novas canções do exílio: história, poesia e memória do desterro na

27
[REVISTA CONTEMPORÂNEA – DOSSIÊ HISTÓRIA & LITERATURA] Ano 3, n° 4 | 2013, vol.2 ISSN [22364846] 1 Novas canções do exílio: História, poesia e memória do desterro na obra de Caetano Veloso e Gilberto Gil,1969-1972 Júlio César Lobo 1 Uma ciência história autogerida não só seria um desastre como não faz sentido, pois a História, mesmo que só o consiga vagamente, é uma ciência e depende de um saber profissionalmente adquirido. É evidente que a História não atingiu um grau de tecnicismo das ciências da natureza ou da vida, e não desejo que o atinja para que possa continuar a ser facilmente compreensível e até controlável pelo maior número possível de pessoas. A História já tem a sorte ou a infelicidade (única entre todas as ciências?) de poder ser feita conveniente pelos amadores. De fato, ela tem necessidade de vulgarização – e os historiadores profissionais nem sempre se dignam aceder a esta função, no entanto, essencial e digna, da qual se sentem incapazes; mas a era da nova media multiplica a necessidade e as ocasiões para existirem mediadores semiprofissionais. Jacques Le Goff, História e memória,2003. Vai, meu irmão, pega esse avião, você tem razão de correr assim desse frio, mas beija o meu Rio de Janeiro antes que um aventureiro lance mão. Pede perdão pela duração 1 Júlio César Lobo é licenciado em Letras, Doutor em Ciências da Comunicação e professor- associado II da Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia. É autor de Cinema e sociedade no Brasil (2013, no prelo) e coautor de Glauber, a conquista de um sonho (1995) e História e cinema (2011), entre outros livros.

Upload: hoanglien

Post on 04-Jan-2017

238 views

Category:

Documents


3 download

TRANSCRIPT

[REVISTA  CONTEMPORÂNEA  –  DOSSIÊ  HISTÓRIA  &  LITERATURA]  Ano  3,  n°  4  |  2013,  vol.2      ISSN  [2236-­‐4846]  

 

  1  

Novas canções do exílio: História, poesia e memória do desterro na

obra de Caetano Veloso e Gilberto Gil,1969-1972

Júlio César Lobo1

Uma ciência história autogerida não só seria um desastre como não faz sentido, pois a História, mesmo que só o consiga vagamente, é uma ciência e depende de um saber profissionalmente adquirido. É evidente que a História não atingiu um grau de tecnicismo das ciências da natureza ou da vida, e não desejo que o atinja para que possa continuar a ser facilmente compreensível e até controlável pelo maior número possível de pessoas. A História já tem a sorte ou a infelicidade (única entre todas as ciências?) de poder ser feita conveniente pelos amadores. De fato, ela tem necessidade de vulgarização – e os historiadores profissionais nem sempre se dignam aceder a esta função, no entanto, essencial e digna, da qual se sentem incapazes; mas a era da nova media multiplica a necessidade e as ocasiões para existirem mediadores semiprofissionais.

Jacques Le Goff, História e memória,2003.

Vai, meu irmão, pega esse avião, você tem razão de correr assim desse frio, mas beija o meu Rio de Janeiro antes que um aventureiro lance mão. Pede perdão pela duração

1 Júlio César Lobo é licenciado em Letras, Doutor em Ciências da Comunicação e professor-associado II da Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia. É autor de Cinema e sociedade no Brasil (2013, no prelo) e coautor de Glauber, a conquista de um sonho (1995) e História e cinema (2011), entre outros livros.

  2  

dessa temporada, mas não diga nada, que me viu chorando e pros da pesada diz que eu vou levando. Vê como é que anda aquela vida à-toa e, se puder, me manda uma notícia boa.

“Samba de Orly” (1970), V. Moraes - C. Buarque -Toquinho

Introdução O corpus que montamos para a nossa especulação em torno do tema-título é

variado, expandindo-se, contextualmente, para além das letras das canções, nossa

motivação inicial e mais importante. Nesse sentido, consideramos relevante cotejar

nossas observações com aquelas provenientes, inicialmente, da maioria da

correspondência de Caetano Veloso para o extinto semanário carioca O Pasquim,

composta por 14 crônicas, publicadas entre 11 de setembro de 1969 e 25 de novembro

de 1970, além de suas observações sobre canções e sobre exílio presentes nos livros

Verdade tropical (lançado em 1997), no quase songbook Letra só (2003) e na

antologia O mundo não é chato (2005). O que está além, em termos, das letras das

canções de Gil em torno do exílio, foi rastreado não exaustivamente nos comentários

dele no também quase songbook Todas as letras (2003) e em sua autobiografia, em

parceria com Regina Zappa: Gilberto bem perto (2013). A nossa premissa para a

associação história e literatura leva em consideração obviamente que letra de música é

literatura, o que não parece ser hoje mais motivo de controvérsia, bem como toma

como discurso literário as crônicas para O Pasquim e os livros citados dos artistas

enfocados.

A liberdade conceitual que tomamos para a montagem do corpus “literário”

desse ensaio faz-se acompanhar também por uma outra: a de natureza da extensão

desse mesmo corpus. A rigor, somente poderíamos tecer considerações sobre as

“canções de exílio” obviamente a partir do momento em que os artistas selecionados

para essa discussão estivessem...no exílio propriamente dito. No entanto, esse tipo de

composição já começa ser produzido e difundido por eles ainda quando estavam no

período de confinamento em Salvador após os períodos de prisão nas cidades de São

Paulo e Rio de Janeiro.

[REVISTA  CONTEMPORÂNEA  –  DOSSIÊ  HISTÓRIA  &  LITERATURA]  Ano  3,  n°  4  |  2013,  vol.2      ISSN  [2236-­‐4846]  

 

  3  

Como se sabe, após libertados de um quartel do Exército na ex-Capital Federal,

Caetano Veloso e Gilberto Gil são destinados a uma prisão domiciliar em Salvador,

que durou mais de quatro meses. Enquanto isso, havia as tratativas para um exílio e a

promessa da realização de um “show de despedida” também nessa cidade com a

finalidade de levantar recursos para a viagem da família de ambos e para as primeiras

despesas na Europa. No período citado, foram criadas algumas das canções que eles

executaram no espetáculo Barra 69, Teatro Castro Alves (20-21 de julho de 1969),

bem como outras que estão nos primeiros discos de cada um deles lançados no

mercado brasileiro quando eles já se encontravam no exterior.

A canção-marco inaugural, que sinaliza para o exílio de Gilberto Gil e

elaborada durante o período de confinamento em Salvador, foi “Aquele abraço”,

executada publicamente pela primeira vez nas duas apresentações do show Barra 69,

e que encerra o lado 2 do disco que leva o nome daquele espetáculo. Afora ele, não há

mais qualquer referência à desconfortável situação pelas qual ambos passavam no

momento. E a extinta Censura Federal deixaria isso acontecer? “Aquele abraço”, era

um sambão de despedida, surpreendentemente sem uma nota de rancor: “Alô, moça

da favela -aquele abraço! / Todo mundo da Portela – aquele abraço! [...]/Alô, Banda

de Ipanema – aquele abraço! / Meu caminho pelo mundo eu mesmo traço/a Bahia já

me deu régua e compasso/Quem sabe de mim sou eu -aquele abraço! / Pra você que

me esqueceu – aquele abraço!” O fato é que, de uma certa forma, em suas criações,

Gil já havia celebrado outras despedidas, quem, sabe, menos traumáticas, como

naquela obra-prima de 1965 “Eu vim da Bahia”, que assim se encerra: “Eu vim da

Bahia/mas eu volto pra lá/eu vim da Bahia/mas algum dia eu volto pra lá”. Sobre o

seu processo de criação dessa obra, testemunha Gil (2003, p.63):

Eu ainda estava em Salvador quando a compus. Era janeiro [de 1965] e a convite da Gessy Lever, eu estava indo a São Paulo, já com a viagem marcada. Fiz a música querendo ou necessitando antecipar uma sensação para me precaver, digamos. Uma coisa assim: 'Deixa eu experimentar logo essa coisa de estar fora da Bahia, já imaginar como é' […]' E foi assim: quando eu soube que ia fazer um show de despedida, preparei uma canção como que despedindo já à distância, já como se a Bahia estivesse dormindo

  4  

quando eu saí em viagem e, ao acordar, eu já estivesse longe. Então, tive que saudá-la de longe...

Por outro lado, outra canção de despedida desses tempos, agora de Caetano

Veloso, é “Um dia”, gravada por ele e Gal Costa no disco Domingo (1967) de ambos.

A saudação de longe, a que se refere Gil a respeito de sua música de 1965, também

pode ser notada em um das estrofes desse título de Veloso, que associa um sentimento

em que se misturam marcos de uma topografia distante (Raso da Catarina, águas de

Amaralina) com a presença de uma pessoa próxima: “[...] na calma da calmaria […]

longe do mar da Bahia, /limite da minha vida, /vou voltando pra você […] Eu não

estou indo-me embora, /estou só preparando a hora de voltar”.

As metáforas náuticas Quando já estavam em Londres, Gil e Veloso têm lançados no Brasil os discos

que haviam gravado – apenas voz e base instrumental – em Salvador: o “álbum

branco”, de Veloso, e Gilberto Gil, do próprio. O primeiro, que teve mais músicas

executadas, é composto pelas seguintes canções: “Irene”, “The empty boat”,

“Marinheiro só”, “Lost in the paradise”, “Atrás do trio elétrico”, “Os argonautas”,

“Carolina”, “Cambalache”, “Não-identificado”, “Chuvas de verão”, “Acrilírico” e

“Alfômega”. No baião que abre esse disco, o narrador-compositor Veloso se coloca

como se já estivesse no desterro, saudando a sua irmã de criação, nomeada já no seu

título: “Eu quero ir minha gente/eu não sou daqui/eu não tenho nada/quero ver Irene

rir/quero ver Irene dar sua risada. // Irene ri, Irene ri, Irene (bis)/quero ver Irene dar

sua risada”. O segundo verso dessa canção - “eu não sou daqui”, sintomaticamente, é

o verso de abertura da canção folclórica “Marinheiro só”, terceira faixa do disco: “Eu

não sou daqui/marinheiro só/eu não tenho amor/marinheiro só/eu sou da

Bahia/marinheiro só/de São Salvador/marinheiro só”. Pode-se também ler-se um eco

dos versos “Eu não sou daqui/eu não tenho nada” na ideia central de vazio

material/existencial de “The empty boat”, que, não por acaso, é a segunda faixa do

citado long-play.

Na canção “The empty boat, Veloso usa um barco como um “mundo”,

trabalhando com certa exaustividade essa cenografia – que remete aos cantos do

argonautas da Antiguidade -, os componentes da embarcação (“From the stern to the

bow”, “From the rudder to the sail”), os elementos do universo náutico (From the

[REVISTA  CONTEMPORÂNEA  –  DOSSIÊ  HISTÓRIA  &  LITERATURA]  Ano  3,  n°  4  |  2013,  vol.2      ISSN  [2236-­‐4846]  

 

  5  

ocean to the bay /Oh, the sand is clean, “From the east to the West /Oh, the stream is

long), comparando-os com elementos de seu próprio corpo - “my heart is empty”, “my

hand is empty / from the wrist to the nail”, “my head is empty” “my dream is wrong, /

from the birth to the death.- e com seu estado de espírito em Salvador, confinado,

esperando autorização para sair do País, exilado: “oh, my mind is clean, /from the

night to the day”.

As metáforas náuticas que percorrem a canção “The empty boat” se espraiam

pelo “álbum branco”, associando-se intensamente com as canções de partida, com a

preparação do exílio, como se tem no baião “Irene”, na folclórica “Marinheiro só” e

no fado “Os argonautas”. Nessa última peça, o barco já não está mais vazio, porém

pleno de melancolia: “O barco, meu coração não aguenta/tanta

tormenta/agonia/alegria, meu coração não contenta. / O dia, o marco, meu coração/o

porto, não”. Segue-se o famoso refrão “Navegar é preciso/viver não é preciso” em que

uma expressão de um general grego da Antiguidade, trazida à modernidade por

Fernando Pessoa, insere-se na cultura de massas brasileira como se fora uma criação

de Veloso. E novamente a palavra barco é metáfora para outros sentidos, para a

expressão do estado de espírito de um enunciador que, em canção anterior (“Um

dia”), a propósito de outros contextos, já havia musicalizado a ideia de que “eu não

estou indo-me embora/estou só preparando a hora de voltar”.

Simultaneamente ao lançamento no Brasil do “álbum branco”, de Caetano

Veloso, foi comercializado o disco que Gil havia gravado em Salvador no mesmo

período e nas mesmas condições técnicas e, a exemplo do primeiro, intitulado por seu

intérprete e com nove faixas, três a menos do que o de Veloso: “Cérebro eletrônico”,

“Vitrines” “Futurível” (todas essas três compostas na prisão do Quartel da Vila

Militar do Exército no subúrbio de Marechal Deodoro, no Rio de Janeiro), “Volks

Volkswagen Blues”, “Aquele abraço” (primeira gravação de estúdio), “17 léguas e

meia”, “A voz do vivo”, “2001” (Tom Zé-Mutantes), e “Objeto semi-identificado”.

Dentre as obras acima listadas, destacamos, por sinalizar para os contextos com

que estamos trabalhando, “Volks-Volkswagen blues”, que havia sido composta

original em português ainda no confinamento em Salvador com uma série de

  6  

referências familiares – o pai, Zeca, a irmã, Dina, a mãe, Claudina, a primeira mulher,

Bela, e suas filhas com ela: Marina e Nara. Para o autor, seus versos eram referentes a

um “período de produção autorreferente e autorreveladora”, pois “era preciso afirmar

a legitimidade do trabalho na praça e a transparência na relação artista-comunidade,

cantor e coro: a coisa da tragédia grega” (GIL,2003, p.116). Já “A voz do vivo”, que,

curiosamente, Gil exclui do seu songbook (2003), passa uma mensagem de

tranquilidade de seu enunciador: “Quem já esteve na rua viu/quem já esteve na rua

também viu. / Quanto a mim, é isso e aquilo/eu estou muito tranquilo/ pousado no

meio do planeta/girando ao redor do sol”, versos que se repetem insistentemente. Em

“17 léguas e meia” (Humberto Teixeira-C. Barroso), baião lançado por Gonzagão em

julho de 1950, há a celebração da alegria, proveniente de se ouvir e dançar um baião,

acrescido da companhia da amada, Rosinha.

O Pasquim e Gonçalves Dias

O fato é que, de certo modo, o intervalo entre os discos do “confinamento” e

os primeiros elepês londrinos de Gil e Veloso acabou por ser preenchido por um outro

exercício da literatura do último: suas crônicas para O Pasquim. O primeiro desses 14

textos, escritos em forma de carta ou diário semanal, veio a público na edição de 11

de setembro de 1969, transformando um elemento de sociabilidade do endereçamento

no destilação de uma ironia cortante: “Meu caro Sigmund – eu agora também vou

bem, obrigado. Obrigado a ver outras paisagens, senão melhores, pelo menos mais

clássicas e, de qualquer forma, outras. Alô, alô, Realengo, aquele abraço. Por

enquanto não tenho nada para contar: ainda estou em Portugal”.

A segunda crônica de Veloso, publicada na edição de O Pasquim de 11 de

setembro de 1969,busca se aproximar mais dos elementos de uma espécie de

reportagem, dando conta do ambiente cultural de Londres, do que acontecia nos seus

parques, de como as pessoas dançavam e cantavam neles, da ausência de incômodo

ou de violência nos eventos artísticos públicos, além de associar versos de músicas

recentes dos Beatles – do chamado “álbum branco”, ou melhor, álbum duplo The

Beatles - com algumas de suas reflexões. Nesse texto, Veloso acentua o seu olhar de

recém-chegado: “Tendo ido a Lisboa e Paris, ainda não tinha chegado ao estrangeiro.

Aqui é o estrangeiro”. A terceira crônica, publicada em 5 de novembro daquele

mesmo ano, é repleta de frases curtas, parecendo sinalizar anotações para

desenvolvimentos posteriores, além do fato de associar dados do cotidiano londrino a

[REVISTA  CONTEMPORÂNEA  –  DOSSIÊ  HISTÓRIA  &  LITERATURA]  Ano  3,  n°  4  |  2013,  vol.2      ISSN  [2236-­‐4846]  

 

  7  

sua análise de fatos que repercutem nos exemplares de O Pasquim. No último

parágrafo, ele reconhece um certo fastio com tudo: “Talvez porque eu esteja cansado,

à maneira de Nara [Leão] se cansar das coisas, eu tenho vontade de ouvir coisas sobre

a alma lírica brasileira”.

Na quarta crônica de Veloso para O Pasquim – que se inicia relatando o

impacto no autor da violência em câmera lenta do filme The wild bunch (EUA,1969,

Sam Peckinpah) – mais próximo ao seu final, ele é que acaba nos impactando com

três frases, que refletem estados de espíritos diversos: “Gil está cantando na sala. Nós

não estamos nem alegres, nem tristes, nem poetas. Eu gostaria de ver a Bahia antes de

morrer”. Talvez não se possa desassociar essa última frase, violenta asserção, da

alusão com o tão parodiado, principalmente debochado “não permita Deus que eu

morra sem que volte para lá”, da “Canção do exílio”, de Gonçalves Dias. Trata-se de

um poema que tem um longo histórico de paráfrases e paródias na história da

literatura brasileira, histórico esse que tomamos a liberdade de pontuar a seguir

mesmo que não o seja exaustivamente.

No distante ano de 1843, mais precisamente no mês de julho, o primeiro poeta

romântico brasileiro, o maranhense Antônio Gonçalves Dias, finalizava em Portugal a

sua “Canção do exílio”. Três anos depois, já residindo no Rio de Janeiro, ele tem esse

poema publicado em seu livro de estreia, Primeiros Cantos (Tipografia Universal de

Laemmert). Iniciava-se então a circulação de um dos mais populares e declamados

textos da literatura brasileira, cuja primeira estrofe raramente é dita, hoje, sem uma

ponta de ironia: “Minha terra tem palmeiras, /onde canta o sabiá;/as aves, que, aqui

gorjeiam, /não gorjeiam como lá”. Quis a história da cultura brasileira que essa estrofe

inaugural – e, por extensão, todo esse poema – tenha acabado por estimular um

incontável número de paródias, levando para o universo do humor uma peça ufanista.

Afora o dado celebrante desse famoso poema, não se pode esquecer o dado

premonitório contido no verso “não permita Deus que eu morra sem que volte para

lá”. Como se sabe, Dias morreu em naufrágio voltando para o Maranhão.

  8  

A mais antiga produção paródica em torno da “Canção do exílio” de maior

difusão é inquestionavelmente o “Canto do regresso à pátria”, do livro Lóide

Brasileiro, de Oswald de Andrade:

Minha terra tem palmares onde gorjeia o mar. Os passarinhos daqui não cantam como os de lá. Minha terra tem mais rosas e quase que mais amores, minha terra tem mais ouro, minha terra tem mais terra. Ouro terra amor e rosas, eu quero tudo de lá. Não permita Deus que eu morra sem que eu volte para lá. Não permita Deus que eu morra sem que volte pra São Paulo, sem que veja a Rua 15 e o progresso de São Paulo”.

Entre outros traços críticos, o “Canto de regresso à pátria”, de Oswald de

Andrade, troca um dado natural, celebrante de uma paisagem tropical que se deve

louvar – palmeiras – por uma paronomásia, palmares, produzindo crítica social

através do humor: escravidão, servidão, lutas e mortes. Em 1930, Carlos Drummond

de Andrade, em seu livro de estreia – Alguma poesia -, no poema “Europa, França e

Bahia”, remete-nos ao famoso poema gonçalvino ao lembrar-se do Brasil ou de um

Brasil:

Meus olhos brasileiros sonhando exotismos ….................................................................. Chega! Meus olhos brasileiros se fecham saudosos. Minha boca procura a 'Canção do Exílio'. Como era mesmo a 'Canção do Exílio'? Eu tão esquecido de minha terra... Ai terra que tem palmeiras onde canta o sabiá.

No caso desse texto drummondiano, vale ressaltar, talvez a somente uma

gravação do próprio autor pudesse comprovar a aposta que fazemos em torno de uma

sua provável ironia, procedimento humorístico esse inquestionável no “Canto de

regresso à pátria,”, de Oswald, por exemplo. Modernista como Oswald e Drummond,

Murilo Mendes, em 1950, fez circular uma paródia do texto-emblema de Gonçalves

[REVISTA  CONTEMPORÂNEA  –  DOSSIÊ  HISTÓRIA  &  LITERATURA]  Ano  3,  n°  4  |  2013,  vol.2      ISSN  [2236-­‐4846]  

 

  9  

Dias na sua homônima “Canção do exílio”, cujo deboche está bem próximo do

espírito que deve ter presidido a composição da versão oswaldiana. Esse poema, que

se abre prometendo um canto exaltativo - “Minha terra tem macieiras da

Califórnia/onde cantam gaturamos de Veneza” -, logo mostra a que veio, satírico: “Os

poetas da minha terra/são pretos que vivem em torres de ametista, /os sargentos do

exército são monistas, cubistas/os filósofos são polacos vendendo a prestações. /A

gente não pode dormir/com os oradores e os pernilongos. / Os sururus em família têm

por testemunha a Gioconda”. Após o tom irônico, o poema muriliano se fecha

sugerindo uma melancolia:

Eu morro sufocado em terra estrangeira. Nossas flores são mais bonitas, nossas frutas mais gostosas, mas custam cem mil réis a dúzia. Ai, quem me dera chupar uma carambola de verdade e ouvir um sabiá com certidão de idade!.

Saindo um pouco da esfera da poesia, em sentido restrito, mas não saindo da

série literária, em 1967, “Marginália 2” (Torquato Neto-Gilberto Gil), uma das mais

ilustrativas canções da acidez da Tropicália (o sufixo alia em grego significa riso),

retomava o espírito das paródias de Oswald, principalmente, e de Murilo Mendes,

para atualizar o ufanista poema de Gonçalves Dias. A diferença com relação ao

original romântico do século XIX já começava pela identificação do enunciador: “Eu,

brasileiro, confesso/minha culpa, meu pecado […]. /Eu, brasileiro, confesso/minha

culpa, meu degredo/pão seco de cada dia/tropical melancolia/negra solidão”. Após

afirmar por três vezes que “Aqui é o fim do mundo”, o narrador retoma esse conceito

da geopolítica de esquerda da segunda metade dos anos 1950 para destilar a sua ira:

“Aqui, o Terceiro Mundo/pede a bênção e vai dormir. / Entre cascatas,

palmeira/araçás e bananeiras/ao canto da juriti.

  10  

“Sabiá”, AI-5 e prisão

Em nosso entendimento, a “Canção do exílio” somente foi citada recuperando,

digamos, parte do clima romântico, terno e saudoso com que deve ter sido concebida,

na moderna música popular brasileira, em 1968, precisamente em “Sabiá” (Tom

Jobim-Chico Buarque). Esse tom já se estabelece na primeira estrofe:

Vou voltar, sei que ainda vou voltar para o meu lugar. Foi lá e é ainda lá que eu hei de ouvir cantar uma sabiá.

No entanto, quando se poderia imaginar que a celebração de uma terra, de um

espaço, iria se prolongar, irrompe a crítica, que, pioneiramente, instaura um discurso

de militância ecológica:

Vou voltar sei que ainda vou voltar. Vou deitar à sombra de uma palmeira, que já não há, colher a flor, que já não dá...

É claro que, em nenhum trecho da letra escrita por Chico Buarque, há a menção

a algum exílio, a algum desterro, mas o que nos leva a tomá-la como uma canção de

exílio é a alusão que se poderia produzir de seus versos. Independente das conotações

estritamente “românticas” que as expressões “algum amor” e “fiz de tudo e nada/de te

esquecer”, havia, a nosso ver, a possibilidade gerada de que as centenas de brasileiros

que haviam sido exilados desde o primeiro de abril de 1964 pudessem tomar os versos

“Vou voltar/sei que ainda vou voltar” como um futuro “Canto de regresso à pátria”.

O curioso é que, alguns meses após o lançamento mundial de “Sabiá” no

Festival Internacional da Canção (TV Globo, Rio de Janeiro), aconteceriam duas

coisas com as quais dificilmente alguém poderia com ela associar: a edição do Ato

Institucional nº 5, em 13 de dezembro de 1968, e a prisão simultânea, em São Paulo,

de Caetano Veloso e Gilberto Gil, exatamente duas semanas depois. Em breve, esses

mentores do tropicalismo seriam exilados, atualizando de modo bastante sofrido uma

personificação por parte de ambos dos versos iniciais da última estrofe de “Canção de

exílio”, de Gonçalves Dias. Nela está a súplica: “Não permita Deus que eu morra/

[REVISTA  CONTEMPORÂNEA  –  DOSSIÊ  HISTÓRIA  &  LITERATURA]  Ano  3,  n°  4  |  2013,  vol.2      ISSN  [2236-­‐4846]  

 

  11  

sem que eu volte para lá”. Essa frase acabaria por servir, em vários momentos da vida

de ambos em Londres, desterrados, como um mote, em canções, crônicas, entrevistas

e em seus livros de memória ou autobiográficos. E aqui, a exemplo do que temos em

“Sabiá”, o verso citado surge inquestionavelmente sem qualquer motivo para

paródias.

Enquanto não se dava esse “retorno à pátria”, que acabou por acontecer em

janeiro de 1972, Caetano Veloso e Gilberto Gil talvez estivessem involuntariamente,

do ponto de vista da criação artística, colocados a refletir talvez em torno dessa

relação que o crítico literário palestino Edward Said (2003, p.58) coloca entre herança

cultural e novos modos de narrar para o sujeito em condição de exilado, de desterrado

ou de refugiado político. A sua premissa é de que as culturas “podem ser

representadas como zonas de controle ou de abandono, de lembrança e de

esquecimento, de força ou de dependência, de exclusividade ou de partilha, tudo isso

acontecendo na história global”. Em seguida, ele afirma que tanto o exílio, como a

imigração e a ultrapassagem de fronteiras são “experiências que podem, portanto, nos

proporcionar novas formas narrativas ou, na expressão de John Berger [Modos de ver]

outras maneiras de contar”.

A quinta crônica de Veloso para O Pasquim, edição de 27 de novembro de 1969,

se inicia com um retrato, melhor dizendo, se inicia com uma radiografia do que ele

entende como imagem do seu estado atual, de exilado, desterrado, desterritorializado:

“Hoje quando eu acordei eu dei de cara com a coisa mais feia que já vi na vida. Essa

coisa era a minha própria cara. Eu sou um sujeito famoso no Brasil, muita gente me

conhece. Eu acredito que a maneira pela qual esse conhecimento se dá pode dizer

muito a mim mesmo sobre mim”. E acrescenta: “Acho que uma capa de revista pode

ser como um espelho para um homem famoso. Quando um homem vê a sua cara no

espelho ele vê objetivamente em que estado a vida o deixou”.

Já no terceiro parágrafo da mesma crônica em pauta, o clima muda, passando a

sugerir a transcrição de um diário: “Hoje eu fui à aula de inglês e Mr. Lee me ensinou

a usar direct speech em lugar de reported speech. Depois da aula King's Road estava

uma beleza sob uma chuva fria e crônica. Eu atravesso as ruas sem medo, pois eu sei

  12  

que eles são educados e deixam o caminho livre para eu passar”. Essa última frase

retornaria a circulação, no segundo semestre de 1970, na voz de Gal Costa, na

abertura de “London, London”, um sucesso de execução no Brasil: “I' m wandering

round and round nowhere to go / I'm lonely in London / London is lovely so / I cross

the streets without fear / Everybody keeps the way clear...” O parágrafo da frase

destacada se encerra assim: “Mas eu não estou aqui e não tenho nada com isso”. Tal

disposição dele nos faz associá-la com um dos aspectos formais do estrangeiro, tal

como teorizados Georg Simmel (1983, p.185), quando ele observa que o estrangeiro

“não está submetido a componentes nem a tendências peculiares do grupo e, em

consequência disso, aproxima-se com a atitude específica de 'objetividade'”. Sendo

assim, prossegue Simmel, “mais livre, prática e teoricamente”, ele “examina as

condições com menos preconceito e não está amarrado à sua ação pelo hábito, pela

piedade ou por algum precedente”.

A propósito, a despeito do sucesso de “London, London” no Brasil, Veloso

(2002, p.424-425) rememora os seus impasses com a tentativa de obter fluência na

língua inglesa, tentativa essa iniciada frequentando uma escola para estrangeiros -

“várias salas com turmas grandes” -, que se revela, enfim, como um capítulo, em

suma, de “um período de fraqueza total”: “Mas falava português quase o tempo todo,

morando numa casa habitada por brasileiros e frequentemente visitada por brasileiros.

Eu me sentia incapaz de aproveitar o que deveria ser visto como oportunidade”.

Generalizando, Veloso estava sendo “vítima”, entre outras coisas, daquilo que o

crítico cultural palestino Edward Said (2003, p.51) entende como “uma condição

ciumenta” do exílio: “[...] um sentimento exagerado de solidariedade de grupo e uma

hostilidade exaltadas em relação aos de fora do grupo, mesmo aqueles que podem, na

verdade, estar na mesma situação que você”. Por outro lado, a quase exclusiva

convivência de Veloso com brasileiros em Londres poderia estimular uma

consideração no sentido que haveria aí sinais do fracasso, como quer Said (2003,

p.54), em “compensar a perda desorientadora, criando um novo mundo para

governar”, esforço esse que, segundo esse mesmo autor, seria “logicamente artificial”,

com sua “irrealidade”, assemelhando-se com uma ficção”.

No quinto parágrafo ainda da mesma crônica de 27 de novembro de 1969, há

espaço tanto para a publicização de uma ira de Veloso - “Meu coração está cheio de

um ódio opaco” - bem como para relatar a visita de Roberto Carlos, que, como se

sabe, acabaria motivando-o fazer a canção-solidariedade para Veloso intitulada

[REVISTA  CONTEMPORÂNEA  –  DOSSIÊ  HISTÓRIA  &  LITERATURA]  Ano  3,  n°  4  |  2013,  vol.2      ISSN  [2236-­‐4846]  

 

  13  

“Debaixo dos caracóis do seu cabelo”: “O Rei esteve ontem aqui em casa e eu chorei

muito”. Tempos depois, poder-se-ia se perceber marcas emocionais desse encontro

nos versos de “Debaixo dos caracóis do seu cabelo”. A canção aponta para a situação

de desterro do homenageado obviamente não-nomeado (“Uma história pra contar/De

um mundo tão distante”), revela o desencanto do estrangeiro diante do clima

eternamente cinzento de Londres (“As luzes e o colorido/que você vê agora/nas ruas

por onde anda/na casa onde mora. / Você olha tudo e nada/lhe faz ficar contente”) e o

desejo dele de retorno para o Brasil: “Você só deseja agora/voltar pra sua gente”.

A “rua por anda” refere-se mais precisamente a Portobello Road, via principal

do bairro em que Veloso e Gil residiram por algum tempo. Rua essa, caminhada essa,

que, na canção “Nine out of ten” (disco Transa, Londres,1972), o primeiro busca

traduzir para nós: “Walk down Portobello Road to the sound of reggae / I'm alive. /

The age of gold,yes the age of / the age of gold / the age of music is past. / I hear them

talk as I walk I hear them talk / I hear they say yes / Expect the final blast. / Walk

down Portobello Road to the sound of reggae / I'm alive”.

A Portobello Road musical, citada acima, é cenário também para uma memória

triste de Gil, conforme referência na canção “Back in Bahia”, uma das músicas com

que ele retoma, em disco (Expresso 2222), sua carreira no Brasil em 1972:

Lá em Londres, vez em quando, me sentia longe daqui Vez em quando, quando me sentia longe, dava por mim. Puxando o cabelo, nervoso, querendo ouvir Celly Campelo pra não cair naquela fossa em que vi um camarada meu de Portobello cair, naquela falta de juízo que eu não tinha nem uma razão pra curtir. Naquela ausência de calor, de cor, de sal, de sol, de coração pra sentir. Tanta saudade, preservada num velho baú de prata dentro de mim.

Além de registrar a tristeza do amigo desterrado, Roberto Carlos, em “Debaixo

dos caracóis do seu cabelo”, faz votos pelo seu regresso, encerrando a canção desse

modo: “Um dia vou ver você/Chegando num sorriso/Pisando a areia branca/Que é seu

paraíso”. Em Verdade tropical, volumoso livro a meio caminho entre autobiografia,

memória, biografia de uma geração e crítica da cultura de massa brasileira, Veloso

  14  

(2002, p.424) recupera com detalhes a visita de Roberto Carlos a que se referia na

crônica para O Pasquim: “Uma visita comovente foi a que nos fez o Rei Roberto

Carlos. Ele nos era, como já disse, grato pela valorização que fizemos de seu trabalho.

De passagem por Londres, quis nos ver. [...] Roberto veio com Nice, sua primeira

mulher, e nós sentimos nele a presença simbólica do Brasil”.

A presença insidiosa da morte

A percepção que Roberto Carlos tivera de Veloso no exílio – retrabalhada na

música acima citada - assim como a canção com que Paulo Diniz o homenageia,

tentando falar “em nome de Caetano”, em “I wanna to go back to Bahia”, traduzem

de certa forma um pouco da emoção de solidariedade que esses encontros – apenas o

primeiro deles verdadeiro – devem ter gerado. Afinal, como já pontou Said (2003,

p.47), “ver um poeta no exílio – ao contrário de ler a poesia do exílio – é ver as

antinomias do exílio encarnadas e suportadas com uma intensidade sem par”.

Ademais, o fato é que o parágrafo que fecha a crônica, de que a visita de Roberto

Carlos faz parte, retorna com aquelas frases com que Veloso nos assustava pelo

Pasquim: “Talvez alguns caras do Brasil tenham querido me aniquilar; talvez tudo

tenha acontecido por acaso. Mas agora eu quero dizer aquele abraço a quem quer que

tenha querido me aniquilar porque o conseguiu”. E o mais grave, mais enigmático,

vem a seguir: “Nós estamos mortos”.

A primeira crônica de 1970 de Veloso em O Pasquim (14 de janeiro), intitulada

“Ipanemia tem seus cinco parágrafos com intertítulos que sugerem o esboço de uma

crítica cultural que ele, aparentemente, nunca pensou em desenvolvê-la: “A ipanemia

é uma doença fácil”, “A ipanemia é uma doença fértil”, “A Ipanemia é uma doença

horrível”, “A Ipanemia é uma doença fóssil” e “A Ipanemia é uma doença fútil”. Há

um tema que percorre a maioria do texto: a morte. A morte de Caetano Veloso,

assunto que ocupa um parágrafo, que se inicia, associando-a, em termos, a mitologia

brasileira da cultura de massas - “Quero dizer que, se eu falei que morri, foi porque eu

constatei a falência irremediável da imagem pública que eu mesmo escolhi aí no

Brasil” -,descarta o que ele entende como uma hipócrita e atrasada solidariedade -

“Quando eu me congratulei com aqueles que me fizeram sofrer, eu estava querendo

dizer que, dando motivo para crescer uma compaixão unânime por mim, que vira

prêmios e capas de revistas muito significativas”, sintetizando, enfim, para um

[REVISTA  CONTEMPORÂNEA  –  DOSSIÊ  HISTÓRIA  &  LITERATURA]  Ano  3,  n°  4  |  2013,  vol.2      ISSN  [2236-­‐4846]  

 

  15  

público externo, o que aquilo estava significando para ele: “[assim], eles conseguiram

realmente aniquilar o que poderia restar de vida no nosso trabalho”.

A segunda crônica daquele ano somente seria publicada muito tempo depois,

na edição de O Pasquim de 26 de março, e trata de vários assuntos, mas há um saldo

emocional do período de confinamento em Salvador, antes da saída para o exílio,

quando ele se refere ao show que ele e Gil haviam feito no Royal Festival Hall: “Era o

avesso do show de despedida que nos foi permitido fazer no Teatro Castro Alves,

onde todo mundo sabia de tudo. Aqui ninguém sabia de nada”. Foi nesse espetáculo

que Veloso interpretou a toada “Asa branca”, como o faria tempos depois no seu

primeiro disco gravado em Londres e sobre a qual nos deteremos mais adiante. A

crônica seguinte, em 2 de abril, é composta por dois longos parágrafos, sendo difícil

lhe determinar um tema dominante, mas há ainda sinais esparsos, mas intensos de um

balanço ainda doloroso: “Quero morrer, quero morrer já”, “Eu não sei de nada. Eu

não sou daqui”. Já a crônica da edição de 18 de junho nada registra de seu cotidiano

ou de sua condição exilada.

O tema da morte – ou pelo menos da morte de uma imagem pública de

Veloso –, que havia sido tratado com intensidade na crônica de 14 de janeiro de 1970

para O Pasquim, retorna no texto publicado em 12 de agosto daquele ano no mesmo

semanário: “[…] Além do mais, não há motivo para tanta alegria: eu ainda posso

ressuscitar. A nossa época é uma época de milagres”. Um pouco de mistério surge

para o leitor quando, na frase seguinte lá está: “Eu gostaria apenas que a minha morte

fizesse bem à Gal Costa. Tomara que ela tenha percebido que eu morri. Digo isso

porque eu mesmo não me apercebi de imediato. Alguns amigos me avisaram, mas eu

não liguei, até que vi o retrato”.

Um dado curioso que surge a propósito das menções recorrentes de Veloso à

morte em sua correspondência para O Pasquim, nesses tempos de exílio, é a

lembrança que nos traz alguns versos de “Marginália 2” (Torquato Neto-Gilberto

Gill,1967). Num estilo peculiar de composição que a Tropicália consagrou, há uma

enumeração que associa conceitos da geopolítica de esquerda (Terceiro Mundo) com

uma paisagem tropical (cascatas, palmeira, araçás, bananeiras, juritis), culminando

  16  

com a referência à famosa “Canção do exílio”, de Gonçalves Dias, associando-a não a

uma terra utópica, mas, sim, à morte: “Minha terra tem palmeiras/onde sopra o vento

forte/da fome, do medo e muito/principalmente da morte/Olerê, lalá.”

O refrão de “Os argonautas” aparece em uma oportunidade de cada vez em

parágrafos diversos até após a inversão de “Navegar não é preciso”, Veloso informa,

sem crítica, que “todos acham que eu falo demais”. Acrescenta a isso a constatação de

que tem novo ofício - “Estou virando cronista” - talvez sem saber que, décadas atrás,

Walter Benjamin (2012,p.226), já havia afirmado que “o cronista é o narrador da

história”, argumentando nesse sentido que, dentre “todas as formas épicas, a crônica é

aquela cuja inclusão na luz pura e incolor da história escrita é a mais incontestável” e

que, “no amplo espectro da crônica, todas as maneiras com que uma história pode ser

narrada estratificam-se como se fossem variações da mesma cor”. Esse texto de

Veloso se encerra com uma expressão que pode remeter ao seu sentimento na época

bem como para “o clássico” da Bossa-nova: “Chega de saudade”.

Em “Asthma” (O Pasquim,25 de novembro de 1970), pode-se perceber que

aquele espaço dele naquele semanário carioca passou a ser menos o ponto de escape

para o Brasil de um diário de um desterrado e mais o território de uma

experimentação textual do que é prova o modo como ele se encerra: “Eu quero a

proesia. Eu quero as galáxias do poeta heraldo de los campos. Quem não comunica dá

a dica. Eu quero a proesia. I wanna go back to bahia. I wanna to go back to bahia”.

Forma original de reconhecer publicamente a homenagem que lhe fazia o cantor e

compositor Paulo Diniz na canção de mesmo nome.

“Nega” e “Asa branca”

A partir de 1971, Veloso deixa de colaborar com O Pasquim. E haveria, pelo

menos, duas coisas boas nisso. Primeiro, ele estava respondendo a uma postura desse

veículo que começava sistematicamente, então, a veicular textos discriminando

nordestinos, quando não o criticava e também a Gil. O segundo motivo, mais vital,

por sinal, é que ele começava a preparação de seu primeiro disco londrino, que tem

como título o seu nome, ostentando na capa um close dele, que o fazia parecido, hoje,

com Osama Bin Laden. Inevitavelmente o que mais chamou a atenção de todos nele

foi a faixa “Asa branca” e por vários motivos: pela sua aparente inexplicável inserção

na cena pop que Veloso e Gil viviam na swinging London, pela duração de sua

execução (sete minutos e 22 segundos) e pelo modo extremamente tristonho com que

[REVISTA  CONTEMPORÂNEA  –  DOSSIÊ  HISTÓRIA  &  LITERATURA]  Ano  3,  n°  4  |  2013,  vol.2      ISSN  [2236-­‐4846]  

 

  17  

ele a canta, combinando, por sinal, com a imagem que ele projetava de si mesmo na

capa. Alguns se perguntavam: o que aquela toada de L. Gonzaga-Humberto Teixeira,

que muitos têm como “O hino do Nordeste”, que se centrava na saída de um colono

por causa da seca e prometendo o seu retorno quando “a chuva/cair de novo”, tinha a

ver com ele? A resposta mais rápida poderia ser talvez a projeção do sofrimento de

um retirante em um exilado urbano, que jamais havia pegado no cabo de uma enxada.

Ou então, tudo se resumiria apenas no estado de alguém que, “hoje, longe muitas

légua”, vive “numa triste solidão”?

Além da gravação particularíssima de “Asa branca”, destacam-se ainda no

disco em pauta de Veloso um hit, que Gal Costa havia lançado no segundo semestre

de 1970 - “London, London” - e a saudosa “Maria Bethânia”, essa também dele, e

sobre a qual nos deteremos mais adiante. Veloso (2002, p.456) não guarda boas

lembranças desse título londrino: “Até hoje, esse disco me desagrada por lembrar-me

demais minha depressão e minhas limitações pessoais. Mas foi um sucesso de estima

brasileiro. A faixa “Asa branca”, uma versão pessoal e harmonicamente pobre do

clássico de Luiz Gonzaga, justificava para mim a existência desse disco”. O fato é

que, além dos motivos citados por Veloso, esse clássico do repertório de Gonzagão

era das muitas das canções dele que se referia a uma partida, a uma situação de

relativo “desterro”, mas incluindo uma promessa de retorno como na “matriz”

“Canção de exílio” gonçalvina.

Uma busca não muito exaustiva no repertório daquele artista pernambucano

evidencia como as últimas ideias destacadas por nós acima – incluindo o sentimento

de uma certa “estrangeiridade” no local da imigração forçada - eram nele recorrentes:

“É pra rir ou não é” (1946), “Lorota boa” (1949), 'No Ceará, não tem disso, não”

(1950), “Quase maluco” (1950), “Adeus, Rio de Janeiro” (1950), “Pau-de-arara”

(1952) “Chorei, chorão” (1958) e “Vida de vaqueiro” (1960), entre outras. A

musicóloga cearense Elba R. Ramalho (2000, p.77), por exemplo, pontua a

importância dessas canções acima por terem contribuído, entre outras coisas, “para a

coesão cultural dos migrantes nordestinos, principalmente aqueles que se foram para

o Sudeste”. Aceitando-se essa tese, é de se perguntar se isso poderia funcionar para os

  18  

exilados Veloso e Gil. Será que a inusitada e longa gravação de “Asa branca”, por

Veloso naquele disco “estrangeiro”, poderia ter se transformado de uma “canção de

retirante” para uma “canção de exilado”, para uma “canção de desterrado”, para,

enfim, uma nova paráfrase, sem ironia, da “Canção do exílio” gonçalvina.

Em 1971, mais precisamente em abril, Gilberto Gil lança o seu primeiro disco

londrino, com o seu nome apenas como título. Enquanto Veloso enfrentava

problemas com a fluência do idioma local, Gil, por outro lado, a se observar pelo

repertório desse elepê, uma vez que a única palavra em português dessa gravação era

“Nega”, título da primeira das nove faixas. Vale a pena observar que os depoimentos

de Veloso antecedem em mais de um ano o lançamento desse disco em pauta. As

outras canções eram “Crazy pop rock” (com Jorge Mautner), “Babylon” (idem), “The

three mushrooms” (ibidem), “Can't find my way home” (Steve Winwood), “Volks-

Volkswagen blues”, “Mamma” e “One o'clock last morning,20th April,1970”. Todas

as três primeiras refletem em suas letras alguns reflexos da experiência de Mautner

em Nova Iorque – poluição, a vida de um estrangeiro em uma megalópole, a expansão

da consciência através do uso de drogas ilícitas - numa situação bem diversa daquela

vivida por Gil e Caetano em Londres.

“Volks-Volkswagen blues” havia sido composta original em português ainda no

confinamento em Salvador com uma série de referências familiares – o pai (Zeca), a

irmã (Dina), a mãe (Claudina), a primeira mulher (Bela), e suas filhas com ela:

Marina e Nara. Essa versão inglesa de “Volkswagen blue” exclui toda essa

familiaridade de sua matriz em língua portuguesa logo de início - “Let me present to

you / my Volks-Volkswagen blues. / Ready to carry me away / a long way to reach the

moon” - com o fusca transformando-se numa nave espacial: “Fiz a versão já em

Londres, mas pouco tempo depois de ter saído da prisão. Ainda vivendo, portanto, sob

o signo novo da descoberta do cosmos, que corresponde também à descoberta das

filosofias orientais, que propõem esse deslocamento do microcosmos para o

macrocosmos e vive versa” (GIL,2003, p.117). Já em “Babylon” (inspirada por Nova

Iorque), pode-se ler, sem muito esforço, uma pequena tradução do impacto da

chegada de um estrangeiro a uma metrópole numa situação peculiar, experiência essa

que Gil poderia estar assumindo nos primeiros dias de Londres e que domina a

primeira estrofe dessa canção: “First time I came to Babylon / I felt so lonely / I felt so

lonely and people came along / To mistreat me / Calling me so many names in the

streets / And I was so shy / That I began to cry”.

[REVISTA  CONTEMPORÂNEA  –  DOSSIÊ  HISTÓRIA  &  LITERATURA]  Ano  3,  n°  4  |  2013,  vol.2      ISSN  [2236-­‐4846]  

 

  19  

Em “Mamma”, Gil, de certa forma, retoma o clima das várias canções de

despedida de Caetano, mesmo aquelas pré-Tropicália – distanciando-se curiosamente

da “alegria”, que se poderia ler em “Aquele abraço” - , enquadrando-a na matriz do

velho blues norte-americano, principalmente aquele referente ao “the deep south”.

“Mamma começa pedindo a benção, mas é firme na colocação de seus objetivos: “Am

gonna do my best again/Am gonna go my way, mamma. /Tomorrow am gonna catch a

train. /Don't try to hold me down/I wanna put my chest against the wind. / From east

and west once again./Mamma,/give me your blessing right now”. A segunda estrofe

reforça as metas traçadas acima - “Am gonna get ahead again. / Am gonna go my

way,mamma./Before you tie me to a chain,/before you close me down,/so wide you

should stretch your breast/and hold my life inside yourself again” e volta a pedir a

bênção à mãe, como se fosse uma prece. A canção se encerra, consolando a receptora

direta dessa mensagem: “I wanna kiss your face again,/am gonna go my

way,mamma,/don't worry, don't cry,don't complain,/don't try to hold me down./How

much you want your darling, baby,/clinging to your long skirt again./Oh,mamma/give

me your blessing right now”.

Em “Mamma”, Gil incorpora a sua família no canto público do exílio, do

desterro, da caminhada, assim como Caetano Veloso havia feito antes, citando irmã

(“Irene”), pai e mãe (“No dia em que eu vim-me embora”), expandindo a publicização

de sua afetividade pelo adeus à cidade natal (“Adeus, meu Santo Amaro”) e ao seu

estado natal (“Ai, quem me dera”). De passagem, nessa última referência, os “velhos

baianos” jamais deixaram de dar credito às canções de exílio de Dorival Caymmi, por

exemplo. A motivação-base dessa canção londrina é bem explicitada por Gil (2003,

p.140): “Era para a minha mãe mesmo, para lhe dizer que eu tinha ido embora e por

que eu tinha ido, por que estava tão longe naquele momento, tão saudoso dela e ela,

provavelmente, tão saudosa de mim”. Simultaneamente a esse movimento de

intimidade afetiva, há, em “Mamma”, uma caminhada no sentido desse músico

recém-imigrado se exteriorizar com relação a modos de composição, notadamente o

blues: “Feita numa estrutura de blues, a canção reiterava o modo de cantar dos negros

  20  

e saga dos homens que vão embora – há muitos blues que falam disso, do homem

saudoso, distante de casa, dizendo: 'Vou pegar o trem etc.'” (GIL,2003, p.140).

Saldos do balanço

Curiosamente, após o discurso de “Mamma” centrado em declarações

afirmativas, prospectivas, esse primeiro disco londrino de Gil se encerra com uma

canção do roqueiro Steve Winwood - “Can't find my way home” -, poetizando uma

certa perplexidade notadamente em torno do sema way, que, em português, encontra

uma tradução bastante diversificada, a saber caminho, rumo, curso, andamento,

seguimento, carreira, método, processo, modo, jeito, processo etc:

Come down off your throne and leave your body alone - somebody must change

You are the reason I've been waiting so long - somebody holds the key.

Well, I'm near the end and I just ain't got the time, and I'm wasted and I can't find my way home.

Come down on your own and leave your body alone - somebody must change.

You are the reason I've been waiting all these years. - somebody holds the key.

Well, I'm near the end and I just ain't got the time and I'm wasted and I can't find my way home.

Em nosso entendimento, o ponto de maior contato dessa canção de Winwood

com o estado de espírito do desterrado Gil (o disco é de 1971,como dissemos, mas os

versos podem dizer respeito ao seu primeiro ano londrino,1969) encontra-se no refrão

em que o narrador declara a sua proximidade do fim (o que nos remete ao “fundo” de

“Com medo, com Pedro”, por exemplo), a sua emergência, o seu estado de

desorientação espacial, sem poder encontrar o caminho de volta para casa. É claro

que, com relação à realidade mais imediata, o problema de Gil não era saber volta

para casa, mas que não podia fazê-lo. Pelo menos, sem o risco de que poderia ser

preso de novo e, o pior, morrer.

Avançando um pouco além dos limites temporais de nosso corpus, gostaríamos

de destacar que a situação desconfortável vivida por Gil como colocada acima,

voltaria a ser referida, anos mais tarde (1977), por ele, em sua versão bem-sucedida

em termos de execução do reggae jamaicano “No woman, no cry” (B. Vincent), mais

precisamente em sua segunda estrofe: “Bem que eu me lembro/da gente sentado ali,

[REVISTA  CONTEMPORÂNEA  –  DOSSIÊ  HISTÓRIA  &  LITERATURA]  Ano  3,  n°  4  |  2013,  vol.2      ISSN  [2236-­‐4846]  

 

  21  

/na grama do Aterro, sob o Sol, /ob-observando hipócritas, /disfarçados, rondando ao

redor. //Amigos presos, /amigos sumindo assim/pra nunca mais. /Tais recordações,

/retratos do mal em si, /melhor é deixar pra trás”.

Quase que ao mesmo tempo em que Gal Costa colocava a balada triste “London,

London” nas paradas de sucesso do Brasil, Elis Regina lançava ainda em 1970 um

samba de Gilberto Gil, “Fechado pra balanço”, que radiografava, por assim dizer, o

estado dele: “Tô fechado pra balanço/meu saldo deve ser bom/Tô fechado pra

balanço/meu saldo deve ser bom/deve ser bom”. Ao comentar essa canção, mais de

trinta anos depois, Gil (2003, p.131), assim de referiu: “O título e o tema da canção

são auto-explanatórios: eu estou ali, em Londres, porque me obrigaram a isso, me

prenderam, me tiraram de circulação, me mandaram para o exílio, e estou 'fechado pra

balanço' […] as acumulações, as riquezas da minha cultura, da minha realidade

cultural brasileira, que formavam o meu tesouro na situação de exílio”.

Assim como Veloso fala do seu cotidiano passeando por Portobello Road

(Notting Hill, então, um bairro alternativo e onde Gil e Sandra iriam morar após o

nascimento de Pedro), ouvindo reggae, ou de sua melancolia pelas ruas em “London,

London”, em “Fechado pra balanço”, também há espaço para pontuar a situação de

desterrado com um exemplo de como se dava a manutenção da sobrevivência, como

pagar as contas: “Gasto sola de sapato/mas aqui custa barato/custa um samba, um

samba e meio”. Era, na verdade, uma situação de penúria, que seria relembrada

muitos anos depois no livro citado acima quando Gil traça a rota de reabastecimento

financeiro: o dinheiro dos direitos autorais eram recolhidos por uma contraparente,

que o trocava por dólares, dentro dos limites legais de remessa de divisas, e o enviava

para Londres. Era com esses recursos que Veloso e Gil pagavam os aluguéis e se

mantinham de modo bastante modesto. A partir de 1970, Gil começou a fazer

apresentações na Alemanha, na Suíça e na França: “Isso complementava a renda. Ele

[Gil] e Caetano também fizeram shows na Inglaterra e gravaram discos. Mas o

dinheiro que segurava a barra era o que vinha do Brasil (GIL; ZAPPA,2013, p.146).

Nesse arremedo de contabilidade existencial, que é “Fechado pra balanço” de

Gil, há custos maiores como ele aponta nos versos seguintes: “E o resto/ O resto não

  22  

dá despesa/viver não me custa nada/viver só me custa a vida/a minha vida contada”.

Essa associação custos e existência pode ser também observada no fecho do fado

“Argonautas”, composto por Veloso, durante o confinamento de quatro meses de

1969 em Salvador e uma das faixas do disco “branco”, lançado quando o seu autor já

estava na Europa: “Navegar é preciso/viver não é preciso”. Nessa prestação de contas,

há ainda dados que não conferem, digamos, se formos tomá-la como um

“documento”, como uma “verdade”, o que se nota aqui:” Um pouco da minha

grana/gasto em saudade baiana/ponho sempre por semana/cinco cartas no correio”.

Em outro sucesso de Elis Regina, “Ladeira da Preguiça” (1971), Gil confessava, entre

uma de suas preguiças no exílio, “preguiça que eu sempre tive/de escrever para a

família/e de mandar contar pra casa/que esse mundo é uma maravilha/e pra saber se a

menina já conta as estrelas/e sabe a segunda cartilha...”

Ao tempo em que, no samba “Fechado pra balanço”, Gil telegrafa um estado de

espírito de quem, no desterro, também aproveita para se examinar, para se questionar,

em outra canção anterior, “Com medo, com Pedro” (1969), composta e gravada no

primeiro ano de exílio, o criador de “Aquele abraço” já havia notado algumas certezas

dessa situação de infortúnio, como se tem na sua segunda estrofe: “Deus me livre de

ter medo agora/depois que eu já me joguei no mundo/Deus me livre de ter medo

agora/depois que eu já pus os pés no fundo”. O imã das rimas mundo-fundo acaba por

criar uma série de associações, cada uma delas mais terrível: “Se você cair, não tenha

medo/o mundo é fundo. / Quem chega no fundo encontra a porta do fim de tudo”.

Essa ideia de fundo de poço também pode ser encontrada na ideia geral que, talvez,

presida a criação de “Empty boat”, composta por Veloso ainda durante o período de

confinamento em Salvador e uma das faixas do “álbum branco” (1969).

Enquanto o correio do exilado Gil, em “Fechado pra balanço”, é mencionado

em duas oportunidades com sentidos invertidos, Veloso, em “Maria Bethânia” (do

primeiro disco gravado em Londres), cobra notícias da irmã famosa, pede que ela lhe

mande cartas. Fora do âmbito familiar e afetivo, em termos mais gerais, Veloso fez,

entre 1969 e 1971, a sua mala direta com o Brasil nas páginas do semanário carioca O

Pasquim, aspecto ressaltado em outra canção que lhe homenageia, “I wanna to go

back to Bahia”, de Paulo Diniz, especialmente nesses versos: “Eu tenho andado tão

só/Quem me olha nem me vê/silêncio em meu violão/Nem eu mesmo sei porque/ Via

Intelsat eu mando/notícias minhas para O Pasquim […] I don't want to stay here/ I

wanna to go back to Bahia”. A canção-elegia, lançada muito tempo depois daquela de

[REVISTA  CONTEMPORÂNEA  –  DOSSIÊ  HISTÓRIA  &  LITERATURA]  Ano  3,  n°  4  |  2013,  vol.2      ISSN  [2236-­‐4846]  

 

  23  

Roberto Carlos, também foi sucesso de execução, agregando certamente um novo

público para Paulo Diniz.

Além do lançamento do primeiro disco londrino de Gil, o ano de 1971

assinala também para a dupla exilada a gravação de Transa, o segundo elepê de

Veloso, agora contando com a direção musical e violão de Jards Macalé, duas canções

em português - “Triste Bahia” e “Mora na filosofia (Monsueto Menezes - A. Passos) -

e mais, em inglês, “You don't know me”, “Nine out of ten” (já comentada mais acima),

“It's a long way”, “Neolithic man” e “Nostalgia”. “You don't know me” encerra alguns

dos enigmas aos quais os leitores de Veloso em sua correspondência para O Pasquim

já deveriam estar acostumados como esses versos: “The world is spinning round

slowly / there's nothing you can show me / from behind the wall”. As estrofes

seguintes são puras citações de versos de três famosas canções brasileiras: “Maria

Moita” (C. Lyra-V. Moraes,1964); “Reza” (idem) e “Hora do adeus” (O. Almeida-L.

Gonzaga,1964). Assim estruturada, essa canção-montagem talvez ficasse mais

funcional em meio a um roman à la clef...

A sensação de enigma que percorre “You don't know me” também está

presente em “It's a long way”, com a duração inusitada de aproximadamente seis

minutos, que se abre com versos em inglês e prossegue com a citação de quatro

canções famosas. A primeira longa estrofe é assim: “Wake up this morning/singing

an old, old Beatles song. / We're not that strong, my lord//you know we ain't that

strong/I hear my voices among other. /In the break of

day/hey,brothers/say,brothers/it's a long long long long way”. A repetição desse

último adjetivo inevitavelmente remete o ouvinte pop informado da época à canção

“The long and winding road” (Lennon-McCartney) – título, por sinal, mencionado

algumas vezes durante a execução. Como um ouvinte menos informado sobre a

biografia de Veloso, poderia perceber a mensagem implícita nessa canção?

Verão de 1972: a canção da volta

No verão de 1971-1972, Gilberto Gil e Caetano Veloso já estão de volta ao Brasil,

resolvendo estabelecer-se por algum tempo em Salvador. Mesmo assim, os tempos de

  24  

desterro se fazem presente na primeira canção que aqui ele compõe e grava, “Back in

Bahia” (ecoando aquela canção de Paulo Diniz). Essa obra se inicia, fazendo uma

rememoração: “Lá em Londres, vez em quando me sentia longe daqui/vez em

quando, quando me sentia longe, dava por mim/puxando o cabelo/nervoso, querendo

ouvir Celly Campelo pra não cair/naquela fossa/em que vi um camarada meu de

Portobello cair”. A Portobello Road, que já ouvimos na canção “Nine out of ten”, de

Veloso, como um lugar marcado pelo som do reggae, à época, aqui reaparece como

uma referência ao primeiro endereço conjunto de Gil e Veloso.

A primeira longa estrofe de “Back in Bahia” prossegue com mais

rememoração de um período triste: “Naquela falta de juízo/que eu não tinha nem uma

razão pra curtir. / Naquela ausência/ de calor, de cor, de sal, de sol, de coração pra

sentir/tanta saudade...” Essa enumeração de ausências, marcadas também pela

proximidade fônica, proveniente de aliterações, nos remete, de uma certa forma, com

mais síntese, a alguns dos versos da canção “Debaixo dos caracóis do seu cabelo”,

quando Roberto Carlos, seu autor e intérprete, diz, a respeito de Caetano Veloso: “Um

dia a areia branca/Teus pés irão tocar/E vai molhar seus cabelos/A água azul do mar

[…] Um dia vou ver você/Chegando num sorriso/Pisando a areia branca/Que é seu

paraíso/Debaixo dos caracóis dos seus cabelos...”. A citada enumeração em “Back in

Bahia” prossegue com relação a elementos da natureza, que, da forma como são

citados, tornam-se essenciais no canto da nostalgia da Bahia: “Digo num baú de prata

porque prata é a luz do luar/do luar que tanta falta me fazia junto com o mar/mar da

Bahia/cujo verde vez em quando me fazia bem relembrar/tão diferente/do verde

também tão lindo dos gramados campos de lá/Ilha do Norte”.

À (boa) lembrança das coisas da Bahia se associa, mesmo numa canção que

celebra o retorno, como “Back in Bahia”, uma dúvida em torno do sentido do exílio -

“[...]onde não sei se, por sorte ou por castigo dei de parar/por algum tempo” - , o

alívio de que ele se acabou, tão estranhamente como ele começara - “[tempo] que,

afinal, passou depressa como tudo tem de passar” e um balanço que não despreza toda

a experiência dos tempos de desterro: “Hoje eu me sinto/como se ter ido/ fosse

necessário para voltar/tanto mais vivo/de vida mais vivida, dividida pra lá e pra cá”.

Ao comentar muito posteriormente “Back in Bahia”, Gil (2003, p.148) disse que ela

surgiu sob o impacto da emoção que lhe causara a alegria das pessoas durante a festa

em louvor à Nossa Senhora da Purificação, em fevereiro de 1972, em Santo Amaro

(BA); ele havia retornado ao Brasil no dia 14 de janeiro: “Eu estava na casa onde

[REVISTA  CONTEMPORÂNEA  –  DOSSIÊ  HISTÓRIA  &  LITERATURA]  Ano  3,  n°  4  |  2013,  vol.2      ISSN  [2236-­‐4846]  

 

  25  

Canô, mãe de Caetano, estava dando a festa; vendo as pessoas queridas e a alegria que

emanava delas. Da lembrança da saudade que eu sentia dessas e outras coisas em

Londres veio o impulso para escrever a canção”.

Por sinal, parte doa versos iniciais de “Back in Bahia” foram parafraseados em

duas oportunidades por Caetano Veloso. A primeira vez foi no texto do programa do

seu show de retorno ao Brasil no Teatro Municipal do Rio de Janeiro em março de

1972: “lá em londres, vez em quando, me sentia longe, dava por mim. / no rio de

janeiro: continua. / na sampa: mano a mano”. A segunda paráfrase foi na crônica

“Discretamente aqui”, na edição de 23-24 julho de 1972 do semanário alternativo

baiano Verbo: “Minha proximidade, a certeza de que sou real, vulnerável, traz de

volta à terra minha lenda. Para minha alegria imensa, pois lá em Londres vez em

quando dava por mim atravessando paredes, como um fantasma”.

Considerações finais

Ao final desse percurso de análise, em que buscamos trabalhar com algumas

representações da História do Brasil, no período mais brutal da ditadura militar, na

produção literário-musical de Caetano Veloso e Gilberto, não podemos deixar de

reconhecer um dos limites dessa nossa investigação: a ausência de maiores

observações sobre os componentes melódicos, rítmicos e harmônicas das canções

montadas em nossa amostra. Deixamos de fazê-lo simplesmente por incompetência

técnica nessa habilidade, mas não podemos também deixar de registrar a falta que isso

faz, deficiência desse tipo de estudo que já foi acentuada com clareza, a propósito de

outro ensaio e de outro autor, pelo mestre Antônio Cândido (1993, p.16): “[...] letra e

música formam um todo indissociável, cujo significado completo depende da sua

performance em estado de fusão (se podemos falar assim). A argumentação de […]

sairia, portanto, reforçada e confirmada pelas melodias, que ecoam a saudade, a

brutalidade, o lamento, a bilontrice, a alegria ou a tristeza do discurso, facultando à

canção o seu impacto integral”. Cândido encerra a sua ponderação, observando que o

estudo em pauta não se propunha nem parecia obrigado a ter um “estudo musical”,

porém, “de qualquer modo, a melodia faz falta, e, quando a conhecemos e podemos

  26  

entoá-la, somos capazes de apreciar mais plenamente as razões expostas”. Por fim,

ainda com relação a questões de método, justificando a proposta de trabalho que se

fez aqui, dentro do tema “História e literatura”, infelizmente vamos fazer uso de um

discurso de autoridade, no caso Peter Burke: “O que deveríamos estar discutindo (em

vez da velha polêmica entre fato e ficção, ciência e arte) é, portanto, a

compatibilidade ou o conflito existente entre esses critérios e diferentes formas de

texto ou retórica”. E ele arremata: “No entanto, essa zona intermediária, a de 'ficções

de representação factual' (a máscara da imparcialidade, a pretensão a conhecimentos

de fontes internas, o uso de estatísticas para impressionar o leitor etc.) está apenas

começando a ser explorada de maneira sistemática”.

Por essas coincidências da vida, nos períodos que antecediam ao retorno de

Veloso e Gil ao Brasil dos dois anos e meio de exílio – o segundo pela primeira vez,

mas o primeiro já havia aqui estado em duas brevíssimas oportunidades e sob

vigilância policial – Vinícius de Moraes, Toquinho e Chico Buarque terminavam de

compor em Roma uma espécie de anti- “Canção do exílio”, uma “canção da volta”, o

“Samba de Orly” (1970), que, de certa forma, era um estímulo e tanto para se voltar a

um país ainda sob a ditadura militar. A canção se inicia, incorporando um dito famoso

de Dom João VI para um de seus filhos: “Vai, meu irmão/pega esse avião/você tem

razão/de correr assim/desse frio, / mas beija/o meu Rio de Janeiro/antes que um

aventureiro/lance mão”. No entanto, no fecho de “Samba de Orly”, o dado histórico

nos é mais contemporâneo: “Pede perdão/pela duração dessa temporada/um tanto

forçada/mas não diga nada/que me viu chorando/e pros da pesada/diz que eu vou

levando...”

[REVISTA  CONTEMPORÂNEA  –  DOSSIÊ  HISTÓRIA  &  LITERATURA]  Ano  3,  n°  4  |  2013,  vol.2      ISSN  [2236-­‐4846]  

 

  27  

Referências bibliográficas

BENJAMIN, W. Magia e política, arte e política. São Paulo: Brasiliense,2012

[1985].

BURKE, P. História e teoria social. São Paulo: EDUNESP, 2002.

CÂNDIDO, A. “Prefácio” a BELTRÃO, S. A musa-mulher na canção brasileira. São

Paulo: Estação Liberdade,1993.

GIL, G. Todas as letras. São Paulo: Companhia das Letras,2003.

--------. ; ZAPPA, R. Gilberto bem perto. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,2013.

LE GOFF, J. História e memória. Campinas, SP: EDUNICAMP,2003 [1977].

RAMALHO, E. B. Luiz Gonzaga: a síntese poética e musical do sertão. São Paulo:

Terceira Margem,2000.

SAID, E. Reflexões sobre o exílio e outros ensaios. São Paulo: Companhia das

Letras,2003.

SIMMEL, G. Sociologia. São Paulo: Ática,1983.

VELOSO, C. Verdade tropical. São Paulo: Companhia das Letras,2002.

---------------. O mundo não é chato. São Paulo: Companhia das Letras,2005.