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1 NOTAS PARA UMA CONTRIBUIÇÃO À CONCEPÇÃO MARXIANA DA TECNOLOGIA IGOR ASSONI MONTEIRO DA SILVA 1 FRANCIS KANASHIRO MENEGHETTI 2 Resumo: O objetivo deste trabalho é fazer uma reflexão sobre o conceito de tecnologia no pensamento marxiano. Será feita uma análise da forma como a tecnologia é tratada no pensamento de Marx a partir da obra Para a crítica da economia política manuscrito de 1861 1863. Na obra em questão, a tecnologia não recebe um tratamento profundo por parte do autor. No entanto, quando Marx discute o processo de trabalho, seus elementos, momentos e suas relações internas, a tecnologia aparece como elemento constitutivo. Marx comenta, de forma muito breve, que “assim como a reflexão sobre o valor de troca da mercadoria como tal pertence à merceologia, o processo de trabalho em sua efetividade pertence à tecnologia”. Neste sentido, partindo desse apontamento passageiro, o que se pretende neste trabalho é apresentar uma contribuição à discussão em torno da questão da tecnologia, e sua conceituação, com base na perspectiva marxiana. Tendo o trabalho como matriz analítica, buscamos demonstrar como o “metabolismo entre homem e natureza” fornece as bases para uma compreensão da tecnologia em sua dupla dimensão: universal e particular. Na sua dimensão universal, sustentamos que a tecnologia compõe o processo de trabalho como elemento necessário à satisfação das necessidades humanas; em sua particularidade, ela mantém esse caráter, porém alienado, porque determinado pelo seu condicionamento à produção de mais-valor, baseada na exploração da força de trabalho alheia. Este aspecto particular da tecnologia sob o domínio do capital conduz a consequências sociais, econômicas e políticas de grande importância para a classe trabalhadora. Palavras-chave: Tecnologia; Trabalho; Marxismo; Economia política. INTRODUÇÃO A obra de Karl Marx tem sido discutida sob diversos aspectos buscando-se compreender a forma como determinados assuntos são tratados em suas elaborações teóricas. Sabe-se que Marx foi um perspicaz observador de sua época e, sobretudo, do caráter histórico e dialético da evolução do modo de produção capitalista, de sua crescente e revolucionária expansão dos meios de produção, da relação desses fatores com a sociedade e suas implicações políticas, econômicas e sociais. Mas ao mesmo tempo, sabe-se, como apontam alguns autores (BRAVERMAN, 1987, KATZ, 1997, WOOD, 2001; ROSENBERG, 2006) 1 Universidade Tecnológica Federal do Paraná, Programa de Pós-Graduação em Tecnologia e Sociedade, Brasil. E-mail: [email protected] . 2 Universidade Tecnológica Federal do Paraná, Programa de Pós-Graduação em Tecnologia e Sociedade, Brasil. E-mail:: [email protected] .

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NOTAS PARA UMA CONTRIBUIÇÃO À CONCEPÇÃO MARXIANA DA

TECNOLOGIA

IGOR ASSONI MONTEIRO DA SILVA1

FRANCIS KANASHIRO MENEGHETTI2

Resumo: O objetivo deste trabalho é fazer uma reflexão sobre o conceito de tecnologia no

pensamento marxiano. Será feita uma análise da forma como a tecnologia é tratada no

pensamento de Marx a partir da obra Para a crítica da economia política – manuscrito de

1861 – 1863. Na obra em questão, a tecnologia não recebe um tratamento profundo por parte

do autor. No entanto, quando Marx discute o processo de trabalho, seus elementos, momentos

e suas relações internas, a tecnologia aparece como elemento constitutivo. Marx comenta, de

forma muito breve, que “assim como a reflexão sobre o valor de troca da mercadoria como tal

pertence à merceologia, o processo de trabalho em sua efetividade pertence à tecnologia”.

Neste sentido, partindo desse apontamento passageiro, o que se pretende neste trabalho é

apresentar uma contribuição à discussão em torno da questão da tecnologia, e sua

conceituação, com base na perspectiva marxiana. Tendo o trabalho como matriz analítica,

buscamos demonstrar como o “metabolismo entre homem e natureza” fornece as bases para

uma compreensão da tecnologia em sua dupla dimensão: universal e particular. Na sua

dimensão universal, sustentamos que a tecnologia compõe o processo de trabalho como

elemento necessário à satisfação das necessidades humanas; em sua particularidade, ela

mantém esse caráter, porém alienado, porque determinado pelo seu condicionamento à

produção de mais-valor, baseada na exploração da força de trabalho alheia. Este aspecto

particular da tecnologia sob o domínio do capital conduz a consequências sociais, econômicas

e políticas de grande importância para a classe trabalhadora.

Palavras-chave: Tecnologia; Trabalho; Marxismo; Economia política.

INTRODUÇÃO

A obra de Karl Marx tem sido discutida sob diversos aspectos buscando-se

compreender a forma como determinados assuntos são tratados em suas elaborações teóricas.

Sabe-se que Marx foi um perspicaz observador de sua época e, sobretudo, do caráter histórico

e dialético da evolução do modo de produção capitalista, de sua crescente e revolucionária

expansão dos meios de produção, da relação desses fatores com a sociedade e suas

implicações políticas, econômicas e sociais. Mas ao mesmo tempo, sabe-se, como apontam

alguns autores (BRAVERMAN, 1987, KATZ, 1997, WOOD, 2001; ROSENBERG, 2006)

1Universidade Tecnológica Federal do Paraná, Programa de Pós-Graduação em Tecnologia e Sociedade, Brasil.

E-mail: [email protected]. 2Universidade Tecnológica Federal do Paraná, Programa de Pós-Graduação em Tecnologia e Sociedade, Brasil.

E-mail:: [email protected].

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que a Marx têm sido atribuídos certos determinismos, entre eles o determinismo da tecnologia

sobre todos os aspectos do ser social.

No presente artigo trataremos da abordagem marxiana sobre a tecnologia em uma obra

específica: Para a crítica da economia política – manuscrito de 1861-1863, um texto

preparatório de sua obra mais conhecida, considerado “o segundo esboço de O capital, sendo

os Grundrisse o primeiro” (DE DEUS, 2010, p. 10). Os Manuscritos de 1861 – 1863 são “a

primeira tentativa de abordagem sistemática do processo de produção do capital” (DE DEUS,

2010, p. 10). Trata-se de uma obra especificamente sobre economia política, produção de

mais-valor e transformação do dinheiro em capital (DE DEUS, 2010), na qual a maquinaria e

as bases técnicas da produção capitalistas são discutidas mais especificamente no fim do livro.

Fica claro, portanto, que não se trata de uma obra de Marx sobre a tecnologia e que alguns

assuntos de sua obra, por certo muito significativos para o debate da concepção de Marx sobre

a tecnologia, não serão discutidos neste trabalho. Porém, consideramos que a contribuição

aqui apresentada terá certa relevância para a compreensão da tecnologia em sua associação

com o processo de trabalho no modo de produção capitalista.

Assim, este é um dos objetivos da análise que aqui será realizada: compreender o

tratamento que Marx dá à tecnologia em sua relação com o trabalho, em um sentido universal,

abstraído de condições históricas particulares, e em um sentido concreto, ou seja, o caráter

assumido pela tecnologia no quadro do modo de produção capitalista, destacando as marcas

inscritas pelo capital no desenvolvimento da tecnologia nas relações de produção capitalistas.

O outro objetivo, que decorre do primeiro, é fazer algumas considerações sobre as

implicações sociais, econômicas e políticas do caráter socialmente determinado da tecnologia

sob controle do capital que Marx desvela na obra em questão. Desta maneira, este trabalho

encontra-se dividido em partes que correspondem aos objetivos da discussão: Tecnologia e

processo de trabalho – abstrato e concreto, e Conclusão.

A elaboração teórica marxiana tem o trabalho como elemento central em suas

reflexões filosóficas, sociais, econômicas, políticas, etc. Da mesma maneira, o trabalho

fornece a matriz para uma análise da tecnologia e sua conceituação a partir “de um processo

em que participam o homem e a natureza, processo em que o ser humano, com sua própria

ação, impulsiona, regula e controla seu intercâmbio material com a natureza” (MARX, 2012,

p. 347). Tal intercâmbio material é uma relação mediada por diferentes elementos específicos

e exclusivos da ação humana. A tecnologia, do modo como Marx a caracteriza, pode ser

considerada como um desses elementos e é a exposição da argumentação do filósofo alemão

que será considerada no presente trabalho.

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Ressaltamos, ainda, que a análise aqui exposta em forma de ensaio visa a uma

contribuição a uma conceituação da tecnologia não só no interior do pensamento marxista,

mas também oferecer elementos para a discussão de um conceito de tecnologia a todos os que

consideram a importância de tal debate.

TECNOLOGIA E PROCESSO DE TRABALHO: UMA CONCEPÇÃO ABSTRATA

Como se observou acima, a obra que serve de base para a análise da tecnologia no

pensamento de Marx não tem o desenvolvimento tecnológico como objeto central das

reflexões desenvolvidas pelo autor. Trata-se, essencialmente, de uma análise do processo de

produção do mais-valor. No entanto, a produção tem o processo de trabalho como elemento

vivo e imprescindível da produção do capital. É, então, no contexto da análise do processo de

trabalho que Marx coloca a tecnologia. Nos Manuscritos de 1861-1863 a discussão do

processo de trabalho começa com uma menção à tecnologia aparentemente fortuita, no que

parece ser uma simples anotação entre parênteses. Marx diz que “assim como a reflexão sobre

o valor de troca da mercadoria como tal pertence à merceologia, o processo de trabalho em

sua efetividade pertence à tecnologia” (MARX, 2010, p. 69). O processo de produção de

valor de troca será analisado posteriormente, quando tratarmos do processo de valorização e

da produção do mais-valor. No momento nos concentraremos na análise de Marx sobre o

processo de trabalho, sobre os elementos que o constituem no processo de produção material

da sociedade e como ele se vincula à tecnologia.

Estamos tratando aqui do processo de trabalho abstraído das suas formas particulares

em um dado modo produção, ou seja, o processo de trabalho em sua dimensão universal. Para

Marx, o trabalho é o processo através do qual o homem submete a natureza a sua vontade. É

um processo consciente, porque o que difere “o pior arquiteto da melhor abelha” é o fato de o

homem imprimir a um objeto – que é natureza – uma forma que já figurava em sua mente

antes do ato material em si. Ele “põe em movimento as forças naturais de seu corpo – braços e

pernas, cabeça e mãos -, a fim de apropriar-se dos recursos da natureza, imprimindo-lhes

forma útil à vida humana” (MARX, 2012, p. 347).

` O processo de trabalho depende de alguns elementos que farão com que sujeito e

objeto entrem em contato e façam com que o processo ganhe vida, ou seja, se transforme no

que Marx chama de trabalho vivo. Os elementos do processo de trabalho, tanto em sentido

abstrato quanto concreto, se decompõem, fundamentalmente, em capacidade de trabalho e

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meio de trabalho, o qual Marx distingue entre material de trabalho e meio de trabalho

propriamente dito. Estes últimos são as condições objetivas que o trabalhador deve encontrar

para “imprimir sua vontade” à natureza, ou seja, dotar a objetividade de uma subjetividade

propriamente humana. O processo de trabalho, em qualquer forma social particular, depende

dos fatores acima mencionados. Em primeiro lugar, a capacidade de trabalho é o elemento

vital, propriamente humano, a subjetividade que atua apropriando-se ativamente das

“condições objetivas segundo sua natureza. Ela age porque se encontra em contato, em

processo, em relação com fatores objetivos, sem os quais ela não pode se realizar.” (MARX,

2010, p. 69).

O meio de trabalho propriamente dito não se reduz a um instrumento, a uma

ferramenta. Este é, nas palavras do filósofo, “um objeto que o trabalho, a atividade humana

coloca diariamente como meio entre si e o material de trabalho, assim servindo de condutor

da atividade humana” (MARX, 2010, p. 69). O meio de trabalho pode ser ainda uma técnica

com a qual se produz algo, como um processo químico, por exemplo (MARX, 2010).

Ainda com relação ao meio de trabalho, Marx indica que o grau de complexidade a

que a atividade humana chega em um determinado estágio de desenvolvimento se revela na

complexidade do meio de trabalho ou no instrumento de produção. Segundo o autor, os meios

de trabalho revelam “em que grau o trabalhador elevou a eficácia do seu trabalho imediato

sobre o elemento natural por meio da interposição, para os seus fins de trabalho, de uma

natureza já preparada, regulada e submetida à sua vontade como condutor” (MARX, 2010, p.

70). Neste ponto, pode-se dizer que não apenas o instrumento, mas também o conhecimento

envolvido no processo de trabalho em um determinado contexto histórico-social pode ser

considerado como meio de trabalho.

Os meios de trabalho ainda envolvem, além dos instrumentos de produção, todas as

condições objetivas para realização do trabalho. De acordo com Marx (2010), estas condições

não entram diretamente no processo de trabalho, mas são fatores sem os quais o processo

como um todo não pode ser objetivado, posto em prática, são meios necessários ao trabalho.

Estes são “casa onde se trabalha, ou o campo em que se semeia, etc. [...] Eles aparecem como

condições de realização do processo inteiro, não como fatores contidos no interior de sua

realização” (MARX, 2010, p. 70).

O material de trabalho é o objeto que o homem, pelo processo de trabalho, transforma

com vistas à satisfação de uma necessidade particular. O material de trabalho pode ser tanto

um objeto natural que não passou por qualquer transformação humana, quanto um objeto já

transformado por um processo de trabalho anterior, ou seja, que já tenha sido mediado por

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processos de trabalho anteriores e serão novamente modificados pela atividade do trabalhador

e pelo uso de instrumentos, meios de trabalho.

O processo de trabalho discutido até aqui está abstraído de suas particularidades

históricas. É o processo de trabalho pelo qual se produz valores de uso. É um processo no

qual o trabalhador, através da atuação de suas forças físicas e intelectuais, “dá uma nova

forma ao material de trabalho e que se materializa nesse material de trabalho” (MARX, 2010,

p. 73). O trabalho se materializa no objeto através da aplicação e consumo dos meios de

trabalho. A atividade enformadora consome o objeto e a si mesma; ela enforma e se

materializa; consome a si mesma e sua forma subjetiva como atividade e consome o caráter

objetivo do objeto, quer dizer, suprime a indiferença deste último quanto à finalidade do

trabalho (MARX, 2010). É na confluência dos três momentos do processo de trabalho –

capacidade de trabalho, material de trabalho e meio de trabalho - que surge um “resultado

neutro” (MARX, 2010, p. 73), o produto. O sujeito desse processo é o trabalho, cuja ação

depende do material de trabalho em que ele atua e do meio de trabalho com o qual este

último será transformado. No produto, o trabalho se ligou ao material de trabalho por

intermédio do meio de trabalho. O produto, o resultado neutro do processo de trabalho, é um

novo valor de uso. “Como produto do processo de trabalho, aparece um valor de uso em

geral” (MARX, 2010, p. 73 – itálicos nossos).

O processo de trabalho que gera valores de uso é a apropriação dos elementos da

natureza para a satisfação de uma necessidade, de uma finalidade humana. É condição

necessária à existência humana em qualquer período histórico, pois a existência humana

depende do metabolismo entre sociedade e natureza, independentemente “de todas as suas

formas sociais determinadas” e é “igualmente comum a todas elas” (MARX, 2010, p. 77)

De acordo com o que foi exposto em relação ao processo de trabalho em seu sentido

abstrato, parece haver uma indicação, na obra de Marx em análise, de que a tecnologia

também pode ser compreendida sob esse aspecto. Conforme aponta o autor, “se o processo de

trabalho é considerado de maneira totalmente abstrata, então pode ser dito que, originalmente,

somente dois fatores entram em jogo – o homem e a natureza. (Trabalho e matéria natural do

trabalho)” (MARX, 2010, p. 111). No mesmo sentido, se o processo de trabalho é

considerado em sua forma abstrata como dependente, em qualquer época e em qualquer modo

de produção, dos mesmos elementos, então material de trabalho e meio de trabalho

compõem a tecnologia em um sentido que vai além daquele compreendido como

exclusivamente representado pela tecnologia moderna. Se por material de trabalho

compreende-se a natureza (tanto em seu estado originário como em seu estado já

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transformado por processos de trabalho anteriores), e por meio de trabalho aquilo que

mediatiza o processo de produção, então é possível dizer que cada modo de produção possui

suas tecnologias, correspondentes ao contexto histórico específico e às determinadas relações

de produção.

Com relação ao processo de trabalho primitivo, Marx diz: “seus primeiros

instrumentos [os do ser humano] são seus próprios membros, dos quais, no entanto, ele tem de

se apropriar em primeiro lugar. Somente quando o primeiro produto é empregado em nova

produção – seja ele apenas uma pedra lançada num animal para matá-lo – começa o real

processo de produção” (MARX, 2010, p. 111). Esta citação parece indicar o que o presente

artigo quer sustentar: que para Marx, “o processo de trabalho pertence à tecnologia” também

em outras formas de metabolismo entre homem e natureza historicamente passadas.

Como se disse no início desta seção, a discussão do processo de trabalho em Para a

crítica da economia política tem como ponto de partida um apontamento sobre a tecnologia.

Marx parte do trabalho em seu sentido abstrato e, elencando seus elementos constitutivos,

fornece uma chave para o seu entendimento da tecnologia. Tal concepção segue o raciocínio

de seu método dialético que é comumente exemplificado com sua análise da mercadoria

como unidade de valor de uso e valor de troca (MARX, 2010). Portanto, parece haver no

Manuscrito de 1861 – 1863 uma importante contribuição para um conceito de tecnologia que

nos permita pensá-la como uma unidade de seu aspecto historicamente determinado, concreto

e de seu caráter geral, universal, abstrato. Tal compreensão, associada ao próprio conceito de

trabalho no pensamento marxiano, pode distinguir a tecnologia de acordo com sua subsunção

às determinações do próprio processo de trabalho, ou seja, entre tecnologia a serviço da

produção de valores de uso e tecnologia a serviço da produção de valores de troca.

TECNOLOGIA E PROCESSO DE TRABALHO EM SENTIDO CONCRETO

A tecnologia, tal como a conhecemos em sua forma atual, é produto de uma série de

relações historicamente determinadas. Sua constituição e seu desenvolvimento são

condicionados por alguns pressupostos históricos que imprimiram suas marcas ao caráter

capitalista da tecnologia. Quais são essas condições históricas? Como elas condicionam o

surgimento e o desenvolvimento de uma tecnologia essencialmente dominadora e alienada

sobre o processo de trabalho? Nesta seção serão apresentados os argumentos de Marx que

respondem essas questões.

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De acordo com a interpretação feita do texto de Marx aqui analisado, o processo de

trabalho é o eixo em torno do qual gira a tecnologia. Nos mesmos termos que na seção

anterior, portanto, a tecnologia subsumida à produção capitalista deve ser compreendida

como pertencente ao processo de trabalho. Devem ser destacadas aqui as características

específicas do processo de trabalho no modo de produção capitalista e os fatores com os quais

ele se relaciona, internamente – como por exemplo, as determinações estranhas ao trabalhador

na realização do processo -, e externamente – como a existência de um mercado de trabalho

no qual o capitalista encontra o trabalhador separado dos meios de produção e pressionado a

vender sua capacidade de trabalho3.

O aspecto essencial, ou melhor, a relação que condiciona a tecnologia em seu caráter

capitalista é processo de trabalho como processo de valorização, produção de mais-valor. Tal

processo tem características distintas quando comparadas a formas não-capitalistas de

produção. É necessário, portanto, fazer uma breve descrição das formas assumidas pelos

elementos do processo de trabalho e de suas determinações sociais que se refletem na

produção e na sociedade como um todo.

Como diz Marx, o resultado do processo de trabalho é o produto, uma síntese, uma

“união de sua atividade subjetiva com seu conteúdo material” (MARX, 2010, p. 80). Em

outras palavras, o resultado do processo produtivo é a união do trabalhador com os outros

elementos do processo: o material e o meio de trabalho. No entanto, quais são as

características desses elementos no modo de produção capitalista? O primeiro aspecto a se

destacar é que os elementos do trabalho funcionam apenas como meios do processo de

valorização, de criação de mais-valor.

Uma das condições histórico-sociais que se apresenta como pressuposto das relações

de produção no capitalismo é a separação entre trabalhador e meios de trabalho. É uma

separação que se caracteriza pela clivagem entre elemento subjetivo e objetivo do processo (o

que mais tarde será explorado, neste trabalho, como uma relação antagônica). A união entre

os dois elementos é levada a cabo, na produção capitalista, pela compra desses elementos –

capacidade de trabalho e meios de trabalho – em um mercado já constituído antes do

estabelecimento do capitalismo. Os elementos do processo são colocados em contato somente

por meio da troca destes por dinheiro. Assim, uma das condições históricas básicas para o

surgimento do processo de trabalho em bases capitalistas é a seguinte: a existência de um

mercado onde o possuidor de dinheiro, o capitalista, encontra os elementos do processo de

3 Na obra em análise Marx utiliza capacidade de trabalho no lugar de força de trabalho, como nas obras

posteriores.

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trabalho - capacidade de trabalho e meios de trabalho - como mercadorias em circulação. Eis

as condições fundamentais do processo de valorização.

O dinheiro, pela sua conversão em capacidade de trabalho e meios de trabalho, se

transforma em capital produtivo. Esta é a relação fundamental que faz unir aspecto subjetivo

e objetivo da produção capitalista e que determina o papel da tecnologia em tal contexto. O

que se busca com a compra capacidade de trabalho e sua convergência com os demais

elementos do processo é produzir mais valor, expresso em dinheiro, do que o que foi

investido no início do processo como capital produtivo. Neste contexto, o dinheiro, como uma

das formas funcionais do capital (MARX, 2014), se mostra como o sujeito do processo

produtivo e, este, como o dinheiro em processo, ou seja, a adição de valor a um valor

despendido no início do processo. O dinheiro, como forma geral do valor, se conserva e

aumenta nessa troca, torna-se o sujeito, o agente da circulação na qual o valor se conserva

para aumentar. O valor só se afirma como valor de uso portador de valor de troca, ou seja,

como mercadoria. Trata-se, de fato, “de produção de valor de troca, de sua conservação e

aumento” (MARX, 2010, p. 81).

Entre o início e o fim - entre a troca de uma quantidade de valor por capacidade de

trabalho e meios de trabalho e a criação de um valor maior que o despendido no início -,

encontra-se o processo produtivo, o processo de trabalho mesmo, determinado por esta

constituição histórica específica: a criação de quantidades cada vez maiores de valor através

da exploração da capacidade de trabalho alheia e a apropriação privada do produto do

processo de trabalho. É processo de trabalho, constituído pelos mesmos elementos

fundamentais, como já se discutiu. No entanto, é determinado por um processo autônomo que

é a valorização, a produção de mais-valor. Aqui é que se encontra um elemento-chave para a

compreensão da concepção marxiana da tecnologia na obra em análise.

O processo de produção capitalista se caracteriza pela orientação exclusiva de produzir

valores de troca, não valores de uso. Estes últimos são uma orientação secundária do

processo. O processo de produção capitalista “requer apenas que o produto, o valor de uso,

não seja destinado para consumo próprio, mas para alienação, para venda” (MARX, 2010, p.

82). Portanto, todos os elementos do processo de trabalho são postos em contato com a única

e exclusiva orientação de criar valores para venda e assim, realizar o mais-valor criado pela

capacidade de trabalho durante o processo de trabalho. Todo o processo, desta maneira, passa

a ser regido, orientado e determinado segundo esse propósito.

De acordo com o que foi exposto até aqui, pode-se dizer que a produção e reprodução

da vida material sob as relações capitalistas são caracterizadas pelo domínio completo sobre a

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produção de valor, ou seja, o domínio do capital sobre as condições objetivas e subjetivas do

processo de trabalho. No campo subjetivo encontra-se a capacidade de trabalho, a única força

viva capaz de operar sobre a objetividade, sobre o material e os meios de trabalho para a

produção de bens úteis a satisfação de necessidades humanas. No entanto, essas condições

objetivas estão separadas daqueles cujas forças vitais podem colocar em movimento a

transformação da matéria. Pertencem ao possuidor de dinheiro, ao capitalista. O processo de

trabalho, com todos os seus elementos, se encontra subsumido ao interesse do capital. “O

processo de trabalho mesmo aparece somente como meio do processo de valorização,

inteiramente como aqui, em geral, o valor de uso aparece somente como portador do valor de

troca” (MARX, 2010, p. 119)

Se, como já foi dito, para Marx “o processo de trabalho pertence à tecnologia”, pode-

se afirmar, com base no que foi tratado até aqui, que há um aspecto da tecnologia que pode

ser definido pelo seu caráter alienado. Se todos os elementos do processo de trabalho se

encontram sob o domínio do capital, a tecnologia se mostra como uma potência estranha

àqueles que colocam em movimento os meios de trabalho, a saber, a capacidade de trabalho, a

classe trabalhadora. Nas palavras de Marx,

para que o trabalho exista como trabalho assalariado, o trabalhador tem de trabalhar

não como proprietário, não vendendo mercadoria, mas a disposição sobre sua

própria capacidade de trabalho – sua capacidade de trabalho mesma no único modo

em que pode ser vendida -, as condições de realização de seu trabalho devem se opor

a ele como condições estranhadas, como potências estranhas, condições sob o

domínio de uma vontade estranha, propriedade alheia (MARX, 2010, p. 126).

Essas “potências estranhas” são todas as condições objetivas que compõem os meios de

trabalho, que se encontram nas mãos do capitalista, o possuidor de dinheiro. O trabalhador só

se transforma em trabalhador assalariado porque não possui outra mercadoria para vender a

não ser sua capacidade de trabalho e o capitalista precisa desta para colocar em movimento o

processo de conservação e valorização de seu capital. Neste processo, o primeiro cria para o

segundo as condições de manutenção do processo, de desenvolvimento das forças produtivas

do trabalho sob domínio do capital.

Com relação ao caráter alienado da produção capitalista, e do papel da tecnologia na

sua manutenção, Marx destaca a inversão entre sujeito e objeto que ocorre no interior do

processo produtivo:

As condições objetivas do trabalho são, elas mesmas, produtos do trabalho e, na

medida em que são consideradas do lado do valor de troca, são apenas tempo de

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trabalho em forma objetivada. Segundo os dois lados, as condições objetivas do

trabalho são aí, portanto, resultado do trabalho mesmo, sua própria objetivação,e é

esta própria objetivação, ela mesma como seu resultado, que o confronta [ao

trabalhador] como potência estranha, como potência autônoma em oposição à

qual ele sempre se defronta novamente como mera capacidade de trabalho, na

mesma carência da objetividade” (MARX, 2010, p. 127)

Aqui, novamente, trata-se apenas de mostrar que os elementos do processo do trabalho

que pertencem ao capitalista compõem o aspecto alienado da tecnologia, ou seja, do processo

de trabalho alienado. Existem ainda outras formas de existência sob as quais a tecnologia se

mostra em seu aspecto alienado, estranhado, opressor, heterodeterminado (do ponto de vista

do trabalhador), etc. Na conclusão serão feitos breves apontamentos sobre implicações

sociais, econômicas e políticas da tecnologia a serviço da produção de mercadorias.

CONCLUSÃO

De acordo com o que foi exposto pode-se considerar que a tecnologia, na elaboração

marxiana do texto analisado, pode ser considerada como os elementos do processo de

trabalho. De maneira mais apropriada, pode-se dizer que tecnologia são as condições

objetivas de realização do trabalho, do processo de produção da vida material do homem.

Observou-se, no entanto, que, no modo de produção capitalista, os elementos objetivos do

processo de trabalho encontram-se separados do sujeito realizador do processo, o trabalhador.

Ao longo do desenvolvimento dessa forma histórica de produção, a classe material e

ideologicamente dominante buscará por diversos caminhos dominar cada vez mais o processo

produtivo em todos os seus aspectos. Fará, também, dessas determinações sociais da

tecnologia seus instrumentos de exploração, expropriação e controle econômico e político

sobre o trabalho vivo.

No Manuscrito de 1861-1863 Marx analisa os argumentos de alguns ideólogos do

capital de seu tempo e a forma como a tecnologia – na forma dos meios de trabalho, já

totalmente subsumidos ao que ele chama de “comando do capital” – é por eles representada

segundo o ponto de vista da classe burguesa. Aqui serão considerados apenas dois pontos

sobre os quais Marx se debruça na referida análise. O primeiro deles refere-se ao papel da

maquinaria como instrumento de produção de mais-trabalho. Ela serve ao capitalista como

meio de reduzir o tempo de trabalho socialmente necessário4 e, com isso, aumentar a

4 O tempo necessário a mera reprodução do valor investido pelo capitalista na compra da mercadoria força de

trabalho.

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quantidade de valor produzida no restante do tempo da jornada de trabalho. Ou seja, aqui a

maquinaria entra como meio de trabalho subsumido ao capital no processo de valorização do

capital5, como forma de reduzir o tempo de trabalho necessário e aumentar o tempo de

sobretrabalho.

O segundo ponto que será aqui destacado corresponde a um papel político do uso da

tecnologia na luta de classe. Naquilo que favorece a burguesia, claro. Marx observa que a

invenção e o emprego da maquinaria pode ser um meio de proteger a ordem produtiva do

capital contra greves e reivindicações salariais. Assim, o autor observa que, em um caso

específico, a máquina a vapor foi introduzida na construção civil após uma greve dos

operários de Lancashire, em 1833. Além de eliminar e substituir o trabalho manual no

transporte dos materiais de trabalho, isso conferiu, certamente, maior poder ao capitalista

frente às reivindicações dos trabalhadores. Da mesma maneira, Marx relata que Ure –

conhecido como o “diabólico ideólogo da burguesia” – se referia da seguinte maneira a estas

relações da maquinaria (nas palavras de Ure, “o homem de ferro”) com os conflitos entre

trabalhadores e patrões: “quando o capital recruta a ciência para seu serviço, a mão rebelde da

indústria tende a ser sempre dócil”.

O que nos séculos XVII e XVIII se apresentava como uma forma determinada pelo

capitalista de organizar a produção (que tem como marco o surgimento do sistema de

fábricas), ao longo do século XIX se transformará na crescente apropriação dos saberes de

ofício, métodos de produção, etc. - antes dominados pelos produtores diretos -, e sua

centralização e concentração nos postos de planejamento, padronização e normatização do

processo de trabalho, ou seja, na gerência da empresa. Esta representa a forma mais acabada

de controle e poder do capital para expropriação do trabalho. Juntamente com esses

desenvolvimentos capitalistas da organização do trabalho, a introdução da maquinaria no

processo produtivo, e seu uso como ferramenta de disciplinamento da força de trabalho no

interior da indústria, serve como instrumento de pressão dos capitalistas sobre o proletariado

nas lutas de classes. A iminência do desemprego, decorrente da substituição do trabalho vivo

pelo trabalho morto, se torna o quadro pintado pelos capitalistas quando a classe trabalhadora

oferece resistência às rotinas estafantes de trabalho do século XIX. Nesse sentido, portanto,

pode-se dizer, com o apoio do texto de Marx aqui analisado, que a relação entre capital e

5 Esse papel da tecnologia se evidencia na seguinte passagem do Manuscrito: “os fabricantes pensam em meios

para prolongar o tempo de sobretrabalho, reduzindo o trabalho necessário [...] ao mesmo tempo, a maquinaria

não apenas habilita o indivíduo a realizar o trabalho de muitos, mas ainda aumenta a grandeza de trabalho dele

requerida, de modo que a hora de trabalho fornece valor superior e, com isso, diminui relativamente, para o

próprio trabalhador, o tempo de trabalho necessário à reprodução do salário” (MARX, 2010, p. 391)

Page 12: NOTAS PARA UMA CONTRIBUIÇÃO À CONCEPÇÃO … · ... (DE DEUS, 2010, p. 10). Trata-se de uma obra especificamente sobre economia ... históricas. É o processo de trabalho pelo

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trabalho implica relações econômicas e políticas distintas de qualquer outra existente na

história humana. Ou seja, a tecnologia serve não só à produção de mais-valor, mas também à

manutenção da dominação de classe da burguesia sobre a classe trabalhadora.

REFERÊNCIAS

BRAVERMAN, Harry. Trabalho e capital monopolista: a degradação do trabalho

no século XX. , Rio de Janeiro: Guanabara, 1987.

DE DEUS, Leonardo. Apresentação. In: MARX, Karl. Para a crítica da economia

política: manuscrito de 1861 – 1863. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2010.

MARX, Karl. Para a crítica da economia política: manuscrito de 1861 – 1863. Belo

Horizonte: Autêntica Editora, 2010.

___________ Extratos d’ O capital. Crítica da economia política. In: NETTO, José

Paulo (org.). O leitor de Marx. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012. p. 346 – 356.

___________ O capital: Crítica da economia política: Livro II: o processo de

circulação do capital. São Paulo: Boitempo, 2014.

KATZ, Claudio. Discusiones marxistas sobre tecnología. Razón y Revolución, n. 3,

inverno de 1997.

ROSENBERG, Nathan. Marx como estudioso da tecnologia. In: ROSENBERG,

Nathan. Por dentro da caixa-preta. Campinas: Editora da Unicamp, 2006.