novo testamento: história, escritura e teologia

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Prefácio .................................................................... 9 Daniel ¡V/arguerat partel AtradiCãosinóIicaeosAiosdosapóstolos capítulo l O problema sinÓtico ................................................... 15 Dan[e/ MarEuerat capítulo 2 O evangelho segundo Marcos ...................................... 45 Corina Combet-Galland capítulo 3 O evangelho segundo Mateus ...................................... 81 , Élian Cuvillier capítulo 4 O evangelho segundo Lucas ....................................... 107 Daniel MarEuerat capítulo 5 Os Aios dos apóstolos ............................................... 137 Danie/ MarEuerat

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de Daniel Marguerat. documento parcial

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Page 1: Novo Testamento: História, escritura e teologia

Prefác io . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9D a n i e l ¡ V / a r g u e r a t

partelA tradiCão sinóIica e os Aios dos apóstolos

c a p í t u l o l

O prob lema s inÓt ico . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1 5D a n [ e / M a r E u e r a t

c a p í t u l o 2

O evange lho segundo Marcos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .4 5C o r i n a C o m b e t - G a l l a n d

c a p í t u l o 3

O evange lho segundo Mateus . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 8 1, É l i a n C u v i l l i e r

c a p í t u l o 4

O evange lho segundo Lucas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 107D a n i e l M a r E u e r a t

c a p í t u l o 5

Os A ios dos apósto los . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 137D a n i e / M a r E u e r a t

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CAPITBLO

27Históri~ do canon do

Novo TestamentoJean-Daniel Kaestli

Nas páginas precedentes, cada um dos 27 escritos do Novo Tes-tamento foi objeto de um capítulo independente que evidenciou ascondições históricas particulares de sua redação. Na origem, cadaescrito era destinado a ter uma vida própria, e não a ocupar um lugarnuma coleção, É dirigido a uma comunidade particular, ou a um gru-po circunscrito de comunidades, e não ao conjunto da Igreja. Tempor intuito transmitir uma mensagem revestida de autoridade, masnão pretende o acesso à condição de livro sagrado e inspirado, cornoas Escrituras antigas, de Moisés e dos proçetas.

Hoje, esses 2? livros estão reunidos numa só coleção, de auto-ridade exclusiva, que leva o nome de Novo Testamento. Quando,como e por que essa coleção viu a luz do dia e foi reconhecida comoEscritura sagrada a mesmo título que o Antigo Testamento? Essa éa questão a que a história do cânon procura responder.

O SENTIDO DA PALAVRA UCÂNON)) APLICADO À BÍBLIAO termo grego K~P(6P, de origem semítica, designa um caniço,

depois um instrumento de medir, fabricado com um caniço, como arégua do carpinteiro ou do pedreiro. Em sentido figurado, na lingua-gem da filosofia, ele significa a regra de conduta, a norma, o modelo.É também empregado, no domínio da astrologia ou cronologia, para

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A história do cânon

des ignar uma l i s ta , um catá logo ou um quadro . Quando o te rmo éretomado em contexto cr istão, dois t ipos de uso chamam a atenção.Nos séculos !1 e lI l, ele é encontrado em expressões como K0~vcòu

"t:flç &MIO~[0cç (regra da verdade), Ko~vdov "Cflç Tr[Ol:~COç (rçgra da fé)ou K~V(_ÒV "~fIÇ éKK~L'qOL~Ç (regra da Igreja), que designam, de modogera l , a norma & qua l devem se conformar a dout r ina e a v ida daIgre ja . Fo i somente na metade do sécu lo IV que o te rmo passou a

ser ut i l izado em relação com a B~lia, referindo-se à l ista dos l ivrosdo Antigo e do Novo Testamento (Conc,lio de Laodiceia [363], câ-

non 59; 39~ Carta Festiva de Atanásio de Alexandria [367] ).O que determinou a apl icação à B~lia dos termos "cânon" e "ca-

nonizar"? Segundo alguns, é o sentido formal de " l ista" ou "catálo-go" que está na origem desse uso. Segundo outros, foi determinantea ideia de cânon como "norma", já presente na Igreja desde o séculoII . O debate incide sobre um ponto de história, e nenhum documen-to permite resolvê-to com certeza. Mas tem relação com a maneirapela qual o historiador do cânon define, hoje, o objeto de seu estudoe descreve o processo de canonização.

DUAS MANEIRAS DE CONCEBER A HISTÓRIA DO CÂNONQual foi o período decisivo desse processo? A partir de quando se

pode dizer que existe o cânon do NovoTestamento? A esse respeito,podem-se adotar dois pontos de vista divergentes, correspondentesa duas maneiras diferentes de compreender a noção de cânon.

O primeiro ponto de vista foi, por muito tempo, objeto de grandeconsenso, representado especialmente pelos trabalhos de Harnacke de Von Campenhausen. O per íodo dec is ivo para a fo rmação docânon do Novo Testamento s i tua-se na segunda metade do sécu loI1. Por volta de 200, a ideia de cânon emergiu e o essencial de seuconteúdo fo i fixado. A autor idade dos componentes fundamenta isdo Novo Testamento - - quat ro Evange lhos, t reze car tas de Pau lo ,Atos , I João e I Pedro - - é reconhec ida de modo gera l . Essa s i tua-ção de fato é atestada, com dificuldades menores, por testemunhosdo fim do século l i e começo do século [ l i , representando as princi-

História do cânon do Novo Testamento

pa is Ig re jas (Fragmento de Murator i , de or igem oc identa l ou , mes-mo, romana; lreneu de Lião, originário da Ásia Menor; Tertul iano deCar tago; C lemente de A lexandr ia ) . A cont inuação da h is tór ia temmenos impor tânc ia . Uma vez es tabe lec ido o conteúdo fundamenta ldo Novo Testamento , t ra tar -se-á somente de esc larecer o es ta tu tode alguns l ivros contestados, entre os quais alguns serão reconheci-dos e outros rejeitados. No fim desse processo de acabamento, ver-se-á emerg i r uma l i s ta de 27 l i v ros recor tando exatamente o NovoTestamento que conhecemos - - l i s ta a tes tada pe la pr imei ra vez em367 na 39~ Carta Festiva de Atanásio de Alexandria.

A. C. Sundberg defendeu uma out ra manei ra de conceber a h is -tó r ia do cânon. Seu es tudo pr inc ipa l , consagrado ao cânon do An-t i g o Te s t a m e n t o , r e n o v o u p r o f u n d a m e n t e a c o m p r e e n s ã o d a r e -cepção das Escr i tu ras juda icas na Ig re ja c r is tã I . Sundberg most rouque, ao cont rár io de uma ide ia amplamente d i fund ida, nunca houveu m " c â n o n a l e x a n d r i n o " d o A n t i g o Te s t a m e n t o - - c o r r e s p o n d e n -te à co leção ex tensa dos l i v ros da Septuag in ta - - que a Ig re ja te r iareceb ido do judaísmo he lenís t ico . Na época das or igens c r is tãs , osl ivros santos em uso no judaísmo não consti tuíam ainda uma coleçãofechada. O cânon res t r i to da B~ l ia hebra ica s~ se impôs depo is deJâmnia , por vo l ta do fim do sécu lo ! . E le influenc iou, cer tamente ,a reflexão dos c r is tãos sobre os l im i tes de seu Ant igo Testamento ;mas essa influênc ia se fez sent i r p rogress ivamente , em r i tmo maislen to no Oc idente do que no Or ien te ; fo i só no cor rer do sécu lo IVque se chegou à definição de uma verdadeira l ista canõnica.

S e g u n d o S u n d b e r g , a h i s t ó r i a d o c â n o n d o N o v o Te s t a m e n t odeve ser revista à luz desse fechamento tardio do Antigo Testamen-to c r is tão2. Os do is processos evo lu í ram de modo para le lo . Antesd o s é c u l o I V, b o m n ú m e r o d e l i v r o s d o N o v o Te s t a m e n t o t i n h a j áacedido ao estatuto de "Escri tura", isto é, de l ivro sagrado gozandode autoridade em matéria rel igiosa. Mas não se pode Falar, ainda, de

1 Albert C. SUNDBERG, The OldTestamentofthe Early Church, Cambridge,Nlass., Harvard University Press, 1964.ID., Towards a Revised History of the New Testament Canon, StudiaEvangelica, Berlin, Akademic Verlag, 1V, Part I (1968) 452-461 (TU 102).

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,, A história do cânon

"cânon" do Novo Testamento, na medida em que esse termo desig-na uma coleção estr i tamente delJmitada, uma l ista exclusiva de l i -vros sagrados à qual não se pode nem acrescentar nem ret irar nada.O per íodo dec is ivo para a canon ização do Novo Testamento deveser si tuado no século IV e não no século 1I. Coincide com o apareci-mento de l istas de l ivros canônicos.

A diferença entre os dois pontos de vista é, por um lado, questãode definição. Segundo a perspectiva tradicional, o termo "cânon" écompreendido em sentido lato e furicional: pode se apl icar a l ivrosque são reconhec idos como de autor idade, mesmo que não façampar te de uma co leção defin i t i vamente fechada (poder -se- ia d izerq u e c o n s t i t u e m u m c â n o n " a b e r t o " ) . S a n d b e r g e m p r e g a o t e r m oem sentido estr i to e formal: só se pode falar de cânon a propósito deuma l ista "fechada" de l ivros sagrados.

Essas duas maneiras diferentes de conceber a história do cânontêm uma implicação teológica. A de Sandberg, ao colocar a ênfasenos documentos e nos debates eclesiást icos do século IV, vai ao en-contro da tradição catól ica segundo a qual o cânon nasceu de umadecisão da Igreja. A tese clássica reflete mais o ponto de vista pro-testante: o cânon é o resultado de um consenso que se formou es-pontaneamente desde o século !1; as l istas e as decisões oficiais do

século IV só val idaram uma escolha mais antiga, que não emanavado poder eclesiást ico.

U M DOCUMENTO PARA SE ORIENTAR: O FRAGMENTO DE I~IURATOR1

O Fragmento de Muratori , também chamado "Cânon de Muratori",é um texto lat ino de 85 l inhas, conservado num manuscri to de Milãodo século VIl! e publicado em 1740 pelo erudito italiano L. A. Muratori.O texto, de uma qual idade deplorável, necessita de numerosas cor-reções e não de ixou de susc i ta r con jec turas . Um fe ixe de ind íc iospermite concluir que ele foi composto por volta de fins do século I Ie começo do século I I I (ver sobretudo 1.73-77: aos olhos do autor,Pio, bispo de Roma entre 140 e 155, viveu "muito recentemente nonosso tempo") e provém de uma igreja do Ocidente (ver, part icular-

História do cânon do Novo Testamento

mente, a ausência da epístola aos Hebreus). Sundberg, seguido re-centemente por Hahneman, avançou uma sér ie de argumentos emf a v o r d e u m a d a t a ç ã o d o F r a g m e n t o d e M u r a t o r i n o s é c u l o I V ede uma proven iênc ia or ien taP. Essa documentação tard ia re legao documento A classe das numerosas l istas canônicas do século IVe lhe re t i ra quase todo va lor para a reconst i tu ição da h is tór ia docânon. Mas os argumentos que servem para jus t ificá- la não res is -tem ao exame. Esse tex to é um tes temunho prec ioso da s i tuaçãoda formação do Novo Testamento em fins do sécu lo IP e um bomponto de par t ida para a indagação sobre o per íodo que precedee sobre o que se segue. A sua t radução se encont ra no boxe daspáginas 605-607.

Ressa l temos, an tes de tudo, que quat ro l i v ros passaram em s i -lêncio (1 e 2 Pedro, Tiago e Hebreus) e que os outros 23 l ivros nãoestão todos postos no mesmo p lano. A aná l ise do tex to permi ted is t ingu i r mui to c la ramente duas par tes . Na pr imei ra par te ( l inhas1-63), o autor apresenta escri tos cuja autoridade é indiscutível e queconsti tuem duas coleções de contornos bem definidos: os evange-lhos , em número de quat ro - - aos qua is se prendem a inda os Atosdos Apóstolos e, indiretamente, a primeira epístola de João --, e asepístolas de Paulo, em número de treze. Na segunda parte (1.63-68e 81-85), ele passa em revista livros a respeito dos quais é necessárioformular um julgamento, como o indica o surgimento, nesse ponto,da primeira pessoa do plural. Uns são escritos por heréticos e devemser rejeitados totalmente (1.63-68 e 81-85). Os outros (1.68-80) têmuma origem respeitável e são todos "recebidos" na Igreja, mas seuestatuto é objeto de discussão: devem ou não ser l idos publ icamentepara o povo por ocasião do culto? Para quatro dos escri tos que setornaram canôn icos (Judas, 2 e 3 João, Apoca l ipse) a resposta é

I D., Canon Nluratori: A Fourth Century List, Harvard TheoloEical Review66 (1973) 1-41; Geoffrey Marl HAHNEMAN, Tlae Muratorian FraEmentand the Developrnent of the Canon, Ox£ord, Clarendon Press, 1992.Jean-Daniel KAESTLI, La place du FraEment de Muratori dans I'histoire ducanon. À propos de la thèse de Sundber et Hahneman, Cristianesimo nellastoria 15 (1994) 609-634.

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A história do c~non

positiva; ela é negativa para o Pastor de Hermas, segundo o autor, esegundo "alguns dos nossos" para o Apocalipse de Pedra.

O Fragmento de Muratori permite distinguir dois momentos nahistória do cânon. Nós nos interessaremos, primeiro, pela forma-ção' das duas coleções parciais cujo estatuto está bem estabelecidono fim do século ll: os quatro evangelhos e as cartas paulinas. Emseguida nos voltaremos para os livros que foram objeto de discus-são. De fato, a reunião dos 27 escritos do Novo Testamento numacompilação única e fechada é o resultado de um processo de váriosséculos, que passou por fases diversas segundo as épocas e segundoas regiões. Ilustraremos a diversidade desse processo de delimitaçãoapresentando o que o caracteriza na Igreja grega, na Igreja latina enas Igrejas da Síria.

I( EVANGELHOS E CARTAS PAULINAS: A EMERGf=NClA DE DUASCOLEÇõES CANôNICAS1. l. Os evangelhos: da tradição orai à canonização doquádruplo evangelho

O começo do Fragmento de Nluratori está perdido, mas pode-seter certeza de que continha uma notícia sobre Mateus e uma notí-cia sobre Marcos, da qual só as últimas palavras estão conservadas.Nosso texto atesta claramente que o cânon dos quatro evangelhosestava estabelecido no fim do século II. O fato de serem enumera-dos (ver o adjetivo numeral das notícias sobre Lucas e sobre João)é o indício mais evidente dessa fixação definitiva. Na mesma épo-ca, ela é confirmada por várias outras fontes (lreneu, Tertuliano,Clemente de Alexandria).

lreneu de Lião, em Contra as heresias, composta por volta de 180,afirma rigorosamente a autoridade do evangelho quadriforme ou"tetramorfo". Numa passagem célebre (111,11,8), ele procura justi-ficar o número quatro com a ajuda de analogias emprestadas da na-tureza e da Escritura:

"Não pode haver um número maior, nem menor, de evangelhos. Com efei-to, visto que há quatro regiões do mundo em que estamos e quatro ventos

História do cânon do Novo Testamento

principais, e visto que, por outro lado, a lgreia está espalhada por toda a ter-ra, e que ela tem por coluna e por sustentáculo o Evangelho e o Espírito devida, é natural que ela tenha quatro colunas que sopram, de todas as partes,a imortalidade e concedem a vida aos homens. Donde decorre que o Verbo,Artesão do universo, que está acima dos Querubins e mantém rodas as coisas,quando se manifestou aos homens nos deu o Evangelho em forma quádrupla(z~zpdt~0pqbou ~ò ~6«yy~XLov), embora sustentado por um único Espírito".

lreneu se apoia, em seguida, sobre os Querubins de quatro ros-tos de Ezequiel 1 e sobre as quatro criaturas vivas de Apocalipse4,7, bem como sobre as quatro alianças de Deus com a humanida-de (sob Adão, Noé, Moisés e Cristo). Essa argumentação em favordo número quatro significa que Ireneu está na origem do evange-lho quádruplo? A análise do contexto mais amplo dessa passagem(111,1,1-11,9) mostra, antes, que ele só faz defender uma realidadeque já existia.

Que se pode dizer da evolução que levou ao reconhecimento ex-clusivo do evangelho quádruplo? A partir de quando e por que essesquatro escritos foram postos à parte? Para abordar essas questões,as fontes de que dispomos são raras e suscetíveis de interpretaçõesdiversas. Alguns marcos importantes podem, entretanto, ser colo-cados. Para maior clareza, podem-se distinguir duas épocas. A pri-meira se caracteriza pela coexistência da tradição oral e dos evange-lhos escritos; ela pode ser ilustrada pelo testemunho de Papias e vaiaté cerca de 140. O segundo período se define por uma valorizaçãomuito mais nítida dos evangelhos como documentos escritos; esteperíodo é marcado pelas figuras de Marcião, Justino e Taciano.

A permanência da tradição oral ao lado dos evangelhosescritos. Papias

SegundoTh. Zahn e A. Harnack--dois eminentes eruditos cujostrabalhos sobre a história do cânon guardam todo o seu valor --, areunião numa mesma coleção dos quatro evangelhos que se torna-ram canônicos remonta às primeiras décadas do século li. Essa po-sição foi abalada pela comprovação da importância da tradição oral,

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A história do cânon

tanto no período que precedeu a redação dos evangelhos canônicos¿omo no que se seguiu. A mudança está relacionada, em part icular,com o estudo dos materiais evangélicos utilizados nos Padres apostó-l icos (corpus art ificial de escri tos diversos que vão do fim do século Ià metade do século II). Quando os Padres apostólicos citam palavras

de Jesus que têm paralelos nos sinóticos, eles frequentemente sãomais devedores da tradição oral do que dos escritos evangélicos».

Ao lado dos evange lhos canôn icos , ou t ros evange lhos v i ram aIuz do d ia e também puderam aprove i ta r a t rad ição ora l . A inda quetrabalhos recentes se pronunciem sistematicamente demais a favorda independênc ia dos evange lhos ex t racanôn icos , é prec iso admi -t i r que tex tos como o Evange lho de Tom~ (NHC I I ,2 ) , o Evange lhode Pedro, o Diálogo do Salvador (NHC 111,5) ou a Epístola apócrifa deTiago (AIHC 1,2) conservam tradições sobre Jesus que não derivamdos evangelhos canônicos. Para expl icar a mult ipl icação dos evan-gelhos apócri fos durante esse período, é preciso admit ir que nossosevangelhos canônicos não estavam ainda revestidos de uma autori-dade Única.

O favor de que gozava a transmissão oral das palavras de Jesusna primeira parte do século I I ressalta claramente do testemunho dePapias, bispo de Hierápol is, na Frígia. Papias viveu até mais ou me-nos 140. Ele é o primeiro a mencionar expl ici tamente a existência deevangelhos escri tos. Suas notícias sobre Marcos e IMateus (Eusébio,História eclesiástica 111,39,15-16) colocam problemas difi'ceis de inter-pretação. Podemos ter certeza de que Papias conhecia o evangelhode Marcos e se esforça para defendê-lo contra as crít icas relat ivas àsua ordem ou à sua qual idade l i terária. Ele conhece também um es-cri to "evangélico" composto por Nlateus, que deve, sem dúvida, seridentificado com o primeiro evangelho e não com a fonte dos logia.Mas o interesse de Papias pelos evangelhos escri tos não o impede,por out ro lado, de expr imi r sua pre ferênc ia pe la t rad ição ora l . Nãoresta prat icamente nada de sua obra em cinco l ivros int i tulada Expfi-

s Ver sobretudo Helmut KOSTER, Synoptische Überlieferung bei den aposto-lischen Vätern, Berlin, Akademie Verlag, 1957.

História do cânon do Novo Testamento

cações das palavras do Senhor (Aoy [c0u Kup L0~KCôV é01YTÍae Lç), excetoum extrato do prefácio ci tado por Eusébio:

"Se de qualquer parte vinha alguém que tinha estado em companhia dospresbíteros, eu me inf'ormava das palavras dos presbíteros: o que tinham ditoAndré ou Pedro, ou Filipe, ou Tom~, ou Tiago, ou Jogo ou Mateus, ou qualqueroutro discípulo do Senhor; e o que dizem Aristion e o presbítero João, discí-pulos do Senhor. Pois não achava que as coisas que vêm de livros fossem tãoúteis quanto as que vêm de uma palavra viva e duradoura" (Eusébio, Históriaeclesiástica III, 39,4).

Esta passagem indica claramente que Papias recolheu as palavrasdo Senhor, que eram o assunto de sua obra, ao p~ dos portadoresda tradição oral, e não somente dos documentos escri tos. Mas elenão quer dizer que os l ivros são suspeitos ou mesmo rejeitados. Opróprio Papias comporá um. Além do mais, não se deve exagerar aoposição entre l ivros e palavra viva; ela apenas retoma uma ideia,bem atestada na cultura ambiente, nos contextos em que se trata deaprendizagem de um oficio, ou de um saber intelectual: os l ivros sãoúteis, mas nada substi tui a relação viva com um mestre«.

Marcião: quando o Evangelho se torna l ivro

Com Marcião, a ruptura com o reino da tradição oral é clara. Eleé, sem dúvida, o primeiro a ter dado ao termo e6~yyéZt0v um senti-do l i terário: quando Paulo, em suas cartas, fala de "o Evangelho" oude "meu Evangelho", ele não se refere a um l ivro part icular.

Marcião, rejeitado como herét ico, em 144, pela Igreja de Roma,cr iou sua própr ia Ig re ja , que dev ia subs is t i r durante mui tos sécu-l o s . A s e u s o l h o s , o c r i s t i a n i s m o e s t á f u n d a d o s o b r e u m a r e v e -lação nova, v inda de um Deus de amor, Pa i de Jesus Cr is to , quenão tem nada de comum com o Deus jus to e v ingat ivo do Ant igo

Ver Loveday C. ALEXANDER, The Living Voice: Scepticism towards theWritten Word in Early Christian and in Graeco-Roman Texts, in David J.A. CLINES (ed.), The Bible in Three Dirnensions, Sheffield, JSOT Press,1990, 221-247.

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A história do cânon

Testamento. O ensinamento de Cristo e o das Fscrituras judaicassão, portanto, incompatíveis. Para Marcião, Pau[o é o único após-tolo que compreendeu essa doutrina nova. Os únicos escritos quea conservam são as epístolas de Paulo e o evangelho de Lucas,discípulo de Paulo. Mas esses mesmos escritos foram falsificadospelos apóstolos, ficando l igados ao Deus dos judeus; seu textodeve ser cuidadosamente revisto e expurgado dessas interpola-ções judaizantes.

Qual foi a influência de Marcião na formação do cânon do NovoTestamento? A questão permanece em debate. A opinião tradicio-nal, que remonta aos Padres da Igreja, é que Marcião criou seu câ-non ao operar uma seleção no cânon mais extenso da Igreja. Masa relação cronológica deve, certamente, ser invertida: o cânon deMarcião precedeu o da Igreja. Segundo Harnack, essa prioridadeno tempo implica que Marcião desempenhou um papel decisivo: aprópria ideia de um cânon, de uma coleção limitada de Escriturascristãs, nasceu com ele; a Igreja, ao definir seu Novo Testamento,não faz mais do que retomar ou desenvolver uma ideia marcionitapara melhor se opor a Marcião. Nessa mesma linha, várias caracte-rísticas do cânon da Igreja foram atribuídas à influência de Marcião:a adoção da estrutura bipartida "Evangelho-apóstolo", o lugar im-portante dado às cartas de Paulo e a criação de um contrapeso aPaulo pela inclusão de escritos de outros apóstolos. Hoje, entre-tanto, insiste-se mais no fato de que os elementos em questão jáexistiam antes de Marcião e se desenvolveram independentementedele. É o caso, particularmente, da estrutura bipolar, já discernívelnos escritos do Novo Testamento7, ou o da reconhecida importânciadas cartas de Paulo, já atestada antes de Marcião por sua circulaçãoem forma de coleções8. A iniciativa de Marcião não foi; portanto, acausa primeira da criação do cânon, mas sem dúvida contribuiu paraacelerar o processo.

7 Ver François BOVON, La structure canonique de l 'Évangi le et de l 'Apô-tre, Cristianesirno nella storia 15 (1994) 550-576.

s Ver abaixo p. 589-592, e nota 9.

História do cânon do Novo Testamento

Justino: as "Memórias cios apóstolos ". Seu uso litúrgico ao lado cioAntigo Testamento

O testemunho de Justino Mártir marca uma etapa importantena evolução que conduziu à canonização do quádruplo evangelho.Em suas obras conservadas, o Diálogo com 7?ífon, o judeu, e as duasApologias, escritas em Roma entre 150 e 160, Justino fornece diver-sos dados novos.

Primeiramente, Justino utiliza um nome original para designar osevangelhos: as "Memórias dos apóstolos" (~& &=ot~urll~Vrll~OVe61~~z~~~âv &lToo~óX~av). A equivalência dos dois termos é claramente for-mulada em 1 Apologia 66,3: "Os apóstolos, nas memórias que vêmdeles e que chamamos de evangelhos, contam que lhes foi ordenadoque fizessem assim" (segue-se a evocação das palavras da institui-ção da ceia). A origem do termo &TrOt~VTIOVe6#CZ~~ é discutida. Urnaexplicação provável é que ele Foi escolhido para sublinhar o valor dosevangelhos enquanto documentos escritos e para responder às ne-cessidades da polêmica contra os gnósticos (treze das quinze ocor-rências são concentradas em uma seção do Diálogo, § 98-107, ondeJustino volta a empregar um comentário anterior do Salmo 22, comintenção antignóstica).

Em segundo lugar, Justino é o primeiro a refletir claramente umasituação em que vários evangelhos são simultaneamente conhecidose valorizados num mesmo meio. Mas a questão de seu número e deseu estatuto permanece muito debatida:

Justino conheceu ou não uma coleção que reunia os quatro evangelhos quese tornarão canônicos? Em caso afirmat ivo, atr ibuiu- lhes uma autor idade ex-c lusiva? Just ino c i ta f requentemente Nlateus e Lucas, e uma vez Marcos (Nlc3,17 em DidloEo 106,3). E João? Cita ele João 3,3.5 em IApologia 61,4 ou João1,19 s. em Diálogo 88,7? As opiniões estão divididas. Dependem da respostaa uma questão mais ampla: Justino dispõe de outras fontes, além dos evange-lhos canônicos, quando cita as tradições sobre Jesus? Com efeito, trata-se deexplicar a presença nele de alguns aErapha (Diálogo 35,3; 47,5), de detalhesnão canônicos sobre a paixão (DidloEo 101,3; I Apologia 38,8) e, sobretudo,do fato de que as palavras que ele c i ta d ivergem frequentemente das formasatestadas em Mateus e Lucas. Vár ios t ipos de expl icações têm sido propos-tas: c i tações fe i tas de memória (mas as divergências são mui to mais f requen-

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A história do cãnon

tes do que quando Just ino c i ta o Ant igo Testamento); influência da t radiçãool-al; util ização de um Evangelho não canônico (como o Evangelho de Pedro);ut i l ização de uma harmonia dos evangelhos anter ior à de Taciano; ut i l izaçãode uma compilação harmonizante de palavras de Jesus para uso catequético,com base em Mateus e Lucas. O problema não recebeu, realmente, respostasatisfatória. Que Justino tenha tido à sua disposição uma coleção dos quatroevangelhos canônicos é pouco provável . Que ele tenha atr ibuído uma autor i -dade normativa a esse único evangelho quádruplo parece excluído.

Em terceiro lugar, Justino nos oferece o testemunho mais antigosobre a utilização litúrgica dos evangelhos, ao lado do Antigo Testa-mento. "No dia que chamamos de dia do sol, todos, quer morem nacidade ou no campo, se reúnem num mesmo lugar, e se leem as Me-mórias dos apóstolos ou os escritos cios profetas enquanto o tempoo permitir. Depois, quando o leitor termina, o que preside toma apalavra para nos dirigir conselhos e nos exortar a imitar esses belosensinamentos. Em seguida, nos levantamos todos juntos e rezamosem voz alta..." (IApologia 67,3-5).

Dessa preciosa descrição do culto dominical, guardar-se-á o Fatode que os evangelhos ocupam o mesmo lugar que as Escrituras an-tigas; eles são lidos publicamente na assembleia e servem de basepara a homilia que se segue. Colocados no mesmo plano que o An-tigo Testamento, os escritos apostólicos adquirem urna nova digni-dade, um estatuto de Escritura sagrada. Vê-se, assim, que a leituralitúrgica é um Fator muito importante no processo de delimitaçãodo cânon, É o que confirma a passagem do Fragmento de Muratorirelativa ao Pastor de Hermas (1.77-80): a obra é boa para ler, masnão deve ser admitida entre os livros que são lidos em público porOcasião do culto; ela não pode ter lugar "nem entre os profetas, cujonúmero está completo, nem entre os apóstolos, que estão no Fimdos tempos".

O Diatessaron de TacianoTaciano, nascido na Síria de pais pagãos e convertido ao cristia-

nismo, em Roma, sob a influência de Justino, é o autor de um Dis-curso aos ~regos, requisitório apaixonado contra o helenismo pagão.

História do cânon do Novo Testamento

Mas seu nome é sobretudo associado à composição do Diatessaron,obra que mistura os quatro evangelhos num único relato coerente econtínuo. Taciano o redigiu provavelmente em grego, em Roma, porvolta de 170, antes de voltar para a Síria e lá Fundar o movimentoascético dos encratistas, que será tachado de herético. Infelizmente,a harmonia de Taciano está perdida e não pode ser reconstituída, anão ser çragmentariamente a partir de fontes secundárias, de origemoriental (como o Comentário do Diatessaron redigido no século lVpor Errem, o Sírio) ou ocidental (por exemplo o códice Fuldensis daVulgata, ou a Harmonia de Liège em holandês-médio).

O Diatessaron de Taciano é um fenômeno muito interessantedo ponto de vista da história da canonização dos evangelhos. Eleé o testemunho mais antigo de uma utilização conjunta dos quatroevangelhos. Deve-se daí concluir, como frequentemente se tem fei-to, que eles Formavam uma coleção canônica na época de Taciano?Várias observações se opõem a tal conclusão. Há, primeiramente,o tratamento a que Taciano submete suas fontes. A liberdade comque fundiu, em um relato novo, a substância dos quatro evangelhosindica que eles não tinham, a seus olhos, um valor único e exclusivo.Ele fez com suas fontes o que Mateus e Lucas tinham feito comMarcos. Em seguida, é preciso destacar que os materiais reunidosno Diatessaron não provêm exclusivamente dos evangelhos canô-nicos, mas que Taciano extraiu também de outras fontes. Enfim, osucesso da obra é significativo: o Diatessaron, longe de suscitar opo-sições, gozou de uma grande popularidade e se impôs, durante maisde dois séculos, como "o Evangelho" das Igrejas de língua siríaca.Se ele foi tão amplamente recebido é porque oferecia uma respostaao problema levantado para a Igreja antiga pela existência de umapluralidade de evangelhos.

As resistências à pluralidade dos evangelhosA adoção de um cânon de quatro evangelhos não decorreu natu-

ralmente. Forças poderosas atuando em outras direções estiveramem ação durante os dois primeiros séculos. A tendência a se concen-trar em um único evangelho não cessou de se manifestar.

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A história do cânon

Originalmente, cada um dos evangelhos que se tornaram canô-nicos foi redigido para se bastar a si mesmo; visava tornar-se o textode referência para determinada comunidade ou determinado gru-po de comunidades. Assim, Mateus ou Lucas foram escr, itos parasubstituir Marcos, e não para lhe servir de complemento. Da mes-ma forma, João -- quer tenha ou não conhecido a existência dossinóticos --foi certamente redigido para ser reconhecido como oúnico testemunho autêntico sobre Jesus. Num primeiro período,cada evangelho deve ter sido transmitido e utilizado individualmen-te numa comunidade ou numa dada região. Quando vários evange-lhos começaram a circular e a ser conhecidos juntos, numa mesmaIgreja, isso foi uma inovação, que pode ter parecido para alguns umaruptura com o uso recebido.

A preferência por um evangelho único é ilustrada pela escolhade Marcião, que só reconhecia como autêntico uma versão revisa-da de Lucas. Manifesta-se também naqueles que, como Taciano eoutros, empreenderam harmonizar os diversos relatos evangélicosem um só.

A resistência à canonização dos quatro evangelhos encontrou,naturalmente, com que se alimentar na constatação das diferençasque os separam. Apoiou-se especialmente no modo muito diferentepela qual começam. Os defensores do evangelho quádruplo tive-ram de responder a essas críticas, como o mostram o Fragmento deMuratori (1.16-20) e lreneu (Contra as heresias 111,9,1-11,7). Os doisinsistem no fato de que, malgrado a diversidade de seus "começos"(principia), os quatro evangelhos comunicam uma mesma doutrinae são expressão de um mesmo Espírito.

O Fragmento de Muratori reflete também os ataques de que foiobjeto o evangelho de João, em fins do século Ii, da parte dos ad-versários do montanismo. A seus olhos, o livro não foi escrito peloapóstolo João, mas pelo herético Cerinto. No Fragmento, o relatodas circunstâncias extraordinárias da redação do evangelho tem porobjetivo refutar esses ataques: João escreveu sob seu próprio nome,mas com a aprovação de todos os seus condiscípulos (1.10-16). Não

História do cânon do Novo Testamento ,.

é possível, portanto, rejeitar seu testemunho usando como argu-mento as divergências entre seu relato e o dos outros evangelistas.

I. 2. As cartas de Paulo: de um auditório particular para aIgreja universal

Três pontos retêm a atenção na seção do Fragmento de Muratorirelativa às cartas de Paulo. 1) O Fragmento atesta a existência deuma coleção canônica de treze cartas paulinas (a ausência da epís-tola aos Hebreus é típica da Igreja do Ocidente). O que sabemos damaneira pela qual essa coleção se constituiu e das Formas que elapôde assumir? 2) O Fragmento insiste no fato de que as cartas têmpor destinatária a Igreja universal. Paulo escolheu escrever a seteIgrejas para mostrar que queria se dirigir a rodas (simbolismo do nú-mero sete); mesmo quando escreveu a indivíduos, tinha em mentea Igreja católica. Temos aí o eco do problema posto pelo caráter par-ticular do endereço das cartas de Paulo, no correr do processo queconduziu à sua canonização. 3) O Fragmento enumera as cartas àssete Igrejas na ordem em que Paulo as escreveu. Essa ordem chamaa atenção para a estrutura do corpus paulino e para os diversos ar-ranjos atestados na tradição manuscrita e nas fontes patrísticas.

Quando e como ~ram reunidas as cartas de Paulo ?Na falta de dados suficientes, a reconstituição dos começos da

história das cartas paulinas e da formação do corpus pertence ao do-mínio da hipótese. Sem entrar no detalhe das diversas teorias pro-postas, reteremos os elementos a seguir.

Vários indícios mostram que as cartas de Paulo devem, muitocedo, ter circulado e sido lidas em outras comunidades além daque-las a que foram originalmente dirigidas. Os endereços de algumasdelas foram retocados no sentido de as universalizar (Rm 1,7.15;1Cor 1,2). O fato mesmo de terem sido compostas cartas pseudepi-gráficas (Colossenses, Efésios, 2 Tessalonicenses, as pastorais) im-plica também uma circulação ampla e um reconhecimento das car-tas autênticas fora de seu lugar original de destino. Uma nova carta

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A história do cânon

de "Paulo" só podia ser recebida como tal em um meio onde outras

i~ t inham c i rcu lado. O in tercâmbio de car tas ent re co lossenses elaod icenses, recomendado em Colossenses 4 ,16, p ressupõe que oautor conhecia semelhante prát ica ou quer[a encorajá-la. Tudo Jssose opõe, claramente, à hipótese segundo a qual as cartas de Pauloteriam caído no esquecimento depois da morte do apóstolo -- o queexplicaria o silêncio dos Atos a seu respeito -- e só teriam sido postasem circulação no fim do século 1, graças a uma iniciat iva individual.

A reunião das cartas de Paulo e sua inserção numa coleção nãodevem ser separados de out ros aspectos da recepção da herançapau l ina : o t raba lho redac iona l que marca a lgumas car tas e a pro-dução de cartas pseudepigráficas. Essas diversas at ividades devemser compreend idas como e lementos de um mesmo pro je to , que é ainiciat iva de um grupo de pessoas e teve lugar no tempo. A hipótesemais veross ími l é a que postu la a ex is tênc ia de uma esco la pau l i -na, interessada em conservar e fazer frut ificar a herança de Paulo.Compreendemos melhor a existência dessa escola se a inscrevemosna continuidade do grupo de colaboradores que auxi l iaram o após-tolo, durante sua vida, na real ização de sua missão. Nada impede depensar que o trabalho de reunião das cartas de Paulo tenha começa-do logo depois da morte do apóstolo.

Quais são os traços mais antigos da existência de uma coleção rea-grupando o corpus paulino? Clemente de Roma e lnácio de Antioquia,na passagem do século 1 para o I I , conheciam, seguramente, váriasepístolas paulinas, mas é difícil precisar seu número e saber se eles asl iam numa coleção. Um pouco mais tarde, quando o autor de 2 Pedrofala de "todas as cartas" do "amado irmão Paulo" (2Pd 3,15 s.), é pro-vável que a expressão designe um conjunto já consti tuído. Mas é comMarcião, por volta de 140, que a existência de uma coleção e de umaedição das cartas de Paulo é atestado de maneira segura.

]V larc ião e as pr imei ros ed ições do corpus pau l ino

O corpus pau l ino de Marc ião compreend ia dez car tas , a r ran ja-das na segu in te ordem (conforme o l i v ro V do Cont ra Marc ião de

Tertul iano): Gálatas, 1-2 Corínt ios, Romanos, 1-2 Tessalonicenses,

História do cânon do Novo Testamento

Efésios ("Laodicenses", segundo Marcião), Colossenses, Fi l ipenses,Filêmon. Na opinião de alguns, Marcião teria sido o primeiro a ter reu-nido e editado a herança literária de Paulo. Na ordem da coleção tem-se, frequentemente, visto também um reflexo da teologia de Marcião,já que ele dá o primeiro lugar a Gálatas, a carta em que se exprimemais claramente a oposição entre cristianismo e judaísmo. Hoje essasopiniões estão abaladas, na medida em que a pesquisa estabeleceuque Marcião repetiu o conteúdo e a ordem de uma edição anterior.

Dois arranjos das cartas de Paulo, correspondentes a duas edi-ções diferentes do corpus paulino, Foram postos em evidência pelapesquisa, a part ir de uma comparação entre os dados dos manuscri-tos e os documentos da época patríst ica que enumeram as cartas doapóstolo9. Nos dois casos, a ordem foi determinada por um mesmopr inc íp io , o do compr imento decrescente das car tas - - com a d i -ferença proveniente da maneira de tratar as cartas dir igidas a umamesma Igreja (1-2 Cl e 1-2 Ts).

Uma das edições -- sem dúvida a mais antiga-- era baseada na simbólica donúmero sete (Paulo, escrevendo a sete Igrejas, dirige-se à Igreja universal; ver oFragmento de Muratori) e contava as cartas duplos como uma única unidade.A ordem era a seguinte: I-2 Coríntios, Romanos, Efésios, 1-2 Tessalonicenses,Gálatas, Filipenses, Colossenses (Filêmon podia estar junto com Colossenses;a inclusão das pastorais é muito duvidosa). Noutra edição, as cartas dirigidas àmesma comunidade eram contadas separadamente, e a ordem era praticamen-te a que se tornou canÔnica (única diferença: Gálatas agora precede EFésios):Romanos, 1 Coríntios, 2 Coríntios, Efésios, Gálatas, Filipenses, Colossenses, 1Tessalonicenses, 2 Tessalonicenses, com as cartas pessoais em seguida, comona ordem canônica.

A originalidade da edição de Marcião -- com a ordem Gálatas, 1-2 Corín-tios, Romanos no início -- reencontra-se, no século IV, em duas testemunhassiríacas -- o comentário das epístolas de Paulo de Eçrém e uma lista canÔnicaencontrada no Sinail° -- que refletem a ordem de uma antiga versão siríaca do

Ver Herman Jose£ FREDE, Dia Ordnung der Paulusbrie£e und der Platz desKolosserbrie£s ira Corpus Paulinum, in Vetus latina. Dia Reste der altlateinJschenBibel, Freiburg, Herdar, 1969, 24/2,290-303; Nils Alstrup DAHL, -lhe Origino£the Earliest Prologues to the Pauline Letters, Semeia 12 (1978) 233-2??.Ver Alexandre SOUTER, The Text and Canon of the New Testament, Lon-don, Duckworth, 19t2, 184.

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A história do cânon

c arpus paulino. A ordem da siríaca não parece devida à infuência de Marcião.Nesse caso, a colocação de Gálatas no início da coleção deve ser anterior aMarcião; não reflete uma parcialidade teológica, mas responde, sem dúvida,ao cuidado de dispor as cartas em ordem cronológica.

2. OS LIVROS CONTESTADOS: AS DIVERSAS VIAS PARA OFECHAMENTO DO CÂNON

Em sua primeira parte, o Fragmento de Muratori menciona todosos livros que constituem o núcleo sólido do Novo Testamento, nofim do século II, com uma única exceção: I Pedro. Ora, essa epístolafaz parte dos livros plenamente reconhecidos na época mesma doFragmento, em Ireneu e Tertuliano. Esse silêncio é, portanto, muitoespantoso. Possivelmente se explica da seguinte maneira: na parteperdida do início, o texto devia apresentar Marcos como discípulode Pedro (c£ Papias) e citar, em apoio dessa filiação, I Pedro 5,13 ('~comunidade dos eleitos que está em Babilônia vos saúda, bem comoMarcos, meu filho"). O versículo em questão Foi utilizado da mesmamaneira que I João I, 1.3-4, que serve para confirmar a credibilidadedo evangelho de João (I. 26-33). É possível, aliás, que esse recurso aI Pedro 5,13 em relação com a redação de Marcos remonte a Papias,como parece sugerir Eusébio em História eclesiástica li, 15,2.

Chegamos, agora, aos livros contestados, cujo lugar no cânon sóse impôs muito tardiamente. O Fragmento de Muratori testemunhaas hesitações que marcaram o processo de canonização das epís-tolas católicas -- com exceção de 1 João e de 1 Pedro -- tanto noOriente como no Ocidente. Ele passa em silêncio Tiago e as duascartas de Pedro. Menciona, é certo, Judas e as duas cartas "inscritasem nome de João" (2 e 3 João), mas para sugerir que a recepçãodesses escritos na "Igreja católica" não decorria naturalmente, quesua atribuição a autores apostólicos era controvertida. Essas cartassão "consideradas" ou "conservadas na Igreja católica (in catholicahabentur) tal como a Sabedoria escrito pelos amigos de Salomão,em sua honra" (1.68-71). O que vale para a Sabedoria vale tambémpara as cartas apostólicas: a Igreja pode "receber" um livro, tê-lo emestima, mesmo que não tenha sido composto pelo autor cujo nome

História do cânon do Novo Testamento

traz, mas por "amigos", pessoas habilitadas a falar em seu lugar emovidas por motivos "dignos". A ausência da epístola aos Hebreusno Fragmento de Muratori é um sinal de sua dificil recepção no NovoTestamento da Igreja do Ocidente.

2.1. A delimitação do cânon na Igreja grego

A partir do século III, vários traços marcantes sobressaem na his-tória do cânon da Igreja grego: o esforço de Eusébio para, apoian-do-se em Orígenes, classificar os escritos antigos em relação ao seugrau de aceitação na Igreja; a tomada de posição oficial de Atanásiode Alexandria, fixando, pela primeira vez, um cânon de 27 l ivros;o questionamento do Apocalipse e a persistente resistência à suarecepção na Igreja grego.

Or[genes

O grande teólogo alexandrino (185-254), graças à amplidão desuas leituras e a suas numerosos viagens, conhecia os usos das di-ferentes Igrejas e a diversidade de textos que elas recebiam. EmHistória eclesiástica VI,25,3-12, Eusébio reuniu várias passagens emque Orígenes Fala dos livros do Novo Testamento. É claro que Eu-sébio não encontrou em Orígenes uma verdadeira lista dos escritosdo Novo Testamento, que teria sido o equivalente do catálogo doslivros do Antigo Testamento que ele reproduziu logo antes (Histó-ria eclesiástica VI,25,1-2). Não há, portanto, propriamente falando,um "cânon de Orígenes". Mas encontram-se em sua obra os ele-mentos de uma classificação tripartida, que Eusébio vai retomarpor sua conta: 1) os l ivros recebidos por toda parte ou incontes-tados (òl~oZ070úl~eV~ ou &v~u~~ppTl~~); 2) os livros controvertidos(á:l~qbLI3(zX~ól~eVcz); 3) os livros falsos (çeuõfl). A primeira categoriareagrupa os quatro evangelhos, treze cartas de Paulo, 1 Pedro, 1João, Atos e Apocalipse. Os livros da segunda categoria são aquelesa propósito dos quais Orígenes se fez eco de uma dúvida: 2 Pedroe 3 João, Hebreus (segundo Eusébio, VI,25,8-12.), bem como Tia-go (Comentário sobre João XX, 10) e Judas (Cornentário sobre Ma-

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A história do cânon

teus XVll,30). O terceiro grupo abrange os livros rejeitados por se-í'em redigidos pelos heréticos, como os evangelhos cios Egípcios, deBasilide, de Tomé ou de Matias (ver Homilia / sobre Lucas).

Eusábio de CesareiaA História eclesiástica de Eusébio, que teve várias redações entre

304 e 325, é um documento capital para a história do cânon. Ela éo resultado de uma pesquisa sistemática do bispo de Cesareia, querecolheu particularmente tudo o que concernia ao uso dos textoscristãos antigos nos escritores do passado e na Igreja de seu tempo.Em sua História eclesiástica 111,25, Eusébio nos dá um testemunhode suma importância sobre a situação que prevalecia no mundo gre-go no início do século IV (texto reproduzido no boxe a seguir).

O texto de Eusébio, que foi interpretado de maneiras diversas, pa-rece, na verdade, distinguir, depois de Orígenes, três grandes catego-rias de escritos: 1) os livros reconhecidos por todos (ól~O~OyO61~ev~);2) os livros contestados (&v~~.~eyólaev~); 3) os livros dos heréticos.Há uma nítida fronteira entre a terceira categoria, ligada à heresia,e as duas primeiras, que têm em comum o fato de se inscreveremna tradição eclesiástica ortodoxa. A dificuldade que se encontra notexto é a distinção que Eusébio parece introduzir no interior da ca-tegoria dos livros contestados. Ele apresenta, sucessivamente, duaslistas: 2a) os livros contestados "mas recebidos, no entanto, pelamaioria" (yvc~pqx~ 8' oüv ~iac0ç zo%ç ~o~Zo%ç); 2b)os livros contes-tados e inautênticos "de pai desconhecido" (vó0o0. Na realidade, osdois subgrupos se distinguem apenas por um grau maior ou menorde aceitação; eles se opõem aos livros reconhecidos por todos, Éisso que explica a dupla menção do Apocalipse de João nos textosde Eusébio: alguns o colocam entre os livros incontestados e outroso rejeitam classificando-o entre os livros "bastardos".

A comparação entre a notícia de Eusébio e o Fragmento de Mu-ratori revela pontos comuns, que indicam que a situação não mu-data muito entre o fim do século 11 e o início do século IV O "nú-cleo resistente" dos escritos incontestados é quase o mesmo: quatro

História do cânon do Novo Testamento

evangelhos, Atos, cartas de Paulo, 1 João, 1 Pedro. O estatuto dascinco outras epístolas católicas permanece sempre incerto. A classi-ficação de Eusébio é próxima da que podemos extrair da análise doFragmento de Muratori: 1) livros recebidos sem discussão; 2) livrosrecebidos, mas que se prestam à discussão, seja 2a) admitidos paraa leitura litúrgica, seja 2b) não admitidos para a leitura litúrgica; 3)livros excluídos por serem heréticos.

Mas é preciso também destacar as diferenças, É certo queEusébio, quando menciona "as epístolas de Paulo", inclui, implícita-mente, a epístola aos Hebreus, o que é conforme ao uso unânimedas Igrejas do Oriente. Ele se faz eco, também, das divergências deopinião dessas mesmas Igrejas orientais a respeito do Apocalipse deJoão. Em sua classificação, o historiador do século IV utiliza termostécnicos. A categoria dos livros contestados é mais ampla do quenos Fragmentos: encontram-se aí o Pastor de Hermas e o Apocalip-se de Pedro, mas são juntados a eles os Atos de Paulo, a epístola deBarnabé, a Didaché, bem como o evangelho dos Hebreus. Os escri-tos citados para ilustrar os livros "absurdos e ímpios" dos heréticos(evangelhos e Atos dos apóstolos apócrifos), sem equivalente noFragmento, não devem ser postos na conta de um conhecimentodireto de Eusébio, mas provêm de suas fontes.

Eusébio de Cesareia*

(História eclesiástica 111,25, I-7)"Os livros reconhecidos(l) Neste ponto, parece-nos razoável recapitular os escritos do Novo Testa-mento que foram assinalados. E, certamente, é preciso colocar em primeirolugar a sagrada tétrade dos evangelhos, a que se segue o livro dos Atos dosapóstolos. (2) Depois deste, convém inscrever as epístolas de Paulo, em segui-da das quais se deve ratificar a que é conhecida como primeira de João, e domesmo modo a epístola de Pedro. Depois desses escritos, deve-se colocar, separecer conveniente, o Apocalipse de João, a respeito do qual exporemos as(diversas) opiniões em tempo oportuno.(3) Esses aí (devem ser colocados) entre os livros reconhecidos.

* (Segundo a tradução de J.-D. Kaestli, inspirada em parte em IM.-J.LAGRANGE, Histoire ancienne du cânon du Nouveau Testament, Paris,

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A história do cânon

Gabalda, 1933, 106-107, e em G. BARDY, Sources Chrétiennes 31, Pa-ris, Cer£ 1952, 133-134.)

Os livros contestados e conhecidos da maioriaEntre os l ivros contestados, mas, contudo, conhecidos da maior ia, temos aepístola chamada de Tiago, a de Judas, a segunda de Pedro, e as que nomea-mos a segunda e a terceira de João, quer sejam do evangelista ou de um outroque tinha o mesmo nome.

Os outros livros contestados e inautênticos(4) Entre os inautênt icos (vó0ot: bastardos, de pai desconhecido) devem-seclassificar também os Atos de Paulo, aquele que chamamos o Pastor, o Apoca-lipse de Pedro, e além desses a epístola que temos de Barnabé, e o que é cha-mado de Ensinamentos dos Apóstolos; e a inda, como eu disse, o Apocal ipsede João, se isso parecer conveniente; alguns, como eu disse, o rejeitam, masoutros decidem admiti-lo entre os livros reconhecidos.(5) Entre esses mesmos l ivros, a lguns igualmente colocaram o evangelho se-gundo os Hebreus, no qual encontram part icular a legr ia aqueles entre os he-breus que aceitaram Cristo.

Em face dos livros que pertencem à tradição da Igreja, os livros dos herét,'cos

(6) Todos esses são do número dos livros contestados. Pareceu-nos, no entan-to, necessário Fazer uma lista distinguindo os escritos que, segundo a tradiçãoeclesiástica, são verdadeiros, não Forjados e reconhecidos, e os escritos que,di ferentemente deles, não são testamentár ios, mas contestados e, contudo,conhecidos da maioria dos (autores) eclesiásticos; (fizemos isso) a fim de quesejamos capazes de distinguir esses mesmos escritos e aqueles que, entre osheréticos, são apresentados sob o nome dos apóstolos e que contêm evange-lhos ditos de Pedro, de Tomé, de Matias e de outros ainda ao ledo deles, ou dosAtos ditos de André, de João e de outros apóstolos.

O que permite reconhecer os livros fabricados pelos heréticosDesses escritos, jamais nenhum daqueles que pertencem à sucessão dos auto-res eclesiást icos ju lgou conveniente Fazer a menor menção numa obra. (7)Além disso, o caráter do est i lo se afasta do uso apostól ico; o pensamento e atendência de seu conteúdo estão em completo desacordo com a verdadeiraortodoxia e mostram claramente que são escr i tos For jados por herét icos. Porconsequência, não se deve nem mesmo classificá-los entre os livros inautênti-cos, mas deve-se rejeitá-los como completamente absurdos e ímpios."

Atanásio de Alexandria: a primeira lista completa dos 2 7 livros

A 39a Carta Festiva de/Atanásio, datada de 367, marca umaetapa decisiva na história do cânon, porque pela primeira vez dá

História do cânon do Novo Testamento

a l ista completa dos 27 l ivros do Novo Testamento. Nessa cartaencíclica às Igrejas do Egito, o bispo de Alexandria estabelece alista das Escrituras "canonizadas" do Antigo e do Novo Testamen-to. Uma vez enumeradas essas Escrituras, Atanásio sublinha seuestatuto canônico: "São essas as fontes da salvação, de maneiraque o homem sedento pode beber à saciedade as palavras que aí seencontram; só por elas pode a doutrina da piedade ser anunciada;que ninguém lhes acrescente, nem lhes retire seja o que for (c£ Dt4,2; Ap 22,18 s.)".

Depois de ter assim definido, claramente, os limites do cânon,Atanásio ainda acrescenta: "Mas, para maior exatidão, sou obri-gado a acrescentar isto, também, à minha carta, que há outros li-vros fora desses, que não são canonizados, mas cuja leitura o usorecebido dos pais prescreve aos iniciantes que querem receber oensino catequético da verdadeira religião: a Sabedoria de Salomãoe a Sabedoria de Sirac e Ester e Judite e Tobias e aquela que cha-mamos de a Doutrina dos apóstolos e o Pastor. Entretanto, meuscaros, nem entre os livros canonizados (K~vovLÇókev~), nem entreos livros a serem lidos (&V~yLVCOOKó#ev~), em nenhuma parte se fazmenção de algum livro apócrifo (&~róKpudp~); esses aí são invençõesdos heréticos, que os escreveram quando bem quiseram, depois osdotaram e enriqueceram de anos, a fim de que, ao produzi-los cornoescritos antigos, tivessem urna aparência de verdade para enganaras pessoas de F~ íntegra" ".

A tomada de posição de Atanásio fez sentir seus efeitos no Egito-- talvez tenha estado diretamente na origem do enterramento dosmanuscritos coptas de Nag Hammadi, que deviam fazer parte doslivros denunciados corno "apócrifos". Mas ela não se impôs em ou-tras regiões da Igreja do Oriente. É o que mostra, particularmente,o longo questionamento do Apocalipse.

Tradução da Car ta Fes t i va 39 de A tanás io em Jean -Dan ie l KAESTL I ,Otto WERMELINGER (éds.) , La canon de [ 'Ancien Testament. Sa Forma-t ion et son histo i re, Genève, Labor et Fides, 1984, 141-144. Ver também,no mesmo vo lume , a ap resen tação da Le t t re no a r t i go de E r i c JUNOD,124-130.

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A história do cânon

O questionamento do Apocalipse e a resistência à sua canonizaçãona Igreja gre£aNos testemunhos do século il, o Apocalipse é regularmente ci-

tado como uma revelação do apóstolo João (p. ex. Justino, ,Diálogo81,4; Ireneu, Contra as heresias V,5,2; V,26, l; V,30,3; Tertuliano, Depudicitia 20; Fragmento de Muratori, 48-49). Mas a reação contrao montanismo, que exaltava a profecia e a expectativa milenarista,ocasionou uma rejeição dos apocalipses cristãos, o de João em par-ticular. Encontra-se um eco dessa polêmica em um discípulo de Orí-genes, Dionísio de Alexandria (bispo de 247 a 264). Uma obra deDionísio intitulada Sobre as promessas, que tratava do Apocalipse,é citada longamente por Eusébio (História eclesiástica VII,25). Dionísioconta que, no passado, esse livro foi rejeitado por alguns: "eles o cri-ticaram capítulo por capítulo, declarando que era ininteligível e in-coerente, e que seu título era mentiroso", que não era de João, masdo herético Cerinto. O próprio Dionísio adota uma posição mais mo-derada. Ele não ousa rejeitar um livro que "muitos dos irmãos têmem grande apreço" e admite que seu autor era um homem santo einspirado por Deus. Mas afirma que seu conteúdo lhe é incompreen-sível e, sem dúvida, esconde um sentido profundo. Dionísio demons-tra, por outro lado, com a ajuda de uma análise rigorosa da língua edas ideias, que o livro não é do apóstolo João, autor do evangelho eda epístola católica, mas de um personagem do mesmo nome.

A rejeição do Apocalipse por reação contra o milenarismo mon-tanista, substituída pela crítica da autenticidade, feita por Dionísiode Alexandria, vai exercer uma influência durável na Igreja grega.Os limites exatos do cânon não tinham estado claramente fixadospor uma decisão conciliar, ao contrário do que se tinha passado naIgreja latina.

A incerteza que reinou sobre o lugar do Apocalipse no cânon é abundante-mente atestada. Ela é evidente em Eusébio, na passagem já citada, na qual oApocalipse é colocado tanto entre os livros reconhecidos como entre os livrosinautênticos, acompanhado, de cada vez, pela fórmula "se parecer convenien-te" (História eclesiástica 111,25,2.4). Vários dos catálogos de livros canônicos doséculo IV não mencionam o Apocalipse: Cirilo de Jerusalém, Catequeses pré-

História do cânon do Novo Testamento

batismais IV,36 (350); cânon 85 das Constituições apostólicas VI11,47 (c. 380).Gregór io de Nazianzo, Poemas 12,30-39 (c. 383-390). A l is ta em verso deAnfilóquio de Icônio (1" 396), em seus/ambos a Selêuco, menciona-o, explican-do que "alguns o aceitam, mas a maioria diz que ele é inautêntico (vóOoç)''12.Os representantes da escola de Ant ioquia, João Cr isóstomo (c. 347-407),Teodoro de Mopsuést ia (1" 428) ou Teodoro de Cyr (393-466) parecem real-mente ficar com um Novo Testamento de 22 l ivros, sem as quatro pequenascartas católicas e sem o Apocalipse, como a Peshitta (ver adiante).

A incerteza não fo i d iss ipada pelo concl l io In Trul lo (692)13 ou conclqio"Quinisextum". Reconheceu-se, nessa ocasião, como normativa para a Igrejauma série de documentos mais antigos que, de fato, estão em desacordo como cânon. A falta de clareza dessa decisão conciliar explica por que o estatutoincerto do Apocalipse deixou traços, por muito tempo ainda, na Igreja bizanti-na. Sobre este ponto, o testemunho dos manuscritos é mais eloquente do queo dos textos patrísticos ou conciliares. A contagem da representação das dife-rentes partes do Novo Testamento no conjunto de manuscritos gregos enume-fados põe realmente em evidência a importância secundária do Apocalipse14:

Manuscr i tos (mss.) contendo o conjunto do NT grego: 5 9Mss. contendo evangelhos - Aros + ep. cat . - ep. Paulo 149Mss. e fragmentos de mss. dos evangelhos 2120Mss. e fragmentos de mss. dos Aros + ep. cat. 447Mss. e fragmentos de mss. das ep. Paulo 571Mss. e fragmentos de mss. do Apocalipse 228

2. 2. O encerramento do cânon da l£reja latina

A fixação definitiva do cânon de 27 livros ocorreu, na Igreja lati-na, mais cedo do que na grega. Ela foi sancionada por decisões con-ciliares em boa e devida forma, tomadas especialmente por ocasiãodos sínodos regionais de Cartago, em 397 (confirmação de uma

12Tradução desses catálogos em KAESTLI, WREMWLINGER, Le cânon del'Ancien Testamenti, 140-141,147-150.

13 "Trullanum 11", recusado pelo papa Sérgio e considerado concflio ecumêni-

co pela Igreja grega. (N. da T)14 Estat íst icas do Inst i tut for neutestament l iche Text forschung de Münster,

em Kurt ALAND, Barbara ALAND, Der Text des Neuen Testaments. Ein-f 'ührung in d ie wissenschaft l ichen Ausgaben sowie in Theor ie und Praxisder modernen Textkritik, Stuttgart, Deutsche BibelgesellschaPc, 1982, 92.

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v

História do cânon do Novo Testamentohistória do cânon

decisão do sínodo de Hipona em 393) e em 419. Mas até as últimasdé~cadas do século IV o Novo Testamento dos latinos não continhaa epístola aos Hebreus, nem cinco das epístolas católicas (Tiago, 2Pedro, 2 João, 3 João e Judas). Essa singularidade já é peçceptívelno Fragmento de Muratori, que ignora Hebreus, Tiago e 2 Pedro, edeixa entrever uma hesitação a propósito de 2 João, 3 João e Judas.Ela sobressai muito claramente na análise das obras de Cipriano deÇartago (metade do século 111), que contêm numerosas citaçõesb~licas. Cipriano cita todos os l ivros do Novo Testamento, salvoFilêmon, Hebreus, Tiago, 2 Pedro, 3 João e Judas (a ausência deFilêmon deve ser acidental).

A epístola aos Hebreus

A difícil recepção dessa epístola no Ocidente se deve ao fato denão ser considerada uma carta de Paulo -- as Igrejas grega e siría-ca, ao contrário, desde muito cedo a colocaram no corpus paulino.lreneu e Tertuliano a conhecem, mas não atribuem sua redação aPaulo e a ela se referem de uma maneira que mostra que ela não go-zava, para eles, do mesmo valor que os livros que constituem o NovoTestamento. Tertuliano a cita uma vez como um escrito de Barnabéaos hebreus (De pudicitia 20). Nos séculos !I! e IV, os autores latinosnão falam dela ou, se a citam, abstêm-se de atribuí-la a Paulo.

A reação contra o montanismo deve ter influído nessa rejeiçãoda epístola aos Hebreus no Ocidente. Ao afirmar que os pecadoscometidos depois do batismo não podiam ser perdoados, Hebreusdava a impressão de justificar o rigorismo moral dos montanistas. Adureza dessa posição não estava de acordo com as ideias e as práti-cas penitenciais que predominavam na Igreja do Ocidente.

A mudança de atitude que permitiu a aceitação de Hebreus nocânon é claramente devida à influência da Igreja grega. A quere-la ariana foi a ocasião de urna aproximação dos defensores da or-todoxia nos mundos grego e latino. Vários dos Padres latinos quecontribuíram para o reconhecimento da canonicidade da epístolativeram estadas prolongadas no Oriente (Hilário de Poitiers, Lúci-

ler de Calaris, Jerônimo). Em 396, Agostinho, endossando o cânonde Atanásio, faz a lista dos livros b~licos e coloca Hebreus entre ascartas de Paulo, mas em último lugar, depois de Filêmon (De doc-trina christiana li, 13). Em suas obras tardias, entretanto, ele tornao cuidado de sempre citar Hebreus como um escrito anônimo. Alista homologada pelo sínodo de Cartago (397) contém os 27 livros,mas atesta ainda, por um detalhe, a hesitação da Igreja latina emreconhecer a paternidade paulina de Hebreus: a menção das "trezecartas de Paulo apóstolo" é seguida de um desajeitado "do mesmo,uma aos Hebreus" (Epistulae Pauli Apostoli XIII, eiusdem ad Hebreosuna). A inclusão tardia de Hebreus no cânon da Igreja ocidental ilus-tra bem o papel desempenhado pelo critério da origem apostólica: oreconhecimento do estatuto canônico da epístola dependeu grande-mente de sua integração no corpus das cartas de Paulo.

O corpus das epístolas católicas

Tiago e as quatro epístolas católicas (2 Pedro, 2 João, 3 João eJudas) tiveram, na Igreja latina, um destino paralelo ao de Hebreus.Esses escritos nunca foram citados por Cipriano e não fazem, ma-nifestarnente, parte de seu Novo Testamento. A situação começa amudar na segunda metade do século IV. O primeiro autor ocidentala citar a epístola de Tiago é Hilário de Poitiers (360). Um catálogodos livros b~licos, de origem africana e datado de mais ou menos 360("cânon de Mommsen", do nome de seu primeiro editor, conservadonos mss. de Cheltenham e de Saint-Gall) enumera primeiramente osquatro evangelhos (Mateus, Marcos, João e Lucas), treze epístolasde Paulo, Aros, Apocalipse, depois três epístolas de João e duas dePedro (Hebreus, Tiago e Judas estão ausentes). Mas no ms. de Chel-tenham as duas últimas notações são seguidas de una sola ("uma só"),o que exprime a objeção de um leitor que só aceitava como canônicas1 João e 1 Pedro. O corpus das sete epístolas católicas, que figura embom lugar nas lista de Jerônimo e de Agostinho, será definitivamenteavalizado pelos sínodos africanos de 393, 397 e 419.

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história do c~non

Os apócrifosEm Face dos escri tos que gravitaram, por algum tempo, em torno

do Novo Testamento (a lguns Padres apostó l icos e escr i tos apócr i -fos), a Igreja lat ina teve, geralmente, uma ati tude mais restr i t iva doque a Ig re ja grega. O Oc idente era menos pronto a reconhecer umvalor espir i tual nos escri tos si tuados à margem do cânon, e não eramuito sensível às nuanças que caracterizam a classificação dos livrosem Orígenes ou em Eusébio. Mas a l i teratura apócri fa nem por issoFo i e l im inada do Novo Testamento dos la t inos . A té o fim da IdadeMédia, a epístola aos Laodicenses continuou a ser copiada com ascartas de Paulo em um grande número de manuscri tos da Vulgata.

2 . 3 . A e v o l u ç ã o p a r t i c u l a r d o c â n o n d a s I g r e j a s d e S í r i a

As Igre jas da Sí r ia or ien ta l , na reg ião do Euf ra tes , ocupam umlugar à parte na história dos primeiros séculos cr istãos, que se tra-duz espec ia lmente na manei ra de defin i r o conteúdo do Novo Tes-tamento . O cr is t ian ismo es tabe leceu-se nessa reg ião por vo l ta dametade do sécu lo !1 , numa época em que o re inado de Oshroene,com Edessa por cap i ta l , e ra a inda po l i t i camente independente doimpér io romano. Teve, ass im, um desenvo lv imento or ig ina l , re la t i -vamente pouco influenc iado pe los out ros cent ros da c r is tandade.Essa part icularidade Foi reforçada pela prát ica do siríaco, diferentedo uso na Sír ia ocidental (Antioquia), onde predominavam a l ínguae a cultura gregas.

A definição singular do Novo Testamento no seio da Igreja sir íacaé claramente expressa na Doutr ina de Addai, que data do início doséculo V e conta a história lendária da fundação da Igreja de Edessapor Addai, um enviado do apóstolo Tomé. Em seu discurso de des-ped ida, Adda i define ass im o cânon dos l i v ros dest inados à le i tu ralitúrgica: '~A Lei, os Profetas e o evangelho que ledes cada dia, diantedo povo, as cartas de Paulo que Simão Pedro nos enviou de Roma,os Atos dos doze apósto los que João fi lho de Zebedeu nos env ioude Éfeso, lede todos esses nas Igrejas de Cristo. Não leais nenhumout ro , porque não há nenhum out ro , depo is desses, em que es te ja

História do cânon do Novo Testamento

escri ta a doutr ina que abraçais: só há esses l ivros, que vos perten-cem com a £é pela qual fostes eleitos" is

O emprego do singular ("o evangelho") indica o estatuto canôni-co do Diatessaron de Taciano, na Igreja siríaca, em vez e no lugar dosquat ro evange lhos, i sso é exp l ic i tamente confirmado numa out rapassagem da Doutr ina de Addai: "Um povo numeroso, dia após dia,se reunia e vinha para a reza do of~cio, [a lei tura] do Antigo Testa-mento e do Novo, o Diatessaron" 1¿. Esse amplo reconhecimento daharmonia evangélica de Taciano, no espaço siríaco, é bem atestado,no sécu lo IV, g raças aos escr i tos de Aphraate o Sáb io persa e deEf rém, o Sí r io - - es te ú l t imo a té escreveu um comentár io sobre oDiatessaron.

Uma reação em favor do cânon dos quatro evangelhos inicia-sedurante o século V. Rabboula, bispo de Edessa (c. 412-436), ordenaque se cuide que cada Igreja tenha uma cópia e faça a lei tura de "oevangelho dos separados" (por oposição ao Diatessaron, "o evange-lho dos misturados"). Teodoreto, bispo de Cito sobre o EuFrates en-tre 423 e 457, diz ter encontrado nas igrejas de sua diocese mais deduzentas cópias do Diatessaron, que ele el iminou para substi tuí- laspor "os evangelhos dos quatro evangelistas" (Haereticorurn fabulae1,20). Essas medidas certamente contr ibuíram para impor o uso dosquatro evangelhos, mas não el iminaram totalmente o Diatessaron,que continuou por muito tempo a exercer influência, part icularmen-te entre os nestorianos.

Até por volta de 400, outras part icularidades dist inguem o NovoTestamento da Igreja siríaca e o das Igrejas gregas e lat inas. A maisev idente , que ressa l ta da passagem c i tada da Dout r ina de Adda i ,é a ausênc ia de todas as epís to las ca tó l icas e do Apoca l ipse. Ou-tras, reveladas pelo uso das Sagradas Escri turas por Aphraate e porEfrém, concernem às cartas de Paulo. O corpus incluía a epístola aosHebreus, t ida como paul ina, como na Igreja grega, mas não o bi lhete

i s Doctrine de Adda'f 88, trad. Alain DESREUNIAUX, Histoire du roi Abgar ede Jésus, Tumhout, Brepols, 1993, 108.

16 Doctrine d'Adda'f 71, 97 (tradução ligeiramente retocada).

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~, história do c&non

a F i l ê m o n . C o m p r e e n d i a t a m b é m a c o r r e s p o n d ê n c i a a p ó c r i f a e n t r eP a u l o e o s c o r í n t i o s ( l l l Ç o r í n t i o s ) , q u e E £ r é m c o m e n t o u a m e s m o

t í t u l o q u e a s o u t r a s c a r t a s d e P a u l o . U m a l i s t a c a n ô n i c a s i r í a c a , e n -

c o n t r a d a n o S i n a i e d a t a d a d e m a i s o u m e n o s 4 0 0 , s ó e n u m e r a o se v a n g e l h o s , o s A t o s e a s c a r t a s d e P a u l o , c o n fi r m a n d o , a s s i m , o t e s -

t e m u n h o d a D o u t r i n a d e A d d a i .

O cânon da Peshitta. Como já dissemos, a propósito do Diatessaron, a situa-ção começa a mudar no início do século V. É então que vem à luz a versão siría-ca da B~l ia chamada a Peshi t ta. Em relação ao Novo Testamento, a Peshi t taopera um paralelo significativo com o cânon grego: exclui Il l Coríntios e inclui,além dos quatro evangelhos "separados", Filêmon e as três grandes epístolascatólicas (Tiago, 1 Pedro e I João). Mas as quatro outras epístolas católicas eo Apocal ipse cont inuam ausentes. A Peshi t ta del imi ta, assim, um Novo Tes-tamento de 22 livros. Para uma boa parte dos cristãos de língua siríaca, essecânon não será mais posto em questão. Com efeito, o concflio de ÉFeso (431)acarretará uma ruptura entre os sírios orientais, partidários do nestorianismo,e a grande Igreja.

Em compensação, os cr is tãos da Sír ia ocidental manterão contato comas outras Igrejas e serão levados a rever os l imi tes de seu cânon. Em 508,Filoxeno, bispo de Mabugo, tomará a iniciativa de rever a Peshitta, a partir demanuscr i tos gregos, e de produzir, assim, uma tradução mais exata do NovoTestamento. Essa versão "fi loxena" inclu i rá, pela pr imeira vez, os c inco l ivrosausentes da Peshitta. Mas esse cânon grande de 27 livros só será aceito pelaparte monofisista da cristandade siríaca. Para as Igrejas nestorianas, a defini-ção do Novo Testamento permanecerá a da Peshitta, sem as quatro pequenasepístolas e o Apocalipse.

O F r a g m e n t o d e M u r a t o r i *

M a r c o s

... '(as coisas) entretanto às quais ele assistiu, ele as expôs assim.

* (Tradução de J.-D. Kaest l i , baseada no texto estabelecido por H. LIETZ-MANN, Das Murator ische FraEment, Bonn, 21908, 5-11 [Kle ine Texte Fortheologische und philologische Vorlesungen und Ubungen, 1]. Os númeroscorrespondem às l inhas do manuscr i to. Nas l inhas 69-70, o t radutor cor-rige ut Sapinetia por et Sapientia. A Sabedoria de Salomão não está incluí-da na l is ta dos l ivros do Novo Testamento, mas é mencionada a t í tu lo decomparação com o estatuto contestado de 2-3 João e Judas: embora nãotenha sido escrita pelo próprio Salomão, ela é tida em estima na Igreja.)

História do cânon do Novo Testamento

L a c a s

zO terceiro l ivro do Evangelho, segundo Lucas. 3Lucas, o médico, depois daascensão de Cristo, 4-5como Paulo o havia levado consigo, à maneira de alguémque estuda o direito, ¿escreveu, sob o seu próprio nome, segundo o que julgoubom. Também ele, entretanto, Znão v iu o Senhor na carne, e é por isso que,em função do que pôde obter [como informação], Scomeçou também ele seurelato a partir do nascimento de João.

JoaoçO quarto dos evangelhos, o de João, um dos discípulos. I°Como o exortavamseus condiscípulos e seus bispos, nele diz: "Jejuai comigo desde hoje durantetrês dias, e o que 12terá sido revelado a cada um, 13nós nos contaremos uns aosoutros". Na mesma noi te, fo i revelado 14a André, um dos apóstolos, IS4¿queJoão devia pôr tudo por escrito, sob o seu próprio nome, com o aval de todos. Eé por isso que, embora 17começos diferentes sejam ens[nados em cada um dosevangelhos, 18isso não Faz diferença alguma para a fé dos crentes, Içpois é por umúnico e soberano Espírito que 2°tudo é expresso em todos [os evangelhos]: o queconcerne 2~à natividade, à paixão, à ressurreição, 22a conversa com os seus discí-pulos, Z3sua dupla vinda, Z4a primeira [quando ele Foi] desprezado, na humilhação,que [já] teve lugar; Z»a segunda [quando ele será] glorioso, cheio de poder régio,2¿que está [ainda] por vir. Que há, portanto, 27-ZSde estranho que João exponhacada coisa tão firmemente em suas epístolas também, Zçquando diz a propósitode si mesmo: "o que vimos com nossos olhos, »ee ouvimos com nossos ouvidos,e nossas mãos 31tocaram, eis o que escrevemos" [c£ 1 Jo 1,1.3-4]. 3ZCom isso, deFato, ele sã proclama não somente testemunha ocular e ouvinte, S3mas tambémescrivão [que consignou], na ordem, todas as maravilhas do Senhor.

Atos dos apóstolosS4Quanto aos atos de todos os apóstolos, SSForam escritos em um só livro. Lu-cas, para o excelente Teófilo, ~6[nele] reúne todos os Fatos que se passaram emsua presença, 37-~Sassim como ele o mostra, também, de maneira evidente, aodeixar de lado o mart í r io de Pedro, e também a part ida de Paulo 3çdeixando aCidade para ir à Espanha.

Cartas de PauloQuanto às cartas 4°de Paulo, quais são, de que lugar e por qual mot ivo Fo-ram env iadas , 4Je las TesTas o de i xam saber aos que qu i se rem rea lmen tecompreender. 4Zprimeiro, aos Coríntios, para proibir as heresias do cisma, 43emseguida aos Gálatas [para proibir] a circuncisão, 444»depois aos Romanos, paraensinar que Cristo é a regra das Escrituras e também seu princípio, 46ele escre-vau com mais prolixidade.De cada uma delas, é necessário 47que tratemos, visto que o bem-aventurado4Sapóstolo Pau~o, ele próprio, seguindo a regra de seu predecessor 4çJoão sóescreveu, designando-as pelo seu nome, a sete 5°Igrejas, nesta ordem: aos Co-ríntios, 5'a primeira; aos EFésios, a segunda; aos Filipenses, a terceira; 52aosColossenses, a quarta; aos (3álatas, a quinta; »3aos Tessalonicenses, a sexta;

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q

,A história do c~non

aos Romanos, s4-SSa sétima, É verdade que ele escreveu mais uma vez aos Co-fíntios e aos Tessalonicenses para os repreender; 5¿-SZentretanto, reconhece-seque há uma s~ Igreja espalhada por toda a terra. Com efeito, João também, no58Apocalipse, embora escreva a sete Igrejas, Sçdirige-se, a todas.E verdade [que ele escreveu] uma carta a Filêmon, ¿°uma aTito e duas a Timó-teo, por afeição e ¿1amor; [escritas] no entanto para o bem da santa lgreja cató-lica, ¿z-¿3para a boa ordem da disciplina eclesiástica, elas se tornaram sagradas.

Cartas falsamente atribuídas a PauloCircula também uma [carta] aos Laodicenses, uma outra aos Alexandr inos,escritas falsamente sob o nome de Paulo ¿Spara [defender] a heresia de Mar-cião, e muitos outros [escritos] óóque não podem ser recebidos na Igreja católi-ca: ¿Tnão convém, com efeito, misturar o fel com o mel.

Epístola de João e de Judas, Sabedoria de Salomão68-óçNa verdade, uma carta de Judas e duas [cartas] inscr i tas [no nome] deJoão são consideradas, na [ Igreja] catól ica, assim como a Sabedor ia escr i tapelos amigos de Salomão em sua honra.

ApocalipseZlDos apocal ipses, também, recebemos somente o de João e o de Pedro,z2"ZSque alguns dos nossos não querem que se leiam na Igreja. Quanto ao Pastor,74-ZSHermas o escreveu recentemente, no nosso tempo, na cidade de Roma,quando ocupava o trono 76da Igreja da cidade de Roma o bispo Pio, seu irmão.77E é por isso que se deve, certamente, lê-lo, ZSmas não se pode apresentá-lopublicamente na Igreja, nem entre os profetas, cujo nome está completo, nementre 8o os apóstolos [que estão] no fim dos tempos.

Escritos heréticos8JMas de Arsinoé ou de Valentino, ou de Miltiade, 8Znão recebemos absoluta-mente nada, [eles] que também escreveram um novo 8Slivro de salmos para Mar-cião, ~4Sao mesmo tempo que Basilide, o Asiático, fundador dos Catafrigianos.

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CAPiTULO

28texto do l~ovo Testamento

e sua históriaRoselyne Dupont-Roc

Não temos nenhum manuscrito original das obras do Novo Tes-tamento, assim como não temos dos outros escritos da Antiguida-de. Os textos chegaram até nós por intermédio de grande númerode manuscritos copiados ao longo dos séculos no Oriente e no Oci-dente cristãos, até vir a tipografia, que fixou, mais ou menos, o tex-to: a primeira edição impressa do Novo Testamento é a de Erasmo,em 1516.

Os manuscritos, recopJados à mão no scriptorium dos mosteiros,apresentam inúmeras diferenças de detalhe, geradas ou perpetua-das pela cópia. Chamamos de luEares variantes os versículos quecomportam diferenças, em certos manuscritos: não há quase versí-culo do Novo Testamento que não tenha sido atingido! Chamamosde lições variantes, ou mais simplesmente variantes as formas dife-rentes do texto em cada caso; os especialistas falam, hoje, de maisde duzentas mil variantes, desde o simples erro de ortografia ar~ a

transformação, a omissão ou a adição de vários versículos!A critica textual é o coniunto de procedimentos e diligências cien-

tíficas que tentam estabelecer o texto, isto é, restituir sua forma lite-ral o mais próximo possível do original.

É evidente que o estabelecimento do texto precede e comanda a

leitura e, de modo particular, o estudo exegético propriamente dito.

Page 22: Novo Testamento: História, escritura e teologia

O texto do Novo Testamento e sua história'crítica textual

A priori, a crít ica textual não teria lugar numa introdução ao NovoTestamento , v is to que desde 1966 o teor l i te rár io do tex to gregoeditado pelas sociedades b~l icas parece doravante fixado. Os espe-c ia l i s tas do tex to b~ l ico , p ro tes tantes e ca tó l icos , es tão de acordosobre o texto da edição do Novo Testamento grego (GNT), obra deuma comissão internacional integrada por K. Aland, M. Black, C.-M.Mar t in , B . M. Metzger e A. Wikgren; esse tex to se conserva idên-t ico desde a 26« edição do Novum Testamentum graece editado porNest le -A land em 1979; é comumente chamado " tex to-padrão" .

Daí resulta uma situação que apresenta o aspecto satisfatório deum acordo sobre um texto comum; mas ela comporta um risco: favo-rece, com efeito, a i lusão de uma estabi l idade do texto do Novo Tes-tamento, que o leitor poderia, de hoje em diante, considerar imutável.Felizmente, os aparatos críticos (notas de rodapé que acompanham otexto) dão testemunho da existência de variantes; e deve-se reconhe-cer o esforço científico que, de edição em edição, propõe aos lei toresaparatos críticos cada vez mais completos, precisos e legíveis.

Quem quer que que i ra ent rar numa le i tu ra c r í t i ca do Novo Tes-tamento deve, por tanto , saber que a fo rmulação or ig ina l do tex-to permanece, em par te , incer ta ; essa incer teza deve ser levadae m c o n t a e a d m i n i s t r a d a n a r e l a ç ã o q u e o l e i t o r m a n t e r á c o m otex to . Com efe i to , no decor rer dos sécu los , essas mesmas obrasforam l idas e recebidas nas comunidades cristãs com muitas varian-tes que, às vezes, comprometem grandemente a in terpre tação; oestudo das variantes revela, frequentemente, como que ao vivo, nonível das palavras ut i l izadas, os primeiros conflitos de interpretação.De cer ta manei ra , o exegeta , por sua vez , va i en t rar e tomar pos i -

ção nesse conflito.Assim, o exegeta do Novo Testamento deve, primeiro, estabele-

cer o texto que ele quer trabalhar. Ora, no processo mesmo de esta-belecimento do texto, a escolha de uma l ição variante em detr imen-to de outra está, por uma parte, l igada à coerência e à compreensãodo conjunto da passagem; essa escolha vai, então, desempenhar umpapel na anál ise l i terária e, depois, na lei tura que o exegeta proporá.Topamos, assim, com o que poderia se assemelhar a um círculo vi-

cioso: a escolha da variante sendo comandada pela compreensão dotex to , a compreensão do tex to se apo iando na var ian te esco lh ida.É, portanto, essencial que o exegeta esteja consciente da situação.Além disso, o círculo pode e, a meu ver, deve ser evitado, sob duascond ições: que as ta re fas , num pr imei ro tempo, se jam cu idadosa-mente dist inguidas e que o diálogo, em seguida, seja amplamenteaber to ent re o tex tua l is ta e o exegeta (que pode, às vezes, ser amesma pessoa, se sabe compreender os pontos de vista próprios decada disciplina).

Um exemplo ev idente é o do fim do evange lho de MarcosI .A l g u n s m a n u s c r i t o s d a t r a d i ç ã o e g í p c i a i n t e r r o m p e m b r u s c a -

mente o tex to no fim do vers ícu lo 8 (é~bopoüv l :o y0 íp : "po is t inhammedo") . Em out ros lugares , a t rad ição manuscr i ta acrescenta umfinal ao evangelho, geralmente na forma de um final longo, mas quepe lo menos em um manuscr i to cons is te em um breve anúnc io que-r [gmát ico ; os do is fina is se encont ram também, às vezes, jun tadosum em segu ida do out ro . Em todos os casos, o fina l longo tem umfe i t io l i te rár io mui to d i fe rente do res to do evange lho de Marcos enão pode ser a continuação do relato que termina em 16,8. Tradicio-nalmente, julgava-se que o final de Marcos t inha se perdido na trans-missão do manuscr i to e que desde cedo as comunidades o t inhamsubsti tuído por um final que comporta um resumo das cristofanias eda primeira missão dos apóstolos. Mas o fato de vários manuscri tosde qua l idade da t rad ição egípc ia (o S inaí t i co ~ , o Vat icano B, a mi -núscula 304), uma versão siríaca antiga (a sir íaca sinaít ica sy') e ai-gumas outras versões (dois manuscri tos coptas saídicos) terem con-servado o texto breve criou problema. Nesse ponto, a crít ica textualinst igou a pesquisa exegética; anál ises novas e mais afiadas do textode Marcos most ram que o cará ter abrupto daque le fim cor responderea lmente ao pro je to do evange l is ta , que remete o le i to r à sua pró-pria decisão e o incita a voltar para o dif íci l caminho da cruz.

Propomos, por tanto , nes te capí tu lo , uma apresentação suc in tados pr inc ipa is métodos da c r í t i ca tex tua l , para que o le i to r perceba

1 Ver acima p. 57-58.

Page 23: Novo Testamento: História, escritura e teologia

A crít ica textual

me lhor o desafio de uma le i tu ra a tenta e competente dos apara toscrít icos e possa, dada a ocasião, entrar ele mesmo, por sua vez, nodebate.

1. A T R A N S M I S S Ã O M A T E R I A L D O T E X T O

Quais eram as condições materiais da escritura?O suporte mais frequente da escritura, na Antiguidade, até o sé-

culo IV de nossa era, é o papiro. O material é frágil; escreve-se dosdois lados da folha Z0~p~rlç) com um junco talhado (KdZ«p.oç), maisfrequentemente com tinta preta (p~Z«v) (cf. 2 Jo 12 e 3 Jo 13). Di-letantes cultos podiam escrever eles mesmos, mas geralmente utili-zavam-se dos serviços de um secretário: assim Tércio se designa elemesmo no fim da carta aos Romanos: "eu, Tércio, que escrevi esta

carta" (Rm 16,22).O texto é escri to de modo contínuo, sem separação entre as pa-

lavras, sem acentuação e prat icamente sem pontuação: é a script iocont inua; a la rgura da l inha é defin ida de antemão, e uma pa lavracomeçada no fim da l inha continua na l inha seguinte. "Ler" se diz emgrego ~V(ZyLV~OK~LV, que significa, antes de tudo, "reconhecer" aspalavras! A escri tura dos papiros é cursiva, mais frequentemente emunciais ligadas2. Desde os primeiros textos cristãos, os escribas ado-tam um s is tema de cont ração para os nomes d iv inos : escrevem-seduas ou três letras sobrepostas por um traço horizontal: ~ (O~óç),- - tK ~ ( K u p t o ç ) , ~ ( ' I r l o o ü ç ) , I I N ( I I v ~ ü l a a ) , o q u e , à s v e z e s , a c a r -reta confusões.

A fo rma mais ant iga do l i v ro é o ro lo (vo lumen)" os tex tos dasEscri turas iudaicas eram recopiados em rolos. Lucas dá testemunhodisso no relato da vinda de Jesus à sinagoga de Nazaré: "deram-lheo livro (13LI3Z[ov) do profeta lsaías e, desenrolando-o..." (Lc 4,17).Por volta de fins do primeiro século de nossa era aparece o livro qua-drado (codex quadratus): empilham-se as folhas de papiro, que são

A palavra uncial é derivada do latim uncia, que significa "um duodécimo".O nome uncial vem provavelmente do fato de a letra maiúscula, de formaarredondada, ocupar um duodécimo da linha.

O tex to do Novo Testamento e sua h is tór ia

dobradas em do is e cos turadas no meio para fo rmar um cadernomanejável. O códice se difundiu primeiro em meio cristão: o papiromais antigo do Novo Testamento que possuímos, ps2, datado do sé-culo I I , provém de um l ivro quadrado.

Desde muito tempo exist ia um outro suporte, muito mais resisten-te, mas também muito mais dispendioso: o pergaminho (~~py~pxlmí,dito também, às vezes, I~~l~13p~v~, cf. 2Tm 4,13), que suplanta, pro-gressivamente, o papiro entre o terceiro e o sexto século de nossa era.A part ir do quarto século aparecem os primeiros grandes manuscri-tos da B~lia em códice de pergaminho. A perseguição de Dioclecianotinha feito desaparecer bom número de textos do Novo Testamentoescr i tos em pap i ro ; por vo l ta de 331, o imperador Constant ino en-comenda a Eusébio de Cesareia cinquenta cópias das Escri turas sa-gradas, "escri tas em pergaminho refinado, de escri ta legível e de for-mato manejável, por calígrafos competentes" (Vira Constantini 4,36s.). O Vaticanus B03, que contém o conjunto da B~lia com atgumaslacunas, poderia fazer parte desses manuscri tos.

Os manuscr i tos em pergaminho, mui to mais bem cu idados, sãoescri tos em unciais cuja forma varia um pouco no correr dos sécu-los. A part ir do século IV, o uncial é suplantado por uma escri ta maisrápida, em minúsculas l igadas, e o número de manuscri tos se mult i-pl ica, então, de modo espetacular.

A esse breve relato é preciso acrescentar algumas observaçõessobre a apresentação dos textos. O tí tulo da obra ou inscript io, ano-tado em cima, é frequentemente repetido no fim: é o subscript io. Nofim da obra, igualmente, uma espécie de vinheta ou colof&o contém,às vezes, indicações preciosas: menção do copista, do lugar, da data,número de l inhas; fina lmente , acontece que uma oração de agra-decimento seja dir igida a Deus ao final de um trabalho de cópia tãopenoso! Assim, em vários manuscri tos da tradição bizantina, a subs-cript io da carta aos Gálatas a dá como escri ta em Romas. isso nosin forma pe lo menos sobre a concepção da c rono log ia pau l ina cor -rente no período bizantino. Por razões talvez teológicas, Marcião,

s Ver acima p. 288-290.

Page 24: Novo Testamento: História, escritura e teologia

:rítica textual

na metade do século 11, considerava Gálatas a primeira das cartas de

Paulo'.Em muitos grandes manuscri tos em unciais (o Alexandrinus A02,

do sécu lo V, o Vat icanus B03, do sécu lo IV) , o tex to é d iv id ido emcapítulos, muitos dos quais têm tí tulos, o que nos dá indicações doscortes l i túrgicos ou exegéticos operados nas Igrejas.

Enfim, os palimpsestos são frequentes: o pergaminho, muito raroe muito dispendiòso, é raspado para receber um novo texto; é o casodo C04, o códice Ephraemi rescriptus, sobre o qual foram recopia-dos os sermões de Efrém. Em per{odo de penúria, os palimpsestos semult ipl icavam, a tal ponto que o concl l io de TruIIo, em 692, decidiuproibi- los: o que foi em vão. Hoje, a técnica dos raios ultravioleta nospermite reencontrar o primeiro texto raspado e recoberto.

Desde o século XIII, o papel, trazido da China pelos árabes no sé-culo VIII , se difunde: vários lecionários são copiados em papel; maso material é frági l e, para os textos preciosos, o pergaminho continuapreferido até a invenção da imprensa.

2 . OS TESTEMUNHOS DO TEXTO DO NOVO TESTAMENTO

A o c i t a r, p a r a c a d a l u g a r v a r i a n t e , t e s t e m u n h o s d o t e x t o d oNovo Testamento , os apara tos c r í t i cos fazem, necessar iamente , oamálgama de vários grupos muito heterogêneos:

-- de um lado, os manuscri tos gregos: papiros, unciais e minúscu-las , mas também lec ionár ios dos moste i ros , que compor tam tex tosselecionados, conforme as leituras do dia e dos tempos litúrgicos.

-- de outro lado, as versões, traduções muito antigas, muitas ve-zes ex t remamente l i te ra is , que const i tuem uma fonte va l ios íss imapara reconsti tuir a história do texto. Os aparatos crít icos citam fre-quentemente manuscri tos part iculares de uma versão, especialmen-te para a siríaca antiga e lat ina antiga; mas às vezes eles remetem auma ed ição de re ferênc ia (e la mesma baseada em numerosos ma-nuscri tos).

4 Ver acima p. 592-606.

O texto do Novo Testamento e sua história

-- enfim, as citações do Novo Testamento pelos Padres da Igreja,em suas diversas obras; os aparatos remetem, então, a uma ediçãorecente do texto dos Padres.

A p r e s e n t a m o s , r a p i d a m e n t e , a l g u n s t e s t e m u n h o s i m p o r t a n t e sem cada categoria.

Os manuscr i tos gregoss1. Na primeira metade do século XX, e sobretudo depois de 1930, a des-

coberta e a publicação de numerosos papiros, vindos essencialmente do Egito,fizeram progredir de maneira notável nosso conhecimento do texto; o maisantigo Fragmento de papiro, o ps2 contendo algumas linhas do evangelho deJoão, remonta mais ou menos aos anos 130, ou seja, menos de cinquenta anosdepois de a obra ser escrita6. Contam-se, até hoje, 115 Fragmentos de papiro;alguns são tão pequenos que compreendem apenas alguns versículos, outrosatestam obras inteiras. Desde o século i11, os quatro grandes corpus do NovoTestamento -- evangelhos, atos e epístolas católicas, cartas paulinas, apoca-lipse -- estão representados.

Os papiros pertencem, muitas vezes, a coleções particulares das quaisguardam o nome; mas entram todos, daqui para diante, numa única classifica-ção, e são designados pela letra p com um expoente. Observemos, particular-mente, exemplares da coleção Chester Beatty, em Dublin:

o p45, do século II1, compreende 30 Folhas (de 110) dos quatro evangelhos edos Aros.

o p4¿, de cerca de 200, conserva 86 Folhas (de 104) das cartas de Paulo.

Depois da publicação de Kurt ALAND, KurzEefasste Liste derEriechischen[-landschriften des Neuen Testarnent, Berlin, de Oruyter, 1994, uma últimaatualização da lista dos manuscritos gregos do Novo Testamento Foi Feitapor James K. ELLIOTT, A BiblioEraphy of Greek New Testament Manus-crots, Çambridge, Cambridge University Press, 22000. Uma lista detalha-da de todos os manuscritos se encontra, por outro lado, nas duas ediçõesdo Novo Testamento: GNT e Nestle-Aland.Fascinada pela antiguidade dos papiros, a grande imprensa se apodera, devez em quando, de hipóteses audaciosas, nem sempre Fundadas, como asde Carsten Thiede: esse erudito pretendera que um fragmento grego deMateus, o p~, datava dos anos 50. Na realidade, os fragmentos p~4, p~7 e p4parecem provir de um mesmo códice dos quatro evangelhos datado do fimdo século 11. Do mesmo modo, o famoso fragmento "de Marcos" encon-trado em Qumran, 7Q5, tem o inconveniente de não ser de Marcos! VerGraham STANTON, Parole d' évangile?, Paris/Montreal, Cerf/Novalis,1997, 23-50.

Page 25: Novo Testamento: História, escritura e teologia

A~ crítica textual

o p4z contém 10 Folhas do Apocalipse.

Da coleção Bodmer, em Cologny-Geneva, mencionamos:° p¿¿, de cerca de 200, contém o evangelho de João quase completo até o

capítulo 14, depois em fragmentos7.o p75, da primeira metade do século 11I, contém, com lacunas, os evangelhos

de Lucas e de João em 51 folhas, algumas das quais muito danificadas.2 -- Os uncia is: contam-se, hoje, 309 (200 dos quais não passam de f rag-

mentos), mas perto de uns t r inta deles provêm do mesmo manuscr i to queum outro Fragmento. Somente c inco desses manuscr i tos comportam o NovoTestamento inteiro, com algumas lacunas devidas a mutilações. Note-se, tam-bém, que os evangelhos têm 138 testemunhos, o Apocalipse somente 10.

A partir da classificação de C. R. Gregory (1846-1917), eles são designadospor um 0 seguido de um número na ordem 01, 02 etc.; no conjunto, os 45 pri-meiros são precedidos por uma letra latina maiúscula, e os seguintes por umaletra grega, segundo uma designação que remonta ao século XVlII.

-- O mais antigo e um dos mais belos é o códice Vaticanus B03, do séculoIV. Ele aparece na Bibl ioteca do Vat icano por vol ta de 480. Contém a B~l iainte i ra com algumas lacunas, com o Novo Testamento terminando em He-breus 9,11.

- - O cód ice S ina í t i co ~01 , da me tade do sécu lo IV, f o i pa rc ia lmen tedescober to , em cond ições rocambo lescas , po r Ti schendor f , no mos te i roSanta Catar ina do Sinai , em 1844 e, depois, progressivamente reconst i tuí-do ; es tá a tua lmen te na B r i t i sh L ib ra ry de Lond res . Con tém quase todo oAn t i go Tes tamen to e , a lém do Novo Tes tamen to , a ep ís to la de Ba rnabé eo Pastor de Hermas.

- - O códice Alexandr inus A02, do século V, copiado no Egi to e propr ie-dade do patriarca de Alexandria; Foi levado para Londres em 1628. Contém oAntigo e o Novo Testamento, mais duas epístolas de Clemente de Roma. Maso Novo Testamento só começa em Mateus 27.

- - O códice Ephraemi rescr iptus C04, do século V, é um pal impsesto. Foirecoberto, no século XII, pelos sermões e tratados de Efrém. Nele se pode lermetade do Ant igo Testamento e dois terços do Novo Testamento.

-- O códice de Beza (Bezae Canta¿riEiensis), bilíngue: grego (D05) e latim(d), do século IV/V. Em Lião desde o século IX, Foi adquir ido por Teodoro deBeza, em 1562, e dado à univers idade de Cambridge. Esse manuscr i to con-tém os qua t ro evange lhos na o rdem Mateus -João -Lucas -Marcos , os A tosdos Apóstolos e algumas l inhas das epísto las catól icas (Tiago-Judas). É no-tável por suas var iantes, especialmente o texto, d i to ocidental , dos Atos dosApóstolos.

7 Ver acima p. 446.

O texto do Novo Testamento e sua história

-- O códice Claromontanus D06, em grego e lat im (d) , do século VI , com-prado por Teodoro de Beza, contém as epístolas paulinas com numerosas la-cunas.

- - O cód i ce F ree r ianus W032 , comprado , em 1906 , po r Ch . L . F ree r,contém os evangelhos na ordem Mateus-João-Lucas-Marcos. Encontra-seaí , depois de Marcos 16,14, uma estranha adição de t ipo gnóst ico, chamada"[ogion de Freer''s.

3 - As minúsculas: anotadas em algar ismos árabes de I a 2862. As maisant igas delas datam de 835; a maior parte é bem mais tardia (século Xl l aoséculo XV). Apenas umas c inquenta comportam todo o Novo Testamento; amaioria só contém os evangelhos. Uma das grandes tarefas atuais é verificá-lase classificá-las por Famflias.

-- Nos evangelhos, a Famflia I conta uma dezena de minúsculas, com o 1encabeçando a série, reagrupadas por K. Lake sob a sigla FI; a perícope da mu-lher adúltera (Jo 7,53-8,11) está colocada, aí, no final do evangelho de João.

-- A famflia f is agrupada por Ferrar, compreende uma dúzia de manus-cr i tos copiados, na maior parte, na Calábr ia; a perícope da mulher adúl tera,em Lucas, é transposta para depois do versículo 21,38; o episódio do suor desangue (Lc 22,43-44) é transposto, em Mateus, para depois de 26,39.

- - A minúscula 33, do sécuto XI , Frequentemente chamada "a ra inha dasminúsculas", se aproxima dos grandes unciais RI)I, B03 (que omitem a mulheradúltera).

- - O códice 1739, de cerca de 950, conservado no monte Aros, t raz namargem inúmeras citações de antigos Padres da Igreja; nos Atos, ele é asse-melhado ao códice de Beza.

-- O códice 2138, de 1072, em Moscou, é o mais antigo de uma vintena deminúsculas. O texto dos Atos é assemelhado ao códice de Beza.

4 - Os lecionários: à parte alguns fragmentos de papiro, eles são copiadosem pergaminho e, depois do século XIII, em papel. A grande maioria consisteem evangeliários.

As versões

l. Em latim, distinguem-se:-- As traduções latinas anteriores à Vulgata (do século 11 ao final do século

1V), chamadas Ant igas Lat inas. São globalmente marcadas i t , mas cerca denoventa manuscr i tos foram repertor iados, remontando, os mais ant igos, aoséculo IV: são tradicionalmente designados por letras minúsculas do alfabetolatino, doravante acompanhadas de um número de ordem em algarismo árabe.

s Ver acimap. 57.

Page 26: Novo Testamento: História, escritura e teologia

crítica textual

O mais célebre é o códice Bobbiensis, designado k, do século IV/V, cujo textotel~ mui tos pontos em comum com o códice de Beza; é o único manuscr i to aomitir o silêncio das mulheres em Marcos 16,8 e a acrescentar algumas linhasfinais, chamadas "o querigma incorruptível' 'ç. Várias minúsculas têm os evan-gelhos na ordem Mateus-João-Lucas-lVlarcos, e um texto assemelhaclo ao docódice de Beza.

- - A t radução da Vu lga ta , a t r i bu ída a Je rôn imo , compor ta ma is de dezmil manuscritos, geralmente recentes e bem conservados; alguns, entretanto,remontam ao século Vi l e até mesmo ao século VI . A Vulgata, por s i só, me-recer ia um tratado completo de cr í t ica textual . Ci tamos, então, a Vulgata se-gundo as grandes edições: a Vulgata clementina v~' é a edição encomendadapelo papa Clemente Vl I I , em 1592. A pr imeira grande edição cr í t ica modernaé a inaugurada por J. Wordsworth e H. I . Whi te, em OxFord (1889-1954); émarcada vg~. Finalmente, uma edição cr í t ica da Vulgata de toda a B~l ia éeditada em Stuttgart desde 1969; é marcada vg"t.

2. Em siríaco, distinguem-se:-- O Diatessaron de Taciano, de cerca de 172; Taciano, discípulo do filósofo

Just ino, escreveu uma harmonia dos quatro evangelhos, tecendo habi lmenteos quatro em um só texto; esse empreendimento deixou t raços profundos natradição manuscr i ta do Novo Testamento. Um Folheto grego do DiatessaronFoi descoberto em Doura-Europos (Sír ia) em 1933; data da pr imeira metadedo século II1 e está classificado entre os unciais sob o número 0212; além disso,um comentár io do Diatessaron, por EFrém, está conservado num manuscr i todanificado, em siríaco e em dois manuscritos em armênio; há traduções delesem várias línguas.

-- Dois manuscritos antigos conservaram uma versão dos evangelhos, coma indicação "evangelho separado", em oposição ao Diatessaron:

um manuscrito do século IV Foi descoberto, em 1892, na biblioteca do mos-teiro Santa Catarina, no Sinai; é chamado "siríaco sinaítico", sy'; é um palimp-sesto que traz um texto assemelhado ao códice de Beza e à Antiga Latina.

um manuscr i to do século V, descoberto por W. Cureton, no Egi to, levao nome de "siríaco curetoniano", sy% contém os quatro evangelhos na ordemMateu -João -Lucas -Marcos .

-- A versão titúrgica das Igrejas siríacas é a Peshitta, marcada syP; é repre-sentada, atualmente, por quase 250 manuscr i tos, uma dúzia dos quais é dosséculos IV-V. O texto está fixado e não compreende, seguindo o cânon dossírios, nem as quatro pequenas epístolas católicas, nem o Apocalipse.

- - Outras versões s i r íacas são conhecidas, especialmente a revisão deThomas de Harkel , em 615-616: syh. Nos Atos dos apóstolos, e la apresenta,

9 Ver acima p. 57.

O texto do Novo Testamento e sua história

nas margens, var iantes textuais que Fazem dela um dos textos mais próximosdo texto do códice de Beza; é marcada syhmg.

-- Finalmente, foram encontrados vár ios testemunhos f ragmentár ios deuma versão em aramaico, marcada sypaI, cujo texto segue o tipo cio códice deB e z a .

Os textua[ is tas, hoje em dia, estão cada vez mais interessados em outrasversões, especialmente nos di ferentes dia letos coptas, mas também em armê-

nio, georgiano, árabe, etíope...

O s P a d r e s d a I g r e j a g r e g a o u l a t i n a

A s c i t a ç õ e s d o s P a d r e s g r e g o s o u l a t i n o s , d o s é c u l o ! I a o sécu loV, s ã o d e e x t r a o r d i n á r i o i n t e r e s s e p o r s u a a n t i g u i d a d e . M a s d e -

v e m s e r m a n e j a d a s c o m g r a n d e p r e c a u ç ã o . O s a p a r a t o s r e m e t e m

à s e d i ç õ e s c r í t i c a s , m a i s p r e c i s a s , d e s u a s o b r a s . P o r o u t r o l a d o ,é p r e c i s o p r e s t a r a t e n ç ã o à m a n e i r a d e c i t a r , d e m e m ó r i a e c o m

c e r t a l i b e r d a d e . J u s t i n o , l r e n e u ( a l g u n s f r a g m e n t o s g r e g o s a p e -n a s ) , C l e m e n t e d e A l e x a n d r i a , O r í g e n e s , p o r u m l a d o , Te r t u l i a n o ,C i p r i a n o , p o r o u t r o , n o s e s c l a r e c e m s o b r e a s t r a d i ç õ e s t e x t u a i s

r e c e b i d a s e m s u a s I g r e j a s . E r u d i t o s c o m o O r í g e n e s o u J e r ô n i m oc o m p a r a m o s m a n u s c r i t o s e a s s i n a l a m a s v a r i a n t e s d e u m i n t e r e s -

s e d e p r i m e i r a o r d e m .A l é m d i s s o , h á u m g r a n d e i n t e r e s s e , h o j e , p e l o t e x t o d e M a r -

c i ã o , l í d e r d e u m a t e n d ê n c i a u l t r a p a u l i n a p o r v o l t a d e 1 4 4 , e m

R o m a . O p o n d o o D e u s d e a m o r d o N o v o Te s t a m e n t o a o d e m i u r g od o A n t i g o , e l e p r o c e d e u a u m a e s c o l h a n a s E s c r i t u r a s , fi c a n d o s óc o m o E v a n g e l h o d e L u c a s e a s c a r t a s d e P a u l o . M a s a s c i t a ç õ e s d e

M a r c i ã o q u e . p o s s u í m o s s ã o o r i u n d a s d a s r e f u t a ç õ e s d o s a u t o r e s

e c l e s i á s t i c o s q u e o c o n d e n a m : Te r t u l i a n o , E p i f â n i o ; a p r u d ê n c i a ép e l o m e n o s o b r i g a t ó r i a [

D o t e x t o r e c e b i d o a o t e x t o - p a d r ã o

A pr imeira edição grega do Novo Testamento Foi a de Erasmo, publ icadaem Bali, em lo de março de 1516. A obra trazia o texto grego em duas colunas,uma tradução latina do próprio Frasmo e terminava com numerosas notas exe-géticas. De Formato manejável, o livro teve sucesso imediato. Fra, no entanto,

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~k crítica textual O texto do Novo Testamento e sua história

de qualidade medíocre. Erasmo tinha trabalhado com alguns manuscritos tar-diCs, representando o texto bizantino, e como faltavam os últimos versículosdo Apocalipse (22,16-21) ele não hesitou em retraduzi-los para o grego]

Tratava-se, de Fato, de assumir logo um outro grande empreendimentoeditorial, muito mais cuidado: o do cardeal Ximenes de Cisneros, que reuniuvários eruditos para editar uma B~lia poliglota, a partir dos manuscritos em-prestados pela Biblioteca Vaticana. A Poliglota de A lca/~ foi publicada em 1519:obra de valor, sua difusão limitada Faz que não tivesse, em seguida, muita in-fluência.

A partir de 153~, Robert Estienne reeditou o texto de Erasmo. Ele o cor-rigiu com a ajuda da Poliglota de Alcalá e de alguns bons manuscritos, entreos quais o D05: sua terceira edição é, pela primeira vez, acompanhada de urraparato crítico. Na edição seguinte (1551), Estienne introduziu uma inovaçãogenial: o texto de cada obra foi dividido em pequenas seções numeradas: osversículos. A partir daí, esse texto Foi constantemente reeditado; em 1624, emAmsterdã, os irmãos Elzevier afirmaram, desde sua segunda edição, que setratava "do texto recebido por todo o mundo". Esse textus receptus permane-ceu, com efeito, durante mais de dois séculos como o texto grego do Ocidentecristão.

Na segunda parte do século XVlII, entretanto, desenvolveu-se um ver-dadeiro trabalho crítico: dezenas de manuscritos foram cotejados, ao mesmotempo em que o erudito alemão J. J. Griesbach (1745-1812) propunha a teoriadas grandes recensões. Em seguida, K. Lachmann (1793-1851) abandonou otexto recebido e tentou encontrar o estado do texto tal corno era amplamentedifundido no correr do século IV. Não podemos deixar de destacar, no sécu-lo X1X, os notáveis trabalhos de C. von Tischendorf e, sobretudo, o de B. EWescott (1825-1901) e E J. A. Hort (1828-1892), que permitiram refinar adistinção dos grandes tipos de texto.

Em 1898, Eberhard Nestle publicou a primeira edição do Novurn Testamen-turn groece provido de um pequeno aparato crítico, que teve enorme sucesso.A partir de 1927, seu filho Erwin Nestle retomou e desenvolveu os princípios jáempregados; as edições se sucederam com mudanças mínimas no texto, mascom aparatos cr&icos sempre mais ricos e mais precisos. Em 1952, K. Alandse associou a E. Nestle: nas edições seguintes, o texto permaneceu imutável,mas o aparato crítico se aperfeiçoou, assinalando, a partir de 1963, os papiros.

Por outro lado, em 1963, por iniciativa da Sociedade B~lica Americana,uma comissão internacional composta por K. Aland, M. Black, B. M. Metzger,A. Wikgren, depois C.-M. Martin, preparou uma revisão do texto de NestleA primeira edição, publicada en11966, foi editada pelas United Bible Societiessob o nome Greek New Testament. Os princípios e a apresentação do aparatocrítico diferem notavelmente dos de Nestle-Aland, mas desde 1979, em segui-da a um acordo entre as sociedades bflicas, o texto grego das duas edições(3a edição do GNT, 26a edição do Nestle-Aland) é idêntico: desde então édesignado de texto-padrEzo.

3. O DESAFIO ATUAL: OS GRANDES INVENTÁRIOS DO TEXTOA crít ica textual do Novo Testamento se encontra, por várias ra-

zões, diante de uma situação absolutamente part icular.3.1. No que se refere à antiguidade dos testemunhos manuscri-

tos , o tex to do Novo Testamento apresenta uma s i tuação ex t raor -d inar iamente favoráve l . Rea lmente , para os grandes tex tos da an-t iguidade Fraco-romana, os testemunhos unciais estão pelo menosuma dezena de séculos distantes do momento em que foram postospor escri to, e os fragmentos de papiro descobertos no século XX seaproximam apenas de cinco ou seis séculos. Ora, o NovoTestamen-to é atestado a menos de um século após a época em que se supõeque foram escri tos os seus primeiros textos: o mais antigo fragmen-to do evangelho de João hoje conhecido, o pS2, data dos anos 130!

3.2. Quanto ao número de testemunhos conhecidos, o Novo Tes-tamento bate todos os recordes: o tex to fo i recop iado e t raduz idoem toda a cr istandade durante treze séculos[ Em 2000, J. K. El l iottenumerava 115 fragmentos de papiro, 309 unciais, 2.862 minúsculas,2.412 lecionários, sem falar das versões ou das cJtações dos Padres.

Paradoxa lmente , essa massa de tes temunhos torna quase im-prat icável o trabalho do textual ista ou então obriga-o a se renovar.Com efe i to , o ob je t ivo t rad ic iona l da c r í t i ca tex tua l é reconst i tu i r aárvore genealógica (diz-se esterno) dos manuscri tos para remontarprogressivamente até o orquétipo primeiro, o mais próximo possíveldo original. Embora sempre onerado de uma parte de hipótese, esset raba lho tem f requentemente dado f ru tos ; o ra , a mul t ip l i cação dostes temunhos torna-o ex t remamente d ifi 'c i l , se não impossíve l . Nocaso do Novo Testamento , os espec ia l is tas têm se es forçado paraconsti tuir famll ias de manuscri tos. Métodos de anál ise e de agrupa-mentos dos tes temunhos desenvo lveram-se desde os t raba lhos deK. Lachmann, entre 1830 e 1850; eles se apoiam, essencialmente,na escolha dos lugares variantes sisnificativos (como o lugar da pe-r ícope da mulher adú l te ra , a presença do fina l longo de Marcos, apresença de certos versículos em Lucas etc.). Aos poucos a escolhase apura e o t raba lho progr ide len tamente , mas o ve lho sonho dereconsti tuição do arquétipo parece já abandonado.

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k crítica textual

3.3. Com efeito, o progresso da pesquisa dos textual istas, depoisa aescoberta dos papiros, no século XX, trouxeram à luz fenômenosmui to par t icu lares que marcam a h is tór ia do tex to do Novo Testa-mento.

Descobr iu -se , p r imei ro , que a lém das famflias de manuscr i tospod iam-se d is t ingu i r, na t rad ição, os grandes t ipos de tex to e , ta l -vez, tentar l igá-los a lugares geográficos. No correr dos séculos I I1e IV, nos grandes cent ros in te lec tua is da c r is tandade (A lexandrJa,Ant ioqu ia , Cesare ia) , depo is de erud i tos e espec ia l is tas como He-s íqu io , Luc iano, Or ígenes, esco las de escr ibas se ap l icaram numimpress ionante t raba lho de pesqu isa , de comparação e de agrupa-mento de manuscr i tos - - chamado, tecn icamente , de t raba lho deco lação. Mais a inda, e les buscaram un ificar o tex to esco lhendo oque lhes parecia melhor: em outras palavras, procederam a um ver-dade i ro es tabe lec imento do tex to , e fa la -se , ho je , dessas grandesrecensões que tentaram unificar e fixar o texto em determinadas es-feras de influência.

A pesqu isa sobre os grandes " t ipos de tex to" remonta ao fim dosécu lo XIX (B. F. Wescot t e F. J . A . Hors t ) , e fo i g randemente re to-mada, no cor rer do sécu lo XX, depo is notave lmente refinada pe laspesqu isas de J . Dup lacy sobre o que e le denominava "os grandesinventários do texto" 10. A questão continua hoje em discussão, maspode-se d izer que os tex tua l is tas concordam pe lo menos em do isgrandes t ipos de texto, aos quais é preciso juntar um t ipo part icular:o t ipo "oc identa l " .

a) O tipo sírio-bizantino: é refletido pela grande maioria dos manuscritos,sobretudo as minúsculas, mas também pelo Alexandrinus A02 para os evan-gelhos; pelo códice de Freer W032 para Mateus e Lucas; pelos unciais F07,I=0?, e a massa das minúsculas (marcadas ~~R ou Byz conforme os aparatoscríticos), pela Peshitta e por uma parte da Vulgata, e pelas traduções em eslavo,para citar apenas os testemunhos mais conhecidos.

Jean DUPLACY, Classification des états d'un texte, mathématique etinformatique: repères historiques et recherches méthodologiques, Revued'Histoire das Textes 5 (1975) 249-309.

O texto do Novo Testamento e sua história

Amplamente recebido nas Igrejas de tradição ortodoxa, esse texto écaracterizado pelo cuidado de ser completo e claro, É testemunho de umgrego popular, que escapou às correções de tendência ática (forma normati-zada do grego literário). Ele harmoniza naturalmente as passagens paralelase se esforça para explicar os lugares obscuros; por isso ele, às vezes, pareceatenuar arestas teológicas muito vivas. Por exemplo, em João 1,18, o tex-to bizantino traz ò p.ovoyéwqç u~óç: "o f~lho único gerado", em vez de Oeóçt~ovoy4vqç: "um deus único gerado', lição do texto egípcio testemunho deuma altíssima cristologia.

b) O tipo egípcio, ainda chamado alexandrino: está refletido em p¿6, p75,~01, B03,/01ç, W032, ~044, 33 etc. para os evangelhos, p45, pS0, ~01, B03,C04,044, 33 para os Aros, ~01, A02, B03, C04, 33, 1139 etc. para Paulo.Esse tipo é caracterizado por sua brevidade e por seu cuidado com a correçãogramatical e ortográfica. Nota-se, especialmente, a ausência da perícope damulher adúltera e, às vezes, a ausência de Lucas 22,23-44 (o suor de san-gue em Getsêmani). Desde C. Lachmann (1793-1851), que o escolheu comobase de sua edição do Novo Testamento, ele tem siclo privilegiado por todosos editores ocidentais; ele é, especialmente, o tipo preferido dos editores dotexto-padrão.

Alguns especialistas distinguem, ainda, um texto palestino, derivado dostrabalhos de Orígenes, pelos quais Jerônimo professa uma grande admiração.Esse texto seria representado por p45, 0038, W032 (para Marcos), pelas fa-mflias f I e por f as, 28, 700.

3 .4 . Mas a surpresa vem, sobre tudo, do fa to de que, ao remon-tar, graças aos papiros e às versões antigas, a antes do século Ir, emvez de uma un ificação progress iva do tex to , que ser ia de esperar,e n c o n t r a m o - n o s , a o c o n t r á r i o , d i a n t e d e u m a d i v e r s i d a d e t e x t u a lcada vez maior. Esse fenômeno surpreendente a tes ta o cará ter ins-tável do texto no correr do século I I ; o que provavelmente se expl icapor múlt iplos fatores relat ivos à gênese e à transmissão das obras doNovo Testamento .

A grande difusão dos textos nas comunidades cristãs, dissemina-das desde o fim do século 1 em toda a bacia mediterrânea, depende,antes de tudo, de seu cará ter v ivo , i s to é , paradoxa lmente , da pr io -r idade dada ao ora l . Os tex tos servem, pr imei ro , para reco lher ouacompanhar o tes temunho, o ens inamento ora l ou a ca tequese, al i turgia. As cartas de Paulo, os primeiros escri tos cr istãos, eram sem-

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A crítica textual O texto do Novo Testamento e sua história

pre confiadas a um colaborador fiel que devia fazer ressoar junto àscdmunidades a palavra viva do apóstolo. Os sucessores de Paulo seapl icaram, al iás, a um verdadeiro trabalho editor ial cujo detalhe nosé, em grande parte, desconhecido.

A tradição que deu nascimento aos evangelhos é essencialmenteoral: antes de ser posto por escri to, e ainda muito depois também,os tex tos são proc lamados, rec i tados, exp l icados, in terpre tados. Agênese l i te rár ia -de cada um dos evange lhos supõe uma longa pré-

;: história e, provavelmente, várias ediçõesu.As c0nd ições de produção e de recepção dos escr i tos induzem,

além disso, a certa variabi l idade: os apóstolos e suas comunidadesuti l izam os textos de maneira urgente, para comunicar à distância oupara avivar a memória. Na expectat iva premente da parusia, a primei-ra preocupação não é a durabilidade, mas a urgência da missão: a escri-tura é muitas vezes confiada a escribas ocasionais, o material do papirobarato é frági l , faci lmente muti lado, rapidamente corroído pela t inta.

E n fi m , a p a l a v r a r e c e b i d a é c o n s t a n t e m e n t e a t u a l i z a d a , e s efórmulas l i tú rg icas se fixam veem-se também, no própr io curso doNovo Testamento , a adaptação e a invenção crente c r iando novasformulações querigmáticas ou hínicas.

O mais impor tante fa tor de var iab i l idade ta lvez se ja o fa to deque, a té pe lo menos o sécu lo I I ! , n inguém t inha a obsessão da re-ferência b~l ica exara. Na metade do século !1, Papias escrevia: "Eunão achava que as coisas que provêm dos l ivros me fossem tão úteisquanto as que vêm de uma pa lavra v iva e duráve l " (Euséb io , His t .Eccl. I ! I , 39,4). Constata-se, com efeito, uma espantosa l iberdade dacitação textual: ci ta-se de memória, e a norma é a tradição oral sem-pre viva, guardiã da "regra da fé".

Por todas essas razões, achamos que os textos por muito tempopermaneceram "flutuantes" . Não sabemos se a redação deu oca-sião a uma ou várias edições, se não sofreu, desde muito cedo, revi-sões d i fe rentes conforme os dest ina tár ios . . . Enfim, é inegáve l que

Isso é evidente para o evangelho de João, que comporta dois finais; veracima p. 44?.

nossos manuscritos dos séculos I1 e 111 comportam variantes "volun-tárias", reflexos de ardorosos debates cristológicos que inflamaramas comunidades cr is tãs . Inúmeras cor reções de t ipo doceta v isamev i ta r dar a Jesus sent imentos mui to humanos, como a có lera : porexemplo, em Marcos 1,41 só o códice de Beza D05 e vários manus-c r i t o s d a A n t i g a L a t i n a c o n s e r v a r a m a l i ç ã o õ p y [ o O e t ç , " t o m a d ode có lera" , enquanto a imensa maior ia da t rad ição adotou a l i çãorespeitosa e edulcorada O~TZ~yç vLoOe[ç, "tomado de compaixão"!Uma cor reção do mesmo t ipo em João 11,33 é v is íve l a o lho nu nopapiro pó¿: o manuscri to está raspado e desajeitadamente corr igidopara evitar atr ibuir a Jesus uma perturbação humana demais!

O tex to , nesse es tado ins táve l no cor rer do sécu lo I i , é chama-do, impropriamente, de texto ocidental; talvez fosse mais prudente,hoje, falar de variantes ocidentais. As concordâncias numerosas, masnão sistemáticas, de toda uma série de testemunhos o atestam:

- - para os evange lhos D05, W032 (Mc 1 ,1-5 ,30) , a Ant iga La-t ina, as versões siríacas sinaít icas e curetoniana, o Diatessaron, osPadres latinos antigos.

- - para os Aros p2ç p38, p48, D05, !~08, 2138, S y h m g , O cód iceGlazier (copta Atos 1-15), um fragmento da siríaca palest ina syp~,os Padres latinos antigos.

- - para Pau lo D06, P010, 0012.Esses testemunhos reforçam a hipótese de um textopré-recensão,

que nos aproxima do texto primit ivo, É preciso, ainda, ser prudente,e a isso nos obrigam tanto o caráter fragmentário do texto ocidentalcomo sua diversidade. Estamos ainda dando os primeiros passos noconhecimento da história do texto nos séculos I1 e I I I .

Os dois textos dos Aros dos apóstolosIz

O caso dos Atos cios apóstolos ilustra melhor do que qualquer outro a parti-cularidade do texto ocidental. A existência de dois tipos de texto para os Atosé conhecida há muito tempo:

1~ Ver acima p. 147-149.

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A crítica textual O texto do Novo Testamento e sua historia

-- um texto di to a lexandr ino (TA) dá uma versão mais curta; é a mais cor-~ente, refletida ao mesmo tempo pela tradição egípcia e pela tradição bizanti-na; é impressa, hoje, no texto-padrão;

-- um texto chamado texto ocidental (TO) nos é conhecido em alguns pa-piros (pss, p48), e sobretudo no códice de Beza, ao mesmo tempo nQ texto gre-go (designado D05) e em sua tradução latina (designada d). Ele aparece tam-bém nos antigos Padres latinos: Ireneu latino, Tertuliano, Cipriano, e enfim emcertas tradições siríacas antigas: os fragmentos palestinos e as notas marginaisda versão de Thomas de Harkel . Os manuscr i tos que refletem o t ipo ociden-ta l apresentam, além disso, numerosas di ferenças entre eles: contam-se 607variantes, no códice de Beza, entre o texto grego e o latino ao seu lado! Mas,sobretudo, esse texto se afasta de maneira impressionante do texto alexandri-no: dos 1.007 versículos do TA o texto ocidental guarda apenas 325 versículosidênticos; além disso, ele lhe acrescenta 525 e suprime 162.

A questão que agita os especialistas há mais de um século é a da relação en-tre os dois textos: um dos dois apresenta a redação original de Lucas e o outrofornece uma segunda edição condensada ou, ao contrár io, ampl iada? Os t ra-balhos independentes de M.-É. BoismardB e E. Delebecque estão de acordopara demonstrar o estilo muito lucano dos dois textos. O trabalho, hoje, incidesobretudo nos caracteres próprios de cada um dos dois textos, e especialmen-te do texto ocidental.

C.-M. Mart in i estudou os t raços mais marcantes. O texto ocidental for-nece precisões histór icas que podem ser mui to ant igas: d iz, por exemplo, emAtos 19,9, que Paulo ensinava na escola de Tirano "da 5a à 10a hora" (isto é,das 11 horas às 16 horas), a hora do calor, quando a escola de retór ica nãofuncionava. Por outro lado, parece ser secundário, do ponto de vista literário;acentua a hostil idade dos chefes do judaísmo em relação a Jesus e às primeirascomunidades; ins iste nas conversões ao cr is t ianismo em meio pagão, sobre-tudo entre os notáveis; reforça a autor idade de Pedro e de Paulo; ~nalmente,sublinha também o papel do Espírito Santo.

Uma variante notável concerne, em Atos 15,19, ao teor dos decretos edita-dos pelos responsáveis de Jerusalém acerca dos pagão-cristãos: "abster-se daimpureza dos ídolos, da devassidão, do que é asfixiado e do sangue". No textoocidental, a expressão ritual "o que é as~xiado" (TrVLKZOP) está suprimida, e de-pois de "do sangue" (~[l~~Zoç) encontra-se uma expressão da regra de ouro: "enão fazer para os outros tudo o que não querem que lhes aconteça". Parece, naverdade, que um ponto de vista mais ritual fora substituído, aí, por uma obriga-ção moral.

No fim do século II os dois textos coexistiam e eram recebidos nas diferen-tes comunidades; e les são, portanto, um testemunho do caráter extraordina-flamante v ivo do texto do Novo Testamento.

Marie-Émile BOISMARD, La Texte occidentol cles AGes das Apôtres, Paris,Gabalda, 2000.

4 . O M É T O D O D A C R Í T I C A T E X T U A L

O t r a b a l h o d o t e x t u a l i s t a c o m e ç a , e v i d e n t e m e n t e , c o m a l e n t ac o l a ç ã o d o s m a n u s c r i t o s d i f e r e n t e s . D i a n t e d a m a s s a d e t e s t e m u -n h o s e v a r i a n t e s , o s m e m b r o s d a c o m i s s ã o q u e e s t a b e l e c e u o t e x t o -

p a d r ã o F i z e r a m a e s c o l h a d e 1 . 4 3 8 l u g a r e s v a r i a n t e s , p a r a o s q u a i s ée x a m i n a d o u m n ú m e r o s e m p r e c r e s c e n t e d e m a n u s c r i t o s s i g n i fi c a -t i v o s ; a l e i t u r a d e n u m e r o s o s F r a g m e n t o s d e p a p i r o r e q u e r , a l i á s , a

i n t e r v e n ç ã o d e e s p e c i a l i s t a s e m p e l e o g r a T ~ a 1 4 . C a d a v e z m a i s , t a m -b é m , o t r a b a l h o d e c o l a ç ã o s e e s t e n d e à s v e r s õ e s a n t i g a s ( o s d i f e -

r e n t e s d i a l e t o s c o p t a s o f e r e c e m t e x t o s d e g r a n d e i n t e r e s s e ) .A b o r d a r e m o s , a q u i , a c r í t i c a t e x t u a l a p a r t i r d o m o m e n t o e m q u e

o s e s p e c i a l i s t a s n o s o f e r e c e m , n o s a p a r a t o s c r [ t i c o s d a N e s t l e - A l a n d

e , s o b r e t u d o , d a G N T u m m a t e r i a l d e u m a r i q u e z a e d e u m a F i a b i l i -d a d a n o t á v e i s . Q u a i s s ã o , e n t ã o , o s c r i t é r i o s a d o t a d o s p a r a e s t a b e -

l e c e r u m t e x t o ?D i s t i n g u e m - s e , t r a d i c i o n a l m e n t e , t r ê s t i p o s d e o p e r a ç ã o c r í t i c a : a

c r í t i c a v e r b a l , a c r í t i c a e x t e r n a e a c r í t i c a i n t e r n a . A s t r ê s o p e r a ç õ e sp o d e m , t e o r i c a m e n t e , s e s u c e d e r . [ V i a s v e r e m o s a t é q u e p o n t o , à s

v e z e s , s u a s F r o n t e i r a s s ã o t ê n u e s e c o m o o t e x t u a l i s t a é l e v a d o au s a r, s i m u l t a n e a m e n t e , v á r i o s p o n t o s d e v i s t a c r í t i c o s .

a ) A c r í t i c a v e r b a l c o n s i s t e e m u m a e s p é c i e d e " F a x i n a " d o t e x t o

q u e t r a t a d e l i m p á - l o d o s e r r o s d e c ó p i a g r o s s e i r o s ; o s m a i s c o m u n s

s ã o a c o n f u s ã o d e c o n s o a n t e s u n c i a i s ( A e A , 1 ~ e P e t c . ) , a s i m -p l i fi c a ç ã o ( h a p l o g r a F i a ) o u , a o c o n t r á r i o , a r e p e t i ç ã o ( d i t o g r a fi a ) d e

u m a c o n s o a n t e , a p a s s a g e m d e u m a l i n h a p a r a o u t r a q u a n d o u m ae x p r e s s ã o s e r e p e t e ( A o m o i o t e l e u t o m ) . O u t r o s e r r o s s ã o d e v i d o s àp r o n ú n c i a o u a o c a r á t e r i n s t á v e l d a o r t o g r a fi a :

- - a c o n f u s ã o o / c 0 é F r e q u e n t e , o q u e F a z h e s i t a r e n t r e u m i n -d i c a t i v o e u m i m p e r a t i v o : e m R o m a n o s 5 , 1 a t r a d i ç ã o h e s i t a e n t r e

eLpTIVTlV eX01J, eV ("estamos em paz" ) e eLIOTlVTll~ eXc01~ev ("estejamos

e m p a z " ) .

O t rabalho de colação e de ver ificação de manuscr i tos gregos é essencial -mente assegurado pelo Inst i tuto para a Pesquisa sobre o Novo Testamen-to, em h4ünster.

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A crítica textual

-- o fenômeno do iotacismo cedo afetou a pronúncia de várias le-tras gregas: q, ~L, ot, u vão ser pronunciadas i . Em Mateus 19,24, océlebre [oEion do "camelo" que não pode passar pelo "buraco da agu-lha" cr iou problema; a maior parte dos testemunhos traz K~t~TI~O~,"o camelo", mas alguns manuscri tos tardios trazem K~I~LXOV. Seráum simples caso de iotacismo, as duas palavras sendo pronunciadascom um i? Ou temos aí o traço de um desejo de atenuar a estranhe-za do texto, visto que K~t~LXOV significa "a corda grossa"? Em todocaso, esta lei tura é atestada por Cir i lo desde o século V

b) a crít ica externa deve ser desenvolvida, primeiro, por ela mes-ma. Cons is te em comparar, para as l i ções var ian tes , o número detes temunhos, sua ant igu idade e sua qua l idade in t r ínseca. Ent re-tan to , nem o número, nem a ant igu idade dos tes temunhos são cr i -té r ios dec is ivos : com efe i to , tes temunhos mui to ant igos , como opap i ro pê¿, podem, c la ramente , t razer cor reções do t ipo doceta .Do mesmo modo, o tex to de Marc ião reflete , às vezes, tendênc iasu l t rapau l inas . Ass im, no exemplo , c i tado mais ac ima, de Romanos5, ] o número e a antiguidade dos testemunhos teriam podido fazerp e n d e r p a r a o s u b j u n t i v o : o s m a n u s c r i t o s ~ 0 | * e B 0 3 * ( a n t e s d acor reção) , A0~. , C04, D06, 33, do is manuscr i tos da Ant iga Lat ina ,a Vulgata, o sir íaco palest ino e a Peshitta têm o subjuntivo; ao con-t rár io , ~0 | e B03, depo is da cor reção, e out ros mais ta rd ios têm oind ica t ivo : é o contex to d idá t ico e não o exor ta t ivo que levou oseditores do texto-padrão a escolher o indicat ivo. Será preciso pô-lode novo em questão?

Presta-se muita atenção hoje em dia ao fato de uma variante sera tes tada em vár ios t ipos de tex to . O tex to-padrão provavetmentesacr ifica mui to à be la apresentação do tex to egípc io e , sem dúv i -da, favorece-o em excesso! De fato, as variantes ocidentais, por nãoserem cotejáveis, são cada vez mais valorizadas. Mas também aí épreciso evitar que se instale um novo t ipo de mito de origem. A crí-t i ca tex tua l deve mul t ip l i car os c r i té r ios e permanecer sempre c i r -cunspecta.

c) A crít ica interna tenta aval iar o valor respectivo das variantespara a compreensão do tex to ; apo ia-se em cr i té r ios de coerênc ia

O texto do Novo Testamento e sua história

in terna do tex to , de es t i lo do autor ; enfim, deve levar em conta osdebates doutr inais datados, que podem estar refletidos no texto.

Certo número de adágios ou regras prát icas serve, multas vezes,de cri tér io; devem ser manejados com prudência e taro, porque nes-ses assuntos não há regra absoluta:

-- lect io brevior: a l ição mais curta é a mais provável; os escribastêm sempre a tendência a precisar, a expl icar, para faci l i tar a lei tura;

-- lect io diffici l ior: a l ição mais difi'ci l é a mais provável pelas mes-mas razões; corr ige-se um texto para torná-lo mais acessível e nãopara torná-lo obscuro!

-- lect io di j~ormis: nas passagens paralelas dos evangelhos, umalição diferente será preferida, porque escapou à tendência à unifor-mização;

-- lect io quae al ias expl icat: deve-se, finalmente, preferir semprea l i ção que exp l ica as out ras e que se pode des ignar de "var ian te-fonte" . Tischendor f cons iderava essa "a pr imei ra de todas as re-gras"; ela engloba rodas as outras e deve ser considerada o cr i tér ioessencial para o estabelecimento do texto. L. Vaganay a chamava,poet icamente , de "fio de Ar iadne" do tex tua l is ta .

Mostraremos, com alguns exemplos, que essas regras permane-cem sempre indicat ivas, e que o textual ista é levado a dialogar coma crít ica l i terária, tendo em conta o contexto próximo, o vocabulárioe o est i lo próprios de um autor e, às vezes, até mesmo o projeto l i te-rário e teológico de uma obra.

1 . U m p r i m e i r o t r a b a l h o c o n s i s t e e m o b s e r v a r a s " g l o s a s " o uexp l icações acrescentadas em margem, que puderam penet rar notexto no curso das sucessivas cópias. Estamos, então, nas frontei-ras da crít ica verbal, mas as três abordagens se revelam frequente-mente necessárias, É a questão que se coloca no início da carta aosEfésios: a inscript io traz, em todos os manuscri tos que possuímos,I Ipoç tgqbcotouç, '~ ,os Efés ios" . Todav ia , Ter tu l iano nos faz saberque Marc ião a t inha como uma car ta ad Laod icenses, ' ;~os Lao-d icenses" . No endereço aos dest ina tár ios de 1 , l , o complemento'EdO4o~ ("em Éfeso"), que deveria vir em seguida do part icípio doverbo ser/estar (~o~ç &y[oLç ~otç oüoLv: "aos santos que estão..."),

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crítica textual

e s t á a u s e n t e e m t e s t e m u n h o s i m p o r t a n t e s : p 4 6 , 1 ~ . ( a n t e s d a c o r r e -ç a o ) , B * , 1 7 3 9 , M a r c i ã o , c o n f o r m e Te r t u l i a n o , O r í g e n e s , B a s l l i o ;

e l e é a c r e s c e n t a d o n a m a r g e m d e ~ e d e B ; e , fi n a l m e n t e , e n t r o u n ot e x t o d e A , D , I P, G , d a A n t i g a L a t i n a e d a V u l g a t a . N o t e - s e q u e a

a u s ê n c i a d o a r t i g o a n t e s d o p a r t i c í p i o e m p 4 6 t o r n a o t e x t o l e g í v e l( ç o i ç ò ~ y ~ o L ç 0 ü o L v : " a o s q u e s ã o s a n t o s " ) . E s t a é , c e r t a m e n t e , a

l i ç ã o m a i s c u r t a , a m a i s d i fi ' c i l e , p r o v a v e l m e n t e , a v a r i a n t e - f o n t e .A c a r t a s e a p r e s e n t a c o m o u m a c a r t a c i r c u l a r e n v i a d a à s I g r e j a s ,

p o d e n d o , c a d a u m a , i n s e r i r s e u n o m e n o t e x t o ? E s t e s e r i a u m c a s o

ú n i c o , e d e v e r í a m o s t e r t e s t e m u n h o s m a i s n u m e r o s o s . A a u s ê n c i ai n i c i a l d e d e s t i n a t á r i o p r e c i s o f o i c o r r i g i d a n o c o r r e r d o s é c u l o ! I ? N ofi n a l d o s é c u l o , l r e n e u e d e p o i s o c â n o n d e M u r a t o r i r e c e b e m - n a

como carta "aos Efésios' ' 's.A q u e s t ã o c o m p l e x a d a s a u d a ç ã o e d a d o x o l o g i a fi n a l d a c a r t a

a o s R o m a n o s é d a m e s m a o r d e m : s u g e r e d i v e r s a s e d i ç õ e s d a c a r t a ,

p r i v a d a e s p e c i a l m e n t e d e s e u s d o i s ú l t i m o s c a p í t u l o s e m m e i o m a r -c ioni ta '¿.

2 . A c r í t i c a i n t e r n a p e r m a n e c e a i n d a p r ó x i m a d a c r í t i c a v e r b a l

q u a n d o d e t e c t a h a r m o n i z a ç õ e s e n t r e p a s s a g e n s p a r a l e l a s , s o b r e t u d on o s e v a n g e l h o s . T r a t a - s e d e u m a t e n d ê n c i a , m u i t a s v e z e s i n c o n s c i e n -

t e , d o e s c r i b a q u e c o n h e c e d e c o r o t e x t o m a i s d i f u n d i d o , g e r a l m e n t eo e v a n g e l h o d e M a t e u s , e q u e a j u s t a a e l e o s o u t r o s e v a n g e l h o s . E mr e f e r ê n c i a a o e m p r e e n d i m e n t o d e Ta c i a n o e m s e u D i a t e s s a r o n , o u

" E v a n g e l h o s m i s t u r a d o s " , f a l a - s e , à s v e z e s , d e " t a c i a n i s m o " . O f e -

n ô m e n o , a l i á s , a c o n t e c e a i n d a h o j e c o m m u i t o s l e i t o r e s q u e m [ s t u -r a m o s e v a n g e l h o s e t e n t a m , m a i s o u m e n o s c o n s c i e n t e m e n t e , r e -

d u z i r a s t e n s õ e s o u m e s m o a s c o n t r a d i ç õ e s d o s t e x t o s !U m e x e m p l o a b s o l u t a m e n t e n o t á v e l é o d o p a i - n o s s o n a v e r s ã o d e

L u c a s ( L c 11 , 2 - 4 ) . A m a i o r p a r t e d a t r a d u ç ã o m a n u s c r i t a , o s g r a n d e s

u n c i a i s ~ , A , D , W, ® , a s f a m d i a s f I e f i s , a m u l t i d ã o d e m i n ú s c u l a sb i zan t i nas , a An t i ga La t i na e a Vu lga ta ac rescen tam aos c inco ped idos

d e L u c a s o s d o i s p e d i d o s s u p l e m e n t a r e s d e M a t e u s ; o Va t i c a n u s B 0 3 ,

, s Ver acima p. 366., 6 Ver acima p. 215.

O texto do Novo Testamento e sua históriã

a s i r í a c a s i n a í t i c a , M a r c i ã o , O r í g e n e s , A g o s t i n h o n o s c o n s e r v a r a m ot e x t o c u r t o , c u j a a n t i g u i d a d e é c o n fi r m a d a p e l o p a p i r o p T S .

Um outro caso evidente é o logion de Mateus 24,36, que encontra parale loem Marcos 13,32: "n inguém os conhece, nem os anjos do céu, nem o Fi lho,ninguém senão o Pai e só ele" . Mas, enquanto o texto de Marcos t raz quaseque constantemente "e nem mesmo o Fi lho" (o6óè õ utóç), a t radição do textomateano se div ide. Se o manuscr i to A está amputado da maior parte do Evan-gelho de Mateus, a t radição bizant ina, em seu conjunto, não contém a expres-são "e nem mesmo o Fi lho"; como também f I , 33, os lecionár ios, a Vulgata,a Peshi t ta, a s i r íaca s inaí t ica e o copta. Inversamente, as t radições egípcia ecesareana, de um lado (B, @, ~, fus, Orígenes) e, de outro, a tradição ocidental(D, a Ant iga Lat ina, a s i r íaca palest inense) a contêm. A cr í t ica externa obr iga-rá, portanto, a conservar a expressão. Mesmo que o cr i tér io da lect io d i fformisnão seja respei tado, a cr í t ica interna vê na manutenção da expressão a lect iodi f j~ci l ior ; uma confissão de ignorância da parte do Fi lho só podia chocar asensibilidade cristã impelida a desenvolver uma alta cristologia. Ao contrário, asupressão da expressão parece devida a uma intervenção de tipo doceta. Paraque o IoEion seja tão estável em Marcos, é preciso que tenha s ido atestado efirmemente mant ido em data ant iga. Deve-se conclui r que a t radição bizant inacorr ig iu o texto mateano? É o que fazem os edi tores do texto-padrão, ao retero6õ~ õ u[óç. Todavia, no GNTos membros da Comissão preferem a escolha davar iante da c lasse (B), que supõe pelo menos uma oposição. De Fato, não sepode pensar que a al ta cr is to logia em ação na redação final do evangelho deMateus já teria transformado o logion antigo.9

3 . U m e x e m p l o t i r a d o d o e v a n g e l h o d e J o ã o p e r m i t i r á a p r e e n d e r,como que ao v i vo , os confl i tos dou t r i na i s que ag i ta ram o sécu lo !1 :

Em João 1,11, os papiros p¿¿e pTS, todos as grandes unciais e as minúsculas,isto é, a tradição egípcia e a tradição b[zantina, assim como o códice de Beza,Icem: "os que não nasceram dos sangues, nem de um querer da carne. . . " , oque caracter iza os crentes. Todavia, um manuscr i to da ant iga lat ina (b) e osPadres lat inos mais ant igos -- I reneu lat ino, Orígenes lat ino (para a metadedas ocorrências) , Tertu l iano, Ambrósio, Agost inho, Jerônimo (para um terçodas ocorrências) --têm a Frase no singular, reçerindo-se a Cristo: "ele que nãonasceu dos sangues. . . " . O peso da cr í t ica externa é ta l que a discussão pode,de iníc io, parecer inút i l . Mas os testemunhos lat inos remontam à metade doséculo I ] . Trata-se, no confli to cr is to lógico, de uma afirmação do t ipo docetaou de uma afirmação da v i rg indade de Mar~a? I reneu (Contra as heresias 11116,2) e Tertuliano (Da carne do Cristo XIX) Icem o texto no singular, aplicando-

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A crítica textual

o à concepção virginal. Tertuliano, por outro lado, acusa os gnósticos valenti-niãnos de tê-lo corrompido, pondo-o no plural para sustentar sua concepçãodo cristão "espiritual". No século V, Cirilo lê o plural e faz a ligação entre aconcepção virginal e o batismo dos cristãos como o nascimento do alto.

4. Para terminar, diremos uma palavra sobre a questão colocadapor alguns versículos (até mesmo perícopes) ausentes de uma boapar te da t rad ição manuscr i ta , embora conhec idos da out ra par te .Trata-se, principalmente, da perícope da mulher adúltera, mas tam-bém, em Lucas, da agonia no Getsêmani (Lc 22,23-24), ou do "Pai,perdoa i - lhes" (Lc 23,34) . A dec isão dos ed i to res do tex to-padrão éimpr imi r esses vers ícu los no tex to , mas cercados de co lchetes du-plos, o que significa a incerteza da tradição ou, às vezes, que a pas-sagem não per tence ao tex to de or igem, mas é reconhec ida comouma t rad ição cr is tã ant iga . São casos em que, de manei ra par t icu-larmente clara, a crí t ica textual deve entrar em diálogo com a crít ical i terária, sem perder, todavia, sua especificidade.

O texto de Lucas 22,43-44 ilustra bem a dificuldade: os dois versículos queinsistem na agonia terrível de Jesus no jardim das oliveiras, sustentado por umanjo, estão ausentes de um bom número de grandes unciais (~, A, B, W), dopapiro f75, de fl~, da siríaca sinaítica, de Ambrósio, de Jerônimo e de Orígenes.Ao contrário, eles estão presentes no códice de Beza, em D, O, f', na AntigaLatina, na siríaca curetoniana e na Peshitta, na Vulgata, em Justino e lreneu.A situação é, portanto, muito confusa, mas a omissão parece em grande parteegípcia; uma altíssima cristologia pôde recusar-se a atribuir a Cristo tal agoniae a imaginar que um anjo pudesse confortá-lo! Entretanto, a crítica interna nãopode discernir claramente a variante-fonte, porque se pode também alegar,em sentido contrário, a vontade de insistir na humanidade de Jesus. Ela pro-cura, então, se apolar sobre critérios estilísticos. Várias palavras do versículo44 são hapax na obra de Lucas; deve-se, por isso, negá-las ao autor? Enfim,ela tem em conta a economia do conjunto do relato da paixão: se o Jesus deLucas morre serenamente na cruz. entregando seu espírito nas mãos do Pai,não teria o autor querido reequilibrar a imagem exprimindo, primeiro, a angús-tia muito humana do Filho nessa cena decisiva?

A d iscussão desse exemplo in t roduz iu e lementos de c r í t i ca l i te -rária: pr imeiro a noção de "vocabulário" de um autor, l igado a seusháb i tos es t i l í s t i cos , depo is a const rução do con junto de um re la to .

o texto do Novo Testamento e sua história

Esse t ipo de crít ica se desenvolveu sob o nome crít ica racional. Elainsiste no est i lo próprio de um autor, mas também no caráter maisou menos l i te rár io do grego u t i l i zado, É de grande in teresse, masnão está l ivre de certos r iscos, especialmente do r isco de círculo vi-cioso: estabelece-se o texto de um autor a part ir de um vocabulárioe de traços de est i lo observados.., sobre o texto estabelecido. Maisuma vez, a prudência é obrigatória.

Se os colchetes duplos do texto-padrão permanecem muito am-bíguos, pois manifestam uma recusa a escolher, eles sã~ interessan-tes por indicar, imediatamente, ao lei tor a variabi l idade do texto empassagens tão importantes!

NOVAS PERSPECTIVAS DA CRITICA TEXTUALA u n i f o r m i z a ç ã o d o t e x t o - p a d r ã o n ã o d e v e i l u d i r : o t e x t o d o

Novo Testamento tes temunha a v ida das comunidades cr is tãs aolongo dos séculos.

O que a crít ica textual subl inha, antes de qualquer coisa, é o es-tatuto absolutamente original das Escri turas cristãs; o texto nuncafoi verdadeiramente fixado, e a diversidade de nossas traduções mo-dernas atesta, provavelmente, hoje que a mesma l iberdade continuaa agir na transmissão das Escrituras.

A crít ica textual continua seu lento trabalho de atual izar as inu-meráve is var ian tes que a fe taram o tex to do Novo Testamento : asúlt imas edições do GNT (4~) e da Nestle-Aland (2?a) oferecem apa-ratos sempre mais r icos e mais precisos. Sob a égide de K. Aland, asér ie ANTF (Arbe i t zur neutes tament t l i chen Text fo rschung) ed i toucolações de vários papiros e, deste então, as colações de todos osmanuscri tos, obra por obra.

Mas outras formas de pesquisa se mult ipl icam, especialmente emtorno do tex to oc identa l em sua d ivers idade: c i ta remos espec ia l -mente os trabalhos de E.-M. Boismard e A. Lamouil le sobre o textoocidental dos Aros dos apóstolos; além disso, depois da tradução,por E. Delebecque, do códice de Beza para os Atos dos apóstolos,D. C. Parker ed i tou o cód ice de Beza, do qua l C. -B. Amphoux t ra -duz iu e pub l icou o tex to de Mateus. O imenso es forço empreend i -

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\ crít ica textual

do por J. Duplacy sobre as citações dos Padres da Igreja prossegue,espec ia lmente no Cent ro de aná l ise e de documentação pat r ís t icad e S t r a s b o u r g , q u e e d i t a a B B l i a p a t r í s t i c a . E n fi m , v e r s õ e s c a d avez mais numerosas (copta, etíope, georgiana etc.) são esttudadas;um trabalho de grande amplidão sobre a Vulgata está em curso, e umoutro sobre a Antiga Latina está sendo empreendido.

Esses trabalhos permit irão refinar a teoria dos grandes "estadosdo texto". Mas desde já permitem ao lei tor guardar uma ati tude maiscr í t i ca em re lação ao cará ter demas iadamente egípc io do tex to-pa-drão e manter-se, também, prudente diante da tentação, sempre re-nascente, do mito de origem: é preciso perder a i lusão do "texto ori-ginal" e aceitar os testemunhos diversos das comunidades eclesiais.Eles indicam uma relação com o texto que convida à l iberdade.

6 . B I B L I O G R A F I A

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