notas acreditaram os gregos em seus mitos
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Notas do livro de Paul Veyne: Acreditaram Os Gregos Em Seus MitosTRANSCRIPT
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Acreditaram os Gregos nos Seus Mitos?
“Basta admitir a existência do sobrenatural para deixar de poder demonstrar a
inexistência de um milagre. Basta ter interesse em acreditar que Auschwitz não existiu
para que todos os testemunhos sobre Auschwitz se tornem incríveis. Também nunca
ninguém demonstrou que Júpiter não existia.” (p. 14)
“Um fato mostra ate onde vai a nossa duplicidade para conosco próprios: se os
imperadores eram deuses e se os arqueólogos encontraram dezenas de milhares de ex-
voto consagrados aos diferentes deuses, para cura, feliz regresso, etc., não existe
contudo um único ex-voto consagrado a um imperador deus; quando os fieis tinham
necessidade deus, não se dirigiam ao imperador.” (p. 109)
“A nossa vida quotidiana é composta por um grande numero de programas diferentes e
a impressão de mediocridade quotidiana nasce precisamente dessa pluralidade, a qual,
em certos estados de escrúpulo neurótico, é sentida como uma hipocrisia; passamos
incessantemente de um programa para outro, como se muda de comprimento de onda de
na radio, mas fazemo-lo sem nos darmos conta.” (p. 107)
A depuração do mítico pelo logos não é um episodio da luta eterna entre superstição e
razão. (p. 13 - 14)
Citar referencias remetendo-se a autoridades: A grande razão disto é a ascensão da
universidade com o seu monopólio cada vez mais exclusivo sobre a atividade
intelectual. (p. 24)
“Acabamos de escrever uma carta de ciúmes confusa e interminável, que desmentimos
precipitadamente uma hora mais tarde, por telegrama” (p. 36)
O que é o mito? É historia alterada? Historia engrandecida? Uma mitomania coletiva?
Uma alegoria? Que era ele aos olhos dos gregos? O que nos dará ocasião de verificar
que o sentimento da verdade é muito amplo (engloba facilmente o mito), mas também
que “verdade” quer dizer muitas coisas... Chegando a englobar a literatura e a ficção.
(p. 28)
Para o grego o mito era uma verdade alterada pela ingenuidade popular. (p. 28)
Pausanias: uma espécie de historiador ou arqueólogo grego estudou os mitos.
Pluralidade de crença. Acreditar em mundos e fatos mitológicos, mas ao mesmo tempo
saber que eles não existem aqui nesse mundo, pertencem a outra atmosfera:
Estes mundos de lenda eram tidos por verdadeiros, no sentido em que não se duvidava
deles, mas não se acreditava neles como se acredita nas realidades que nos rodeiam.
Para o povo dos fiéis, as vias dos mártires, recheadas de maravilhoso, situavam-se num
passado intemporal, de que apenas se sabia que era anterior, exterior e heterogêneo ao
tempo atual; era “o tempo dos pagãos”. (p. 30)
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O tempo e o espaço da mitologia eram secretamente heterogêneos aos nossos. (p. 30)
... Não distinguimos os limites dos séculos de que conservamos a memória, do mesmo
modo que não discernimos a linha que limita o nosso campo visual; para alem desse
horizonte, não vemos estenderem-se séculos obscuros; deixamos de ver, e é tudo. (p.
30)
Antes de ter tomado a atitude critica que reduz o mito ao verossímil, a atitude do grego
médio era diferente: conforme a sua disposição, ora encarava a mitologia como contos
velhinha ingênua ora tinha, perante o maravilhoso longínquo, uma atitude tal que a
questão da historicidade ou da ficção não fazia sentido. (p. 27)
É esse o mundo mítico em cuja existência os pensadores, de Tulcidides ou Hecateu,
Pausanias ou Santo Agostinho, continuarão a acreditar; só que deixarão de ver como um
outro mundo e quererão reduzi-lo às coisas do mundo atual. Farão com que o mito
relevasse do mesmo regime de crença que a historia. (p. 31)
1. Não é menos banal acreditar em verdades diferentes acerca do mesmo objeto (p. 31):
a) As crianças sabem, ao mesmo tempo, que os brinquedos são trazidos pelo Pai Natal e
dados pelos pais.
b)...Um primitivo pode ver almas por todo o lado na natureza, pode situar numa arvore
qualquer força sensível e atuante que deverá apaziguar ou venerar; mas, noutra ocasião,
não deixará de cortar essa arvore para a transformar em materiais de construção ou em
combustível.
c) Os Sedang Moi da Indochina, que instituíram meios que permitem ao homem
renunciar ao seu estatuto de ser humano e tornar-se javali, reagem, todavia, de forma
diferente, consoante se encontrem perante um javali autentico ou perante um javali
nominal.
d) Apesar das tradições verbais, raramente se toma um mito no mesmo sentido em que
se tomaria uma Verdade empírica; todas as doutrinas que floresceram no mundo acerca
da imortalidade da alma pouco ou nada afetaram o sentimento natural do homem
perante a morte.
Havia nos tempo de Píndaro a prática de que, quando o atleta se tornava vencedor, o
poeta lhe contava um mito perante os demais: por que é que o poeta contará ao vencedor
este ou aquele mito, cuja relação com o sujeito não é visível? (p. 32)
Pindaro é um exemplo do entendimento e uso comum dos mitos na sociedade grega
Píndaro eleva o vencedor e a sua vitoria ao mundo superior que é o do poeta (p. 32)
(mundo dos deuses e dos heróis)
Pindaro aumenta a gloria do seu vencedor exaltando essoltro mundo mais alto, onde a
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gloria, é, ela própria, maior. (p. 34)
Pindaro aumenta a gloria do seu vencedor exaltando essoutro mundo mais alto, onde a
gloria, é ela própria maior. (p. 34)
É precisamente porque o mundo mítico é definitivamente outro, inacessível, diferente e
espantoso, que o problema da sua autenticidade permanece em suspenso... (p. 34)
Mas, precisamente, seria necessário saber se a literatura e a religião serão mais ficções
do que a historia ou a física [...] (p. 35)
Porque a verdade é uma palavra homônima que só deveria empregar-se no plural;
apenas existem programas heterogêneos de verdade [...] (p. 35)
Um mundo não pode ser fictício em si próprio, isso depende de se nele acreditamos ou
não; entre uma realidade e uma ficção, a diferença não é objetiva, não esta na própria
coisa, mas sim em nós [...] (p. 35)
Digamos que uma obra de arte é, a sua maneira tida por verdadeira, mesmo
quando passa por uma ficção. (p. 35)
Todas as verdades nos parecem análogas entre si, de tal modo que Racine nos
parece ter pintado a verdade do coração humano. (35)
O mundo de Alice, no seu programa de fantasmagoria, oferece-se-nos como tão
plausível, tão verdadeiro como o nosso, tão real em relação a si próprio, por assim
dizer; mudamos de esfera de verdade, mas continuamos no verdadeiro, ou na sua
analogia. (p. 36)
Mesmo que consideremos Alice ou Racine como ficções acreditamos neles
enquanto os lemos. (36)
Longe de se opor a verdade, a ficção não é mais do que um seu subproduto: basta-nos
abrir a ilíada para entrarmos na ficção, como se diz, e perdermos o norte; a única
diferença é que a seguir não acreditamos nela. Há sociedades em que uma vez o livro
fechado, se continua a acreditar e outras em que se deixa de acreditar. (p. 36)
A ilíada é verdadeira no seu programa de verdade mítico. (36)
Literatura de antes da literatura, nem verdadeira nem fictícia, porque exterior ao mundo
empírico, mas mais nobre do que ele [...] (p. 36)
[...] consistia, não em comunicar aquilo que se tinha visto, mas em repetir aquilo que
“se dizia” dos deuses e dos heróis [...] (p. 37)
[...] um discurso indireto: “diz-se que...”, “a musa canta que...”, “um logos diz que...”
(p. 37)
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[...] uma narrativa, mas anônima, que se pode recolher e repetir, mas de que não seria
possível ser-se o autor. (p. 37)
Conhecimento por informação: modo de conhecimento.
[...] a informação é uma ilocução que só pode realizar-se se o destinatário reconhecer
antecipadamente ao locutor competência e honestidade; de modo que uma informação
se situa de antemão fora da alternativa do verdadeiro e do falso. (p. 38)
Este modo de conhecimento em ação:
Quando uma coisa esta separada do nosso alcance por abismos, nós próprios não
sabemos se acreditamos nela ou não. (p. 44)
O mito era um tertiun quid, nem verdadeiro nem falso. Einstein seria isso para nós se a
sua verdade não viesse de uma terceira fonte, a da autoridade dos profissionais.
Naqueles tempos longínquos, esta autoridade não havia nascido e não existiam teologia
física, ou historia. O universo intelectual era exclusivamente literário (p. 45)
... Não se chocavam com ficções que não iam contra a autoridade de nenhuma ciência.
(p.45)
Mais valeria dizer reconhecer-se que todo o conhecimento é interessado e que
verdades e interesses são duas palavras diferentes para uma mesma coisa... (105)
A religiosidade ocupa, num dia, apenas uma parte mínima dos pensamentos de um
homem religioso, mas pode-se dizer o mesmo de um desportista, de um militante,
de um poeta. Ela ocupa uma estreita faixa, mas ocupa-a sincera e intensamente.
(107)
De constante a verdade apenas tem a pretensão de ser, e essa pretensão é só
formal; o seu conteúdo de normas depende das sociedades, ou melhor, na mesma
sociedade existem várias verdades... Imaginário não é uma palavra de psicologia
ou antropologia... Mas um juízo dogmático sobre certas crenças de outrem. (108)
Só a reflexão histórica pode explicitar os programas de verdade e mostrar as suas
variações.
Passamos incessantemente de um programa para outro, como se muda de comprimento
de onda de radio, mas fazemo-lo sem nos darmos conta. (107)
Eis, pois, esta mitologia que cada historiador vai criticar [...] tomá-la-á por uma
historiografia; tomará o mythos por uma espécie de “tradição” local; tratará a
temporalidade mítica como se ela fosse tempo histórico. (p. 38)
Sobre os grandes problemas, diz o Fédon, quando não conseguimos encontrar por nós
próprios a verdade nem recebemos a revelação de algum deus, só nos resta adotar o que
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se diz de melhor ou instruir-nos junto de outro que saiba. (p. 46)
Com esta pergunta o autor mostra que a crença tem muitas modalidades. Exemplifica
com o caso da criança que acredita que o Papai Noel vai lhe trazer presentes, e ao
mesmo tempo sabe que na verdade são seus pais que lhe presenteiam. Cita Dan Sperber.
Os Dorzé, povo da Etiópia e membros da Igreja copta acreditam que:
“O leopardo é um animal cristão, que respeita os jejuns da Igreja Copta, observância
que, na Etiópia, é o teste principal da religião; um Dorzé não é por isso menos vigilante
na proteção de seu gado à quarta e à sexta feira, dias de jejum, do que nos outros dias da
semana; ele tem por verdadeiro não só que os leopardos jejuam, mas também que
comem todos os dias; os leopardos são perigosos todos os dias: Sabe-o por experiência;
são cristãos: A tradição garante lho”. (p. 11 introdução).
Em referencia a outros livros, o autor cita diversos exemplos onde há analises sobre as
modalidades de crença (duas verdades ou mais num mesmo cérebro):
“A pluralidade das modalidades de crença é um fato demasiado banal para que se torne
útil insistir... Não é menos banal acreditar-se simultaneamente em verdades diferentes
acerca do mesmo objeto; as crianças sabem, ao mesmo tempo, que os brinquedos são
trazidos pelo Papai Noel e dados pelos pais” (p. 31 nota de rodapé)
“A literatura é um tapete mágico que nos transporta de uma verdade para outra, mas em
estado de letargia; quando acordamos, chegados à nossa verdade, julgamo-nos ainda na
precedente.” (p. 36)
“É a analogia dos sistemas de verdade que nos permite entrar nas ficções romanescas,
achar ‘vivos’ os seus heróis e também encontrar um sentido interessante nas filosofias e
nos pensamentos de outrora.” (p. 36)
“Acabamos de escrever uma carta de ciúmes confusa e interminável, que desmentimos
precipitadamente uma hora mais tarde, por telegrama” (p. 36)
Há pessoas informadas que estão ligadas, não a uma revelação, mas muito
simplesmente a um conhecimento difuso que tiveram oportunidade de recolher. (p. 37)
Conhecimento por informação entre os gregos: “este estado de coisas poderia ter durado
mais de mil anos; não se modificou por os gregos terem descoberto a razão ou
inventado a democracia, mas por o campo do saber ter visto o seu quadro alterado pela
formação de novos poderes de afirmação (a investigação histórica, a física especulativa)
que faziam concorrência ao mito e que, ao contrário do mito, punham expressamente a
alternativa do verdadeiro e do falso. (p. 38)
1. Em relação aos mitos os gregos tiveram duas modalidades de crença:
a) Informação e confiança: O mito era, aliás, uma informação obtida com base na
palavra de outrem. Foi esta a primeira atitude dos gregos perante o mito; nesta
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modalidade de crença, estavam em estado de dependência em relação a palavra de
outrem. (p. 44)
b) Experiência: Em seguida, esta dependência acabará por suscitar uma revolta: eles
pretenderão julgar de tudo por si próprios, segundo a sua própria experiência... (p. 44)
O mito tinha um conteúdo que se situava numa temporalidade nobre e platônica, tão
estranha a experiência individual e aos seus interesses... (p. 44)
Cita M. Nilsson: “Uma criança de treze anos que estava a tomar banho num riacho
cheio de pequenas ondas dizia: ‘o riacho esta afranzir as sobrancelhas’; se esta
expressão for tomada à letra, seria um mito; mas a criança sabia perfeitamente, ao
mesmo tempo, que o riacho era água, que podia beber-se, etc. da mesma maneira, um
primitivo pode ver almas por todo o lado na natureza, pode situar numa arvore qualquer
força sensível e atuante que devera apaziguar ou venerar; mas, noutra ocasião, não
deixará de cortar esta arvore para a transformara em materiais de construção ou em
combustível” (p. 31 nota de rodapé)
Desse modo, Veyne nos mostra que a estrutura de uma crença no mito, é complexa, e de
modo algum implica uma alienação com relação a realidade:
"Digamos antes que é possível acreditar no mito como na historia, mas não em vez da
historia, nem nas mesmas condições que na historia; as crianças também não exigem
aos seus pais o Don da levitação, da ubiqüidade e da invisibilidade que atribuem ao
Papai Noel. Crianças, primitivos e crentes de toda espécie não são ingênuos" (p. 32 nota
de rodapé)
"Como os gregos pensavam o mito"
Todas as cidades, grandes ou pequenas, tinham as suas origens e era possível fazer o
elogio de todas elas; os manuais de retórica forneciam receitas para descobrir algum
mérito mesmo à mais insignificante cidadezinha. (p. 102)
... Estes panegíricos, mais do que exaltar uma cidade acima de todas as outras, visavam
reconhecer a cidade a sua dignidade de pessoa. (p. 102)
Os gregos não tinham a visão que temos hoje do mito:
Enquanto para nós, um mito é o engrandecimento épico de um grande acontecimento,
para eles o mito era uma verdade alterada pela ingenuidade popular, mas que tinha um
núcleo autentico. Não necessitavam de classificar um mito como verdadeiro ou falso
"Ora encaravam a mitologia como contos de velhinha ingenua ora tinham uma atitude
que nao levava em consideraçao a historicidade".
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Com relação aos mitos, os gregos tinham uma forte ligação com a tradição oral, a
historia era sempre baseada na autoridade de outrem, por isso mesmo possuía um
caráter nobre e platônico. Para Veyne isso possui um papel decisivo na atitude que eles
tinham perante a mitologia.
Os gregos procuravam uma verdade através das mentiras... (76)
"... Estavam em estado de dependência em relação à palavra de outrem. Daí dois efeitos.
Em primeiro lugar, uma espécie de indiferença letárgica ou, pelo menos, de hesitação
perante a verdade e a ficção; em seguida, esta dependência acabara por suscitar uma
revolta, e será precisamente este o principio das coisas atuais que fará avaliar o
maravilhoso pela realidade e passar a outras modalidades.” (p. 44)
Acredita-se também por experiência, mas é a palavra dos outros, e a confiança nesta, o
que me faz acreditar.
“... Acredito na existência de Tóquio, aonde ainda não fui, porque não vejo que
interesse teriam os geógrafos e as viagens em enganar-me. Esta modalidade pode durar
enquanto o crente confiar em profissionais ou não existirem profissionais que façam lei
na matéria; os ocidentais, ou pelo menos aqueles de entre eles que não são
bacteriólogos, acreditam nos micróbios e multiplicam as precauções de assepsia pela
mesma razão que os Azandé acreditam nos feiticeiros e multiplicam as precauções
mágicas contra eles: Acreditam por confiança.” (ibidem, p. 44-45)
A modalidade de crença mais difundida é aquela em que se acredita na palavra de
outrem; acredito na existência de Tóquio, aonde ainda não fui, porque não vejo que
interesse teriam os geógrafos e as agencias de viagens em enganar-me. (p. 44-45)
A verdade definia-se, quer a partir da experiência quotidiana, quer a partir do locutor,
que é leal ou enganador; as afirmações que permaneciam estranhas à experiência não
eram nem verdadeiras nem falsas [...] (p. 45)
O mito era um tertium quid, nem verdadeiro, nem falso. Einstein seria isso para nós se a
sua verdade não viesse de uma terceira fonte, a da autoridade dos profissionais.
Naqueles tempos longínquos, esta autoridade não havia nascido e não existiam teologia,
física ou historia. (p. 45)
Escolher a montanha: segundo a autora Veyne utiliza termos como “nem
verdadeiro nem falso” numa tentativa de mostrar que tudo é mais complicado do
que as visões contrárias.
Habitualmente nós não distinguimos entre crença e afeto. (61)
O útil nós acreditamos ser verdadeiro. (62)
"... Os gregos viveram mil anos neste estado... A rejeição do maravilhoso e a convicção
de que as lendas tinham um fundo de verdade; dai a sua consciência confusa."
![Page 8: Notas Acreditaram Os Gregos Em Seus Mitos](https://reader035.vdocuments.pub/reader035/viewer/2022080221/563db788550346aa9a8bf101/html5/thumbnails/8.jpg)
"... Os gregos não se preocupavam muito, pois uma mentira não tem nada de positivo: é
um não-ser. Eis tudo. Não perguntavam muito por que é que alguns haviam mentido,
mas antes porque é que os outros haviam acreditado." (p. 75)
Para eles "O mediun desaparece por detrás da mensagem" (p. 74)
A tese de Tales com base na tradição, não era nem metafísica nem ontológica, era
alegórica. O que Tales faz é encontrar uma resposta para um problema, uma chave:
Tales foi o primeiro a encontrar a chave de todas as coisas: “Tudo é água”. (p. 46)
Uma palavra é uma metáfora. Uma frase é uma metáfora mais longa, ou menor
(dependendo do sentido que está por detrás dela). Um pensamento que elucida um
problema, não é a elucidação do problema. É uma chave, que serve para avançar,
compreender melhor o problema.
[...] as coisas são feitas de água, da mesma maneira que, para nós, o sal marinho é feito
de cloro e de sódio, e, visto que tudo é água, tudo passa, tudo corre, tudo muda, tudo
foge. (p. 47)
Estranha química: como pretenderá ela recompor a diversidade dos compostos a partir
de um único corpo simples? Não pretende; não é uma explicação, mas sim uma chave, e
uma chave deve ser simples. (p. 47)
“Ora uma chave não é uma explicação. Ao passo que uma explicação dá conta de um
fenômeno, uma chave, por seu lado, faz esquecer o enigma, apaga-o, toma o seu lugar.
Tal como uma frase mais clara eclipsa uma primeira formulação confusa e pouco
compreensível.” (p. 47)
Com efeito, esquecemo-nos do texto de uma adivinha, que só serve para nos fazer
chegar a sua conclusão. (p. 47)
Somente os gênios criam estas chaves, o resto dos mortais apenas tece comentários ao
seu redor.
"A coexistência, numa mesma cabeça, de verdades contraditórias não deixa de ser um
fato universal. O feiticeiro de Levi Strauss acredita na sua magia e manipula-a
cinicamente, o mágico segundo Bergson so recorre a magia quando não existem receitas
técnicas seguras." (p. 104)
Veyne explica:
"... Todos os povos dao um jeitinho aos seus oraculos ou aos seus indices estatisticos
para obterem a confirmaçao daquilo em que desejam acreditar. Ajuda-te a ti proprio que
o ceu te ajudará." (p. 104)
"Nao há verdades contraditorias num mesmo cerebro, mas simplesmente programas
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diferentes, cada um dos quais encerra verdades e interesses distintos, mesmo quando
essas verdades usam o mesmo nome."
Para Veyne verdade é uma palavra que so se deveria usar no plural. Ele cita o exemplo
de um medico homeopata amigo seu que toma a prudencia de prescrever antibioticos
quando a doença é grave. Justifica dizendo que o objetivo em comum entre medico e
paciente é a cura do doente. Estas atitudes nao sao contraditorias, sao simplesmente dois
programas de verdade diferentes.
“A verdade é o nome que damos às nossas opções, de que não queremos desfazer-
nos; se nos desfizéssemos delas, considerá-las-íamos decididamente falsas, de tal
modo respeitamos a verdade” (p. 149)
Em Roma havia a divinização do Imperador por parte dos fieis:
“Um fato mostra ate onde vai a nossa duplicidade para conosco próprios: se os
imperadores eram deuses e se os arqueólogos encontraram dezenas de milhares de ex-
voto consagrados aos diferentes deuses, para cura, feliz regresso, etc., não existe
contudo um único ex-voto consagrado a um imperador deus; quando os fieis tinham
necessidade deus, não se dirigiam ao imperador.” (p. 109)
“A pluralidade das verdades, chocante para a lógica, é conseqüência normal da
pluralidade das forças” (p. 110)
“A nossa vida quotidiana é composta por um grande numero de programas diferentes e
a impressão de mediocridade quotidiana nasce precisamente dessa pluralidade, a qual,
em certos estados de escrúpulo neurótico, é sentida como uma hipocrisia; passamos
incessantemente de um programa para outro, como se muda de comprimento de onda de
na radio, mas fazemo-lo sem nos darmos conta.” (p. 107)
"Para Veyne, no passado houve um tempo em que a verdade se encontrava naturalmente
envolta em falsidades." (a minha duvida é quanto a sutileza das manifestações daquilo
que se pode chamar de sobrenatural. Se ele existe, em que medida ele transparece?"
"Sobre a Falta de Sentido em Classificar o Mito Como Mentira"
“A questão de saber se as fabulas tem um conteúdo autentico nunca se põe em termos
positivos: Para saber se Minos existiu, é preciso decidir primeiro se os mitos não
passam de contos vãos, ou se são historia alterada; nenhuma critica positivista liquida a
fabulação e o sobrenatural” (p. 14)
MITHODES: “Aquilo que de falso se vem misturar com o fundo histórico”
“Basta admitir a existência do sobrenatural para deixar de poder demonstrar a
inexistência de um milagre. Basta ter interesse em acreditar que Auschwitz não existiu
para que todos os testemunhos sobre Auschwitz se tornem incríveis. Também nunca
ninguém demonstrou que Júpiter não existia.” (p. 14)
![Page 10: Notas Acreditaram Os Gregos Em Seus Mitos](https://reader035.vdocuments.pub/reader035/viewer/2022080221/563db788550346aa9a8bf101/html5/thumbnails/10.jpg)
Os testemunhos são convergentes: a maioria do publico acreditava nas lendas acerca de
Cronos, diz Sextus Empiricus; acredita no que as tragédias contam de Prometeu, Niobe,
e Teseu, escrevem Artemidoro e Pausânias. E por que não? Não acreditavam os doutos,
também eles em Teseu? A multidão limitava-se a não depurar o mito. (p. 66)
Sobre a verdade:
"... Ninguém pode mentir inicial ou totalmente pois o conhecimento nao passa de um
espelho; e o espelho confunde-se com aquilo que reflete, de tal maneira que o mediun
não se distingue da mensagem." (p. 74)
"O mito é verídico, mas em sentido figurado, nao é verdade historica misturada com
mentiras, é um alto ensinamento filosófico inteiramente verdadeiro, desde que, em vez
de tomarmos à letra, vejamos nele uma alegoria" (p. 79)
(parece que é isso quando se diz que a ficçao é verdadeira em si mesma. Dessa forma é
erroneo dizer simplesmente que um mito seja uma mentira pois basea-se em
imaginaçoes, pois assim toda a arte deve ser descartada ).
"A tradição mítica transmite um núcleo autentico que ao longo dos séculos se foi
rodeando de lendas. Só estas lendas é que põem problemas não o núcleo" (p. 27)
(exatamente como diz Otto em Teofania). Estas lendas diz Veyne, sao acidentes na
transmisao do nucleo, tais como: Entender uma palavra por outra ou uma coisa por uma
palavra.
Veyne chega a falar muitas vezes sobre esse nucleo autentico como sendo a parte
depurada. Afastando as lendas que acumularam-se, voce tera aquilo que aconteceu de
verdade. Fala do exemplo do minotauro que Aristoteles explicou como sendo na
verdade um antigo rei. Ele mesmo fala sobre a lenda do centauro como sendo os
primeiros homens que se utilizaram de cavalos para caçar touros selvagens.
Trata-se de pensar que a mentira é algo que nao existe em si mesma, sendo apenas
a deformaçao de uma verdade, e nao uma mentira totalmente. Se o mito fala de
algo que nao existe, entao como é que algo pode falar do nada? "... É pois necessaio
que o que nao é seja, para que se possa falar dele." "Se a palavra é um espelho,
como ela pode refletir um objeto que nao esta lá? Refletir o que nao existe equivale
a nao refletir."
“Um mundo não pode ser fictício em si próprio, isso depende de se nele acreditamos ou
não; entre uma realidade e uma ficção, a diferença não é objetiva, não esta na própria
coisa, mas sim em nós, se subjetivamente nela vemos ou não uma ficção: O objeto
nunca é incrível em si próprio e o seu desvio em relação ‘à’ realidade não pode chocar-
nos, pois nos nem sequer dele nos apercebemos, uma vez que as verdades são todas
analógicas.” (p. 36)
![Page 11: Notas Acreditaram Os Gregos Em Seus Mitos](https://reader035.vdocuments.pub/reader035/viewer/2022080221/563db788550346aa9a8bf101/html5/thumbnails/11.jpg)
Existia, com efeito, um público crédulo, mas culto, que exigia um maravilhoso novo;
este maravilhoso já não podia situar-se, para alem do verdadeiro e do falso, num
passado intemporal; pretendia-se que fosse “cientifico”, ou melhor, histórico. (p. 63)
“... Trata-se de velhíssimos vinhos que tiveram por nome razão, moral, Deus e verdade.
Estes vinhos parecerão ter um sabor moderno se os vertermos na desmistificação, na
questionarão da consciência e da linguagem...” (p. 148)
“... Acreditamos ser verdadeiro tudo aquilo que lemos enquanto o estamos a ler; só a
seguir é que o consideramos ficção e mesmo assim só se pertencermos a uma sociedade
em que exista a idéia de ficção.” (p. 125)
"... A poesia esta do mesmo lado que o vocabulário, o mito e as expressões feitas; longe
de tirar a sua autoridade do gênio do poeta, ela é, apesar da existência do poeta, uma
espécie de fala sem autor; não tem locutor, é o que se diz; não pode, pois, mentir, pois
só um locutor poderia fazê-lo" (p. 82)
“Para nos enganarmos, mentirmos ou falarmos no vazio, temos de falar do que não
existe; é pois necessário que o que não é seja, para que se possa falar dele; mas que é
um vazio que não é nada?” (p. 87)
(assim como diz Veyne e Mircea, esse diz-se, no caso dos mitos, possui uma estranha
autoridade, e é por isso que nao pode existir conversa entre um homem religioso e um
homem de crenças estritamente cientificas)
"O mito tem de transmitir quer algum ensinamento útil, quer uma doutrina fisica ou
teologica sob a capa de alegoria, quer a recordaçao de acontecimento do tempo
passado." (p. 84)
Plutarco: "A verdade e o mito tem entre si a mesma relaçao que o sol e o arco iris, que
dissipa a luz numa variedade matizada" (p. 84)
( o sol é a verdade, a luz do arco iris é uma sub verdade, mas ainda é luz, portanto ainda
é verdade!)
CAP.5
"Para depurar o mito e fazer dele uma tradiçao exclusivamente historica, bastara
eliminar tudo o que nao tem equivalente detectado na nossa existencia historica."
"As coisas atuais fornecem a medida do que é naturalmente possivel" (p. 89)
(com isso nos podemos pensar que o mundo, esse em que vivemos, sempre foi igual ao
que é hoje, as diferenças encontradas estao apenas no modo de pensar de cada homem,
exemplar de seu tempo historico)
"Quando deuses, homens e felinos conviviam familiarmente, era a idade de ouro; mas
![Page 12: Notas Acreditaram Os Gregos Em Seus Mitos](https://reader035.vdocuments.pub/reader035/viewer/2022080221/563db788550346aa9a8bf101/html5/thumbnails/12.jpg)
desde que o mundo se tornou real, os deuses se escondem e ja nao é possivel qualquer
comunicação." (p. 90)
A questao que se poe aqui, é se o sobrenatural tem lugar nesse mundo "...Conhecer as
fronteiras da realidade"
"... Dissociemos a desmitologizaçao de irreligiao" (seria isso a filosofia da religiao?
Buscar um nucleo autentico num mito, nao significa negar a sacralidade e o miraculoso
de um acontecimento)
Nietzsche: "Nao há mentira quando o mentiroso nao tem interesse em mentir!"
CAP.7
Relaloes imaginarias com o nosso mundo estao em toda a parte e em todas as coisas "A
declaraçao dos direitos do homem nao sao, nem menos reais nem menos verbais que os
mitos" (isso lembra a estrutura dos mitos que é inerente a linguagem do homem e a tudo
o que ele postula. A minha duvida aqui é, se o mito é inerente a linguagem do homem,
de que modo o homem se livraria dele. Há esta possibilidade?)
"Quando foi que se começou a tratar o mito como sinônimo de mentira"
E precisamente para voltarmos ao mito, a incredulidade a seu respeito veio de pelo
menos dois focos: uma brusca indocilidade a palavra de outrem e a constituição dos
centros profissionais de verdade. (p. 48)
A aristocracia grega hesitava entre duas atitudes [...] partilhar utilmente a credulidade
popular, pois o povo acredita tão docilmente como obedece, ou então recusar uma
submissão humilhante, sentida como um efeito da ingenuidade [...] ( p. 48)
No primeiro caso, os aristocratas ganhavam ainda com o fato de poderem reclamar-se
de genealogias míticas. (p. 48)
Um escravo, desesperado com a sua sorte, diz ao seu companheiro de infortúnio: “Já só
nos resta lançarmo-nos aos pés das imagens dos deuses”, e o seu camarada responde-
lhe: “Ah sim! Ouve lá, acreditas de fato que há deuses?”. Não creio que os olhos deste
escravo lhe tenham sido abertos pelas Luzes dos Sofistas; ele pertence à franja
incompreensível de incrédulos cuja recusa se deve menos a raciocínios e ao movimento
das idéias do que a uma reação contra uma forma sutil de autoridade... (p. 49)
... O mito começou a sofrer a concorrência de especialistas do verdadeiro, os
‘inquiridores’ ou historiadores, os quais, como profissionais, começaram a fazer
autoridade. Ora, aos olhos destes, os mitos deviam concordar com o resto da realidade,
visto que se apresentavam como reais. (p. 49)
Os que nos informam estão, pois, informados e, neste domínio, o que se opõe é menos a
verdade ao erro do que a informação a ignorância. (p. 50)
![Page 13: Notas Acreditaram Os Gregos Em Seus Mitos](https://reader035.vdocuments.pub/reader035/viewer/2022080221/563db788550346aa9a8bf101/html5/thumbnails/13.jpg)
Doravante, os outros homens terão de se referir de preferência a este profissional, sob
pena de não passarem de espíritos incultos. E, como o inquiridor verifica a informação,
impõe a realidade a obrigação de coerência. (p. 50)
A esta elasticidade natural chama-se também vontade de poder. (p. 52)
Eles vão tentar se desvencilhar de tudo o que seja maravilhoso, e vão tentar julgar tudo
por si próprios segundo a sua própria experiência, vão começar a comparar o fabuloso
com o real (me parece ser este, o surgimento da filosofia). Veyne cita um acontecimento
na Grécia:
Xenofanes não quer que, nos banquetes, os convivas discutam ou digam parvoíces e,
conseqüentemente, proíbe que se fale “dos Titãs, dos Gigantes, dos Centauros, tudo
invenções dos antigos. (p. 48)
Deve-se falar apenas do que é humano. Assim o pensamento ocidental começa a mudar
de atitude, o mito passa a ser sinônimo de falsidade.
Mas é necessario salientar que mesmo esse ato de se desvincular da linguagem mitica,
nao implica o suceso desta empreitada. Por que mesmo a elite grega dos tempos de
Xenofanes, mesmo ela possuia uma relaçao profunda com a mitologia, no caso a
questão do mito como alegoria.
Os historiadores modernos escrevem tomando sempre referencias e notas de rodapé,
caso nao o façam, aquilo que estao dizendo pode perder a credibilidade, podem ser
simplesmente mitos, no sentido de ilusao. Veyne mostra que os antigos historiadores
nao o faziam por que nao viam essa necessidade:
"A credibilidade da obra sera dada pelo tempo e pelos leitores". Os historiadores tem
papel importante na transformaçao da relaçao com os mitos. Sao dois focos: "Uma
brusca indocilidade com relaçao a palavra de outrem e a constituiçao de centros
profissionais de verdade".
Tambem sao duas as escolas (atitudes) perante o conteudo dos mitos:
"A critica das lendas pelos historiadores e a interpretaçao alegorica pelos filosofos." (é
interessante que esta atitude critica nao aceita o mito como possuindo um nucleo
autentico, para eles acho que o mais sensato é que o mito surgiu do nada, ou seja nao
possui verdade figurada alguma. "Alguem começou a mentir!")
"O espirito de seriedade faz com que, desde Marx, tenhamos vindo a encarar o devir
historico ou cientifico como uma sucessao de problemas que a humanidade equaciona e
resolve, ao passo que com toda evidencia, a humanidade nao cessa de esquecer cada
problema para pensar em outra coisa" (p. 54)
"Einstein é verdadeiro aos nossos olhos num certo programa de verdade, o da física
dedutiva e quantificada; mas se acreditarmos na Ilíada, ela será não menos verdadeira,
![Page 14: Notas Acreditaram Os Gregos Em Seus Mitos](https://reader035.vdocuments.pub/reader035/viewer/2022080221/563db788550346aa9a8bf101/html5/thumbnails/14.jpg)
no seu programa de verdade mítica". (p. 36)
"Hesiodo nao era um falsario." Veyne afirma que alguem que vive num tempo onde nao
se quetsiona a historicidade das coisas, mas antes, acredita-se ou semi acredita-se, nela
nao pode ser um mentiroso. É simplesmente alguem que vive de acordo com o
programa de verdade vigente em sua época, e nao poderia ser diferente.
“Esta analogia da verdade faz com que a heterogeneidade dos programas passe
despercebida; continuamos na verdade quando mudamos inadvertidamente de
comprimento de onda; a nossa sinceridade é total quando nos esquecemos dos
imperativos e usos da verdade de há cinco minutos para adotarmos os da nova verdade.”
(p. 107)
93 – Não temos nunca, sobre o verdadeiro, o falso, o mito, a superstição, uma visão
completa, uma evidencia, um índex sui. Tulcidides acreditava nos oráculos, Aristóteles
na adivinhação pelos sonhos, Pausanias obedecia aos seus sonhos.
93 – nota de rodapé – Galeno dedicou-se a medicina na seqüência dos sonhos de seu
pai, que via no filho um médico (vol X, 609 e XVI, 223 kuhn); um sonho enviou-lhe a
composição de um remédio.
A relação de forças entre as verdades
Programas distintos: quando os discursos se chocam
1. Século V a. c ao século IV d. c.
...Por docilidade à palavra de outrem, por ausência de sistematização da experiência
quotidiana. Os doutos... (p. 58)
2. Em qualquer caso, a literatura oral e a iconografia davam a conhecer a todos a
existência e a modalidade de ficção de um mundo mitológico cujo sabor era
sentido... (p. 61)
3. Como na época arcaica, o passado da humanidade era, pois precedido, a seus
olhos, por um período maravilhoso que era outro mundo. Real em si próprio e
irreal em relação ao nosso. (p. 66)
4. A partir do momento em que queremos convencer e fazer-nos aceitar, temos de
respeitar as idéias estranhas, se forem forças, e temos que pensá-las um pouco.
(p. 74)
5. Galeno indigna-se ao ver um Crisipo renunciar com tanta freqüência a
![Page 15: Notas Acreditaram Os Gregos Em Seus Mitos](https://reader035.vdocuments.pub/reader035/viewer/2022080221/563db788550346aa9a8bf101/html5/thumbnails/15.jpg)
demonstrar cientificamente e preferir multiplicar as citações de Homero, do
mesmo modo que os retóricos procuram impressionar os juízes chamando à
barra o maior numero possível de testemunhas. (p. 81)
6. Visto que os estóicos estão de antemão seguros de que mitos e poesia dizem a
verdade, só lhes resta torturarem-nos, para os fazer encaixar nessa verdade; a
alegoria será o seu leito de Procustes. (p. 83)
7. O feiticeiro de Levi Strauss acredita na sua magia e manipula-a cinicamente, o
mágico segundo Bérgson só recorre a magia quando não existem receitas
técnicas seguras, os gregos interrogam a pítia sabendo que, por vezes, essa
profetiza faz propagandas em favor dos Persas ou da Macedônia, os Romanos
falsificam a sua religião de Estado para fins políticos, deitam a água os frangos
sagrados quando eles não predizem o que seria preciso, e todos os povos dão um
jeitinho aos seus oráculos ou aos seus índices estatísticos para obterem a
confirmação daquilo em que desejam acreditar. Ajuda-te a ti próprio que o céu te
ajudará; o paraíso, sim, quanto mais tarde melhor. (p. 104)
8. Mas as verdades não estão inscritas como estrelas na esfera celeste; elas são o
pequeno circulo de luz que aparece na ponta da luneta de um programa, de tal
modo que a dois programas diferentes correspondem, evidentemente, duas
verdades diferentes, ainda quando o seu nome é o mesmo. (p. 106)
9. Conheço um médico que, sendo homeopata apaixonado, tem no entanto a
prudência de prescrever antibióticos quando a doença é grave e reserva a
homeopatia para os casos anódinos ou desesperados
10. O nosso espírito não se apoquenta quando parecendo contradizer-se, muda sub-
repticiamente de programa de verdade e de interesse, o que acontece vezes sem
conta. (p. 106)
11. Um Romano que manipula a religião de Estado segundo os seus interesses
políticos pode estar de tão boa fé quanto o meu amigo homeopata; se estiver de
má fé, será por não acreditar num dos seus dois programas, apesar de o utilizar,
mas não por acreditar em duas verdades contraditórias. (p. 106)
12. Aliás, a má fé nem sempre está onde se julga; o nosso Romano pode ser
sinceramente piedoso; quando afecta um escrúpulo religiosos em que pouco ou
nada acredita, a fim de interromper uma reunião eleitoral em que está iminente
uma má votação. (p. 106)
13. Pensará que há que defender todos os valores conjuntamente, religião ou pátria,
e que uma razão nunca é má quando se trata de apoiar uma boa causa. (p. 107)
14. A religiosidade ocupa, num dia, apenas uma parte mínima dos pensamentos de
um homem religioso, mas pode dizer-se o mesmo dos pensamentos de um
![Page 16: Notas Acreditaram Os Gregos Em Seus Mitos](https://reader035.vdocuments.pub/reader035/viewer/2022080221/563db788550346aa9a8bf101/html5/thumbnails/16.jpg)
desportista, de um militante, de um poeta, Ela ocupa uma estreita faixa, mas
ocupa-a sincera e intensamente. (p. 106)
15. A religião, a política ou a poesia podem bem ser as coisas mais importantes
desse mundo ou do outro e nem por isso deixam de ocupar um espaço reduzido
na prática (p. 106)
16. Sentimo-nos mais a vontade para estudar as crenças, religiosas ou outras,
quando compreendemos que a verdade é plural e analógica.
17. Se pensássemos os fantasmas com o mesmo espírito que nos faz pensar os fatos
físicos, não teríamos medo deles, ou pelo menos da mesma maneira; temê-lo-
íamos como a um cão feroz, ao passo que o medo dos fantasmas é medo perante
a intrusão de um mundo diferente. Pela minha parte considero os fantasmas
como simples ficções, mas não deixo por isso de sentir a sua verdade; tenho
deles um medo quase neurótico; e os meses que passei a selecionar os papéis de
um amigo morto foram um longo pesadelo; neste preciso momento em que
datilografo estas frases, um arrepio de terror começa a subir-me nuca a cima... É
por isso que a ficção cientifica, longe de me dar medo, me tranqüiliza
deliciosamente. (108)
18. "... O que é conforme um programa de verdade de uma sociedade sera visto
como impostura ou elocubraçao noutra. Um falsario é um homem que se
enganou de seculo."
19. Sobre o rigor, especificamente sobre distinguir entre a história ficção e a historia
que se pretende séria, como julgar? “Com base no rigor? Ele é igual num
falsário, cuja imaginação segue inconscientemente os ditames de um programa
de verdade tão determinado como o que seguem, sem o saber, os historiadores
considerados sérios. (p. 126)
20. A discussão dos fatos passa-se sempre no interior de um programa. (p. 128)
21. ... Não duvidamos daquilo em que outros acreditam, se forem respeitáveis: as
relações entre verdades são relações de força. Dai aquilo a que se chama a má fé.
(p. 57)
22. É claro que a existência ou a não existência de Teseu e das câmaras de gás, num
ponto do espaço e do tempo, tem uma realidade material que nada deve a nossa
imaginação. Mas essa realidade ou irrealidade é percepcionada ou ignorada, é
interpretada de uma maneira ou de outra, de acordo com o programa em vigor;
não se impõe por si própria, as coisas não nos saltam aos olhos. (p. 129)
23. A idéia famosa de que “os fatos não existem” (estas palavras são de Nietzsche e
não de Max Weber) não se refere à metodologia do conhecimento histórico nem
a pluralidade das interpretações do passado pelos diferentes historiadores;
![Page 17: Notas Acreditaram Os Gregos Em Seus Mitos](https://reader035.vdocuments.pub/reader035/viewer/2022080221/563db788550346aa9a8bf101/html5/thumbnails/17.jpg)
descreve a estrutura da realidade física e humana; um fato (a relação de
produção, o “poder”, a “necessidade religiosa” ou as exigências do social) não
desempenha o mesmo papel, ou antes, não é a mesma coisa de conjuntura para
conjuntura; o seu papel e identidade são de circunstancia. (p. 54)
24. Para se rejeitar o mito ou o Dilúvio, não basta um estudo mais atento ou um
método melhor; é preciso mudar de programa; não reconstruímos o que estava
mal construído, vamos habitar para um outro lado. (p. 129)
25. Não quero dizer que os fatos não existem; a materialidade existe
incontestavelmente, é atuante. (p. 129)
26. A materialidade das câmaras de gás não arrasta consigo o conhecimento que
delas podemos ter. (p. 129)
27. Um falsário é um peixe que, por razões caracteriais, não entrou no aquário
adequado. (p. 129)
28. Mas estas verdades não deixam de ser analógicas entre si (parecem ser a mesma)
e a sua sinceridade é igual em todas elas, visto que todas elas fazem agir os seus
fiéis com a mesma intensidade. A pluralidade das modalidades de crenças é, de
fato, pluralidade dos critérios de verdade. (p. 135)
29. Como a verdade parecia una e insuspeitável, talvez a explicação esteja em
modalidades de crença desiguais em intensidade e em valor. Talvez a
humanidade tenha cometido o erro de ser, por demasiado tempo, dócil perante o
argumento de autoridade ou as representações sociais.
30. ...Não acreditamos nos neutrões, nos mitos ou no anti-semitismo como
acreditamos no testemunho dos sentidos ou na moral da tribo; é que a verdade
não é una. Mas estas verdades não deixam de ser analógicas entre si (parecem
ser a mesma) e a sua sinceridade é igual em todas elas, visto que todas elas
fazem agir os seus fiéis com a mesma intensidade. A pluralidade das
modalidades de crença é, de fato, pluralidade dos critérios de verdade. (135)
31. Se assim não fosse, a quase totalidade da cultura universal começaria a ser
inexplicável, mitologias, doutrinas, farmacopéias, falsas ciências e ciências
falsas. Enquanto falarmos de verdade, não compreenderemos nada da cultura
nem conseguiremos ter, em relação a nossa época, o mesmo recuo que temos em
relação aos séculos passados em que se falava de mitos e deuses. (p. 135 – 136)
32. A. B. Drachmann mostrou que o ateísmo antigo, menos do que negar a
existência de deuses, criticava a idéia popular dos deuses, não excluindo uma
concepção mais filosófica da divindade. (p. 136)
33. Cristãos à sua maneira, não foram mais longe na negação dos deuses do
![Page 18: Notas Acreditaram Os Gregos Em Seus Mitos](https://reader035.vdocuments.pub/reader035/viewer/2022080221/563db788550346aa9a8bf101/html5/thumbnails/18.jpg)
paganismo; disseram menos “fabulas ocas” do que “concepções indignas”. Uma
vez que queriam por o seu deus no lugar do dos pagãos, poderia pensar-se que o
programa ideal consistiria em mostrar que Júpiter não existia, para num segundo
tempo, exporem as provas da existência de Deus. Não foi este o seu programa;
menos do que censurarem os deuses pagãos por não existirem, parecem acusá-
los de não serem os bons. (p. 136)
34. ... É que o objetivo dessa polemica consistia menos em convencer adversários do
que em excluir rivais; em fazer sentir que o Deus cioso não toleraria nenhuma
partilha, ao contrário dos deuses dos paganismos, que se toleravam entre si (pois
todos eram verdadeiros e nenhum excluía os outros). (p. 136)
35. Quando se torna necessário, por escrúpulo de pensador, traduzir em doutrina
esta indignidade, dir-se-á, com Eusébio, que os deuses pagãos são menos deuses
falsos do que falsos deuses; trata-se de demônios que, para enganarem os
homens se fazem passar por deuses. (p, 137)
36. Só se deseja conhecer os deuses dos outros nas negociações internacionais... As
nações passam bem sem a noção do verdadeiro e do falso, que só praticam ou
crêem praticar certos intelectuais em certas épocas. (p. 137)
37. É muito difícil negar um deus, nem que seja o deus dos outros e mesmo o
judaísmo antigo dificilmente o conseguia. Afirmava antes que os deuses
estrangeiros eram menos fortes que o deus nacional, ou então que não eram
interessantes; desprezo ou horror, mas não negação, o que para um patriota, é a
mesma coisa. Os deuses dos outros existem? Pouco importa a sua existência; o
importante é que os deuses dos outros nada valem, são ídolos de madeira ou de
pedra que tem orelhas incapazes de ouvir. (p. 137)
38. A verdade é o nome que damos as nossas opções, de que não queremos
desfazer-nos; se nos desfizéssemos delas considerá-las-íamos falsas, de tal modo
respeitamos a verdade; até os nazis a respeitam a respeitavam pois diziam que
tinham razão, não diziam que estavam enganados. Poderíamos ter-lhes replicado
que estavam enganados, mas para quê? Não estavam no mesmo comprimento de
onda que nós... (150)
39. A vitoria definitiva dos gregos sobre os persas estava proxima, e Atenas ja
falava como lider. mas havia uma outra cidade que se opunha. Entao Atenas cita
toda a sua historia mitologica de heroismos e façanhas, e diante disso se é aceito
que ela é verdadeiramente lider (o que ha na verdade, é a aceitaçao da força
militar que Atenas possuia).
40. "Judeus afirmam aos espartanos que nao se atrevem a duvidar que os dois povos
sao irmaos em Abraao." (uma fraternidade selada assim dificilmente é colocada
em prova)
![Page 19: Notas Acreditaram Os Gregos Em Seus Mitos](https://reader035.vdocuments.pub/reader035/viewer/2022080221/563db788550346aa9a8bf101/html5/thumbnails/19.jpg)
"Se refletirmos um instante, a ideia de que a verdade nao existe, nao é mais paradoxal
nem mais paralizante que a de uma verdade cientifica perpetuamente provisoria e
destinada a ser falsificada" (p. 137)
“A ciência não encontra verdades, matematizáveis ou formalizáveis, descobre fatos
desconhecidos que podem ser glosados de mil maneiras; descobrir uma partícula
subatômica, uma receita técnica eficaz ou a molécula do ADN não tem nada de mais
sublime do que descobrir os infusórios, o cabo da Boa Esperança, o Novo Mundo ou a
anatomia de um órgão.” (p. 137)
A própria vida quotidiana, longe de ser um imediatismo, é encruzilhada de imaginações
e é ai que acreditamos ativamente no racismo ou no mau olhado. O empirismo e a
experimentação são quantidades desprezáveis. (p. 139)
Acreditamos nas religiões, em Madame Bovary durante a leitura, em Einstein, em
Fustel de Coulanges, na origem troiana dos francos; todavia, em certas sociedades,
algumas dessas obras são consideradas ficções. (1983, p. 139)
... Longe de ser um índice eloqüente em si próprio, a verdade é a mais variável das
medidas. (p. 139)
"O programa de verdade histórica em que o presente livro se inscreve não consiste em
dizer como a razao progride... Mas em refletir sobre a constituição da verdade através
dos seculos... A verdade é que a verdade varia." (p. 140)
"... Cada época pensa e age no interior de quadros arbitrários e inertes (é obvio que,
num mesmo século, estes programas podem contradizer-se de um setor de atividade
para outro, e que estas contradições, o mais das vezes, serão ignoradas). Uma vez que
estamos dentro de um desses aquários, é preciso gênio para dele sairmos e inovarmos;
em contrapartida, quando a genial mudança de aquário se opera, as criancinhas podem
ser socializadas no novo programa desde a mais tenra idade. Encontram-se tão
satisfeitas com ele como os seus antepassados com o seu e não vêem maneira de sair
dele, uma vez que não avistam nada para alem dele" (p. 140)
Com mais forte razão ainda, desconhecemos a forma extravagante desses limites, pois
julgamos habitar dentro de fronteiras naturais. (p. 140)
Não concedemos qualquer papel a uma só investida da razão, a uma luz natural, a uma
relação entre as idéias e a sociedade que fosse funcional. (p. 143)
A ilusão da verdade fará que cada palácio passe por se encontrar plenamente instalado
dentro das fronteiras da razão. (p. 144)
"A construção do edifício da verdade, nao é orientada por grandes razoes, tais como a
natureza humana, as necessidades sociais, a lógica das coisas que sao, ou as forças de
produçao" (é o acaso!)
![Page 20: Notas Acreditaram Os Gregos Em Seus Mitos](https://reader035.vdocuments.pub/reader035/viewer/2022080221/563db788550346aa9a8bf101/html5/thumbnails/20.jpg)
Justificação para uma teoria pluralista
O programa de verdade histórica em que o presente livro se inscreve não consiste em
dizer como é que a razão progride, como é que a França se construiu, como é que a
sociedade vivia ou pensava sobre as suas bases, mas em refletir sobre a constituição da
verdade através dos séculos, em virar a cabeça para ver o traçado do caminho
percorrido. (p. 140)
Não quer isto dizer que este programa seja mais verdadeiro que os outros, e ainda
menos que tenha mais razões para se impor e para durar que os outros. (p. 140)
Seria demagógico não especificar que a análise reflexiva de um programa ou “discurso”
não conduz a instauração de um programa mais verdadeiro nem à substituição da
sociedade burguesa por uma sociedade mais justa, mas simplesmente a outra sociedade,
a outro programa ou discurso. É perfeitamente lícito preferir esta nova sociedade ou esta
nova verdade; basta abstermo-nos de a declarar mais verdadeira ou mais justa. (p. 148)
O propósito deste livro era pois muito simples. Apenas com a leitura do título, qualquer
um com a menor cultura histórica teria respondido antecipadamente: "Mas é claro que
eles acreditavam em seus mitos!" Nós quisemos simplesmente fazer com que o que era
evidente para "eles" o fosse também para nós e extrair as implicações desta verdade
primeira. (p. 151)
Citação retirada da edição mais antiga (Editora Brasiliense, São Paulo, 1984, p. 99) Pois existem naturalmente objetos inscritos sobre a esfera da realidade, e uma luz natural do espírito irá refleti-los para nós; ora o raio de luz nos alcança diretamente, ora ele é desviado pela imaginação ou a paixão, como se dizia no Grande Século, ou pela autoridade ou o interesse, como se diz hoje; p. 138
a cada momento, nada existe nem atua no exterior deste palácio da imaginação (a não ser a semi-existência de realidades "materiais", isto é, de realidades cuja existência ainda não foi levada em conta e não receberam a sua forma, fogo de artifício ou explosivo militar, se se tratar de pólvora).