PRLOGORICHARDDIVERTINDO MUITO

MAYHEW NO ESTAVA SE NA NOITE anterior sua viagem

para Londres. Tinha comeado bem. Ele gostou de ler os cartes de despedida e de ser abraado por algumas jovens que conhecia, no desprovidas de atrativos. Gostou quando as pessoas o advertiram dos males e dos perigos de Londres, e de ter ganhado um presente, fruto de uma vaquinha feita pelos amigos: um guarda-chuva branco, com o mapa do metr de Londres estampado. Gostou de tomar as primeiras garrafinhas de cerveja, mas com as seguintes descobriu que estava aproveitando bem menos, at ficar como estava agora, tremendo de frio e sentado na calada em frente ao pub de uma cidadezinha na Esccia,receber tua alma/Se j deste de beber ou comer/Ento todas as noites/O fogo nunca te consumir/E Cristo receber tua alma. (N. T.)

comparando em sua cabea as vantagens de estar ou no passando mal, sem se divertir nem um pouco. Dentro do pub, os amigos de Richard continuavam a celebrar sua despedida com um entusiasmo que, para ele, comeava a parecer meio macabro. Estava sentado na calada, segurando bem firme seu guardachuva fechado, e ficou pensando se ir para Londres seria mesmo uma boa idia. Melhor voc tomar cuidado algum disse. Eles vo te superar num piscar de olhos, ou at mesmo te passar pra trs, isso no me surpreenderia. Dois olhos penetrantes em um rosto narigudo e sujo o observavam. Voc est bem? Sim, obrigado respondeu. Richard parecia um menino, com cabelos escuros, um pouco encaracolados, e grandes olhos castanho-claros. Tinha tambm aquela aparncia meio desleixada de quem acabou de acordar, o que o tornava mais atraente para o sexo oposto, embora ele no entendesse nem acreditasse muito nisso. O rosto sujo adotou um semblante mais gentil. Toma, coitadinho disse ela, colocando uma moeda na mo de Richard. H quanto tempo voc est na rua? Eu no sou mendigo explicou

Richard, constrangido, tentando devolver a moeda velha. Por favor... tome o seu dinheiro de volta. Eu estou bem. S sa para tomar um pouco de ar. Vou para Londres amanh. Ela olhou para ele, desconfiada. Pegou de volta sua moeda e a fez desaparecer entre as camadas de casacos e xales que a envolviam. Eu j fui pra Londres confidenciou. Me casei l. Mas ele no prestava. Minha me sempre me disse pra no casar com algum que eu mal conhecia, mas eu era jovem e bonita, embora no parea hoje em dia, e segui meu corao. Tenho certeza que sim observou Richard. A sensao de que ia passar mal comeou a desaparecer, devagar. No adiantou nada. Eu vivo na rua, ento sei como comentou a velha. Por isso achei que voc vivesse aqui tambm. Est indo pra Londres pra qu? Consegui um emprego l respondeu ele, orgulhoso. Pra fazer o qu? H... Na rea de ttulos e finanas. Eu era danarina contou a velha, e fez uns passinhos estranhos na calada, cantarolando para si mesma, desafinada. Cambaleou de um lado para outro, como um peo que est deixando de girar, e finalmente

parou, encarando Richard. Estende a mo. Vou ler o teu destino. Ele obedeceu. Ela colocou sua velha mo sobre a dele e segurou firme. Piscou algumas vezes, como uma coruja que acabou de engolir um rato e est comeando a achar que foi m idia. Voc tem um longo caminho a percorrer... disse, confusa. Londres. No s Londres... Ela fez uma pausa. Pelo menos no a Londres que eu conheo. Uma chuva rala comeou a cair. Desculpa disse ela. Comea com portas. Portas? Ela assentiu com a cabea. A chuva engrossou, ressoando sobre os telhados e no asfalto. Se eu fosse voc, teria cuidado com portas. Richard se levantou, meio cambaleante. Certo disse, sem saber muito bem como receber aquela informao. Terei. Obrigado. A porta do pub se abriu, e as luzes e o barulho vazaram para a rua: Richard? T tudo bem? Sim, tudo bem. Eu j vou. A velha j descia a rua com seus passos

instveis, na chuva intensa, molhando-se toda. Richard achou que precisava fazer algo, mas no tinha como lhe dar dinheiro. Correu atrs dela pela rua estreita, a chuva fria molhando seu rosto e seu cabelo. Toma disse. Remexeu com dificuldade o guarda-chuva, tentando achar o boto para abri-lo. Ouviu-se um clique, e ento surgiu um grande mapa branco da rede de metrs de Londres, cada linha de uma cor, com as estaes indicadas. A velha pegou o guarda-chuva e sorriu como agradecimento. Voc tem um bom corao. s vezes isso j salva a pessoa, seja l onde ela estiver balanou a cabea. Mas nem sempre. Segurou firme o guarda-chuva quando uma rajada ameaou lev-lo embora ou virlo do avesso. Ela abraou o cabo e quase se dobrou ao meio para enfrentar a tempestade. E foi desaparecendo na noite, uma forma redonda e branca coberta pelos nomes das estaes de Londres Earls Court, Marble Arch, Blackfriars, White City, Victoria, Angel, Oxford Circus... Richard ficou imaginando, meio bbado, se havia mesmo um circo em Oxford Circus: um circo de verdade, com palhaos, mulheres bonitas e animais perigosos. A porta do pub se abriu mais uma vez: uma exploso de barulho, como se algum tivesse colocado o

boto de volume no mximo. Richard, seu otrio, a sua festa! Voc t perdendo a diverso toda. Ele voltou para o pub, e a sensao de passar mal tinha sumido com aquela situao estranha. Voc t parecendo um pato molhado disse algum. Voc nunca viu um pato molhado respondeu. Outra pessoa lhe entregou uma grande dose de usque. Toma isso aqui. Vai te aquecer. Voc sabe que no tem usque de verdade em Londres. Tem sim, certeza retrucou ele, com um suspiro. Gotas dgua de seu cabelo caam dentro do copo. Tem de tudo em Londres. Richard virou a bebida. Algum trouxe mais uma, e a noite ficou embaada e fragmentada. Depois, ele s conseguia se lembrar da sensao de estar deixando um lugar pequeno e racional um lugar onde tudo fazia sentido e indo para outro, velho e grande, onde nada fazia; de vomitar sem parar num bueiro transbordando de gua, nas primeiras horas do dia; e de uma forma branca, cheia de smbolos de cores estranhas, como se fosse um pequeno besouro redondo, afastando-se dele na chuva. Na manh seguinte, pegou o trem para a

viagem de seis horas que o levaria at as estranhas torres e arcos gticos da St. Pancras Station. Sua me preparara um pequeno bolo de nozes e uma garrafa trmica com ch para a viagem. E Richard Mayhew foi para Londres, sentindo-se um lixo.

UMELA CORRIA HAVIA J QUATRO DIAS, UMA FUGA SEM RUMO E DESORDENADA, atravs de passagens e tneis. Sentia fome e estava exausta. O cansao era maior do que seu corpo conseguia suportar, e cada nova porta se

mostrava mais difcil de abrir que a anterior. Finalmente, encontrou um esconderijo: uma pequena toca de pedra perdida no mundo, onde ficaria segura (ou assim esperava). E ento dormiu. *** O senhor Croup havia contratado Ross no ltimo Mercado Flutuante, que acontecera na Abadia de Westminster. Pense nele como um canrio disse o senhor Croup ao senhor Vandemar. Ele canta? Duvido. Duvido muitssimo. Ele passou a mo em seu cabelo ruivo e liso e continuou: No, meu caro amigo, eu estava pensando em termos metafricos, mais como um canrio que levado para uma mina de carvo. O senhor Vandemar assentiu com a cabea, compreendendo com lentido: sim, um canrio. De resto, o senhor Ross no se parecia em nada com um canrio. Ele era enorme quase to grande quanto o senhor Vandemar , extremamente sujo, quase careca e falava muito pouco, embora tivesse feito questo de lhes dizer que gostava de matar e que o fazia bem. Isso divertiu o senhor Croup e o senhor Vandemar. Mas ele

era o canrio e no sabia. O senhor Ross entrou primeiro, com sua camiseta imunda e seus jeans enlameados. Croup e Vandemar, trajando elegantes ternos pretos, entraram atrs dele. Existem quatro dicas simples para que uma pessoa consiga discernir o senhor Croup do senhor Vandemar. Primeira: o senhor Vandemar duas cabeas e meia mais alto que o senhor Croup. Segunda: o senhor Croup tem olhos cor de porcelana azul desbotada, ao passo que os olhos do senhor Vandemar so castanhos. Terceira: o senhor Vandemar fez os anis que usa na mo direita com os crnios de quatro corvos, e o senhor Croup no usa nenhuma jia aparente. Quarta: o senhor Croup gosta de palavras e o senhor Vandemar est sempre faminto. Alm disso, eles no so nem um pouco parecidos. Um vulto na escurido do tnel. A faca do senhor Vandemar estava em sua mo e em seguida no estava mais: tremulava levemente a quase dez metros de distncia. Ele foi at ela e segurou-a pelo punho. Havia um rato cinzento espetado na lmina, abrindo e fechando a boca debilmente, enquanto a vida se esvaa. Vandemar esmagou seu crnio com o polegar e o indicador. Eis um rato que no l muito rabudo disse o senhor Croup. Ele riu de sua prpria

piada. O senhor Vandemar no respondeu. Rabudo... rato... Entendeu? O senhor Vandemar retirou o rato da lmina e comeou a mastig-lo, pensativo, comeando pela cabea. O senhor Croup deu um tapa na mo dele e fez o rato cair. Deixe disso! O senhor Vandemar guardou a faca, meio chateado. No fique assim consolou o senhor Croup, em um tom de encorajamento. Sempre h mais ratos. E agora vamos indo. Temos muita coisa a fazer. Gente para machucar. *** Depois de trs anos em Londres, Richard ainda era o mesmo, embora sua viso da cidade tivesse mudado. Ele a imaginara um lugar cinzento, at mesmo enegrecido, por causa das fotos que havia visto. Ficou surpreso ao descobrir que Londres era cheia de cores. Era uma cidade de tijolos vermelhos e pedras brancas, nibus vermelhos e grandes txis pretos, caixas de correios de um vermelho vivo e parques e cemitrios com gramados verdes. Nela, o que era muito antigo e o que era estranhamente novo se esbarravam, sem constrangimento ou respeito. Era uma cidade

de lojas, escritrios, restaurantes e residncias, de parques e igrejas, de monumentos ignorados e palcios que em nada lembravam palcios; uma cidade de centenas de distritos com nomes estranhos e estranhamente distintos Crouch End, Chalk Farm, Earls Court, Marble Arch; uma cidade suja, alegre, cheia de problemas, que se alimentava de turistas e precisava deles tanto como os desprezava; a cidade na qual a velocidade mdia de transporte no havia aumentado em 300 anos, depois de 500 anos de alargamentos intermitentes das avenidas e tentativas frustradas de encontrar um meiotermo entre as necessidades do trfego (seja ele com carroas ou, mais recentemente, motorizado) e as dos pedestres; uma cidade repleta de pessoas de todas as raas, costumes e tipos. Ao chegar a Londres, achara-a grande, estranha, definitivamente incompreensvel, com apenas o mapa do metr, aquela elegante exposio topogrfica multicolorida, a dar-lhe um resqucio de ordenao. Aos poucos, ele se deu conta de que o mapa era uma til fantasia que tornava a vida mais fcil, mas que nada tinha a ver com o formato da cidade acima do subsolo. Era o mesmo que pertencer a um partido poltico, pensou ele, orgulhoso de seu raciocnio, e depois, ao tentar explicar a semelhana entre ambos

para um grupo de estranhos perplexos numa festa, decidiu que no futuro deixaria o comentrio poltico de lado. Continuou devagar, por um processo de osmose e conhecimento de fundo (que como o rudo de fundo, s que mais til), a compreender a cidade, o que ficou mais rpido quando se deu conta de que a verdadeira Londres no tinha mais que 2,5 km2, indo de Aldgate, no leste, at, no oeste, a Fleet Street e os tribunais de Old Bailey, um pequeno distrito, agora lar das instituies financeiras de Londres. E foi l onde tudo comeou. Dois mil anos antes disso, Londres era uma pequena vila celta margem norte do rio Tmisa, onde os romanos se estabeleceram. Ela crescera com lentido at que, mais ou menos mil anos depois, alcanou a pequena Cidade Real de Westminster a oeste e, assim que a London Bridge fora construda, a cidade de Southwark, do outro lado do rio. Continuou a crescer, com os campos, as florestas e o pntano desaparecendo devagar sob a cidade que florescia. Encontrou outras vilas e vilarejos, como Whitechapel e Deptford a leste, Hammersmith e Shepherds Bush a oeste, Camden e Islington ao norte, Battersea e Lambeth ao sul, do outro lado do Tmisa,

absorvendo todas elas como uma poa de mercrio absorve gotculas menores da substncia , deixando para trs nada alm de seus nomes. Londres cresceu at se tornar uma coisa enorme e contraditria. Era um bom lugar, uma tima cidade, mas h um preo a pagar pelos bons lugares, e um preo que todos os bons lugares devem pagar. Depois de um tempo, Richard percebeu que no ligava mais para a cidade. Passou a sentir orgulho de no ter visitado nenhum de seus pontos tursticos (com exceo da Torre de Londres, quando sua tia Maude veio visitar a cidade num fim de semana e Richard, contrariado, teve que ser seu guia). Mas Jessica mudou tudo isso. Ele acabou tendo que acompanh-la, em fins de semana que do contrrio seriam normais, a lugares como a National Gallery e a Tate Gallery, onde descobriu que andar demais em museus deixa os ps doloridos, que os grandes tesouros da arte mundial acabam parecendo iguais depois de um tempo, e que est quase alm da compreenso humana o preo que os cafs dos museus tm a cara-de-pau de cobrar por uma fatia de bolo e uma xcara de ch. Tome. Seu ch e sua bomba de chocolate disse ele. Um desses Tintorettos a seria mais barato.

No precisa exagerar respondeu Jessica, em tom alegre. Alis, no h nenhum Tintoretto na Tate. Eu devia ter pedido uma torta de cereja. A eles poderiam comprar mais um Van Gogh. Richard conheceu Jessica na Frana, em uma viagem de fim de semana at Paris, dois anos antes. Ele a descobriu no Louvre, quando tentava achar seus colegas de escritrio, que tinham formado o grupo e organizado a viagem. Dera alguns passos para trs enquanto observava uma escultura imensa e acabou esbarrando em Jessica, que admirava um diamante enorme, de grande importncia histrica. Tentou desculpar-se em francs, lngua que no falava, mas desistiu e comeou a se desculpar em ingls, e a tentou desculpar-se em francs por ter que se desculpar em ingls, at perceber que Jessica era a mais inglesa das pessoas. A essa altura, ela j tinha decidido que ele, para se desculpar, deveria comprar-lhe um sanduche francs muito caro e um suco de ma com gs que custava os olhos da cara, e, bom, foi a que tudo comeou. Richard nunca conseguiu convencer Jessica de que no era freqentador de galerias de arte. Nos fins de semana, quando no iam a galerias de arte ou a museus, Richard seguia Jessica enquanto ela fazia compras em

geral, no opulento bairro de Knightsbridge, que ficava a uma pequena distncia a p (e uma distncia ainda menor de txi) de seu valioso apartamento em Kensington. Richard a acompanhava em seus passeios a lojas enormes e ameaadoras, como a Harrods e a Harvey Nichols, onde ela encontrava de tudo, desde jias a livros, alm de coisas de supermercado. Richard ficou admirado com ela, que era bonita, quase sempre engraada e sem dvida tinha um futuro. Jessica viu em Richard um enorme potencial algo que, se fosse domado pela mulher certa, faria dele um grande partido. Ah, se ele fosse um pouco mais determinado, murmurava Jessica para si mesma. E ento ela lhe deu livros com ttulos como Vestindo-se para o Sucesso e 125 Hbitos dos Homens de Sucesso, e outros que ensinavam a administrar os negcios como uma campanha militar. Richard agradecia, sempre com a inteno de l-los. Na seo de moda masculina da Harvey Nichols, ela escolhia as roupas que ele deveria usar e ele as usava durante a semana. Exatamente um ano depois que se conheceram, ela lhe disse que havia chegado a hora de comprar um anel de noivado. Por que voc namora essa garota? perguntou Gary, na Corporate Accounts, um ano e meio depois. Tenho medo dela.

Richard balanou a cabea: porque voc no a conhece de verdade. Ela um doce. Gary ps de volta sobre a mesa o trasgo de plstico que tinha pegado. Eu nem acredito que ela deixe voc ter esses bonequinhos. Nunca tratamos desse assunto contou Richard, pegando uma das criaturas da mesa. O boneco tinha cabelo laranja fosforescente e uma expresso meio confusa, como se estivesse perdido. Mas haviam tratado do assunto, sim. Jessica convenceu-se de que a coleo de trasgos de Richard era um sinal saudvel de excentricidade, como a coleo de anjos do senhor Stockton. Na poca, ela organizava uma exposio itinerante para ele e chegou concluso de que os grandes homens sempre colecionavam alguma coisa. Na verdade, Richard no colecionava trasgos. Ele achara um na calada em frente ao escritrio e, em uma v tentativa de dar um pouco mais de personalidade sua mesa, colocou-o sobre o monitor do computador. Nos meses seguintes, chegaram outros trasgos, dados por colegas que perceberam o gosto de Richard pelas feias criaturinhas. Ele pegou os presentes e os disps estrategicamente em volta da mesa, ao lado dos telefones e do porta-retrato com a foto de Jessica.

Havia um post-it amarelo grudado na foto. Era sexta-feira tarde. Richard havia percebido que os acontecimentos so seres covardes. Eles nunca acontecem sozinhos: vm numa matilha, pulando juntos sobre algum ao mesmo tempo. Vejamos, por exemplo, essa sexta-feira em particular. Era, como Jessica tinha lhe dito pelo menos umas dez vezes no ltimo ms, o dia mais importante da vida dele. Ento sem dvida foi um grande azar que ele tivesse se esquecido do compromisso, apesar do post-it que havia deixado na porta da geladeira em casa e do outro colado na fotografia de Jessica em sua mesa. Alm disso, havia o relatrio Wandsworth, que j tinha passado do prazo e ocupava grande parte de sua ateno. Richard verificou mais uma fileira de nmeros e percebeu que a pgina 17 tinha desaparecido, ento a imprimiu novamente. Depois viu que havia outra pgina faltando. Ele sabia que, se ningum o perturbasse... se, milagre dos milagres, o telefone no tocasse... O telefone tocou. Ele ligou o vivavoz. Al? Richard? O diretor precisa saber quando o relatrio vai ficar pronto. Ele olhou para o relgio.

Mais cinco minutinhos, Sylvia. Est quase pronto. S preciso colocar a projeo do Financeiro. Obrigada, Dick. Vou descer para pegar com voc. Sylvia era, como ela mesma gostava de explicar, a enfermeira do chefe e tinha aquele ar de pura eficincia. Ele desligou o viva-voz, mas o telefone tocou de novo, um segundo depois. Richard disse a voz , aqui a Jessica. Voc no se esqueceu, n? Me esqueci? Ele tentou lembrar o que poderia ter esquecido. Olhou para a fotografia de Jessica em busca de uma luz, e a luz que surgiu tinha o formato de um post-it amarelo, grudado testa da namorada. Richard? Fala comigo. Ele pegou o telefone, lendo o post-it ao mesmo tempo. Desculpe, Jess. No, no esqueci. s sete, no Ma Maison Italiano. Te encontro l? Jessica, Richard. No Jess. Ela fez uma pausa. Depois do que aconteceu da ltima vez? No, senhor. Voc consegue se perder no seu prprio quintal. Richard pensou em dizer que qualquer pessoa confundiria a National Gallery com a National Portrait Gallery, e que no era ela quem passara o dia inteiro tomando chuva (o que, na opinio dele, era to divertido quanto

andar em qualquer uma das tais galerias at os ps doerem), mas se segurou. Eu te encontro na sua casa disse Jessica. Podemos ir para l a p, juntos. Certo, Jess. Jessica. Desculpe. Voc confirmou mesmo a nossa reserva, n? Confirmei mentiu ele, em tom solene. A outra linha do telefone comeou a tocar. Jessica, olha, eu... timo disse ela, e desligou o telefone. Richard atendeu a outra linha. Oi, Dick. Aqui o Gary. Gary se sentava a algumas mesas de distncia de Richard. Ele acenou com a mo e continuou: E a, vamos beber? Lembra? Voc disse que a gente podia falar sobre a conta Merstham. Larga esse telefone, Gary. Claro que est de p. Richard desligou. Havia um nmero de telefone no rodap do post-it. Ele havia escrito o lembrete para si mesmo, semanas antes. E tinha feito a reserva, era quase certeza. Mas no havia confirmado. Ele sempre pensava em confirmar, mas havia tantas coisas a fazer... e sabia que daria tempo. Mas os acontecimentos sempre vm era matilha... Sylvia agora estava de p a seu lado.

E o relatrio Wandsworth, Dick? Quase pronto, Sylvia. Olha, espera s um segundinho, t? Ele terminou de teclar os nmeros e soltou um suspiro de alvio quando algum respondeu do outro lado da linha: Ma Maison, boa tarde. Pois no? Por favor, uma mesa para trs, para hoje noite. Acho que fiz reserva. Se fiz, estou confirmando. E se no fiz, gostaria de saber se posso reservar agora, por favor. No, eles no tinham nenhuma reserva para aquela noite em nome de Mayhew. Nem de Stockton. Nem de Bartram (o sobrenome de Jessica). E quanto a reservar uma mesa... No foram as palavras que Richard achou desagradveis, mas o tom de voz usado por quem deu a informao. Uma mesa para hoje sem dvida precisaria ter sido reservada muito tempo atrs talvez, pelo jeito, pelos pais de Richard. Era impossvel achar uma mesa para hoje. Se o papa, o primeiro-ministro e o presidente da Frana chegassem sem reserva confirmada, at mesmo eles seriam postos para fora, com aquele escrnio breto tpico. Mas para o chefe da minha noiva. Eu sei que deveria ter ligado antes. So s trs pessoas, ser que voc no poderia, por favor... A pessoa j tinha desligado.

Richard? O chefe est esperando. Voc acha que eu teria chance de conseguir a mesa se ligasse de volta e oferecesse dinheiro? *** No sonho, todos estavam juntos dentro da casa seus pais, seu irmo, sua irmzinha. Estavam de p no salo, olhando para ela. Todos to plidos, to sisudos. Portia, sua me, tocou seu rosto e disse que ela corria perigo. No sonho, Door riu e disse que j sabia. Sua me fez que no com a cabea: no, no... ela corria perigo naquele instante. Agora. Abriu os olhos. A porta se abria, bem devagarinho. Ela prendeu a respirao. Ouviu passos sobre o cho de pedra. Talvez ele no me veja, pensou. Talvez v embora. E ento pensou, desesperada: Estou com fome. Os passos pararam. Ela sabia que estava bem escondida, sob uma pilha de trapos e jornais. E talvez o intruso no quisesse lhe fazer mal. Ser que ele consegue ouvir meu corao batendo? Os passos se aproximaram. Door sabia o que precisava fazer, mas tinha medo. Uma mo puxou as coisas que a cobriam, e ela olhou para cima: um rosto inexpressivo, completamente sem plos, que deu um sorriso perverso. Ela rolou e se

contorceu, e a lmina da faca, pronta para atingir seu peito, cortou-lhe o brao. At aquele momento, ela nunca pensara que conseguiria. Nunca achou que pudesse sentir tanta coragem, ou tanto medo, ou tanto desespero para fazer aquilo. Mas ela ergueu uma mo at o peito dele e abriu... Ele arfou e caiu sobre ela. Sua mo estava molhada, morna, escorregadia. Arrastando-se, ela saiu de baixo do homem e fugiu aos tropeos daquele lugar. Do lado de fora, havia um tnel estreito e baixo. Ali, apoiada na parede, enquanto engasgava e chorava, recuperou o flego. Suas ltimas energias se foram. Estava esgotada. O ombro comeou a pulsar. A faca, pensou. Mas agora estava a salvo. Ora, ora, ora disse uma voz na escurido, sua direita. Ela sobreviveu ao senhor Ross. Eu nunca imaginaria uma coisa dessas, senhor Vandemar. A voz escorria. Soava gotejante e desagradvel, como muco cinzento. Nem eu, senhor Croup respondeu uma voz montona sua esquerda. Uma chama se acendeu e tremulou. Seja como for continuou o senhor Croup, com os olhos brilhando na escurido , no sobreviver a ns. Door lhe deu uma joelhada bem forte na virilha e pulou para a frente, com a mo

direita sobre o ombro esquerdo. E correu. *** Dick? Richard fez um sinal com a mo para que a pessoa no o interrompesse. A vida j estava quase de volta aos eixos, agora. S mais um minutinho... Gary repetiu: Dick, j so seis e meia. Qu? Havia papis, canetas, planilhas e trasgos cados sobre a pasta de Richard. Ele a fechou e saiu correndo. Enquanto saa, pegou o casaco. Gary o seguia. A gente vai tomar aquela, ento? Richard parou um instante. Pensou que, se desorganizao virasse esporte olmpico, ele poderia competir pela Inglaterra. Gary, desculpe. Mancada minha. Preciso ver a Jessica hoje. Vamos jantar com o chefe dela. O senhor Stockton? Da Stocktons? O senhor Stockton em pessoa? Richard assentiu com a cabea. Desceram correndo pela escada. Voc vai se divertir disse Gary, mentindo. E como vai o Monstro da Lagoa Negra?

Na verdade, Jessica de Ilford, Gary. E, sim, ela continua sendo o amor da minha vida. Obrigado pela ateno. Os dois chegaram entrada, e Richard correu para a porta automtica, que se recusava a abrir. J passa das seis, senhor Mayhew disse o senhor Figgis, segurana do prdio. Voc precisa assinar aqui. Era s o que me faltava resmungou Richard. Mesmo. O senhor Figgis tinha um leve cheiro de ungento. Corria o boato de que tinha uma coleo enciclopdica de pornografia light. Ele vigiava aquelas portas com um cuidado que beirava a loucura, e mal conseguiu sobreviver noite em que os computadores de um andar inteiro tiveram que ser enviados para cima, junto com dois vasos de palmeiras e o tapete Axminster do diretor. No vamos mais beber, n? Desculpe, Gary. Pode ser na segunda? Claro, segunda est timo. A gente se v. O senhor Figgis checou as assinaturas e ficou satisfeito por eles no carregarem consigo nenhum computador, vaso de palmeira ou tapete. Pressionou o boto sob a mesa e a porta se abriu. Essas portas! reclamou Richard.

*** O subsolo se dividia cada vez mais. Ela escolhia o caminho a esmo, andando abaixada pelos tneis, correndo, tropeando, esgueirando-se. Atrs dela vinham calmamente o senhor Croup e o senhor Vandemar, to serenos quanto dois vitorianos ilustres visitando a grande exposio de 1851 no Crystal Palace. Quando chegavam a uma encruzilhada, o senhor Croup se ajoelhava e procurava a mancha de sangue cujo rastro seguiriam. Agiam como hienas, cansando a presa. Eles podiam esperar. Tinham todo o tempo do mundo. *** Por milagre, Richard estava com sorte. Pegou um txi preto dirigido por um homem idoso, que o levou para casa por uma rota incomum, por ruas que ele nunca vira antes, tagarelando (Richard descobrira que todos os taxistas de Londres desembestavam a falar se houvesse algum no carro que respirasse e falasse ingls) sobre os problemas do trnsito da cidade, como lidar com o crime e os delicados assuntos polticos do dia. Richard desceu do carro, deixou uma gorjeta e sua pasta. Conseguiu par-lo antes que sasse rua afora, pegou de volta a pasta e subiu

correndo as escadas de seu apartamento. J chegou tirando as roupas. A pasta voou pela sala e caiu sobre o sof. Ele pegou as chaves do bolso e as colocou estrategicamente sobre a mesinha da entrada, para no esquec-las. Voou para o banheiro. O interfone tocou. Richard, j quase todo dentro de seu melhor terno, correu para atender. Richard? a Jessica. Espero que j esteja pronto. Ah, sim. Estou descendo. Pegou um casaco e saiu apressado, batendo a porta atrs de si. Jessica estava esperando l embaixo, na escada. Sempre esperava por ele ali. Ela no gostava do apartamento de Richard: era feminina demais para o lugar. Havia sempre a possibilidade de achar uma cueca em algum canto, isso sem falar nos pedaos de pasta de dente endurecida sobre a pia do banheiro. No, no era o tipo de lugar que ela apreciava. Jessica era muito bonita, tanto que s vezes Richard a olhava e pensava o que deu nela, pra ficar comigo? noite, depois do sexo que acontecia no apartamento dela, no luxuoso bairro de Kensington, em uma cama de bronze com lenis de linho (os pais de Jessica diziam que edredons eram decadentes) , ela o abraava bem forte no escuro, e seus longos cachos castanhos caam sobre o peito dele. Ela sussurrava o

quanto o amava, e ele dizia que a amava e que queria sempre ficar com ela, e ambos acreditavam que aquilo era verdade. *** Puxa vida, senhor Vandemar. Ela est ficando mais lenta. Bem mais lenta, senhor Croup. Ela deve estar perdendo muito sangue, senhor V. Bastante sangue, senhor C. Um sangue belo, mido. Falta pouco. Um clique: o som de um canivete se abrindo. Um som vazio, solitrio, escuro. *** O que voc est fazendo, Richard? Nada, Jessica. Voc no esqueceu as chaves de novo, n? No, Jessica. Richard parou de bater nos bolsos do casaco e enfiou as mos neles. Bom, daqui a pouco, quando voc conhecer o senhor Stockton, tenha em mente que ele no apenas um homem muito importante. Ele , por si s, uma entidade empresarial.

Mal posso esperar suspirou ele. Como assim, Richard? Mal posso esperar repetiu, agora com entusiasmo. Por favor, vamos rpido pediu ela, que comeava a exalar uma aura de algo que, em uma mulher inferior, pareceria nervosismo. No podemos deix-lo esperando. No mesmo, Jess. No me chame assim, Richard. Detesto apelidos. So to degradantes. D um trocado? Era um homem sentado na entrada de uma loja. Tinha uma barba grisalha e amarelada; os olhos eram fundos, escuros. No seu pescoo, presa a um barbante desgastado, estava pendurada uma placa escrita a mo, que ficava apoiada em seu peito. Todos que tivessem olhos para ler saberiam que ele no tinha onde morar e estava com fome. Nem era preciso uma placa, bastava olhar para ele. Richard, j com a mo no bolso, procurou uma moeda. Richard, a gente no tem tempo para isso disse Jessica, que fazia doaes e era tica em seus investimentos. Olha, eu quero que voc cause uma boa impresso como meu noivo. vital que um futuro marido deixe uma boa imagem. A testa de Jessica se enrugou e ela o

abraou por um instante: Ah, Richard. Eu te amo de verdade. Voc sabe disso, n? Richard assentiu com a cabea. Ele sabia. Jessica viu as horas em seu relgio e comeou a andar mais rpido. Richard jogou escondido uma moeda de uma libra na direo do homem, que a pegou com sua mo suja. No houve nenhum problema com a reserva, certo? perguntou ela. Richard, que no sabia mentir muito bem quando lhe faziam uma pergunta direta, respondeu: H... *** Ela fizera a escolha errada o corredor terminava numa parede. Em circunstncias normais, aquilo no a faria parar, mas estava to cansada, to faminta, sentia tanta dor... Apoiou-se na parede, sentindo a aspereza dos tijolos contra o rosto. Resfolegava, soluava, chorava. Seu brao estava frio; sua mo esquerda, dormente. No podia continuar e o mundo parecia cada vez mais distante. Tinha vontade de parar, deitar e dormir mil anos. Pela minha negra alma, senhor Vandemar! O senhor est vendo o mesmo que eu? A voz era suave, prxima. Deviam

estar mais perto do que ela tinha pensado. Creio estar vendo uma coisinha que... ...estar mortinha daqui a pouco, senhor Croup disse a voz montona, acima dela. O chefe ficar encantado. De toda a dor e medo que sentia no fundo da alma, a menina extraiu o resto de fora que tinha. Estava cansada, esgotada, exausta. No tinha para onde ir, sentia-se fraca, no tinha tempo. Mesmo que seja a ltima porta que eu abra, pediu, em silncio, rogando ao Templo, ao Arco. Algum lugar... Qualquer lugar... Seguro... e ento pensou, com vontade: Algum. Quando comeou a desmaiar, tentou abrir uma porta. No momento em que a escurido a engoliu, pde ouvir a voz distante do senhor Croup: Com mil demnios!. *** Jessica e Richard seguiam pela calada, de braos dados, em direo ao restaurante. Ela andava o mais rpido que seus sapatos de salto alto permitiam, e ele se apressava para a acompanhar. As luzes da rua e das fachadas das lojas iluminavam o caminho. Passaram por alguns edifcios grandes e imponentes, abandonados e solitrios, envoltos por um

muro alto de tijolos. srio que precisou prometer cinqenta libras a mais para conseguir uma mesa? Voc um idiota, Richard disse Jessica, seus olhos escuros faiscando de raiva. Eles perderam a minha reserva. E disseram que todas as outras mesas estavam reservadas. Seus passos ecoavam no muro alto de tijolos. Aposto que vo nos colocar perto da cozinha, ou da porta. Voc disse que era uma mesa para o senhor Stockton? Sim. Jessica suspirou. Continuou a pux-lo, enquanto uma porta se abriu no muro, alguns metros frente deles. Algum saiu por l e ficou em p, cambaleando por um longo e terrvel momento. Por fim, caiu no concreto. Richard estremeceu e parou de andar. Jessica lhe deu um puxo para que no parasse. Olhe, quando voc estiver conversando com o senhor Stockton, no o interrompa de jeito nenhum, nem discorde dele. Ele no gosta de ser contrariado. Quando ele fizer uma piada, voc ri. Se estiver em dvida se ou no uma piada, olhe para mim. Eu... hum... vou bater o dedo de leve na mesa. Eles chegaram at a pessoa cada na

calada. Jessica passou por cima do corpo amarfanhado, como se fosse um obstculo. Richard parou. Jessica? , tem razo. Se eu fizer isso, ele pode achar que estou entediada disse ela. E completou, radiante: J sei! Se ele fizer uma piada, vou tocar o lbulo da orelha. Jessica? Ele no conseguia acreditar que ela simplesmente ignorava a pessoa cada sua frente. Qu? Jessica no parecia feliz com a interrupo de seu devaneio. Olha! Ele apontou para a calada. A pessoa estava com o rosto para baixo, envolta em roupas largas. Jessica pegou o brao de Richard e o puxou para perto dela. Ah, t. Richard, voc sabe como esse povo: se voc d a mo, eles logo querem o brao. Todos eles tm casa, na verdade. Depois que dormir bastante, ela vai ficar bem, tenho certeza. Ela? Richard olhou. Era mesmo uma moa. Continuando: eu falei para o senhor Stockton que ns... Richard se abaixou, apoiando-se em um dos joelhos.

Richard? O que voc est fazendo? Ela no est bbada, est ferida. Olhou para seus prprios dedos. E est sangrando. Jessica se virou para ele, nervosa e confusa. Ns vamos nos atrasar. Ela est ferida. Jessica olhou para a moa deitada na calada. Prioridades. Richard no tinha prioridades. Richard, ns vamos chegar tarde. Outra pessoa vai aparecer. Outra pessoa vai ajud-la. O rosto da moa estava sujo, as roupas, molhadas de sangue. Ela est ferida repetia ele, apenas. Seu rosto tinha uma expresso que Jessica nunca vira antes. Richard! gritou ela, em tom de ameaa. Em seguida, abrandou a voz um pouco e resolveu fazer um acordo. Ento ligue para a emergncia e chame uma ambulncia. Vai, rpido! De repente os olhos da menina se abriram, muito brancos no rosto coberto por sujeira e sangue. Com voz fraca, ela disse: Pro hospital no, por favor. Eles vo me achar. Me leve pra algum lugar seguro. Por favor. Mas voc est sangrando

respondeu Richard. Ele tentou ver de onde ela tinha surgido, mas o muro de tijolos estava intacto, sem nenhuma entrada ou sada. Voltou os olhos para o corpo imvel no cho e perguntou: Por que no um hospital? Por favor, me ajude sussurrou a menina, fechando os olhos. Ele perguntou mais uma vez: Por que voc no quer ir para um hospital? Mas dessa vez no houve resposta. Quando voc chamar a ambulncia, no diga seu nome. Talvez eles queiram que voc preste depoimento ou coisa do tipo, e a vamos nos atrasar... Richard? O que voc est fazendo? Ele tinha pegado a garota no colo, aninhando-a nos braos. Ficou surpreso ao perceber como era leve. Vou lev-la para casa, Jess. No posso deix-la aqui. Diga ao senhor Stockton que sinto muitssimo, mas era uma emergncia. Tenho certeza de que ele vai entender. Richard Oliver Mayhew disse Jessica, friamente. Ponha essa garota no cho e volte aqui agora mesmo. Ou nosso noivado acaba neste instante. Estou avisando. Ele sentiu o sangue morno e pegajoso ensopando sua camisa. s vezes, ponderou,

no h alternativa. Foi embora, deixando Jessica para trs. Ela ficou l, de p na calada, os olhos cheios dgua. *** Richard no parou para pensar em momento algum. Ele no tinha nenhum controle sobre aquilo. Em algum lugar, na parte sensata de seu crebro, algum um Richard Mayhew normal e sensato dizia-lhe o quanto estava sendo ridculo; que deveria apenas ter chamado a polcia, ou uma ambulncia; que era perigoso levantar uma pessoa ferida; que ele tinha irritado Jessica de verdade; que ele teria que dormir no sof aquela noite; que ele estava arruinando seu nico terno decente; que a menina cheirava muito mal... Mas Richard apenas colocava um p frente do outro e, com cibra nos braos e dores nas costas, ignorando os olhares das outras pessoas, continuava a andar. Depois de certo tempo, j tinha chegado ao andar trreo de seu prdio. Subiu a escada e estava porta de seu apartamento, quando se deu conta de que havia deixado as chaves na mesa da sala, l dentro... A menina levou uma mo suja at a porta, e ela se abriu. Nunca pensei que fosse ficar feliz ao perceber que no tinha fechado a casa

direito, pensou Richard, levando a menina para dentro e batendo a porta atrs de si com o p. Colocou-a sobre a cama. Sua camisa estava ensopada de sangue. Ela parecia semiconsciente. Suas plpebras estavam fechadas, mas trmulas. Richard tirou o casaco de couro que ela usava. Na parte superior do brao havia um corte comprido, que ia at o ombro. Ele recuperou o flego e disse, com voz calma: Olha, vou chamar um mdico. Est me ouvindo? Os olhos dela se abriram, grandes e assustados. No, por favor! Eu vou ficar bem. No est to ruim quanto parece. S preciso dormir. Nada de mdico. Mas o seu brao... o seu ombro... Eu vou ficar bem. Amanh. Por favor? Ela falava quase em um sussurro. Hum... Acho que tudo bem, ento concordou Richard. Com a sanidade voltando, perguntou: Olha, ser que voc pode me dizer... Mas ela tinha adormecido. Richard pegou um velho cachecol em seu armrio e o amarrou bem apertado sobre o brao e o ombro dela no queria que ela sangrasse at morrer em sua cama antes de chamar um mdico. Saiu do quarto na ponta dos ps, fechando a porta atrs de si. Sentou-se no

sof, em frente TV, e ficou pensando que diabo havia feito.

DOISELE EST EM ALGUM LUGAR NO SUBSOLO: TALVEZ NUM TNEL OU NO ESGOTO. A luz trmula, e mais expe a escurido do que a dissipa. Ele no est s. H outras pessoas caminhando a seu lado, embora no consiga ver o rosto delas. Correm pelo esgoto, pisando na gua lamacenta e suja. Gotas de gua caem devagar pelo ar, muito ntidas na escurido. Ele vira uma esquina e v o animal sua espera. enorme. Preenche todo o espao do canal do esgoto: sua imensa cabea est abaixada, seu plo est arrepiado, possvel ver sua respirao quente naquele ar frio. Parece um tipo de javali, ele pensa, mas se d conta de que nenhum javali podia ser to

grande. Tem o tamanho de um touro, de um tigre, de um boi. O animal o olha, faz uma pausa que parece durar cem anos, e enquanto isso ele levanta sua lana. Segurando-a, olha para sua prpria mo e percebe que no sua mo: seu brao est coberto por plos escuros, as unhas so quase garras. O animal corre para atac-lo. Ele joga a lana, mas j tarde demais: sente as presas afiadas rasgarem seu flanco, sente sua vida se esvair na lama. Sente que caiu de rosto na gua, que vai ficando vermelha com as espirais do sangue sufocante. Ele tenta gritar, acordar, mas s consegue respirar lama, sangue, gua, s consegue sentir dor... Pesadelo? perguntou a moa. Richard se sentou no sof, ofegante. As cortinas ainda estavam fechadas, a luz, acesa, e a TV, ligada, mas ele sabia, por causa da luz plida que entrava pelas frestas, que j era de manh. Procurou no sof o controle remoto, que tinha escorregado para atrs dele durante a noite, e desligou a TV. . Mais ou menos respondeu. Esfregando os olhos, livrou-se do que restava de sono e averiguou seu prprio estado: ficou feliz em perceber que pelo menos tirara os sapatos e o palet antes de adormecer. A frente de sua camisa estava

coberta com sangue ressecado e sujeira. A menina de rua no dizia nada. Ela no parecia bem: seu corpo plido e pequeno estava imundo, envolto em sangue ressecado. Vestia vrias roupas, uma por cima da outra peas estranhas, veludo sujo, rendas enlameadas, rasges e buracos atravs dos quais era possvel ver outras roupas, de diferentes estilos. Para Richard, era como se ela tivesse assaltado a seo de Histria da Moda do Victoria and Albert Museum durante a madrugada e estivesse usando tudo que conseguira roubar. Seus cabelos curtos estavam emporcalhados, mas pareciam ter uma cor avermelhada e escura por baixo de toda aquela sujeira. Voc acordou disse Richard. A quem pertence esta baronia? Quem o senhor destas terras? Ahm... qu? Ela olhou em volta, desconfiada. Onde estou? Newton Mansions, Little Comden Street... Ele parou de falar. Ela tinha aberto as cortinas e piscava luz fria da manh. A garota contemplava admirada a vista absolutamente comum da janela de Richard, observando com olhos arregalados os carros, os nibus e as poucas lojas l embaixo uma padaria, uma drogaria e uma adega.

Estou na Londres-de-Cima disse ela, em voz baixa. Sim, voc est em Londres respondeu Richard. Em cima do qu? perguntou-se. Acho que voc entrou em choque ontem noite, ou algo assim. Est com um corte bem feio a no brao. Esperou que ela respondesse ou explicasse alguma coisa. Ela olhou de relance para ele, mas logo voltou aos nibus e s lojas. Richard continuou: Eu, h, te encontrei na calada. Voc estava toda ensangentada. No se preocupe ela disse, sria. A maior parte do sangue no era minha, era de outra pessoa. Ela deixou a cortina cair, cobrindo a janela. Comeou a desenrolar o cachecol do brao, agora coberto de sangue ressecado. Examinou o corte e fez uma careta. Acho que preciso cuidar disso. Me ajuda? Richard comeou a se sentir meio incompetente. Eu no tenho muita prtica com primeiros socorros. Bom, se voc for muito fresco, s precisa segurar as ataduras e amarrar as pontas onde eu no conseguir alcanar. Tem ataduras a, no tem? Ah, sim. No kit de primeiros socorros.

No banheiro, embaixo da pia. E ento ele entrou no banheiro e trocou de roupa, pensando se seria possvel remover toda aquela sujeira da camisa (sua melhor camisa, um presente de ai, meu Deus Jessica. Ela teria um ataque se visse aquilo). *** A gua com sangue o lembrou de algo, algum sonho que tivera, talvez. Esforou-se, mas no conseguia lembrar exatamente o que era. Puxou a tampa da pia, esperou a gua descer e encheu-a novamente com gua limpa, qual acrescentou uma gota de gua sanitria, formando uma mistura turva: o cheiro pungente e anti-sptico tinha algo de sisudo e teraputico. Era um remdio para curar a estranheza da situao e de sua hspede. A moa se debruou sobre a pia, e ele jogou gua morna no brao e no ombro dela. Richard nunca era to enjoado quanto pensava ser. Na verdade, ele sentia enjo quando via sangue em filmes: um bom filme de zumbis ou at mesmo um seriado de hospital com cenas fortes era capaz de deixlo encolhido num canto, ofegante, as mos sobre os olhos, murmurando coisas como Me avise quando terminar. Mas, quando o assunto era sangue real, dor de verdade, ele

apenas agia. Limparam o corte (que era bem menos profundo do que ele se lembrava da noite anterior) e colocaram uma atadura. A moa se esforou para no fazer caretas. Ele ficou imaginando que idade ela teria, como seria por baixo daquela sujeira toda, por que estava morando na rua e... Qual o seu nome? perguntou ela. Richard. Richard Mayhew. Dick. Ela balanou a cabea, como se estivesse memorizando as palavras. A campainha tocou. Richard olhou para a baguna do banheiro e para a garota, e imaginou o que algum de fora pensaria sobre aquilo, como, por exemplo... Ai, meu Deus disse ele, dando-se conta da situao. a Jess! Ela vai me matar. Reduo de danos. Reduo de danos. Escuta, voc espera aqui. Ele fechou a porta do banheiro atrs de si e caminhou pelo corredor. Abriu a porta da frente e soltou um profundo suspiro de alvio. No era Jessica. Eram... Mrmons? Testemunhas de Jeov? Policiais? Ele no fazia idia. O que quer que fossem, eram dois. Usavam ternos pretos, um pouco sujos e rotos, e at mesmo Richard, que se considerava dislxico em termos de moda, achou que havia algo de estranho no corte dos palets. Pareciam ter sido feitos h 200 anos, por um alfaiate que se baseou na

descrio de um terno moderno, sem nunca ter visto um. As linhas e os detalhes eram bastante estranhos. Uma raposa e um lobo, pensou, sem querer. O homem frente, a raposa, era um pouco mais baixo do que Richard. Tinha cabelo liso, oleoso, de uma cor laranja surreal, e a pele plida. Quando Richard abriu a porta, ele deu um largo sorriso, alguns segundos mais tarde do que seria o esperado. Seus dentes lembravam um acidente num cemitrio. Um belo dia para o senhor, meu bom homem disse ele , nesta manh to linda. H... Ol respondeu Richard. Estamos fazendo uma busca pessoal, de natureza delicada, digamos, de porta em porta. Importa-se se adentrarmos vosso recinto? Bom... agora no a melhor hora disse Richard. E acrescentou: Vocs so da polcia? O outro homem, alto, que Richard achou parecido com um lobo, tinha cabelo grisalho, cortado bem curto. Estava um pouco atrs do primeiro, segurando uma pilha de papis contra o peito. Ele no falara nada at aquele momento apenas esperara, imponente, aptico. E ento riu, s uma vez, um riso baixo e imoral. Havia algo doentio naquela

risada. A polcia? Ai de ns! exclamou o homem mais baixo. No temos tal felicidade. Uma carreira no ofcio da lei, embora sem dvida atraente, no estava nas cartas que a Dama da Fortuna deu a mim e a meu irmo. No, somos apenas cidados comuns. Permita que nos apresentemos. Eu sou o senhor Croup, e este cavalheiro o meu irmo, senhor Vandemar. Eles no pareciam irmos. Na verdade, no se pareciam com nada que Richard j tivesse visto. Seu irmo? perguntou ele. Mas ento vocs no deveriam ter o mesmo sobrenome? Estou impressionado. Que crebro, senhor Vandemar. Seria pouco dizer que um cavalheiro de inteligncia sagaz, de raciocnio afiado. Algumas pessoas so to afiadas comentou ele, enquanto chegava mais perto de Richard, ficando na ponta dos ps at chegar altura de seu rosto que at poderiam se cortar acidentalmente. Richard deu um passo involuntrio para trs. Poderamos, por obsquio, entrar? perguntou o senhor Croup. O que vocs querem? O senhor Croup suspirou de uma forma que lhe pareceu muito melanclica. Ento

disse: Estamos procurando nossa irm. Uma criana excntrica, obstinada e teimosa, que quase partiu o corao de nossa querida me, uma viva. Ela fugiu explicou o senhor Vandemar, calmo. Colocou uma das folhas de papel na mo de Richard. Ela meio... estranha acrescentou, girando o dedo perto da tmpora, no gesto que todos usam para indicar problemas mentais. Richard olhou para o papel, onde estava escrito: VOC VIU ESTA MOA? Abaixo da frase havia a fotografia (acinzentada pela cpia) de uma moa que pareceu a Richard uma verso mais limpa e com cabelos mais compridos da que estava em seu banheiro. Sob a foto, liam-se as palavras: ELA SE CHAMA DOREEN. MORDE E CHUTA. FUGIU DE CASA. INFORME-NOS CASO A TENHA VISTO. NS A QUEREMOS DE VOLTA. PAGA-SE RECOMPENSA. E, abaixo de tudo isso, um nmero de telefone. Richard olhou de novo a foto. Sem dvida era a moa que estava no banheiro. No. No vi essa moa. Sinto muito. O senhor Vandemar, no entanto, no estava prestando ateno: esticando o

pescoo, farejava o ar como algum que tenta descobrir de onde vem um cheiro ruim. Richard lhe devolveu o papel, mas o homem o empurrou e simplesmente passou por ele, entrando no apartamento, como um lobo farejando a presa. Richard correu atrs. O que voc pensa que est fazendo? Pare com isso! Saia! Olha, voc no pode entrar a... O homem foi direto para o banheiro. Richard esperava que a moa Doreen? tivesse a presena de esprito de trancar a porta. Mas ela se escancarou com um empurro do senhor Vandemar. Ele entrou, e Richard, sentindo-se como um pequeno e inofensivo co que late aos ps de um carteiro, seguiu-o. No era um banheiro grande. Havia uma banheira, um vaso, uma pia, alguns frascos de xampu, um sabonete e uma toalha. Quando Richard sara dali, alguns minutos antes, havia tambm uma moa suja e ensangentada, uma pia mais ensangentada ainda e um kit de primeiros socorros aberto. Agora, o banheiro estava completamente limpo. E no havia lugar onde a moa pudesse ter se escondido. O senhor Vandemar saiu do banheiro, abriu a porta do quarto de Richard, entrou e olhou ao redor. No sei o que voc acha que est

fazendo, mas vou chamar a polcia se os dois no sarem do meu apartamento neste exato momento! Ento o senhor Vandemar, que estava examinando a sala de estar de Richard, virouse para ele. Richard constatou que nunca sentira tanto medo de uma pessoa em sua vida. Mas o senhor Croup, o que parecia uma raposa, disse: Ora, o que houve com voc, senhor Vandemar? Imagino que a tristeza causada por nossa doce irmzinha o tenha deixado meio desequilibrado. Pea desculpas ao cavalheiro. O lobo meneou a cabea e pensou por um instante. Achei que precisasse usar o banheiro. Mas no precisava. Desculpe. O senhor Croup comeou a andar pelo corredor, empurrando o senhor Vandemar. Pronto. Espero que possa perdoar os maus modos e a indelicadeza de meu irmo. Acredito que a preocupao com nossa pobre e viva me, e tambm com nossa irm, que no exato momento em que confabulamos deve estar andando sozinha pelas ruas de Londres, desamparada, sem cuidados, o tenha deixado um tanto perturbado. Mas apesar disso ele um bom sujeito, cuja companhia valiosa. No mesmo, meu

robusto camarada? Eles j estavam fora do apartamento de Richard, descendo as escadas. O senhor Vandemar no dizia nada. No parecia transtornado pela tristeza. Croup se virou para Richard e ensaiou outro sorriso de raposa. Avise-nos se a vir disse. Adeus respondeu Richard. E trancou a porta. Pela primeira vez desde que se mudara, colocou tambm a corrente de segurana. *** O senhor Croup, que havia cortado o telefone de Richard assim que ele ameaara chamar a polcia, comeou a imaginar se tinha cortado o fio certo. A tecnologia da telecomunicao do sculo XX no era o seu forte. Pegou uma das cpias com Vandemar e apoiou-a sobre uma das paredes da escada. Cuspa! ordenou. Vandemar puxou um bocado de catarro do fundo da garganta e deu uma cusparada certeira no verso do papel. O senhor Croup o pressionou bem forte contra a parede, perto da porta de Richard. O papel ficou imediatamente grudado. Nele lia-se: VOC VIU ESTA MOA? O senhor Croup virou-se para o senhor

Vandemar: Voc acredita nele? Viraram-se e desceram as escadas. Acredito coisa nenhuma. Eu senti o cheiro dela. *** Richard esperou perto da porta at ouvir o porto de entrada do prdio bater, vrios andares abaixo. Virou-se e seguiu pelo corredor, em direo ao banheiro, quando o telefone tocou muito alto, dando-lhe um susto. Correu de volta e atendeu. Al? Al? No havia som algum. Em vez disso, ouviu um clique, e a voz de Jessica surgiu da secretria eletrnica ao lado do telefone. Richard? Aqui a Jessica. Pena voc no estar em casa, porque essa seria a nossa ltima conversa, e eu queria falar diretamente com voc. Ele se deu conta de que o telefone no estava funcionando. Seguiu o fio uns trinta centmetros, at que encontrou um corte entre o gancho e o aparelho. Voc me envergonhou muito na noite passada, Richard continuava a voz na secretria. Por mim, nosso noivado acabou. No tenho inteno de devolver o anel nem de v-lo novamente. Adeus.

A fita parou de girar, houve outro clique e a luzinha vermelha comeou a piscar. Problemas? perguntou a garota. Ela estava em p logo atrs dele, na cozinha, com o brao bem enfaixado, pegando saquinhos de ch e os colocando nas canecas. Havia gua fervendo na chaleira. Sim. Problemas bem graves. Ele foi at ela e deu-lhe o cartaz que dizia VOC VIU ESTA MOA? voc, no ? perguntou. Ela ergueu uma sobrancelha. uma foto minha, sim. E voc se chama... Doreen? Ela fez que no com a cabea. Eu me chamo Door, Richardrichardmayhewdick. Aceita leite e acar? Ele estava completamente confuso. Disse: Richard. S Richard. Sem acar. Olha, se no for uma pergunta muito ntima, o que aconteceu com voc? Door derramou a gua fervente nas canecas. No interessa respondeu ela, simplesmente. Ah, bom, desculpe se eu... No, Richard. De verdade, no te interessa. No serviria para nada. Voc j fez mais do que deveria.

Ela retirou os saquinhos e lhe entregou a caneca com ch. Quando pegou a caneca, ele se deu conta de que ainda estava segurando o fone. Bom, sei l... eu no poderia ter te deixado cada no cho. Poderia, mas no deixou. Ela se encostou na parede e espiou pela janela. Richard foi at l e olhou tambm. Do outro lado da rua, o senhor Croup e o senhor Vandemar estavam saindo da padaria, e a frase VOC VIU ESTA MOA? aparecia com destaque na vitrine. Eles so mesmo seus irmos? Ah, claro que no! Ele tomou um gole do ch e tentou fingir que tudo estava normal. E ento, onde voc estava at agora h pouco? Estava aqui. Olha, com esses dois andando por a, precisamos enviar uma mensagem para... ela fez uma pausa. Para algum que possa ajudar. No posso sair daqui. Bom, no existe algum lugar para onde voc possa ir? Algum para quem possa ligar? Ela pegou o telefone mudo da mo dele, olhou para o fio solto, e fez que no com a cabea. Meus amigos no tm telefone.

Colocou o fone de volta no suporte, e ele ficou l, solitrio e intil. Ento ela sorriu, um sorriso rpido e travesso: Migalhas! H? Havia uma pequena janela no fundo do quarto, virada para uma rea onde se viam telhados e calhas. Door subiu na cama de Richard, abriu a janela e espalhou as migalhas de po. No estou entendendo disse Richard. Claro que no est concordou ela. Agora, quieto. Ouviu-se um bater de asas, e logo em seguida um brilho roxo-cinza-esverdeado confirmou a chegada de uma pomba. A ave ficou ciscando as migalhas, e Door a agarrou. A pomba olhou para ela com curiosidade, mas no se debateu. Sentaram-se na cama. Door pediu a Richard que segurasse o pssaro enquanto ela amarrava uma mensagem em sua perna, utilizando um elstico de azul intenso, que Richard at ento usara para manter as contas de luz juntas. Ele no ficava muito entusiasmado com a idia de segurar pombos, mesmo nos melhores dias. No vejo sentido nisso. Quer dizer, ele no um pombo-correio, s um pombo comum de Londres, daqueles que fazem coc

na esttua de Lord Nelson. Isso mesmo respondeu Door. A bochecha dela estava esfolada, e seu cabelo avermelhado e sujo estava embaraado, mas no totalmente emaranhado. E os olhos... Richard percebeu que no saberia dizer de que cor eram. No eram azuis, nem verdes, nem castanhos, nem cinzentos. Pareciam opalas brilhantes: havia aqui e ali um tom de verde e azul, e at tons vermelhos e amarelos, que desapareciam e cintilavam quando ela se mexia. Door pegou o pssaro das mos dele com cuidado e olhou em seus olhos. O pombo inclinou a cabea para um lado e a olhou de volta, com seus olhos redondos e negros. Pronto disse ela, e fez um barulho que parecia o sibilar dos pombos. Pronto, Crrpllrr, procure o marqus de Carabas. Entendeu? A pomba respondeu com outro sibilar. Boa menina. muito importante, ento melhor voc... a pomba a interrompeu com um rudo que soava impaciente. Desculpe continuou Door. claro que voc sabe o que est fazendo. Ento levou o pssaro at a janela e o soltou. Richard testemunhou tudo aquilo com certo espanto.

Quase acreditei que ela entendeu voc, sabia? disse, enquanto a pomba diminua no cu e desaparecia entre os telhados. Pois . Bom, agora, ns esperamos. Ela caminhou at a estante de livros que ficava no canto do quarto, achou uma edio de Mansfield Park, que Richard ignorava possuir, e foi para a sala. Richard a seguiu. Door se acomodou no sof e abriu o livro. Ento um apelido para Doreen? perguntou ele. O qu? O seu nome. No. S Door mesmo. E como se escreve? D-o-o-r. Que nem porta. Ah. Ele precisava dizer alguma coisa, ento disse: Mas que tipo de nome esse, Door? Encarando-o com seus olhos de cor estranha, ela retrucou: o meu nome. E voltou a ler Jane Austen. Richard pegou o controle remoto e ligou a televiso. Mudou o canal. Mudou de novo. Suspirou. Mudou mais uma vez. E a? O que estamos esperando? Door virou uma pgina. No olhou para ele. Uma resposta.

Que tipo de resposta? Ela encolheu os ombros. Hum. T disse Richard. Reparou que a pele dela era muito branca, agora que parte do sangue e da sujeira tinha sado. Ficou imaginando se era daquela cor porque estava doente, porque tinha perdido muito sangue, se no saa muito ao sol, ou se era anmica. Talvez ela tivesse passado um tempo na priso, embora parecesse nova demais para isso. Talvez o grandalho tivesse sido sincero ao dizer que ela era louca. Escuta, aqueles homens que vieram aqui... Homens? Os olhos cor de opala cintilaram. Croup e... h... Vanderbilt. Vandemar corrigiu ela, rindo um pouco e depois concordando com a cabea. Acho que podemos cham-los de homens. Cada um tem dois braos, duas pernas, uma cabea. Richard continuou a falar. Quando eles vieram aqui... onde voc estava? Ela lambeu o dedo e virou outra pgina. Eu estava aqui. Mas... ele no tinha o que dizer. No havia nenhum lugar no apartamento onde ela pudesse ter se escondido. Mas ela

no tinha sado de l. No entanto... Ouviu-se o barulho de algo raspando no cho, e um vulto escuro, maior do que um camundongo, saiu correndo do meio das fitas de vdeo embaixo da TV. Deus do cu! exclamou Richard, jogando o controle remoto na coisa com toda a fora. O controle caiu no meio das fitas com um estrondo. Mas no havia sinal do vulto. Richard! gritou Door. Est tudo bem. Acho que era s um rato ou algo assim. Ela o fuzilou com o olhar. Claro que era um rato! Agora voc o assustou, coitadinho. Door procurou pela sala, assoviando de leve entre os dentes da frente. Ei! chamou ela. Ajoelhou-se no cho, deixando Mansfield Park abandonado. Ei! Ela voltou os olhos para Richard. Ah, se voc o machucou... ameaou, e ento, com uma voz suave, disse para a sala em geral: Desculpe. Ele um idiota. Algum a? Eu no sou idiota. Xiu! Tem algum a? Um nariz rosa e dois pequenos olhos negros apareceram embaixo do sof, seguidos do resto da cabea, e o rato examinou tudo ao redor, desconfiado. Richard

teve certeza de que era grande demais para ser s um camundongo. Oi! disse Door, alegre. Voc est bem? Ela estendeu a mo. O animal subiu at se abrigar na dobra do brao. Door o acariciou com o dedo. Ele era marrom-escuro e tinha um longo rabo cor-de-rosa. Havia algo parecido com um pedao de papel dobrado preso a seu corpo. um rato! disse Richard. Sim, um rato. Voc no vai pedir desculpas? Qu? Pea desculpas. Talvez ele no tivesse ouvido direito. Talvez fosse ele o louco. Pedir desculpas a um rato? Door no respondeu nada, mas seu silncio dizia tudo. Desculpe se o assustei disse Richard para o rato, com ar muito digno. O rato olhou para Door. No, ele est pedindo desculpas de verdade. No est dizendo s por dizer. E ento? O que voc trouxe para mim? Ela passou os dedos pelo corpo do rato e puxou um pedao de papel marrom, dobrado diversas vezes. Estava preso com algo que, para Richard, parecia um elstico de azul intenso.

Door abriu o papel: tinha as bordas gastas e estava escrito em tinta preta, com caligrafia angulosa. Ela leu e meneou a cabea. Obrigada disse ao rato. Obrigada por tudo. O bicho disparou para o sof, olhou Richard por um instante e desapareceu nas sombras. A garota chamada Door passou o papel para Richard. Tome. Leia. *** Era fim de tarde no centro de Londres e, com o outono chegando, j estava ficando escuro. Richard pegou o metr para a Tottenham Court Road e agora estava caminhando na direo oeste, descendo a Oxford Street, segurando um pedao de papel. A Oxford Street era o centro comercial de Londres, e mesmo naquela hora as caladas estavam cheias de turistas e compradores. uma mensagem do marqus de Carabas disse ela, dando-lhe o papel. Richard j tinha ouvido falar naquele nome. Legal. Mas ele no podia ter mandado um carto-postal?

Assim mais rpido. Passou pela barulhenta e iluminada megastore da Virgin, pela loja que vendia chapus de policiais londrinos e pequenos nibus vermelhos como suvenires, pela lanchonete que servia pizza em pedaos e virou direita. Voc precisa obedecer s instrues escritas. Tente no ser seguido ela suspirou e completou: Eu no devia te envolver nisso desse jeito. Se eu seguir as instrues... voc vai sair da minha casa mais rpido? Sim. Richard virou na Hanway Street. Embora tivesse dado apenas alguns passos alm do burburinho iluminado da Oxford Street, era como se ele estivesse em outra cidade. A Hanway Street estava vazia, esquecida: uma rua escura e estreita, quase um beco, cheia de lojas de discos sombrias e restaurantes fechados. A nica luz vinha dos bares meio escondidos nos andares superiores dos prdios. Apreensivo, ele manteve seu percurso. Vire direita na Hanway Street, depois esquerda na Hanway Place e depois direita de novo, na Orme Passage. Pare no primeiro poste... Tem certeza de que isso est certo? Tenho.

Richard no se recordava de uma Orme Passage, embora j tivesse ido Hanway Place: l havia um restaurante indiano no subsolo, um lugar de que seu amigo Gary gostava muito. At onde conseguia se lembrar, a Hanway Place era um beco sem sada. O restaurante se chamava The Mandeer. Ele passou pela porta do restaurante, muito iluminada, a escada o instigando a descer at o subsolo. Virou esquerda e... Ele estava errado. De fato havia uma Orme Passage. Havia uma placa com o nome, bem alto na parede. ORME PASSAGE Wl claro que ele no notara a passagem antes: era pouco mais do que uma viela estreita entre as casas, sob a luz intermitente de uma lmpada a gs. No se v mais esse tipo de lmpada por a, pensou Richard. Segurando o papel com as instrues perto da luz, ele percorreu as palavras. E a d trs voltas, widdershins? Widdershins significa no sentido antihorrio, Richard. Ele deu trs voltas, sentindo-se idiota. Escuta, por que eu preciso fazer tudo isso s para ver o seu amigo? Digo, essa bobagem toda... No bobagem, Richard. De verdade. S... tenta me agradar um pouco, vai? e

ela sorriu para ele. Richard parou de girar e desceu a ruazinha at o fim. Nada. Ningum. S uma lata de lixo de metal ao lado de algo que parecia uma pilha de trapos. Ol chamou Richard. Tem algum a? Sou amigo de Door. Algum? No. No havia ningum. Richard ficou aliviado. Agora ele podia ir para casa e explicar moa que nada havia acontecido. Ele chamaria as autoridades competentes, e elas resolveriam o problema. Amassou o papel numa bolinha e jogou na direo da lata de lixo. O que Richard julgara ser uma pilha de trapos se desdobrou, expandiu-se e ficou de p em um movimento suave. Uma mo apanhou a bolinha de papel no ar. Isto meu, suponho disse o marqus de Carabas. Ele vestia um enorme casaco negro, que no era um sobretudo nem uma capa de chuva, mas lhe conferia um toque dndi. Usava tambm botas pretas de cano alto e, por baixo do casaco, roupas em farrapos. Seus olhos eram muito brancos e seu rosto, muito escuro. Ele sorriu com dentes alvos por um instante, como se tivesse lembrado de algo engraado, e fez uma reverncia a Richard, dizendo: De Carabas, a seu dispor. E voc se chama...?

H... ... Hum... Voc Richard Mayhew, o jovem que resgatou Door quando ela se feriu. Como ela est agora? H... Ela est bem. Quer dizer, o brao ainda est meio... Sua rpida recuperao sem dvida nos deixar surpresos. A famlia dela tinha um fantstico poder de se curar. Impressionante que algum tenha conseguido mat-los, no acha? O homem que chamava a si prprio de marqus de Carabas caminhava para l e para c na viela, inquieto. Richard j tinha percebido que ele era o tipo de pessoa que est sempre em movimento, como um grande felino. Algum matou a famlia de Door? No chegaremos a lugar nenhum se voc ficar repetindo tudo o que eu disser, no mesmo? disse o marqus, agora de frente para Richard. Sente-se ordenou. Richard olhou em volta em busca de algo onde pudesse se sentar. O marqus ps a mo no ombro dele e o empurrou, derrubando-o de costas na calada. Door sabe que meu preo no baixo. O que exatamente ela oferece em troca? Como? Qual o acordo? Ela o enviou aqui para negociar, meu jovem. Meu preo alto,

nunca fao nada de graa. Deitado no cho, Richard encolheu os ombros o mximo que sua posio permitia. Ela me pediu para lhe pedir que a acompanhe at a casa dela, seja l onde isso for, e arranje um guarda-costas. Mesmo quando o marqus estava quieto, seus olhos nunca paravam de se mexer para cima, para baixo, em crculos, como se ele estivesse procurando algo ou pensando em algo, adicionando, subtraindo, avaliando. Richard se perguntou se ele no seria meio louco. E o que ela oferece em troca? Bom... nada. O marqus soprou as unhas e as poliu na lapela de seu belo casaco. E ento deu as costas a Richard. Nada. Ela no est me oferecendo nada. Parecia ofendido. Richard voltou a ficar de p. Bom, ela no falou em dinheiro, apenas disse que ficaria te devendo um favor. Os olhos dele brilharam. Que tipo de favor, exatamente? Um enorme favor. Ela disse que ficaria te devendo um enorme favor. De Carabas sorriu para si mesmo, como uma pantera faminta que acabou de avistar uma criana perdida no campo. Em seguida,

virou para Richard e disse: E voc a deixou sozinha? Com Croup e Vandemar solta? Ora, o que est esperando? O marqus se ajoelhou, pegou no bolso um pequeno objeto metlico e o encaixou na tampa de um bueiro, no canto da viela. Girou. A tampa saiu com facilidade. Colocou de lado o objeto metlico e pegou algo em outro bolso que pareceu a Richard um rojo ou sinalizador. De Carabas segurou o objeto com uma mo e alisou-o com a outra, fazendo surgir uma chama vermelha em sua extremidade. Posso fazer uma pergunta? disse Richard. Sem dvida que no. Voc no far perguntas. Nem obter respostas. No saia nunca do caminho. Nem pense sobre o que est acontecendo com voc agora. Entendeu? Mas... O mais importante de tudo: nada de mas. E o tempo muito valioso. Vamos andando. Ele apontou na direo das profundezas reveladas pelo bueiro aberto. Richard obedeceu, descendo a escadinha de metal acoplada parede do buraco. Sentiu-se numa situao to bizarra que perdeu a vontade de fazer perguntas.

*** Richard ficou se perguntando onde estariam. No parecia o esgoto. Talvez fosse um tnel para cabos de telefone ou trens muito pequenos. Ou para... alguma outra coisa. Deu-se conta de que no sabia muito a respeito do que havia sob as ruas de Londres. Caminhava nervoso, com medo de bater o p em algo, tropear e quebrar o tornozelo. De Carabas andava a passos largos na frente, impassvel, parecendo no se importar se Richard o seguia ou no. A chama vermelha lanava enormes sombras sobre as paredes do tnel. Richard correu para alcan-lo. Vejamos... disse de Carabas. Precisarei lev-la ao Mercado. O prximo vai acontecer em... hum... dois dias, se no me falha a memria, e, claro, ela nunca falha. Posso escond-la enquanto isso. Mercado? O Mercado Flutuante. Mas no te interessa. Chega de perguntas. Richard olhou em volta. Bom, eu ia perguntar onde ns estamos. Mas imagino que no v me responder. O marqus sorriu mais uma vez. Isso mesmo disse, em tom de aprovao. Voc j tem problemas demais. Nem me fale suspirou Richard.

Minha noiva me deixou, e eu talvez precise comprar um novo telefone... Ah, pelo Templo e o Arco! Um telefone o menor de seus problemas. De Carabas colocou o sinalizador no cho, apoiando-o na parede, onde ele continuou a cuspir sua luz, e comeou a subir degraus de metal soldados na lateral do tnel. Richard hesitou por um instante, mas o seguiu. Os degraus estavam frios, enferrujados. Ele conseguia sentir o material spero se desfazendo nas mos enquanto subia, e pedacinhos de metal enferrujado caam em seus olhos e sua boca. A luz vermelha l embaixo tremeluziu e apagou. Eles continuaram a subir, na total escurido. Estamos voltando para encontrar Door? Em breve. Preciso fazer uma coisinha antes, como garantia. E, quando vir a luz do dia, no olhe para baixo. Por que no? Foi quando a luz do dia atingiu seu rosto, e ele olhou para baixo. *** Era dia (mas como era dia?, perguntou baixinho uma voz no fundo de sua mente. No era quase de noite quando ele entrou na ruazinha h, sei l, uma hora?), e ele estava

se segurando a uma escada de metal que percorria a lateral externa de um prdio muito alto (h alguns segundos ele subia a mesma escada, mas estava na parte de dentro, no era?) e, l embaixo, ele podia enxergar... Londres. Carros minsculos. nibus e txis minsculos. Pequenos prdios. rvores. Caminhes em miniatura. Pessoas diminutas. L embaixo, elas surgiam e desapareciam de foco. Estaria certssimo dizer que Richard Mayhew no lidava muito bem com a altura, mas isso no daria uma medida exata da situao. Richard odiava ficar no topo de uma montanha ou de um prdio alto: em algum lugar dentro de si ele sentia o medo o mais perfeito terror, silenciosamente gritante de que, se chegasse muito perto da beirada, algo se apossaria dele, fazendo-o seguir at a borda e caminhar para o espao. Era como se Richard no confiasse totalmente em si prprio, e isso o assustava muito mais do que o simples medo de cair. Ento ele dizia que tinha vertigem, odiava a sensao e a si mesmo, e nunca ia a lugares altos. Richard ficou imvel na escada. Suas mos seguravam os degraus com firmeza. Sentia dor em algum ponto atrs dos olhos. Comeou a respirar de maneira muito rpida

e profunda. Pelo jeito algum aqui no estava me ouvindo, no ? disse uma voz acima dele, em tom jocoso. Eu... a garganta de Richard no funcionava. Ele engoliu seco, tentando umedec-la. No consigo me mexer. Suas mos estavam suando. E se elas suassem demais e ele simplesmente escorregasse para o vazio? Claro que consegue. Mas, se no conseguir, voc pode ficar aqui, pendurado na escada at suas mos congelarem, suas pernas cederem e voc cair para uma morte horrvel, uns trezentos metros l embaixo. Richard olhou para o marqus. Ele olhava para baixo, em sua direo, e ainda sorria. Quando viu que Richard estava olhando para ele, soltou ambas as mos dos degraus e agitou os dedos na sua direo. Richard sentiu uma onda de vertigem tomar conta dele. Desgraado disse em voz baixa, soltando a mo direita do degrau e movendoa uns quinze centmetros, at achar o degrau de cima. Avanou a perna e, depois, a mo esquerda. Passado algum tempo, viu que estava na beira de um telhado horizontal. Pisou nele e desabou. Percebeu que o marqus andava a passos largos no telhado, afastando-se dele.

Richard apalpou o cho, sentindo a estrutura slida embaixo de si. Seu corao estava disparado. A certa distncia, uma voz grosseira gritou: Voc no bem-vindo aqui, de Carabas. V embora. D o fora. Richard ouviu de Carabas responder: Old Bailey! Mas voc est com uma aparncia tima. Nisso ouviu passos em sua direo e sentiu um dedo o cutucando de leve nas costelas. Tudo bem com voc, moo? Estou fazendo um ensopado. Voc quer? de estorninho. Richard abriu os olhos. No, obrigado. Primeiro viu as penas. No sabia se era um casaco, uma capa ou algum tipo de cobertura estranha sem nome o que quer que fosse estava completamente coberto por uma camada espessa de penas. Um rosto gentil e enrugado, com suas, olhava para ele acima das penas. O corpo a que pertencia o rosto, onde no estava coberto por penas, estava envolto por cordas. Richard se lembrou de uma apresentao teatral de Robinson Cruso que vira quando criana Robinson Cruso teria aquela aparncia se estivesse preso num telhado em vez de

perdido numa ilha deserta. Me chamam de Old Bailey, meu jovem disse o homem. Ele remexeu nos culos velhos que estavam presos ao pescoo por um barbante e os colocou, observando Richard atravs deles. No o reconheo. A que baronato voc deve lealdade? Qual seu nome? Richard se sentou. Estavam sobre o telhado de um prdio velho, construdo com pedras marrons, com uma torre acima deles. Grgulas envelhecidas pelo tempo, sem asas, membros e em alguns casos at sem cabea , projetavam-se de forma melanclica dos cantos da torre. Richard podia ouvir l embaixo uma sirene de polcia e o barulho emudecido do trnsito. Do outro lado do telhado, na sombra da torre, havia algo que parecia ser uma cabana, uma velha cabana marrom bastante remendada, com manchas brancas de coc de pssaros. Richard abriu a boca para se apresentar ao velho. Voc a, cale a boca! No diga mais uma palavra! ordenou o marqus de Carabas. Virando-se para Old Bailey, continuou: Quem pe o nariz onde no chamado s vezes acaba ficando sem ele disse, estalando os dedos com um barulho

alto debaixo do nariz do velho, que se assustou. Pois bem, voc me deve um favor h vinte anos, Old Bailey, um grande favor. E agora vim cobr-lo. Eu fui um tolo murmurou o velho, pestanejando. Um velho tolo o maior dos tolos concordou o marqus. Ps a mo no bolso interno de sua casaca e de l tirou uma caixa de prata, maior que uma caixa de rap e menor que uma cigarreira, mas bem mais ornamentada que qualquer uma das duas. Voc sabe o que isto aqui? perguntou ao velho. Quem me dera no saber. Voc vai guard-la para mim. Mas no quero. Voc no tem escolha. O velho do telhado pegou a caixa prateada e a segurou de um jeito estranho, com ambas as mos, como se fosse algo que pudesse explodir a qualquer momento. O marqus empurrou Richard de levinho com o bico quadrado de sua bota preta. Bom. melhor irmos andando, no? Atravessou o telhado a passos largos. Richard ficou de p e o seguiu, mantendo-se bem longe da beirada. O marqus abriu uma porta na lateral da torre, entre vrias chamins altas, todas muito juntas, e eles

desceram uma escada em espiral mal iluminada. Quem era aquele homem? perguntou Richard, tentando enxergar na luz fraca. Os passos dos dois ecoavam e reverberavam na escada de metal. Humpf. No prestou ateno em nada que eu te disse, no ? Voc j tem problemas demais. Tudo que fizer, disser e ouvir s vai piorar as coisas. melhor rezar para que no tenha ido longe demais. Agora a escurido era absoluta. Richard tropeou enquanto buscava os ltimos degraus com os ps e descobriu que no havia mais nenhum. Cuidado com a cabea avisou o marqus, abrindo uma porta. Richard bateu a cabea em algo duro e disse ai. Protegendo os olhos da luz, viu que estava do lado de fora de uma porta pequena. Esfregou a testa e depois os olhos. A porta por que tinham passado era do armrio que ficava na escada do seu prdio. L dentro havia vassouras, um esfrego velho e uma grande variedade de produtos de limpeza, sabo em p e cera. Ele no via nenhuma escada no fundo daquele armrio, somente uma parede enfeitada por um calendrio velho e manchado, sem razo para estar ali a no ser que o ano de 1979 fosse acontecer de novo. O marqus examinava o cartaz com a

frase VOC VIU ESTA MOA? que estava grudado do lado de fora da porta de Richard. No o melhor ngulo dela observou. Richard fechou a porta do armrio de vassouras, pegou as chaves no bolso de trs, destrancou a porta da frente e entrou em casa. Ficou bastante aliviado ao ver, atravs das janelas da cozinha, que era noite de novo. Richard! Voc conseguiu! exclamou Door. Ela havia tomado banho enquanto ele estivera fora, e as camadas de roupa que a cobriam davam a entender que pelo menos tentara tirar o grosso da sujeira e do sangue. As crostas de sujeira no rosto e nas mos haviam desaparecido. O cabelo, depois de lavado, tinha um tom vermelho-escuro, com reflexos cor de bronze e cobre. Richard se perguntou que idade ela teria. Quinze? Dezesseis? No saberia dizer. Ela colocara o casaco de couro marrom que usava quando Richard a encontrara, que era grande e a envolvia inteira, como um casaco de aviador. Ele a fazia parecer menor do que j era, e at mais frgil. , pois respondeu Richard. O marqus de Carabas se ajoelhou numa perna e abaixou a cabea. Milady disse.

Ela parecia constrangida. Ah, por favor, levante-se, de Carabas. Fico feliz que tenha vindo. Com um movimento suave, ele se ps de p. Pelo que sei, as palavras favor e enorme foram pronunciadas. Em conjunto. Mais tarde. Ela foi at Richard e pegou suas mos. Richard... Obrigada. Fico muito agradecida por tudo que fez. Eu troquei o lenol da sua cama. Queria retribuir o favor de algum jeito. Voc j est indo embora? Ela fez que sim com a cabea. Agora ficarei segura. Ou quase. Espero que sim. Pelo menos por um tempo. Para onde voc vai? Door sorriu suavemente e balanou a cabea. Nada disso. Vou sair da sua vida. Voc foi um anjo. Ela ficou na ponta dos ps e o beijou no rosto, como amigos beijam amigos. Se eu precisar entrar em contato com voc...? comeou Richard. No entre. Nunca. E... ela fez uma pausa. Olha, eu sinto muito, t? Richard olhou para baixo, para seus ps, meio constrangido. No h por que se desculpar

respondeu ele, e acrescentou, meio inseguro: Foi divertido. E logo olhou para frente de novo. Mas no havia ningum.

TRS

NA MANH DE DOMINGO, RICHARD ABRIU A LTIMA GAVETA DO ARMRIO, pegou o telefone com formato de Batmvel (presente de Natal dado h muitos anos pela tia Maude) e o conectou parede. Tentou ligar para Jessica, mas no conseguiu. A secretria dela estava desligada, o celular tambm. Imaginou que ela tivesse voltado para a casa dos pais no interior, e no tinha vontade nenhuma de telefonar para l. Os pais dela intimidavam Richard, cada um a sua maneira. Nenhum dos dois o aprovava inteiramente como genro. Na verdade, a me de Jessica certa vez mencionou casualmente o quanto eles estavam desapontados com o noivado. Tinha convico de que Jessica poderia achar algum bem melhor, se quisesse. Os pais de Richard estavam mortos. O pai teve um enfarte repentino quando ele ainda era criana. A me foi morrendo devagarinho depois disso. Quando Richard saiu de casa, ela simplesmente comeou a definhar: seis meses depois de sua mudana para Londres, ele pegou o trem de volta

Esccia para fazer companhia me em seus ltimos dois dias de vida, sentado sua cabeceira em um pequeno hospital. s vezes ela o reconhecia, em outras o chamava pelo nome do pai de Richard. Richard estava sentado em seu sof, pensativo. Os acontecimentos dos ltimos dois dias ficavam cada vez menos reais, mais inverossmeis. Real era a mensagem deixada por Jessica em sua secretria eletrnica, dizendo que no queria v-lo mais. Ele ouviu o recado diversas vezes naquele domingo, esperando sempre que a voz fosse ceder, que ele conseguiria ouvir certa afeio nela. Mas no conseguiu. Pensou em sair e comprar o jornal de domingo, mas desistiu. O chefe de Jessica, Arnold Stockton a perfeita caricatura do homem de queixo quadrado que subiu na vida , era dono de todos os peridicos de domingo que Rupert Murdoch no conseguira adquirir. Seus prprios jornais falavam dele, assim como os outros. Richard suspeitou que ler s o faria lembrar o jantar a que no comparecera na noite de sexta. Ento, em vez disso, ele tomou um demorado e quente banho de banheira, comeu alguns sanduches e bebeu vrias xcaras de ch. Viu um pouco de TV, tarde, e ensaiou conversas com Jessica em sua cabea. Ao trmino de cada dilogo imaginrio, eles se abraavam e

faziam sexo de um jeito selvagem, apaixonado, furioso, cheio de lgrimas, e tudo ficava bem. *** Na manh de segunda-feira, o despertador de Richard no tocou. Ele saiu s pressas, s dez para as nove, a pasta chacoalhando em sua mo, olhando para os dois lados da rua como um maluco e rezando para que um txi aparecesse. Suspirou aliviado quando viu um grande carro preto descendo a rua, em sua direo, com o sinal de txi amarelo aceso. Acenou e gritou. O txi passou suavemente ao lado dele, ignorando-o por completo. Virou uma esquina e foi embora. Outro txi. Outra luz amarela, dando a entender que estava disponvel. Desta vez ele foi at o meio da rua sinalizar para o carro. O motorista o contornou e continuou seu rumo. Richard comeou a xingar baixinho e resolveu correr para a estao de metr mais prxima. Tirou um monte de moedas do bolso. Na mquina de passagens, pressionou o boto de bilhete unitrio para Charing Cross e colocou as moedas na fenda. Toda moeda que ele colocava atravessava direto a mquina e ia parar, tilintante, sobre a bandeja de troco. Nada de bilhete. Tentou outra mquina, com o

mesmo resultado. E mais outra. O vendedor de bilhetes estava falando ao telefone quando Richard foi at ele reclamar e comprar sua passagem, mas, apesar de Richard gritar Ei! e Com licena! (ou por causa disso) e de bater desesperadamente na divisria plstica com uma moeda, o homem continuava impassvel ao telefone. Ah, foda-se praguejou Richard, pulando por cima da catraca. Ningum o impediu, ningum parecia se importar. Correu, sem flego e suando, suando, pela escada rolante, at alcanar a plataforma, lotada, no momento em que o metr estava chegando. Quando criana, Richard tinha sonhos nos quais ele simplesmente no existia pesadelos em que, por mais barulho que fizesse, no importava o que fizesse, ningum o notava. Comeou a se sentir assim quando as pessoas se espremeram sua frente. Foi esmurrado pela multido, empurrado para l e para c por gente que saa e entrava. Ele insistiu, empurrando e se enfiando tambm, at quase conseguir entrar no trem um de seus braos j estava do lado de dentro , e foi a que as portas comearam a se fechar. Puxou a mo, mas a manga de seu casaco ficou presa. Comeou a gritar e bater com fora na porta, esperando que o condutor ao menos a abrisse um pouco para

ele tirar a manga de l. Mas, em vez disso, o trem comeou a se mover, e ele teve que correr pela plataforma, tropeando, cada vez mais rpido. Derrubou a pasta no cho e puxou desesperadamente a manga com a mo livre. A manga se rasgou e ele caiu para a frente, ralando a mo no piso e rasgando a cala na altura do joelho. Cambaleando, Richard se levantou e voltou at onde sua pasta havia cado. Olhou para a manga danificada, a mo machucada e as calas rasgadas. Subiu as escadas e saiu da estao. Ningum lhe pediu o bilhete na sada. *** Desculpe o atraso disse Richard para ningum especfico no escritrio cheio de gente. O relgio na parede marcava 10h30. Ele jogou a pasta numa cadeira e enxugou o suor do rosto com um leno. Vocs nem acreditam no quanto foi difcil chegar aqui. Um pesadelo continuou. Olhou para sua mesa de trabalho. Estava faltando alguma coisa alis, tudo. Onde esto as minhas coisas? perguntou para a sala, um pouco mais alto. Cad meu telefone? E os meus trasgos? Verificou as gavetas da mesa. Estavam vazias tambm: no havia nem uma

embalagem de chocolate ou um clipe de papel retorcido para mostrar que ele estivera ali. Sylvia vinha em sua direo, conversando com dois cavalheiros bastante corpulentos. Richard foi at ela. Sylvia? O que est acontecendo? Pois no? respondeu ela de maneira educada, enquanto fazia um gesto para que os homens corpulentos levassem a mesa. Cada um pegou o mvel de um lado e ele foi sendo carregado para fora do escritrio. Com cuidado advertiu Sylvia. Minha mesa! Para onde que esto levando? Sylvia ficou olhando para ele, um pouco confusa. O senhor quem mesmo...? Era s o que me faltava, pensou Richard. Richard. Richard Mayhew respondeu, sarcstico. Ah. A ateno dela se desviou de Richard como a gua se desvia de um pato coberto de leo: No, por a no, pelo amor de Deus pediu Sylvia aos carregadores, e os seguiu enquanto levavam a mesa de Richard. Ele ficou olhando enquanto ela ia embora. Depois caminhou pelo escritrio at chegar mesa de Gary, que estava

respondendo um e-mail. Richard olhou para a tela: o e-mail, sexualmente explcito, no era endereado namorada do colega. Constrangido, Richard foi para o outro lado da mesa. Gary, o que est acontecendo? Isso uma brincadeira? Gary olhou em volta, como se tivesse escutado alguma coisa. Por meio do teclado, ativou o protetor de tela com hipoptamos danarinos, balanou a cabea, como se quisesse se livrar de algum pensamento, pegou o telefone e comeou a discar. Richard bateu o fone no gancho com a mo de Gary junto, cortando a linha. Escuta aqui, no tem graa. O que que vocs esto tramando? Afinal, para seu grande alvio, Gary olhou para ele. Richard continuou: Se eu fui despedido, s me dizer. Mas ficar fingindo que no estou aqui... Gary sorriu e disse: Opa! Meu nome Gary Perunu. Posso ajud-lo? Acho que no respondeu Richard com frieza, e saiu do escritrio, deixando a pasta para trs. *** O escritrio de Richard ficava no terceiro

andar de um edifcio grande, antigo, do outro lado da Strand. Jessica trabalhava mais ou menos no andar do meio de um prdio alto, recoberto de espelhos cristalinos, no centro de Londres. Quinze minutos a p dali. Ele subiu correndo a rua. Chegou ao edifcio Stockton em dez minutos, passou direto pelos seguranas uniformizados do trreo, entrou no elevador e subiu. Ficou se observando nos espelhos enquanto subia. Sua gravata estava torta e meio frouxa, o casaco e as calas, rasgados, o cabelo, desarrumado e suado... Deus do cu, ele estava horrvel. Aps um som meldico, a porta do elevador se abriu. O andar em que Jessica trabalhava era opulento, mas de um jeito meio despojado. Havia uma recepcionista perto do elevador, uma criatura elegante e cheia de compostura, que aparentava ganhar muito mais do que Richard. Estava lendo uma revista Cosmopolitan. Ela no ergueu o olhar quando ele se aproximou. Preciso falar com Jessica Bartram disse Richard. importante. Preciso falar com ela. Preocupada com as prprias unhas, a recepcionista o ignorou. Richard caminhou pelo corredor at o escritrio de Jessica. Abriu a porta e entrou. Ela estava de p em frente a trs grandes psteres, nos quais se lia Anjos

pela Inglaterra Uma Exposio Itinerante, cada um com uma imagem de um anjo diferente. Ela se virou quando ele entrou e sorriu de forma amigvel. Jessica... Graas a Deus. Olha, acho que estou ficando louco ou algo assim. Tudo comeou quando eu no consegui pegar um txi hoje de manh, e depois o metr e o escritrio e... como se eu tivesse virado uma no-pessoa disse, mostrando a manga rasgada. Ela sorriu para ele mais uma vez, encorajando-o a continuar. Ele continuou: Olha, me desculpa pelo que aconteceu na noite passada. No pelo que eu fiz, mas por ter deixado voc chateada e... olha, desculpa, est tudo uma loucura, eu nem sei o que fazer. Jessica assentiu com a cabea e continuou a sorrir com ar solidrio. Ento disse: Voc vai me achar pssima, mas sou um fracasso com fisionomias. Me d s um segundinho, j me lembro de voc. E, naquele momento, Richard soube que era tudo verdade. Sentiu um vazio horrvel no fundo do estmago. A loucura daquele dia era real, seja l o que fosse. No era nenhuma brincadeira ou piada. Tudo bem disse, resignado. Esquece.

Virou-se, saiu pela porta e caminhou pelo corredor. Estava quase no elevador quando ela chamou seu nome. Richard! Ele se virou. Era mesmo uma brincadeira, afinal. Algum tipo de vingana mesquinha. Algo que tinha explicao. Richard... Maybury? ela parecia estar orgulhosa por ter se lembrado ao menos daquilo. Mayhew corrigiu Richard, entrando no elevador. As portas emitiram um som meldico e triste quando se fecharam atrs dele. *** Richard voltou a p para o apartamento, chateado, confuso, revoltado. s vezes acenava para os txis, mas no tinha nenhuma esperana de que eles fossem parar e nenhum parou. Seus ps doam e os olhos ardiam, mas ele sabia que aquele dia acabaria logo e ele acordaria numa segundafeira normal, um dia decente e verdadeiro. Quando chegou ao apartamento, encheu a banheira com gua quente, deixou as roupas sobre a cama e, nu, caminhou pelo corredor e entrou na gua relaxante. Estava quase cochilando quando ouviu uma chave virar na fechadura. Em seguida, ouviu o

barulho da porta abrindo e fechando, acompanhado de uma voz masculina suave: Claro que vocs so os primeiros a ver o apartamento hoje, mas temos uma lista enorme de pessoas interessadas. No to grande quanto parecia na descrio que a corretora nos mandou comentou uma mulher. compacto, sem dvida. Mas gosto de pensar nisso como uma qualidade. Richard no havia se preocupado em trancar a porta do banheiro. Ele era a nica pessoa que morava ali, afinal. Uma voz masculina mais rouca disse: Achei que no fosse decorado. Voc no tinha dito isso? Est bastante decorado pro meu gosto. O inquilino anterior deve ter deixado algumas de suas posses. Engraado, no me informaram nada a respeito. Richard ficou em p na banheira. Como estava nu, e as pessoas poderiam entrar ali a qualquer momento, sentou-se de novo. Um tanto desesperado, procurou em volta por uma toalha. Ah, olha, George observou a mulher no corredor. Algum esqueceu uma toalha na cadeira. Richard avaliou e rejeitou alguns pssimos substitut