novo curso de processo civil - volume 1 - edição 2017 · nella filosofia del diritto, p. 15). a...

518

Upload: others

Post on 21-Nov-2019

0 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

  • 2017-05-01

    NovoCursodeProcessoCivil-Volume1-Edição2017PRIMEIRASPÁGINAS

  • ©destaedição[2017]

  • 2017-05-01

    ©destaedição[2017]

    NovoCursodeProcessoCivil-Volume1-Edição2017SOBREOSAUTORES

    LUIZGUILHERMEMARINONI

    Pós-DoutoradonaUniversitàdegliStudidiMilanoenaColumbiaUniversity.VisitingScholarna

    ColumbiaUniversity.ProfessorTitulardeDireitoProcessualCivilnoscursosdegraduação,mestrado

    edoutoradodaFaculdadedeDireitodaUniversidadeFederaldoParaná–UFPR.ProfessorVisitante

    emváriasuniversidadesdaAméricaLatinaedaEuropa.Vice-PresidentedaAssociaçãoBrasileirade

    DireitoProcessualConstitucional.MembrodoConselhoConsultivodoInstitutoBrasileirodeDireito

    Processual – IBDP e da International Association of Procedural Law – IAPL. Diretor do Instituto

    Iberoamericano de Derecho Procesal – IIBDP. Temmais de uma dezena de livros publicados no

    exterior.RecebeuoPrêmioJabutiem2009efoiindicadoaomesmoprêmionosanosde2007e2010.

    Ex-ProcuradordaRepública. Ex-Presidente daOAB-Curitiba.Advogado e Parecerista, com intensa

    atuaçãonasCortesSupremas.

    SÉRGIOCRUZARENHART

    Pós-DoutoradopelaUniversitàdegliStudidiFirenze.DoutoreMestreemDireitopelaFederaldo

    Paraná–UFPR.Professor-AdjuntodeDireitoProcessualCivilnoscursosdegraduação,mestradoe

    doutoradodaFaculdadedeDireitodaUniversidadeFederaldoParaná–UFPR.Publicou10livros–

    umdelesnoexterior–ediversosartigosemrevistasespecializadas.FoiomaisjovemJuizFederaldo

    Brasil e atualmente é Procurador Regional da República na 4.ª Região, tendo ingressado no

    MinistérioPúblicoFederalmedianteconcursonacional,sendoaprovadoem1.ºlugar.

    DANIELMITIDIERO

    Pós-DoutoradopelaUniversitàdegliStudidiPavia.DoutoremDireitopelaUniversidadeFederal

    do Rio Grande do Sul – UFRGS. Professor-Adjunto de Direito Processual Civil nos cursos de

    graduação,especialização,mestradoedoutoradodaUniversidadeFederaldoRioGrandedoSul–

    UFRGS.Publicou25livros–quatrodelesnoexterior–ediversosartigosemrevistasespecializadas

    nacionais e internacionais, dentre as quais a Zeitschrift für Zivilprozess International e o

    InternationalJournalofProceduralLaw.MembrodaInternationalAssociationofProceduralLaw–

    IAPL,do Instituto IberoamericanodeDerechoProcesal– IIBDPedo InstitutoBrasileirodeDireito

    Processual–IBDP.RecebeuoPrêmioJabutiem2009.AdvogadoeParecerista,comintensaatuação

    nasCortesSupremas.

  • 2017-05-01

    NovoCursodeProcessoCivil-Volume1-Edição2017APRESENTAÇÃO

    APRESENTAÇÃO

    Uma adequada ligação da teoria do direito, do Estado Constitucional e da teoria dos direitos

    fundamentaiscomateoriadoprocessocivil–especialmenteparasuacompreensãocomoummeio

    paratuteladosdireitos–dependedeumadoutrinaconscientedarelatividadehistóricadodireitoe

    doprocessoecapazdetraduziraculturadeseutemponasuainterpretação.Ofatodetermosum

    novoCódigodeProcessoCivilpromulgadorecentemente,portanto,porsisónãoconstitui senãoa

    promessadeumnovoprocessocivil.Issoporque,comoépoucomaisqueevidente,semqueasfontes

    recebam uma interpretação capaz de gerar significados normativos novos e sem que esses

    significados possam ser apropriadamente ordenados em uma unidade sistemática, pouco se pode

    esperardeumanovalegislação.

    Umprimeirovolume,voltadointegralmenteà teoriadoprocessocivil,é imprescindívelparase

    desenvolver e compreender as elaborações dogmáticas destinadas a explicar o novo Código, na

    medida em que toda e qualquer afirmação técnico-processual, despida de base teórica, é uma

    opinião vã. Essa teoria, porém, não mais pode estar ligada aos velhos pressupostos do Estado

    legislativo,comoaindaécomumnasobrasquesupõemserpossívelconstruirumaúnica teoriaa

    serviçodoprocessocivil,penaletrabalhista.Ateoriadoprocessoquepodehojeinteressaréaque

    mergulha o direito processual nos espaços da teoria do direito e do direito constitucional,

    especialmentedasteoriasdosdireitosfundamentais.

    Emborateoricamenteaprofundado,estelivrofoiescritodemaneiradidática,visandoafacilitar

    a compreensão dos estudantes e dos operadores do direito. O seu objetivo é dar suporte teórico

    capazdepermitiraoestudiosocompreenderetrabalharoprocessocivildeformacríticaecriativa,

    evidenciandoqueotrabalhodojuiz,doadvogado,doMinistérioPúblico,dadefensoriapública,do

    doutrinador,doprofessoredoestudantenãopodeficarlimitadoaumaaplicaçãomecânicaefriado

    processo civil, como desejou o processualismo legalista, que, lamentavelmente, mesmo após a

    transformaçãodoEstado e das Constituições, continuoude formaacrítica a dominar as obras de

    teoriadoprocessonãosónoBrasil,comoemgrandepartedaAméricaLatinaedaEuropa.

    Este é o primeiro volume do nosso Curso. Esperamos que suas linhas possam colaborar na

    composiçãodeumhorizonte idôneoparaumaadequada,efetivae tempestiva tutela jurisdicional

    dosdireitosemnossopaís.

    Porfim,agradecemosaoscolegasMarcellaPereiraFerraro,JordãoViolineLeandroRutano,pelo

    minucioso trabalho de revisão realizado e pela constante disposição na verificação das várias

    versõesdonovoCódigodeProcessoCivilaolongodesuaelaboraçãoedaconstruçãodestaobra.

    Verãode2015.

    LuizGuilhermeMarinoni,

    SérgioCruzArenhart

    eDanielMitidiero

  • ©destaedição[2017]

  • 2017-05-01

    NovoCursodeProcessoCivil-Volume1-Edição2017INTRODUÇÃO

    INTRODUÇÃO

    PorforçadeumnotórioexercíciodeabstraçãorealizadopeladoutrinaitalianadaprimeirametadedeNovecentos,1cujoresultadofoiatransformaçãodaRivistadiDirittoProcessualeCivileemRivistadiDirittoProcessuale,acriaçãodeumadisciplinanoscurrículosuniversitárioseofomentodeummododeveroprocessocivilinconscientementedespreocupadocomasparticularidadesdodireitomaterialqueessedeveria seencontrarpreordenadoaefetivar, tornou-se lugar-comumoestudodoprocessocivilserprecedidopeloestudodateoriageraldoprocesso.Essatradiçãofoiimportadapeladoutrinabrasileira na segunda metade de Novecentos2 e mesmo no início do nosso século contou comentusiasmadasadesõesecriativastentativasdedesenvolvimento.3

    A expressão teoria geral – cuja aplicação à teoria do direito foi feita pela primeira vez emOitocentostantonatradiçãoromano-germânica(AllgemeineRechtslehre)comonatradiçãodoCommonLaw (general jurisprudence)4 – pode ser compreendida no mínimo de três maneiras diferentes. Aambiguidadedaexpressãoresideespecificamentenaadjetivaçãogeralqueacompanhaosubstantivoteoria.

    Emprimeirolugar,pode-sefalaremteoriageralparadesignar-seumateoriauniversal,istoé,umateoria que se propõe a identificar os conceitos suscetíveis de emprego e os institutos comuns paracompreensãodequalquerordenamentojurídicosemnenhumadistinçãodeespaçoedetempo5–istoé,comaabstraçãodequalquerelementojurídico-cultural.Trata-sedeacepçãoemgrandeparteligadaaoestilo cientificistado jusnaturalismoracionalistadeSetecentos.6Nessaperspectiva, a teoria geralacabaseconvertendoemumateoriasimplesmentepreocupadacomaterminologiajurídica.7

    Oproblemaéqueosordenamentosjurídicosnãosevaleminvariavelmentedosmesmosconceitose institutos jurídicos. Nem sempre às mesmas palavras correspondem os mesmos conceitos, assimcomoosordenamentosnãocontamnecessariamentecominstitutoscomuns.8Aexpressãojurisdiction,noâmbitodadoutrinaestadunidense,porexemplo,significacompetência,sendoqueonossoconceitode jurisdição encontra adequada tradução naquela doutrina com o termo adjudication. Ainda, oprocessocivilbrasileiroconheceoinstitutodosembargosdedeclaraçãocomoumrecurso(art.1.022do CPC), ao passo que o direito alemão trata como simples requerimento o pedido de correção dadecisão por obscuridade ou contradição (§ 320, ZPO). Nomais, a própria ideia de conceitos lógico-jurídicosapriori e universais deixa de lado o fato de que não é possível conceber a existência deconceitos jurídicos independentes de determinada ordem jurídica. Daí que a pretensão deuniversalidade conceitual e institucional vinculada à teoria geral como teoria universal não sesustenta.

    Emsegundolugar,pode-secogitardeteoriageralcomoteoriatransordenamental,istoé,umateoriaquetemporobjetivoconstruirosconceitossuscetíveisdeutilizaçãoemdeterminadosordenamentosjurídicos que contam com características semelhantes.9 Cuida-sede acepçãonotoriamente ligada aopositivismo jurídico kelseniano de Novecentos.10 Nessa linha, porém, a teoria geral terminaesfumaçando-senoâmbitodeumsimplesexercíciodecomparaçãojurídica.11

    Emterceirolugar,épossívelfalaremteoriageralcomoteoriatranssetorial,istoé,comoumateoriaencarregadadereconstruirosfundamentoseosconceitosquesãocomunsaosdiferentessetoresdeummesmoordenamentojurídico.12Essaéumamaneiraapropriadadecompreenderosignificadode

  • umateoriageral–que,noentanto,nãonospareceadequadoparaviabilizaroestudodoprocesso.13

    Emboraatradiçãopossalegitimarousoemdeterminadoscontextosdaexpressãoteoriageraldoprocesso para uma melhor comunicação com a comunidade acadêmica,14 é certo que existemdiferençasfuncionaisentreoprocessocivileoprocessopenal15–issoparanãofalarmosnasdiferençasentreosprocessosjurisdicionaisenãojurisdicionais16–quedesautorizamsuateorizaçãoconjunta.Ecomoessasdiferençasfuncionaisacabamecoandonasgrandeslinhasdoprocessocivil,naformulaçãodos seus conceitos enaestruturação do processo como um todo, o ideal é que o processo civil sejateorizadoautonomamente.

    EssaéarazãopelaqualestevolumedenossoCursocuidaapenasdateoriadoprocessocivil.Neste,examinamososconceitosbásicosdoprocesso–jurisdição,ação,defesaeprocesso–naperspectivadoprocessocivil,bemcomoomodopeloqualonossonovoCódigodeProcessoCivilestáestruturadoparaprestaçãodatutelajurisdicionaldosdireitos.Nospróximosvolumesestudaremosatuteladosdireitosmedianteprocedimentocomumeatuteladosdireitosmedianteprocedimentosdiferenciados.

    footnotesfootnotes

    1

    FRANCESCOCARNELUTTI,SistemadelDirittoProcessualeCivile,v.I,p.3-6.

    2

    Com a publicação em 1974 do livro Teoria geral do processo, de ANTÔNIO CARLOS DE ARAÚJO CINTRA, ADAPELLEGRINIGRINOVEReCÂNDIDORANGELDINAMARCO,hojena30.ed.,2014.

    3

    FREDIEDIDIERJÚNIOR.Sobreateoriageraldoprocesso–essadesconhecida.

    4

    PIERLUIGICHIASSONI,L´indirizzoanaliticonella filosofialdeldiritto. I.Dabenthamakelsen,p.125-128ep.192-197;GUIDOFASSÒ,Storiadellafilosofiadeldiritto,v.III,atualizadaporCarlaFaralli,p.183-185.AexpressãogeneraljurisprudenceédevidaaJOHNAUSTIN,Theusesof thestudyof jurisprudence(1863),Theprovinceof jurisprudencedeterminedandtheusesofthestudyofjurisprudence,comintroduçãodeHerbertHart,p.367,cujanotóriainspiraçãoéauniversalunauthoritativeexpositoryjurisprudencedeJEREMYBENTHAM,Anintroductiontotheprinciplesofmoralsandlegislation (1789),editadopor J.H.BurnseHerbertHartecomensaiosdeF.RoseneHerbertHart,p.293-295,apontadacomoverdadeiracertidãodenascimentodateoriadodireito(PIERLUIGICHIASSONI,L´indirizzoanaliticonella filosofia del diritto, p. 15). A expressãoAllgemeineRechtslehreé própria do final de Oitocentos no âmbito daculturajurídicagermânicaepodeserencontrada,porexemplo,naobradeAugustThon,RechtsnormundsubjectivesRecht.

    5

    RICCARDOGUASTINI,Teoriadeldiritto–approcciometodologico,p.28.Nessalinha,FREDIEDIDIERJÚNIOR,Sobrea teoria geral do processo, p. 36 (“uma teoria é geral quando reúne enunciados que possuempretensão universal,invariável”)e64(“ateoriageraldoprocesso,teoriadoprocesso,teoriageraldodireitoprocessualouteoriadodireitoprocessual é uma disciplina jurídica dedicada à elaboração, à organização e à articulação dos conceitos jurídicosfundamentais(lógico-jurídicos)processuais.Sãoconceitoslógico-jurídicosprocessuaistodosaquelesindispensáveisàcompreensão jurídica do fenômenoprocessual, ondequerque ele ocorra. (...). A teoria geral doprocessopode sercompreendidacomouma teoriageral,poisosconceitos lógico-jurídicosprocessuais,quecompõemoseuconteúdo,têm pretensão universal. Convém adjetivá-la como ‘geral’ exatamente para que possa ser distinguida das teorias

  • individuaisdoprocesso,quetêmpretensãodeserviràcompreensãodedeterminadasrealidadesnormativas”).

    6

    RICCARDO GUASTINI, Teoria del diritto, p. 28. Sobre o estilo cientificista do jusnaturalismo racionalista,sinteticamente, NORBERTO BOBBIO, Teoria generale del diritto, p. 206; extensamente, FRANZ WIEACKER,PrivatrechtsgeschichtederNeuzeitunterbesondererBerücksichtingderdeutschenEntwicklung,p.249-347(hátraduçãoportuguesa:FRANZWIEACKER,Históriadodireitoprivadomoderno,trad.AntônioManuelHespanha,p.279-395).

    7

    JEREMYBENTHAM,Anintroductiontotheprinciplesofmoralsandlegislation,p.295.

    8

    RICCARDOGUASTINI,Teoriadeldiritto,p.28.

    9

    RICCARDOGUASTINI,Teoriadeldiritto,p.29.

    10

    ComoobservaHANSKELSEN,noprefácioàsuaTeoriageraldodireitoedoestado(1945),“ateoriaqueseráexpostana primeira parte deste livro é uma teoria geral doDireito positivo.O direito positivo é sempre oDireito de umacomunidadedefinida:oDireitodosEstadosUnidos,oDireitodaFrança,oDireitomexicano,oDireitointernacional.Conseguir uma exposição científica dessas ordens jurídicas parciais que constituem as comunidades jurídicascorrespondenteséointuitodateoriageraldoDireitoaquiexposta.Estateoria,resultadodeumaanálisecomparativadasdiversasordens jurídicaspositivas, forneceosconceitos fundamentaispormeiodosquaisoDireitopositivodeumacomunidadejurídicadefinidapodeserdescrito”(Teoriageraldodireitoedoestado,trad.LuísCarlosBorges,p.XXVII).

    11

    RICCARDOGUASTINI,Teoriadeldiritto,p.29.

    12

    RICCARDOGUASTINI,Teoriadeldiritto,p.31.Poressarazão,dadaanecessidadede transversalidadecomoalgoinerenteàcaracterizaçãodateoriageral,parece-nosinapropriadofalaremteoriageraldoprocessocivil(comoestá,porexemplo,emOVÍDIOBAPTISTADASILVAeFÁBIOGOMES,Teoriageraldoprocessocivil),porqueaíateoriageralacabasendoreportadaapenasaumúnicosetordadogmáticajurídica.

    13

    Contra, entendendo possível a existência de uma teoria geral do processo capaz de amalgamar o estudo doprocesso civil e do processo penal, FRANCESCOCARNELUTTI,Sistema del diritto processuale civile, p. 3-6;Diritto eprocesso, p. 47-48; ANTÔNIO CARLOS DE ARAÚJO CINTRA, ADA PELLEGRINI GRINOVER e CÂNDIDO RANGELDINAMARCO,Teoriageraldoprocesso,p.48;contra,entendendopossívelaexistênciadeumateoriageraldoprocessocapazdeenfeixarnãosóoestudodosprocessosjurisdicionaiscivil, trabalhistaepenal,mastambémdosprocessosnão jurisdicionais administrativo e legislativo, ELIO FAZZALARI, Istituzioni di diritto processuale, p. 67-69; FredieDidierJúnior,Sobreateoriageraldoprocesso,p.76.

    14

    Eprecisamentepor isso–para facilitarodiálogoacadêmico–umdenós intitulouumdeseus livrosanteriores

  • ©destaedição[2017]

    comoTeoria geral do processo, nada obstante o seu conteúdo facilmente denotasse se tratar de um livro voltadoespecificamenteparaa teoriadoprocesso civil (LuizGuilhermeMarinoni,Cursodeprocesso civil– teoria geral doprocesso,v.I).

    15

    O processo civil é ummeio para tutela adequada, efetiva e tempestiva dos direitosmediante processo justo. Odireitodeaçãoeodireitodedefesaestão, comoregra, emequilíbrio.Oprocessopenal, embora sirvaparaefetivarealização da pretensão punitiva alegada pelo Estado mediante processo justo, constitui em primeiro lugar umanteparo ao arbítrio do Estado e instrumento de salvaguarda da liberdade do acusado.As posições ocupadas pelodemandanteepelodemandadonãoestão, comoregra, emequilíbrio.Essasdiferenças funcionais entreoprocessocivil eoprocessopenaldemandamdiferentesadequações em termosde técnicaprocessualparapromoçãode suajustaestruturação.Nessalinha,frisandoasdiferençasentreoprocessocivileoprocessopenal,HEITORSICA,Velhosenovosinstitutosfundamentaisdodireitoprocessualcivil,p.432.

    16

    As diferenças são ainda mais flagrantes entre os processos jurisdicionais e os processos não jurisdicionais. Oprocesso legislativo,porexemplo,não temanecessidadede terminarcomumadecisão justificada,bastandocomomeio de sua legitimação a composição de maioria parlamentar. O processo judicial obedece à outra lógica: semdecisãojustificadanãoháexercíciolegítimodopoderestatal.

  • 2017-05-01

    ©destaedição[2017]

    NovoCursodeProcessoCivil-Volume1-Edição2017PARTEI-AJURISDIÇÃONOESTADOCONSTITUCIONAL

    PARTEI-AJURISDIÇÃONOESTADOCONSTITUCIONAL

  • 2017-05-01

    NovoCursodeProcessoCivil-Volume1-Edição2017PARTEI-AJURISDIÇÃONOESTADOCONSTITUCIONALINTRODUÇÃO

    Introdução

    Aindasãosustentadas,depoisdeaproximadamentecemanos,asteoriasdequeajurisdiçãotemafunçãodeatuaravontadeconcretadalei–atribuídaaChiovenda1–edequeojuizcriaanormaindividualparaocasoconcreto,relacionadacomateseda“justacomposiçãodalide”– formuladaporCarnelutti.2

    E issoapósaprópriaconcepçãodedireito tersidocompletamente transformada.A lei,quenaépocadoEstadolegislativovaliaemrazãodaautoridadequeaproclamava,independentementedasuacorrelaçãocomosprincípiosdejustiça,nãoexistemais.Alei,comoésabido,perdeuoseupostode supremacia e hoje é subordinada à Constituição.3 Agora é amarrada substancialmente aosdireitospositivadosnaConstituiçãoe,porisso,jáconstituislogandizerqueasleisdevemestaremconformidadecomosdireitosfundamentais,contrariandooqueantesacontecia,quandoosdireitosfundamentaisdependiamdalei.4

    AassunçãodoEstadoconstitucionaldeunovoconteúdoaoprincípiodalegalidade.Emprimeirolugar,esseevidenciouanecessidadedeodireitoser trabalhadocomoumproblemaquedemandaparaasuasoluçãoumempreendimentodecolaboraçãoentreolegislador,ojuizeadoutrina.5Emsegundo lugar,esseprincípio incorporouoqualificativo “substancial” paraevidenciarqueexigeaconformação da lei com a Constituição e, especialmente, com os direitos fundamentais. Não sepense,porém,queoprincípiodalegalidadesimplesmentesofreuumdesenvolvimento,trocando-sea lei pelas normas constitucionais, ou expressa apenas umamera “continuação” do princípio dalegalidade formal, característico do Estado legislativo. Na verdade, o princípio da legalidadesubstancial significa uma “transformação” que afeta as próprias concepções de direito e dejurisdiçãoe,assim,representaumaquebradeparadigma.6

    Seasteoriasdajurisdiçãoconstituemespelhosdosvaloresedasideiasdasépocase,assim,nãopodemserditasequivocadas–umavezqueissoseriaumerroderivadodeumafalsacompreensãodehistória–,certamentedevemserdeixadasdeladoquandonãomaisrevelamafunçãoexercidapelojuiz.IssosignificaqueasteoriasdeChiovendaeCarnelutti,senãopodemsercontestadasemsua lógica, certamente não têm – nem poderiam ter – mais relação alguma com a realidade doEstadocontemporâneo.Porisso,sãoimportantesapenasquandosefazumaabordagemcríticadodireitoatual,considerando-seasuarelaçãocomosvaloreseconcepçõesdoinstanteemqueforamconstruídas.Assim,antesdeconstituíremteoriascapazesdedarlugaràcompreensãodoprocessocivilnoEstadoConstitucional,pertencemapenasàhistóriadaculturajurídicaprocessualcivil.

    A transformação da concepção de direito fez surgir um positivismo crítico, que passou adesenvolver teorias destinadas a dar ao juiz a real possibilidade de afirmar o conteúdo da leicomprometidocomaConstituição7medianteadequadainterpretaçãoeidôneaaplicaçãodaordemjurídica.8 Nessa linha podem ser mencionadas a teoria das normas, inclusive no que tange aopróprio conceito de norma e à incorporação da teorização dos princípios e dos postuladosnormativos em seu âmbito, as teorias dos direitos fundamentais, a técnica da interpretação deacordo,asnovastécnicasdecontroledaconstitucionalidade–queconferemaojuizumafunçãoem

  • ©destaedição[2017]

    grandemedida“produtiva”,enãomaisapenasdedeclaraçãodeinconstitucionalidade–eaprópriapossibilidadedecontroledainconstitucionalidadeporomissãonocasoconcreto.

    Ora, époucomaisdoqueevidenteque isso tudo fez surgir outromodelode jurisdição, sendoapenasnecessário,agora,queodireitoprocessualcivilsedêcontadissoeproponhaumconceitodejurisdiçãoquesejacapazdeabarcaranovarealidadequesecriou.

    footnotesfootnotes

    1

    GIUSEPPECHIOVENDA,Instituiçõesdedireitoprocessualcivil,v.2,p.55.

    2

    FRANCESCO CARNELUTTI, Sistema di diritto processuale civile, v. 1, p. 40. Tão importantes e tradicionais como estas, podem ser

    mencionadas,nadoutrinaalemã,asteoriasdeBERNARDWINDSCHEID,DieActio–AbwehrgegenDr.TheodorMuther,p.1-3,eOSCAR

    BÜLOW, Die Lehre von den Prozesseinreden und die Prozessvoraussetzungen, p. V-VII, e Klage und Urteil – Eine Grundfrage des

    VerhältnisseszwischenPrivatrechtundProzess,p.68ess.

    3

    VerMarburyversusMadison,5U.S(1Cranch)137(1803).

    4

    JAMESFLEMING,Constructingthesubstantiveconstitution.TexasLawReview,v.72,n.2,p.211.

    5

    GUSTAVOZAGREBELSKY,IlDirittoMite,p.45.

    6

    LUIGIFERRAJOLI,Derechosfundamentales.Losfundamentosdelosderechosfundamentales,p.53.

    7

    Nessesentido,LUIGIFERRAJOLI,Derechoyrazón.

    8

    RICCARDOGUASTINI,InterpretareeArgomentare,p.13ess.;PIERLUIGICHIASSONI,Tecnicadell´InterpretazioneGiuridica,p.11ess.;

    HumbertoÁvila,TeoriadosPrincípios,p.50ess.

  • 2017-05-01

    NovoCursodeProcessoCivil-Volume1-Edição2017PARTEI-AJURISDIÇÃONOESTADOCONSTITUCIONAL1.AINFLUÊNCIADOSVALORESDOESTADOLIBERALDEDIREITOEDOPOSITIVISMOJURÍDICOSOBREOSCONCEITOS

    CLÁSSICOSDEJURISDIÇÃO

    1.AinfluênciadosvaloresdoEstadoLiberaldeDireitoedo

    positivismojurídicosobreosconceitosclássicosdejurisdição

    1.1.AconcepçãodedireitonoEstadoLiberal

    O Estado Liberal de Direito, diante da necessidade de frear os desmandos do regime que lheantecedeu,erigiuoprincípiodalegalidadecomofundamentoparaasuaimposição.Esseprincípioelevou a lei a um ato supremo, objetivando eliminar as tradições jurídicas do absolutismo e doancienrégime. A administração e os juízes, a partir dele, ficaram impedidos de invocar qualquerdireitoourazãopúblicaquesechocassecomalei.1

    O princípio da legalidade, porém, constituiu apenas a forma, encontrada pela burguesia, desubstituiroabsolutismodoregimedeposto.Éprecisoteremcontaqueumadasideiasfundamentaisimplantadas pelo princípio da legalidade foi a de que uma qualidade essencial de toda lei é pôrlimitesàliberdadeindividual.Parahaverintromissãonaliberdadedosindivíduos,serianecessáriaumaleiaprovadacomacooperaçãodarepresentaçãopopular.Nãobastariaumaordenaçãodorei.Como adverte Carl Schmitt, para entender esse conceito de lei (lei como limite da liberdade) énecessário considerar a situação política em que se originou. Na luta política contra um fortegovernomonárquico,acooperaçãodarepresentaçãopopulartinhaqueseracentuadacadavezcommaisforça,atéconverter-seemcritériodecisivodeconceituaçãodalei.Detalmodoaleipassouaserdefinidacomooatoproduzidomedianteacooperaçãodarepresentaçãopopular.Eoimpériodaleiconverteu-seemimpériodarepresentaçãopopular.2

    NessesentidosepodedizerquenaEuropacontinentaloabsolutismodoreifoisubstituídopeloabsolutismoda assembleia parlamentar.Daí a impossibilidade de confundir oRule of Law inglêscom o princípio da legalidade.3 O parlamento inglês eliminou o absolutismo, ao passo que aassembleia parlamentar do direito francês, embora substituindo o rei, manteve o absolutismoatravésdoprincípiodalegalidade.4Diantedisso,egrossomodo,nodireitoinglêsalei(oStatutoryLaw) pôde ser conjugada com outros valores e elementos, dando origem a um sistema jurídicocomplexo–oCommonLaw–,enquantonospaísesmarcadospeloprincípiodalegalidadeodireitofoireduzidoàlei.5

    Se–comodizCarlSchmitt–naidealizaçãodoEstadodeDireitoLiberalaburguesiaadotouumconceitodeleiquerepousaemumavelhatradiçãoeuropeia–herançadafilosofiagrega,quepassouà IdadeModernaatravésdaescolástica–, conformeoquala leinãoéumavontadedeumoudemuitoshomens,masumacoisageral-racional(nãoévoluntas,masratio),6noprocessohistóricodeafirmaçãodaburguesia,estanoçãodeleicedeuespaçoparaoseuoposto,istoé,paraanoçãodeleidefendida pelos representantes do absolutismo de Estado, segundo a qual, na fórmula clássicacunhadaporHobbes,auctoritas,nonveritas facit legem– a leiévontade,nãovaleporqualidadesmoraiselógicas,masprecisamentecomoordem.

    Oprincípiodalegalidade,assim,acabouporconstituirumcritériodeidentificaçãododireito:o

  • direitoestariaapenasnanormajurídica,cujavalidadenãodependeriadesuacorrespondênciacomajustiça,massomentedetersidoproduzidaporumaautoridadedotadadecompetêncianormativa.Nessa linha,Ferrajoliqualificaoprincípioda legalidadecomometanormadereconhecimentodasnormasvigentes,acrescentandoque,segundoesseprincípio,umanormajurídicaexisteeéválidaapenasemrazãodasformasdesuaprodução.Oumelhor,nessadimensãoajuridicidadedanormaestá desligada de sua justiça intrínseca, importando somente se foi editada por uma autoridadecompetenteesegundoumprocedimentoregular.7

    No Estado Liberal de Direito, os parlamentos da Europa continental reservaram a si o poderpolítico mediante a fórmula do princípio da legalidade. Diante da hegemonia do parlamento, oExecutivoeoJudiciárioassumiramposiçõesóbviasdesubordinação:oExecutivosomentepoderiaatuarseautorizadopelaleienosseusexatoslimites,sendoqueoJudiciáriopoderiaapenasaplicá-la, sem mesmo poder interpretá-la. O Legislativo, assim, assumia uma nítida posição desuperioridade.Nateoriadaseparaçãodospoderes,acriaçãododireitoeratarefaúnicaeexclusivadoLegislativo.

    ParaMontesquieu–autordaobra8queidealizouateoriadaseparaçãodospoderesrecepcionadapeloEstadoliberal–,o“poderdejulgar”deveriaserexercidopormeiodeumaatividadepuramenteintelectual,meramentecognitivae logicista,nãoprodutivade “direitosnovos”.Essaatividadenãoseria limitada apenas pela legislação,mas tambémpela atividade executiva, que teria também opoderdeexecutarmaterialmenteasdecisõesqueconstituemo “poderde julgar”.Nessesentido,opoder dos juízes ficaria limitado a afirmar o que já havia sido dito pelo Legislativo, pois ojulgamentodeveria ser apenas “um texto exatoda lei”.9 Por isso,Montesquieu acabou concluindoqueo“poderdejulgar”era,dequalquermodo,um“podernulo”(enquelquefaçon,nulle).10

    AntesdoEstadolegislativo,oudoadventodoprincípiodalegalidade,odireitonãodecorriadalei, mas sim da jurisprudência e das teses dos doutores, e por esse motivo existia uma grandepluralidadedefontes,procedentesdeinstituiçõesnãosódiversas,mastambémconcorrentes,comooimpério,aigrejaetc.AcriaçãodoEstadolegislativo,portanto,implicousignificativatransformaçãodasconcepçõesdedireitoedejurisdição.11

    A transformação operada pelo Estado legislativo teve a intenção de conter os abusos daadministraçãoedajurisdição.Comisso,obviamente,nãoseestádizendoqueosistemaanterioraodoEstadolegislativoeramelhor.NãohádúvidadequeasupremaciadaleisobreoJudiciárioteveoméritodeconterasarbitrariedadesdeumcorpodejuízesimoralecorrupto.

    OsjuízesanterioresàRevoluçãoFrancesaeramtãocomprometidoscomopoderfeudalqueserecusavam a admitir qualquer inovação introduzida pelo legislador que pudesse prejudicar oregime.Oscargosdejuízesnãoapenaseramhereditários,comotambémpodiamsercompradosevendidos,sendodaíoriundaaexplicaçãonaturalparaovínculodostribunaisjudiciárioscomideiasconservadoras e próprias do poder instituído e para a consequente repulsa devotada aosmagistradospelasclassespopulares.12

    Montesquieu,aoafirmaratesedequenãopoderiahaverliberdadecasoo“poderdejulgar”nãoestivesse separadodospoderesLegislativoeExecutivo,partiadasuaprópriaexperiênciapessoal,pois conheciamuitobemos juízesdaFrançada suaépoca.MontesquieunasceuCharles-LouisdeSecondatemumafamíliademagistrados,tendoherdadodoseutionãoapenasocargodePrésidentàmortiernoParlementdeBordeaux,bemcomoonomedeMontesquieu.13

    Maselenãosedeixouseduzirpelasfacilidadesdessaposiçãosocial,comoaindateveacoragemdedenunciarasrelaçõesespúriasdos juízescomopoder,nessadimensãoidealizandoateoriada

  • separação dos poderes,14 e assim propondo que os magistrados deveriam se limitar a dizer aspalavrasdalei.15

    Porém, como o direito foi resumido à lei e a sua validade conectada exclusivamente com aautoridadeda fontedasuaprodução,restou impossívelcontrolarosabusosda legislação.Sea leivaleemrazãodaautoridadequeaedita,independentementedasuacorrelaçãocomosprincípiosdejustiça,nãohá comodirecionaraproduçãododireitoaos reais valoresda sociedade.16Daí se tercomo certoque a teoriadeMontesquieu, embora se voltando contra os abusosdoancien régime,lançouassementesdatiraniadoLegislativo.17

    Poroutrolado,oprincípiodalegalidadetinhaestreitaligaçãocomoprincípiodaliberdade,valorperseguidopeloEstadoliberalapartirdasideiasdequeaAdministraçãoapenaspodiafazeroquealeiautorizasseedequeoscidadãospodiamfazertudoaquiloquealeinãovedasse.ConformeanotaCarlSchmitt,daideiafundamentaldaliberdadeburguesa–proteçãodoscidadãoscontraosabusosdo poder público – deduzem-se duas consequências, que integram os dois princípios típicos doEstadodeDireitoLiberal.Primeiro,umprincípiodedistribuição:aesferadeliberdadedoindivíduoésupostacomoumdadoanterioraoEstado,restandoaliberdadedoindivíduoilimitadaaprincípio,enquanto a faculdade do Estado de invadi-la é limitada a princípio. Segundo, um princípio deorganização, que serve para pôr em prática aquele princípio de distribuição: o poder do Estado(limitadoemprincípio)reparte-seeencerra-seemumsistemadecompetênciascircunscritas.18

    O império da lei, como instrumento a serviço da liberdade burguesa, ganha conteúdo emcontraposiçãoàideiadeimpériodehomens.Impériodaleisignifica,antesdetudo,queoprópriolegislador está vinculado às leis que edita. A vinculação do legislador à lei só é possível, todavia,enquantoa leiéumanormacomcertaspropriedades.19Essassãosintetizadasnaexpressãoda leigeral e abstrata. Paranão violar a liberdade e a igualdade – formal – dos cidadãos, a lei deveriaguardar as características da generalidade e da abstração. A norma não poderia tomar emconsideração alguém em específico ou ser feita para determinada hipótese. A generalidade erapensadacomogarantiade imparcialidadedopoderperanteoscidadãos–que,porserem “iguais”,deveriamsertratadossemdiscriminação–eaabstraçãocomogarantiadaestabilidade–delongavida–doordenamentojurídico.20

    Aigualdade,quenãotomavaemcontaavidarealdaspessoas,eravistacomosimplesprojeçãoda garantia da liberdade, isto é, da não discriminação das posições sociais, pouco importando seentreelasexistissemgritantesdistinçõesconcretas.OEstadoliberaltinhapreocupaçãocomadefesadocidadãocontraaseventuaisagressõesdaautoridadeestatalenãocomasdiferentesnecessidadessociais.21 A impossibilidade de o Estado interferir na sociedade,22 demodo a proteger as posiçõessociaismenosfavorecidas,constituíaconsequêncianaturaldasuposiçãodequeparaseconservaraliberdadedetodoseranecessárionãodiscriminarninguém,poisqualquertratamentodiferenciadoeravistocomovioladordaigualdade–logicamenteformal.23

    Ademais,paraodesenvolvimentoda sociedadeemmeioà liberdade, aspirava-se aumdireitoprevisível ou à chamada “certeza do direito” – aí entendida como garantia de certeza de umsignificado prévio e determinado atribuído à norma.24 Desejava-se uma lei abstrata, que pudessealbergarquaisquersituaçõesconcretasfuturas,eassimeliminasseanecessidadedaediçãodenovasleis e especialmente a possibilidade de o juiz, ao aplicá-la, ser levado a tomar em contaespecificidadesprópriasecaracterísticasdedeterminadasituação.

    Ageneralidadeeaabstraçãoevidentementetambémapontavamparaaimpossibilidadedeojuizaplicaraleiouconsiderarcircunstânciasespeciaisouconcretas.Comoéóbvio,denadaadiantaria

  • uma leimarcada pela generalidade e pela abstração se o juiz pudesse conformá-la às diferentessituaçõesconcretas.Isso,segundoosvaloresliberais,obscureceriaaprevisibilidadeeacertezadodireito, pensados como indispensáveis para a manutenção da liberdade. Compreende-se, nessadimensão, a razão pela qual Montesquieu disse que, se “os julgamentos fossem uma opiniãoparticulardo juiz,viver-se-ianasociedadesemsaberprecisamenteoscompromissosquenelasãoassumidos”.25NãohádúvidadequeessaafirmaçãodeMontesquieurevelauma ideologiapolíticaligada à ideia de que a liberdade política, vista como segurança psicológica do sujeito, realiza-semediantea“certezadodireito”.26

    Mas tudo isso leva ainda às questões da sistematicidade e da plenitude do direito. O ideal dasupremaciado legislativoeraodequea leieoscódigosdeveriamser tãoclarosecompletosqueapenas poderiam gerar uma única interpretação, inquestionavelmente correta.27 O resultado dainterpretaçãosópoderiaserumúnicoresultadopossível.28Aleierabastanteesuficienteparaqueojuizpudessesolucionarosconflitos29semqueprecisasserecorreràsnormasconstitucionais.

    ComoexplicaZagrebelsky,“combasenessaspremissasaciênciadodireitopodiaafirmarqueasdisposições legislativas nada mais eram do que partículas constitutivas de um edifício jurídicocoerenteeque,portanto,ointérpretepodiaretirardelas,indutivamenteoumedianteumaoperaçãointelectiva, as estruturas que o sustentavam, isto é, os seus princípios. Esse é o fundamento dainterpretação sistemática e da analogia, dosmétodos de interpretação que, na presença de umalacuna, isto é, da falta de uma disposição expressa para resolver uma controvérsia jurídica,permitiam individualizar a norma precisa em coerência com o sistema. A sistematicidadeacompanhava,portanto,aplenitudedodireito”.30

    1.2.Opositivismojurídico

    Opositivismo jurídicoé solidárioaessaconcepçãodedireito,pois,partindoda ideiadequeodireitoseresumeàleie,assim,éfrutoexclusivodascasaslegislativas,limitaaatividadedojuristaàdescriçãodaleieàbuscadavontadedolegislador.31

    Opositivismojurídiconadamaisédoqueumatentativadeadaptaçãodopositivismofilosóficoaodomíniododireito.32 Imaginou-se, soborótulodepositivismo jurídico,queseriapossível criaruma ciência jurídica a partir dosmétodos das ciências naturais, basicamente da objetividade daobservaçãoedaexperimentação.Seoinvestigadordasciênciasnaturaispoderealizarexperimentoscom base em procedimentos lógicos até concluir a respeito da verdade ou da falsidade de umaproposição,supôs-sequeatarefadojuristapoderiasersubmetidaaessamesmalógica.Nessalinha,osjuristassemprechegariamaumresultadocorretooufalsonadescriçãododireitopositivo,comosefísicosouquímicosfossem.

    A mera observação e descrição da norma constituem o ponto caracterizador do positivismojurídico,quedessaformapodeservistocomoumaciênciacognoscitivaouexplicativadeumobjeto,istoé,danormapositivada.Porconstituirexplicaçãodanorma,opositivismodiferenitidamentedaatividadedeproduçãododireito, oudaatividadenormativa, pois a tarefado juristapositivista écompletamente autônoma em relação à atividade de produção do direito, sendo simplesmentedescritiva, ao contrário do que acontecia à época em que a atividade da jurisprudência e dosdoutorescriavaodireito.33

    Opositivismonãosepreocupavacomoconteúdodanorma,umavezqueavalidadedaleiestavaapenasnadependênciadaobservânciadoprocedimentoestabelecidoparaasuacriação.Alémdomais, tal forma de pensar o direito não via lacuna no ordenamento jurídico, afirmando a sua

  • plenitude. A lei, compreendida como corpo de lei ou como Código, era dotada de plenitude e,portanto,sempreteriaquedarrespostaaosconflitosdeinteresses.

    Contudo,opositivismojurídiconãoapenasaceitouaideiadequeodireitodeveriaserreduzidoàlei, mas também foi o responsável por uma inconcebível simplificação das tarefas e dasresponsabilidades dos juízes, promotores, advogados, professores e juristas, limitando-as a umaaplicação mecânica das normas jurídicas na prática forense, na universidade e na elaboraçãodoutrinária.34

    Issosignificaqueopositivismojurídico,originariamenteconcebidoparamanteraideologiadoEstado liberal, transformou-se, elemesmo, em ideologia.35 Nessa dimensão, passou a constituir abandeiradosdefensoresdostatusquooudosinteressadosemmanterasituaçãoconsolidadapelalei.Issopermitiuqueasociedadesedesenvolvessesobumassépticoeindiferentesistemalegaloumedianteaproteçãodeumaleique,semtratardemodoadequadoosdesiguais,tornouosiguaisemcarneeossomaisdesiguaisainda.36

    1.3.Ajurisdiçãocomofunçãodirigidaatutelarosdireitossubjetivosprivadosviolados

    Seécertoqueajurisdição,nofinaldoséculoXIX,encontrava-setotalmentecomprometidacomosvaloresdoEstadoliberaledopositivismojurídico,passaaimportaragoraarelaçãoentreessesvalores e a concepção de jurisdição como função voltada a dar atuação aos direitos subjetivosprivadosviolados.

    Osprocessualistasquedefiniramessaideiadejurisdiçãoestavamsobainfluênciaideológicadomodelo do Estado Liberal de Direito e, por isso, submetidos aos valores da igualdade formal, daliberdadeindividualmedianteanãointerferênciadoEstadonasrelaçõesprivadasedoprincípiodaseparaçãodepoderescomomecanismodesubordinaçãodoExecutivoedoJudiciárioàlei.37

    Naépoca,naáreadeinfluênciafranco-italiana,atuavaachamadaescolaexegética,que,alémdeter sido influenciada pelo iluminismo, foi acentuadamente marcada pelo positivismo jurídico e,assim,pelaideiadesubmissãodojuizàlei.38

    A tendência de defesa da esfera de liberdade do particular aliada à tese de que apenas asupremaciadaleiseriacapazdeprotegeressesdireitosderamnaturalmenteàjurisdiçãoafunçãodeprotegerosdireitossubjetivosdosparticularesmedianteaaplicaçãodalei.

    Maisprecisamente,ajurisdiçãotinhaafunçãodeviabilizarareparaçãododano,umavezque,nessa época, não se admitia que o juiz pudesse atuar antes de uma ação humana ter violado oordenamentojurídico.SealiberdadeeragarantidanamedidaemqueoEstadonãointerferianasrelaçõesprivadas,obviamentenãosepodiadaraojuizopoderdeevitarapráticadeumacondutasoboargumentodequeelapoderiaviolaralei.Naverdade,qualqueringerênciadojuiz,semquehouvessesidovioladaumalei,seriavistacomoumatentadoàliberdadeindividual.

    Giuseppe Manfredini – um doutrinador italiano da época –, ao escrever, em 1884, o seuProgramma del corso di diritto giudiziario civile, destacou entre os princípios informadores daproceduracivileaquelequesintetizariaanecessidadedeseconferiraosdireitosprivadosamáximagarantia social com o mínimo de sacrifício de liberdade individual. Disse Manfredini que “cadarestrição à liberdade do indivíduo é superior ao poder de todas as leis positivas humanas, e queconsequentementetambémade‘procedura’deverespeitaresselimite”.39

    Não é de se admirar, assim, que o conceito de jurisdição, nessa época, não englobasse a

  • necessidadedetutelapreventiva,ficandorestritaàreparaçãododireitoviolado.40

    Mas a conotação repressiva da jurisdição não foi simplesmente influenciada pelo valor daliberdade individual, pois o princípio da separação dos poderes também serviu para negar àjurisdiçãoopoderdedartutelapreventivaaosdireitos,umavezque,noquadrodesteprincípio,afunçãodeprevençãodiantedaameaçadenãoobservânciadaleieradaAdministração.Esseseriaum poder exclusivo de “polícia administrativa”, evitando-se, desse modo, uma sobreposição depoderes:aAdministraçãoexerceriaaprevençãoeoJudiciárioapenasarepressão.

    Ademais,aideiadeigualdadeformal,aorefletiraimpossibilidadedetratamentodiferenciadoàsdiferentesposiçõessociaiseaosbens,unificouovalordosdireitos,permitindoasuaexpressãoemdinheiro e, assim, que a jurisdição pudesse conferir a todos eles um significado em pecúnia. Foiquando surgiu a ideia de reparação do dano pelo equivalente, o que obviamente também teveinfluênciasobreaconcepçãodejurisdiçãocomofunçãodirigidaadartutelaaosdireitosprivadosviolados.

    Ora, se todos os direitos podiam ser convertidos em pecúnia, e a jurisdição então não sepreocupava com a tutela da integridade do direito material, mas apenas em manter emfuncionamento os mecanismos de mercado, logicamente não era necessária a prestaçãojurisdicionalpreventiva,bastandoaquelaquepudessecolocarnobolsodoparticularoequivalentemonetário.

    1.4.Dateoriadaproteçãodosdireitossubjetivosprivadosàteoriadaatuaçãodavontadedalei

    Apósaanáliserealizadanoitemanterior,cabeverificaroqueseparaeoqueidentificaasteoriasdaproteçãodosdireitossubjetivosprivadosedaatuaçãodavontadedalei.

    Aatuaçãodavontadedaleirevelaapreocupaçãoemsalientarqueajurisdiçãoexerceumpodervoltadoàafirmaçãododireitoobjetivooudoordenamentojurídico.Oobjetivodajurisdição,nessalinha,passaa ter,antesde tudo,umaconotaçãopublicista,enãoapenasumcompromissocomaproteçãodosparticulares,istoé,umcompromissoprivatista.

    SãodeLodovicoMortaraasprimeirasliçõesendereçadasaessaconcepçãodejurisdição,asquaislevaramosprópriosprocessualistaschiovendianosaconfessaroseupapelde juristade transiçãoentreaescolaexegéticaeaescolahistórico-dogmática,fundadaporGiuseppeChiovenda.Épossíveldizer que o Commentario del codice e delle leggi di procedura civile41 de Mortara afirmou, pelaprimeiravez,anaturezapúblicadoprocessocivil.ComoreconheceuChiovenda,42ograndeméritodeMortarafoiodeterpensadooprocessocivilcomoinstitutodedireitopúblico,“oqualfoiopontodepartidadosprogressossucessivamenteobtidosnonossocampo”.43

    Não obstante, ainda que o pensamento de Mortara tenha sido importante para afirmar anaturezapúblicadoprocesso,ofatoéqueasuaconcepçãodejurisdição,aofrisaradefesadodireitoobjetivo,nãoselivroudopesodosvaloresdoEstadoliberal,mantendo-seabsolutamentefielàideiadequeojuiz,diantedasuaposiçãodesubordinaçãoaolegislador,deveriaapenasatuaravontadedalei.

    QuandoMortaraafirmaqueajurisdiçãotemofimdedefenderodireitoobjetivo,ficaclaroqueesseobjetivodeveserrealizadomedianteadeclaraçãoouaatuaçãodalei.Portanto,adoutrinadeMortara se diferenciou, em relação às lições dosprocessualistas que sustentarama concepçãodejurisdiçãovistanoitemanterior,apenasemrazãodeterreveladoanaturezapúblicadoprocesso,massemantevepresaaosvaloresculturaiseideológicosdoEstadoliberal.

  • 1.5.AteoriadeChiovenda:ajurisdiçãocomoatuaçãodavontadeconcretadalei

    GiuseppeChiovenda,em1903,proferiuumaconferência–quesetornoufamosanosestudosdoprocesso civil – demonstrando a autonomia conceitual da ação em face do direito subjetivomaterial.44Essaconferência,aorelativamentedesvincularaaçãododireitomaterial,marcouofimdaeraprivatistadoprocessoereafirmoua tendência– já inauguradaporMortara–dorealcedanaturezapublicistadoprocessocivil.

    A jurisdição,mergulhada no sistema de Chiovenda, é vista como função voltada à atuação davontadeconcretadalei.SegundoChiovenda,ajurisdição,noprocessodeconhecimento,“consistenasubstituição definitiva e obrigatória da atividade intelectual não só das partes, mas de todos oscidadãos, pela atividade intelectual do juiz, ao afirmar existente ou não existente uma vontadeconcretadaleiemrelaçãoàspartes”.45

    Chiovenda chegou a dizer que, como a jurisdição significa a atuação da lei, “não pode haversujeição à jurisdição senão onde pode haver sujeição à lei”.46 Essa passagem da doutrinachiovendianaébastanteexpressivanosentidodequeoverdadeiropoderestatalestavanaleiedequeajurisdiçãosomentesemanifestavaapartirdarevelaçãodavontadedolegislador.

    É verdade que Chiovenda afirmou que a função do juiz é aplicar a vontade da lei “ao casoconcreto”.Comisso,noentanto,jamaisdesejoudizerqueojuizcriaanormaindividualouanormadocasoconcreto,àsemelhançadoquefizeramCarneluttietodososadeptosdateoriaunitáriadoordenamentojurídico.Lembre-sedeque,paraKelsen–certamenteograndeprojetordessaúltimateoria–,ojuiz,alémdeaplicaralei,criaanormaindividual(ouasentença).47

    Chiovendaéumverdadeiroadeptodadoutrinaque, inspiradano iluminismoenosvaloresdaRevoluçãoFrancesa,separavaradicalmenteasfunçõesdolegisladoredojuiz,oumelhor,atribuíaao legisladoracriaçãododireitoeao juizasuaaplicação.Recorde-seque,nadoutrinadoEstadoliberal, aos juízes restava simplesmenteaplicara leiditadapelo legislador.Nessaépoca,odireitoconstituíaasnormasgerais,istoé,alei.Portanto,oLegislativocriavaasnormasgeraiseoJudiciárioasaplicava.EnquantooLegislativoconstituíaopoderpolíticoporexcelência,oJudiciário,vistocomdesconfiança,resumia-seaumcorpodeprofissionaisquenadapodiacriar.48

    Demodoquenãosepodeconfundiraplicaçãodanormageralaocasoconcretocomcriaçãodanormaindividualdocasoconcreto.Quandosesustenta,nalinhadaliçãodeKelsen,queojuizcriaanormaindividual,admite-sequeodireitoéoconjuntodasnormasgeraisedasnormasindividuaise,porconsequência,queodireitotambémécriadopelojuiz.49

    Emboraadoutrinadacriaçãodanormaindividualnãosignifiquequeojuiznãoestejapresoaotexto da lei – como ficará claro quando se estudar a concepção de jurisdição de Carnelutti –, éinegávelquetaldoutrina,aosustentarqueojuizcriaanormaindividual,representouumacríticaàposiçãoqueenxergavanafunçãodojuizumasimplesaplicaçãodasnormasgerais.

    Contudo, não se pode obscurecer que a doutrina de Chiovenda deu origem a uma escola quedesvinculouoprocessododireitomaterial,manchando-secomcaracterísticasqueadiferenciaramda escola exegética. Porém, os princípios básicos da escola chiovendiana – sobre os quais, aliás,formaram-se a moderna doutrina processual italiana e a doutrina processual brasileira,especialmenteaquela ligadaà formaçãodoCódigoBuzaidde1973– foram inspiradosnomodeloinstitucional do Estado de Direito de matriz liberal, revelando, de tal modo, uma continuidadeideológicaemrelaçãoaopensamentodosjuristasdoséculoXIX.50

  • Amudançaqueseverificouemrelaçãoànaturezadoprocesso,quedealgopostoaserviçodosparticularespassouaservistocomomeiopeloqualseexprimeaautoridadedoEstado,nadateveaver como surgimentodeuma ideologiadiversada liberal, emuitomenos comuma tentativadeinserçãodoprocessocivilemumadimensãosocial,constituindoapenasoresultadodaevoluçãodaculturajurídica.51

    Deixe-seclaroqueaescolachiovendiana,aindaquepreocupadacoma investigaçãodasraízeshistóricas dos institutos processuais, bem como com uma maior problematização da dogmáticaprocessualcivil,jamaischegouaquestionar,porexemplo,oacessodoscidadãosaoPoderJudiciárioeaefetividadedosprocedimentosparaatenderaosdireitosdasclassesdesprivilegiadas.

    Comoestáclaro,aescolachiovendiana,apesardetercontribuídoparadesenvolveranaturezapublicistadoprocesso,manteve-sefielaopositivismoclássico.

    1.6.AdoutrinadeCarnelutti:ajustacomposiçãodalide

    Carneluttiatribuiuàjurisdiçãoafunçãodejustacomposiçãodalide,entendidacomooconflitodeinteressesqualificadopelapretensãodeumepelaresistênciadooutrointeressado.52A lide,nosistemadeCarnelutti,ocupaolugardaaçãonosistemachiovendiano.

    Comovisto,Chiovenda,aodesenvolveroestudodaação,demonstrouasuarelativaautonomiaemrelaçãoaodireitomaterial.Porém,essetrabalhodeseparaçãoentreaaçãoeodireitosubjetivomaterial teve o nítido objetivo de demonstrar a superação da concepção privatista de processo.Como fez questão de frisar Cristina Rapisarda, a teoria chiovendiana da jurisdição, como funçãovoltadaàatuaçãodavontadeconcretadalei,eraestritamenteconexa,noplanoconceitual,comoprincípio da autonomia da ação.53 Ou seja, se a ação não se confunde com o direito material,constituindo um poder de provocar a atividade do juiz, é lógico que essa atividade é voltada àatuaçãodaleienãoàrealizaçãododireitomaterial.Demodoqueoconceitochiovendianodeaçãose colocou ao centro do sistema que revelou a natureza publicista do processo. A partir desseconceito,ajurisdiçãofoi,porconsequência,pensadanoquadrodasfunçõesdoEstado,considerada,então,atripartiçãodospoderes.

    Carnelutti,entretanto,partiudaideiadelideentreduaspessoas–compreendidacomoconflitodeinteressesindividualou,maisprecisamente,marcadapelaideiadelitigiosidade,conflituosidadeoucontenciosidade–paradefiniraexistênciadejurisdição.Alide,dentrodosistemacarneluttiano,é característica essencial para a presença de jurisdição. Havendo lide, a atividade do juiz éjurisdicional,masnãohájurisdiçãoquandonãoexisteumconflitodeinteressesparaserresolvidoouumalideparasercompostapelojuiz.54

    ÉevidentequeoângulovisualdeCarneluttirevelaumacompreensãoprivatistadarelaçãoentrea lei, os conflitos e o juiz, além de uma imagem puramente individualista dos conflitos sociais.EnquantoChiovendaprocuravaaessênciada jurisdiçãodentrodoquadrodas funçõesdoEstado,Carneluttivianaespecialrazãopelaqualaspartesprecisavamdojuiz–noconflitodeinteresses–acaracterística que deveria conferir corpo à jurisdição. Carnelutti estava preocupado com afinalidadedaspartes;Chiovenda,comaatividadedo juiz.Por isso,épossíveldizerqueCarneluttienxergavaoprocessoapartirdeuminteresseprivadoeChiovendaemumaperspectivapublicista.

    Dequalquermaneira,afórmulada“composiçãodalide”tambémpodeseranalisadaapartirdaideia,queestápresentenosistemadeCarnelutti,dequealeié,porsisó,insuficienteparacomporalide,sendonecessáriaparatantoaatividadedojuiz.Asentença,nessalinha,integraoordenamento

  • jurídico,tendoamissãodefazerconcretaanormaabstrata,istoé,alei.Asentença,aotornaraleiparticularparaaspartes,comporiaalide.55

    Asconcepçõesde“justacomposiçãodalide”,deCarnelutti,ede“atuaçãodavontadeconcretadodireito”, elaborada por Chiovenda, são ligadas a uma tomada de posição em face da teoria doordenamento jurídico, ou melhor, à função da sentença diante do ordenamento jurídico. ParaChiovenda,afunçãodajurisdiçãoémeramentedeclaratória;ojuizdeclaraouatuaavontadedalei.Carnelutti,aocontrário,entendequeasentençatornaconcretaanormaabstrataegenérica,istoé,fazparticularaleiparaoslitigantes.

    ParaCarnelutti,asentençacriaumaregraounormaindividual,particularparaocasoconcreto,que passa a integrar o ordenamento jurídico, enquanto, na teoria de Chiovenda, a sentença éexterna (está fora) à ordem normativa, tendo a função de simplesmente declarar a lei, e não decompletaroordenamentojurídico.Aprimeiraconcepçãoéconsideradaadeptadateoriaunitáriaeasegunda,dateoriadualistadoordenamentojurídico,sendoqueessasteoriastambémsãochamadasdeconstitutiva(unitária)edeclaratória(dualista).

    Alguémpode indagar,diantedisso,seCarnelutti,quandoadereà teoriaunitária,admitequeasentençacriaumdireitoqueaindanãoexistia.Paratantoéprecisoesclarecerse,diantedateoriaunitária, devida especialmente a Kelsen, o qual afirma que o juiz produz uma norma jurídicaconcreta,desejou-se concluirqueo juizpode,aoproferira sentença, criarumanorma individualquenãotenhabaseemumanormajurídicajáexistente.

    Arespostanãoéanimadoraparaquempretendaveralgomaisnadefiniçãodejurisdição.ParaKelsentodoatojurídicoconstitui,emumsótempo,aplicaçãoecriaçãododireito,comexceçãodaConstituição e da execução da sentença, pois a primeira seria pura criação e a segunda puraaplicaçãododireito.56Porisso,olegisladoraplicaaConstituiçãoecriaanormageraleojuizaplicaanormageralecriaanormaindividual.57

    AteoriadeKelsenafirmaaideiadequetodanormatemcomobaseumanormasuperior,atésechegar à norma fundamental, que estaria no ápice do ordenamento. De modo que a normaindividual, fixada na sentença, liga-se necessariamente a uma norma superior. A norma individualfaria parte do ordenamento, ou teria natureza constitutiva, apenas por individualizar a normasuperiorparaaspartes.58

    Contudo,aoindividualizaranormasuperior,ojuizadeclara.Quandotornaanormaconcreta,ou compõea lideno sentidodadoutrinadeCarnelutti, faz apenasumprocessodeadequaçãodanorma–jáexistente–aocasoconcreto.Écertoqueanormajurídica,genéricaeabstrata,podeserconcretizadaaindaquesemanecessidadedoprocesso.Paratanto,bastaqueumfatoseenquadreperfeitamenteàprevisãodanormaabstrata.Masseissonãoocorre–atémesmoporquenãoéfácil,àprimeiravistaedecomumacordo,concluirseumfatoseadaptaàprevisãodanormaabstrata–,surgecomonecessáriaa jurisdiçãoparadizer seo fatoocorridoestáporelaalbergado.Medianteuma atividade de conhecimento do fato e de intelecção da norma, o juiz, ao proferir a sentença,individualizaanorma,tornando-aconcretaparaoslitigantes.

    Isso quer dizer que as concepções de que o juiz atua a vontade da lei e de que o juiz edita anormadocasoconcretobeberamnamesmafonte,poisasegunda,aoafirmarqueasentençaproduza norma individual, quer dizer apenas que o juiz, depois de raciocinar, concretiza a norma jáexistente,aqual,dessaforma,tambémédeclarada.59

    Quando os processualistas clássicos sustentam que a sentença fixa a lei do caso concreto,

  • obviamentenãoqueremdizerqueasentençanãoéfielàleiquepreexisteaoprocesso,masapenasque a sentença, após o processo ter encerrado – e produzido o que se chama de coisa julgadamaterial–,valecomoleiparaaspartes.Dizia,porexemplo,Calamandrei,jáemobramadura60–umdosmais importantes processualistas do século passado – que “a lei abstrata se individualiza porobradojuiz”.61Issoocorreriaapósotérminodoprocesso,quandoasentençanãopudessemaisserdiscutida,ocasiãoemquenãoseadmitiriamaisnemfaltadecertezanemconflitosobrearelaçãojurídicajulgada.Eisaliçãodoilustrejuristaitaliano:“Assimcomoaleivale,enquantoestáemvigor,nãoporquecorrespondaàjustiçasocial,senãounicamentepelaautoridadedequeestárevestida(duralexsedlex),assimtambémasentença,umavez transitadaemjulgado,valenãoporqueseja justa,senãoporquetem,paraocasoconcreto,amesmaforçadalei(lexspecialis).Emumcertoponto,jánãoélegalmentepossívelexaminarseasentençacorrespondeounãoàlei:asentençaéalei,ealeiéaqueojuizproclamacomotal.Mascomistonãosequerdizerqueapassagemàcoisajulgadacrieodireito:asentença (ouacoisa julgadamaterialoudeclaraçãodecerteza),nosistemada legalidade,temsemprecaráterdeclarativo,nãocriativododireito”.62

    Frise-sequeCalamandreiéadeptodateoriaunitáriadoordenamentojurídico,sustentandoquealeiseindividualizaatravésdasentença.Mas,aindaassim,nãonegaqueatarefajurisdicionaltenhafunçãodeclaratória.Aliás,afirmaexpressamenteque“aleivale,enquantoestáemvigor,nãoporquecorrespondaàjustiçasocial,senãounicamentepelaautoridadedequeestárevestida”.EssaafirmaçãodeCalamandreiéimprescindívelparasecompreenderedemonstrarqueaadesãoàteoriaunitárianãorepresenta,porsisó,qualquerrompimentocomopositivismoclássico.

    Deixe-se claro, portanto, que as concepções de Carnelutti e Calamandrei, apesar de filiadas àteoriaunitáriadoordenamento jurídico,não sedesligaramda ideiadequea funçãodo juiz estáestritamente subordinadaàdo legislador,devendodeclarara lei.Naverdade, adistinçãoentreaformulação de Chiovenda e as de Carnelutti e Calamandrei está em que, para a primeira, ajurisdição declara a lei, mas não produz uma nova regra, que integra o ordenamento jurídico,enquanto, para as demais, a jurisdição, apesar de não deixar de declarar a lei, cria uma regraindividualquepassaaintegraroordenamentojurídico.

    footnotesfootnotes

    1

    MARTINRAYMOND,Anouveausièclenouveauprocèscivil,p.40:“Cetteneutralitedecoulait,aumoinsdanslaprocéduresuiviedevant

    letribunalcivilrepresentantledroitcommunprocedural,delarepresentationobligatoiredespartiespardesavoués,successeursdes

    procureursd’AncienRegime.Laprocedureétaitfaiteparlesavoues.Lejugen’enconnaissaitqu’àl’occasiondesincidentsquiétaient

    portésdevant lui,circonstancerare,car lesavouéspréféraientreglerces incidentsenfamillie. (...)Lesavocatsnesesafissaientpas

    alorslesmainsàcesjeuxproceduriers.Laneutralitédujugeétaitfaitedefactivitédesavoues.Cetaituneneutralitédetouslesjours,

    coupéedequelquesincidentsrecueillisparderaresprofesseurs,etnonuneaffirmationdeprincipe”.

    2

    CARLSCHMITT,TeoríadelaConstitución,p.157.

    3

    A.V.DICEY,Introductiontothestudyofthelawoftheconstitution,p.202-203,caracterizaoruleoflawportrêsnotas:ausênciadepoder

    arbitrário,igualdadeperantealeie,porfim,ofatodequeosprincípiosgeraisdaConstituiçãoconstituemresultadosdodireitocomum,

    ouseja,revelam-senaformacomoostribunaisreconhecemdireitosindividuais.Ver,ainda,paraumestudocomparativodasnoções

    deruleoflaw,ÉtatdedroiteRechtstaat,MICHELROSENFELD,Theruleoflawandthelegitimacyofconstitutionaldemocracy,Southern

    CaliforniaLawReview,v.74,n.5,p.1307-1351;LUCHEUSCHLING,EtatdeDroit,Rechtsstaat,RuleofLaw.Nodireitobrasileiroe,em

    particular,diantedoprocessocivil,verDANIELMITIDIERO,ProcessocivileEstadoconstitucional.

  • 4

    GUSTAVOZAGREBELSKY,Alei,odireitoeaConstituição,textoapresentadonocolóquiocomemorativodoXXAniversáriodoTribunal

    Constitucional Português, realizado em Lisboa, em 28.11.2003. Sobre a importância da história constitucional, oumelhor, de uma

    história crítica para uma melhor compreensão do direito constitucional contemporâneo, ver GUSTAVO ZAGREBELSKY, Historia y

    Constitución(comintroduçãodeMIGUELCARBONELL).

    5

    GUSTAVOZAGREBELSKY,Elderechodúctil,p.25.

    6

    CARLSCHMITT,Teoríadelaconstitución,cit.,p.150.

    7

    LUIGIFERRAJOLI,Derechosfundamentales,cit.,p.52.

    8

    Del’espritdeslois(Doespíritodasleis),publicadapelaprimeiravezem1748.

    9

    MONTESQUIEU,Doespíritodasleis,p.158.

    10

    VerGIOVANNITARELLO,Storiadellaculturagiuridicamoderna(assolustismoecodificazionedeldiritto),p.291.

    11

    LUIGIFERRAJOLI,Pasadoefuturodelestadodederecho,Neoconstitucionalismo(s),p.15-17.

    12

    MAUROCAPPELLETTI, RepudiandoMontesquieu? A expansão e a legitimidade da “justiça constitucional”,Revista da Faculdade de

    DireitodaUFRGS,v.20,p.268.

    13

    Idem,p.269.

    14

    NaobraDoespíritodasleis.

    15

    A Lei Revolucionária de agosto de 1790 afirmou expressamente que “os tribunais judiciários não tomarão parte, direta ou

    indiretamente, no exercício do poder legislativo, nem impedirão ou suspenderão a execução das decisões do poder legislativo (...)”

    (TítuloII,art.10);queostribunais“reportar-se-ãoaocorpolegislativosemprequeassimconsideraremnecessário,afimdeinterpretar

    oueditarumanovalei” (TítuloII,art.12);eque“asfunções judiciáriassãodistintasesemprepermanecerãoseparadasdasfunções

    administrativas. Sob pena de perda de seus cargos, os juízes de nenhumamaneira interferirão com a administração pública, nem

    convocarão os administradores à prestação de contas com respeito ao exercício de suas funções” (Título II, art. 12) (cf. MAURO

    CAPPELLETTI,RepudiandoMontesquieu?...,cit.,p.272).

    16

    VerGUSTAVOZAGREBELSKY,A lei, o direito e a Constituição.Colóquio comemorativo doXXAniversário do Tribunal Constitucional

  • Português;KathleenM.Sullivan,TheSupremeCourt,1991Term–Foreword:Thejusticeofrulesandstandards,HarvardLawReview,v.

    106,p.22;RONALDDWORKIN,ABillofRightsforBritain.

    17

    MAUROCAPPELLETTI,RepudiandoMontesquieu?...,cit.,p.272.

    18

    CARLSCHMITT,TeoríadelaConstitución,cit.,p.138.

    19

    Idem,p.150.

    20

    GUSTAVOZAGREBELSKY,Elderechodúctil,cit.,p.29;verEDWARDSS.CORWIN,Theestablishmentof judicialreview,MichiganLaw

    Review,v.9,n.2,p.102-125.

    21

    VerJÜRGENHABERMAS,Direito e democracia, p. 305: “Essemodelo parte da premissa segundo a qual a constituição do Estado de

    direitodemocráticodeverepelirprimariamenteosperigosquepodemsurgirnadimensãoqueenvolveoEstadoeocidadão,portanto

    nas relaçõesentreoaparelhoadministrativoquedetémomonopóliodopodereaspessoasprivadasdesarmadas.Aopassoqueas

    relaçõeshorizontaisentreaspessoasprivadas,especialmenteasrelaçõesintersubjetivas,nãotêmnenhumaforçaestruturadoraparao

    esquemaliberaldedivisãodospoderes”.

    22

    VerCARLSCHMITT,Teoríadelaconstitución,cit.,quedefineoEstadodeDireitooriundodoliberalismoclássicocomo“todoEstadoque

    respete sin condiciones el Derecho objetivo vigente y los derechos subjetivos que existan”, e adverte que tal concepção tem por

    consequência“legitimaryeternizarelstatusquovigente”.

    23

    Exemplar,nessesentido,opronunciamentodaSupremaCortedosEstadosUnidosnocasoAdkinsversusChildrensHospital261U.S.

    525(1923),decisãode1923queinvalidouumalegislaçãoqueestabeleciasaláriomínimoparamulheresecrianças:“Totheextentthat

    thesumfixed[bytheminimumwagestatute]exceedsthefairvalueoftheservicesrendered,itamountstoacompulsoryexactionfrom

    theemployerforthesupportofapartiallyindigentperson,forwhoseconditionthererestsuponhimnopeculiarresponsibility,and

    therefore, in effect, arbitrarily shifts to his shoulders a burdenwhich, if it belongs to anybody, belongs to society as awhole” (Na

    extensão em que a soma fixada [pela lei do saláriomínimo] excede o valor justo dos serviços prestados, equivale a uma exação

    compulsória do empregador para o sustento de uma pessoa parcialmente indigente, por cuja condição ele não tem nenhuma

    responsabilidade especial, e por isso, de fato, transfere arbitrariamente para os seus ombros um fardo que, se pertence a alguém,

    pertenceàsociedadecomoumtodo).VerCASSSUNSTEIN,Thepartialconstitution,p.45.

    24

    Sobreesseconceitodecertezajurídicaesobreasuasuperação,HUMBERTOÁVILA,Segurançajurídica,p.250-252.

    25

    MONTESQUIEU,Doespíritodasleis,cit.,p.158.

    26

    GIOVANNITARELLO,Storiadellaculturagiuridicamoderna...,cit.,p.294;verGeoffreyC.HAZARDJR.,Reflectionsonthesubstanceof

    finality,CornellLawReview,v.70,p.642,646-647.

    27

  • MAUROCAPPELLETTI,RepudiandoMontesquieu?...,cit.,p.271.

    28

    Para um quadro da teoria do direito emOitocentos, em que se inserem os dogmas do cognitivismo interpretativo e do logicisimo

    aplicativo dos quais decorrem a tese da única resposta correta para os problemas interpretativos naquele ambiente cultural,

    PIERLUIGICHIASSONI,L´IndirizzoAnaliticonellaFilosofiadelDiritto,p.116-117.

    29

    JÜRGENHABERMAS,Direitoedemocracia,cit.,p.313:“Oparadigmaliberaldodireitoexpressou,atéasprimeirasdécadasdoséculoXX,

    umconsensodefundomuitodifundidoentreosespecialistasemdireito,preparando,assim,umcontextodemáximasdeinterpretação

    nãoquestionadasparaaaplicaçãododireito.Essacircunstânciaexplicaporquemuitospensavamqueodireitopodiaseraplicadoa

    seutempo,semorecursoaprincípiosnecessitadosdeinterpretaçãooua‘conceitos-chave’duvidosos”.

    30

    GUSTAVOZAGREBELSKY,El derecho dúctil, cit., p. 32. Referindo-se ao Código Civil italiano de 1865, dizNATALINO IRTI: “Na idade

    liberal– a idadeque seencerraem1914entreosesplendoresdagrandeguerra–, o sistemanormativogravita completamente em

    tornoaoCódigoCivil.OCódigoCivil de 1865 contémosprincípios gerais,queorientama regulaçãodasparticulares instituições ou

    matérias, e que, emúltima instância, servempara colmataras lacunasdoordenamento” (Leyes especiales (delmono-sistemaalpoli-

    sistema),Laedaddeladescodificación,p.93).

    31

    Ver,sobreopositivismojurídicooitocentista,PIERLUIGICHIASSONI,L´IndirizzoAnaliticonellaFilosofiadeldiritto,p.177eseguintes;

    NORBERTOBOBBIO,O positivismo jurídico;KARL LARENZ,Metodologia da ciência do direito, p. 21 e seguintes; sobre o positivismo

    jurídicoemNovecentos,HANSKELSEN,Teoriapuradodireito;HERBERT L. A.HART,O conceito de direito; ALF ROSS,On Law and

    Justice;CLÁUDIOMICHELON,Aceitaçãoeobjetividade–UmacomparaçãoentreastesesdeHARTedopositivismoprecedentesobrea

    linguagem e o conhecimento do direito; LUÍS FERNANDO BARZOTTO, O positivismo jurídico contemporâneo – Uma introdução a

    Kelsen,RosseHart;RONALDOPORTOMACEDOJÚNIOR.Doxadrezàcortesia–Dworkineateoriadodireitocontemporânea;Ronald

    Dworkin,Taking Rights Seriously; RONALDDWORKIN, Justice forHedgehogs; JOSEPHRAZ,The authority of law; JULES COLEMAN,

    Negativeandpositivepositivism,OxfordJournalofLegalStudies,v.11,p.139.Paraumvigorosoargumentopositivistasustentandoa

    importânciadas intençõesdo legisladorparaa interpretação,LARRYALEXANDER.Tudoounada?As intençõesdasautoridadesea

    autoridadedasintenções,Direitoeinterpretação,p.537-608.

    32

    ComoobservaTERCIOSAMPAIOFERRAZJR.,otermopositivismonãoéunívoco,servindoparadesignar“tantoadoutrinadeAUGUSTE

    COMTE,comotambémaquelasqueseligamàsuadoutrinaouaelaseassemelham.COMTEentendepor‘ciênciapositiva’coordination

    defaits.Devemos,segundoele,reconheceraimpossibilidadedeatingirascausasimanentesdosfenômenos,aceitandoosfatosesuas

    relaçõesrecíprocascomooúnicoobjetopossívelde investigaçãocientífica.Aphysiquesocialedeveria, neste sentido, tornar-seuma

    estigmatizaçãodosdogmasedospressupostosdafilosofiadoséculoXVIII.COMTEafirmaque,numaordemqualquerdefenômenos,a

    ação humana é sempre bastante limitada, isto é, a intensidade dos fenômenos pode ser perturbada,mas nunca a sua natureza. O

    estreitamento namargem demutabilidade da natureza humana, que COMTE recolhe domodelo da biologia antievolucionista, dá

    condições de possibilidade a uma sociologia. Supõe-se que o desenvolvimento humano é sempre omesmo, apenasmodificado na

    desigualdadedasuavelocidade(vitessededeveloppement).EmcélebredisputaentreLamarqueeCuvier,COMTEcolocou-seaoladodo

    último.Foidabiologiafixistaquesaiuoseu‘princípiodascondiçõesdeexistência’,garantiadapositividadedaSociologia.Aadoçãoda

    problemática da biologia positiva (‘étant donné l´organe, trouver la fonction et réciproquement’) implicou a recusa do método

    teleológico e o predomínio da explicação causal. Daí a luta, na segundametade do século XIX, contra a teleologia nas ciências da

    natureza e mais tarde, com KELSEN, na Ciência do Direito; daí o determinismo e a negação da liberdade da vontade. Todos os

    fenômenosvitaishumanosdeviamserexplicadosapartirdesuas‘causassociológicas’.Erauma‘conformitéspontanée’dosfenômenos

    políticos com uma fase determinada do desenvolvimento da civilização. Todas essas teses de Comte foram base comum para o

    positivismo do século XIX. Daí surgiu, finalmente, a negação de toda metafísica, a preferência dada às ciências experimentais, a

    confiançaexclusivanoconhecimentodosfatosetc.”(Aciênciadodireito,p.31).

    33

    LUIGIFERRAJOLI,Pasadoefuturo...,cit.,p.16;verHANSKELSEN,Teoriapuradodireito,cit.

    34

  • MAURO CAPPELLETTI, Dimensioni della giustizia nelle società contemporanee, p. 72. O que se pretende evidenciar aqui é que o

    positivismoclássiconãodácontadealgumaformaderaciocíniojurídicoquenãosejaumasimplesdedução,ouquedeixedeencaixar

    umcasoespecialdentrodomoldedeumaregrageralprefixada.Paraumacomparaçãodopapeldadoutrinaoitocentistaedaprimeira

    metade de Novecentos com o papel da doutrina contemporânea, HUMBERTOÁVILA, Função da ciência do direito tributário: do

    formalismoepistemológicoaoestruturalismoargumentativo,RevistaDireitoTributárioAtual.

    35

    NORBERTOBOBBIO,Ilpositivismogiuridico,p.233ess.

    36

    PETERHÄBERLE,DieWesengehaltsgarantie des Art. 19 Abs. 2 Grundgesetz, p. 90-91: “O pensamento individualista e o liberalismo

    constituemascausasadicionaisparaodesprezodaparteinstitucionaldosdireitosfundamentais.(...)Oformalismoeopositivismonão

    têmnenhumsentidoparaarelaçãoimanentedosdireitosfundamentaiscomoinstitutos.Creemqueaessênciadaliberdadeseesgota

    comasliberdadesnegativasdiantedacoerçãodoEstado”.

    37

    RUDOLFWASSERMANN,DersozialeZivilprozess,p.44: “Nacrençadequeo juizestá sujeitoàsamarrasda lei, sente-seautopiado

    desconfianteliberalismocontratodopoderestatal,imaginando-secomissosetersolucionadooproblemadocontroledopoder.Quem

    podedizeroquealeiafirmanãoexercepoderalgum.Éapenasumguardião,queporsuaveznãorequerqualqueroutroguardião

    sobresi.Operigodequeasinstânciaspolíticaspossaminfluirnajurisprudênciaconduztambémaoprincípiodojuiznatural”.

    38

    Sobreoassunto,GIOVANNITARELLO,“LaScuoladell´EsegesiesuaDiffusioneinItalia”,CulturaGiuridicaePoliticadelDiritto,p.69e

    ss.;PierluigiChiassoni,L´IndirizzoAnaliticonellaFilosofiadelDiritto,pp.243ess.;ALFROSS,TheoriederRechtsquellen,p.34ess.

    39

    GIUSEPPEMANFREDINI,Programmadelcorsodidirittogiudiziariocivile,p.44.

    40

    VerLUIZGUILHERMEMARINONI,Tutelainibitória,p.312ess.

    41

    LODOVICOMORTARA,CommentariodelCodiceedelleleggidiproceduracivile.Ainda,PAOLOGROSSI,ScienzaGiuridicaItaliana–Un

    ProfiloStorico(1860–1950),p.61-66.

    42

    EmhomenagempóstumaaMORTARA.

    43

    GIUSEPPECHIOVENDA,LODOVICOMORTARA.RivistadiDirittoProcessualeCivile,1937,p.101.

    44

    GIUSEPPECHIOVENDA,L’azionenelsistemadeidiritti.Saggididirittoprocessualecivile,p.3ess.

    45

    GIUSEPPECHIOVENDA,Principiosdelderechoprocesal,p.365.

    46

    GIUSEPPECHIOVENDA,Instituições...,cit.,v.2,p.55.

  • 47

    HANSKELSEN,Teoria geral do direito e do estado, p. 165; ver ULISES SCHMILLORDÓÑEZ, Observaciones a “inconstitucionalidad y

    derogación”.Discusiones,p.79-83;CARLOSNINO,ElconceptodevalidezjurídicaenlateoríadeKelsen.Lavalidezdelderecho,p.7-40.

    48

    EUGENIOBULYGIN,¿Losjuecescreanderecho?,textoapresentadoaoXIISeminárioEduardoGarcíaMaynezsobreteoriaefilosofiado

    direito,organizadopeloInstitutodeInvestigacionesJurídicasyelInstitutodeInvestigacionesFilosóficasdelaUnam,p.8.

    49

    HANSKELSEN,ReineRechtslehre–EinleitungindierechtswissenschaftlicheProblematik,1934,p.3-5,197,237;emsensocríticoHorst

    Dreier,HANSKELSEN(1881-1973)–JuristdesJahrhunderts?DeutscheJuristenjüdischerHerkunft,1993,p.705-733.

    50

    CRISTINARAPISARDA,Profilidellatutelacivileinibitoria,p.70.

    51

    MICHELETARUFFO,LagiustiziacivileinItaliadal’700aoggi,p.186.

    52

    FRANCESCOCARNELUTTI,Sistema...,cit.,v.1,p.40.

    53

    CRISTINARAPISARDA,Profili...,cit.,p.52.

    54

    FRANCESCOCARNELUTTI,Sistema...,cit.,v.1,p.130ess.

    55

    FRANCESCOCARNELUTTI,Dirittoeprocesso,p.18ess.

    56

    Cf.EUGENIOBULYGIN,¿Losjuecescreanderecho?,cit.,p.10.

    57

    “Criarumanormaé,portanto,aomesmotempo,aplicarumaoutranorma;omesmoatoé,simultaneamente,decriaçãoedeaplicação

    dodireito”(HANSKELSEN,Teoriageraldoestado,p.105);vertambémHansKELSEN,Lagarantiejurisdictionnelledelaconstitution.

    Lajusticeconstitutionnelle.RevuedeDroitPublic,1928,p.204.

    58

    HANSKELSEN,TeoriageraldoEstado,cit.,p.109ess.“Eltribunaltienequedeclararlaexistenciadetalnormadelmismomodoque

    estáobligadoaestablecerlaexistenciadelactoviolatorio.Peronosololostribunales:todoslosórganosjurídicosseencuentranenla

    necesidad de decidir si la norma que ‘prima facie’ les exige ejecución es una norma perteneciente al orden jurídico. Para ello,

    colocándoseenelpuntodevistainternooinmanentealderecho,tienequedeterminarsilanormarespectivaesunanormaexistentey

    regular, si ha sido creada con arreglo a los procedimientos y con los contenidos establecidos por las normas condicionantes

    (superiores)”(ULISESSCHMILLORDÓÑEZ,Observaciones...,cit.,p.109);“LanormabásicadeKELSENestablecelaobligatoriedaddeun

    sistema jurídico; su identidad está determinada por un criterio que toma en cuenta el hecho de que la misma norma básica es

    presupuestacuandoadscribimosobligatoriedada todas lasnormasdelsistema.Decualquiermanera,comocriteriode identidadel

    anterioresvacuo,yaqueelcontenidodecadanormabásica(y,consecuentemente,supropiaidentidad)nopuede,serestablecido,enel

    contextodelateoríadeKELSEN,antesdecircunscribirlasnormasquepertenecenalsistemajurídico.(...)Sisedanporcorrectaslas

  • ©destaedição[2017]

    objecionesprecedentes,seriaelcasodepreguntarsecuálessonlosobstáculosqueKELSENpretendesuperarintegrandoasuteoríala

    hipótesisdeautorizaciónabiertaquehemosexaminado.EsobvioqueelconceptodevalidezquelaTeoríapurapareceformularen

    formaexplícita,implicatrivialmentequenosonválidasaquellasnormasquecontradicenlascondicionesparasucreaciónprescriptas

    pornormasdenivelsuperior.Porotraparte,esasupuestadefiniciónkelsenianade‘validez’esincompatibleconelreconocimientode

    quelavalidezoinvalidezdeunanormadependadeladeclaraciónenunouotrosentidoporunórganocompetente”(CARLOSNINO,El

    concepto...,cit.,p.14ep.35).

    59

    Não se olvide, entretanto, que, aomenosnomodelo de criaçãodanorma individual pelo juiz reconhecidoporKELSEN, existe um

    componentecriativooriginárionaatuaçãodojuiz.Comoexplicaoautor:“Arelaçãoentreumescalãosuperioreumescalãoinferiorda

    ordem jurídica, comoa relaçãoentreConstituiçãoe lei, ou lei e sentença judicial, éumarelaçãodedeterminaçãoouvinculação:a

    norma do escalão superior regula o ato através do qual é produzida a norma do escalão inferior. (...) Essa determinação nunca é,

    porém,completa.Anormadoescalãosuperiornãopodevincularemtodasasdireções(sobtodososaspectos)oatoatravésdoqualé

    aplicada.Temsempredeficarumamargem,oramaiororamenor,delivreapreciação,detalformaqueanormadoescalãosuperior

    tem sempre, em relação ao ato de produçãonormativa, (...) o caráter de umquadro oumoldura a preencher por esse ato” (HANS

    KELSEN,Teoriapuradodireito, cit.,p.388). “Sepor ‘interpretação’ se entendea fixaçãopor via cognoscitivado sentidodoobjeto a

    interpretar,oresultadodeumainterpretaçãojurídicasomentepodeserafixaçãodamolduraquerepresentaoDireitoainterpretare,

    consequentemente,oconhecimentodasváriaspossibilidadesquedentrodessamolduraexistem.Sendoassim,ainterpretaçãodeuma

    leinãodevenecessariamenteconduziraumaúnicasoluçãocomosendoaúnicacorreta,maspossivelmenteaváriassoluçõesque–na

    medidaemqueapenassejamaferidaspelaleiaaplicar–têmigualvalor,sebemqueapenasumadelassetornedireitopositivonoato

    doórgãoaplicadordodireito–noatodotribunal,especialmente.Dizerqueumasentençajudicialéfundadanaleinãosignifica,na

    verdade,senãoqueelasecontémdentrodamolduraouquadroquealeirepresenta–nãosignificaqueelaéanormaindividual,mas

    apenas que é uma das normas individuais que podem ser produzidas dentro da moldura da norma geral” (idem, p. 390-391). “A

    obtençãodanorma individual no processo de aplicaçãoda lei é, namedida emquenesse processo seja preenchida amoldura da

    normageral,umafunçãovoluntária”(idem,p.393).

    60

    É preciso distinguir no mínimo duas fases do pensamento de CALAMANDREI:Calamandrei aluno de Chiovenda e CALAMANDREI

    professordeMAUROCAPPELLETTI.Aobservaçãoéoportunanamedidaemque,nasIstituzioni(1940),CALAMANDREIapresentauma

    relaçãoentrelegislaçãoejurisdiçãoquemaisseaproximadeCarnelutti.Emseuclássicoensaiosobre“LaGenesiLogicadellaSentenza

    Civile”(1914),porém,sualiçãosegueàriscaopensamentodeCHIOVENDA.

    61

    PIEROCALAMANDREI,Istituzionididirittoprocessualecivile,p.156.

    62

    PIEROCALAMANDREI,Estudiossobreelprocesocivil,p.158.

  • 2017-05-01

    NovoCursodeProcessoCivil-Volume1-Edição2017PARTEI-AJURISDIÇÃONOESTADOCONSTITUCIONAL2.DOMITODOCOGNITIVISMOINTERPRETATIVOEDOLOGICISMONAAPLICAÇÃODODIREITONOPOSITIVISMOCLÁSSICOÀ

    DUPLAINDETERMINAÇÃODODIREITONOESTADOCONSTITUCIONAL

    2.Domitodocognitivismointerpretativoedologicismona

    aplicaçãododireitonopositivismoclássicoàdupla

    indeterminaçãododireitonoEstadoConstitucional

    2.1.OquadroteóricodopositivismoclássicodeOitocentos

    OquadroteóricodopositivismoclássicodeOitocentos,queforneceuospressupostosgeraisparaas teoriasdeMortara,Chiovenda,Carnelutti edeCalamandrei sobreo conceitode jurisdição, emqualquer de suas três vertentes mais conhecidas – a École de l´Exégèse francesa, aBegriffsjurisprudenzalemãe aanalytical jurisprudence inglesa1– pode ser traçado em suas linhasgeraisapartirdedezideiasbásicas.Auma,odireitoeravistodesdeumaperspectivaimperativista,istoé,odireitoseriabasicamenteumconjuntodecomandosedevedações.Aduas,eravistocomoumsistema,comoalgonecessariamentedotadodeplenitude, istoé,umtodoordenado,completoecoerente.Atrês,eravistocomoumaciência,nosmesmosmoldesdasciênciasdanatureza,sendoodiscurso jurídicoavalorativo. A quatro, era encarado comoalgoartificial, vale dizer, tão somentecomoumproduto da convivência social. A cinco, comoum sistema artificial de imperativos cujaeficácia depende invariavelmente do uso da força, sendo direito apenas aquilo que pode sersancionadocoercitivamente.A seis, diantedo seu caráternecessariamente sancionatório, odireitoeravistocomoalgosempre ligadoaoEstado–estatalismo jurídico–,namedidaemqueapenasoEstado detém o monopólio do uso legítimo da força. A sete, por ser necessariamente de origemestatal, odireito sempredeveria serveiculadopela legislação, sendoa lei a fonteexclusivaouaomenos preponderante de todas as manifestações do direito. A oito, sendo o direito artificial eestando a sua validade ligada tão somente à sua origem e à forma com que exteriorizado –formalismojurídico–,esseteriaumamoralidadecontingente,nãosendoaassunçãodedeterminadamoralcondiçãodevalidadedodiscurso jurídico.Anove,pressupondo-seanormacomoalgopré-existenteàatividadeinterpretativadojuiz,opositivismoclássicoenxergavanainterpretaçãoumaatividadepuramentecognitiva, cujoobjetivoestavaemdeclararo correto significadodanorma.Adez, por fim, o positivismo clássico pressupunha que a ligação entre a norma e o caso concretoocorreriamedianteum juízopuramente lógicodedutivo, emque figuraria comopremissamaioranorma,premissamenorocasoecomoconclusãoasoluçãojurídicaverdadeiraparaacausa.2

    Imperativismo, sistematicidade, avaloratividade, artificialidade, coatividade, estatalismo,legalismo,formalismo,cognitivismoelogicisimosãotermoscomumenteassociadosaopensamentojurídico oitocentista.3 Todos estavam presentes no caldo de cultura em que imersos Mortara,Chiovenda, Carnelutti e Calamandrei.No entanto, ganharamespecial relevopara a formaçãodosseus respectivos conceitosde jurisdição– epara todasasquestõesdaídecorrentes– basicamenteduascaracterísticas:ocognitivismointerpretativoeologicismoaplicativo.

    2.2.Adoutrinadocognitivismointerpretativo

  • Tanto a doutrina da jurisdição como declaração da vontade concreta da lei quanto aquela dajustacomposiçãodalidepartemdopressupostodequeanormajurídicaéalgototalmenteanterioràatividadedeinterpretação.Valedizer:partemdopressupostodequeolegisladoroutorganãosóotexto,mas tambémanorma ao legislar.A interpretação constituiria,portanto,umaatividadequevisariasimplesmenteaconhecerosignificadointrínsecodotextolegal,declarando-oparasoluçãodedeterminadocaso.

    Naperspectivacognitivista,ainterpretaçãoconsubstancia-seemumatodepuroconhecimento.Ainterpretaçãoteriacomoresultadoadeclaraçãodaúnica,exata,objetivaecorreta interpretaçãodalei.4Comoobservaadoutrina,astesescentraisdateoriacognitivistapodemserassimresumidas:(i)toda norma tem um significado intrínseco, implícito, mas objetivamente dado; (ii) a atividade dointérprete consiste em individualizar e tornar explícito esse significado; (iii) eventual problemainterpretativo,ouaexistênciademaisdeumsignificadoatribuívelaomesmoenunciadonormativo,resolve-sepelaindividualizaçãodoverdadeirosignificadoedescartedosdemaissignificados,queporconsequênciasãofalsos;(iv)ométodointerpretativoélógico-dedutivoeexcluiqualquervaloraçãoeescolha discricionária do intérprete; e (v) o juiz interpreta a norma a fim de declarar o seusignificado implícito objetivamente existente, sem em nenhum momento realizar qualquer escolhavalorativa,aplicandodedutivamenteanormaaofato.5

    2.3.Adoutrinadologicismonaaplicaçãododireito

    Paraadeclaraçãodavontadeconcretadaleiouparaajustacomposiçãodalide,aintepretaçãoda norma seria apenas um dos atos necessários. O outro estaria no estabelecimento de umanecessária conexão entreanormadevidamente interpretadaeo casoconcretomedianteoqualavontade concreta da lei deveria ser atuada ou em que se concretizaria a lide que deveria serjustamentecomposta.

    Nocontextoteóricodopositivismoclássico,imaginava-sequeessaconexãoocorreriamedianteasimplesutilizaçãoda lógica– especialmente,da lógicadedutiva. Supunha-sequea lógicadedutivaseriasuficienteparaligaranormaaofatoparadaíseretirarumadecisão.Depoisdeinterpretadaanorma, essa deveria ser aplicada ao caso concreto mediante um silogismo judiciário, em quefigurava como premissa maior a norma, premissa menor o fato e como conclusão a decisão dacausa.6

    2.4.Oimpactodocognitivismoedologicismosobreaformaçãodosconceitosdejurisdiçãoeda

    funçãodoprocessocivil

    Ocognitivismointerpretativoeologicismonaaplicaçãododireitofizeramcomqueajurisdiçãofosse compreendida como a declaração de uma norma pré-existente em que não comparecequalquer juízo decisório. A jurisdição estaria pronta a desempenhar uma atividade de simplesconhecimento de uma norma pré-existente cujo objetivo estaria na declaração de um resultadoverdadeiro,declarando-seosignificado intrínsecoecorretodanormaparaocasoconcretosemaintervençãodequalquerjuízovalorativoedecisórioporpartedojuiz.

    Essas duas doutrinas partiram do pressuposto, portanto, de que o resultado da jurisdição ésempreapenasadeclaraçãodalegislação.Exatamenteporessarazãooseumodelodedireitoéummodelo de legislação sem jurisdição. Essa concepção teve inúmeras consequências para aestruturaçãodoprocessocivil.7Aquemaisinteressaagoraéadequesendoajurisdiçãomeramentedeclaratória,suasdecisões jamaispoderiam interessaremtermosdepositivação jurídica, istoé, em

  • termosdeacréscimodedadosnormativosnovosparaosistemajurídico.Valedizer:ajurisdiçãoeoprocessocivil teriamapenasporfunçãoresolvercasosconcretosmedianteadeclaraçãodanormaincidenteeaplicável.Istoquerdizerquenãoteriamqualquerfunçãoemrelaçãoàordemjurídicaemgeral.

    2.5.Aduplaindeterminaçãododireitoesuaprojeçãosobreateoriadainterpretaçãoeda

    aplicaçãododireito

    Oproblemaéqueo cognitivismo interpretativoeo logicisismoaplicativo revelaram-se teoriasequivocadas. As normas não preexistem ao ato de interpretação, com o que a atividadeinterpretativa não é puramente cognitiva. E também o seu resultado não é sempre unívoco,admitindo-seinvariavelmenteumapluralidadedealternativasigualmenteracionaiscomoresultadodainterpretação.Textoenormanãoseconfundem.8Oatodeaplicaçãododireitoigualmentenãosereduzàlógicadedutiva.Tudoissoremeteasteoriasdadeclaraçãodavontadeconcretadaleiedajustacomposiçãodalideàspáginasdoslivrosdehistóriadaculturaprocessualcivilmoderna.Daíque qualquer tentativa de invocação de semelhantes teorias no contexto atual só pode ser vistacomo um despropositado exercício de mistificação e de encobrimento daquilo que efetivamente ajurisdiçãofaznoEstadoConstitucional.

    Aatividadede interpretaçãonãoédescritiva deumanormapré-existente.Por seu intermédionão é possível obter sempre uma única resposta correta para os problemas interpretativos.9 Ainterpretaçãoéadscritivade sentidoa textoseaelementosnão textuaisdaordem jurídica– essaoutorga sentido. O seu objeto, portanto, não é a norma. O seu objeto é o texto, o dispositivoconstitucional ou legal, ou elementos não textuais presentes na ordem jurídica, como os usos ecostumes.Interpretarsignificaadscreversentidoaumtextoouaelementosnãotextuaisdaordemjurídica,oqueimplicanecessariamenteoreconhecimentodesentidosmínimoscomqueaspalavrassão utilizadas, a valoração das razões que militam a favor e contra a adoção de determinadossentidos e a efetivadecisão entre os significados concorrentes. Anorma jurídica é o resultado dainterpretação, não o seu objeto. Isso quer dizer que o empreendimento normativo é umempreendimentointerpretativoquedependedereconstruçãodesignificadosapartirdotrabalhodolegislador,dojuizedadoutrina.10

    Aaplicação do direito não se confunde coma sua interpretação.Obviamente que todo ato deaplicaçãododireitopressupõea sua interpretação.A constânciadoato interpretativo éumdadofirme da teoria do direito de novecentos.11 Isso não quer dizer, contudo, que toda interpretaçãotenha por fim a aplicação do direito. Aplicar o direito significa retirar consequências jurídicas daincidência de normas jurídicas em uma determinada situação jurídica – vale dizer, retirarconsequências práticas no mundo normativo normalmente a partir de um caso concreto. Essaoperaçãoenvolvecertamentea lógicadedutiva, istoé,oempregodeumsilogismo judiciário,masnãosó.Paraalémalógicadedutiva,écomumautilizaçãodalógicaindutivaeabdutivanoraciocíniojudiciário,especialmentenaformaçãodoconvencimento judicialarespeitodosfatosalegadosemjuízo. As normas são ainda vagas, no sentido de que seu alcance é incerto. Para sua aplicação, énecessário proceder de formaanalógica, comparando-se semelhanças e diferenças, procedimentoquecertamentenãopodeserenquadradocomoumcasodeaplicaçãodelógicadedutiva.

    Texto e norma não se confundem basicamente porque o direito sofre de uma duplaindeterminação.Éessadupla indeterminaçãoquefazcomque interpretarodireitoconstituaumaempresalógico-argumentativa.Deumlado,ostextosemquevazadososdispositivossãoequívocos.De outro, as normas são vagas. Equivocidade e vagueza são elementos de indeterminação do

  • significadodostextosedoalcancedasnormas.

    Os textos são potencialmente equívocos por várias razões. Entre elas, a ambiguidade, acomplexidade, a implicabilidade, a superabilidade e a abrangibilidade dos enunciados textuais. Osenunciadossãoambíguos,porqueapresentamduasoumaisopçõesde significado. Sãocomplexos,porque podem exprimirduas ou mais normas ao mesmo tempo. Por vezes, pode existir dúvida arespeitodaexistênciadeumnexodeimplicaçãoentreosenunciados,dasuperabilidadeounãodoenunciado–istoé,seeleestásujeitoounãoaexceçõesimplícitas–edaabrangênciadadisposição–se taxativaoumeramenteexemplificativa.12 Em todos esses casos há equivocidade do texto, sendonecessárioindividualizar,valorareescolherentreduasoumaisopçõesdesignificadoafimdeobter-seumanorma.13

    Entretanto, essa potencial equivocidade dos textos não é algo eliminável simplesmente peloapuramentolinguísticonasuaredação.Naverdade,aequivocidadenãoépropriamenteumdefeitoobjetivodotexto,masumadecorrênciadediferentesinteresseseconcepçõesarespeitodajustiçadosintérpretesedamultiplicidadedeconcepçõesdogmáticasemétodosinterpretativosporelesutilizadosque interferem na atividade de individualização, valoração e escolha de significados. Ainterpretaçãovariade acordo comaposição assumidapelo intérpretena sociedadeoudiantededeterminadoconflito(diferentes interesses),comassuas inclinaçõesético-políticas(concepçõesdejustiça), com os conceitos jurídicos de que se vale (concepções dogmáticas) e com os argumentosinterpretativoseleitos(métodosinterpretativos).14Anormaéresultadodeumprocessoquevisaareduziraequivocidadedotextoeconcentraroseusignificado.Daíarazãopelaqual textoenormanãoseconfundemenemháentreosmesmosumacorrespondênciabiunívoca.15

    Asnormassãovagas,namedidaemquenãoépossívelanteciparexatamentequaissãooscasosqueentramnoseuâmbitodeaplicação.16Avaguezacomprometeoalcancedasnormas,dadaasuatextura aberta (open texture).17 Para redução da vagueza, é necessário proceder analogicamente,comparando-se semelhanças e diferenças a fim de que a área de penumbra normativa sejareduzida.18Logo,mesmodepoisdeinterpretadaanormaaindapodeserconsideradavaga,demodoque semostra necessária a atuação do intérprete também nomomento da sua aplicação para areduçãodaindeterminaçãonormativaeprecisãodeseualcance.

    Setudoissoéverdade,entãoé impossívelsustentarquea jurisdição,quandoresolvesituaçõesjurídicas, apenas declara uma norma preexistente a fim de revelar o seu significado intrínseco(cognitivismo interpretativo) mediante um juízo puramente silogístico (logicismo aplicativo). Ajurisdiçãonãovisasimplesmenteàatuaçãodedireitossubjetivosprivados,àdeclaraçãodavontade

    concretada leiouà justa composiçãoda lide, com