o agrarismo de js martins

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    Raimundo Santos

    O agrarismo de Jos de Souza Martins

    Introduo

    As reexes de Jos de Souza Martins sobre as questes do rurale do agrrio se voltam, desde seus primeiros textos, para o tema dosmediadores operantes no mundo rural brasileiro. Ele prprio tornou--se um militante prtico da causa da reforma agrria. Teve inegvelpapel durante a dcada de 1980 at bem entrados os anos de 1990 naformao de toda uma gerao de estudiosos brasileiros da proble-mtica rural-agrria. um autor muito citado em bibliograas acad-micas e extrauniversitrias. Hoje pode ser considerado um clssico deleitura incontornvel.

    Este artigo apresenta leituras de textos das coletneas que o autorpublicou entre 1975 e 1981: Capitalismo e tradicionalismo: estudos sobreas contradies da sociedade agrria no Brasil (1975), O cativeiro da terra(1978) e Expropriao e violncia: a questo poltica no campo(1980) e Oscamponeses e a poltica no Brasil: as lutas sociais no campo e seu lugar no

    processo histrico (1981). O texto procura chamar a ateno para trselaboraes do socilogo da USP que convergem para o seu agraris-

    mo muito inuente no Brasil dos nossos tempos: a interpretao doBrasil, a teoria do Brasil agrrio e a formulao de uma estratgia paraos movimentos sociais agrrios centrada na luta pela terra.

    A primeira dessas coletneas rene textos escritos entre 1967 e1975, alguns sugestivos da interpretao do Brasil do autor. A se-gunda traz o famoso ensaio A produo capitalista de relaes nocapitalistas de produo: o regime de colonato nas fazendas de caf,

    Raimundo Santos professor do Programa de Ps-graduao de Cincias Sociaisem Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade (CPDA-UFRRJ). E-mail: [email protected].

    Este artigo foi escrito no mbito da pesquisa Mediaes e poltica/CPDA-UFRRJ.Agradeo a Dora Vianna Vasconcellos pelas sugestes ao texto.

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    que referncia bsica da sua teoria do agrrio brasileiro. A terceira,Expropriao e violncia, inclui textos expressivos da condio publicis-ta de Jos de Souza Martins ante sua circunstncia do ocaso do regimede 1964 e o comeo da transio democrtica que se intensica a partirda anistia de 1979. Na quarta coletnea, no ensaio que lhe d nome,Os camponeses e a poltica no Brasil, o seu agrarismo camponstem sua formalizao.

    Interpretao do Brasil de Jos de Souza Martins

    Nos artigos Modernizao e problema agrrio no Estado de SoPaulo (1967) e Modernizao agrria e industrializao no Brasil(1968), includos na coletnea Capitalismo e tradicionalismo podemos

    divisar linhas gerais do pensamento rural e agrrio de Jos de SouzaMartins O primeiro texto, resultado de uma investigao sobre ascondies sociais do desenvolvimento agrrio no Estado de So Paulorealizada em 1966, volta-se para o problema da modernizao agrriaem um registro que associa os temas das condies existenciais dohomem rural e das condies da acumulao de capital na economiaa um processo mais fundamental e explicativo que o da mudanasocial ligada modernizao dos vnculos econmicos no interior da

    economia nacional (MARTINS, 1967; 1975 p. 33). No segundo, Martinsse prope reetir sobre as relaes entre a industrializao e a cons-tituio da economia nacional, de um lado, e as suas repercusses nasociedade e na economia agrria, de outro (MARTINS, 1968; 1975 p. 1).

    Sublinhemos em Modernizao e problema agrrio no Estadode So Paulo (1967) esta reexo do autor sobre os resultados dapesquisa que lhe mostravam que o atraso agropecurio e o progres-so urbano-industrial no podem ser explicados separadamente: A

    situao agrria, tal como foi descrita, no constitui uma aberraoante o desenvolvimento atingido pela sociedade urbana brasileira.Antes, o desenvolvimento urbano, particularmente o da economiaindustrial, s foi e tem sido possvel graas existncia de uma eco-nomia agrria estruturada de molde a suportar e absorver os custosda acumulao do capital e da industrializao. Ao contrrio do queideologicamente parece, a situao agrria no produto da impos-sibilidade cultural e social do homem rural absorver e acompanhar oprogresso do pas, nem produto, portanto, de valores, concepese caracteres de personalidade incompatveis com o desenvolvimentoeconmico. Essa condio perifrica, mas integrante, do desenvol-vimento brasileiro o ponto de partida para questionar o problemada modernizao, seja dos meios de produo, seja das relaes de

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    produo seja das concepes que integram esses fatores no processoprodutivo. (MARTINS, 1967; 1975, p. 39-40).

    No segundo, Modernizao agrria e industrializao no Brasil,encontramos traos de uma interpretao histrico-sociolgica danossa formao social. Chama ateno esta passagem sobre a evo-luo agrria brasileira distinta da transformao radical do mundorural na revoluo burguesa clssica: Espero demonstrar tanto queo agrarismo rstico e o caipira como o tipo humano correspondenteesto contidos os alicerces do processo de constituio da economianacional e, por consequncia, de industrializao, como ele se d noBrasil, quanto que a modernizao agrria constitui uma impossibili-dade prpria dessa situao (MARTINS, 1968; 1975, p. 1).

    Mencionemos alguns pontos da viso de Martins sobre a moderni-zao brasileira das quatro dcadas anteriores a esse artigo de 1968.O primeiro deles o de que o crescimento industrial e o concomitanteaumento da populao redeniram o predomnio entre o mundorural e o mundo urbano, passando este a ter supremacia sobre ocampo. O autor refere esta inverso a vrios processos econmicos,sociais e ideolgicos, dentre eles: a expanso do mercado local e aampliao das oportunidades de investimentos (urbanizao dos

    investimentos durante as ltimas dcadas do sculo XIX); a melhorremunerao ao capital na economia urbana; as crises das exportaesno setor cafeeiro; a elaborao de uma ideologia urbana; o aumentoda densidade populacional nas cidades estimulado pela imigraonacional e estrangeira de pessoas, com ou sem tradio urbana, e adissoluo ou enfraquecimento dos laos comunitrios do sistemasocial (Ibid., p. 1-2).

    Outro ponto importante a marcar no texto a contrapartida da-

    quele processo de redenio cultural ligada constituio de umasociedade centrada nos valores urbanos: A armao da existnciaurbana, ainda que anmica, exprimiu-se culturalmente na constru-o de esteretipos, alguns negativos do homem rural. A gura docaipira tem rearmadas e atualizadas, nessa fase, as suas conotaesfundamentais: ingnuo, preguioso, desnutrido, doente, maltrapi-lho, rstico, desambicioso etc. (Ibid., p. 4). Tal processo de distin-o valorativa entre o urbano e o rural leva ideia da incapacidadeda sociedade agrria de desenvolver-se social e economicamente,presa inercia doentia e de que o mundo rural necessita de umateraputica de ao externa ao meio rural que lhe indique o desti-no de integrar-se totalidade do sistema social como compradorae consumidora de mercadorias, como mercado. (Idem). O que a

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    ideologia urbana no dissimularia, frisa Martins, a questo es-sencial: Assim o mundo rural s se congura historicamente comointegrante do mercado nacional e apenas na medida em que capazde suportar a constituio real e ideal do mundo urbano ou de noperturb-la (Ibid., p. 5).

    Este trecho do artigo expressa a viso de Martins sobre a natureza damodernizao brasileira: Tem-se, pois, uma sociedade capitalista que for-mula solues anticapitalistas para o seu setor agrrio. por esta contradioque se pode compreender o problema agrrio e, mais profundamente,o processo de constituio da economia nacional (Ibid., p. 7). Subli-nhemos duas outras passagens que tambm realam a singularidadeda rota da economia agrria descrita pelo autor. A primeira est na re-

    ferncia teraputica criadora de esteretipos elaborados em meiourbano: as caractersticas humanas e econmicas que a ideologiaurbana desfavorece e que se manifestam, por exemplo, no esteretipodo caipira so as que tendem a impor-se como possveis nas condiesque determinam o capitalismo no Brasil (Ibid., p. 13). A segunda pas-sagem completa a ideia: , pois, o estabelecimento tradicional que seconstitui em um dos pontos de apoio da efetivao do mundo capita-lista e urbano no pas e que o mundo urbano pretende modernizar

    (Ibid., p. 14). Este outro trecho marca o carter de classe que atravessa aconexo entre a cidade e o campo: Em resumo, a viabilidade da econo-mia nacional est na dependncia direta da explorao no apenas doproletrio urbano, mas fundamentalmente da expropriao do homemrural por ele mesmo, connado no agrarismo extensivo, produzindoexcedentes, produzindo-se como caipira (Idem).

    Nessa mesma coletnea Capitalismo e tradicionalismo, o artigo Aquesto agrria no Brasil, de 1973, tambm desperta interesse. Neste

    texto, Martins associa o problema da reforma agrria a uma realidademais ampla que se descortina atravs do que poderamos denominarde questo agrria brasileira. Esta perspectiva necessria dado quea reforma agrria constitui apenas uma parte do conjunto da questoagrria (MARTINS, 1973; 1975, p. 51). A proposio esta: Inicial-mente, a questo agrria deve ser analisada atravs dos problemasagrrios (Idem).

    O autor faz uma exposio sobre as questes da sua tematizao.Martins explica os dois tipos de problemas agrrios. O primeiro oda dissociao entre relaes de trabalho e produo direta, pelosprprios trabalhadores, dos seus meios de produo, processo que seacentuou no Brasil no tempo contemporneo, a partir de 1963 com avigncia do Estatuto do Trabalhador Rural (ETR) (Idem). A extenso

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    da legislao trabalhista trazida pelo ETR, segue dizendo o autor,ocorreu juntamente com o incremento da produtividade de algunsprodutos agrrios, especialmente a cana-de-acar (em consequn-cia da excluso de Cuba do mercado aucareiro americano). Nessecaso, o pagamento de parte do salrio em espcie foi substitudo porpagamento em dinheiro, reduzindo-se o padro de vida dos traba-lhadores em termos reais. As principais manifestaes do problemaocorreram no Nordeste, especialmente atravs de movimentos polti-cos e sociais (Idem). O segundo o problema agrrio que se d nasnovas terras da fronteira econmica pelas ocupaes dos posseirosem vrias situaes e regies do pas (Ibid., p. 52).

    A tematizao continua nesta passagem: Os fundamentos princi-

    pais da questo agrria brasileira estabeleceram-se pela combinaode duas instituies sociais: a propriedade capitalista da terra e otrabalho livre. (Idem). Martins se estende relembrando que a primei-ra instituio adquire forma atravs da Lei 601, de 1850, conhecidacomo Lei de Terras. A segunda generalizou-se em 1888 com a abolioda escravatura. A Lei de Terras foi promulgada em face da futura pro-vvel emancipao do trabalhador cativo para promover a criao deum mercado livre de fora de trabalho aps a libertao dos escravos

    (Idem). Ela se antecipava possibilidade de que uma ampla faixa deterras livres ou devolutas viesse a ser ocupada pelos escravos emanci-pados, promovendo uma evaso da fora de trabalho, se o Estado norestringisse articialmente a abundncia de terras (Ibid., p. 52-53).

    O autor observa que, pelo fato de a substituio de escravos portrabalhadores livres no ter representado uma mudana estruturalna economia brasileira, e por ter ocorrido como proteo eco-nomia (colonial) de exportao, o trabalhador livre no se tornou

    completa e tipicamente um trabalhador assalariado. Parte do seutrabalho era pago em espcie atravs da permisso para cultivarterra do fazendeiro com agricultura de subsistncia (Idem). Estapassagem frisa as consequncias: Trs tipos de respostas tm surgi-do nestas circunstncias. Primeiro, os novos trabalhadores migrampara frente de expanso. Segundo, a migrao para as cidades,onde, em muitos casos, as pessoas se tornam desempregados ou su -bempregados. Terceiro, exploso de movimentos sociais (Idem). E,em seguida, o autor faz a associao: Geralmente, h uma relaodireta ou indireta entre a terceira situao e a proposio da refor -ma agrria (Idem). Aludindo ao exemplo ao agroreformismo doregime de 1964, Martins marca o carter de classe da reforma agrria marcao reiterada nos seus textos, particularmente nos primeiros:

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    Atravs de procedimentos polticos e legais, portanto, as classes do-minantes podem submeter a questo agrria ao rtulo de demandasocial por reforma agrria. Isto , o problema real reduzido visoque aquelas classes tm sobre os conitos sociais. Nesse horizonte possvel proteger o valor essencial do capitalismo: a propriedadeprivada dos meios de produo (Ibid., p. 54).

    Nas pginas nais do artigo, Martins rma sua viso negativa dareforma agrria em pontos tematizados. Primeiro, como intervenointencional na realidade social, ela constitui um processo social: Porprocesso social no entendemos o sentido intersubjetivo das relaessociais, mas sim que as relaes sociais so mediatizadas por condi-es histricas e que os processos tm duas dimenses: a da consci-

    ncia social subjetiva da situao e a do sentido e direo objetivosque assume. Ento, entre os sujeitos h uma realidade social objetivae construda, cujas signicaes podem ser compreendidas de dife-rentes modos (Idem). Aqui nesta passagem a problematizao: Oprocesso social da reforma agrria uma interferncia deliberada nastendncias da vida social com a nalidade de modic-las conformeum tipo de interpretao da realidade (Idem). Segundo, a reformaagrria no se reduz a produzir as mais importantes consequncias econ-

    micas; ela representa um tipo de reorientao das relaes entre ohomem e a natureza que implica mudanas mais ou menos profundasnas relaes sociais (Idem). Terceiro, como mudana social segundo umtipo de interpretao da realidade, a reforma agrria s possvel combase no poder poltico. Em suas palavras: A mudana signica proe-minncia de uma modalidade de construo social da realidade sobreoutras. Nesse sentido, a reforma agrria apoia-se na distribuio desi-gual do poder na sociedade (Ibid., p. 54-55). Quarta, a reforma agrria

    em si mesma no uma questo meramente tcnica. Ela essencialmenteuma tcnica social baseada no poder poltico. O autor d-lhe senti-do de classe: O reformador age tecnicamente para colocar a socieda-de agrria no caminho dos objetivos dos grupos sociais dominantes.Desde que a ao do reformador depende, em muitos casos, de apoiolegal, estamos nos referindo a grupos sociais dominantes, nacionaisou estrangeiros, que tm em mos o controle do Estado ou exerceminuncia sobre ele (Ibid., p. 55).

    Marxismo e mediaoA coletnea O cativeiro da terra (1978) traz um dos textos funda-

    mentais para a teoria agrria de Jos de Souza Martins: A produocapitalista de relaes no capitalistas de produo: o colonato nas fa-

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    zendas de caf. Tambm despertam interesse suas partes iniciais aapresentao do livro e a introduo desse ensaio. Nesses trs textos,podemos divisar duas dimenses da controvrsia que Martins ps nacena intelectual agrorreformista brasileira dos ltimos anos de 1970:uma de teor conceitual e a outra da discusso sobre o capitalismoagrrio brasileiro.

    Em relao primeira dimenso, consideremos a apresentao dolivro. Neste texto vemos que a crtica conceitual de Martins se dirigea intelectuais contemporneos, em particular latino-americanos, queso os interlocutores no incio desse texto, com vistas a interpelar,na introduo do ensaio, autores brasileiros quanto Abolio e fora de trabalho livre no mundo agrrio. Ele inquire os primeiros

    pelo uso que fazem das noes de modo de produo e de formao--econmico social ao buscarem denir uma determinada sociedadeou regio (Amrica Latina): Creem alguns que o apego classica-o conceitual, rotulao, a forma correta de produzir uma expli-cao dialtica. Frutica da a multiplicao de modos de produo e de

    formaes econmico-sociais (MARTINS, 1978; 1986a, p. 1).Martins interpela alguns autores latino-americanos por utilizarem

    a primeira noo apoiando-se nas menes que Marx faz em O Capi-

    tal, principalmente no primeiro tomo, a mltiplos modos de pro-duo como uma espcie de salva-vidas do saber (Idem). SegundoMartins, esses intelectuais do-lhe um peso formal que para Marx,vistos os trs tomos daquela obra, no tem: No que a concepo noseja essencial. O que para Marx, nesse caso, no tem grande impor-tncia a rotulao de relaes sociais. Para ele, o mais fundamental a reconstruo cientca do processo social. Um modo de produo um modo como se d esse movimento (Ibid., p. 1-2). Sigamos com

    o texto da apresentao, pois h um ponto a sublinhar: O conceitovem ao nal do pensamento e no no comeo. Se reduzimos o modode produo a um momento, a uma etapa econmica, como fazemSweezy e os adeptos do que Lukcs denia como marxismo vulgar,desguramos e introduzimos na anlise entendimento economicista,positivista e a-histrico. Por isso mesmo, dependendo do andamentoda anlise, Marx utiliza diferentes denominaes para o mesmo modode produo modo de produo capitalista, modo de produo es-pecicamente capitalista, modo de produo da grande indstria, porexemplo (Idem). O texto segue com o que Martins quer realar nadisputa conceitual: Algumas vezes usa a noo de modo de produopara se referir ao processo de trabalho; outras vezes usa-a para tratardo processo de valorizao. Isso no o faz perder de vista a concepo

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    nuclear de modo de produo que a de modo historicamente deter-minado de explicao da fora de trabalho no processo de produo,no qual so produzidas tambm as relaes sociais fundamentais deuma sociedade (Ibid., p. 2).

    Quanto ao conceito de formao econmico-social, a arguio conti-nua: Em autores cujos trabalhos se lia sistema social h quinze anosatrs, hoje se pode ler formao econmico-social, sem que o processode pensamento subjacente aos conceitos tenha sofrido transformaocorrespondente mudana conceitual. Um sinal evidente de que esta-mos diante do que Lefebvre classica como totalidade fechada, no dial-tica, a aplicao arbitrria desse conceito a determinados espaos so-ciais, como Amrica Latina (Marta Harnecker) ou o Brasil (como fazem

    alguns autores). Podemos ter, assim, tantas formaes quantas quiser-mos, tal como ocorria com o sistema social (Idem). Completamentedesgurada, petricada e reicada pelo raciocnio positiva, a noo usada, diz Martins, com signicado oposto da utilizao dessa nooem autores clssicos que a formularam e desenvolveram, como Marx eLnin, que a empregavam em relao totalidade do processo social docapital e totalidade do capitalismo, mas no em relao a uma regiodeterminada ou a um pas determinado. (Idem). E nesta passagem o

    autor retm da remisso aos clssicos: O ncleo da formao no oespao geogrco no qual se realiza, mas o seu desenvolvimento desi-gual, no o desenvolvimento econmico desigual das anlises dualistasproduzidas na perspectiva economicista e sim o desenvolvimento de-sigual das diferentes expresses sociais das contradies fundamentaisda sociedade (Ibid., p. 2-3).

    O seguinte trecho traz o que seria o roteiro marxiano do autor:Preferi, por essas razes, conduzir a minha pesquisa emprica e a

    O conceito de formao econmico-social constitui o marxismo revolucionrioposterior morte de Engels, do qual so seus tericos Lnin e Gramsci, que o mobi-lizam justamente nas suas reexes sobre o capitalismo e a revoluo nos prpriospases. O primeiro d-lhe realce ao teorizar em Duas tticas da social-democracia russa,a revoluo burguesa de novo tipo na Rssia (LNIN, 1905; 1975), enquanto Gramscitraduz o conceito em bloco histrico (PORTANTIERO, 1978) e funda, na interpretao doRisorgimento italiano, sua teoria da revoluo passiva. O PCB se orienta pelo marxismoleniniano (so exemplos Nelson Werneck Sodr e Alberto Passos Guimares que se

    referem ao conceito de via prussiana, usado por Lnin naquele opsculo). Intelectuaispecebistas, como Luiz Werneck Vianna (1976; 1997), Leandro Konder (1980) e CarlosNelson Coutinho (1981) mobilizam tanto a noo de via prussiana como o conceito derevoluo passiva; e tambm a reexo gramsciana sobre a Amrica (VIANNA, 2009).

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    exposio dos seus resultados pelo caminho metodolgico ortodoxoque privilegia o concreto, o processo social. No meu modo de ver,decorre desse procedimento o que neste livro possa ser denido comouma descoberta. Num plano mais geral, reputo como importante, apartir da retomada da constatao de que o capital um processo,desenvolvida por Marx, a observao de que o prprio capital engen-dra e reproduz relaes no capitalistas de produo. Pude chegar aesse ponto especialmente atravs de uma reexo demorada sobreas anlises que Marx faz da renda territorial na sociedade capitalista.Sendo a renda da terra de origem pr-capitalista, perde, no entanto,esse carter medida que absorvida pelo processo do capital e setransforma em renda territorial capitalizada, introduzindo uma irra-

    cionalidade na reproduo do capital. A determinao histrica docapital no destri a renda nem preserva o seu carter pr-capitalista transforma-a, incorporando-a, em renda capitalizada (Ibid., p. 3).

    Sublinhemos agora dois outros textos de O cativeiro da terra querelevam a segunda dimenso da controvrsia de Martins sobre o ca-pitalismo agrrio brasileiro. O primeiro a introduo do ensaio Aproduo capitalista de relaes no capitalistas de produo, naqual Martins interpela os autores brasileiros que interpretam o pro-

    cesso da constituio da fora de trabalho livre aps 1888 apressada-mente, como diz pondo a questo: um lugar-comum, hoje em dia,em trabalhos de historiadores, socilogos (so nomeados Caio PradoJr. e Florestan Fernandes), economistas e cientistas polticos, que es-tudam as transformaes da sociedade brasileira em face da crise dotrabalho escravo, a armao de que a servido negra foi substitudapelo trabalho assalariado (MARTINS, 1978; 1986b, p. 9). Podemosfrisar nessa mesma introduo duas passagens. A primeira mencio-

    na a abstrao de determinadas situaes concretas que marcariaaquela interpretao da Abolio: De fato, medida que os prpriospesquisadores descrevem as relaes de trabalho que predominaramna substituio do escravo pelo trabalhador livre, baseadas na pro-duo direta dos meios de vida necessrios reproduo da fora detrabalho do trabalhador, j se constata que tais relaes no podemser denidas como capitalistas (nem o trabalho como assalariamento),seno atravs de muitos e questionveis artifcios. Essa questo , naverdade, uma questo de mtodo. O procedimento classicatrio quedescarta a reconstituio das relaes, tenses e determinaes que seexpressam nas formas assumidas do trabalho (Ibid., p. 11). A segun-da se refere ao cometimento correto: Melhor, portanto, reconstituira diversidade de mediaes e determinaes das relaes de produ-

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    o que conguraram o regime de trabalho que veio a ser conhecidocomo regime de colonato, sob o qual durante cerca de um sculo, ata poucos anos, foi realizada a maior parte das tarefas no interior dafazenda de caf. (Ibid., p. 12).

    O segundo texto o prprio ensaio A produo capitalista de rela-es no capitalistas de produo. Este texto emblematiza o processoda constituio do trabalho livre em que a terra se torna um novo ca-tiveiro, como o autor chama a circunstncia aps 1888, processo emque um ente moderno, o capital, apropria-se da terra como reserva devalor, como renda capitalizada, no desempenhando funo produtivaprpria no sistema capitalista de produo. Este tipo de capital pontocom que o autor quer se diferenciar naquela discusso sobre a Aboli-

    o alimenta-se de uma relao atrasada atravs da renda da terrae reproduz a condio camponesa, como na situao do burgus dasfazendas do caf de So Paulo, no exemplo do regime do colonato.Essas proposies lembram uma outra do texto de 1968, citada ante-riormente: Tem-se, pois, uma sociedade capitalista que formula solues an-ticapitalistas para o seu setor agrrio (MARTINS, 1968; 1975, p. 7). Nelas jencontramos temas que ocupam outros textos (como o poder do atraso,sua reproduo no sistema poltico, o capitalismo rentista).

    J no texto do ensaio, temos a seguinte passagem indicativa doregistro com que Martins se prope estudar o capitalismo agrrio:Estou, portanto, trabalhando com a premissa de que a mercadoriad um carter mundial ao capitalismo. Ao mesmo tempo, o meuintuito o de ir alm de procedimentos mecanicistas que transplan-tam do plano terico para o plano emprico da realidade histricaas etapas da transformao social. Marx assinalou, em mais de umaocasio, a questo do ritmo das transformaes histricas com o

    advento do capitalismo, indicando que as relaes capitalistas deproduo, uma vez instauradas, se disseminam pouco a pouco, deforma at imperceptvel, como se nenhuma transformao estivesseocorrendo. O problema do ritmo e das formas de disseminao docapitalismo a referncia mais fundamental deste trabalho (MAR-TINS, 1978; 1986c, p. 21-22).

    Reramo-nos, neste momento, a dois artigos que nos espelham, deum lado, a dimenso conceitual, acentuada principalmente nos pri-meiros textos, e, de outro, a dimenso da reexo agrria com voca-

    Todo publicista clssico tm referncias para suas dissertaes: Freyre, a famliapatriarcal (1933), Caio Prado, a Colnia e a grande unidade econmica (1942), FlorestanFernandes, a Independncia (1975) e Martins, a Abolio e a fora de trabalho agrria.

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    o interveniente na realidade. So os artigos A sujeio da renda daterra ao capital e o novo sentido da luta pela terra, de 1979, includoem Os camponeses e a poltica no Brasil(1981) e Terra de negcio e terrade trabalho: contribuio para o estudo da questo agrria no Brasil,publicado originariamente tambm em 1979 e reunido na coletneaExpropriao e violncia (MARTINS, 1979; 19991a).

    Em A sujeio da renda da terra ao capital e o novo sentido daluta pela terra, atravs de seguidas citaes de Marx, em sua grandemaioria de O capital, Martins traz a polmica sobre a expanso docapitalismo no campo brasileiro em linguagem marxiana. como se oautor retomasse a dissertao paradigmtica sobre o cativeiro da terracom uma espcie de narrativa referenciada conceitualmente. Todavia,

    no nal do texto lemos esta passagem: A expanso do capitalismono campo se d primeiro e fundamentalmente pela sujeio da rendaterritorial ao capital. Comprando a terra, para explorar ou vender,ou subordinando a produo de tipo campons, o capital mostra-sefundamentalmente interessado na sujeio da renda da terra, que acondio para que ele possa sujeitar tambm o trabalho que se d naterra. Por isso, a concentrao ou a diviso da propriedade est funda-mentalmente determinada pela renda e renda subjugada pelo capital

    (MARTINS, 1979; 1983a, p. 177). Lembremos que a crtica do autor reforma agrria distributivista, rmada no texto de 1968, tem, mais de10 anos depois, formulao contextualizada e sua conotao negativamais radicalizada: Uma reforma agrria distributivista constituiria,neste momento, uma proposta inexequvel historicamente, como spode ser qualquer proposta que advogue a reforma das contradiesdo capital sem atingir o capital e a contradio que expressa: a produ-o social e a apropriao privada da riqueza. O questionamento da

    propriedade fundiria, levada a efeito na prtica de milhes de lavra-dores neste momento, leva-os, mesmo que no queiram, a encontrarpela frente o novo baro da terra, o grande capitalista; j no h comofazer para que a luta pela terra no seja uma luta contra o capital,contra a expropriao e a explorao que est na sua essncia (Idem).

    O segundo texto, Terra de negcio e terra de trabalho, espelha apublicstica do autor na sua circunstncia. Assinalemos trechos querealam a colocao da questo da propriedade capitalista da terracomo uma questo da conjuntura, o que estaria relevando no s acondio de Martins como publicista tensionado por aquele momen-to de grande movimentao dos atores e protagonistas e de armaodo Estado democrtico de direito no pas, como tambm sua buscade solues positivas para as lutas pela terra. Esta passagem sobre

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    a contradio entre a terra de trabalho e a terra de negcio in-dicaria esse movimento: H no pas, sim, uma clara oposio entrediferentes regimes de propriedade: de um lado, o regime que levao conito aos lavradores e trabalhadores, que o regime de proprie-dade capitalista; de outro, os regimes de propriedade que tm sidoatacados pelo capital, que o da propriedade familiar, como o dospequenos lavradores do Sul e de outras regies; o da propriedadecomunitria dos povos indgenas; e o da posse, difundido em todoo pas, sobretudo na Amaznia Legal (MARTINS, 1979; 1991a, p. 53-54). Na referncia desse texto, a propriedade capitalista da terra sedefronta com um tipo social, a agricultura familiar, de virtualidadesconstrutivas, por portar vantagens no plano econmico-produtivo(MARTINS, 1968; 1975) e por ser terra de bem comum e trazer da suatradio familstica uma lgica antimercantil, diversamente da terrade negcio que sujeita os pequenos produtores e opera de modo re-cessivo (MARTINS, 1979; 1991a).

    Esse ensaio pode ser considerado como um texto no qual o autorestaria propondo a questo da agricultura familiar como uma questoprogramtica da luta pela terra, naquele momento. Sublinhemos duaspassagens. Uma sugere a admisso de uma possibilidade reformista

    para a luta pela terra, em certo sentido: Estamos diante, pois, danecessidade de efetivar uma drstica alterao no regime de proprie-dade fundiria de modo que se reconheam como legtimos os regimesde propriedade alternativosque tm se defrontado com a expanso dapropriedade capitalista (Ibid., p. 58). E outra menciona a reformaagrria: Uma reforma agrria que no incorpore os projetos e formu-laes j revelados nas prprias lutas dos lavradores, que no combi-ne as diferentes concepes e prticas alternativas de propriedade, e

    que ao mesmo tempo no abra possibilidade de crescimento dessesregimes alternativos sem a tutela do capital, poderia se transformarnum mero exerccio de co (Ibid., p. 59-60).

    Um parntese a respeito da estratgia de priorizao da luta pelaterra em Martins. Em sua teoria agrria, o autor lhe concede signica-do distinto que levaria a mobilizao pela reforma agrria para alm

    A suposio lembra o PCB. O seu discurso revolucionrio-socialista no conseguiulevar o sindicalismo campons de Caio Prado e de Alberto Passos Guimaraes para rota

    diversa da sua prtica de integrao social em associativismo sindical permanente pordenio. Esta estratgia obteve sucesso, progressivamente, desde 1951, quando os pe-cebistas comearam a abandonar a ttica do paralelismo sindical, at 1964, e bem entra-do o tempo do regime de 1964, terminando na construo de uma rede sindical no pas.

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    do agrorreformismo brasileiro que se armara desde pelo menos ocomeo dos anos 1950, sobremaneira durante o governo de Jango, eque continua no ocaso do regime de 1964. Convm observar que astematizaes da reforma agrria que conhecemos no decnio 1954-64,guardadas suas vrias nuances, referiam-se ativao da vida pol-tica nacional e a medidas parciais e progressivas de reforma agrria,ao fortalecimento do mercado interno e ao regime democrtico, porexemplo, em Furtado (1962; 1964).

    Por sua vez, o texto Os camponeses e a poltica no Brasil contmformulaes voltadas para a questo operacional da publicstica deMartins a questo dos atores sociais e protagonistas mediadores. Oautor esperava que eles se ativassem em um mundo agrrio determi-

    nado por mltiplas contradies e tenses do novo cativeiro modernoregido pelo capital que, ento, espalhava conitos pela terra por todoo pas. Os mediadores viriam potencializar a luta pela terra e intervirna resoluo do desencontro entre a luta pela terrae a luta pela refor-ma agrria, como escreve Martins em 1989 com olhar retrospectivo naapresentao da terceira edio da coletnea Expropriao e violncia(MARTINS, 1989; 1991b).

    A questo da ao intervencionista j est posta em Modernizao

    e problema agrrio no Estado de So Paulo (1967) e em Moderniza-o agrria e industrializao no Brasil (1968), textos crticos do tipode mediao no meio rural vinda de fora. O primeiro reala a gurado agente de modernizao (agrnomos, agentes do crdito rural,extensionistas, economistas e socilogos rurais); e o segundo recusaos extensionismos externos de pretenses modernizadoras. Agora, napassagem da dcada de 1970 aos primeiros anos de 1980, a interpela-

    Em Caio Prado a luta pela terra referida ao conjunto da vida nacional, vale dizer,como problema cuja resoluo dependia da poltica, medida que estruturasse umgrande movimento social volta dos sindicatos rurais, criando-se um contexto noqual a questo da terra se pusesse na ordem do dia com possibilidades de resoluo(PRADO JR., 2007).

    Furtado uma exceo ao defender as reformas estruturais daquela poca noEstado democrtico. A propsito da derrota do movimento pelas transformaes dopas em 1964, Jos Antnio Segao observa em recente artigo: Um dos fatores bsicospara o desenlace a favor da primeira alternativa (o autor se refere soluo reacionriaque vence com o golpe) impe-se que se diga que nenhum dos agentes respon-sveis por elas tinha compromisso com a democracia, a no ser retricos e/ou comoprosso de f. A soluo golpista e autoritria estava posta pelos dois lados que sepolarizavam. (SEGATTO, 2014, p. 57).

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    o de Martins dirige-se aos partidos e grupos de esquerda j entoem fase de esvaziamento social (o PCB) e em crescente declnio (o PCBe setores da esquerda residuais que vinham do tempo da ditadura); eaos partidos de oposio.

    Essa arguio est no centro do ensaio Os camponeses e a poltica noBrasil. o texto mais lido de Jos de Souza Martins, no qual podemosver a formalizao do seu agrarismo. Frisemos referncias que relevamnfases que se sucedem no texto. Martins dedica quatro dos seis tpicosdo ensaio trajetria do campesinato brasileiro progressivamente in-submisso, em uma narrativa que vai dos ndios primeiros posseirosda Colnia, passa pelas contestaes da ordem oligrquica (Canudos,Contestado e outras) at chegar s ligas camponesas, no tempo con-

    temporneo. O autor expe um longo processo em registro histrico,mas no apenas histrico, pois a evoluo do campesinato brasileirotambm transcorre nas pginas do texto em registro sociolgico.

    H passagens relativas s ligas camponesas que remetem ideia deum moderno e forte ator campons, em algumas das quais divisamosproposies de O cativeiro da terraem termos formulativos. Em umadelas lemos: A apropriao da terra pelos grandes fazendeiros, quefora um subproduto da escravido, passa a ser condio da sujeio do

    trabalho livre, instrumento para arrancar do campons mais trabalho.As caractersticas da violncia pessoal e direta, que confrontava os cam-poneses entre si e entre eles e os fazendeiros, comea a se transformarnuma resistncia de classe (Martins, 1981, p. 62-63). Sublinhemos,mais adiante, este trecho: A revoluo camponesa no chegou a de-nir-se como um projeto naqueles primeiros tensos anos da dcada de1960. A rigor, no chegou a surgir nenhuma organizao de amplitudenacional que o formulasse com contornos precisos. O mximo a que

    se chega a proposta de reforma agrria radical, que, se concretizada,implicaria uma profunda transformao no regime de propriedade daterra (Ibid., p. 92).

    A ao do PCB entre os agrrios parte do reconhecimento da sua debilidade,disperso e baixa organizao. Os comunistas tinham por objetivo criar sindicatospara alcanar os camponeses (PCB, 1960). Maria Isaura Pereira de Queiroz representauma viso alternativa aos paradigmas da reforma e da revoluo muito inuentes nasesquerdas e nos meios intelectuais reformistas dos anos nacional-desenvolvimentista.Para este tema, ver Vasconcellos (2014).

    Martins se refere aprovao daquela tese da reforma agraria radical defendidapor Julio no Congresso Nacional Campons articulado pelos comunistas e realizadoem 1961, em Belo Horizonte. (CARVALHO COSTA, 2010).

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    Nos ltimos tpicos do ensaio, Os camponeses no projeto dosoutros e As lutas camponesas e a indenio dos partidos, o autorse refere s esquerdas, nomeadamente o PCB, partido que em 1981,ano da publicao da coletnea, ainda se fazia presente no associati-vismo sindical, alis, disputado pela Igreja. No primeiro tpico, oscomunistas ocupam grande parte da referncia de Martins aos me-diadores, que vai do comeo dos anos 1950 ao governo Jango, ao ladoda Igreja e do trabalhismo. Esta a concluso do autor: Esse quadrosumrio nos indica que os diferentes grupos que procuraram resga-tar a voz do campons e dar-lhe dimenso poltica, mobilizando-o erecrutando-o, seja nas lutas imediatas, nos movimentos sociais locali-zados, seja nas associaes e sindicatos, para fazer da sua queixa uma

    queixa poltica e permanente, empenharam-se, de diferentes modos ecom diferentes intensidades, em evitar uma revoluo camponesa noBrasil. A preocupao com a ampliao do mercado interno que prati-camente marcou todos os grupos, como estratgia de um desenvolvi-mento capitalista autnomo, anti-imperialista, era uma preocupaomuito distante da luta pela terra, da luta dos camponeses contra arenda fundiria (Idem).

    No outro tpico As lutas camponesas e a indenio dos partidos,

    Martins se refere aos protagonistas existentes naquela conjuntura: Asituao do campesinato torna-se particularmente difcil neste mo-mento, porque as suas lutas avanaram muito adiante dos partidos,clandestinos ou legais, premido pela rapidez e pela voracidade doavano do capital sobre a terra (Ibid., p. 102). Esta a interpelao:Predomina hoje nos partidos de oposio, recentemente autorizadosa funcionar, uma concepo proletria da situao social e poltica,estando neles ausente a possibilidade e a necessidade de uma pre-

    sena camponesa para o que tais partidos teriam que se reformularamplamente, admitindo como necessria a convivncia democrtica,dentro dos partidos, de duas classes sociais bsicas produzidas pelascontradies do capital e com ele antagonizadas, a dos operrios e ados camponeses, a dos que sofrem a explorao do capital e a dos queesto submetidos ao processo de expropriao pelo capital; cada qualcom seu tempo histrico, a sua luta e a sua viso de mundo (Idem).

    Consideraes nais

    Acrescentemos dois comentrios. O primeiro diz respeito ao fatode Martins centralizar suas referncias em Marx de O capital, no con-siderando o marxismo revolucionrio de Lnin e de Gramsci, includaa argumentao habermasiana de vocao poltica, j ento divulga-

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    da no pas (HABERMAS, 1976; 1983); marxismo e neo-marxismo estesrecorrentes em publicsticas dos campos de esquerda e de vertentesreformistas. O alheamento merece estudo na ensastica agrria doautor e no seu agrarismo.

    O outro se refere crtica de Martins s esquerdas e aos partidosde oposio daqueles anos. Ele adverte as diculdades desses me-diadores para acompanhar e incorporar as tenses sociais e as rei-vindicaes camponesas, sendo uma das razes da fragmentao edisperso das lutas populares no campo. Ao mesmo tempo sublinhaa necessidade de estas contarem com organizao e estrutura parti-dria para encontrar sua unidade na diversidade, a sua fora polticae o seu lugar tanto no processo poltico quanto na aliana com as clas-

    ses sociais que se defrontam com as classes dominantes e o Estado(Ibid., p. 9). Dessa observao surge o interesse em acompanhar atrajetria seguinte da publicstica do autor e da sua aposta de entono mediador forma-partido. Estudar esse clssico em textos posterio-res, particularmente, e no por acaso, os dos ltimos anos de 1980 eprincpio da dcada de 1990, pode nos pr diante de um agrarismo deinovao social por demais educativo.

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    SANTOS, Raimundo. O agrarismo de Jos de Souza Martins. Es-tudos Sociedade e Agricultura, abril de 2015, vol. 23, n. 1, p. 214-231,ISSN 1413-0580.

    Resumo: (O agrarismo de Jos de Souza Martins). As reexes de Josde Souza Martins sobre as questes do rural e do agrrio se voltam,desde seus primeiros textos, para o tema dos mediadores operantes nomundo rural brasileiro. Ele prprio tornou-se um militante prtico dacausa da reforma agrria. Este artigo apresenta leituras de textos dascoletneas que o autor publicou entre 1975 e 1981: Capitalismo e tradicio-nalismo: estudos sobre as contradies da sociedade agrria no Brasil(1975),

    O cativeiro da terra (1978), Expropriao e violncia: a questo poltica nocampo(1980) e Os camponeses e a poltica no Brasil: as lutas sociais no campoe seu lugar no processo histrico(1981). O texto procura chamar a atenopara trs elaboraes do socilogo da USP que convergem para o seuagrarismo muito inuente no Brasil dos nossos tempos: a interpretaodo Brasil, a teoria do Brasil agrrio e a formulao de uma estratgiapara os movimentos sociais agrrios centrada na luta pela terra.Palavras-chave:pensamento social, reforma agrria, movimentos so-ciais, campesinato.Abstract:(The agrarianism of Jos de Souza Martins). The reections ofJos de Souza Martins on the rural and agrarian questions since hisrst texts turn on the theme of mediators active in the rural world.The author himself became a militant for agrarian reform. This articlepresents thoughts on texts from the authors collected works publi-shed between 1975 and 1980: Capitalismo e tradicionalismo: estudos sobreas contradies da sociedade agrria no Brasil (1975), O cativeiro da terra(1978) e Expropriao e violncia: a questo poltica no campo (1980) andOs camponeses e a poltica no Brasil: as lutas sociais no campo e seu lugarno processo histrico(1981). The article seeks to call aention to threeof the USP sociologists elaborations, which make his agrarianisma continued inuence in Brazil today: the interpretation of Brazil, aBrazilian agrarian theory and the formulation of a strategy for agra-rian social movements centered upon the struggle over land.Key words: social thought, agrarian reform, social movements,peasantry.

    Recebido em agosto de 2014.Aceito em janeiro de 2015.