nota 2 (badiou, são paulo)
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Segunda nota de trabalho sobre o São Paulo, a invenção do universalismo, por Germano Nogueira Prado (047)TRANSCRIPT
Se é verdade que a peculiaridade do pensamento de Paulo é a produção de uma cesura
(histórica?) que se baseia unicamente nas leis gerais da universalidade (p. 126), uma vez que o
acontecimento mesmo a que ele é fiel (a ressurreição de Cristo) não pode ser senão (para nós?) uma
fábula; se é verdade que isso significa que tal cesura está baseada “nas condições formais e nas
consequências de uma consciência-de-verdade enraizada num puro acontecimento” (p. 125) e se é
verdade que um militante “constitui” sua subjetividade a partir do acontecimento, então é bastante
plausível a tarefa que Badiou se colocaria de pensar a figura do militante em geral a partir de um
pensamento que funda sua posição subjetiva nas leis gerais do acontecimento.
Se esse quadro faz sentido, me parece que há (pelo menos) três elementos ou grupos de
elementos a considerar quando se trata de caracterizar tipológica ou formalmente (isto é, abstração
feita do acontecimento real em um processo de verdade real) a figura do militante: 1) o regime de
discurso/a disposição subjetiva que se instaura na fidelidade a um acontecimento (na linguagem
paulina, o discurso do apóstolo (p. 53)); 2) os conceitos que enquadram essa fidelidade mesma (na
linguagem paulina, pístis (fé/convicção), ágape (caridade/amor) e elpís (esperança/certeza) (p. 22));
3) a cisão subjetiva que caracteriza a subjetividade militante (na linguagem paulina, as vias
subjetivas do espírito e da carne que se ligam, do ponto de vista do objeto, ou no real,
respectivamente a vida e morte (real entendido aí como “o que se concebe num pensamento
subjetivante” (p. 67; definição que, por sinal, acho que merece(ria) uma explanação mais
detalhada))). Com relação a esses três grupos de elementos, um ponto que me parece delicado é
distinguir claramente o que vale como elaboração da leis gerais do acontecimento e o que é
característico da situação, do mundo com que Paulo tem que lidar na sua fidelidade ao
acontecimento (fabuloso...) da ressurreição do Cristo.
Pensando esse ponto delicado com relação ao item 1 acima (ao qual me limito aqui; gostaria de
voltar aos outros em outra oportunidade), me parece que se dá o que segue. Parece evidente que, ao
ser fiel a um acontecimento, o militante não encontrará no mundo/na situação em que vive
comunidades particulares agrupadas sob o nome de judeus e gregos, ou mesmo judeus e pagãos.
Mas o regime de discurso/a disposição subjetiva representado/a por cada um desses dois nomes
particulares não estará sempre presente formalmente em uma situação?
Vejamos: em linhas gerais, o grego é o discurso da totalidade natural e cósmica, cuja lei é a
adaptação do sujeito essa totalidade, para o que é necessária a dominação de tal totalidade pelo
saber – o que se realiza pela posição subjetiva (que ocupa o lugar do mestre) do sábio. Já o judeu é
“na exceção, o grego” (p. 53), é o discurso do que foge à totalidade (do não todo? Do não
totalizável?), cuja lei se relaciona com a decifração dos signos (da eleição de uma comunidade),
para o que é necessária o domínio sobre essa decifração – o que se realiza pela posição subjetiva
(que ocupa o lugar do mestre) do profeta.
Ora, na medida em que um dos fenômenos pelos quais se identifica um acontecimento é o fato
de que ele é um ponto real onde a língua chega a um impasse – e é isso que Paulo identificaria
como o que ocorre com o acontecimento-Cristo diante desses dois discursos constituídos. Mas por
quê?
Não parece que é por uma característica peculiar a esses discursos enquanto discursos daquela
situação, e sim por condições formais (universais?) da universalidade mesma, mais precisamente
(ao menos) duas. A primeira, é o fato de que ambos os discursos estão “encapsulados” pela lógica
do Todo: um afirmando-a (o grego), outro se colocando como exceção a ela (o judeu). Nesse
sentido, por limitarem-se mutuamente (como Todo e não-Todo), podem no máximo alcançar a
particularidade e não a universalidade (do todoS...). A segunda característica é que ambos se
constituem como discursos do mestre, do pai-criador – e a subjetividade como determinada pela
carência(-do-)-domínio do mestre. Ora, o acontecimento, além de universal, “produz” uma
subjetividade não-carente, em que nada falta, que é a pura espontaneidade de um começo absoluto:
todos são filhos do acontecimento (p. 65), e este, não obstante, não é a figura do domínio que é o
pai (este é justamente morto por essa filiação). (Aqui, aliás, não seria fundamental que o
acontecimento envolva justamente a ressurreição, que supõe a morte de Deus-Cristo? Não seria o
caso de pensá-la como a morte do pai para o renascimento universal de todos como filhos desse
acontecimento?)
Isso não mostraria que é formalmente constitutivo de toda situação a formação de discursos do
saber da totalidade e da profetização da exceção da, da não-totalidade? Não seria isso a hegemonia
do discurso da “civilização ocidental” (o (pretenso) todo) em relação às “minorias” que excedem a
ele (a começar pelos judeus, mas passando pelos negros, mulheres, homossexuais, etc, etc.)?
O novo discurso de Paulo, o discurso do apóstolo, parece também conter as características
formais de toda e qualquer subjetividade militante: a fidelidade à declaração do acontecimento, não
só como fé em sua possibilidade, mas como trabalho de suas consequências (amor) e convicção em
seu caráter acabado sustentando cada passo (esperança). Ademais, como pura declaração, se recusa
a tomar como prova não só o saber constituído (o grego) e a decifração de sinais (o judeu), mas
também qualquer (a alegação de) qualquer convicção íntima e inefável. Ora, não convivemos com
esse tipo de discurso não só dos fundamentalistas religiosos contemporâneos, mas também no caso
de certos marxistas dogmáticos? (Discurso que, como bem observa Badiou, é um quarto, mas
quando pronunciado se torna o segundo: o oferecimento de uma decifração de sinais (íntimos) como
prova de uma declaração.) Não é sobretudo em relação a este último que deve se guardar o
militante, justo para que a fidelidade ao acontecimento “conte” tão só com a declaração mesma,
“gratuita”, e com o trabalho nas consequências do processo de verdade que aquele abre? (Aliás, em
que medida este trabalho não pode ser considerado como “provação” (o ser-determinado-por, mas
sobretudo a comprovação do (ser a partir do) acontecimento? Por que se recusar a toda prova,
mesmo que retrospectiva?)
Ora, se tudo isso faz parte das condições formais do acontecimento, ou ainda que nem tudo o
faça, acho que ainda cabe perguntar: se o acontecimento, seja qual for, tem alguma lei geral, em que
medida um acontecimento não pode mudar suas próprias leis gerais? Negar que isso possa
acontecer não seria subtrair muito da radicalidade do conceito de acontecimento?
***
Na medida em que o acontecimento é um ponto cego no saber (dado), na medida em que ela abre
um novo campo do possível e na medida em que não se confunde com um fato (algo acontecido no
campo de possibilidades de uma situação/estado/mundo), falar em voto com investigação/ voto
investigativo ainda não seria arriscar recair em uma investigação de dados? Não seria preciso falar
em um voto que “cria” (ou tenta criar) outros possíveis?
Mais, ainda: em vez de ampliar a noção de voto, demasiado ligada a Estado e representação
política, não seria preciso localizar o voto em uma compreensão de ação política mais amplas – nos
apropriando de, e quiçá ressignificando, a palavra “engajamento”?
(Germano Nogueira Prado)