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NHECOLÂNDIA: UM TRIÂNGULO DE LINHAS TORTAS MARCANDO OS
LIMITES DOS PANTANAIS.
ILSYANE R. KMITTA1
Na assertiva de Hobsbawm (1998), tudo o que pertence ou depende do homem,
servindo, exprimindo e demonstrando sua presença, sua ideologia, sua atividade, seus gestos,
sua maneira de viver e de ser, é história. O homem é, portanto, o artífice da história e também
do tempo na história, ou seja, o homem e suas práticas sociais são fontes para o trabalho dos
historiadores. A pertinência da afirmação do referido autor, vem ao encontro do fato de que
entendemos a História como uma constante construção, e, é importante a veiculação de várias
ferramentas de pesquisas e os textos memorialistas devem fazer e compor o acervo de fontes,
com suas particularidades e especificidades, sem perder as características de fontes com as quais
os historiadores estão habituados a trabalhar e, concatenado a esse aspecto, não podemos deixar
de lado a importância da leitura dos memorialistas, ainda mais quando a proposta está vinculada
a historiografia regional. Assim, o levantamento, identificação e análise das fontes como dos
viajantes, dos memorialistas e das fontes orais e/ou narrativas, permitem conhecer
historicamente as estratégias humanas construídas para a sobrevivência em áreas singulares,
como os pantanais que são de suma importância para a compreensão das relações entre homem
e natureza neste conjunto único de ecossistemas.
Partindo da ótica de análise exposta, encontramos na introdução da primeira edição de
“Pantanal – gente, tradição e história”, o relato da “descoberta” do que era o Pantanal, mais
especificamente da sub-região da Nhecolândia. O autor, Augusto César Proença, trata de forma
romanceada dos vários aspectos da região pantaneira, abordando as origens geológicas, as
origens humanas, a formação dos grandes latifúndios e a formação dessa sub-região2.
1 Doutora pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal da Grande Dourados –
PPGH/UFGD; Professora do curso de História da UEMS – unidade Amambai, MS. 2 Pesquisadores da Embrapa Pantanal, como SILVA & ABDOM (1998), descrevem a delimitação do Pantanal e
suas sub-regiões considerando alguns aspectos fisiomorfológicos e geopolíticos. Assim, definem a localização das
sub-regiões do Pantanal em relação aos municípios que as compõem: 1. Sub-região de Cáceres: agrega as áreas
dos municípios de Cáceres e Lambari D’Oeste; 2. Sub-região de Poconé: agrega as áreas dos municípios de
Cáceres, Poconé, Nossa Senhora do Livramento, Barão de Melgaço e Santo Antônio do Leverger; 3. Sub-região
de Barão de Melgaço: agrega as áreas dos municípios de Itiquira, Barão de Melgaço e Santo Antônio do Leverger;
4. Sub-região do Paraguai: localiza-se no oeste do Pantanal e agrega as áreas dos municípios de Poconé, Corumbá
e Ladário; 5. Sub-região do Paiaguás: agrega área dos municípios de Sonora, Coxim e Corumbá; 6. Sub-região de
Nhecolândia: agrega as áreas dos municípios de Rio Verde de Mato Grosso, Aquidauana e Corumbá; 7. Sub-região
do Abobral: agrega as áreas dos municípios de Aquidauana e Corumbá; 8. Sub-região de Aquidauana: localiza-se
Apontamentos esses que nos permitem analisar como se deu a construção de uma memória
pioneira associada a constituição de um grande latifúndio que nominou uma sub-região.
Suas primeiras indagações recaiam sobre as enchentes, cujos comentários faziam crer
que eram sempre danosas e traziam perdas para os fazendeiros; que as enchentes eram a “traição
dos rios”. Questionamentos que envolviam ainda as diferenças que existiam nos campos, das
características especificas de cada um dos pantanais. Tais indagações cessaram quando, com
posse de um mapa, o autor ainda garoto, localiza o que era a sub-região da Nhecolândia e,
partindo dessa imagem, ele entendeu o que era o Pantanal como um todo. Em suas palavras:
Eu pude ver então onde se situava a nossa fazenda e observar o triângulo mal feito,
entre os rios Negro e Taquari, que se juntavam com as águas do grosso Paraguai.
Era um triângulo cheio de linhas tortas, traçadas a nanquim, simbolizando os limites
das inúmeras fazendas existentes na época: enormes algumas, outras menores;
porém, todas grandes (PROENÇA: 1992: 9).
Logo na infância, o menino percebeu que o que tinha diante dos olhos era muito mais
que um mapa. O que tinha diante de si era a representação cartografada de uma história de
gestação perenal. Compreendeu que “o Pantanal da Nhecolândia não passava de uma grande
família”, que se reuniu, através dos tempos para traçar o mapa que estava diante de seus olhos,
e na sua “cabeça de menino” cessaram as perguntas. Mas, cessando as indagações do menino,
nasce a determinação do homem, a certeza de que era seu dever escrever a “história dessa gente
e desse Pantanal” e foi assim que decidiu registrar a história do Pantanal exótico que viu, que
sentiu e que vibrou em seu sangue. Desse modo, foi buscar na trajetória dos mortos a
reconstrução da memória do “mundo que construíram”, das lendas, dos causos. E salienta:
Buscarei nas curvas dos rios os sussurros dos homens que um dia tombaram por
desilusão, desanimo ou força. Dos homens que fizeram uma história, legaram uma
tradição, um mapa, e souberam respeitar uma grandeza (PROENÇA, 1992:10).
Tal qual fez Proença, fizeram também muitos outros “homens de descendência
pioneira”. Para tanto, foi preciso apenas juntar o dito valente-desbravador-pioneiro, o cavalo e
o boi, sem esquecer aqui do vaqueiro - os indígenas e o negro escravo oriundo das minas e das
plantações de cana, que acompanhou o desbravador na busca e posse de terras e na lida das
somente no município de Aquidauana; 9. Sub-região de Miranda: agrega as áreas dos municípios de Aquidauana,
Bodoquena e Miranda; 10. Sub-região do Nabileque: agrega as áreas dos municípios de Corumbá, Porto Murtinho
e Miranda; 11. Sub-região de Porto Murtinho: localiza-se somente no município de Porto Murtinho. Essa área
fisiográfica é composta por 15 municípios, sendo 6 (seis) no estado do Mato Grosso ocupando 34,27% da área do
Pantanal; e 9 (nove), no estado do Mato Grosso do Sul ocupando 65,73% da área do Pantanal. Corumbá (44,31%),
Poconé (10,01%), Cáceres (9,44%) e Aquidauana (9,31%) são os municípios que mais contribuem para a formação
da área do Pantanal (SILVA & ABDON, 1998, p. 1706-1707)
fazendas. Embora sejam exaltados pelos memorialistas3, os desbravadores, em sua grande
maioria eram aqueles que inicialmente partiram em busca de riqueza, a procura de terras para
se estabelecer e fazer fortuna. As justificativas recaíram sobre o fato que o pioneiro,
recebendo qualidades predominantes dessas etnias, ele se formou forte; de um lado,
adquiriu o misticismo, a humildade, a desconfiança e a paciência dos nativos; do
outro, o ardor, a coragem e a ambição do mameluco, para poder se embrenhar num
lugar inóspito e vencer os obstáculos que se lhe apresentavam pela frente. Dessa
mestiçagem se formou o pioneiro que desceu do Norte para povoar o Sul (PROENÇA,
1992: 55).
E conforme escreveu Corrêa Filho (1955), na medida em que a atividade mineradora
entrava em declínio, emergiu um grupo com interesses econômicos e políticos que partilhavam
o poder, e entre os integrantes desse grupo, muitos “coronéis” que estreitavam laços,
fortaleciam ainda mais seus poderes políticos e consolidavam uma diferenciação na estrutura
social, e nesse contexto entram os fazendeiros do Pantanal, sendo que
nos primeiros anos de ocupação, os desbravadores que conquistassem as terras
tinham o direito de requisitar como sesmaria uma única área medindo até três léguas
de comprimento por uma de largura ou, em escala atual 13.068 há. Raros, porém,
foram os ocupantes que se contentaram com esses limites. Aproveitando-se de
vantagens dispostas nas legislações fundiárias e protegidos pelas distancias dos
centros de poder, constantemente acrescentavam ás suas posses originais outras
terras que lhes eram concedidas pelos governantes regionais em nome da coroa
(BANDUCCI JR, 2007: 34).
Embora sejam exaltados pelos memorialistas, os desbravadores, em sua grande maioria
eram aqueles que inicialmente partiram em busca de riqueza, a procura de terras para se
estabelecer e fazer fortuna. As justificativas recaiam sobre o fato que o pioneiro,
ele se formou forte; de um lado, adquiriu o misticismo, a humildade, a desconfiança
e a paciência dos nativos; do outro, o ardor, a coragem e a ambição do mameluco,
para poder se embrenhar num lugar inóspito e vencer os obstáculos que se lhe
apresentavam pela frente. Dessa mestiçagem se formou o pioneiro que desceu do
Norte para povoar o Sul (PROENÇA, 1992: 55).
A partir dessa pequena introdução é possível perceber que a demarcação de
territorialidades, onde a posse da terra foi o ponto de partida para a construção de uma complexa
rede de poder e representações, que incluía o exercício de autoritarismo e violência. Incluía
também a construção de uma ideia, de uma identidade, de uma natureza, de uma paisagem, de
um Pantanal adaptável aos moldes da memória e de fácil enquadramento, que cultivasse em seu
3 Ao falar sobre as obras memorialistas na historiografia do MT-MS, Osvaldo Zorzato assinala que “no conjunto
compõe um estoque de lembranças, isto é, a memória que se quer preservar. Constrói-se um quadro de referências
sem um viés interpretativo ou diálogo com outras construções historiográficas, a não ser como fonte de
informações e mais para justificar do que para explicar” (1998: 10).
interior elementos que auxiliaram numa bricolagem que une luta, sacrifícios, resignação,
coragem, uma pitada de valentia e uma grande porção de oportunismo coadunando com a
constituição de uma história, de um lugar e que perpetuando o heroísmo, livrou-o de qualquer
atributo que desabonasse a conduta dos precursores.
Adentrando aos pantanais, a posse das terras extrapolava qualquer norma estabelecida
e favorecia a aquisição e formação de grandes propriedades. Foi assim que coube a apropriação
de terras a famílias como Pereira Leite, Costa Marques, Metelo, Gomes da Silva, Rondon, Alves
Ribeiro e muitas outras, iniciando os latifúndios em terras pantaneiras, ou seja, foi assim que se
iniciou a ocupação dos pantanais, cuja justificativa estava calcada no sacrifício e no legado para
as futuras gerações que não hesitariam em comercializar essas mesmas terras, trazendo para o
Pantanal, o outro, o estranho, o alheio, aquele ao qual chamam de “os que vêm de fora”, sem,
contudo deixar cair no esquecimento a memória do pioneirismo.
E, em conformidade com Renato Ribeiro, foi
Através desses pioneiros – que souberam enfrentar as hostilidades do meio ambiente
selvagem, feras, cobras, mosquitos, doenças, falta de estradas, enchentes e até mesmo
a Guerra do Paraguai – o Pantanal foi sendo adentrado, foi-se povoando cada vez
mais até tornar-se um grande curral farto de bois, com uma produção barata,
enriquecendo assim nosso erário com os seus impostos (RIBEIRO, 1984: 20).
Desdobramentos de um discurso que justificava a lapidação de um pseudo-paraíso
constantemente revisitado e povoado pelo espírito pioneiro do passado, do bandeirante
desassombrado que deixou seu legado expresso nas palavras do bispo diocesano Dom Ladislau
Paz, que em visita ao Museu Regional do Mato Grosso em 02 de fevereiro de 1960, faz no livro
de visitas o registro de suas impressões sobre o que chamou de obra de brasilidade,
manifestando sua simpatia e admiração por figuras extraordinárias, dignas de ser imitada pela
juventude como exemplos de virtudes bandeirantes. Entre tais figuras estava “Nheco Gomes da
Silva, varão impoluto, destemido, desbravador do Pantanal, que parecia pairar no recinto como
a convidar os jovens visitantes a imitar-lhe as virtudes de bandeirante desassombrado e
continuar sua tarefa altamente altruísta a favor da prosperidade” e que juntamente com ele,
seguiram muitos outros que fizeram do Pantanal, de Corumbá “um corcel indômito” que
aguardava o início de uma vitoriosa corrida. É nessa exaltação de pioneirismo que se assenta
uma memória, cuja glória é/pode ser questionável, escondendo o forjar de uma identidade
alicerçada no poderio político e fundiário.
Segundo Corrêa Filho, o crescimento e organização das fazendas, como iniciado pela
Jacobina, principiavam com a aquisição “da primeira sesmaria que servisse de núcleo, em torno
dela seriam requeridas as terras contíguas, até que perfizessem o conjunto grandioso”
(1955:20). Em seguida,
A facilidade na aquisição, por título gratuito, de glebas imensas, cujas divisas os
vizinhos longínquos respeitavam, por não lhes minguar terreno bruto, à disposição
de quem o pretendesse fecundar pelo trabalho, transbordamento periódico dos rios,
que tornavam por alguns meses inabitáveis amplas e várzeas submersas, explicam,
mais do que a ambição de domínio ilimitado, a formação dos latifúndios, afeiçoada
as peculiaridades regionais. Equivaliam, sem dúvida, a prova de força do poderio
dos seus mantenedores (CORRÊA FILHO, 1955: 21).
É nesse compasso que se dá a formação dos grandes latifúndios nos pantanais, cujo
governo interno, dispensava ou mesmo afastava gradualmente o governo oficial, cabendo ao
proprietário governar o seu vasto domínio com supremacia e influência econômica e política.
E a Fazenda Jacobina foi a precursora desse molde e era de lá que “irradiava a gente aventureira,
que tomou conta de grande porção do Pantanal, no Taquari, Paraguai e Negro, onde se
afazendou o genro de João Pereira Leite, de nome Joaquim José da Silva4, menino-diabo, em
moço barão de Vila Maria” (CORREA FILHO, 1955: 22)
Para as décadas finais do século XIX, consta o registro das seguintes fazendas:
Palmeiras com 106.025 hectares (despacho de 03 de dezembro de 1894); Rio Negro com
118.905 hectares (despacho de 03 de setembro de 1893); Firme com 176.853 hectares
(despacho de 27 de julho de 1899); Taboco com 344.923 hectares (despacho de 24 abril de
1899); Rio Branco com 384.292 hectares (despacho de 22 junho de 1901) que circundavam e
ocupavam as quatro mais importantes zonas e/ou sub-regiões do Pantanal, ou seja: Nhecolândia,
Paiaguás, Nabileque e Abobral. Longe estava tais extensões de terras das doações e medições
iniciais das sesmarias, o que se convencionou afirmar é que estava em jogo o povoamento e
ocupação de extensas áreas, onde numa mesma propriedade fazia-se necessário uma grande
quantidade de terras, pois parte das mesmas ficava submersa pelas águas das cheias por um
período de quatro meses. O que não se cogitou foi o fato de que estas terras nas mãos de um
4 Joaquim José da Silva – o barão de Vila Maria – ocupou no século 19, as terras localizadas entre os rios Taquari,
Paraguai e o Negro, marcando a história da ocupação do Pantanal sul-mato-grossense. Proprietário de gado, terras
e trabalhadores escravizados, destacou-se no cenário político e social, ocupando cargos importantes na cidade de
Corumbá como juiz de paz e vereador. Como outros proprietários das terras provincianas de Mato Grosso, o barão
serviu-se da mão-de-obra cativa para cultivar em sua principal fazenda, a Piraputangas, os alimentos necessários
ao abastecimento da vila de Albuquerque e Santa Cruz de Corumbá. Figura emblemática, o barão foi pioneiro na
formação dos latifúndios do sul de Mato Grosso ao fundar no Pantanal a histórica Fazenda Firme, transformada
por seu filho Nheco, no mais importante centro pecuarista regional. [...] A imagem de Joaquim José Gomes da
Silva foi descrita como herói de guerra, como desbravador ou pioneiro e como o fazendeiro lavrador que no distrito
de Albuquerque legou aos pantaneiros a ocupação de uma das mais lendárias regiões do Pantanal – a Nhecolândia
(CANCIAN, E.; BRAZIL, M. C. O Barão de Vila Maria: poder, história agrária e memória em Mato Grosso. In:
BORGES, F.T. de Miranda; PERARO, Maria Adenir; COSTA, Viviane G. da S.. (Org.). Trajetórias de Vidas na
História. 1 ed. Cuiabá: EDUFMT, 2009, v. 1, p. 93-116).
único proprietário mantinha o território impenetrável, privilegiando um grupo muito restrito de
povoadores.
Após a Guerra do Paraguai, em meados de 1879, Joaquim Eugênio Gomes da Silva – o
Nheco5, inicia a reconstrução da fazenda, de cujo núcleo - a Fazenda Firme, se estendiam os
intermináveis campos, de solo arenoso, onde a vegetação renovada anualmente pelas águas,
fazia multiplicar o rebanho. Onde aguadas, lagoas, baias, vazantes e corixos armazenavam água
e o sal necessário para manutenção do gado, cercado por carandás, bocaiuvas, babaçu e demais
palmeiras.
Em obra memorialística, José de Barros Neto descreve que o Pantanal da Nhecolândia
é assim como o Éden; não há o que tirar nem por. É a origem de tudo, é a felicidade,
o amor, é Deus... é onde ainda se encontra a solidão em meio a tantos seres; é onde
ainda se pode acreditar nos vivos que nos rodeiam; é onde ainda o homem se sente
pequenino ante o Ser Supremo e, humildemente submete-se ante a grandiosidade da
natureza (1979:19-20).
É também nas memórias de José de Barros Netto, que encontramos o registro da
primeira “grande” enchente datada de 1879, na Fazenda Manga, localizada à esquerda do rio
Paraguai, considerada a área mais alagável na região de Corumbá. Segundo seus relatos, sendo
totalmente inundada, a Fazenda Manga, adentra “sertão” em busca de terra firme onde o
“Nheco” funda a Fazenda “Firme”, origem da Nhecolândia6, numa área de 600 léguas
quadradas de campos naturais dos pantanais com limites ao norte pelo rio Taquari, ao sul pelo
rio Negro, ao poente pelos rios Taquari e Paraguai e ao nascente por uma linha imaginária
ligando os rios Taquari e Negro, separativa dos municípios de Corumbá, Coxim e Rio Verde.
Esse autor descreve a Nhecolândia como
sertão bravio era a Nhecolândia [...] onde reinavam as onças pintadas e pardas, a
“boca de sapo”, a sucuri e a cascavel, fauna riquíssima, dispersa entre miríades de
lagoas vazantes, cerrados e baixadas. Pastagem abundante e farta, quase isenta de
pestes, era verdadeiramente salubre. O gado bovino encontrou uma região como se
5Joaquim Eugenio Gomes da Silva, alcunha de NHECO, nascido em São Luiz de Cáceres, filho do Barão de Vila
Maria. Nheco figura como um dos pioneiros desbravadores da região dos pantanais, cuja saga se inicia com o
retorno a Fazenda Manga e posterior a reconstrução da fazenda Firme em 1880, culminando com a Nhecolândia,
sub-região do Pantanal que recebe esse nome em homenagem ao pioneiro desbravador. 6 A título de conhecimento no Mapeamento das unidades de paisagem das sub-regiões da Nhecolândia, realizado
pela Embrapa Pantanal, “observou-se a ocorrência de áreas savânicas sazonalmente inundáveis (41%), áreas
savânicas não inundáveis (16%), áreas de campo sazonalmente inundáveis (15%) e áreas florestais não inundáveis
(10%)”. A região é, portanto, constituída por aproximadamente 60% de vegetação de savanas que são formadas
por estratos de vegetação arbustiva e herbácea. A análise do mapa permitiu constatar que a maioria das savanas
está localizada em áreas sazonalmente inundáveis, onde a dinâmica de inundação varia em função da intensidade
e distribuição das chuvas (2011: 7). As principais áreas de pastagens na sub-região da Nhecolândia compreenderam
as áreas savânicas sazonalmente inundáveis (41%) e as áreas de campo sazonalmente inundáveis (15%), porém, o
uso dessas áreas para pastejo depende do grau de inundação (2011:10).
fosse seu verdadeiro habitat e os primeiros homens conheceram o Eldorado para a
criação (BARROS NETTO, 1979: 36).
Resumidamente podemos dizer que a sub-região da Nhecolândia, compreendendo
19,5% da planície pantaneira, agrega áreas dos municípios de Rio Verde de Mato Grosso,
Aquidauana e Corumbá, constituindo-se uma área de 600 léguas quadradas, o que corresponde,
em unidades de medidas atuais a 21.609 km2 (ou mais de 5 vezes a área do município de
Dourados, MS). Geometricamente a área em questão, está associada a um triângulo isósceles
com base de 50 léguas e altura relativa a essa base de 25 léguas e tomadas as medidas em
unidades do sistema métrico decimal, teríamos um triângulo com um lado de 300 km e dois
lados com 212 km cada um; outro comparativo que pode ser feito é com unidade agrária de área
– 600 léguas quadradas corresponde a 2.160.900 hectares e ainda é possível dizer que essa área
é a terça parte do atual município de Corumbá, MS, ou quase a área do atual Estado do Sergipe
(21.915 km2). A Nhecolândia ocupava 0,25% do território brasileiro e em sua grande maioria
as fazendas tinham entre 4 a 5 léguas. Ficou conhecida como o ELDORADO DA PECUÁRIA,
pois possui características ambientais, ideias para criação bovina, sendo terras planas, de modo
geral de baixa fertilidade e arenosas; precipitações concentradas nos meses de outubro a março
com índices que variam, em média, de 1.000 a 3.000 mm anuais e a enchente de rios não tem
influência sobre a pecuária, enchente apenas nas proximidades. As fazendas são em sua grande
maioria interioranas, as pastagens são abundantes e as chuvas locais afetam as pastagens
(espécies resistentes – capim-arroz, capim-felpudo localizados nos brejos e lugares mais
fundos).
Trata-se de uma região promissora e cortada por muitas vazantes com centenas de lagoas
– baías, cerrados, caponais, matas leves e salinas, cujo solo arenoso propício para a plantação
de pastagens (brachiárias, pangola, costela e tio Pedro) possui terras de aluvião que fornecem
uma vegetação rica em suplementação mineral. Aliado a esse fato, o rio Taquari constitui-se
como um marco divisório entre as sub-regiões da Nhecolândia e Paiaguás que por sua vez, se
constituem nas sub-regiões de impacto ambiental mais incisivo.
Segundo Figueiredo (1994), nas décadas finais do século XIX, os conhecimentos que
margeavam a criação e a manutenção do rebanho bovino eram muito rudimentares, em campos
indivisos com pastagens brutas, cujo trabalho básico consistia em reunir o gado bravio, conduzir
as vaquejadas, separar, castrar e marcar. Nos barreiros, o gado encontrava o sal necessário
lambendo e comendo barro, bebendo água, em períodos de longas secas, em contrapartida o
pisoteio compactava o solo intensivamente, dificultando a absorção da água. Consta nos
registros, para esse período, a reorganização da fazenda Firme – próxima ao encontro dos rios
Taquari e Negro – logo passou a absorver várias áreas ao seu entorno. A Nhecolândia, composta
por parentes e pessoas do relacionamento e da confiança dos proprietários, os quais
desenvolvendo laços de “boa vizinhança”, que consistiam em nada mais que o domínio da terra
e da mão de obra empregada. Mesmo dispondo de pouco ou nenhum recurso financeiro, tinham
a possibilidade de acercar-se de pequenos lotes perfazendo no conjunto uma grande área, que
inicialmente serviu para constituir capital juntamente com os recursos advindos do próprio
desbravamento.
Em conformidade com Banducci (2007), além de contar com a ajuda de parentes vindos
do norte de Mato Grosso, Nheco contava também “com a força de trabalhadores de origem
diversa [indígenas da região, negros e mestiços do Norte e do Centro Sul pantaneiro]”, e nesse
sistema de compadrio, consolidou-se a produção bovina “sob o domínio pastoril e sob o
controle de basicamente duas famílias: os Gomes da Silva e os Barros, cujos descendentes
detêm até hoje, a posse de parte considerável das terras do local” (2007: 17).
Encontramos apontamentos a esse respeito em Virgílio Corrêa Filho ao escrever sobre
a Nhecolândia e seus pioneiros, no que tange ao poder pecuniário dos mesmos e a possibilidade
da aquisição das terras. Condição essa que, nas palavras do autor, “pouco a pouco, porém foram
melhorando as circunstâncias, à medida que se povoava a região, com parentes e amigos do
pioneiro, que lhe atendiam aos insistentes convites para se fixarem nos promissores campos
vizinhos” (1955: 27), constituindo o que Alves denomina de “a grande obra histórica de um
conjunto de pioneiros” (2004: 35). Aspectos encontrados em manuscritos e apontamentos de
José de Barros, revelam a estruturação política e a aquisição de propriedades pelos pantanais,
como forma de estabelecer e de ordenar a exploração agropastoril por seus descendentes e
agregados.
Em paralelo a esses acontecimentos, o rebanho bovino aumentava consideravelmente
inviabilizando o avanço e a apropriação de novas áreas na composição da Nhecolândia, ou seja,
enquanto os rebanhos ainda não somavam um número significativo e a criação de bovinos se
dava no molde extensivo, os pioneiros e seus descendentes avançavam para outras áreas, e na
medida em que foi aumentando o rebanho, diminuiu-se a disponibilidade das áreas para
ocupação. Desse modo, aumenta-se a produção do rebanho e diminui-se a reprodução das
propriedades, inviabilizando novas posses. Por sua vez, os descendentes buscavam campos de
formação como direito, medicina e agronomia, fazendo das cidades seu ambiente e exercendo
funções administrativas e públicas, mantendo vínculos familiares e fortalecendo vínculos
políticos e econômicos, favorecendo o trânsito de interesses e de ideologias do grupo envolvido.
E nas fazendas, passou-se a utilizar a mão de obra contratada sazonalmente, quando nos picos
do trabalho com o rebanho, produzindo relações sociais e de trabalho diferenciadas e mesmo
de estranhamento entre empregado e o agora patrão, que não conta mais com a confiança de
seus parentes e agregados.
Criam-se associações como o Centro de Criadores da Nhecolândia que estabelece
normas e regras – como a lei seca – para a convivência e a permanência dos empregados nas
fazendas, com isso aprimora-se e se permite a manutenção da unidade e a progressiva
autonomia entre os criadores da região, compreendida entre os rios Taquari, limites de Corumbá
com Coxim, Negro, Miranda e Paraguai. Entre os investimentos do Centro de Criadores,
constava a construção de regos d’água, escavações em busca de água em períodos de secas
(1936-1938), a construção de pontes como forma de manter o “desbravamento” sem o custeio
do município de Corumbá e do estado de Mato Grosso, mantendo assim o “progresso material
e a moral” da Nhecolândia, revelando inflexões discutíveis e tangenciando o mérito de suas
intenções e de poder.
Verificamos a ocupação das áreas inundáveis por aventureiros em busca de riquezas
como couro e penas, e com entusiasmo, chegavam mais criadores para ocupar novas áreas onde
“a qualidade e a imensidão daquela terra, palco de guerra” era propícia para a atividade pastoril,
com recursos naturais vistos como inesgotáveis e provenientes de suas inundações tão benéficas
para investimentos agropastoris. Gradativamente, as transformações operadas no meio
ambiente se processaram através da formação e introdução de espécies alheias ao ambiente;
pela introdução e cruzamento de raças como o zebu, pela exploração da madeira, pelo
desmatamento, pela comercialização de penas, peles e couros, pela exportação de espécies da
fauna e flora – plantas ornamentais, em escala acelerada.
Consta nos estudos de Alves (2004) que foi a partir das primeiras décadas do século
XX, que na Nhecolândia passou a se utilizar, além das trincheiras de taquara, os cercamentos
dos campos para amealhar o gado a uma venda mais sistemática como forma de aumentar o
capital, coincidindo com a compra do primeiro automóvel em 1925 para a fazenda.
Curiosamente, nos relatos de José de Barros consta uma viagem que fez de caminhão saindo da
sua fazenda até Corumbá em outubro de 1937, onde registra ter observado ao longo do caminho,
vestígios de uma grande estiagem e a travessia do gado às margens do rio Paraguai para não
morrerem de sede, pois muitas aguadas e baías estavam secando e em janeiro de 1938, no
registro de suas lembranças, escreve “continua a escassez de chuvas torrenciais; as que aqui
caem são de manga e intervaladas de grande calor” (1987: 88). Faz constar o primeiro registro
de uma estiagem prolongada que permitiu o tráfego de caminhão e automóvel, o que aponta
para a abertura de estradas – um elemento modificador da paisagem pantaneira – cuja finalidade
não seja apenas uso de carros de boi e condução de boiadas.
As inundações, por um lado, atuavam como limitadoras, mas, por outro lado,
possibilitavam o cultivo de forragens e de pastagens usadas como suplemento alimentar do
rebanho no período das chuvas – das enchentes, que renovavam pastagens e abasteciam rios,
córregos e baías garantindo a saciedade do rebanho e aguçando ainda mais a avidez pela
pecuária. Com a abertura de novas áreas, a ação do desmatamento cresce nas cordilheiras onde
predomina a savana florestada característica específica das sub-regiões da Nhecolândia, de
Corumbá e de Aquidauana. Alargando os campos de pastagens e, consequentemente, a área de
espraiamento das águas, inundando áreas até então inalcançadas pelas águas. As cordilheiras,
também conhecidas como terra firme, são como microrrelevos, uma espécie de duna eólica,
geralmente dispostos em aproximadamente 4 (quatro) metros ou mais acima do leito de várzeas
e rios e de aproximadamente 2 (dois) metros ou mais acima do solo dos campos. A vegetação
das cordilheiras consistia em compactos bosques de novateiros, figueiras, jenipapos e
ingazeiros alinhados com ligeiras elevações arenosas acompanhando os rios e os corixos que
atuando como fluxo de água intermitente, alimentavam os rios e lagoas no período das cheias.
A vegetação atuava como reguladora, ou seja, nas cheias impedia o espraiar das águas e na seca
como fator atenuante do vento, evitando os danos da erosão eólica, além de ser um viveiro
natural de aves. Com o desmatamento e com a implantação de pastagens cultivadas que se
adaptam melhor nas cordilheiras por se tratar de solo mais arenoso, ocorre um desequilíbrio
que dificulta a manutenção do sistema ecológico e hidrológico causando uma sobrecarga nas
cordilheiras.
O que o autor chama de alteamento gradativo das terras está associado ao processo de
erosão que acumula finas camadas de detritos transportados pelas inundações provenientes da
devastação das áreas. Acrescenta ainda, ao longo de suas ponderações, que a facilidade na
aquisição de terras favoreceu a formação de extensas propriedades – vencendo o temor pelas
ações e investidas dos indígenas – mantendo um trabalho em conjunto cujo objetivo era saber,
persuadir e conduzir homens capazes de povoar e de implantar atividades agropastoris, fato
evidenciado por José de Barros em Lembranças. Identificamos a fazenda Jacobina e a sub-
região da Nhecolândia como exemplos de dois grandes latifúndios comandados por uma forma
de administração praticamente senhoril decorrente das condições geográficas e econômicas de
um governo particular que dispensava a assistência em âmbito social, ou seja, a produção
agrícola, a pecuária, a extração de madeira e a caça. Alambiques, teares, alfaiates, carpinteiros
fornecendo o necessário para a manutenção e o controle dos empregados e suas famílias,
mantendo a propriedade em contínuo e pleno funcionamento, evitando qualquer interferência
exterior ao sistema ali existente.
A desagregação de muitos latifúndios, incluindo a Nhecolândia tem seu início nos anos
1970, com a valorização das terras e com o aumento da densidade demográfica. Muitos
iniciaram o processo de desagregação das terras com a morte dos “seus pioneiros”, cujos
herdeiros não manifestaram vontade na continuidade dos trabalhos e passaram a atuar apenas
como gerentes e administradores. Trata-se de profissionais, fazendeiros e investidores para os
quais o desmatamento era necessário e a extinção de espécies nativas estava associada à
expansão e à limpeza das áreas para agricultura e para a pecuária; aos índices de investimento,
produção e retorno; à invasão biológica nociva às espécies nativas; às pastagens artificiais; à
limitação dos recursos naturais; à introdução de plantas e animais exóticos; à caça por diversão;
às queimadas que aos poucos destruíram os habitats naturais, levando à extinção e ao
decréscimo de muitas espécies. Essa era a forma de “engrandecer o Pantanal”.
Segundo Queiroz, em muitos casos, a manutenção dos domínios herdados estava
concatenada com as políticas territoriais, onde “o domínio do território constituiu para essas
classes uma importante fonte de legitimação de seu domínio sobre a sociedade, e o dogma da
unidade e da integridade serviu frequentemente de pretexto para o esmagamento de movimentos
contestatórios [...]” (2003: 21). Proeza semelhante ocorreu no Campo dos Descalvados, quando
a política nacionalista implantada por Vargas no Estado Novo, impulsiona e favorece o
desmembramento de latifúndios que se desdobram em dezenas de fazendas administradas por
diferentes pessoas, transferindo efetivamente a posse para terceiros, mas mantendo o quadro
original praticamente inalterado, eliminando um latifúndio incômodo e improdutivo em sua
totalidade, que resulta em dezenas de fazendas produtivas e aptas a receberem investimentos e
recursos governamentais, para explorar a capacidade das pastagens com a multiplicidade de
cercas formando múltiplos cercados para abrigarem os rebanhos (Revista Brasil Oeste, 1964-
1965).
Como consequência da redução das áreas florestadas, ocorrem mudanças e/ou alterações
nos ciclos hidrológicos que vão afetar diretamente o equilíbrio do meio ambiente, resultando
em imensas áreas de pastagens que dobraram seu tamanho entre os anos de 1970-1990. É o
caso do Pantanal do Paiaguás e da Nhecolândia, que atingem uma área de 246.740 ha de área
desmatada para formação de pastagens (SILVA et al., 1992). Foi também na fazenda Guanandi
na sub-região da Nhecolândia, que foi implantado o primeiro curral australiano, um cercado
redondo com subdivisões, capaz de abrigar uma boiada de 3 (três) mil cabeças, facilitando a
classificação do rebanho, sendo o modelo adotado por muitos pecuaristas.
Nos discursos proferidos por memorialistas e pioneiros não se acrescenta o fato de que
agropecuária é responsável, em grande parte, pelo desmatamento e pelo assoreamento de rios
como o Taquari – integra a Bacia do Alto Paraguai com uma extensão de 28.000 km² – que, em
virtude da rápida expansão da agricultura e da pecuária, desordenadamente foi reconfigurando
as paisagens pantaneiras com um processo de erosão ímpar a partir dos anos de 1970. O
resultado dessa ação é uma área de inundação permanente de aproximadamente 11.000 km². É
justamente em decorrência do assoreamento que ocorre a inundação permanente, agravando
ainda mais os impactos ambientais nas margens e adjacências do rio Taquari, onde os
arrombados comprometem o curso das águas, rompendo e rasgando suas margens, o que gera
graves efeitos na sucessão vegetal e da ictiofauna causando um deserto aquático, expulsando
em grande número as populações ribeirinhas rumo às cidades, o que resulta no acréscimo da
população periférica. Em função do assoreamento, o extravasamento do rio invade áreas e
expulsa pequenos criadores e sitiantes, como também fazendeiros que buscam se acercar de
mais áreas provocando mais mudanças econômicas e socioambientais.
Gradativamente se construiu uma história de luta e tenacidade justificando parte da
história pantaneira ou, conforme escreve Rondon (1972) na epígrafe do seu livro “Recursos
Econômicos do Mato Grosso”:
Através das páginas deste livro o leitor vai receber as mensagens dos sertões de Mato
Grosso. O mensageiro, é um dos seus filhos, que para receber as notícias a transmitir
palmilhou sertões – a pé, a cavalo, em carro-de-boi, em canoa, em jeep, e até em
jangada. Venha, os nossos sertões têm muito o que lhe oferecer, inclusive a felicidade.
Os aspectos descritos por Rondon abrangem a economia, englobando aspectos da
geografia física e econômica, bem como humana, apresentando o potencial do Estado e sem
qualquer nuance de esquecimento, de seu povo valente e pioneiro que pacientemente espera a
colaboração de brasileiros dispostos a ocupar suas terras, prepará-las e convenientemente entrar
nos dias vindouros de progresso e desenvolvimento, cujos recursos naturais desempenham
papel essencial. Os mesmos recursos que atraíram os “bravos bandeirantes” que construíram o
Pantanal tal qual o encontramos na historiografia memorialista. Trata-se da oferta do pacote
completo, com a descrição dos meios de transportes utilizados e de quebra, incluindo a
felicidade.
A junção de tais elementos permitiu estabelecer laços políticos e econômicos essenciais
para a construção ou quiçá, aqui ousamos dizer a “invenção de um espaço singular” - o Pantanal,
de um paraíso às avessas cuja valoração está centrada na posse da terra e comercialização da
natureza. Colocando o agronegócio na rota da competitividade dos grandes mercados
consumidores, intensificando e ampliando a conversão de áreas florestadas em pastagens,
gerando consequências ambientais negativas, dificultou-se a permanência de pequenos
produtores, pescadores e sitiantes, além dos demais grupos – como dos trabalhadores nas
fazendas - que se viram ameaçados e fragilizados. Ações que provocaram alterações na
percepção e sensibilidade do homem para com a natureza e suas interferências nas estratégias
adotadas para permanência na planície inundável. Cenário esse, onde as perspectivas de
progresso e civilidade, do agenciamento de recursos à geração de lucros, centrava-se na
substituição e modificação dos ecossistemas, na simplificação dos objetivos e interesses frente
aos inequívocos do atraso.
A natureza pantaneira passou a ser meramente um recurso disponível, passível de
exploração, perpetuando práticas como o desmatamento e queimadas, impactando
violentamente a cadeia hídrica e os ecossistemas da planície inundável, bem como marcando
seus limites e instaurando territorialidades. Aspectos encontrados em manuscritos e
apontamentos de José de Barros, revelam a estruturação política e a aquisição de propriedades
pelos pantanais como forma de estabelecer e de ordenar a exploração agropastoril por seus
descendentes e agregados. Encontramos também, apontamentos a esse respeito em Virgílio
Corrêa Filho, ao escrever sobre a Nhecolândia e seus pioneiros no que tange ao poder pecuniário
dos mesmos e a possibilidade da aquisição das terras. Mesmo dispondo de pouco ou nenhum
capital tinham a possibilidade de acercar-se de pequenos lotes perfazendo no conjunto uma
grande área, que inicialmente serviu para constituir capital juntamente com os recursos
advindos do próprio desbravamento.
Assim, compreender as realidades históricas implica em entender que o lugar integra
contextos mais amplos que por sua vez, englobam as condições econômicas, políticas, culturais,
sociais e das condições vividas por seus habitantes.
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