novo testamento marshall_trecho

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Prefácio Este livro pretende ser um manual da teologia do Novo Testamento, cuja pro- fundidade e extensão sejam, porém, compatíveis com seu uso tanto por estudan- tes quanto por todos que se interessam pelo tema. Em uma época em que encontramos livros imensos sobre os mais variados assuntos relacionados ao Novo Testamento, procurei ser o mais sucinto possível e escrever uma obra com um escopo bastante manejável. Em geral, as obras que estudam a teologia do Novo Testamento tendem a ser organizadas segundo a ordem em que os temas são tratados ao longo do Novo Testamento, ou segundo as doutrinas de cada um de seus livros. Adotei, no entanto, uma abordagem diferente: deixei cada livro do Novo Testamento falar por si mesmo e, então, procurei apresentar uma espécie de síntese de suas doutrinas. Toda abordagem possui suas falhas, e a falha da abordagem que adota- mos está no fato de a discussão dos diversos temas, por exemplo, sobre a igreja, estar espalhada por vários capítulos. Porém, o ponto forte de nosso método se encontra na condição dada para que a estrutura e o conteúdo da discussão sejam moldados por aquilo que cada autor procurou transmitir nos documentos origi- nais. Com o intuito de evitar a repetição, alguns tópicos, que mereceriam igual tratamento em mais de um contexto, em geral serão tratados em um único capítulo (por exemplo, o conceito de igreja como corpo de Cristo é tratado no capítulo sobre Efésios, embora também pudesse ter sido estudado em Colossenses). Ainda segundo nosso propósito de escrever um livro adequado para o uso de estudantes, a bibliografia foi deliberadamente restrita a obras de fácil acesso. Con- tudo, dois ou três dos comentários que indiquei para cada livro do Novo Testa- mento podem ser classificados entre os mais densos que existem atualmente, sendo que alguns deles exigem ao menos um conhecimento básico do grego. Não vejo razão alguma em se fornecer bibliografias exaustivas (que de qualquer maneira nem eu mesmo tenha lido) e deixar de indicar ao estudante os livros aos quais ele deve dar prioridade. De modo geral, não indiquei livros escritos em outras línguas,

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  • como fazer uma teologia do novo testamento? |||||9|||||

    Prefcio

    Este livro pretende ser um manual da teologia do Novo Testamento, cuja pro-fundidade e extenso sejam, porm, compatveis com seu uso tanto por estudan-tes quanto por todos que se interessam pelo tema. Em uma poca em queencontramos livros imensos sobre os mais variados assuntos relacionados ao NovoTestamento, procurei ser o mais sucinto possvel e escrever uma obra com umescopo bastante manejvel.

    Em geral, as obras que estudam a teologia do Novo Testamento tendem aser organizadas segundo a ordem em que os temas so tratados ao longo doNovo Testamento, ou segundo as doutrinas de cada um de seus livros. Adotei,no entanto, uma abordagem diferente: deixei cada livro do Novo Testamentofalar por si mesmo e, ento, procurei apresentar uma espcie de sntese de suasdoutrinas. Toda abordagem possui suas falhas, e a falha da abordagem que adota-mos est no fato de a discusso dos diversos temas, por exemplo, sobre a igreja,estar espalhada por vrios captulos. Porm, o ponto forte de nosso mtodo seencontra na condio dada para que a estrutura e o contedo da discusso sejammoldados por aquilo que cada autor procurou transmitir nos documentos origi-nais. Com o intuito de evitar a repetio, alguns tpicos, que mereceriam igualtratamento em mais de um contexto, em geral sero tratados em um nico captulo(por exemplo, o conceito de igreja como corpo de Cristo tratado no captulo sobreEfsios, embora tambm pudesse ter sido estudado em Colossenses).

    Ainda segundo nosso propsito de escrever um livro adequado para o uso deestudantes, a bibliografia foi deliberadamente restrita a obras de fcil acesso. Con-tudo, dois ou trs dos comentrios que indiquei para cada livro do Novo Testa-mento podem ser classificados entre os mais densos que existem atualmente, sendoque alguns deles exigem ao menos um conhecimento bsico do grego. No vejorazo alguma em se fornecer bibliografias exaustivas (que de qualquer maneiranem eu mesmo tenha lido) e deixar de indicar ao estudante os livros aos quais eledeve dar prioridade. De modo geral, no indiquei livros escritos em outras lnguas,

  • teologia do novo testamento|||||10|||||

    com uma nica exceo: fiz referncia s principais teologias do Novo Testa-mento escritas em alemo, nas ocasies em que considerei apropriado (e muitoocasionalmente indiquei outras obras que tenham me influenciado).

    Agradeo a InterVarsity Press por sua pacincia em aguardar o trminodeste livro, por tantas vezes prorrogado por mim, e tambm por seu belo traba-lho de edio.

    I. Howard Marshall

  • como fazer uma teologia do novo testamento? |||||11|||||

    abreviaturas

    ANRW Aufstieg und Niedergang der Rmischen WeltA21 Almeida Sculo XXIAR ou ARA Almeida Revista e AtualizadaARC Almeida Revista e CorrigidaBBR Bulletin for Biblical ResearchBJ Bblia de JerusalmBJRL Bulletin of the John Rylands University Library of

    ManchesterCBQ Catholic Biblical QuarterlyCTJ Canadian Theological JournalDJG Dictionary of Jesus and the GospelsDLNTD Dictionary of the Later New Testament and Its DevelopmentsDNTB Dictionary of New Testament BackgroundDPL Dictionary of Paul and His LettersEDBT Evangelical Dictionary of Biblical TheologyEDNT Exegetical Dictionary of the New TestamentEQ Evangelical QuarterlyInt InterpretationJBL Journal of Biblical LiteratureJETS Journal of the Evangelical Theological SocietyJSNT Journal for the Study of the New TestamentNIV New International VersionNRSV New Revised Standard VersionNTS New Testament StudiesNVI Nova Verso InternacionalREB Revised English BibleSJT Scottish Journal of TheologySNT (SU) Studien zum Neuen Testament (und seiner Umwelt)TNIV Todays New International VersionTynB Tyndale Bulletin

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  • como fazer uma teologia do novo testamento? |||||13|||||

    Introduo

    Parte 1

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  • como fazer uma teologia do novo testamento? |||||15|||||

    Como fazer uma teologiado Novo Testamento?

    Antes de discutirmos o modo como podemos escrever uma teologia do NovoTestamento, necessria uma palavra sobre a legitimidade e a possibilidadedessa iniciativa.

    O NOVO TESTAMENTO COMO OBJETO DE ESTUDO

    O crtico mais proeminente contra tal iniciativa Heikki Risnen, que apontaquatro motivos pelos quais considera que isso no deve e no pode ser feito.1

    Primeiro, ele afirma que histria e teologia no devem se misturar. Nessesentido, alega que no tarefa dos estudiosos do Novo Testamento, no desempe-nho de sua funo, tratar de teologia. Antes, o seu mbito de atuao o campo dahistria. O que um estudioso do Novo Testamento pode fazer simplesmenteescrever um relato descritivo sobre a igreja primitiva e nada mais do que isso.Escrever teologia uma tarefa prescritiva, e o estudioso do Novo Testamento nopossui autoridade para prescrever coisa alguma a ningum.

    Segundo, Risnen defende que a prpria natureza do material nos restringe aescrever um relato histrico sobre a religio dos primeiros cristos. Nesse ponto, eleretoma a proposta especfica apresentada por William Wrede no sculo passado.

    Em terceiro lugar, ele afirma que um estudo que se limita anlise dos docu-mentos neotestamentrios pode se dizer que repousa sobre uma limitao artifi-cialmente imposta. Uma limitao determinada pelo processo de constituio docnon, que por sua vez representa uma deciso teolgica posterior, cujas bases nose encontram na histria da igreja primitiva.

    1 Heikki Risnen, Beyond New Testament Theology: A Story and a Program (Londres: SCMPress, 1990).

    Captulo 1

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    Em ltimo lugar, ele alega que existe tamanha contradio entre esses docu-mentos que seria impossvel nos basearmos neles para extrair uma nica teologiado Novo Testamento, no sentido de uma perspectiva teolgica que fosse unificadae comum a todos os documentos existentes.

    Os argumentos de Risnen foram alvo de uma refutao detalhada e bastanteconvincente por parte de Peter Balla.2 primeira alegao de Risnen, Ballaresponde que no existe uma boa razo para a teologia dos primeiros cristos noser objeto de um estudo histrico. Acrescenta ainda que esse estudo pode serrealizado sem que seu ponto de partida seja necessariamente uma perspectivaeclesistica, ou que sua concluso seja uma declarao sobre aquilo em que a igrejadeva crer. O primeiro raciocnio de Balla bastante slido, mas a segunda objeoainda precisaria de uma anlise adicional mais detalhada.

    Talvez a resposta mais simples e convincente para o segundo argumento apre-sentado por Risnen seja a constatao de que surgiram nos ltimos anos nadamenos do que dez grandes obras escritas por acadmicos do Novo Testamento dealtssima competncia e ligados a vertentes teolgicas bastante distintas.3 muitodifcil acreditar na idia de que todos eles estejam unidos em torno de algo basi-camente ilegtimo, sendo ainda que a prpria existncia de suas obras demonstraque essa uma iniciativa possvel!

    A QUESTO DO CNON

    O terceiro argumento de Risnen possui maior peso. A princpio, coloca-se oseguinte questionamento: o conjunto de vinte e sete documentos, que constituio Novo Testamento, forma de fato uma coletnea unificada e capaz de umadiferenciao vlida frente a outros documentos do perodo? Em outras pala-vras, esses documentos se constituem em um adequado objeto de estudo? correto analisar os documentos do Novo Testamento por si mesmos? Ou ainda, certo excluir dessa anlise, por exemplo, documentos escritos pelos pais apos-tlicos, o Evangelho de Tom ou o Evangelho de Pedro? possvel apontar cincoargumentos em defesa do cnon, sendo que, a meu ver, os quatro primeiros sobastante slidos.

    Primeiro, esses documentos foram reconhecidos por cristos em perodosseguintes como um conjunto de livros sagrados que gozavam do mesmo statusatribudo aos escritos que os judeus aceitavam como suas Escrituras. O formatoda coletnea e a essncia de seu contedo foram fundamentalmente determina-dos por volta do final do segundo sculo da era crist. No entanto, foi somente

    2 Peter Balla. Challenges to New Testament Theology: An Attempt to Justify the Enterprise (Tbingen:Mohr Siebeck, 1997).

    3 Ver as obras de Klaus Berger, G. B. Caird, J. Gnilka, Ferdinand Hahn, Hans Hbner, GeorgeEldon Ladd, Walter Schmithals, Georg Strecker, Peter Stuhlmacher e Ulrich Wilckens, todas men-cionadas na bibliografia deste livro. Sabemos que mais obras esto sendo produzidas.

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    no ano 367 d.C. que surgiu a primeira declarao, ainda existente, sobre a listados livros que mais tarde seriam quase que universalmente aceitos como can-nicos.4 Podemos admitir que todo o processo, no qual esses livros foram reuni-dos e separados dos demais, desenvolveu-se por um longo perodo aps suaredao e, tambm, que no foram escritos com a inteno deliberada de formarum conjunto de livros. O prprio fato de um consenso haver surgido em tornodeles, no entanto, suficiente para sustentar a posio de que a igreja primitivaestava certa ao reconhecer nessas obras certas caractersticas comuns, as quaisconstituem a base de sua unidade.

    Segundo, esses documentos foram escritos pelos primeiros seguidores de Cristo,indivduos que participaram pessoalmente do nascimento e da expanso da igrejaou que tiveram um contato bastante prximo com os participantes, sendo queambos viveram no primeiro sculo da era crist.5 Portanto, h uma base para umapossvel unidade no que diz respeito ao local e ao tempo relativamente limitadosem que esses documentos foram escritos.

    Em terceiro lugar, os livros do Novo Testamento constituem praticamente atotalidade da literatura crist que sobreviveu do primeiro sculo, embora algunsdocumentos dos pais apostlicos (como 1Clemente e a Didaqu) tambm sejamprovavelmente do mesmo perodo. Da mesma forma que a disputa pela posse doterritrio da Caxemira no significa que a ndia e o Paquisto no possam serconsiderados dois pases distintos, o fato de que possa existir certa coincidnciaentre as datas dos ltimos livros do Novo Testamento e dos primeiros escritos dospais apostlicos (e tambm de outros documentos cristos do mesmo perodo)no motivo suficiente para se questionar a existncia de um ncleo perfeita-mente identificvel em ambos os tipos de literatura. A distino bsica entre aliteratura crist do primeiro e do segundo sculos continua sendo vlida, mesmoque o limite entre ambas no possa ser traado com preciso, exceto pela consti-tuio do cnon.

    Em quarto lugar, os livros do Novo Testamento apresentam uma unidadetemtica patente, perceptvel pelo fato de que todos tratam, de uma maneira oude outra, de Jesus e da religio que se criou em torno dele. Com toda certeza,isso no implica necessariamente que todos digam as mesmas coisas sobre o

    4 Essa afirmao controvertida, mas passvel de defesa. Para uma idia sobre as diversas posiesexistentes, ver os artigos sobre o cnon escritos por F. F. Bruce, DJG, p. 93-100; Arthur G. Patzia,DPL, p. 85-92; e Lee M. McDonald, DLNTD, p. 134-144.

    5 possvel que me acusem de tornar as coisas mais fceis para mim mesmo, mas duvidosinceramente de que as possveis excees, 2Pedro e as Epstolas Pastorais (e Atos, seguramente),devam ser datadas de um perodo to posterior quanto o segundo sculo. Ver Steve Walton e DavidWenham, Exploring the New Testament, v. I, The Gospels and Acts (Londres: SPCK; DownersGrove, Ill: InterVarsity Press, 2001); I. Howard Marshall, Stephen Travis e Ian Paul, Exploring theNew Testament, v. II, The Letters and Revelation (Londres: SPCK; Downers Grove, I11: InterVarsityPress, 2002).

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    tema comum, ou que concordem uns com os outros. Entretanto, um corpo dedocumentos que possuam um tema central comum deve se constituir em umobjeto legtimo de estudo.

    Por ltimo, vrias vezes tem sido alegado que os documentos demonstramum tipo de pensamento cristo sem paralelos na literatura posterior. Esse julga-mento evidentemente bastante subjetivo e seria possvel afirmar que algunsdos documentos do segundo sculo (por exemplo, a Carta a Diagoneto) aproxi-mam-se bastante deles em termos de esprito e qualidade. No entanto, comoponto de vista genrico passvel de defesa. Ainda assim, no atribuiria muitopeso a esse argumento.

    A tese que defendemos, portanto, que faz sentido luz do cnon perguntarse existe uma teologia bsica que seja comum a todos os livros que a igreja primi-tiva considerou cannicos.

    Evidentemente, a aceitao dessa postura no leva excluso de outros docu-mentos, estranhos ao Novo Testamento, do conjunto de nossa anlise. No pro-cesso de esclarecimento do contedo do Novo Testamento e de reconstruohistrica do perodo, essencial que faamos uso de todas as fontes relevantes,inclusive das diversas formas de literatura crist existentes naquele momento. Talmtodo de anlise foi caracterstico de Ethelbert Stauffer, cuja proposta era con-textualizar o Novo Testamento em relao ao que designou de antiga tradiobblica, o que por vezes lhe valeu a acusao de correr o risco de atribuir quaseque o mesmo status cannico ao material extracannico.6 Se estamos escrevendo ahistria da igreja primitiva, fica claro que deveremos usar todas as fontes dispon-veis. No entanto, se estamos escrevendo um relato sobre a teologia do Novo Testa-mento, nossa tarefa ento trazer tona seu contedo, da mesma forma que umaapresentao do pensamento de Shakespeare tomaria como base suas obras, em-bora as inserisse no contexto mais amplo de outras obras escritas por dramaturgosdo mesmo perodo, ou ainda como o estudo dos fundadores do Partido Trabalhistaingls iria se basear em seus discursos, mas sempre no contexto do que fora ditopor outros polticos contemporneos.7

    AS QUESTES RELACIONADAS AO CARTER CIRCUNSTANCIAL, DIVERSIDADE E EVOLUO DO PENSAMENTO

    Ao tratar da quarta objeo levantada por Risnen, teremos agora de enfrentardiversas dificuldades em nosso estudo, decorrentes da prpria natureza e da hist-ria dos documentos sob anlise.

    A primeira dificuldade consiste no fato de que, entre os livros que com-pem o Novo Testamento, no h nada parecido com um manual de teologia j

    6 Ethelbert Stauffer, New Testament Theology (Londres: SCM Press, 1955), p. 20.7 Ver mais adiante a nota nmero 13.

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    pronto. Nenhum dos livros foi especificamente escrito com um enfoque teol-gico, ou seja, com o propsito de ser um relato sistemtico e detalhado sobre aviso de seu autor acerca da existncia de Deus, do mundo e do modo comoambos se relacionam. Ao menos alguns dos livros possuem um carter circuns-tancial, isto , foram especificamente escritos em ocasies determinadas, paraum grupo de pessoas definido e nos mostram o que seus autores consideravamcomo relevante para tal pblico em particular. Podemos com certeza afirmarisso em relao s epstolas de Paulo. Em geral acredita-se que os evangelhostambm foram escritos para comunidades especficas, embora essa concepoesteja sujeita a certas ponderaes.8 Alm disso, fica evidente que Paulo certa-mente considerava algumas das epstolas que escreveu para determinadas igre-jas, seno todas elas, como material que poderia ser aplicado tambm em outrasigrejas. No entanto, mesmo considerando-se que os livros sejam mais do quesimplesmente circunstanciais, permanece vlido o fato de que nenhum delestraz uma apresentao completa e sistemtica da teologia de seu autor. Portanto, bem provvel que seja impossvel analisar qualquer um deles para se obter ocontedo da teologia de seu autor. E pode at haver certos casos duvidosos arespeito do grau de conscincia que o autor possua de algum tipo de teologiaformada. Apesar disso, a dificuldade da tarefa em si mesma no consiste em umargumento contra a tentativa de reconstruo dessa teologia, ainda que isso sejaempreendido a partir de obras que no sejam especificamente teolgicas.

    A existncia de uma considervel variedade e diversidade entre os livros quecompem o Novo Testamento nossa segunda dificuldade. O perodo de forma-o do Novo Testamento anteriormente referido como curto, quando compa-rado longa extenso do perodo posterior da histria da igreja tambm podeser visto, sob outra tica, como um perodo relativamente longo (de cerca de 50anos), aliando-se a isso o fato de que os documentos eram provenientes de umaampla rea geogrfica que ia de Jerusalm a Roma.

    Os livros diferem uns dos outros em funo de seu gnero literrio, sendo queos gneros especficos: evangelhos, epstolas e literatura apocalptica, apresentamuma notria dificuldade de definio em relao s suas caractersticas.

    Existe ainda o fato de que os livros retratam uma tamanha variedade de pers-pectivas entre si, que alguns estudiosos chegam a alegar que contm contradies.

    Todos esses aspectos do origem questo sobre a existncia ou no de umasuficiente unidade de pensamento entre os livros do Novo Testamento, a pontode justificar sua anlise conjunta. No entanto, mesmo que no possamos partirdo pressuposto da unidade do pensamento neotestamentrio, ainda assim faz

    8 Richard J. Bauckham, ed., The Gospels for All Christians: Rethinking the Gospel Audiences(Grand Rapids, Mich.: Eerdmans, 1998). Embora a tese principal seja atrativa, ainda deixa espao paraacreditarmos que os evangelistas foram influenciados pelas comunidades em que viveram e que,portanto, escreveram de forma mais especfica para essas comunidades e suas necessidades, em vez dehaverem tentado adotar uma abordagem mais catlica.

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    sentido, sob o ponto de vista histrico, analisar o corpus constitudo pelos primei-ros livros cristos, com o propsito de identificar as teologias ali representadas. Oesforo seria vlido ainda que o resultado nos demonstrasse que as supostas coesoe unidade alegadas fossem algo duvidoso. Quer gostemos ou no, temos diante dens essa coletnea de livros como um objeto a ser investigado.

    A terceira dificuldade encontra-se no fato de que esses livros so fruto de umprocesso de evoluo do pensamento que nitidamente se divide, no mnimo, emduas fases principais:

    A primeira fase refere-se ao perodo bastante breve do ministrio de Jesus,encerrado com sua morte em 30 d.C., ou por volta dessa data. Os quatro evange-lhos apresentam-se como relatos histricos do perodo, pois descrevem (como disseLucas) todas as coisas que Jesus comeou a fazer e a ensinar.

    A segunda fase consiste do perodo posterior morte de Jesus, durante o qualo pequeno grupo de seus seguidores cresceu em nmero e difundiu-se, formandoigrejas por toda a poro oriental do mundo mediterrneo. Foram eles que produ-ziram a literatura que carrega a mensagem crist, explicando-a e aplicando-a snecessidades das primeiras audincias. Contudo, essa mensagem no era uma meracontinuao daquilo que Jesus havia ensinado, mas antes uma proclamao sobreJesus e sua contnua relevncia. Uma anlise mesmo que superficial dos evange-lhos e das epstolas mostra que os ensinos de Jesus e os de seus discpulos estobem longe de serem considerados idnticos, mesmo que haja muita coisa emcomum entre ambos.

    O limite entre as duas fases est obscurecido pelo fato de os evangelhosterem sido escritos somente durante a segunda fase (e, de acordo com a visogeral, bem no final do perodo)9, de forma que, at certo ponto, refletem inevi-tavelmente os interesses e a perspectiva dessa etapa. Portanto, existe um delicadoproblema de carter histrico na tentativa de se descobrir exatamente o queJesus disse e fez, e a forma como ele teria sido visto pelas pessoas de seu tempo.H uma dificuldade adicional causada pela diversidade de locais e perodos dasegunda fase em que os diferentes documentos se originaram. Assim, temos queencarar o problema de tentar se reconstituir a origem e o processo de evoluodo pensamento desses documentos. Se nos concentrarmos nos livros que hojecompem o Novo Testamento, estaremos lidando com documentos que se enqua-dram em uma espcie de evoluo cronolgica e que, portanto, no podem sertodos tratados da mesma forma. E, estando empenhados em reconstruir a teolo-gia da igreja primitiva durante o primeiro sculo, temos um compromisso aindamaior com a descrio de um riqussimo panorama de idias em processo demudana e evoluo. No entanto, nada disso, em princpio, torna nossa tarefademasiado complexa ou impossvel.

    9 A posio universalmente aceita que Paulo escreveu suas epstolas antes de os evangelistasterem escrito os evangelhos.

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    MTODOS UTILIZADOS PARA ESSA TAREFA

    Mantendo sempre em mente os trs aspectos relativos diversidade do material,podemos tentar definir nosso tema de estudo em termos mais precisos e, paratanto, devemos conhecer alguns dos mtodos recentes nesse sentido.

    Uma definio provisria da nossa tarefa talvez possa nos ajudar: o prop-sito de quem estuda a teologia do Novo Testamento investigar a evoluo dopensamento dos escritores do Novo Testamento a respeito de Deus e do mundo,mais especificamente do mundo dos seres humanos10, bem como a forma comoambos se relacionam.

    Essa uma definio suficientemente ampla para o tema do nosso estudo e,ao mesmo tempo, exclui certas outras coisas ou, no mnimo, reconhece seu cartersecundrio. Assim, ela exclui a hiptese de se tentar escrever uma histria da igrejaprimitiva, exceto no que tange aos aspectos histricos que contribuam ao prop-sito de compreenso da teologia.

    Exclui igualmente o exame do Novo Testamento como uma simples pea deliteratura, embora deva ficar claro, mais uma vez, a relevncia para ns do estudoliterrio na anlise teolgica.

    Essa definio tambm traa uma ntida distino entre o estudo da teologiado Novo Testamento e o estudo da religio dos primeiros cristos, apesar da reli-gio tambm ser importante ao nosso propsito na medida que ela d origem teologia, que, por sua vez, possui a tendncia de dar forma prtica religiosa.

    No encontraramos grande dificuldade em elaborar, por exemplo, a teologiada Igreja Independente da Esccia do sculo vinte. Bastaria que fizssemos umadescrio acerca da viso caracterstica e j sedimentada desse grupo especfico decristos, pois se trata de uma comunidade relativamente pequena, com certa homo-geneidade e bastante consciente da necessidade de adotar uma postura sistemticacom relao sua teologia, fundamentando-a solidamente na teologia da Refor-ma. J uma descrio da teologia anglicana do sculo vinte, por outro lado, seriauma tarefa muito mais difcil, pois precisaramos considerar um conjunto bemmais amplo de teorias e perspectivas, em que diversos grupos se opem e atmesmo se contradizem uns os outros. Mas, ainda assim, teramos algo que pode-ramos descrever como tipicamente anglicano em comparao com outras teolo-gias, como a presbiteriana ou a catlica, por exemplo.

    No entanto, como estudar o surgimento e a rpida expanso do cristianismo,no momento em que era composto por vrios grupos, incluindo os judeus, comseus dogmas tradicionais, e os gregos e romanos, que h pouco adoravam umadiversidade de dolos? Vrios mtodos tm sido adotados, alguns deles mais vi-veis do que outros, conforme avaliaremos a seguir.

    Pelo que j foi dito, deve ter ficado bem claro que no podemos simples-mente juntar todos os livros do Novo Testamento de forma indiscriminada, ou

    10 Porm, certamente sem excluir os animais e os seres inanimados!

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    consider-los como uma mina de onde extrairemos as pedras para a construo denosso edifcio teolgico. De fato, seria possvel fazer uma compilao de afirma-es teolgicas retiradas do Novo Testamento, o que no passaria de um harm-nico apanhado de citaes aleatoriamente extradas de seus livros. Esse mtodoiria apenas arrancar as afirmaes para fora de seus contextos originais e, portanto,deixaria de proceder a uma anlise mais cuidadosa de suas nuances e variaes,aspecto necessrio para se aferir com preciso o que elas pretendiam dizer e quaisas suas implicaes. Com isso, partiramos do pressuposto de que todas as citaesnecessariamente refletem o mesmo ponto de vista. Contudo, podemos equiparar ateologia a uma mera coletnea de textos? certo que deve haver algum tipo deorganizao. Assim, qual o critrio para se organizar uma coletnea de textos? Sequisermos construir um edifcio, e no um mero amontoado de tijolos, necess-rio que tenhamos um projeto ou planejamento.

    Em conseqncia disso, o primeiro mtodo apresentado no pode na prticaser separado de um segundo, acompanhando uma tendncia. Este consiste emadotar um critrio de organizao preexistente, extrado, por exemplo, de umaobra de teologia sistemtica, sem que haja, contudo, qualquer evidncia de queessa estrutura norteava o pensamento dos escritores do Novo Testamento. Noentanto, necessrio dizer que, de modo geral, quem adota essa abordagem estpraticamente convencido de que a estrutura reconhecida nessas obras equivale defato estrutura dos livros do Novo Testamento.

    Assim, dois equvocos metodolgicos combinam-se em tal hiptese, a saber, autilizao indiscriminada dos livros do Novo Testamento, como se todos refle-tissem necessariamente uma nica perspectiva, bem como o reconhecimento eemprego de uma estrutura organizativa no pertencente ao Novo Testamento,como algo que lhe fosse inerente. Como provvel resultado, teremos a distoro eo anacronismo. Sentimo-nos no direito de afirmar que nenhum estudante deteologia que seja srio escolher esse mtodo.11

    Um terceiro mtodo, que evita os riscos que acabamos de mencionar, consisteem fazer uma anlise individual dos autores e livros do Novo Testamento, com afinalidade de destacar aquilo que cada um ensina sobre os mais variados tpicos e,ento, coloc-los lado a lado, procedendo ou no a uma comparao de seus con-tedos. Esse foi o mtodo escolhido por G. B. Caird. Ele define seu trabalho soba forma, como ele mesmo denominou, de uma conferncia entre os autores do

    11 Evidentemente, seria muito difcil citar aqui exemplos da utilizao desse mtodo por parte deestudiosos do Novo Testamento. O que acabei de descrever mais um risco a ser evitado, uma vez que reconhecido por muitos. Existe uma obra de Donald Guthrie, New Testament Theology (Leicester:InterVarsity Press, 1981), que tende a adotar o modelo da teologia sistemtica. No entanto, seu autor demasiado perspicaz para cair no risco de distorcer os ensinamentos do Novo Testamento. Naverdade, em sua discusso sobre tpicos doutrinrios especficos, ele analisa individualmente os autorese as reas do Novo Testamento. mais provvel que algum encontre o mtodo a que nos referimosem obras mais antigas de teologia sistemtica, de carter mais conservador, sendo basicamente compi-laes de material bblico.