nietzsche por heidegger

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    cadernos Nietzsche 10, p. 11-25, 2001

    Nietzsche por Heidegger:

    contrafiguras para uma perda*

    Mnica B. Cragnolini**

    Resumo:Ao contrapor idias e imagens da filosofia nietzschiana s idias eimagens da interpretao heideggeriana da mesma filosofia, o texto revela oaspecto nmade e antimetafsico do pensamento de Nietzsche. Longe de sero arauto da razo instrumental e calculadora, que atravs da tecno-cinciadomina a natureza, Nietzsche preconiza uma razo imaginativa, ou seja, acriao de mltiplos caminhos e sentidos na existncia humana.Palavras-chave:metafsica niilismo razo imaginativa razo instrumental

    Ningum pode negar que a interpretao heideggeriana deNietzsche inicia uma nova etapa nos estudos nietzschianos, poisconcedeu ao filsofo, at ento recepcionado fundamentalmentecomo literato ou como pensador algo isolado, um lugar privilegia-do na histria da filosofia. Ningum pode negar que Nietzsche uma presena constante na obra de Heidegger e que este dedicouquele mais pginas do que a qualquer outro pensador. Tampoucose pode negar a maneira sistemtica com que os pensamentos do

    eterno retorno, da vontade de potncia e do alm-do-homem (1) so

    * Conferncia proferida em 21 de agosto de 2000 no Departamento de Filosofia daUniversidade de So Paulo. Traduo de Wilson Antonio Frezzatti Jr.

    ** Professora da Universidade de Buenos Aires.

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    entrelaados em uma arquitetura filosfica que se torna convin-cente e se mostra slida, demasiado slida.

    No entanto, nessa slida arquitetura, o pensador do perspec-tivismo e da multiplicidade de interpretaes transforma-se no an-tecessor da tecno-cincia e de seus caminhos unilaterais; o filso-fo do risco converte-se no pensador da mxima segurana do entena vontade calculadora de valores; o homem que busca um respostaante o niilismo e a falta de sentido se transmuta no maior apro-fundador dos mesmos.

    certo que, apesar da coerncia arquitetnica, no se pode

    falar de uma nica interpretao heideggeriana do pensamentonietzschiano, mas de diversas etapas interpretativas. Neste trabalho,faremos referncia segunda etapa, a que considera Nietzschecomo aquele que por ltimo pensa e aquele que perfaz a metafsi-ca da subjetividade. Em uma primeira etapa interpretativa (os tra-balhos de 1936 a 1937, coligidos em Nietzsche I), o filsofo interpretado fundamentalmente como inversor do platonismo, oqual, contudo, no repete o esquema platnico mas apresenta ou-tro pensamento. Em uma segunda etapa (Nietzsche II e os escri-tos de Holzwege Gott ist tot e Die Zeit das Weltbildes),Nietzsche no somente o inversor mas o aprofundador da hist-ria da metafsica (escritos dos anos de 1940-1946). A partir de1950, abre-se uma terceira etapa de interpretao, presenciada emWas heisst denken, na qual de certo modo se repetem alguns as-pectos da primeira etapa de reflexo: Nietzsche j no seria o pen-

    sador do alm-do-homem como super-sujeito representativocalculador, mas a figura do alm-do-homem aproximada arte e poesia.

    Em um dos assim chamados bilhetes da loucura de janeirode 1889, dirigido a Georg Brandes, Nietzsche assinala:

    Aps me haver descoberto, no significa grande coisa me en-contrar: o difcil, agora, me perder (Nietzsche 6, Vol. 8, p. 573).

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    Nietzsche queria ser perdido e Heidegger o segura de-masiado. E, no entanto, o perde em outro sentido: perde a fora de

    seu pensamento para seu prprio pensamento, aquele que preten-de ir alm da histria da metafsica da subjetividade. A idia daperda nietzschiana supe toda uma forma de conceber a filoso-fia, na qual esta risco e possibilidade, fico e interpretao. Aperda implica a no-converso do pensar em dogma e sistemaslido, resguarda das festas do asno concebidas como novasformas de celebrao de deus ou de suas sombras. A perda utilizaa mscara do mestre, como Zaratustra, que parece um propalador

    de ensinamentos e doutrinas, mas que em realidade somente ensi-na que o caminho no existe, que nada pode ser aprendido, excetoaprender a desprender-se do aprendido e tambm a desprender-sedo prprio desprendimento. Gesto ambivalente do mestre que, aomesmo tempo que fala, diz esquea o que digo.

    Para Heidegger, perder Nietzsche significa pensar o no-pen-sado por seu pensamento. Da que o ouvido heideggeriano se mos-tre aberto e atento, escutando o no pronunciado pela linguagem(Heidegger 4, p. 22 e ss.; p. 62 e ss.). No mercado, Zaratustraperguntava-se ante os ltimos homens:

    Deve-se antes romper-lhes os ouvidos, para que aprendama ouvir com os olhos? (Za/ZA, Prlogo 5).

    Estaria o ouvido de Heidegger aberto para escutar o que

    Nietzsche diz e no diz ou no necessitaria, como ns necessita-mos cada vez que convertemos este pensamento em algo demasi-ado slido, de uma ruptura que mostre a importncia das transfor-maes mais que das solidificaes para Nietzsche? Por outrolado, o paradoxo produzido por esta interpretao de Nietzsche o fato de que existe demasiada presena nietzschiana no assu-mida na obra de Heidegger e que essa presena se torna visvel

    justamente naqueles pontos que representariam uma via diferente

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    frente aos modos de filosofar, nos quais inclui Nietzsche. Refiro-me metafsica da subjetividade e seu perfazimento na tecno-

    cincia: Heidegger converte Nietzsche no ltimo elo dessa cadeiaquando, paradoxalmente, se poderia pensar que o pensamentonietzschiano permite uma sada de tal metafsica, enquanto pos-sibilidade diferente de pensar.

    Abordarei trs pontos da anlise interpretativa de Heideggerpara mostrar depois a presena velada de Nietzsche no pensamen-to heideggeriano: a imagem do desventurado que abriga deser-tos, a idia do alm-do-homem como super-sujeito representati-

    vo na vontade calculadora de valores e a concepo do pensadorantecessor da tecno-cincia. Oporei a elas, respectivamente, a ima-gem do habitante temporrio de desertos ou viajante, a idia daconstituio da subjetividade a partir da vontade de potncia comorazo imaginativa e a concepo do pensador do perspectivismoe dos mltiplos caminhos(2).

    Aquele que abriga desertos, o alm-do-homeme o pensar calculador

    Em O que significa pensar, a expresso nietzschiana o deser-to cresce assimilada heideggeriana o gravssimo desta gravepoca que ainda no pensamos. O operar da tecno-cincia, en-quanto modo de pensar que calcula, no pensa (no sentido da de-mora) mas salta de um ponto a outro em busca de resultados.

    Esse operar mais interessado em resultados do que em caminhos.Se o deserto cresce, nessa nulificao que a tecno-cinciaprovoca, caberia perguntar se o pensar nietzschiano um pensargerador e amparador de desertos. EmNietzsche II, Heidegger res-ponde de maneira clara e categrica: o modo de pensamento pos-svel a partir da Wille zur Machtno somente representa um di-agnstico de uma situao o crescimento de desertos por obrado niilismo , mas, ao mesmo tempo, um aprofundamento de tal

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    situao. Se a vontade de potncia pensada como uma vontadesuper-representativa, calculadora de valores, o caminho a Gestell(3)

    est aberto. Desventurado aquele que abriga desertos, dizNietzsche: Heidegger, emNietzsche II, transforma o pensador doeterno retorno nesse desventurado, na medida em que o desertoabrigado em seu pensamento parece o ponto de partida dadesertificao total: o pensar unilateral da tecno-cincia(4).

    A essncia do niilismo a histria na qual j no h nadado ser. Heidegger se pergunta se Nietzsche superou, como pre-tendia, tal niilismo e responde negativamente: na metafsica

    nietzschiana est visvel o niilismo propriamente, no qual do sernada permanece (Heidegger 3, Vol. II, p. 335 e ss.). A pretendi-da destruio do niilismo (o niilismo integral nietzschiano) per-tence, para Heidegger, prpria histria do niilismo, j que a in-terpretao do ser como valor determina a concepo da histriada metafsica como niilismo: histria da desvalorizao dos va-lores supremos. A destruio dos valores levada a cabo porNietzsche aprofunda aquela desvalorizao, na medida em que serealiza desde o ponto de vista da instituio de valores, desde ainterpretao de uma vontade de potncia calculadora. E mais, averdadeira histria do niilismo cumpre-se, realiza-se e aperfeioa-se na filosofia nietzschiana, j que no valor no permanece nadado ser. Interpretar Wille zur Machtcomo vontade calculadorade valores permite a Heidegger fazer de Nietzsche o grande hos-pedeiro de desertos e a perfeio e o cumprimento do niilismo(5),

    niilismo que se priva, ao mesmo tempo, da possibilidade de co-nhecer sua prpria essncia.Ao niilizar-se o supra-sensvel, somente permanece a ter-

    ra como ponto de partida para a instaurao de valores e a novaordem converte-se em a incondicional soberania da pura potn-cia exercida pelo homem sobre o globo terrestre (id., ibid., p.34). A nova ordem exige uma nova posio da essncia do ho-mem: Nietzsche deve criar a figura do alm-do-homem (ber-

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    mensch) como a suprema figura da suprema vontade de potncia,incondicional soberania da suprema fora. A idia de alm-do-

    homem deve ser assentada, na segunda etapa da interpretaoheideggeriana, no contexto da histria da metafsica da subjetivi-dade, na qual o homem transformado em subjectum o centro dereferncia do ente enquanto tal, ente que, por sua vez, foi trans-formado em objectum. O sujeito da representao converte o mundoem imagem: o ente somente na medida em que estabelecidopelo homem que o re-apresenta(6)(Vor-stellen). Enquanto que napoca cartesiana, o acento estava posto no prefixo do termo

    Vorstellen, a metafsica nietzschiana evidencia-se no verbo(Vorstellen), constituindo-se no antecedente de Gestell. Inscritana histria da metafsica da subjetividade, a vontade de potncianietzschiana aperfeioa a subjetividade representativa cartesiana:projetando valores como condies para sua conservao e supe-rao, a vontade projeta suas prprias condies de ultrapassa-gem, representando-as na forma de nmeros, esse plus depotncia que a vontade sempre deseja. Como quanta de potncia,essa vontade calculadora um modo perspectivo de calcular suasprprias condies de intensificao.

    Quem representa a vontade de potncia como subjectum su-premo incondicionado o alm-do-homem, figura do homem tc-nico que domina a terra com seu pensar calculador. Aps Nietzsche,o niilismo mostra-se na indiferena ante a verdade do ente em suatotalidade. Fascinado pelo ente, indiferente ao ser, o mundo da

    tecno-cincia converte este em nadaEm que se transforma o pensar para esse super-sujeito darepresentao? Para o alm-do-homem, pensar calcular,como modo de assegurar as condies de intensificao da potn-cia por parte da vontade de potncia. Na interpretao heidegge-riana, o alm-do-homem a inverso da clssica definio do ho-mem como animale racionale: a ratio coloca-se agora a servioda animalitas, entendida como conjunto de impulsos por potn-

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    cia. O representar da vontade de potncia implica uma inverso daprimazia do ato de representar para a primazia do querer: agora a

    razo se transforma em razo atuante. Mas essa representaodo querer uma representao incondicionada, na medida emque a vontade de potncia no quer nada fora de si mesma. A par-tir dessa inverso da subjetividade do ato de representar para sub-

    jetividade da vontade de potncia, a razo perde sua antigahegemonia como via para o projeto do ente. No entanto, nestemomento, devemos salientar que nesse caso no h essa inversoda idia de animal racional indicada por Heidegger, j que ele ca-

    racteriza a animalidade como vontade de potncia e a vontade depotncia como vontade de clculo: super-razo do projeto tecno-cientfico de dominao da terra.

    O alm-do-homem domina a terra em virtude de uma ma-quinizao das coisas. Segundo Heidegger, em Gelassenheit,Nietzsche reconhece o carter metafsico da mquina(7), o quetorna possvel essa dominao do ente como controlvel e pass-vel de acumular energias. Nesse sentido, o pensamento inaugura-do por Nietzsche na idia de vontade de potncia como vontadecalculadora desde o operar de uma subjetividade representativaconstitui, para Heidegger, um pensar enclausurador. Esse pen-sar enclausura porque d uma resposta definitiva e fechada acercado ser do ente e, nesse sentido, no pode oferecer nenhuma opodiferente frente ao niilismo do nada do ser, exceto seu aprofun-damento a partir de suas prprias idias metafsicas.

    Contrafiguras

    Ressaltei anteriormente a possibilidade de contrapor outrasfiguras e idias a essas idias heideggerianas, contrafiguras queesto presentes em Nietzsche e que se relacionam, segundo meuparecer, com o prprio pensamento de Heidegger em seu intentode ir alm da metafsica da subjetividade. Este o no-pensado,

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    porm no do filosofar de Nietzsche, mas do que Heidegger ldesse filosofar.

    Indicou-se como se constitui, na interpretao heideggeriana,a inter-relao entre a idia daquele que abriga desertos, o alm-do-homem como subjetividade representativa e o pensamento cal-culador. Ante idia daquele que abriga desertos, poder-se-ia in-dicar a do viajante, como habitante temporrio dos desertos,e opor a contrafigura do alm-do-homem pensado a partir de umainterpretao de Wille zur Machtcomo razo imaginativa e deuma interpretao, relacionada, com a anterior, do pensar pers-

    pectivo ou de mltiplos caminhos. A caracterstica dessascontrafiguras que elas pem em questo o carter fixador dainterpretao heideggeriana, pois apontam para aquela perda, aque-le gesto ambivalente do mestre, assinalados no incio deste traba-lho. E o que aqui se perde a converso do pensamentonietzschiano em uma figura da metafsica da subjetividade, paravislumbr-lo como uma possibilidade de pensar em um caminhodiferente do transitado por essa metafsica.

    Para caracterizar essa possibilidade, podemos partir dacontraposio entre o perspectivismo nietzschiano e o pensar cal-culador. Segundo Heidegger, a filosofia deve ser uma constanteformulao de problemas, o caminho presente na epgrafe desuas obras Wege, nicht Werke. Se a filosofia desse respostas,transformar-se-ia em doxografia. Diante disso, para Heidegger,Nietzsche no s deu uma resposta segura e fechada para a pro-

    blemtica do ser, mas tambm tornou possvel as bases metafsi-cas do modelo por excelncia da resposta que dissolve os pro-blemas no paradigma tecno-cientfico calculador, o pensar inca-paz de demorar-se em seus objetos.

    Ante essa concepo da vontade de potncia calculadora, possvel outra interpretao dessa vontade, a qual, tendo em contao aspecto calculador, d conta tambm de outros matizes. Nietzschepergunta-se:

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    A possibilidade de calcular o mundo [die Berechenbarkeitder Welt], de expressar tudo o que acontece por frmulas re-almente um compreender? (KSA 12, 7[56]).

    Se interpretarmos o compreender como abarcando algo maisdo que a logicizao do mundo (termo muito utilizado nos Ps-tumos para indicar a necessidade das fices lgicas na tentativade ordenamento do catico e do que vem-a-ser), necessrio terem conta tambm o aspecto multiplicador de sentidos:

    Na medida em que a palavra conhecimento possui um sen-tido, o mundo cognoscvel: porm interpretvel de outro modo,no tem nenhum sentido por trs de si, mas inmeros sentidos[unzhlige Sinne]: perspectivismo (KSA 12, 7[60]).

    Pensar Wille zur Machtcomo fora interpretativa algo pos-svel a partir do conhecido fragmento pstumo intitulado Exot-rico Esotrico possibilita entender esse compreender a quealude Nietzsche como o jogo de um duplo operar: aquele do tradi-cionalmente chamado razo (o aspecto de logicizao do mundo)e aquele do tradicionalmente considerado imaginao (a possibi-lidade de multiplicar os sentidos). Com a interpretao da vonta-de de potncia como razo imaginativa, possvel ter em contatanto o carter universalizador, estruturante e esquematizador daracionalidade quanto a qualidade singularizadora, recriadora e re-estruturante da imaginao. A imaginao a fora multiplicadora

    de sentidos que possibilita, uma vez destrudas as metafsicasmonotestas e mumificadoras do conceito, a contnua recriaodas perspectivas. Mas essa recriao no o operar de um super-sujeito representativo que exerce o domnio do ente, como preten-de Heidegger, mas, ao contrrio, e com um termo de Vattimo, deum sujeito debilitado (Vattimo 8, passim).

    A idia de vontade de potncia como razo imaginativa ca-racteriza um operar interpretativo e configurador da realidade que,

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    em tal tarefa, realiza um constante movimento de aglutinao deforas em torno de um centro estruturao e de disperso das

    mesmas desestruturao para novas criaes de sentidos. Adisperso do sentido, o afastamento do centro, o modo de pre-servar-se das respostas ltimas e das seguranas das filosofias queprocuram arkha. Na modernidade, a arkh constitui o prpriosujeito, como ente que representa. A idia da vontade de potnciacomo razo imaginativa permite pensar o sujeito mltiplo: aqueleque designa com o termo sujeito ou eu a essas aglutinaestemporrias dos quanta de potncia que lhe permitem, por exem-

    plo, atuar, ou pensar, sabendo que o sujeito uma fico. Se osujeito fico, o objeto e a relao que os une, a representati-vidade, tambm so. O modo de conhecimento que Nietzsche de-senvolve a partir das noes de falsificao, fico e interpre-tao no fundamentalmente representativo, enquanto fixadordo ente em questo.

    Penso que conceber os entes segundo uma nica perspectivaimplica um dos modos da maior dominao e fixao do ente, algoque a metafsica buscadora de fundamentos sabe demasiado. Musildizia que os filsofos so militares sem exrcito e Nietzsche tam-bm fala da tirania do esprito. O perspectivismo, como filosofiapossvel a partir desse operar da vontade de potncia como razoimaginativa, assinala uma maneira de romper com essa fixaoltima do ente, no desde uma posio pretensamente assptica elivre de dominao, porm desde uma postura que admite o ele-

    mento de domnio presente na interpretao, mas que destri cons-tantemente esse domnio para evitar o anquilosamento em figurasltimas. O mumificado, efetivamente, o mais dominvel. O pers-pectivismo mostra aquilo que est presente no sonho de Zaratus-tra como cuidador de sepulcros que libera a vida em forma deborboletas, crianas e anjos (Za/ZA II, O adivinho).

    Esse perspectivismo trabalha com a idia de verdade comoerro til, o que supe somente fixaes provisrias ante a noo

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    de certeza prpria do pensar representativo. Heidegger caracte-riza a noo de verdade de Nietzsche como certeza para inseri-lo

    nessa tradio que o mesmo Nietzsche intenta destruir. E aqui necessrio ter em conta que a destruio nietzschiana se importu-na com essa tradio da metafsica por razes vitais, pelos efei-tos que gerou a metafsica e a moral na vida dos homens, nos modosde sujeio que caracterizam as formas de vida do Ocidente. Asseguranas nietzschianas (o elemento de unidade, ou de for-ma, presente em toda perspectiva) so provisrias: o filsofo noesquece que est construindo sobre oAbgrund, sobre o sem-senti-

    do da des-fundamentao. Eis aqui o risco.Por isso, o Nietzsche da Wille zur Macht entendida como

    razo imaginativa frente ao Nietzsche heideggeriano da Wille zurMachtcomo clculo oferece uma possibilidade para um pensa-mento que, em lugar de antecipar o caminho da razo instrumen-tal que no se detm em nenhum ponto e assim sendo, sem de-mora, no pensa , abre as portas para outro modo de pensarno fixador. O operar conjunto do aspecto estruturante e imobili-zante da razo, que deve fixar o que (e, nesse sentido, fecharem parte as questes), e do carter desestruturador e multiplicadorde sentidos da imaginao, que rompe constantemente com asformas fixas e recria sentidos, impede o fechamento do pensar emfiguras mumificadas, figuras que, como tais, permitem o exerc-cio indiscriminado do domnio. No perspectivismo, melhor queenclausurar pensamentos, trata-se de recri-los, de romper com as

    respostas ltimas, com as filosofias das respostas finais que, comoassinala o prlogo de A gaia cincia, sempre levam a suspeitarquanto de enfermidade e de necessidade de segurana havia nofilsofo que as engendrou.

    Nietzsche , como Zaratustra, um dos que abandonaram acasa do saber, o templo da sabedoria, batendo a porta(8). Uma vezabandonadas as seguranas, a filosofia transforma-se em uma via-gem constante no deserto do sem-sentido, porm no se trata de

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    abrigar o deserto, mas de atravess-lo. O viajante no encontraseu lugar ltimo em nenhum local: um nmade sou eu em to-

    das as cidades e uma despedida diante de todas as portas (Za/ZAII, Do pas da cultura). A filosofia perspectivista um exerccioconstante da despedida e do adeus: s certezas, s ltimas segu-ranas, aos sistemas demasiado slidos.

    Desde a morte de Deus, j no h casa nem solo seguro parao homem: desvelado o abismo da desfundamentao, o filosofartransforma-se em um risco constante, em uma viagem provisriana qual toda a casa tambm provisria: tendas no deserto do sem

    sentido. O filsofo do niilismo futuro no aquele que abriga de-sertos, mas o que neles transita, aquele que, ante ao filsofo doniilismo decadente, que dirige seus esforos e pensamentos emuma s direo, exercita a possibilidade de diversificar-se, deter muitas almas, de eludir a existncia fixada em uma figura ni-ca e consistente. Mltiplas mscaras ante necessidade de rostoltimo do decadente, pensamento concebido como dana ante marcha desengonada do douto.

    Enquanto a razo hipertrofiada da filosofia criticada porNietzsche tende a solues ltimas, a razo imaginativa, em suaconsiderao da multiplicidade, da riqueza de aspectos daquilo doque se ocupa o pensamento, mas, ao mesmo tempo, da necessida-de de unificar para poder pensar sem se perder no anrquico, geraperspectivas provisrias. O pensamento para Nietzsche algo leve,divino, estreitamente afim da dana (JGB/BM 213), enquanto

    que para os decadentes o pensar um penoso ter-que-seguir eser-forado (JGB/BM 213) na direo nica que marca a buscado fundamento. O conceito de vontade de potncia como razoimaginativa no procura uma conciliao ou sntese da multiplici-dade e da disperso, mas um modo de assumir ao mesmo tempoo fragmentrio e a necessidade de falsificao da unidade. Noexiste, portanto, caminho que v do fragmentrio at a unidade este o modo de operar prprio da metafsica que busca funda-

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    mentos , nem tampouco o caminho contrrio, que destri o univer-sal somente para se perder no fragmentrio. A pura disperso na

    fragmentao costuma ser, por vezes, um modo diferente de se-gurana. Diante disso, o pensar nmade na medida em que ne-nhum caminho est traado de antemo e na medida em que deveatravessar o deserto do niilismo buscando moradas provisrias.

    O pensamento, para Nietzsche, um ir-e-vir constante emuma viagem sem finalidade (atelos), na qual o fio de Ariadne nose mantm esticado em direo arkh, como na metafsica, masse arrisca nos desvios, nos caminhos laterais e marginais, aos quais

    Heidegger denomina Holzwege, caminhos na floresta que,afastados do caminho principal, faz o lenhador. Por isso, Nietzschedeve ser perdido: nenhuma figura de seu pensamento pode fix-lo em uma doutrina, j que a aposta a do risco de pensar, riscoque significa o contnuo desprendimento e desfazer-se de toda idiaque estimule demasiado a segurana. E no existe pior segurana,no pensamento, do que a de crer que se possui uma verdadeltima: assim sendo, sim, Nietzsche estaria definitivamente morto.

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    Notas

    (1) Traduzimos o termo superhombre (cujo termo original, em alemo, bermensch) por alm-do-homem porque entendemos que o prefixo ber-,no conceito nietzschiano de bermensch, remete ao sentido de superaoda humanidade. No entanto, em outros termos utilizados por Cragnolinipara se referir interpretao heideggeriana de bermensch, mantivemoso prefixo super-. Tais palavras so as seguintes: supersujeto (super-sujeito), super-representativa (super-representativa) e super-razn(super-razo). Adotamos esse critrio porque, na interpretao heidegge-

    riana, o prefixo super- desses termos tem o sentido de potencializaoou de exacerbao de certas capacidades do prprio homem, pressupostopara consider-lo como dominador da natureza atravs da tcnica e dacincia (nota do Tradutor).

    (2) Desenvolvo esses temas amplamente no meu livro Nietzsche, camino ydemora.

    (3) Gestell, em alemo, , em seu sentido comum, cavalete, estante de livrosou armao. Esse termo utilizado por Heidegger para designar o modoque se realiza o confronto entre o homem e a tcnica. Esse uso do termo,

    de difcil traduo, aparece no textoIdentidade e diferena (nota do Tra-dutor).

    (4) O alm-do-homem do Nietzsche II esse desventurado, enquanto que arelao com a arte que lhe atribuda em O que significa pensar quepertence etapa interpretativa anteriormente assinalada como terceira oafasta, em certa medida, dessa interpretao.

    (5) O pensamento, tal como foi at agora, metafsica e o pensamento deNietzsche representa provavelmente seu cumprimento (Heidegger 5, p.80).

    (6) No texto original, a palavra utilizada re-presenta, que se sobrepe palavra representar. Presentar, em espanhol, significa apresentar, mos-trar, pr em presena de (nota do Tradutor).

    (7) Heidegger faz referncia a WS/AS 218.(8) Pois esta a verdade: abandonei a casa dos doutos e, alm disso, bati a

    porta a minhas costas (Za/ZA II, Dos doutos).

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    Colli und M. Montinari. Berlin/Munique: Walter de Gruyter/DTV, 1988.

    8. VATTIMO, GianniMs all del sujeto. Nietzsche, Heidegger yla hermenutica. Traduo de J. C. Gentille Vitale. Barce-lona: Paids, 1989.

    Abstract: Opposing the ideas and images of Nietzschean philosophy to theideas and images of Heiderggerean interpretation of the former, the text re-veals the nomad and antimetaphysical aspect of Nietzschen thougt. Far frombeing the herald of instrumental and calculating reason that dominates natureby the technoscience, Nietzsche advocates an imaginative reason, i. e., thecreation of multiple ways and senses in human existence.Key-words:metaphysics nihilism imaginative reason instrumental reason