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6º ENCONTRO NACIONAL DA ABRI PERSPECTIVAS SOBRE O PODER EM UM MUNDO EM REDEFINIÇÃO Belo Horizonte - MG, 25 a 28 de julho de 2017 Área Temática: Análise de Política Externa O BARÃO E A REPÚBLICA: ANÁLISE DE DISCURSO DA POLÍTICA EXTERNA BRASILEIRA DE 1902 A 1912 Mariana Guimarães Alves da Silveira - Universidade Federal Fluminense

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6º ENCONTRO NACIONAL DA ABRI

PERSPECTIVAS SOBRE O PODER EM UM MUNDO EM REDEFINIÇÃO

Belo Horizonte - MG, 25 a 28 de julho de 2017

Área Temática: Análise de Política Externa

O BARÃO E A REPÚBLICA: ANÁLISE DE DISCURSO DA POLÍTICA EXTERNA

BRASILEIRA DE 1902 A 1912

Mariana Guimarães Alves da Silveira - Universidade Federal Fluminense

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Resumo:

Há um distanciamento histórico entre América Latina e Brasil que persiste até hoje e faz

com que muitos brasileiros se pensem fora da ideia de América Latina, apesar da

proximidade física. Atribui-se tal distanciamento ao discurso oficial veiculado pela monarquia

através do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro do que era ser brasileiro que, dentre

outras coisas, passava pelo contraste com o "outro" latino-americano. Focando

principalmente na diferença de organização estatal entre o Brasil e o restante da América

Latina, foi se consolidando a ideia de que os latino-americanos viviam no caos e

fragmentados por conta de sua escolha republicana, enquanto o Império brasileiro

desfrutava de ordem e união, sendo, pois, superior a seus vizinhos. Porém, em 1889, com a

proclamação da República, essa diferença organizacional acaba, o que torna o discurso

brasileiro com relação à América Latina incoerente. Este trabalho pretende explorar como foi

solucionada essa incoerência para que se entenda como a imagem da república conseguiu

se desvencilhar de um tom negativo, ao passo que a imagem do latino-americano como o

"outro" permaneceu. Para tal, será feita uma análise do discurso de política externa do

Barão do Rio Branco entre 1902 a 1912.

Palavras-chave: Barão do Rio Branco; Self/Outro; análise de discurso

Introdução

A ideia mais básica da dicotomia Self/Outro é a da construção mútua entre eles:

conforme há a construção da identidade do Self, há, ao mesmo tempo, a construção do

Outro. Portanto, a percepção que uma pessoa tem de si própria, auxilia a identificação

daquele que lhe é diferente, o que faz com que o Outro seja medido a partir do Self. Essa

construção é comumente feita contrastando os dois de forma que um elemento é valorizado

em detrimento do segundo.

Neste trabalho, a construção do Self e do Outro será estudada através da análise de

discurso pós-estruturalista, buscando analisar a solução da incoerência no discurso

brasileiro com a passagem da monarquia para a república em 1889. Abre-se uma

incoerência por ter se estabelecido, durante o Império, uma vinculação entre a imagem do

latino-americano e da república. Dessa vinculação se concretizou que os latino-americanos

viviam no caos e fragmentados por conta de sua escolha republicana, enquanto o Império

brasileiro desfrutava de ordem e união, sendo superior a seus vizinhos. Após a instauração

da república no Brasil, faz-se necessário a mudança no discurso.

Através do discurso de política externa do Barão do Rio Branco será explorado

porque uma associação positiva, depois de 1889, entre república e latino-americano não é

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uma opção debatida, além de como se deu a desvinculação da imagem da república da

noção negativa, e, simultaneamente, a permanência do Outro latino-americano na mesma.

O trabalho sustenta a hipótese de que o discurso pan-americano e a aproximação com os

Estados Unidos foram essenciais para a vinculação positiva da república dentro do discurso

de política externa.

O artigo primeiro discorre sobre a teoria e metodologia utilizadas, seguindo para a

narrativa na época da monarquia. Após esse panorama, o trabalho aborda o debate acerca

do pan-americanismo entre os intelectuais brasileiros, para então analisar os discursos do

Barão do Rio Branco.

Análise de discurso pós-estruturalista

Nas Ciências Humanas, o estudo das relações entre o Self e o Outro se deu mais

frequentemente em campos como o da Antropologia, Sociologia e Psicologia. Em Relações

Internacionais, o interesse pelo par Self/Outro se manifestou com mais força a partir do final

da década de 1980 e início da década de 1990 (NEUMANN, 1996), usando formação de

identidade como meio alternativo de se entender o sistema internacional de Estados.

Neumann defende o estudo da imagem dentro das Relações Internacionais por trazer para a

análise “um melhor entendimento de quem são os atores, como eles são constituídos, como

eles se mantêm, e em que pré-condições eles podem prosperar.”1 (1996, p. 168).

Tais imagens, Neumann frisa, são coletivas e multifacetadas, devendo ser estudadas

como tais. Os textos de Lebow (2008), Shapiro (1992) e Buitrago (2012) partilham dessa

visão. Buitrago, afirma que o Outro vai sendo construído, através de meios que se

entrelaçam, como imagens, discursos e recursos estilísticos. Por ser um processo de

construção social, as imagens formadas podem ser alteradas dependendo do contexto em

que estão inseridas.

“Além de usar discurso para conectar narrativas ou elementos específicos de narrativa, recursos estilísticos são aplicados para comparar, para assemelhar ou diferenciar, para convencer, para empoderar ou desvalorizar – em suma, para construir relações entre o self e o outro de vários jeitos. Nisso, imagens também tem um papel significativo.” (BUITRAGO, 2012, p. xiv)

Lebow defende uma imagem do Outro que é passível de alteração a qualquer

momento, e critica visões rígidas e míopes que só consideram uma construção mais radical.

Isto limita a análise, pois apaga as possibilidades de diferentes níveis de alteridade e

também ignora as mudanças que podem ocorrer com alterações do contexto histórico,

1 Tradução da autora. Todas as traduções foram feitas pela autora e não serão explicitadas nas notas que se

seguem.

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fazendo as fronteiras entre “nós” e “eles” fixas depois de estabelecidas (LEBOW, 2008, p.

487). Seguindo a mesma linha de raciocínio, Shapiro afirma:

“Colocando em termos espaciais, o que é entendido sobre o self num dado momento é questão do local, onde ‘local’ envolve tanto uma temporalidade quanto uma espacialidade. Um dado momento histórico tem forças produzindo interpretações e superando aquelas que lhes são rivais.” (1992, p. 3)

Há diferentes formas de analisar as imagens do Self e Outro. Aqui a abordagem

escolhida será a análise de discurso pós-estruturalista. Pós-estruturalismo, como explica

Gregory (1989), tem origem filosófica e desafia afirmações que são tomadas como verdades

universais feitas por intelectuais racionalistas e positivistas. Esse desafio deriva da visão de

que essas afirmações são feitas dentro de um contexto histórico, ou seja, elas são

construções sociais reproduzidas por um determinado discurso, não conceitos encontrados

prontos na natureza.

O meio encontrado para evidenciar que esses conceitos são construções sociais foi

a análise do discurso. Portanto o pós-estruturalismo busca desconstruir ou desnaturalizar

linguagem, conceitos e textos que constituem os discursos a fim de propor alternativas de

análise para o campo das Relações Internacionais (DER DERIAN, 1989). Para tal, a análise

pós-estruturalista foca no discurso, o que significa dizer, segundo Shapiro (1989), que a

preocupação reside no significado do que está sendo transmitido. Através do discurso,

significados são construídos socialmente, moldando representações, “conjunto de

afirmações e práticas através das quais uma dada linguagem se torna institucionalizada e

‘normalizada’ com o tempo” (NEUMANN, 2008, p. 61).

Pós-estruturalismo analisa, portanto, a política externa como uma prática discursiva

considerando, como Hansen afirma, que “política externa articula e entrelaça fatores

materiais e ideias ao ponto de não ser possível separar um do outro.” (2006, p. 1). Pós-

estruturalismo entende a relação entre política externa e identidade como uma de

interdependência visto que “políticas externas se apoiam em representações de identidade,

mas é também através da formulação da política externa que identidades são produzidas e

reproduzidas.” (HANSEN, 2006, p.1). Essa característica é vista pela autora como um

diferencial do pós-estruturalismo e, além disso, faz ilógica a análise da identidade e da

política externa em separado. Ou ainda o estabelecimento de uma relação causal entre elas.

Isso deriva da opção por uma ontologia e epistemologia discursiva. A escolha pela

ontologia discursiva implica, como discutido acima, que “é somente através da construção

na linguagem que ‘coisas’ – objetos, sujeitos, Estados, seres vivos, e estruturas materiais –

ganham significado e são dotadas de uma identidade em particular.” (HANSEN, 2006, p.

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16). Também significa que linguagem é, ao mesmo tempo, social e política para o pós-

estruturalismo. Social pela linguagem ser formada por códigos coletivos e convenções que

dão significados às coisas e ser utilizada por indivíduos para comunicação. Ninguém se

comunica sozinho. A característica política deriva do fato de a linguagem ser vista “como um

local para produção e reprodução de subjetividades e identidades particulares, enquanto

outras são simultaneamente excluídas.” (HANSEN, 2006, p. 16).

A epistemologia discursiva, por sua vez, leva o foco da pesquisa para a construção

relacional da identidade. Isto significa que, quando se constrói a identidade dentro do

discurso, se estabelece a identidade em oposição ao que ela não é. A construção relacional

cria um Self e, consequentemente, uma série de Outros (HANSEN, 2006, p. 6). Essa

construção ocorre através de processos de vinculação e diferenciação. São vinculados

adjetivos a uma dada identidade e, posteriormente, ela é contrastada com uma segunda

identidade, ressaltando a diferença entre as duas num contexto maior fornecido pelo

discurso.

Um exemplo desses processos pertinente ao trabalho é a construção da monarquia

em oposição à imagem da república durante o Império (1822-1889). À imagem da

monarquia foram vinculadas ideias como ordem, união, progresso, civilização, enquanto a

república era associada ao caos, à fragmentação, subdesenvolvimento, à barbárie, e aos

países hispano-americanos (PRADO, 2001). Quando contrastadas, as imagens levam a

uma interpretação da monarquia como uma forma de governo superior e mais bem-sucedida

do que a república.

A construção através do processo de vinculação e diferenciação fornece outra

característica à linguagem e identidade. Ambas, de acordo com Hansen, tem uma natureza

ambígua: seriam, ao mesmo tempo, altamente estruturadas e instáveis. Isso ocorre por

causa da construção através de processos de vinculação e diferenciação que podem se

desestabilizar caso haja alguma incoerência no discurso, gerando a necessidade de ação

política para constantemente produzir e reproduzir discursos políticos. Dessa ligação entre

linguagem e identidade também resulta no ajuste mútuo. Consequentemente, os discursos

nunca serão estáveis por completo ou estáticos (HANSEN, 2006).

Tendo isso em mente, o discurso que construía a república como uma forma de

governo caótica e fragmentada, típica de um país latino-americano, encontra-se incoerente

após 1889, impossibilitando a manutenção do discurso negativo construído para essa forma

de governo. O objetivo deste trabalho, através da análise de discurso pós-estruturalista, é

verificar como essa incoerência foi sanada de forma que a república se desvencilhasse da

imagem negativa, ao passo que o latino-americano não.

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Para isso, serão analisados os discursos oficiais proferidos pelo Barão do Rio

Branco, formulador da política externa, entre 1902 a 1912, anos em que foi ministro. A

escolha por analisar o discurso transmitido pelo Barão se justifica por ter sido ele a pessoa

que estabeleceu as diretrizes da política externa da República Velha. Para tal, Paranhos Jr.

teve autonomia e tempo hábil para consolidar traços da política externa brasileira que se

encontram até hoje. Não à toa Cervo e Bueno afirmam que “a condução da política exterior

brasileira deve ser atribuída quase que unicamente à ação do barão do Rio Branco” (2012,

p. 192).

Isso leva Zairo Cheibub (1985) a classificar o período em que Rio Branco esteve à

frente do Itamaraty de um momento carismático. Cheibub define o tempo do Barão dessa

forma por conta da sua atuação personalista no Ministério das Relações Exteriores, que

fundou o Itamaraty moderno. O estilo personalista e o grande prestígio que o Barão foi

acumulando ao longo dos anos levaram a um “fortalecimento do Gabinete do Ministro, que

se tornou o principal órgão da estrutura do MRE” (CHEIBUB, 1985, p. 122).

Apesar de o Barão utilizar a imprensa para propagar suas políticas e para defendê-

las (BUENO, 2003), análise aqui se limita aos discursos oficiais, que se encontram no livro

Obras do Barão do Rio Branco IX: discursos (2012). O trabalho se apoia nos debates da

época entre os intelectuais brasileiros como Joaquim Nabuco e Oliveira Lima sobre a

posição do Brasil no mundo e caminhos para a política externa, abordados por autores

como Kátia Baggio (1998) e Tereza Dulci (2006). Esses estudos fornecerão o contexto

discursivo para se analisar os citados processos de vinculação e diferenciação.

O solitário Império brasileiro

Durante a primeira metade do século XIX, as colônias da América Latina foram aos

poucos se tornando independentes e adotando a república como forma de governo. Esse

padrão, no entanto, não foi seguido pelo Brasil. Com um processo de independência

diferenciado do resto da América Latina, o Brasil não passou por uma guerra contra seu

colonizador, nem rompeu com as instituições do tempo colonial. A opção brasileira foi a

monarquia e o estabelecimento do Império do Brasil.

Nos primeiros anos do Brasil como um país independente, houve um crescimento do

sentimento antilusitano por conta de disputas políticas internas. O “partido” brasileiro

acusava o imperador de fornecer privilégios para os nascidos em Portugal na forma de

postos e favores. Como reflexo desse contexto interno, a imprensa da época começou a

construir a imagem do brasileiro em oposição ao do português (SANTOS, 2010). Contudo,

essa oposição entre brasileiros e portugueses não seria o discurso escolhido pelo Estado

como oficial.

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Com a função de delinear um perfil de nação brasileira, o Instituto Histórico e

Geográfico Brasileiro (IHGB) é criado em 1838. Visto que era necessário se pensar na

identidade brasileira para que o Estado pudesse atuar interna e externamente com

coerência, começa a se pensar também o Outro do brasileiro (GUIMARÃES, 1988). O Brasil

optou pelo caminho da continuidade ao seguir com a monarquia, sendo assim:

“Num processo muito próprio ao caso brasileiro, a construção da ideia de Nação não se assenta sobre uma oposição à antiga metrópole portuguesa; muito ao contrário, a nova Nação brasileira se reconhece enquanto continuadora de uma certa tarefa civilizadora iniciada pela colonização portuguesa.” (GUIMARÃES,1988, p.6)

Ao seguir este caminho, o principal Outro externo é formulado a partir de diferenças

políticas e organizacionais. Sendo o Brasil um Império cercado de repúblicas recém-

formadas, é quase natural o antagonismo formado entre monarquia brasileira e repúblicas

latino-americanas (GUIMARÃES, 1988). É a partir desta época que o discurso oficial do

Estado brasileiro passa pelo distanciamento cultural e político da América Latina, resultando

no sentimento, que persiste até hoje, que Prado relata de que “o Brasil é e, ao mesmo

tempo, não é América Latina.” (2001, p. 128). Através do processo de vinculação e

diferenciação já mencionado aqui, era transmitida a imagem de que a monarquia brasileira

desfrutava de ordem e progresso, enquanto o resto da América Latina flertava

perigosamente com a barbárie por conta de sua escolha republicana.

Essa construção antagônica com seus vizinhos levou a uma politica externa, durante

o Império, de distância e desconfiança para com a América Latina. Uma forma clara de ver

esse distanciamento é através das inciativas interamericanas e da resistência do Império às

mesmas. Segundo Santos (2004), a política externa imperial só seria consolidada por volta

de 1850, e mesmo assim a posição do Estado com relação a tais iniciativas foi constante.

Isso se dava justamente por conta da forma pela qual a identidade brasileira foi estabelecida

na época. Ao se posicionar como o último baluarte da civilização europeia na América

Latina, o Império não poderia apoiar e participar das iniciativas interamericanas do século

XIX. Principalmente considerando que:

“A construção da identidade das repúblicas americanas se fazia em grande parte a partir da ideia de ruptura com o Antigo Regime e, metaforicamente, com a Europa. Essa noção de ruptura entre o Novo e o Velho Mundo, entre América e Europa impregnava as iniciativas interamericanas, tornando muito difícil ao Império associar-se a elas sem pôr em risco as bases de sua própria legitimidade.” (SANTOS, 2004, p. 24)

Apesar da estável distância das Conferências convocadas pelas repúblicas vizinhas,

a reação do Império foi diferente quando foram os Estados Unidos que decidiram convocar a

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Primeira Conferência Internacional Americana em 1889. Ainda com reservas, o Brasil

imperial aceita participar de sua primeira Conferência interamericana2 (SANTOS, 2010).

Durante o evento, no entanto, a monarquia cai e o Brasil se torna republicano.

Imediatamente a chefia da delegação brasileira muda e ela recebe instruções para dar um

“espírito americano” às antigas diretrizes (CERVO; BUENO, 2012, p. 177).

Repensando a república: pan-americanismo em pauta

Apesar de o governo provisório do marechal Deodoro da Fonseca se diferenciar do

Império na política externa ao adotar imediatamente um rumo mais republicano privilegiando

o contexto americano (CERVO; BUENO, 2012, p. 175), as diretrizes da política externa da

República seriam consolidadas por um barão.

O Barão do Rio Branco assume o Ministério das Relações Exteriores, em 1902, com

sua popularidade já em alta devido ao sucesso nas arbitragens lindeiras referentes às

questões de Palmas e do Amapá, onde mostrou grande capacidade de atuação (SANTOS,

2012). Mesmo com essa boa recepção, não se poderia prever o sucesso que o Barão teria

ao comandar o Ministério e o legado que deixaria, a ponto de ser eternizado como o patrono

da diplomacia brasileira.

O Barão, como muitos de sua época, via uma posição de destaque para o Brasil na

América Latina e enxergava seu país como a exceção (BUENO, 2012, p. 171), e essa

crença está presente em seus discursos. Os motivos da excepcionalidade brasileira eram a

sua dimensão territorial, condição econômica e situação demográfica. Porém ainda teria que

superar problemas em meio a um contexto regional, segundo Doratioto (2000), não muito

favorável. Havia tensões com a Bolívia por conta do Acre, com a Venezuela por não

progredir no trabalho de demarcação da fronteira comum, e com o Chile, cujas relações se

encontravam mornas. Apesar de temer que, ao tonar-se República, o Brasil perdesse sua

excepcionalidade e se tornasse mais um na horda latino-americana, o Barão aceita o cargo

de ministro das Relações Exteriores e retorna ao país depois de 26 anos.

Em fins do século XIX, o Brasil já reorientava sua política externa da Europa para os

Estados Unidos, porém essa reorientação é mais comumente associada ao Barão por conta

da intensificação feita por ele ao, por exemplo, elevar a legação do Brasil em Washington à

categoria de embaixada em 1905 (HENRICH, 2010). As tomadas de decisões de Rio Branco

se inserem em um debate que ocorria na época sobre a posição do Brasil nas Américas.

Com a transição da monarquia para a república, os intelectuais brasileiros se

ocuparam com questões que vinham dessa transição e, para tal, foram buscar referenciais

2 Antes de 1889, houve congressos no Panamá (1826), Lima (1847-148), Santiago (1856), Washington (1856) e

Lima (1864-1865). Com participação brasileira, durante o século XIX, seria apenas o de 1889, de acordo com Santos (2004).

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“seja para defender o regime monárquico deposto, seja para pensar projetos para a

consolidação da república, ou ainda para criticar o regime recém-instalado.” (BAGGIO,

1998, p. 44). Esses referenciais foram encontrados nas experiências da América Latina ou

dos Estados Unidos, e foram utilizados para sustentar seus argumentos.

Na passagem do século XIX para o XX, os Estados Unidos começaram, pouco a

pouco, a aumentar sua influência na região. Com a Primeira Conferência Internacional

Americana de 1889, os Estados Unidos lançam o pan-americanismo que ficou denominado

como “o conjunto de políticas de incentivo à integração dos países americanos, sob a

hegemonia dos Estados Unidos” (BAGGIO, 1998, p.45). Com essa iniciativa regional, o

tema da adesão ou não ao pan-americanismo foi um tema bem debatido entre intelectuais

brasileiros.

Em relação ao pan-americanismo, Eduardo Prado é um de seus mais conhecidos

críticos. Prado se tornou um grande defensor da monarquia e afirmava que a república traria

o caudilhismo que o Império havia mantido para além das fronteiras. Ele considerava

impossível a existência de uma fraternidade americana e de uma integração entre os países

(BAGGIO, 1998). Ainda ressaltava que Brasil e Estados Unidos seriam diferentes demais e

era contrário à adoção de instituições estadunidenses, tanto para a realidade brasileira

quanto para o resto da América Latina. Isto era devido ao seu entendimento de que a

república era nociva, portanto não haveria porque replicar as instituições estadunidenses, ou

latino-americanas, nem ao menos motivos para aproximações (HENRICH, 2010, p. 91).

Com relação à Doutrina Monroe, criada em 1823, Prado a via como uma “estratégia política

para intensificar o poder e a interferência dos Estados Unidos nas questões internas dos

países latino-americanos.” (BAGGIO, 1998, p. 61). Assim, Eduardo Prado tinha uma visão

extremamente negativa tanto dos vizinhos do Brasil, quanto dos Estados Unidos, e via o

Brasil como uma unidade independente da América que precisava ser monarquista para ter

êxito.

Outro importante opositor ao pan-americanismo e à política de aproximação dos

Estados Unidos é o diplomata dissidente Manoel de Oliveira Lima. Este subscrevia, mesmo

após a república, à ideia de que monarquia suscita em união, estabilidade e ordem, e

acreditava ser o “remédio” para o caos e fragmentação encontrado na América Hispânica

(BAGGIO, 1998). Frente ao crescimento dos Estados Unidos na região, Oliveira Lima era

contrário à política estabelecida por Rio Branco e defendida por Joaquim Nabuco. Com

relação a este, Oliveira o acusava de estar sendo cegado por seu americanismo, evitando

enxergar os verdadeiros propósitos estadunidenses (DULCI, 2006). Oliveira Lima via os

Estados Unidos como um perigo em comum que a América Latina possuía por conta da

Doutrina Monroe e do Corolário Roosevelt, políticas que serviriam para disfarçar o

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intervencionismo e imperialismo estadunidense (BAGGIO, 1998). Pode-se observar que

Prado e Oliveira Lima possuem pontos de contato, porém eles divergem com relação à

possibilidade de associação entre os países da América Latina, Brasil incluso. Em tempos

de darwinismo social, o diplomata defendia que a mestiçagem era um problema para o

desenvolvimento continente, porém também incentivava a aproximação entre “vizinhos da

mesma raça” para conter o que ele entendia como agressões estadunidenses, além de

trazer um equilíbrio social no continente (BAGGIO, 1998).

Já Joaquim Nabuco se encontrava do lado “a favor” no debate com relação ao pan-

americanismo. Como o próprio Barão, era monarquista, porém deixou em segundo plano

suas convicções quando a república foi instaurada, em nome do dever. Nabuco foi

importante no aprofundamento das relações entre Brasil e Estados Unidos atuando como o

primeiro embaixador do Brasil em Washington. Antes disso, defendia que apenas Chile e

Estados Unidos teriam vocação para o regime republicano nas Américas. Na fase final de

sua carreira, Nabuco se tornou leal à república e um ferrenho defensor de uma próxima

relação entre Brasil e Estados Unidos e do pan-americanismo (BAGGIO, 1998). Nabuco

recusava a caracterização dos Estados Unidos como imperialistas, como Oliveira Lima e

Prado afirmavam, e confiava na Doutrina Monroe para assegurar o continente contra

intervenções europeias (DULCI, 2006). Tomava a ascensão dos Estados Unidos como líder

na região como natural, por considerar que isso derivava do fato dos Estados Unidos serem

“o exemplo mais bem acabado de república presidencialista” (BAGGIO, 1998, p.137).

Mais um defensor do pan-americanismo foi Euclides da Cunha. Assim como Prado e

Oliveira tinham pontos de contato, o mesmo ocorre entre Nabuco e Euclides. Este

discordava também da visão de que os Estados Unidos eram imperialistas, já que entendia

imperialismo como ocupação territorial com tropas, o modo escolhido pelos europeus.

Euclides via os Estados Unidos como expansionistas, cujo domínio era essencialmente

econômico, se tornando injustificável o temor com relação aos Estados Unidos (BAGGIO,

1998). Baggio também narra que ele considerava um erro, no entanto, simplesmente copiar

instituições e legislação de outro Estado que não se adaptam ao contexto brasileiro.

Euclides defendia o uso da originalidade brasileira para construir sua república a seu jeito

para não só ser mais bem sucedida, como também para garantir a autonomia do país. Com

relação aos vizinhos latino-americanos, Euclides possui textos que abordam com uma visão

pessimista, e outros com uma visão mais otimista. Ainda sim, como Baggio afirma, “a

‘solidariedade’ em que apostou Euclides foi, de fato, a pan-americana, e não a latino-

americana.” (BAGGIO, 1998, p.155). Seu pan-americanismo é mais atenuado do que o de

Nabuco, vendo os Estados Unidos como inspiração para um projeto original brasileiro.

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Através desses quatro autores citados, vemos uma pequena parte do debate que

ocorria sobre como o Brasil deveria se comportar com relação às duas Américas, e,

principalmente, se o modelo republicano deveria ser estadunidense, original ou, ainda,

inexistente. Aqueles que repudiam o pan-americanismo e os que o aplaudem compartilham

de uma curiosa característica em comum: nenhum dos citados considera as repúblicas

hispano-americanas como um possível modelo para o Brasil. O que mais se aproxima dessa

possibilidade é Nabuco que chega a citar o Chile como um país com vocação republicana,

no entanto, ainda afirma que o melhor modelo é o estadunidense. A predileção de Nabuco é

compreensível dada sua fase final da carreira que foi voltada para a intensificação da

relação entre os Estados Unidos e Brasil.

É bastante provável que essa ausência das repúblicas hispano-americanas nas

considerações sobre uma boa república esteja ligada à imagem construída na época do

Império. Esses intelectuais foram criados durante a monarquia, ouvindo que as repúblicas

hispano-americanas viviam em meio ao caos e se fragmentavam por incapacidade

administrativa. Considerando que as imagens formadas servem de lentes para analisar a

realidade, e que fazia apenas alguns anos que essa ‘lente’ não era mais propagada pelo

Estado brasileiro, é compreensível também que esses intelectuais ainda enxergassem, uns

mais outros menos, de forma negativa. Ou seja, “a proclamação da República contribuiu

para diminuir as desconfianças, mas a intelectualidade brasileira continuava, em grande

parte, com um olhar predominantemente negativo para os países vizinhos.” (BAGGIO, 1998,

p. 58).

A partir dos defensores do pan-americanismo expostos aqui, pode-se constatar que

esse discurso foi importante dentro do Brasil por produzir e reproduzir a imagem da

república que o Brasil aspirava ser: a república estadunidense. Isto resultou no

descolamento da república da imagem do latino-americano e, consequentemente, de uma

visão puramente negativa. Estados Unidos, especialmente no pensamento de Nabuco, era o

modelo a ser seguido, o que casou muito bem com a política externa de aproximação que o

Barão definiu para os Estados Unidos.

O Barão e a grande irmã do Norte

Rio Branco possuía a opinião padrão para alguém de sua geração sobre as

repúblicas hispano-americanas. Não causa espanto o fato de que o Barão as via com

desdém e acreditava que elas “traziam a vergonha e a desconsideração para a América

Latina.” (BUENO, 2012, p. 171). Com relação aos Estados Unidos, o Barão admirava o país,

apesar de fazê-lo com reservas (BUENO, 2003). Rio Branco tinha objetivos claros, sendo

central a consolidação das fronteiras. Tendo em mente que, regionalmente, havia

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sentimentos antibrasileiros que podiam prejudicar negociações e também que o Brasil

possuía um déficit significativo o suficiente para não conseguir sobrepor-se na região

(DORATIOTO, 2000), o novo ministro das relações exteriores teve que ser criativo.

Para executar suas políticas e alcançar seus objetivos, Rio Branco se preocupou em

melhorar a imagem do Brasil e suas relações com seus vizinhos da América do Sul e do

Norte. Adotou um discurso pacifista e não-intervencionista como tentativa de neutralização

dos sentimentos antibrasileiros que existiam, sobretudo na Argentina, e que ajudavam a

montar uma imagem negativa do Brasil que levava à desconfiança de cada ação brasileira.

É possível encontrar, em vários discursos seus, reinterpretações da história da política

externa do Império a fim de passar a ideia de que o Brasil sempre foi um país pacífico que

busca harmonia regional. Um exemplo é o discurso proferido, em junho de 1908 no IHGB,

em que faz menção ao plano de rearmamento naval:

“Somos, na verdade, um povo que tem dado inequívocas provas do seu amor à paz e da sua longanimidade para com os mais fracos (apoiados).

Desde que nos constituímos em nação independente, esforçamo-nos sempre por viver na melhor harmonia com os demais países, particularmente com os que nos são limítrofes. Desejamos muito sinceramente que todos eles prosperem, se engrandeçam e nos estimulem pelos bons exemplos que nos possam dar a prosseguir com firmeza e serenidade no caminho de todos os progressos morais e materiais. Anelamos merecer o afeto, não a desconfiança ou o terror dos nossos vizinhos (muito bem, muito bem).

Se hoje procuramos, com mais método e atividade, melhorar as condições em que alguns anos de agitações políticas e consequentes descuidos colocaram o nosso Exército e a nossa Armada, não é porque alimentamos planos de agressão ou de ambiciosa e indébita influência sobre os destinos de outros povos.” (FUNAG, 2012, p. 220)

Outra decisão para auxiliá-lo na consolidação das fronteiras nacionais foi se

aproximar dos Estados Unidos. O Barão viu na relação com os EUA uma oportunidade e

reescreveu também a narrativa da amizade entre o Brasil e os Estados Unidos (SANTOS,

2012, p. 103) passando a ideia de continuidade nas relações entre os dois países. Entre

1902 e 1912, o Brasil foi se aproximando cada vez mais dos Estados Unidos através, por

exemplo, da elevação à embaixada da representação do Brasil em Washington; da III

Conferência Internacional Americana que foi no Rio de Janeiro; da aceitação do Corolário

Roosevelt; entre outros (BURNS, 2003; SANTOS, 2010).

A boa relação entre os dois era cultivada por objetivos pragmáticos e visava a

simpatia americana e, com isso, um respaldo político dos Estados Unidos, ao neutralizar

possíveis pressões estadunidenses na solução de litígios (BUENO, 2003). Isto era mister

para que o Brasil tivesse “mais liberdade para negociar com as nações sul-americanas na

busca por uma solução para problemas lindeiros” (LIMA, 2006, p. 24). Como coloca Burns

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(2003), a associação com os EUA era uma das formas utilizadas para engrandecer o Brasil,

fortalecendo a imagem do país tanto frente à Europa quanto aos seus vizinhos. Essa aliança

não escrita formada entre os dois países teve sucesso porque os Estados Unidos também

se beneficiavam da aproximação com o Brasil que lhes davam um aliado na América do Sul

que facilitava, quando necessário, a relação dos estadunidenses com os latino-americanos.

Um exemplo disso é o papel do Brasil no reconhecimento do Panamá pelos principais

países da região (BURNS, 2003, p. 221).

Assim, reescrever a narrativa através do discurso era uma forma de consolidar a

nova-antiga amizade entre Brasil e Estados Unidos, e também de notificar aos países

vizinhos que ela existia. Dentre os discursos analisados, dois padrões se destacam. O

primeiro já foi mencionado que é o da reinterpretação da história entre os dois países. Um

exemplo de como Rio Branco fazia isso através das palavras é o discurso pronunciado no

banquete oferecido ao secretário de Estado Elihu Root em julho de 1906, por ocasião da III

Conferência Internacional Americana:

“Data de longe essa amizade. Vem dos primeiros dias da nossa Independência, a qual o governo dos Estados Unidos foi o primeiro a reconhecer, como foi o governo do Brasil o primeiro a aplaudir os termos e o espírito das declarações contidas na célebre mensagem do presidente Monroe. O tempo não fez senão ir aumentando, na inteligência e no coração de sucessivas gerações brasileiras, a simpatia e a admiração que os Estados Unidos da América inspiraram aos criadores da nossa nacionalidade.

As manifestações de amizade dos Estados Unidos que tendes presenciado procedem de todo o povo brasileiro e não somente do mundo oficial. Os nossos votos são para que essa amizade, nunca perturbada no passado, seja perpétua e se fortaleça e se estreite cada vez mais.” (FUNAG, 2012, p. 143).

Outro discurso em que é possível ver essa reinterpretação do passado é o discurso

dado durante outro banquete dessa vez oferecido a William J. Bryan, político americano, em

março de 1910:

“Apesar da diferença na forma do governo, o Império Constitucional e parlamentar que tivemos considerou-se sempre uma potência verdadeiramente americana e procurou manter as melhores relações com as Repúblicas do continente e mui particularmente com os Estados Unidos da América. O primeiro país que aderiu à doutrina de Monroe foi o Brasil, pois nesse sentido o governo imperial passou instruções à sua legação em Washington, em 23 de janeiro de 1824.

Mas a influência do rápido e maravilhoso progresso de vossa pátria continuou a fazer-se sentir no Brasil, e a admiração dos brasileiros pela grande República do norte foi crescendo sempre. A revolução de 1889 criou os Estados Unidos do Brasil, e a nova República organizou-se com uma Constituição quase inteiramente copiada das vossas leis constitucionais.

Era natural que a política de aproximação com os Estados Unidos da América, observada pelo governo brasileiro desde os primeiros dias da

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independência deste país, se acentuasse ainda mais depois da Proclamação da República. E assim sucedeu.” (FUNAG, 2012, p. 278)

Este último discurso é o mais explícito na reconstrução da história das relações

Brasil-Estados Unidos. Essa realidade da amizade datando dos tempos da independência,

ignorando a diferença entre formas de governos, só existe nos discursos de Rio Branco. O

Império brasileiro tinha grandes desconfianças com relação aos Estados Unidos, portanto,

como diz Santos (2010), “não procede a imagem de uma aliança secular entre as duas

nações, que sinalizaria uma comunhão de ideais e valores desde o início das relações

oficiais” (p. 188).

O discurso de 1910 também é explícito com relação ao segundo padrão observado:

o tratamento da própria imagem do Brasil como um espelho dos Estados Unidos na América

do Sul. Ao longo dos anos, o Barão foi produzindo e reproduzindo uma imagem do Brasil

republicano que possuía continuidades, representadas na permanência da ideia de

excepcionalidade brasileira e de superioridade em relação a seus vizinhos, mas também

possuía novidades. Essa nova imagem trazia características como a não-intervenção, o

pacifismo e o republicanismo. Esta última foi vinculada aos Estados Unidos através do

discurso estabelecido por Rio Branco.

Como relata Burns, a associação do Brasil com os Estados Unidos fortalece o

primeiro em termos de posição internacional, não importando se a aliança entre os dois era

escrita ou não, “desde que os outros países acreditassem na sua existência” (2003, p. 214).

E era justamente isso que o Barão pretendia quando reforçava a proximidade e os supostos

paralelos entre os dois países. Era justamente essa impressão de irmandade que ele

buscava quando discursava em eventos se referindo aos Estados Unidos como a “grande

irmã do Norte”:

“Meus senhores,

Devem merecer o aplauso dos bons americanos todas as medidas que tendam a desenvolver as relações de amizade e de comunhão entre os povos do nosso continente, destruindo os obstáculos que se oponham às expansões da sua atividade no campo do progresso e concorrendo para que seja uma realidade a política de confraternidade e de paz, que, estou certo, é o ideal de todos os governos das duas Américas. Sinto o verdadeiro contentamento em ver aqui reunidos todos os dignos representantes e diplomatas das nações desta bela parte do mundo, não só os das que nos são mais vizinhas, mas também o da nossa grande irmã do norte, unindo-se a mim para festejar os ilustres delegados da República Argentina, do Paraguai e do Uruguai no Congresso Sanitário que, neste momento, faz obra civilizadora contra a velha rotina, adotando princípios liberais, uma conquista da ciência moderna.” (FUNAG, 2012, p. 123)

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3 Discurso proferido banquete em homenagem aos delegados estrangeiros da Conferência Sanitária Pan-

Americana em junho de 1904.

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“Hoje, como naquele tempo, a nação brasileira só ambiciona engrandecer-se pelas obras fecundas da paz, com seus próprios elementos, dentro das fronteiras em que se fala a língua dos seus maiores, e quer vir a ser forte entre vizinhos grandes e fortes, por honra de todos nós e por segurança do nosso continente, que talvez outros possam vir a julgar menos bem ocupado.

É indispensável que, antes de meio século, quatro ou cinco, pelo menos, das maiores nações da América Latina, por nobre emulação, cheguem, como a nossa grande e querida irmã do norte, a competir em recursos com os mais poderosos Estados do mundo.” (FUNAG, 2012, p. 128)

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Conclusão

Apesar de o advento da república no Brasil ter aproximado este da América Latina,

imagem da qual resiste em fazer parte, a geração que estava no poder e compunha os

intelectuais ainda viam, em sua maioria, o Outro latino-americano de forma negativa. Isto

explica porque a imagem da república se desvencilhou do negativo, e a do latino-americano

não. A república possuía outro modelo ao qual ela podia se vincular.

A incoerência no discurso oficial brasileiro com relação à construção da república

como uma forma de governo que leva à fragmentação e desordem, foi solucionada, então,

com a progressiva aproximação do país com os Estados Unidos. Estes eram vistos como a

república modelo, a república ideal. A imagem da república, como forma de governo, não

era monolítica. Algumas repúblicas eram melhores do que outras. Mas essa associação

resulta em mais do que uma nova percepção da república.

Ao vincular a imagem dos Estados Unidos à imagem do Brasil, este cria uma

identificação com a república estadunidense e se coloca como a contraparte sul-americana

dos Estados Unidos. Isto lhe confere prestígio e certo poder ao melhorar a imagem brasileira

(BURNS, 2003). Além disso, não é à toa que nos últimos dois discursos citados o Barão

chama as outras repúblicas latino-americanas de vizinhas(os), e, no mesmo texto, se refere

aos Estados Unidos como grande irmã. Ao fazer isso, o discurso construído associa a

imagem dos Estados Unidos à imagem do Self brasileiro, e a diferencia com a do Outro

latino-americano, seu vizinho. Nessa construção o Brasil se coloca como mais perto dos

Estados Unidos e, portanto, passa a impressão de prestígio, certo poder e, mais importante

ainda, de uma aliança não escrita.

4 Discurso pronunciado na sessão inaugural do III Congresso Científico Latino Americano em 6 de agosto de

1905

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