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NO MEIO DO CAMINHO TINHA UM ÁLBUM: EDUCAÇÃO E
HIGIENE NO CURSO NORMAL EM PONTA GROSSA- 1958
JOVINO, Ione da Silva1 - UEPG
GUILHERME, Regina Aparecida Messias2 - UEPG
Grupo de Trabalho – História da Educação
Agência Financiadora: não contou com financiamento Resumo Neste trabalho pretendemos apresentar um recorte de uma pesquisa realizada em parceria com diversas instituições sobre representações de criança e infância a partir da iconografia brasileira do final do século XIX e primeiras décadas do século XX. Apresentamos nossa tentativa de discutir aspectos da História da Educação no município de Ponta Grossa, a partir de um álbum de fotografias pertencente ao acervo do Colégio Sant’Ana e no qual se identificam instituições do município que atendiam crianças. Trata-se, na realidade de um trabalho produzido por normalistas do referido colégio, no ano de 1958, como parte das avaliações da disciplina de Higiene e Puericultura. A partir do álbum, buscamos referências para entendimento da configuração da educação como campo de interesse da higiene no Brasil e como isso se deu no Paraná, chegando à Ponta Grossa no registro feito pelas normalistas. O campo teórico visitado procura mostrar por um lado como a higiene passa a ser conteúdo da educação e por outro como as imagens podem ser consideradas evidências históricas. Ao longo do texto trazemos algumas fotografias integrantes do álbum, procurando mostrar o modo com perseguimos alguns indícios por elas deixados. Tentamos examinar tais evidências buscando interrogar as fontes, conforme propôs Burke (2004). Finalizamos com a intenção de apontar como as imagens fotográficas identificadas na pesquisa fixaram uma contribuição para que se tenha a possibilidade de compreender como a higiene fez parte da educação no Município de Ponta Grossa, referente ao ano de 1958, a partir de quando nos defrontamos com o álbum das normalistas do Colégio Sant’Ana. Palavras-chave: Fotografia. Curso Normal. Educação e higiene
1 Doutora em Educação: Metodologia de Ensino - pela Universidade Federal de São Carlos. Professora Adjunta da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG/PR). Pesquisadora do NUREGS/UEPG e do Grupo Estudos Sobre Criança e Infância da UFSCar. E-mail: [email protected]. 2 Mestre em Educação pela Universidade Estadual de Ponta Grossa. Professora Assistente do Departamento de Educação da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG/PR). E-mail: [email protected]
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Introdução: Imagens sobre crianças e outras imagens
O artigo objetiva evidenciar aspectos da História da Educação em Ponta Grossa,
suscitados a partir de nosso encontro com um álbum de fotografias que faz parte do acervo do
Colégio Sant’Ana, na cidade de Ponta Grossa. Deparamos-nos com o referido álbum durante
a realização da pesquisa “Representações da Criança e da Infância na iconografia brasileira
dos anos 1880-1940”3 que teve como foco central de investigação verificar a maneira pela
qual a criança e a infância são retratadas em imagens e fotos de acervos escolares e de museus
históricos, imagens estas que foram produzidas no período de 1880 a 1940, localizados nos
estados brasileiros tais como: São Paulo, Paraná, Mato Grosso do Sul e outros que contenham
acervos iconográficos.
A proposta da pesquisa foi compreender as maneiras pelas quais a criança e a infância
estão representadas na vida cotidiana e escolar em fotografias de arquivos escolares e acervos
de museus. Pretendeu-se a partir destas imagens fotográficas contribuir para o entendimento
da história da criança e da infância no período de 1880 a 1940. Este período de mudança dos
séculos XIX para o XX é marcado por rupturas históricas na dinâmica social brasileira como
a abolição formal do processo de escravidão negra, a passagem da Monarquia para a
República, entre outras mudanças históricas que reordenam as relações sociais brasileiras.
A fim de percorrermos alguns caminhos em busca de imagens iniciamos o percurso
procurando alguns estúdios fotográficos da cidade. Nesta procura, houve a identificação dos
possíveis espaços nos quais poderíamos localizar fotos que documentassem a presença da
criança, em especial, em desfiles cívicos, em igrejas, em escolas confessionais ou laicas e
festividades. Pudemos encontrar poucas fotos, porém significativas para compor o painel de
representação da infância e da criança a que o projeto se propunha.
Após os estúdios fotográficos, fizemos buscas pelas escolas mais antigas da cidade,
sendo uma delas o Colégio Sant’Ana. Na procura das fotos que exemplificassem o período a
ser compreendido pela pesquisa, fomos surpreendidas por um álbum de fotografias sobre o
qual descobrimos importantes informações ao folheá-lo. Tratava-se na realidade um trabalho
3 Proposta financiada pelo CNPq, desenvolvida pelo grupo de estudos e pesquisas “Estudos sobre a criança, a infância e a educação infantil: políticas e práticas da diferença” e pelo Núcleo de Imagens da Criança e da Infância, ambos na UFSCar e coordenados pela Profa. Dra. Anete Abramowicz.
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escolar4, feito por um grupo de normalistas que cursavam o segundo ano na Escola Normal do
Colégio Sant’Ana, no ano de 1958.
Conforme se pode conferir na contracapa, o ábum na realidade se configura como
trabalho escolar feito pelas normalistas para a disciplina de “Higiene e Puericultura”. Em tirar
de papel cuidadosamente escritas, com bordas e coladas se pode ler o título- “TRABALHO
DE HIGIENE E PUERIC.”, sua finalidade – “PESQUISAS nos diversos SETÔRES das
INSTITUIÇÕES que auxiliam à INFÂNCIA” e, finalmente, a autoria, local e data- “Pelas
alunas da ESCOLA NORMAL ‘SANT ANA’ PONTA GROSSA – 1958-” (tentamos aqui
reproduzir minimante próximo do que se encontra na imagem). Ele retratou as instituições
existentes na cidade de Ponta Grossa naquele momento, responsáveis pelo cuidar, educar,
acolher crianças, ou seja, espaços cujo interesse principal ou secundário fosse relacionado à
infância.
Dentre as formas de registro que poderiam escolher, por que as normalistas optaram
pela fotografia e não pela simples descrição dessas instituições? Que valor esse suporte
moderno, considerado detentor ou inventor do real teve para que elas recorressem a ele pra o
registro de sua atividade escolar? Por que ele se manteve, ao longo de todos esses anos, ao
lado dos outros registros fotográficos do Colégio Sant’Ana, fazendo parte do acervo e da
memória do mesmo?
O álbum de Higiene e Puericultura – um dos registros do Colégio Sant’Ana
Conforme apontado anteriormente, em meio à pesquisa sobre as imagens de crianças
na cidade de Ponta Grossa, nos pusemos diante de um álbum de fotografias, parte do acervo
fotográfico do Colégio Sant’Ana. O acervo do colégio inclui, além dos álbuns com registros
de atividades e festividades da instituição, registros das turmas de concluintes do Curso
Normal, montadas em placas de madeira, com detalhes em material metálico, e nas quais se
podem ver fotos das “professorandas”, bem como de seus professores e professoras
homenageados.
O álbum tem uma capa plástica, na qual se vê anotada à mão a data “1958”. A parte
interna é composta por folhas de um papel grosso, num tom cinza escuro. Nestas folhas foram
sendo arranjadas as fotos, todas com legenda, identificando o local retratado e com algumas
4 Todas as imagens do texto fazem parte do álbum produzido pelas normalistas em 1958, parte integrante do acervo do Colégio Sant’Ana, Ponta Grossa, região dos Campos Gerais, Paraná.
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informações complementares sobre as imagens. Na contracapa se pode identificar que se trata
de um trabalho escolar realizado para a disciplina de Higiene e Puericultura, no ano de 1958,
por alunas do Curso Normal, sobre instituições que atendiam crianças.
O álbum contém trinta e sete fotos que identificam as seguintes instituições: Hospital
Santa Casa de Misericórdia, Mansão Bezerra de Menezes, Sociedade Espírita Francisco de
Assis de Amparo aos Necessitados, Lar Hercília Vasconcellos, Hospital Getúlio Vargas, Casa
da Criança Sant'Ana, Asilo Legião Brasileira de Assistência, Asilo São Vicente de Paulo e
Hospital São Lucas.
Cabe tratar um pouco da história do Colégio Sant'Ana. Fundado em 20 de março de
1905, é uma instituição católica brasileira de ensino, sediada em Ponta Grossa - PR. É uma
das instituições de ensino da congregação criada por Arnaldo Janssen, a das Irmãs
Missionárias Servas do Espírito Santo. Em 1903 a Paróquia de Sant´Ana em Ponta Grossa foi
confiada aos padres da Congregação do Verbo Divino, por determinação de D. José de
Camargo Barros, primeiro bispo de Curitiba, para o trabalho de pastoral paroquial. A
especificidade do trabalho educativo, somado à carência de sacerdotes, levou-os a pedir
auxílio às Irmãs Missionárias Servas do Espírito Santo, de origem alemã, com as quais
partilhavam o mesmo fundador (ZULIAN,1998).
O Colégio Sant'Ana iniciou os trabalhos escolares em 1905 com três membros da
congregação: a Irmã Regina, Irmã Dionysia e Irmã Suitberta. A partir de 1908, suas
atividades educacionais desdobraram-se em três escolas anexas, a Escola Alemã, a Escola
Polonesa e uma Escola Paroquial mista que começou a funcionar com 30 alunos. Ela era
destinada a negros e pobres, chamada Sagrado Coração de Jesus e funcionou na sacristia da
Igreja do Rosário, mantida pelos sócios da Fraternidade do Sagrado Coração de Jesus.
Segundo Almeida e Rhoden (2005, p.24) a escola paroquial atendia cerca de cem crianças e
funcionou até o ano de 1942. O Colégio Sant’Ana mantém ininterruptamente suas atividades
até os dias de hoje.
Educação: higiene como conteúdo
No período aqui apresentado, a educação passava por adequações que respondia a
interesses econômicos. Tal fato levou a uma discussão a adequação da mesma ao contexto
político-econômico-social. Nesse sentido, reformas foram ocorrendo na primeira metade do
século XX, entre as quais se ressalta a Reforma Capanema – 1942-46, pela preocupação com
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o Ensino Primário e com as Escolas Normais, cujos princípios nortearam a formação de
professores para o ensino primário, no período de 1946 a 1961, quando foi promulgada da Lei
de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira – LDB 4.024/61 (MOURA E CARVALHO,
2004).
Nesse período, houve a expansão do sistema escolar para o atendimento a um número
cada vez maior de alunos e, o aumento de instituições de Ensino Médio, de cunho público
e/ou privado, responsáveis pela formação do professor primário, tendo em vista atender a
demanda social. A organização da Escola Normal foi oficializada pelo Decreto-lei nº 8.530,
de 2 de janeiro de 1946, que estabelecia as finalidades do ensino normal, sendo prioridades
formar pessoal tanto para a docência quanto para a administração das escolas primárias e
também “desenvolver e propagar os conhecimentos e técnicas relativas à educação da
infância” (BRASIL, 1946, p.1).
Na década de 1950 seria possível completar a integração da escola normal que,
juntamente com a equivalência de todos os cursos médios, passou a dar direito de acesso ao
ensino superior, descaracterizando-se assim como curso profissionalizante para o magistério
primário, equiparando-se aos outros cursos médios e proporcionando também uma educação
de caráter preparatório, voltada às oportunidades que se abriam de continuação de estudos em
nível superior aos normalistas, além da habilitação ao magistério. Nesse panorama, a
formação de professores/as pela Escola Normal se manteve sujeita às oscilações sociais,
econômicas e políticas, de acordo com a ideologia do momento (ALMEIDA, 2004, p.16)
As mulheres afluiriam ainda em maior número para a profissão, levadas pela
necessidade de buscar instrução e poder exercer uma profissão, numa sociedade que principia
a considerar o trabalho feminino como uma alternativa para alcançar o desenvolvimento. A
regulamentação do curso normal não produzira alterações significativas em sua estrutura e a
formação de professores passou a ser realizada, em âmbito nacional, pelas escolas normais de
grau ginasial, funcionando em quatro séries anuais formando os regentes do ensino primário
(ALMEIDA, 2004, p.16).
As disciplinas de “Noções de Higiene”, “Higiene e Educação Sanitária” e “Higiene e
Puericultura” deveriam fazer parte da formação ao longo dos três anos. Caso o curso
funcionasse de forma intensiva, o Decreto-lei nº 8.530 (BRASIL, 1946) ainda previa que se
pudesse reorganizá-las, de modo que constasse no segundo ano uma disciplina de
“Puericultura e Educação Sanitária”.
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Rocha (2003) investigou a relação entre a educação e a instituição de um projeto de
“higienização da população” na cidade de São Paulo, entre os anos de 1908 e 1925. O referido
projeto levou à criação do Instituto de Hygiene e se “constituiu também num espaço
importante na articulação de estratégias voltadas para a veiculação da mensagem da Higiene
no universo escolar, quer pela atuação na formação profissional dos professores primários,
quer pela formação de agentes de saúde pública” (ROCHA, 2003, p.14).
Rocha (2003) analisa o modelo de educação sanitária produzido pelo o Instituto de
Hygiene de São Paulo, criado em 1918, em cooperação com a Junta Internacional de Saúde da
Fundação Rockefeller. Busca, a autora, compreender as práticas por meio das quais os
médicos-higienistas paulistas procuraram intervir sobre os corpos e as mentes das crianças,
bem como apreender o papel atribuído à escola primária na obra de disciplinamento e
conformação da infância aos imperativos da racionalidade higiênica.
Em São Paulo, o referido instituto criou o curso de Educadores Sanitários, voltados
para a formação daqueles que já possuíam o diploma do Curso Normal. Tinha o objetivo de
aliar a formação pedagógica com a formação em Higiene, para que os professores fossem
agentes sanitários das classes populares, uma vez que a crença de que a ignorância da
população era responsável pelas mazelas sociais pairava sobre os ideais higienistas e
eugenistas da época. O alvo principal do trabalho das educadoras deveria ser as crianças nos
últimos anos do ensino primário, bem como as mães, que deveriam aprender o cuidado com
as crianças pequenas (ROCHA, 2003).
Sobre o que viemos de expor acima, cabe referenciar o trabalho de Moura e Carvalho
(2004), no qual usam a história oral para registrar a trajetória e memórias e professoras
normalistas que atuaram na região dos Campos Gerais na década de 1950. As autoras
mostram a compreensão de como as professoras vivenciaram tanto o processo de formação
quanto sua inserção como profissionais da área. Por meio da história de vida de professoras,
pinçam fragmentos da História da Educação na região dos Campos Gerais, em uma fase de
grandes transições sociais de transformações na área educacional. Uma das depoentes declara
que “As matérias preferidas eram Higiene e Puericultura que incluia até papinha para o nenê, cujo
conhecimento me ajudou nos cuidados de minhas filhas” (MOURA e CARVALHO, 2004, p.10)
No Estado do Paraná, os considerados “intelectuais” das ciências, ligados à área
médica, levaram a efeito projeto parecido com o de São Paulo, não instituindo um curso de
formação específica, mas introduzindo conteúdos de higiene por meio da prescrição de regras
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para escolas e professoras. A ideia de professoras multiplicadoras estava prevista no projeto
higienista paranaense, revelando também seu lado eugenista, uma vez que dentre as regras
criadas para as escolas estava a de que se deveria: “Colocar em cada escola uma professora
da saúde escolhida entre as moças de mais bela aparência em pleno gozo de saúde e entusiasta
da higiene” (LAROCCA e MARQUES, 2010, p.656). As autoras apontam em suas
conclusões que:
Seguindo um ideário positivista do final do século XIX, a higiene e a educação adentraram ao século XX, consolidadas em seu papel difusor do espírito científico, imprescindível à regeneração social, mesmo que, em vários momentos, o “social” ficasse à margem das discussões e as formas ditas higienizadas de viver propostas fossem pouco acessíveis às populações pobres. Ao se considerarem “intelectuais”, os médicos paranaenses se conformaram como agentes difusores da ciência e valorizaram o potencial do higienismo como estratégia civilizadora (LAROCCA e MARQUES, 2010, p.658).
Conforme Pykosz (2007, p. 109) independente da forma como a higiene aparecia, é
importante salientar “que vinha se delineando nas escolas brasileiras era a integração dos
discursos dos ‘homens da ciência’ em prol da educação”, e que tal projeto não é exclusividade do
século XIX, pois acontecia desde o século XIX. Todavia é nesse momento, primeiras décadas do
século XX, “que se consolidava em forma de uma disciplina escolar, ou seja, fazendo parte dos
planos legislativo e programático das escolas, demarcado no currículo das instituições”
(PYKOSZ, 2007, p 105).
A fotografia como fonte de pesquisa
Kossoy (2004) aponta que os estudos sobre a fotografia crescem gradativamente desde
a década de 1990 e investigações sobre seus diferentes aspectos em São Paulo e no Brasil têm
sido registrados por muitas pesquisas e em diversas áreas. Para o autor, no trabalho com
fotografia é necessário que a pesquisa se detenha, “basicamente, na análise de determinados
usos e aplicações da fotografia, buscando situá-los e compreendê-los no tecido histórico-
social e cultural” Kossoy (2004 p. 387).
A fotografia pode ser entendida dentro de uma análise da mensagem visual fixa, a qual
como o quadro, o cartaz, o mapa, a maquete, a planta de construção podem caracterizar a
representação do que se almeja retratar. Joly (1996, p.135-136) enfatiza que:
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(...) interessar-se pela imagem é também interessar-se por toda nossa história, tanto pelas nossas mitologias quanto pelos nossos diversos tipos de representações. A riqueza da conduta contradiz a redução da imagem à imagem da mídia ou às novas tecnologias: estas são apenas as transformações mais recentes, se não as últimas, dos signos visuais que nos acompanham, como acompanharam a história da humanidade.
Falar da fotografia como meio de registro histórico não é algo fácil em virtude do
caráter mais científico, mais filosófico, mais verdadeiro atribuído, por muito tempo, à escrita.
Kossoy (2001) salienta que existe um certo preconceito quanto a utilização da fotografia
como instrumento de pesquisa por várias razões das quais ele ressalta duas.
A primeira é de ordem cultural, pois temos um aprisionamento multissecular à
tradição escrita como forma de transmissão do saber. A segunda razão, decorrente da
primeira, diz respeito à expressão. As fotografias trazem informações registradas visualmente.
O autor fala na dificuldade que o pesquisador encontra para vencer a resistência em aceitar,
analisar e interpretar a informação quando esta não é transmitida segundo um sistema
codificado de signos em conformidade com os cânones tradicionais da comunicação escrita
Kossoy (2001, p. 36).
Quando se fala em fotos, podemos ter a impressão de que a partir delas podemos
resgatar parte da história de uma determinada época, todavia isso não é fácil. Somente as
fotografias não são capazes de nos revelar a história, é necessário que se utilize outras fontes
que possam complementar aquilo que as imagens podem revelar. Apoiado em Barthes (1984),
Kossoy (2001) afirma que a fotografia ou mesmo um conjunto de fotografias não reconstituem ou
não rememoram o passado. Ela atesta a existência de algo, ela congela alguns fragmentos de um
instante de vida das pessoas, das coisas, etc.
Há também outra questão, levantada pelos autores citados acima, em se propor a
iconografia como documento para análise. Independentemente da época em que foram as imagens
podem permitir múltiplas leituras efetuadas por quem as observa. Sobre este aspecto, Burke
(2004, p.229) pondera que:
A história da recepção de imagens, da mesma forma que a dos textos, enfraquece a noção de senso comum, de má compreensão, mostrando que diferentes interpretações do mesmo objeto, ou ainda do mesmo acontecimento, são normais e não aberrações, e que é difícil encontrar boas razões para descrever uma interpretação como “certa” e outras como “erradas”.
O autor também ressalta que o maior problema ao se trabalhar com fotografias é saber
se e até que ponto é possível confiar nas imagens. Chamando a atenção para o que Roland
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Barthes chamou de “efeito de realidade”, Burke (2004) salienta que é preciso estar atento ao
contexto político e social das fotografias e ao fato de que há uma seleção de quais aspectos do
mundo real são retratados. Para ele, o essencial é fazer a crítica das fontes, pois sua utilidade
adviria do modo como se pode interrogá-las, embora afirme que “imagens são
irremediavelmente mudas”.
É importante lembrar que como outras imagens, a fotografia é uma representação e
tem suas próprias convenções, não se tratando então de discursos neutros, pois os mesmos
têm sua própria retórica e apresentam pontos de vista.
O uso crescente de fotografias e outras imagens como fontes históricas podem
enriquecer muito nosso conhecimento e nossa compreensão do passado, desde que possamos
desenvolver técnicas de “críticas das fontes” segundo Burke (2004, p. 14). O autor chega a
considerar que nosso “senso de conhecimento histórico tenha sido transformado pela
fotografia” (BURKE, 2004 p.26).
Fotografias como evidências
Burke (2004) também pondera que as imagens são fontes que oferecem evidências
valiosas dos tipos de trabalhos que as mulheres realizam, dos inusitados aos que reverberam
aquilo que se esperava que elas fizessem, como as profissões ligadas ao cuidar e educar. O
autor assevera que ao observar tais aspectos a partir das imagens, também podemos obter
visões de sociedades.
Pela fotografia vemos um recorte, dado pelo ângulo da visão parcial da câmera, da
posição em que ela estava no momento em que foi acionada para registrar a imagem. Também
vemos recortes dos arranjos feitos na preparação do momento a ser registrado.
Figura 1: Mansão Bezerra de Menezes e Asilo São Vicente de Paula
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Fonte: Acervo do Colégio Sant’Ana – Ponta Grossa
A Mansão Bezerra de Menezes (Sociedade dos Amigos da Mansão Bezerra de
Menezes) foi fundada em 31 de janeiro de 1957 e sua missão inicialmente foi acolher
meninos abandonados, sob um sistema de abrigamento, um “Lar de Meninos”. Em abril de
1967, segundo Maia (2011, p.99) a Mansão Bezerra de Menezes foi transformada em creche,
passando a funcionar em regime de semi-internato, abrangendo creche e pré-escola até o
ensino de 1º grau (hoje Ensino Fundamental), atendendo a meninos dos três aos nove anos de
idade. Posteriormente, transformou-se num Centro de Educação Infantil, atendendo meninos
e também meninas e mais recentemente em um Centro de Formação Profissionalizante.
Na foto identificada com a legenda: “Crianças abrigadas e membros da Mansão”,
contabilizamos dezesseis meninos, de diferentes idades, quase todos brancos, sendo que
apenas um podemos identificar como pardo ou mestiço, além de um jovem rapaz e duas das
quatro mulheres que compõem a cena. Uma das mulheres porta um avental branco e não
vestido como as outras. Uma delas usa vestido escuro. Complementam a imagem a presença
de três homens brancos e adultos.
Figura 2: Lar Hercília Vasconcellos Figura 3: Lar Hercília Vasconcellos (Detalhe)
Fonte: Acervo Colégio Sant’Ana – Ponta Grossa
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Figura 4 : Hosptital Getúlio Vargas (detalhes) Fonte: Acervo Colégio Sant’Ana – Ponta Grossa
Nas imagens acima vemos locais, mas também pessoas. Dentre elas mulheres que são
professoras e enfermeiras e também as crianças que estão aos seus cuidados. Vemos objetos e
posições ocupadas nas cenas por essas mulheres e crianças.
Nas imagens do hospital (figura 4) podemos conhecer parte de sua estrutura, como
os dormitórios, lactário, sala de curativo, jardim, capela e até uma festividade. Além das
crianças, vemos também suas cuidadoras, enfermeiras, sendo que algumas delas usam hábito
branco. O “Hospital da Criança Getúlio Vargas”, atualmente chamado “Hospital da Criança
Prefeito João Vargas de Oliveira” e funcionando em local diferente do antigo. O hospital
teria sido construído e inaugurado nos princípios da década de 1940 e faria parte do projeto de
expansão da cidade pensado pelo então prefeito Albary Guimarães (CARNEIRO e
OLIVEIRA, 2005) .
Dentro do projeto de gestão dele, denominado por “práticas da gestão da coisa
pública”, estava a construção de hospitais e escolas, dentre outros organismos públicos. Ele
também seria responsável pela construção do primeiro posto de puericultura da cidade, sendo
que um deles (talvez o primeiro) aparece em uma das fotos do álbum também. Carneiro e
Oliveira (2005, p.98) apontam que as práticas de gestão de Albary Guimarães “estiveram
articuladas ao conhecimento que este político havia adquirido a respeito de uma Ponta Grossa
a qual se pretendia melhorar, ampliar e “construir”, assumindo em sua gestão o objetivo de
dar atendimento a diferentes segmentos da sociedade ponta-grossense”.
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A presença das mulheres de hábito se justifica pelo fato de que em 1942 as Irmãs
Servas de Maria Imaculada teriam sido convidadas para estabelecer morada em Ponta
Grossa, depois de uma breve passagem de sete missionárias da congregação pela cidade em
1911. A elas coube a tarefa de administrar e zelar pela enfermagem no Hospital Infantil
Getúlio Vargas, atividade na qual teriam trabalhado por mais de cinquenta anos5.
O Lar Hercília Vasconcellos, cujo nome foi dado em homenagem à esposa de Arthur
Lins de Vasconcellos Lopes, emérito colaborador das obras de assistência social espírita, que
doou grande parte dos seus bens para obras assistenciais, abrigava meninas abandonadas no
inicio de sua fundação, que ocorreu em 27 de maio de 1942.
Segundo Maia (2011) o regime de internato do Lar Hercília Vasconcellos funcionou
até meados de 1979, ficando a partir daquele ano apenas o regime de semi-internato.
Transformado em Centro Educação Infantil Espírita, o Lar Hercília Vanconcellos funcionou
como um departamento da Sociedade Espírita Francisco de Assis de Amparo aos
Necessitados até o ano de 2003, quando foi municipalizado, tornando-se Centro Municipal de
Educação Infantil Hercília de Vanconcellos.
Na foto da sala de jardim de infância da referida instituição (fotos 2 e 3), vemos doze
crianças, sentadas, sendo onze meninas e um menino. É possível localizar pelo menos três
meninas negras. Duas delas ocupam a frente da cena, porém apenas uma olha para frente,
sendo possível ver seu rosto nitidamente. Os objetos de ensino, bem como de brincar estão
ordenadamente dispostos sobre as mesas das crianças. Ao fundo da cena, à frente da sala, a
professora, sentada, ao contrário da maioria das crianças que mantém os olhos bem
arregalados, despertas e talvez atiçadas pelo aparato do fotógrafo, foi flagrada de olhos
fechados, provavelmente o clique da máquina foi mais lento que o movimento das pálpebras.
É possível observar no canto esquerdo, pela janela, que a cena é acompanhada ou
inspecionada por outras duas pessoas. É possível que tenham colaborado na composição do
cenário, mas não fizeram parte dele, uma vez que a intenção parece clara, registrar a
professora em seu ofício. Alguns autores destacam a relação entre o magistério e as visões de
feminino, lugares e papeis que deveriam ser desempenhados pelas mulheres.
Nessa visão se constrói a tessitura mulher-mãe-professora, aquela que ilumina na senda do saber e da moralidade, qual mãe amorosa debruçada sobre as frágeis
5 Informações obtidas em texto sobre o centenário da irmandade, comemorado em 2011, disponível em: <http://www.irmasmi.com.br/site/index.php?option=com_content&view=article&id=42:comemorando-o-centenario&catid=15:ultimas-noticias>, acesso em março de 2013.
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crianças a serem orientadas e transformadas por dedos que possuem a capacidade natural de desenhar destinos e acalentar esperanças, coadjuvantes inspiradas de uma escola que se erige como transformadora de consciências. (ALMEIDA, 2004, p.1)
No álbum, a foto traz além da legenda identificando a instituição de origem, o Lar
Hercília de Vasconcellos, uma anotação no verso, onde se pode ler: “Esta fotografia foi
arrecadada pela aluna Maria Aparecida B. da Cunha, 2º normal. Professora Dª Odete. Hercília
Vasconcellos (Sala do Jardim)”. Essa imagem reverbera esse discurso em torno da figura da
professora apontado por Almeida (2004). Parece tratar-se de uma lembrança produzida a
pedido da própria Dona Odete, cristalizando sua ação, fixando uma memória de si a partir da
profissão que ocupa. Curiosamente, a posição ocupada pela câmera permite dar mais destaque
à presença das crianças na cena, uma vez que Dona Odete aparece ao fundo, ao mesmo tempo
em que ocupa a frente da sala de aula.
Registro das normalistas: memórias da infância entre educação e cuidado
Com a institucionalização de um programa de ensino a ser seguido nos grupos escolares
do Estado, entendia-se que o ensino seria, de certa forma, padronizado, facilitando acompanhar o
desenvolvimento das crianças, bem como aplicar a seriação do ensino nos grupos escolares, o que,
no Paraná, aconteceu a partir de 1912 (PYKOSZ, 2007, p. 101).
Com o estudo das imagens fotográficas identificadas na pesquisa explicitamos uma
contribuição para a busca do entendimento de como a higiene fez parte da educação no
Município de Ponta Grossa, referente ao ano de 1958, a partir de quando nos defrontamos
com o álbum das normalistas do Colégio Sant’Ana.
Assim aproximamos nossos olhares acerca das imagens colhidas observando como
estiveram representadas a infância e a criança, pela mão da Higiene e Puericultura, na forma
como as normalistas escolheram para representar as instituições princesinas que atendiam a
infância, tanto no acolhimento, abrigamento, saúde, quanto na educação. Teve centralidade
em nesse recorte da pesquisa o álbum “Pesquisa nos diversos Setores de Instituições que
auxiliam à Infância” estruturado pelas normalistas do Colégio Sant’Ana, que nos trouxe a
possibilidade de confirmar que as instruções normativas referentes ao Curso Normal na
década de 1950 se fizeram presentes na formação de professoras em Ponta Grossa.
A partir de um trabalho na área de Higiene Escolar e Puericultura revelado em 1958,
em um espaço de formação para docência de nível médio, imprimiu-se uma releitura
daqueles objetivos que tiveram estas normalistas na época em que levantaram todos os
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espaços que atendiam e acolhiam as crianças pobres em Ponta Grossa. Elas fizeram o
registro e a memória de tais espaços a partir de seus objetivos trazendo à tona os locais que
reconheciam a infância sob a necessidade de amparo social, médico, educacional no
município de Ponta Grossa.
Além disso, estão demarcados sujeitos que “cuidavam” dessas crianças e além dos
espaços, engendrando o retrato da assistência social em Ponta Grossa mostrando o campo
percorrido pelas normalistas para dar reconhecimento ao cenário que também, imaginamos,
as preocupava, posto que mostraram oito instituições que atendiam crianças nos Campos
Gerais, frente ao modelo de educação e proteção a criança em 1958.
Neste sentido, revalidamos a ideia de Burke (2004, p.30) de que “as imagens são
irremediavelmente mudas”. A elas acrescentamos nossas interrogações e colhemos alguns
resultados relativos à História da Educação em Ponta Grossa, a partir da síntese imagética
produzida pelas normalistas em 1958, prova inconcussa da prática relacionada às teorias
sobre higienismo aplicadas à educação da época.
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