no começo deste ano, quando tive de fazer um editorial de moda · outros trabalhos faziam parte da...
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Ana Maria Tavares Cavalcanti
Comunicação para o III Simpósio Nacional de História Cultural – 2006
Mesa 13: Imagens de ArteTema: História de coleções e história de exposições de arte
Título: “Arrufos” de Belmiro de Almeida (1858-1935) – história da produção e da recepção do quadro
É possível que muitos aqui presentes já tenham ouvido o professor Jorge Coli,
da Universidade de Campinas, contar uma experiência pessoal que serve de introdução
ao que vou apresentar em seguida.
Quando estudante, no final da década de 1960, Jorge Coli morava perto da
Pinacoteca do Estado, em São Paulo. Apesar de aprender na universidade que a arte
brasileira do século XIX era “acadêmica” e “ruim”, não resistia à fascinação de quadros
de Oscar Pereira da Silva, Almeida Júnior ou Pedro Weingartner que costumava ver nas
salas da Pinacoteca. Coli sentia culpa por seu “prazer proibido” e, para amenizar este
sentimento, dizia a si mesmo que “estava ali para aprender o que ‘era pintura ruim’”1.
Mais de trinta anos se passaram, porém ainda é possível encontrar nos textos de
história da arte referências aos “equívocos”, à “timidez” e ao “atraso” dos brasileiros
que não aderiram às novas tendências artísticas florescentes na Europa do final dos
Oitocentos. Muitas vezes, para ressaltar a qualidade de um pintor do período, procura-se
diferenciá-lo de seus contemporâneos, afirmando sua modernidade prematura.
Este caminho não me parece promissor. Afinal, se os “óculos” modernistas já
não nos servem quando se trata de arte contemporânea, é melhor abandoná-los,
igualmente, quando o assunto é a arte produzida no Brasil na passagem do século XIX
para o XX.
Não quero dizer com isto que podemos alcançar um olho “natural”, liberado de
vícios ou convenções. A experiência de ver sempre acontece dentro de um contexto
cultural. Quando vemos algo, não usamos apenas nossos olhos, mas também nossos
pensamentos e emoções. Não existe um olho “natural” desprovido de cultura.
A impressão que temos de um quadro ao vê-lo exposto num museu, por
exemplo, é diferente da impressão que teríamos do mesmo quadro se o víssemos na casa
de um parente ou amigo. Essa relação com o quadro também muda se, antes de vê-lo no
1 COLI, Jorge. Como estudar a arte brasileira do século XIX ?. In: O Brasil Redescoberto. Rio de Janeiro: Paço Imperial, MinC IPHAN, 1999. p. 124.
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museu, já conhecemos sua imagem reproduzida em livros, revistas ou projetada numa
sala de aula. Tudo o que lemos ou ouvimos contar sobre a obra e o artista que a realizou
está presente no momento em que a vemos pela primeira vez “ao vivo”. Por outro lado,
não precisamos conhecer a história de uma tela para que sua imagem nos pareça
atraente ou repulsiva. E muitas vezes, embora nos tenham ensinado que tal obra é
excepcional e outra medíocre, nossa primeira reação diante delas pode contrariar tais
informações.
Mas haverá uma maneira “certa” de perceber uma pintura? E haverá uma
maneira “certa” de produzi-la? As formas de produção e recepção da arte modificam-se
no correr da história. Assim, prefiro buscar respostas a outras duas perguntas: O que um
pintor do século XIX desejava provocar em seu público? O que o público do período
esperava encontrar numa exposição de arte?
Vejamos o caso particular de um quadro realizado em 1887, e que hoje integra o
acervo do Museu Nacional de Belas Artes, no Rio de Janeiro. O quadro em questão se
intitula Arrufos e seu autor é Belmiro de Almeida (1858-1935).
Quando exposto pela primeira vez, em agosto de 1887, Arrufos atraiu
numerosos visitantes ao Salão De Wilde, na rua Sete de Setembro, no centro do Rio de
Janeiro. O nome “Salão De Wilde” pode causar uma falsa impressão sobre o local da
exposição. Na verdade, tratava-se do segundo andar de uma loja de material artístico,
cujo dono era o belga Laurent De Wilde.
Sobre a sala, é interessante ler os comentários dos jornalistas da época. O crítico
do Diario Illustrado, após a visita, escreveu:
A sala onde Belmiro organizou a sua pequena exposição, não podia ser-lhe menos vantajosa. É extremamente pequena e só o quadro recebe um pouco de luz. Vê-se que andou por ali mão de artista a atirar com aqueles panos pelo chão, a cruzar aquelas armas, a pendurar a guitarra. Mas de que serve tudo aquilo quando falta a luz – condição primeira de uma sala de exposição? 2
No entanto, se o espaço era mal iluminado e exíguo, era animado pela freqüência
de artistas. É o que se depreende da descrição feita por outro jornalista, alguns anos
antes:
O atelier do Sr. De Wilde, à rua Sete de Setembro (Corte), é hoje uma espécie de pólo norte dos pintores notáveis. Ali se encontram os que estudam e, como conseqüência, os que ensinam; ali se discutem os grandes quadros com os pequenos defeitos e os grandes defeitos dos pequenos quadros; ali se formam assuntos; ali se retoca um erro, corrigindo-o; ali se discute pintura, arte, letras; ali aparecem as grandes cabeças nacionais e estrangeiras; ali o mestre abraça um
2 M.C. Bellas Artes. In: Diario Illustrado. Rio de Janeiro, 29 de agosto de 1887, p.2. [Biblioteca Nacional, Seção de Obras Raras. PR-SOR 03 703]
2
discípulo diante de um bom quadro e o discípulo começa a ser mestre com aquele abraço que o enche de orgulho e fervor artístico: ali, finalmente, naquela república cosmopolita sem presidente, reina sincera fraternidade e todos sentem em pura atmosfera, o valor do trabalho, o amor às belas artes e o mérito do artista, desconhecido, muitas vezes, dos seus companheiros.3
Quanto à exposição de Belmiro em 1887, de fato, por menos apropriado que
fosse o espaço da galeria improvisada, isso não impediu a afluência de público e as
discussões em torno das obras, sobretudo a propósito de Arrufos.
Outros trabalhos faziam parte da mostra, mas Arrufos chamava a atenção. Um
colunista do Diário Illustrado escreveu, em 29 de agosto, sobre o “grande quadro
exposto e esperado com curiosidade de muitos, a cujo número francamente pertenci”4.
É possível que as palavras de outro crítico, dois meses antes da exposição, tenham
criado a expectativa. “O nosso simpático Belmiro está concluindo um quadro, um
magnífico quadro. É preciso notar: o quadro de Belmiro não é histórico. Felizmente”5 -
escrevera Gonzaga Duque (1863-1911), em 28 de maio, no jornal A Semana.
Em 1887, Belmiro de Almeida, formado pela Academia Imperial de Belas
Artes, tinha 29 anos. Elegante, boêmio, irrequieto e sarcástico, destacava-se entre os
freqüentadores dos cafés da cidade. Admirado como caricaturista, agora se esforçava
para impor seu nome como pintor. Estava conseguindo. “É um quadro que honra o
artista e nos faz perguntar: por que não tem ele feito mais?”6, indagava o colunista do
Jornal do Commercio, em 3 de agosto.
“Arrufos” é “bastante para eclipsar tudo quanto [Belmiro] tem feito até hoje, e
alistá-lo no número dos nossos mais distintos pintores de gênero”7, elogiou o escritor,
teatrólogo e pintor França Junior (1838-1890), cinco dias depois, no jornal O Paiz. A
opinião de Gonzaga Duque, em seu livro A Arte Brasileira (1888), foi a mais
apaixonada: “Ainda no Rio de Janeiro não se fez um quadro tão importante como é
este”8.
3 Genésdio (Alfredo Azamor). O Fluminense. Niterói, 27 de setembro de 1885. Apud LEVY, Carlos Roberto Maciel. Antônio Parreiras: pintor de paisagem, gênero e história. Rio de Janeiro: Pinakotheke, 1981. p.62. [O jornalista Alfredo Azamor, que escrevia sob o pseudônimo de Genésdio, era amigo de Parreiras. (LEVY, p.26)].
4 M.C. Bellas Artes. In: Diario Illustrado. Rio de Janeiro, 29 de agosto de 1887, p.2.5 GONZAGA-DUQUE, Luís. Belas-Artes. In: LINS, Vera; GUIMARÃES, Júlio (org.).
Impressões de um amador: textos esparsos de crítica (1882-1909). Belo Horizonte: Editora UFMG; Rio de Janeiro: Casa de Rui Barbosa, 2001. p.156.
6 Exposição Belmiro. In: Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 3 de agosto de 1887, p.2.7 FRANÇA JUNIOR. Echos Fluminenses – dous artistas. In: O Paiz. Rio de Janeiro, 8 de agosto de 1887, p.2.8 GONZAGA-DUQUE, Luís. A Arte Brasileira. Campinas: Mercado de Letras, 1995. p.212.
3
Mas que atrativos possuía o quadro de Belmiro? Por que tanto alarde em torno
de Arrufos? Nos primeiros textos sobre a obra encontram-se comentários sobre a
composição cuidada, as figuras bem desenhadas e as cores harmoniosas. Porém, o que
mais encantou os espectadores foi imaginar a história sugerida pelo pintor: Por que a
moça está chorando? Será culpa do rapaz? Cada um dava seu palpite. “A cena passou-
se lá fora”, descreveu um articulista no Jornal do Commercio. Mas “daqueles arrufos é
natural que resulte nova paz, selada com férvidos beijos e carícias”9, completou a
seguir.
Opinião bem diversa tinha o cronista do Diario Illustrado: “quando uma
mulher, vestida de seda, se atira ao chão, brutalmente, como aquela, quando ela chora,
quando espatifa uma rosa, mordida de cólera, o negócio é muito mais sério que um
simples arrufo”. Comovido com as lágrimas da moça, esse mesmo jornalista acusou seu
companheiro de ser um “pelintra banal”, “incapaz de inspirar uma paixão a uma mulher
de espírito como parece aquela”, “um pobre de espírito, que tem a preocupação única
da toilette e da pose calculada” mas usa uma “horrível gravata vermelha de mau gosto,
de caixeiro ao domingo”10.
Para Gonzaga Duque, ao contrário, o marido retratado era “um guapo rapaz
delicado e forte”11. Não admira que se expressasse assim. Além de ser amigo do pintor,
diz-se que serviu de modelo para a figura masculina. É bem possível que tenha
incentivado a escolha de um motivo contemporâneo, do cotidiano, que considerava
mais adequado à sociedade moderna. Em A Arte Brasileira, elogiou Belmiro como um
inovador, capaz de realizar “verdadeira transformação estética” ao desprezar temas
históricos “para se ocupar de um assunto doméstico”. A seu ver, o povo necessitava
dessa arte “que lhe fala intimamente das alegrias e das desilusões”. As batalhas
heróicas não seriam adequadas à casa de família que “não comporta o peso
sanguinolento dessas cenas de guerra”. E tudo em sua decoração deveria transmitir
“honestidade e verdade”, como em Arrufos12.
Se levarmos em conta o número de visitantes que diariamente lotaram o Salão
De Wilde para ver Arrufos, devemos dar razão a Gonzaga Duque. O público carioca
acorreu para ver com os próprios olhos a cena doméstica, a briga de casal que tantos
9 Exposição Belmiro. In: Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 3 de agosto de 1887, p.2.10 M.C. Bellas Artes. In: Diario Illustrado. Rio de Janeiro, 30 de agosto de 1887, p.2.11 GONZAGA-DUQUE, Luís. A Arte Brasileira. Campinas: Mercado de Letras, 1995. p.212.12 Idem. p.212-213.
4
comentários suscitava entre os críticos. Conforme divulgado nos jornais, 285 pessoas
visitaram a exposição de Belmiro no dia 2 de agosto13, 305 ali estiveram no dia 514 e no
dia 9, 325 curiosos passaram por lá15.
A tela de Belmiro, porém, nunca fez parte de coleções privadas. Se hoje pertence
ao Museu Nacional de Belas Artes é porque foi comprada pelo Estado em 1888. Como
isso aconteceu? Essa é outra história que o quadro nos conta e que envolve as ambições
do artista, as disputas pelo auxílio do poder público, a adesão da imprensa e a ajuda de
amigos.
Em setembro de 1887, o pintor solicitou ao governo imperial que o quadro fosse
comprado e integrado à galeria de pintura da Academia das Belas Artes16. Alguns dias
antes, a Princesa Isabel (1846-1921) apreciara, no Salão De Wilde, a exposição. Sua
presença foi registrada com destaque pelo articulista do Jornal do Commercio, em 22
de agosto. A visita da princesa teria encorajado Belmiro a oferecer o quadro ao Estado?
O que sabemos é que o parecer dos professores da Academia foi favorável à aquisição,
conforme reproduzimos a seguir:
Illmo e Exmo. Snr. Conselheiro Director da Academia Imperial das Belas Artes. = A Comissão encarregada de dar parecer sobre o merecimento artístico e valor pecuniário do quadro de assunto moderno intitulado – Arrufos - produção do Sr. Belmiro de Almeida Junior vem cumprir seu dever emitindo a seguinte opinião: O assunto desse quadro é simples; e, por isso, o é também a sua composição. A atitude das duas figuras e suas expressões dão bastante clareza ao assunto; grupam-se bem entre si e com todos os acessórios do quadro; é justo tanto no desenho como na localização das tintas; produzindo, por conseqüência, um efeito muito harmonioso; pelo que esteticamente analisada esta composição, dá em resultado um conjunto de linhas, massas e cores muito agradável e verdadeiro. – Em resumo, é um quadro cujos senões são tão insignificantes de confronto com as boas qualidades, que a Comissão não hesita em julgá-lo um bom quadro de gênero. – Para arbitrar o valor pecuniário desse quadro, a comissão acha-se em grande embaraço; porque não tem em que se basear, concorrendo muito para isto a desigualdade dos preços dos quadros já adquiridos pela Academia. Este parecer nem de leve importa censura alguma no procedimento da Academia por ter adquirido quadros cujos preços não estão em relação aos merecimentos artísticos dos mesmos, não; é comum em obras de arte, não se avaliar somente o trabalho material; é forçoso dar sempre um valor estimativo a qualquer concepção artística; estimação que só o autor, em consciência, poderá julgar. – Ainda assim, a Comissão entende que deve este assunto ser oferecido à digna consideração da ilustrada Congregação da Academia; afim de que, discutida a proposta, se resolva a conveniência ou não
13 Diário de Noticias. Rio de Janeiro, 3 de agosto de 1887, p.1.14 Gazeta de Notícias. Rio de Janeiro, 6 de agosto de 1887, p.1.15 Gazeta de Notícias. Rio de Janeiro, 10 de agosto de 1887, p.1.16 Documento n.4394. Museu D. João VI / EBA / UFRJ. Requerimento de Belmiro de Almeida
oferecendo ao Governo Imperial para compra sua obra exposta no Salão De Wilde denominada “Arrufos” para integrar a Galeria Nacional da Academia das Belas Artes. Contém ofício do diretor da AIBA favorável à aquisição. 10 de setembro de 1887.
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da aquisição do quadro. – Rio de Janeiro, 19 de Setembro de 1887. (assinados) João Zeferino da Costa – José Maria de Medeiros.17
Embora o parecer date de 19 de setembro de 1887, ele só foi apresentado ao
conjunto dos professores da Academia na sessão de 3 de fevereiro de 1888. A leitura do
parecer deu margem à pequena discussão. O professor de arquitetura, Francisco
Joaquim Bethencourt da Silva, aproveitou a ocasião para lembrar que no último
concurso para Prêmio de Viagem, do qual ele fizera parte da comissão julgadora, sua
capacidade de avaliação fora posta em dúvida pelo professor Zeferino da Costa que, no
entanto, vinha agora solicitar seu auxílio para estimar o preço do quadro Arrufos. A
discussão não foi adiante, pois o professor Rodolpho Bernardelli propôs como justo o
valor de dois contos de réis (2:000$000). Submetida à votação esta proposta, assim
como o “parecer”, foram ambos aprovados.18
No entanto, quatro meses depois a compra ainda não fora efetivada. Mas
Belmiro tinha amigos na imprensa e, em 3 de junho de 1888, uma nota no jornal O Paiz
pedia ao ministro do Império que não esquecesse de adquirir o quadro, ainda mais que
Belmiro programava “nova excursão de estudo à Europa”19. Além disso, no salão do
jornal estava exposta a tela que o pintor executara como parte do concurso de Prêmio
de Viagem à Europa, realizado em 1887, cujo tema era A Flagelação de Cristo.
De fato, no mesmo ano em que pintou e expôs Arrufos, Belmiro concorreu ao
Prêmio destinado aos melhores alunos da Academia das Belas Artes. Ele desejava
aperfeiçoar-se em Roma ou Paris. Passou bem por todas as provas, mas os vencedores
foram o pintor Oscar Pereira da Silva (1867-1939) e o arquiteto João Ludovico Maria
Berna (1862-1938). Isso sob protesto dos professores Rodolpho Bernardelli (1852-
1931) e Zeferino da Costa (1840-1915), que preferiam Belmiro.
A tela A Flagelação de Cristo, de sua autoria, hoje se encontra exposta no
Museu de Arte Sacra da Ordem Terceira de São Francisco da Penitência, no Largo da
Carioca, no Rio de Janeiro. Quando analisada pela comissão julgadora composta pelos
professores Bethencourt da Silva, José Maria de Medeiros e João Maximiniano Mafra,
em 8 de novembro de 1887, recebeu uma apreciação contraditória.
17 Ata da Sessão em 3 de Fevereiro de 1888. In: Atas – Sessões da Presidência do Diretor – 1882 – 1890. p.45-46. Museu D. João VI / EBA / UFRJ.
18 Idem, ibidem.19 Salão d’O Paiz. In: O Paiz. Rio de Janeiro, 3 de junho de 1888, p.1.
6
Após reconhecer que “o presente concurso é um dos melhores, que desta
espécie se tem feito na Academia”20, devido à qualidade dos trabalhos executados pelos
candidatos, os professores fizeram os seguintes comentários sobre o quadro de n.5 (que
pela descrição corresponde à tela de Belmiro):
O n.5 está sofrivelmente composto; há mesmo riqueza, quer no número das figuras, quer nos acessórios, apesar do vazio da parte esquerda da composição, e da linha oblíqua que divide o quadro da direita para o ângulo inferior esquerdo; o colorido frio e acinzentado, é falso; a figura principal está mal desenhada, desequilibrada, e incompleta; todo o quadro é chato e sem relevo, e a pers pectiva está errada; entretanto, se seu autor, que mostra ter, não só facilidade na execução, pela maneira porque estão tocados alguns acessórios, mas também riqueza de imaginação, tivesse empregado mais cuidado, talvez o seu trabalho superasse aos dos seus competidores.21
Quando este parecer foi lido em sessão de 8 de novembro de 1887, os ânimos
ficaram exaltados na Academia. Zeferino chegou a acusar os colegas de incompetentes.
O desentendimento atrasou a premiação e só em 1890, já no regime republicano, os
dois vencedores foram à Europa. Belmiro, porém, não teve que esperar tanto. Em 1888,
com a venda de Arrufos e o auxílio financeiro de amigos, partiu e aperfeiçoou-se na
França e na Itália durante cinco anos. Em seguida viveu entre o Brasil e a França, onde
faleceu em 1935.
“Arrufos de namorados, amores renovados”, diz um antigo provérbio. As
querelas que dividiram opiniões de críticos e artistas do século XIX já são história
passada. Porém, suas obras continuam a atrair nossos olhares.
Em Arrufos, a imagem se estrutura com simplicidade num grande X formado
por duas diagonais. A primeira vai da ventarola japonesa (no alto à esquerda) à ponta
do sapato, que, de acordo com Gonzaga Duque, soltou-se do pé “para contemplar a rosa
que caiu do peito da moça e jaz no chão”22. A outra diagonal, menos forte, une a rosa à
fumaça do charuto. Observando a tela, não sabemos o que se passou realmente, nem o
que ocorrerá a seguir, mas a tensão do conflito em suspenso e o drama psicológico nos
mobilizam. Belmiro soube contar uma história de modo sugestivo e atraente. Como
todos os artistas do final do século XIX, esforçou-se para conquistar a atenção de um
público que freqüentava exposições como quem ia ao teatro, em busca de distração.
Estudar a história da produção e recepção de Arrufos, nos ajuda a compreender
como a experiência de ver é sempre um acontecimento cultural. Mas a imagem de
20 Ata da Sessão de 8 de Novembro de 1887. In: Atas – Sessões da Presidência do Diretor – 1882 – 1890. p.42. Museu D. João VI / EBA / UFRJ.
21 Idem, p.42-verso.22 GONZAGA-DUQUE, Luís. A Arte Brasileira. Campinas: Mercado de Letras, 1995. p.212.
7
Arrufos só tem existência como documento do passado? Será uma imagem sem
ressonância na atualidade? Quando vemos uma fotografia de 2004, na qual J.R. Duran
posicionou a modelo Fernanda Tavares num cenário quase idêntico ao da tela de
Belmiro23, fica evidente a permanência e renovação de Arrufos. A experiência cotidiana
nos mostra que não existe um contexto cultural uniforme. A sensação é de coexistência
de extratos culturais de diversas épocas, alguns bastante esmaecidos pelo tempo, quase
irreconhecíveis em suas transformações, outros mais presentes e fortes, mas nunca
“puros” ou isolados.
“Arrufos” – Belmiro de Almeida
J R Duran
23 http://www.jrduran.com.br (news, junho de 2004). Acesso em 24 de julho de 2006.
8
“A Flagelação de Cristo” – Belmiro de Almeida
9