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O BEM COMUM E A INSTITUCIONALIZAÇÃO DO PODER: A POLÍTICA E O GOVERNO MISTO EM TOMÁS DE AQUINO Suélen Caetano de Oliveira 1 [email protected] RESUMO Este trabalho faz uma abordagem sobre o pensamento político de Tomás de Aquino quanto às formas de governo. Demonstra qual forma de governo é a melhor para o filósofo, qual seja, o governo misto, considerada a partir do conceito de bem comum. A partir da análise da obra política de Aristóteles, Políbio e Cícero serão estabelecidas a noção de governo misto e suas vantagens, demonstrando a origem do conceito em Políbio, a partir de uma base de conhecimento político criada por Aristóteles. São expostas as noções de homem como animal político, bem comum, império do direito e virtude do governante, na concepção tomista, e seus papéis nas formas de governo para, então, concluir qual forma de governo logra ser a mais adequada para Tomás de Aquino. Finalmente, conclui-se que para Tomás de Aquino a melhor forma de governo é a do governo misto, porém, é possível que seja outra, se se adequar ao caso concreto e buscar o bem comum. Palavras-chave: Política, Formas de governo, Tomás de Aquino, Governo Misto. INTRODUÇÃO O presente trabalho abordará a política de Tomás de Aquino e seu apoio à forma mista de governo, como uma teoria com base no conceito de bem comum. Partindo da análise aristotélica das formas boas de governo e suas corrupções, que levaram Políbio à elaboração do conceito de governo misto exemplificado na constituição romana, será construída essa teoria. As constituições analisadas por Platão e Aristóteles, na antiguidade, possuíam em comum a seguinte característica: pouco tempo de vigência e decorrente derrocada, que implicava a sua decadência em prol de uma forma corrompida de si mesma. Em ciclos, como teoriza Políbio, cada uma das seis formas de governo conhecidas na antiguidade transcorrem sem alcançar a estabilidade necessária em uma constituição para que ocorra o crescimento do povo e do Estado em que vige. Nesse sentido, nasce o conceito de governo misto, que intenciona suprir esta falta e cumprir com eficácia o papel a que se destina. Aristóteles, em seu livro Política, defende a idéia de um governo derivado de outras formas. Nesse sentido, Políbio, em seu livro História, cria o conceito de governo misto, que contém em si partes boas das formas de governo conhecidas: monarquia, aristocracia e 1 Trabalho de Conclusão de Curso apresentado como requisito parcial para obtenção do grau de Bacharel em Direito, na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Faculdade de Direito, defendido perante banca composta pelo professor orientador Luís Fernando Barzotto e pelos professores Elias Grossmann e Marcus Vinicius Martins Antunes, em junho de 2006.

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O BEM COMUM E A INSTITUCIONALIZAÇÃO DO PODER: A POLÍTICA E O GOVERNO MISTO EM TOMÁS DE AQUINO

Suélen Caetano de Oliveira1 [email protected]

RESUMO

Este trabalho faz uma abordagem sobre o pensamento político de Tomás de Aquino quanto às formas de governo. Demonstra qual forma de governo é a melhor para o filósofo, qual seja, o governo misto, considerada a partir do conceito de bem comum.

A partir da análise da obra política de Aristóteles, Políbio e Cícero serão estabelecidas a noção de governo misto e suas vantagens, demonstrando a origem do conceito em Políbio, a partir de uma base de conhecimento político criada por Aristóteles.

São expostas as noções de homem como animal político, bem comum, império do direito e virtude do governante, na concepção tomista, e seus papéis nas formas de governo para, então, concluir qual forma de governo logra ser a mais adequada para Tomás de Aquino.

Finalmente, conclui-se que para Tomás de Aquino a melhor forma de governo é a do governo misto, porém, é possível que seja outra, se se adequar ao caso concreto e buscar o bem comum. Palavras-chave: Política, Formas de governo, Tomás de Aquino, Governo Misto.

INTRODUÇÃO

O presente trabalho abordará a política de Tomás de Aquino e seu apoio à forma

mista de governo, como uma teoria com base no conceito de bem comum. Partindo da análise

aristotélica das formas boas de governo e suas corrupções, que levaram Políbio à elaboração

do conceito de governo misto exemplificado na constituição romana, será construída essa

teoria.

As constituições analisadas por Platão e Aristóteles, na antiguidade, possuíam em

comum a seguinte característica: pouco tempo de vigência e decorrente derrocada, que

implicava a sua decadência em prol de uma forma corrompida de si mesma. Em ciclos, como

teoriza Políbio, cada uma das seis formas de governo conhecidas na antiguidade transcorrem

sem alcançar a estabilidade necessária em uma constituição para que ocorra o crescimento do

povo e do Estado em que vige. Nesse sentido, nasce o conceito de governo misto, que

intenciona suprir esta falta e cumprir com eficácia o papel a que se destina.

Aristóteles, em seu livro Política, defende a idéia de um governo derivado de outras

formas. Nesse sentido, Políbio, em seu livro História, cria o conceito de governo misto, que

contém em si partes boas das formas de governo conhecidas: monarquia, aristocracia e

1 Trabalho de Conclusão de Curso apresentado como requisito parcial para obtenção do grau de Bacharel em Direito, na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Faculdade de Direito, defendido perante banca composta pelo professor orientador Luís Fernando Barzotto e pelos professores Elias Grossmann e Marcus Vinicius Martins Antunes, em junho de 2006.

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democracia. Esclarece este que as formas anteriores são instáveis, porque excludentes quanto

aos seus governantes: a monarquia é governo de um, a aristocracia é governo de poucos e a

democracia é governo de muitos. Nessa proposta, o governo misto combina as três formas

clássicas.

Formado pelas partes boas das formas simples de governo, a presença das diferentes

classes da sociedade amplia a participação nos processos governamentais, o que garante uma

melhor distribuição de poderes e controle dos governantes.

O presente trabalho analisará importantes conceitos políticos de Tomás de Aquino,

como o bem comum, para justificar a escolha do filósofo pelo governo misto. Com este

último, Aquino fará a ligação dos demais conceitos – homem sociável, império do direito e a

virtude do governante – para o sucesso de um regime de governo.

Nesse sentido, Tomás de Aquino argumentará em favor de um regime mais estável,

que busque firmemente o bem comum, e este regime será o governo misto.

Os conceitos examinados no segundo capítulo estarão presentes na construção de

cada forma de governo analisada, em maior ou menor grau, estando um ou mais deles

ausentes nas formas corruptas. Porém, o bem comum somente se verificará na presença de

todos.

Finalmente, será trabalhado o exemplo vivo que Tomás de Aquino utilizará para

comprovar a excelência do governo misto, o governo do povo de Israel, que foi iniciado por

Deus, e passado aos homens. A constituição do povo hebreu foi uma espécie de governo

misto e garantiu ao povo de Israel a paz necessária para a busca do bem comum.

1 PARTE HISTÓRICA

1.1 Aristóteles

O bem comum tem-se mostrado a base da formulação das melhores formas de

governo e sólida premissa nas teorias políticas de vários autores. Em busca do bem comum,

constatou-se como excelente regime o de forma mista. O conceito de governo misto foi

primeiramente estabelecido por Políbio e, após séculos, mantém-se capaz de acompanhar as

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relações da sociedade. Aristóteles tem importante papel na criação desse conceito, ao

estabelecer importantes noções políticas e a clássica teoria das formas de governo.2

Define Aristóteles que “um regime político resulta de um certo modo de ordenar os

habitantes de uma cidade” 3. E mais adiante afirma: “O governo é elemento supremo em toda

a cidade, e o regime é, de facto, esse governo” 4. Em vista da importância desse tópico, o

filósofo investigou várias constituições existentes com o intuito de averiguar qual seria a

melhor forma de governo.

Em seu livro Política, Aristóteles distingue seis formas de governo, divididas em

formas boas e más. Primeiramente, define as formas boas de governo como sendo a realeza, a

aristocracia e o regime constitucional. Afirma Aristóteles:

Existem, a nosso ver, três tipos de constituições corretas, e a melhor de entre elas é necessariamente aquela em que a administração é da responsabilidade dos melhores. Referimo-nos evidentemente ao tipo de governo em que um só homem, ou uma família inteira, ou um conjunto de cidadãos, excedem os demais em virtude, sendo estes últimos capazes de serem governados e os primeiros capazes de governar, em vista a atingir o gênero de vida mais desejável. 5

Assim, as formas boas de governo são classificadas conforme esclarece Norberto

Bobbio: “essa tipologia deriva do emprego simultâneo de dois critérios fundamentais –

‘quem’ governa e ‘como’ governa”6, tendo, então, um governante a monarquia; poucos

governantes a aristocracia e muitos governantes o regime constitucional. Segundo o

ensinamento do filósofo:

[...] chamamos realeza à que visa o interesse comum. Chamamos aristocracia à forma de governo por poucos (mas sempre mais do que um) seja porque governam os melhores ou porque se propõe para a cidade e os seus membros. Finalmente quando os muitos governam em vista ao interesse comum, o regime recebe o nome comum a todos os regimes: ‘regime constitucional’. 7

É extremamente relevante que essas formas de governo são consideradas boas,

porque executadas em prol dos governados e de maneira virtuosa, conforme cita Alasdair

Macintyre: “Portanto, o bem na pólis [...] exige a habilidade de exercer virtudes específicas no

2 BOBBIO, Norberto. As Teorias das formas de Governo. 9. ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1997. p. 55.

3 ARISTÓTELES. Política. Lisboa: Vega, 1998. p. 185. 4 ARISTÓTELES. Política. Lisboa: Vega, 1998. p. 207. 5 ARISTÓTELES. Política. Lisboa: Vega, 1998. p. 265. 6 BOBBIO, Norberto. As Teorias das formas de Governo. 9. ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1997. p. 56.

7 ARISTÓTELES. Política. Lisboa: Vega, 1998. p. 211.

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modo de ser governado e no modo de governar” 8. Dessa forma, chegamos às formas más de

governo.

Quando o interesse pessoal do governante se sobrepõe ao interesse coletivo, a forma

de governo vigente entra em derrocada e é sucedida por sua correspondente forma

corrompida, sendo, segundo Aristóteles, “a tirania em relação à realeza; a oligarquia em

relação à aristocracia; a democracia em relação ao regime constitucional”9. Segue explicando

o filósofo: “A tirania é o governo de um só com vista ao interesse pessoal; a oligarquia é

busca do interesse dos ricos; a democracia visa o interesse dos pobres. Nenhum destes

regimes visa o interesse da comunidade”10.

Diante de tal assertiva, torna-se evidente a necessidade de um governante virtuoso

em seus atos, e uma forma de governo que logre se manter estável, uma vez que não repousa

somente no cidadão que governa e no cidadão que é governado, a responsabilidade sobre a

manutenção do regime capaz de organizá-los em sociedade11. Aristóteles ainda analisa a

oligarquia e a democracia sob o viés quantitativo e, ao observar que em contraposição aos

ricos, que são poucos, os pobres são muitos, supõe a seguinte tensão: “[...] que os ricos são

escassos e os pobres numerosos. É que a riqueza é de poucos, enquanto a liberdade é de todos:

estas são as causas pelas quais uns e outros reclamam o poder” 12.

Esparta, porém, alinhava uma forma diferenciada de institucionalização do poder,

qual seja a apontada a seguir:

Alguns afirmam que o melhor regime é constituído por uma mistura de todos e por isso louvam o dos Espartanos que, segundo eles, se compõe de oligarquia, monarquia e democracia; a realeza, dizem, representa a monarquia; a autoridade dos Anciãos, a oligarquia, e a democracia está na autoridade dos éforos, porque estes provêm o povo. [...] É preferível a opinião dos que misturam um maior número de elementos pois o regime formado a partir de um maior número de elementos é melhor. 13

Encontra-se na obra de Aristóteles, também, a noção mista nos regimes:

O caráter deste regime surge-nos mais evidente a partir do momento em que se define o que sejam a oligarquia e a democracia, dado que, como já foi dito, o regime constitucional é uma mistura de oligarquia com democracia. Aos regimes que se inclinam mais para a democracia, costuma chamar-se regimes constitucionais, aos

8 MACINTYRE, Alasdair. Justiça de quem? Qual racionalidade? 2. ed. São Paulo: Loyola, 2001. p. 117. 9 ARISTÓTELES. Política. Lisboa: Vega, 1998. p. 213. 10 ARISTÓTELES. Política. Lisboa: Vega, 1998. p. 213. 11 Em MACINTYRE, Alasdair. Justiça de quem? Qual racionalidade? 2. ed. São Paulo: Loyola, 2001, é esclarecida a necessidade do cidadão de manter-se em sociedade (na pólis), como forma de lograr a educação para as virtudes (p. 137).

12 ARISTÓTELES. Política. Lisboa: Vega, 1998. p. 215. 13 ARISTÓTELES. Política. Lisboa: Vega, 1998. p. 131.

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que se inclinam mais para a oligarquia, costumamos dar o nome de aristocracias [...].14

Nesse sentido, esclarece Norberto Bobbio que “(a polítia) [...] é o produto de uma

‘mistura’. A idéia de que o bom governo é fruto de uma mistura de diversas formas de

governo é um dos grandes temas do pensamento político ocidental [...]. Trata-se do tema do

governo misto”15. A obra de Aristóteles foi o precedente histórico para a criação desse

importante conceito político: o governo misto, uma tradição iniciada em Políbio.

1.2 Políbio

Grande contribuição para as teorias das formas de governo é a obra de Políbio. Como

Aristóteles, Políbio examinou as constituições mais importantes da antiguidade, tendo

encontrado na constituição romana seu melhor exemplo. Conforme afirma Norberto Bobbio,

“Políbio não é um filósofo, mas um historiador”16. Todavia, como bem anota Mario da Gama

Kury, “é a intenção do autor de escrever uma história pragmática, ou seja, voltada

especialmente para a época contemporânea e de caráter essencialmente político e militar”17, o

que faz de sua principal obra, Histórias, ser comparável às obras políticas de grandes filósofos

da antiguidade. Na sua obra, Políbio explica: “[...] graças a que espécie de constituição, em

menos de cinqüenta e três anos, praticamente todo o mundo foi vencido e caiu sob o domínio

único dos romanos”18. E completa: “a causa predominante do sucesso e de seu contrário em

todos os assuntos relativos ao governo de um povo é a forma de sua constituição, pois dela,

como de uma fonte, nascem não somente todos os desígnios e planos, mas a sua própria

realização”19.

Além dos relatos das Guerras Púnicas, Políbio tece sua teoria das formas de governo,

da qual Norberto Bobbio indica que:

Nessa teoria ele expõe sobretudo três teses que merecem ser enunciadas [...] 1)existem fundamentalmente seis formas de governo – três boas e três más; 2) essas seis formas se sucedem umas às outras de acordo com determinado ritmo,

14 ARISTÓTELES. Política. Lisboa: Vega, 1998. p. 301-303. 15 BOBBIO, Norberto. As Teorias das formas de Governo. 9. ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1997. p. 62-63.

16 BOBBIO, Norberto. As Teorias das formas de Governo. 9. ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1997. p. 65.

17 KURY, Mário da Gama in POLIBIOS. História. 2. ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1996. p. 34. 18 POLIBIOS. História. 2. ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1996. p. 325. 19 POLIBIOS. História. 2. ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1996. p. 326.

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constituindo assim um ciclo, repetido no tempo; 3) além dessas seis formas tradicionais, há uma sétima – exemplificada pela constituição romana [...].20

Políbio indica, primeiramente, as três formas (boas) de governo mais conhecidas –

monarquia, aristocracia e democracia. E sobre elas, aponta a classificação: “[...] creio que

poderíamos pedir-lhes com toda razão para esclarecerem se no-las apresentam como sendo as

únicas ou então as melhores entre as constituições, pois na minha opinião em ambas as

hipóteses eles estão errados”.21

Tais formas de governo não são as únicas, conforme descreve Políbio, e podemos

verificar na seguinte relação: “Devemos portanto afirmar que há seis espécies de governo: as

três mencionadas inicialmente [...] e as três naturalmente afins a elas, quero dizer a autocracia,

a oligarquia e a oclocracia”22. Tampouco, são essas formas de governo, as melhores,

conforme completa o autor, estabelecendo o conceito central de sua teoria: “[...] a melhor

constituição uma combinação das três espécies [...]”23, isto é, uma forma de governo mista.

Sobre as formas boas de governo, estas se definem, ao contrário da definição de

Aristóteles, conforme os seguintes critérios definidos por Norberto Bobbio, quais sejam “[...]

de um lado, a contraposição entre o governo baseado na força e o governo fundamentado no

consenso; de outro, a contraposição análoga – mas não idêntica – entre governo ilegal

(portanto arbitrário) e legal”24.

Políbio afirma que um homem se evidencia por suas características virtuosas e,

então, é escolhido para liderar aquele grupo em que se insere, formando uma primeira

monarquia. Esse ato de confiança dos novos cidadãos em relação àquele igual se mantém pela

hereditariedade, por se acreditar que os filhos herdam a mesma virtude do pai. Uma vez que

isso aconteça, o povo se desagrada. E, somado a isso, existe o costume de diferenciação do

rei, por artefatos luxuosos e poder. Nasce, nesse momento, a inveja, que leva a deposição

deste monarca, dada a insatisfação de seus súditos. Grupos de cidadãos evidenciam-se nessa

jornada de transição, e uma vez demonstradas suas qualidades, o povo junta-se a eles e os

legitima. De tal ato advém, então, o governo dos bons: aristocracia. Como afirma Políbio: “o

20 BOBBIO, Norberto. As Teorias das formas de Governo. 9. ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1997. p. 65-66.

21 POLIBIOS. História. 2. ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1996. p. 326. 22 POLIBIOS. História. 2. ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1996. p. 327. 23 POLIBIOS. História. 2. ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1996. p. 326. 24 BOBBIO, Norberto. As Teorias das formas de Governo. 9. ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1997. p. 67.

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povo, como se estivesse obrigado a pagar imediatamente sua dívida de gratidão para com os

destituidores dos autocratas, fez deles os seus chefes e lhes confiou seu destino”.25

Uma vez no poder, esses governantes exercem seu papel, até que seus herdeiros, com

o passar dos tempos, desvirtuam-se. Segue o autor narrando: “transformando dessa maneira a

aristocracia em oligarquia eles despertaram no povo sentimentos semelhantes àqueles há

pouco mencionados por mim, e conseqüentemente tiveram um fim calamitoso semelhante ao

dos tiranos”26. Em seguida, de acordo com Políbio, os cidadãos “não se arriscam a reinstalar

um rei no poder [...] a única esperança que lhes resta intacta está em si mesmos, e recorrem a

ela, e transformam o governo de oligárquico em democrático”27, até que a sede pelo poder os

corrompa novamente, quando novamente há a derrocada para, então agora, o regime

oclocrático, até que algum cidadão capaz de ordenar essa sociedade novamente surja,

renovando a monarquia.

Estas consecutivas trocas de governo caracterizam a teoria do ciclo de Políbio, que

segundo Norberto Bobbio, “é fragmentada por uma alternância de momentos bons e maus”28.

Ao passar pelas diferentes formas simples de governo, continua Bobbio, “a passagem de uma

forma para a outra parece predeterminada, necessária e inderrogável [...] (e) que o germe da

corrupção está no interior de todas as constituições”29. Constituições simples, nesse caso.

Passando ao exame da constituição romana, verifica Políbio, que:

[...] o espírito de eqüidade e a noção de conveniência sob todos os aspectos demonstrados e todas as esferas governamentais no uso desses três elementos para estruturar a constituição e para a sua aplicação subseqüente eram tão grandes que, mesmo para um cidadão romano, seria impossível dizer com certeza se o sistema e seu conjunto era aristocrático, democrático ou monárquico. 30

Não configura uma constituição simples, portanto, a constituição romana. Na figura

dos cônsules, é representada a monarquia, na figura do senado é representada a aristocracia e,

por sua vez, com vasta competência para decidir questões importantes de organização, a voz

do povo é dada pelas tribos, que têm poder de voto e que representam a democracia. Assim,

dá-se uma eficiente forma de controle de poderes, visto o equilíbrio de cada classe de

cidadãos, como está evidente na explanação de Norberto Bobbio: “Quanto à razão da

25 POLIBIOS. História. 2. ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1996. p. 329-330. 26 POLIBIOS. História. 2. ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1996. p. 330. 27 POLIBIOS. História. 2. ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1996. p. 330. 28 BOBBIO, Norberto. As Teorias das formas de Governo. 9. ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1997. p. 67.

29 BOBBIO, Norberto. As Teorias das formas de Governo. 9. ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1997. p. 68.

30 POLIBIOS. História. 2. ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1996. p. 333.

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excelência do governo misto, Políbio vai encontrá-la no mecanismo de controle recíproco de

poderes ou no princípio do ‘equilíbrio’”31. Dessa forma, caracteriza-se o governo de Roma,

conforme atesta Políbio, “sendo esses os meios de que dispõe cada um dos poderes do Estado

para criar obstáculos aos outros ou cooperar com eles. Sua união é benéfica em todas as

continências, a tal ponto que é impossível achar um sistema político melhor do que este”32.

Sobre a constituição mista, explica José Antônio Giusti Tavares que a “Constituição

Mista compreende, primária e essencialmente uma distribuição equilibrada do poder social

entre as classes, estratos ou coletividades em que se decompõe a sociedade [...]”33. Essa

distribuição coloca as classes em um mesmo nível, e esse equilíbrio ajudará essa constituição

a manter-se estável, uma vez que cada classe de cidadãos protegerá a consecução de seus

interesses, evitando que algum se sobreponha aos demais, afastando o perigo de golpe

tirânico. Nesse sentido, segue Tavares afirmando que a Constituição Mista compreende ainda

“algum sistema, igualmente social, delicado e complexo, mas flexível, adaptável e eficiente,

de freios e contrapesos nas relações entre esses agrupamentos e, particularmente, em sua

competição pela apropriação do poder estatal”34.

O sentido de um controle mútuo entre as classes de cidadãos está presente no regime

do governo misto, mas faz-se importante uma ressalva quanto o uso do termo freios e

contrapesos. Muitas vezes, o governo misto é confundido com a doutrina da separação de

poderes, como explica Norberto Bobbio:

Em seu significado original, o Governo Misto é o resultado da distribuição do poder entre as diversas forças sociais, cuja colaboração há de servir para manter a concórdia necessária à convivência civil. A separação dos poderes resulta, em vez disso, da distribuição das três funções principais do Estado, legislativa, executiva e judiciária, por órgãos diversos.35

Suas características são semelhantes, mas possuem uma diferença bem delineada. Na

separação dos poderes, a distribuição das funções tem intuito direto de controle, já a

31 BOBBIO, Norberto. As Teorias das formas de Governo. 9. ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1997. p. 70.

32 POLIBIOS. História. 2. ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1996. p. 337. 33 TAVARES, José Antônio Giusti in FÉLIX, L. e GOETTEMS, M. Cultura Grega Clássica. Porto Alegre: Editora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 1989. p. 10.

34 TAVARES, José Antônio Giusti in FÉLIX, L. e GOETTEMS, M. Cultura Grega Clássica. Porto Alegre: Editora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 1989. p. 10.

35 GOVERNO MISTO. In: BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de Política. 12 ed. Brasília: UNB, 1999. v.1, p. 559.

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distribuição na Constituição Mista é para equilibrar o poder das forças sociais, e que essas

também participem da principal função que é a legislativa.36

O regime misto de governo rege-se também pelo império do direito, consoante

Tavares:

Sob a constituição mista, pela via de um sistema constitucional que inclui não apenas instituições mas sobretudo normas a que auto-obrigam originária e permanentemente todos aqueles que integram a comunidade política, a ordem estatal regula os movimentos do convívio coletivo, até então entregues à própria espontaneidade.37

O sistema de normas da constituição mista regula o convívio coletivo, assim como

regula os atos do governante. É pré-requisito para o governo misto – ou qualquer forma boa

de governo, que seja guiado para o bem comum. As normas de convivência tomarão parte

dessa tarefa. Assim, descreve Tavares que “não apenas os diferentes sujeitos individuais e

coletivos, mas todas as agências governamentais permanecem sob a supremacia comum da

Constituição e das leis”38 e conclui:

Assim, na ordem pública constitucional, a soberania está depositada não em um indivíduo, nem em uma força social, ou mesmo numa composição particular de forças sociais, nem em uma agência governamental específica, nem ainda no complexo governamental como um todo, mas singelamente na lei.39

Nesse sentido, ensina Políbio:

Quando os cidadãos [...] colhem os frutos dos tempos venturosos e da prosperidade resultante de suas vitórias, e no gozo dessas benesses são corrompidos pela adulação e pela ociosidade, tornando-se insolentes e autoritários, é precisamente nessa situação que vemos o Estado usar um remédio à sua disposição para enfrentar esses males: quando um dos poderes, crescendo desproporcionalmente em detrimento dos outros, passa a aspirar à supremacia e tende a mostrar-se excessivamente predominante, como nenhum deles pelas razões expostas acima é absoluto [...], nenhum deles predomina sobre os outros nem pode desprezá-los. Tudo continua em seu lugar porque qualquer intento agressivo é seguramente contido, e desde o início cada parte está prevenida contra a interferência da outra.40

Desse modo, mostra-se preciso e eficaz o governo misto, visto ser mais estável que

as formas simples de governo, que estão presas aos ciclos de vigência e derrocada. Neste

36 Cf. GOVERNO MISTO. In: BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco.

Dicionário de Política. 12 ed. Brasília: UNB, 1999. v.1, p. 559. 37 TAVARES, José Antônio Giusti in FÉLIX, L. e GOETTEMS, M. Cultura Grega Clássica. Porto Alegre: Editora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 1989. p. 9.

38 TAVARES, José Antônio Giusti in FÉLIX, L. e GOETTEMS, M. Cultura Grega Clássica. Porto Alegre: Editora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 1989. p. 15.

39 TAVARES, José Antônio Giusti in FÉLIX, L. e GOETTEMS, M. Cultura Grega Clássica. Porto Alegre: Editora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 1989. p. 115-16.

40 POLIBIOS. História. 2. ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1996. p. 338.

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momento, dá-se a introdução deste conceito, o qual consiste numa forma de governo que

inclua as partes boas de cada forma simples41.

Como constatação da excelência dessa teoria, podemos identificar sua reafirmação

posterior, como será visto adiante, na Idade Média, ao ser adotada e atualizada por outro

eminente filósofo: Tomás de Aquino.

2 A POLÍTICA EM TOMÁS DE AQUINO

2.1 O Homem, Animal Político

Para estudar-se a política em Tomás de Aquino, faz-se necessária a iniciação no

conceito primeiro, o qual estabelece qualquer idéia de política: o homem sociável.

A partir da sociabilidade, nasce a política, a ordenação dos homens buscando, de

forma justa, conduzi-los ao seu fim último ou bem comum.

Nesse sentido, define Tomás de Aquino que “o homem tem como natural o viver em

uma sociedade de muitos membros”42, concordando, dessa forma, com Aristóteles. O homem

dotado de razão, diferentemente dos animais, poderia seguir seu fim último, porém, justifica

Tomás de Aquino, que o homem tende a viver em sociedade:

Pois a natureza preparou aos demais animais a comida, sua vestimenta, sua defesa, por exemplo, os dentes, chifres, garras ou, ao menos, velocidade para a fuga. O homem, pelo contrário, foi criado sem nenhum destes recursos naturais, mas em seu lugar lhe foi dada a razão para que através desta pudesse abastecer-se, com o esforço de suas mãos, de todas essas coisas, ainda que um só homem por si mesmo não pode bastar-se em sua existência. 43

Assim, a sociabilidade é uma necessidade para o homem que, incapaz de manter-se

sozinho e seguir um caminho de virtude, procura o apoio dos seus para alcançar seus

objetivos.

Somado a isso, temos que o ser humano, como o animal mais perfeito e complexo,

tendo sido feito à semelhança de Deus, e a Ele devendo convergir, depende de vários saberes

para sua manutenção, de modo que sua razão não possui meios para dominar todos esses

conhecimentos. Tomás de Aquino ensina que: 41 Cícero considera, como Políbio, o governo misto como a melhor forma de governo. Em sua obra República Cícero descreve a idéia do ciclo polibiano e trata do problema da instabilidade das formas simples de governo, apontando a Constituição Romana como uma forma mista de governo que logrou estabilidade.

42 AQUINO, Tomas de. La Monarquia. 3. ed. Madrid: Tecnos, 2002. p. 6. (Tradução Livre). 43 AQUINO, Tomas de. La Monarquia. 3. ed. Madrid: Tecnos, 2002. p. 6. (Tradução Livre).

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Não é, portanto, possível que um só homem chegue a conhecer todas estas coisas através de sua razão. Logo o homem necessita viver em sociedade, ajudar-se um ao outro, de maneira que cada um investigue uma coisa por meio da razão, um a medicina, um isto, outro aquilo. 44

Os homens em sociedade aprendem juntos e separados, obtendo vantagem de ambas

as maneiras. Podem abranger maior quantidade de conhecimento e dividir aquilo que for

necessário através da linguagem, conforme Tomás de Aquino: “é próprio do homem a

linguagem, por meio do qual uma pessoa pode comunicar totalmente à outra suas idéias” 45.

Por outro lado, pode o homem viver fora da sociedade. Porém, contrariamente a

natureza do homem, tenderia, então, a outra forma de vida, qual seja inferior ou superior ao

caráter do ser humano. Consoante Eustáquio Galán y Gutiérrez:

O ser animal político e social é um modo de existência próprio do homem, e se algum não se sentisse inclinado por natureza à união e convivência com seus semelhantes, o bem teria uma natureza superior ao homem, ou teria uma natureza infra-humana, fera e malvada, belicosa [...].46

Uma vez identificada essa situação, tem-se que é da natureza do homem ser social,

visto que fora da sociedade só existem os animais, ou o próprio Deus que, perfeito, não

necessita de qualquer vantagem que a sociedade proponha. Em sua Suma Teológica, Tomás

de Aquino escreve: “por duas razões pode o homem buscar a solidão: porque não resista à

companhia dos homens por causa da crueldade de sua alma, e esta é a conduta de bestas. Ou

pode buscá-la para entregar-se totalmente às coisas divinas, e esta razão o eleva para cima da

condição humana. Por isso disse o Filósofo que “quem se separa do trato dos homens ou é

bruto ou é um Deus”, ou seja, um homem divino”. 47

Em não sendo o homem Deus, persiste a sua característica de sociabilidade. Surge,

nesse momento, a comunidade.

John Finnis define que comunidade é “uma forma de unificar as relações entre os

seres humanos”48. A partir da união do homem e da mulher, a família, até a cidade, essas

44 AQUINO, Tomas de. La Monarquia. 3. ed. Madrid: Tecnos, 2002. p. 7. (Tradução Livre). 45 AQUINO, Tomas de. La Monarquia. 3. ed. Madrid: Tecnos, 2002. p. 7. (Tradução Livre). 46 GUTIÉRREZ, Eustaquio Galán y. La Filosofia Política de Sto. Tomás de Aquino. Madrid: Editorial Revista de Derecho Privado, 1945. p. 12. (Tradução Livre).

47 AQUINO, Santo Tomas de. Suma Teológica: Tomo X. Madrid: B.A.C., 1955. p. 852. (Tradução Livre). 48 FINNIS, John. Natural Law and Natural Rights. New York: Oxford University Press, 2000. p. 136. (Tradução Livre).

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relações de união49 são capazes de tornar o homem mais próximo de conquistar seu fim

último.

O homem somente é capaz de buscar seu fim último, em comunidade, na qual seu

dirigente governe guiado pelo o bem comum.

2.2 O Bem Comum

Em sua vasta obra, Tomás de Aquino nunca escreveu um tratado sobre a política,

tendo deixado seu pensamento em várias de suas obras, o que consoante Eustáquio Galán y

Gutiérres “levantará sempre um grande número de reparações e objeções a toda pretensão de

uma reconstrução sistemática da filosofia política de Aquino”50. Porém, muito há de se

encontrar, como as noções políticas basilares, dentre elas, a noção de bem comum.

Primeiramente, temos dado que o homem é o ser mais perfeito, e ao ser mais perfeito

qualifica Tomás de Aquino: “persona significa o mais perfeito que há em toda a natureza, ou

seja, o ser subsistente na natureza racional”51 , nesse sentido, ratifica Eustáquio Galán y

Gutiérrez: “ao ser personal corresponde o grau mais elevado na escala dos seres naturais, é o

mais perfeito de tudo que foi criado” 52. Assim, tende o homem à perfeição e é o único ser

capaz de buscá-la, o bem comum que será o seu fim último, qual seja, para Tomás de Aquino:

“a felicidade ou beatitude”53. Segue Fr. Carlos Soria, O. P.:

Este bem comum já não consiste exclusivamente [...] no bem comum social ou político, a felicidade humana temporal, senão também em outra série de bens comuns superiores a este, diversos analogicamente e que têm sua analogia suprema no bem comum por essência, que é Deus. 54

Tomás de Aquino estabelece que “o homem e os seres intelectuais alcançam seu fim

conhecendo e amando a Deus”55. Desse modo, a beatitude é a felicidade, o “bonum commune

49 FINNIS apresenta um estudo sobre as comunidades, definindo quatro ordens de relacionamentos na comunidade humana em: FINNIS, John. Natural Law and Natural Rights. New York: Oxford University Press, 2000.

50 GUTIÉRREZ, Eustaquio Galán y. La Filosofia Política de Sto. Tomás de Aquino. Madrid: Editorial Revista de Derecho Privado, 1945. p. 1. (Tradução Livre).

51 AQUINO, Santo Tomas de. Suma Teológica: Tomo II-III. Madrid: B.A.C., 1959. p. 108. (Tradução Livre). 52 GUTIÉRREZ, Eustaquio Galán y. La Filosofia Política de Sto. Tomás de Aquino. Madrid: Editorial Revista de Derecho Privado, 1945. p. 51. (Tradução Livre).

53 AQUINO, Santo Tomas de. Suma Teológica: Tomo VI. Madrid: B.A.C., 1956. p. 38. (Tradução Livre). 54 SORIA, Fr. Carlos, O. P., in AQUINO, Santo Tomas de. Suma Teológica: Tomo VI. Madrid: B.A.C., 1956. p. 21. (Tradução Livre).

55 AQUINO, Santo Tomas de. Suma Teológica: Tomo IV. Madrid: B.A.C., 1954. p. 117. (Tradução Livre).

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perfectum” do homem, que por ser racional, é o único, dentre os seres naturais, a poder buscar

Deus.

Além disso, verificou-se que o homem possui outra característica, qual seja, a

sociabilidade. O ser humano viverá em comunidade para, junto aos seus, caminhar em direção

à felicidade, seu fim último. Essa comunidade será unida em torno de seu bem comum.

Afirma Eustáquio Galán y Gutiérrez que “o homem há de viver, pois, sempre inserto em uma

comunidade, porque este é o modo indeclinavelmente seu de ser e existir” 56, ou seja, o

homem, como animal político, conforme também pensa Aristóteles. Em sociedade, observa

John Finnis, existem, inicialmente, os cidadãos e um líder, aquele que tem autoridade sobre

este grupo, e segue dizendo que:

[…] o que faz sentido nessas atribuições de existência é, em cada caso, a presença de alguns objetivos mais ou menos alcançados ou, mais precisamente, algumas concepções alcançadas do ponto de contínua cooperação. Este ponto, podemos chamar de bem comum.57

Essa comunidade é pensada por Tomás de Aquino, conforme destaca John Finnis

“civitas e seus sinônimos sãos usados consistentemente por Aquino significando toda grande

sociedade que é organizada politicamente por várias instituições, arranjos, e práticas

geralmente e razoavelmente chamadas ‘governo’ e ‘direito’” 58. Uma vez em sociedade, os

atos dos cidadãos serão regulados, e esse fato se torna importante. Essa regulamentação tem

que ser dada em forma de regras, leis, as quais têm um papel de levar o ser humano em

direção ao seu bem comum:

Esta paz e esta união, que vêm a ser mais formalmente o bem comum imanente da sociedade, é o objeto mais próprio da lei humana objetiva, que através dela encaminha a sociedade para uma abundância de bens e uma possibilidade de alcançá-los que permita aproximar os homens que a formam até uma beatitude ou felicidade terrena que somente na sociedade civil podem encontrar. [...] Daqui se deduz que a lei somente pode dar-se dentro de uma comunidade ou sociedade perfeita, pois somente esta tem um bem comum relativamente perfeito, pois visa ao homem em seu conteúdo integral, dentro de sua ordem.59

56 GUTIÉRREZ, Eustaquio Galán y. La Filosofia Política de Sto. Tomás de Aquino. Madrid: Editorial Revista de Derecho Privado, 1945. p. 57. (Tradução Livre).

57 FINNIS, John. Natural Law and Natural Rights. New York: Oxford University Press, 2000. p. 153. (Tradução Livre).

58 FINNIS, John. Aquinas: Moral, Political, and Legal Theory. New York: Oxford University Press, 1998. p. 220. (Tradução Livre).

59 SORIA, Fr. Carlos, O. P., in AQUINO, Santo Tomas de. Suma Teológica: Tomo VI. Madrid: B.A.C., 1956. p. 24. (Tradução Livre).

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Diante do conceito tomista de lei60, temos que somente em sociedades perfeitas

teremos leis justas, que possuam como base o bem comum. Conforme explica John Finnis:

Aquino […] deu à ‘comunidade perfeita’ uma descrição puramente formal: uma comunidade tão organizada que o governo e o direito dão toda a direção que propriamente pode ser dada por um governo humano e um direito coercitivo para promover e proteger o bem comum, que é, o bem da comunidade e, dessa maneira, de todos os seus membros e outros elementos próprios.61

Assim, a comunidade perfeita será aquela que ordena seus cidadãos para o bem

comum. Porém, existem muitos atos que levam o homem ao seu fim último, a comunidade

regulará somente aqueles relacionados à totalidade dos cidadãos.

Eustáquio Galán y Gutiérrez descreve “a adequação entre o ser de uma coisa e o fim

a que por natureza tende, se chama bem. A idéia do bem supõe, pois, no ser, complemento do

fim a que por natureza se dirige” 62. Assim, um bem pode levar uma pessoa para seu fim

último, sem que esse mesmo bem tenha essa característica para o resto dos cidadãos de uma

mesma comunidade, como em John Finnis:

[…] essa definição (bem comum) não afirma nem impõe que os membros de uma comunidade devem ter, todos, os mesmos valores ou objetivos (ou conjuntos de valores ou objetivos); isto implica somente que existe algum conjunto (ou conjuntos de conjuntos) de condições que precisam obter se cada um dos membros alcançar seus próprios objetivos. 63

Conclui-se que existem diferentes formas de bens. Esses bens podem ser comuns e,

ainda assim, não adequados à aplicação para toda a comunidade, visto que pode ser um bem

adequado a um grupo de pessoas (seria comum a este grupo), mas não a totalidade de

cidadãos, de forma que não deve ser imposto pelo Estado a todos.

Segue-se, então, que a comunidade tem bens comuns limitados, de acordo com John

Finnis: “não obstante a ‘integralidade’ das comunidades políticas, seus bens comuns

específicos são limitados” 64. Tomás de Aquino diferencia os bens privados individuais, os

bens comuns privados das famílias, os bens públicos e o bem comum, conforme Finnis:

60 TOMÁS DE AQUINO estabelece que “a lei não é mais que uma prescrição da razão, ordenada para o bem comum, promulgada por aquele que tem o cuidado da comunidade”, em: AQUINO, Santo Tomas de. Suma Teológica: Tomo VI. Madrid: B.A.C., 1956. p. 42. (Tradução Livre).

61 FINNIS, John. Aquinas: Moral, Political, and Legal Theory. New York: Oxford University Press, 1998. p. 220-221. (Tradução Livre).

62 GUTIÉRREZ, Eustaquio Galán y. La Filosofia Política de Sto. Tomás de Aquino. Madrid: Editorial Revista de Derecho Privado, 1945. p. 98. (Tradução Livre).

63 FINNIS, John. Natural Law and Natural Rights. New York: Oxford University Press, 2000. p. 156. (Tradução Livre).

64 FINNIS, John. Aquinas: Moral, Political, and Legal Theory. New York: Oxford University Press, 1998. p. 226. (Tradução Livre).

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O nome mais claro que Aquino dá pra esse bem comum limitado, especificamente para a comunidade política, é bem público {bonum publicum}. Diferencia-se do direito privado dos indivíduos e do bem comum privado das famílias e lares, ainda que a comunidade política (no mais usual relato de Aquino) é compreendida precisamente por indivíduos e famílias.65

Aqueles bens que abrangem um grupo comum de cidadãos, mas não todos – como,

por exemplo, a igreja, que é um bem que leva o homem ao seu fim último, mas não é

necessário a todos os homens – são chamados de bens públicos, visto não serem comuns a

todos os cidadãos da comunidade. Não devem, portanto, ser ordenados para a comunidade.66

Os bens privados individuais são aqueles com abrangência pessoal. De interesse

egoístico ou não, mas não são capazes de favorecer um grupo de cidadãos e, menos ainda,

toda uma comunidade. Semelhantemente, os bens comuns privados das famílias aplicam-se a

um grupo limitado e não a toda comunidade.

Assim, resta à comunidade, o bem comum que, por si só, é capaz de abarcar todos os

cidadãos. É limitado, visto a complexidade da sociedade e de suas relações. Sendo assim,

mais abrangente que o bem comum individual, mas logra ordenar os indivíduos aos seus fins

últimos. O bem comum do Estado é limitado em relação ao bem comum individual, porque

tem em seu escopo uma comunidade inteira. Desse modo, estabelece John Finnis um conceito

de bem comum adequado:

[…] um conjunto de condições que habilitam os membros de uma comunidade a alcançar por si mesmos objetivos razoáveis, ou para realizar razoavelmente para si mesmos o valor(es), para o fim, o qual eles têm razão para colaborar com os outros (positivamente e/ou negativamente) em uma comunidade. 67

Portanto, a noção de bem comum é a base de toda ordenação política de uma

sociedade e de um governo. A partir dela, é possível estabelecer quais características são

necessárias para ordenar-se uma determinada comunidade de cidadãos.

2.3 Império do Direito

Os cidadãos da comunidade devem ser ordenados para o bem comum. Para que isto

se torne possível, é necessário um sistema legal em que se garanta essa boa ordenação.

65 FINNIS, John. Aquinas: Moral, Political, and Legal Theory. New York: Oxford University Press, 1998. p. 226. (Tradução Livre).

66 Cf. FINNIS, John. Aquinas: Moral, Political, and Legal Theory. New York: Oxford University Press, 1998. p. 226.

67 FINNIS, John. Natural Law and Natural Rights. New York: Oxford University Press, 2000. p. 155. (Tradução Livre).

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Tomás de Aquino afirma que “os homens relacionam-se uns por atos exteriores com

os quais uns se comunicam com os outros, e esta comunicação pertence à justiça, que é

propriamente diretiva da sociedade humana”68. Segue esclarecendo que os atos humanos são

regulados pela justiça que é “dar a cada um o que lhe é devido”69, e que “a justiça visa

propriamente aos deveres que um homem tem com o outro”70. A partir da forma com que os

homens se relacionam, verificar-se-á a presença de justiça na comunidade.

Assim esclarece John Finnis que “o nome comumente dado para o estado de

obrigações no qual um sistema legal está legalmente bem formado é ‘o império do direito’” 71.

Esse sistema de leis trabalha com prescrições e punições. Assim, prescreve-se ou

proíbe-se um ato e, uma vez violada essa assertiva, é estabelecida uma punição, como

afirmam L. Robles e À. Chueca:

O Estado realiza seu fim ético por meio do direito. Mas, o direito na concepção tomista é um mínimo ético. Não prescreve os atos de todas as virtudes, nem proíbe os atos de todos os vícios; unicamente manda ou veda aqueles atos cujo valor ético tem um sentido imediatamente social. 72

Dessa forma, a partir da obediência às leis, será o homem guiado para seu fim

último. Uma vez cometido um ato em desacordo com o sistema, a punição correspondente

será em função do desvio do bem comum e não somente simples reação ao ato em si,

conforme esclarece John Finnis:

Não há uma proporção ‘natural’ absoluta do direito de punição: a ‘lei de talião’ (vida por vida, olho por olho, etc,) falha, por concentrar-se no conteúdo material ou nas conseqüências dos atos criminais, mais que no erro formal (injustiça) que consiste na inclinação de preferir um irrefreado auto-interesse ao bem comum, ou ainda, uma repugnância de fazer um esforço pra manter-se em um caminho comum.73

O império do direito possui como característica um conjunto de propriedades

pensadas como forma de garantir a justiça na sociedade em que se insere. Dentre elas

encontra-se, conforme demonstra Finnis:

Um sistema legal exemplifica o império do direito no âmbito [...] que (i) suas regras são perspectivas, não retroativas, e (ii) não é, de nenhum outro modo, impossível de concordar com elas; que (iii) essas regras são promulgadas, (iv) claras, e (v)

68 AQUINO, Santo Tomas de. Suma Teológica: Tomo VI. Madrid: B.A.C., 1956. p. 281. (Tradução Livre). 69 AQUINO, Santo Tomas de. Suma Teológica: Tomo VI. Madrid: B.A.C., 1956. p. 280. (Tradução Livre). 70 AQUINO, Santo Tomas de. Suma Teológica: Tomo VI. Madrid: B.A.C., 1956. p. 282. (Tradução Livre). 71 FINNIS, John. Natural Law and Natural Rights. New York: Oxford University Press, 2000. p. 270. (Tradução Livre).

72 ROBLES, Laureano; CHUECA, Ángel in AQUINO, Tomas de. La Monarquia. 3. ed. Madrid: Tecnos, 2002. p. XLIII. (Tradução Livre).

73 FINNIS, John. Natural Law and Natural Rights. New York: Oxford University Press, 2000. p. 264 (Tradução Livre).

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coerentes umas com as outras; que (vi) essas regras são suficientemente estáveis de modo a permitir que as pessoas sejam guiadas pelo conhecimento do conteúdo dessas regras; que (vii) a criação de decretos e ordens aplicáveis em situações relativamente limitadas é guiada por regras que são promulgadas, claras, estáveis e relativamente gerais; e que (viii) estas pessoas que têm autoridade de criar, administrar, e aplicar as regras em uma competência oficial (a) são responsáveis pela sua conformidade com regras aplicáveis ao seu cumprimento e (b) realmente administrem o direito consistentemente e de acordo com seu teor. 74

A comunidade deverá ser, então, guiada para seu bem comum, estruturada no

império do direito, sob a autoridade de um governante que atue de forma justa, como

apresenta-se, em Tomás de Aquino, tema de grande relevância política, a virtude do

governante.

2.4 As Virtudes do Governante

Já temos dito que o homem é um animal político, reúne-se em vista da busca do bem

comum. Dessa união em comunidades surge o Estado, como Eustáquio Galán y Gutiérrez

ensina: “para Santo Tomás [...] O fundamento constitutivo (do Estado) representa dentro de

suas concepções o impulso social do homem. O Estado é conjuntamente um produto do

instinto social e da indústria do homem”75. Tendo no Estado um fim, se faz necessário alguém

que guie o povo a alcançá-lo, como dizem L. Robles e À. Chueca que “se o bem comum é o

que exige constituirmos em sociedade e implantar sobre nós mesmos a autoridade ou o poder

que nos una e governe, é também ao mesmo tempo a razão de ser do Estado” 76.Estando,

portanto, na razão do Estado, a busca pelo bem comum, pressupondo que um governante

trabalhe nesse intuito, conforme descreve Fr. Alberto Colunga:

Havendo Deus criado o homem sociável para que, mediante a sociedade e a mútua ajuda, alcançasse melhor sua perfeição material e espiritual, veio a contribuir com isto à sociedade humana e a impor-lhe a obrigação de acatar a autoridade por qual tal sociedade tem que reger-se.77

Nesse sentido, Tomás de Aquino estabelece que “[...] a vida social não se dá se não

há a sua frente um que a dirija ao bem comum, pois a multiplicidade por si tende a muitas

74 FINNIS, John. Natural Law and Natural Rights. New York: Oxford University Press, 2000. p. 270. (Tradução Livre).

75 GUTIÉRREZ, Eustaquio Galán y. La Filosofia Política de Sto. Tomás de Aquino. Madrid: Editorial Revista de Derecho Privado, 1945. p. 15. (Tradução Livre).

76 ROBLES, Laureano; CHUECA, Ángel in AQUINO, Tomas de. La Monarquia. 3. ed. Madrid: Tecnos, 2002. p. XLIV. (Tradução Livre).

77 COLUNGA, Fr. Alberto, O. P. in AQUINO, Santo Tomas de. Suma Teológica: Tomo VI. Madrid: B.A.C., 1956. p. 275. (Tradução Livre).

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coisas, e um só à uma” 78. Sendo assim, num grande número de pessoas, mesmo tendo um

mesmo fim, guiar-se-á de maneiras diferentes, tornando-se necessário, portanto, um dirigente

capaz de dar um só rumo a todos no sentido desse mesmo fim, de forma a não desviá-los,

como segue afirmando o Doutor Angélico: “porque tudo quanto se ordena a um fim pode ser

conduzido por diferentes caminhos, precisa-se de um dirigente por meio do qual chegue

diretamente ao seu fim tudo o destinado a ele” 79.

Justificada a imprescindibilidade de um governante em uma comunidade ou Estado,

Tomás de Aquino passa a descrever os deveres do rei (ou governante), quais sejam:

Deve ocupar-se, em primeiro lugar, da sucessão e substituição dos homens que levaram a cabo as diversas tarefas, como o previu o divino governo nas coisas corruptíveis [...] Deve cuidar, em segundo lugar, de afastar a maldade de seus súditos com leis e preceitos, penas e prêmios, e conduzi-los a obrar virtuosamente, tomando o exemplo de Deus que legislou para os homens, premiando a quem as cumpre e castigando a quem as infringe. Em terceiro lugar deve cuidar o rei, que seus súditos permaneçam seguros contra seus inimigos exteriores. 80

Por outro lado, descreve Tomás de Aquino que “a força de quem preside

injustamente tende para o mal da multidão, quando converte o bem comum da sociedade

somente em benefício de si mesmo”.81 Ocorre, portanto, a corrupção do governante, quando o

bem comum da comunidade deixa de ser a base e o fim de seu governo. E segue Aquino:

“ademais neste regime se torna injusto quando, depreciado o bem da sociedade, tende ao bem

privado do dirigente. Logo, quanto mais se separe do bem comum, tanto mais injusto será o

regime”82.

Nesse sentido, refere Tomás de Aquino, que deverá o governante agir justamente, e

descreve a justiça legal, a qual “pode chamar-se virtude geral”83, a justiça que ordenará as

demais virtudes, guiando ao bem comum. Trata-se da relação do homem com a comunidade

“enquanto que aquele que serve a uma comunidade serve a todos os homens que nela estão”84.

A justiça legal, como ensina Fr. Teófilo Urdanoz, irá “ordenar os atos das demais virtudes”85,

na relação entre os indivíduos.

78 AQUINO, Santo Tomas de. Suma Teológica: Tomo III (2°). Madrid: B.A.C., 1959. p. 660. (Tradução Livre). 79 AQUINO, Tomas de. La Monarquia. 3. ed. Madrid: Tecnos, 2002. p. 5. (Tradução Livre). 80 AQUINO, Tomas de. La Monarquia. 3. ed. Madrid: Tecnos, 2002. p. 78. (Tradução Livre). 81 AQUINO, Tomas de. La Monarquia. 3. ed. Madrid: Tecnos, 2002. p. 18. (Tradução Livre). 82 AQUINO, Tomas de. La Monarquia. 3. ed. Madrid: Tecnos, 2002. p. 18. (Tradução Livre). 83 AQUINO, Santo Tomas de. Suma Teológica: Tomo VIII: Tratado de a Justicia. Madrid: B.A.C., 1956. p. 280. (Tradução Livre).

84 AQUINO, Santo Tomas de. Suma Teológica: Tomo VIII. Madrid: B.A.C., 1956. p. 279. (Tradução Livre). 85 URDANOZ, Fr. Teófilo, O. P., in AQUINO, Santo Tomas de. Suma Teológica: Tomo VIII. Madrid: B.A.C., 1956. p. 258. (Tradução Livre).

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Sobre a virtude, ensina Aquino que “os atos de todas as virtudes podem pertencer à

justiça, enquanto esta ordena o homem ao bem comum”86. À essa justiça87 estão relacionados

os atos dos governantes, conforme explica Fr. Teófilo Urdanoz “[...] justiça legal, [...]

concorda com as leis que ordenam os atos humanos ao bem comum”88. Da inclinação da

sociedade para um mesmo fim extrai-se esse conceito.

Deve, portanto, o governante buscar o bem comum na comunidade. Nesse sentido,

determina do que se trata este bem, Tomás de Aquino:

Pois o bem e a salvação da sociedade é que se conserve a sua unidade, a qual se chama paz, desaparecida, desaparece também a utilidade da vida social, e inclusive a maioria que discorda se volta com uma carga para si mesma. Logo, isto é o que há de tender sobre todo o dirigente da sociedade, a procurar a unidade na paz. 89

Sobre a paz, observa John Finnis que:

‘Paz’, naturalmente, não deve ser entendida superficialmente. No seu sentido mais completo, paz {pax} envolve não somente concórdia (ausência de discórdia, especialmente sobre aspectos fundamentais) e propenso consentimento entre uma pessoa ou grupo e outro, mas também harmonia {unio} entre os desejos individuais próprios. 90

Ao obter a paz, o governante tem condições de ordenar a comunidade para o bem

comum.

Mesmo no papel de comandante, o governante estará sujeito às leis de seu Estado: “o

príncipe não está isento da lei pelo que toca a sua força diretiva, e deve cumpri-la

voluntariamente, não por coação”91 conforme afirma Tomás de Aquino, como membro da

sociedade em que se insere e tendo ainda o papel de governante, o qual requer dupla

participação. JOHN FINNIS refere os três tipos de prudência estipulados por Tomás de

Aquino, como segue:

Eu deveria argumentar que eles são, e essa diferenciação é de Aquino, de três diferentes tipos de razoabilidade prática {prudentia}, individual, doméstica, e

86 AQUINO, Santo Tomas de. Suma Teológica: Tomo VIII. Madrid: B.A.C., 1956. p. 280. 87 TOMÁS DE AQUINO trata dos três tipos de justiça – geral e particular, que se divide em distributiva e comutativa – em seu Tratado da Justiça: AQUINO, Santo Tomas de. Suma Teológica: Tomo VIII. Madrid: B.A.C., 1956.

88 URDANOZ, Fr. Teófilo, O. P., in AQUINO, Santo Tomas de. Suma Teológica: Tomo VIII. Madrid: B.A.C., 1956. p. 258. (Tradução Livre).

89 AQUINO, Tomas de. La Monarquia. 3. ed. Madrid: Tecnos, 2002. p. 13. (Tradução Livre). 90 FINNIS, John. Aquinas: Moral, Political, and Legal Theory. New York: Oxford University Press, 1998. p. 227. (Tradução Livre).

91 AQUINO, Santo Tomas de. Suma Teológica: Tomo VI. Madrid: B.A.C., 1956. p. 188. (Tradução Livre).

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política, ajuda a elucidar o completo, complexo pensamento sobre a promoção da responsabilidade virtuosa e autoridade Estatal. 92

E segue, Finnis, explicando a importância da prudência política:

A política que é o mais alto {principalior, principalissima} conhecimento prático [...] Porque a prudentia dos dirigentes políticos deve compreender, ainda que sem substituição, a prudentia dos indivíduos e famílias, esta é a mais completa {perfectissima}, e assim pessoas que não são boas podem ser bons cidadãos [...], mas não podem ser bons dirigentes. 93

A virtude do governante é, portanto, a mais completa visto seu papel na sociedade

ser duplo: ordenar seu povo e agir individualmente, já que está sujeito às leis como os demais

cidadãos e ter, também, como pessoa que é, um fim último.

Após verificarem-se importantes conceitos políticos, na visão do Doutor Angélico,

faz-se possível o estudo das formas de governo e, dentre elas, qual significa, para Tomás de

Aquino, o melhor regime: o governo misto.

3 O GOVERNO MISTO EM TOMÁS DE AQUINO 3.1 As Formas de Governo, a Monarquia.

Em alguns textos, Tomás de Aquino refere a monarquia como uma forma principal

de governo, atestando sua superioridade. Em vista de seu conceito de bem comum, porém,

Aquino aponta, dentre as formas de governo existentes, as capazes de satisfazer as

necessidades da sociedade. Encontra-se nas obras de Tomás de Aquino, o estudo de várias

formas de governo. A partir de suas caracterizações, será possível averiguar qual regime

político será o melhor.

Como Aristóteles, Tomás de Aquino define seis diferentes regimes de governo,

porém, para a classificação destes, Aquino não toma somente o critério numérico quanto aos

governantes, mas também a condição de elegibilidade, como descrevem L. Robles e À.

Chueca:

A diferença numérica certamente existe. Existem outras diferenças pelo modo de exercer o poder. Se todos podem ser igualmente designados para o desempenho do poder, temos a democracia; se o critério para a designação dos governantes consiste

92 FINNIS, John. Aquinas: Moral, Political, and Legal Theory. New York: Oxford University Press, 1998. p. 235. (Tradução Livre).

93 FINNIS, John. Aquinas: Moral, Political, and Legal Theory. New York: Oxford University Press, 1998. p. 238. (Tradução Livre).

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em certa qualidade incomum e nem genérica que diga respeito a todos os demais, senão própria de alguns somente, temos a aristocracia; se o título a que se atende para a nomeação do governante é uma qualidade que não é comum a todos, nem própria sequer de um determinado setor do todo, senão que resulta exclusivamente sua, temos a monarquia.94

Diferencia-se, desse modo, de Aristóteles, adotando um terceiro critério, qual seja, a

sua tipologia das leis, como explica Eustáquio Galán y Gutiérrez: “[...] às leis que na

monarquia dá o príncipe, chamam-se constituiciones reales; às que na aristocracia dita a

minoria governante chamam-se senado-consultos, e plebiscitos às correspondentes ao regime

popular”95, e segue o autor afirmando que “se faz referência às formas retas de governo, pois

nas formas degeneradas não temos, na realidade, verdadeiras leis”96, restando impossibilitada

a sua classificação por este critério.

Assim, como em Aristóteles, têm-se, como formas de governo, a monarquia

(governo de um), a aristocracia (governo de poucos) e a democracia (governo de muitos).

Sobre as formas simples de governo, os filósofos da antiguidade já as rejeitam,

consoante José Antônio Giusti Tavares: “Platão e Aristóteles argumentam que as formas

políticas puras são intrinsecamente perversas; Políbio e seu notável discípulo e divulgador,

Cícero, que são corruptas ou corruptíveis”97, tendo apresentado, Aristóteles, a politéia, com

característica de constituição mista, como afere José Antônio Giusti Tavares: “[...] o governo

constitucional por excelência, a Politéia, constitui o resultado de uma complicada e versátil

engenharia constitucional cujo núcleo consiste em uma combinação entre oligarquia e

democracia”98. Assim como Políbio apresentara a primeira concepção de governo misto,

exemplificada na Constituição Romana.

Dentre essas formas simples de governo, Tomás de Aquino se detém no estudo da

monarquia. Contrariando o afirmado em sua Suma Teológica, Tomás de Aquino escreveu A

Monarquia, obra na qual conclui, após detalhada argumentação, que a monarquia é a melhor

forma de governo.

94 ROBLES, Laureano; CHUECA, Ángel in AQUINO, Tomas de. La Monarquia. 3. ed. Madrid: Tecnos, 2002. p. XLVI. (Tradução Livre).

95 GUTIÉRREZ, Eustaquio Galán y. La Filosofia Política de Sto. Tomás de Aquino. Madrid: Editorial Revista de Derecho Privado, 1945. p. 157-158. (Tradução Livre).

96 GUTIÉRREZ, Eustaquio Galán y. La Filosofia Política de Sto. Tomás de Aquino. Madrid: Editorial Revista de Derecho Privado, 1945. p. 158. (Tradução Livre). Ver definição de lei em TOMÁS DE AQUINO, referida anteriormente na nota 71.

97 TAVARES, José Antônio Giusti in FÉLIX, L. e GOETTEMS, M. Cultura Grega Clássica. Porto Alegre: Editora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 1989. p. 5-6.

98 TAVARES, José Antônio Giusti in FÉLIX, L. e GOETTEMS, M. Cultura Grega Clássica. Porto Alegre: Editora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 1989. p. 6.

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Mesmo tendo em mãos a Política de Aristóteles, na qual apresenta sua versão mista

de constituição como crítica às versões puras, Tomás de Aquino segue apreciando a

monarquia, tomando-a como descrevem L. Robles e À. Chueca:

Monarquia é para Tomás de Aquino aquela forma de governo na qual o poder total do Estado, a plenária potestas, encontra-se nas mãos de um só homem que exerce como gerens vicem totius multitudinis, como representante de toda a comunidade. [...] Esta monarquia pode ser eletiva ou sucessória. As duas formas são boas e tem suas vantagens.99

Dentro do conceito de monarquia, Eustáquio Galán y Gutiérrez aponta, ainda assim,

que “o regime sucessório tem a vantagem [...] de evitar o perigo – existente se a eleição é feita

por pessoas não virtuosas - de eleger a quem não mereça [...]”100. Tem, portanto, a monarquia

duas formas de atribuição do cargo de governante, sendo a hereditariedade o modo mais

seguro dentro de um regime por si só, considerado o melhor.

Em comparação com as demais formas de governo, Gutiérrez demonstra que para

Santo Tomás “[...] em uma multidão, cujos membros discordam em suas opiniões, não pode

formar-se uma unidade social, porque a união consiste, precisamente, em que todos

concorram para um mesmo fim”101. A partir dessa assertiva, considera que “por isso o fim

principal do governo político é a consecução da unidade social, e como para ele

evidentemente tem em si mais poder o que é um do que é múltiplo, resulta evidente também

que o governo de um só é preferível ao de muitos”102. Sendo assim, a monarquia é a melhor

forma de governo, seguida pela aristocracia e pela democracia.

As formas puras de governo, ainda que imperfeitas, sujeitam-se a um sistema de

normas (império do direito), posto que visam a um bem comum, como destaca Gutiérrez:

Nenhuma das formas retas de governo admitidas por Santo Tomás é absoluta, isto é, não está sujeita a limites, não necessita estar conforme princípios e normas, ainda no caso de que se trate da monarquia pura, onde um só homem concentra em sua mão a totalidade do poder e o exerce sem compartilha-lo com o povo ou com uma assembléia aristocrática.103

99 ROBLES, Laureano; CHUECA, Ángel in AQUINO, Tomas de. La Monarquia. 3. ed. Madrid: Tecnos, 2002. p. XLIX. (Tradução Livre).

100 GUTIÉRREZ, Eustaquio Galán y. La Filosofia Política de Sto. Tomás de Aquino. Madrid: Editorial Revista de Derecho Privado, 1945. p. 169. (Tradução Livre).

101 GUTIÉRREZ, Eustaquio Galán y. La Filosofia Política de Sto. Tomás de Aquino. Madrid: Editorial Revista de Derecho Privado, 1945. p. 161. (Tradução Livre).

102 GUTIÉRREZ, Eustaquio Galán y. La Filosofia Política de Sto. Tomás de Aquino. Madrid: Editorial Revista de Derecho Privado, 1945. p. 161. (Tradução Livre).

103 GUTIÉRREZ, Eustaquio Galán y. La Filosofia Política de Sto. Tomás de Aquino. Madrid: Editorial Revista de Derecho Privado, 1945. p. 159. (Tradução Livre).

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Nesse sentido, L. Robles e À. Chueca: “seu poder (do rei) deve ser regulado de

forma que não possa derivar até a tirania”104, de forma a inclinar o governante à ação virtuosa,

mantendo o Estado na direção do bem comum. A aplicação dos conceitos políticos vistos no

capítulo anterior (Império do Direito, Bem Comum e a Virtude do Governante), à monarquia

lhe confere a segurança e a estabilidade esperadas de um regime de governo.

Das formas boas, aferem-se as suas corrupções, as formas de governo que se

sucedem em caso de derrocada do regime. Assim tem-se em L. Robles e À. Chueca que:

Se nas formas retas de governo a preferência se toma da de maior para a de menor bondade – monarquia, aristocracia, democracia –, nas formas corruptas a ordem da valoração é inversa: a forma corrupta pior é a tirania de um só, e a menos mal é a democracia corrupta, enquanto que a oligarquia ocupa posição intermediária.105

Conclui Tomás de Aquino que “se se desvia o regime da justiça, convém mais que

existam muitos para que seja mais débil e se obstaculizem mutuamente. Logo, entre os

regimes injustos o mais tolerável é a democracia106, o pior a tirania”107. Em um regime

corrupto de muitos (demagogia), o mal é mais ameno que em uma tirania, pois, conta-se com

a falta de virtude dos governantes corruptos, que disputarão deslealmente, e não há outra

forma, pelo poder, enfraquecendo uns aos outros. Ao contrário da tirania, na qual o poder

conquistado com o golpe será concentrado somente na pessoa do tirano, o que o fortalecerá

ainda mais.

A monarquia, como melhor forma de governo, pode tornar-se perigosa quando

transformada em tirania, que é a pior das formas corruptas. Porém, Tomás de Aquino bem

argumenta que:

[...] um regime pluralista não se converte em uma tirania menos freqüentemente que o monárquico, senão talvez com mais freqüência. Pois, uma vez que tenha surgido a discórdia no pluralismo, as vezes um supera os outros e usurpa em seu exclusivo benefício o domínio da sociedade, coisa que pode ver-se com claridade pelo sucedido através da História.108

104 ROBLES, Laureano; CHUECA, Ángel in AQUINO, Tomas de. La Monarquia. 3. ed. Madrid: Tecnos, 2002. p. XLIX. (Tradução Livre).

105 ROBLES, Laureano; CHUECA, Ángel in AQUINO, Tomas de. La Monarquia. 3. ed. Madrid: Tecnos, 2002. p. XLVIII. (Tradução Livre).

106 TOMÁS DE AQUINO refere, aqui, democracia como sendo a forma corrupta do governo de muitos. A nomenclatura varia em algumas obras do autor, como por exemplo, quando usa a palavra tirania para qualquer forma corrupta de governo, e não somente para a forma corrupta da monarquia.

107 AQUINO, Tomas de. La Monarquia. 3. ed. Madrid: Tecnos, 2002. p. 19. (Tradução Livre). 108 AQUINO, Tomas de. La Monarquia. 3. ed. Madrid: Tecnos, 2002. p. 28. (Tradução Livre).

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Assim sendo, apesar da monarquia ter como respectiva derrocada a pior forma de

governo – a tirania, ainda assim, ela é mais adequada que a democracia, pois esta pode

corromper-se em tirania tanto, ou mais freqüentemente que aquela.

Após essas considerações, presentes em seu livro A Monarquia, muitas dúvidas

foram levantadas quanto a posição de Tomás de Aquino, favoravelmente a realeza.

A Monarquia é dedicada ao rei de Chipre, e por isso é tomada como possível ajuda a

este. Conforme expõe Jean-Pierre Torrel:

Mas o fato é que o conteúdo não corresponde em absoluto ao que Tomás diz em outros lugares quanto à melhor forma de governo. Enquanto o mais das vezes ele recomenda um governo misto, em que o rei colabora com uma aristocracia eleita pelo conjunto da população, aqui Tomás recomenda uma monarquia absoluta.109

Por ser uma obra inacabada, foram levantadas dúvidas sobre sua autenticidade, visto

a divergência de opiniões, hipótese que veio a ser descartada posteriormente. Conclui Torrel

que A Monarquia é obra que não deve ser lida fora do seu contexto, sozinha.110

Fato é que o autor assenta diferente posição na sua Suma Teológica, estabelecendo,

então, como melhor regime o Governo Misto.

3.2 O Governo Misto

Sobre o idealizador do conceito de Constituição Mista, expõe José Antônio Giusti

Tavares que:

Segundo Políbio, fora a constituição mista que permitira à República Romana desenvolver-se institucionalmente, respondendo, de um modo ao mesmo tempo adaptativo, inovador e integrador, aos desafios concernentes à ampliação da participação política da monarquia à oligarquia e desta à ascensão democrática.111

Diante de tal consideração sobre as vantagens do governo misto, se torna esclarecido

porque Tomás de Aquino o toma como melhor forma de governo, como afirma em sua Suma

Teológica, ao descrever os regimes de governo, “existe, finalmente, um regime que reúne

todos os anteriores, e que é o melhor”112, e continua:

109 TORREL, Jean-Pierre. Iniciação a Santo Tomás de Aquino. Sua pessoa e sua obra. 2. ed. São Paulo: Edições Loyola. 2004. p. 199.

110 Cf. TORREL, Jean-Pierre. Iniciação a Santo Tomás de Aquino. Sua pessoa e sua obra. 2. ed. São Paulo: Edições Loyola. 2004. p. 199-200.

111 TAVARES, José Antônio Giusti in FÉLIX, L. e GOETTEMS, M. Cultura Grega Clássica. Porto Alegre: Editora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 1989. p. 8.

112 AQUINO, Santo Tomas de. Suma Teológica: Tomo VI. Madrid: B.A.C., 1956. p. 174. (Tradução Livre).

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Tal é a boa constituição política, na qual se juntam a monarquia – pois um preside a nação –, a aristocracia – porque são muitos os que participam no exercício do poder – e a democracia, que é o poder do povo, pois são estes que exercem o poder podem ser eleitos do povo e é o povo quem os elege.113

Expõe claramente, o filósofo, sua posição concernente às formas de governo. E alega

sua prescrição, em detrimento da monarquia, ainda na Suma Teológica. Afirma que se

comparando a monarquia com o reino de Deus, que é um só, ainda sim não será melhor a

monarquia que o governo misto, pois, o homem não virtuoso se corrompe, transformando

mais rapidamente a monarquia em tirania, do que se governarem muitas classes de cidadãos,

com diferentes interesses, controlando-se reciprocamente, consoante Eustáquio Galán y

Gutiérrez “(a monarquia) seria (a melhor) se não se corrompesse, mas o grande poder que se

concede aos reis, e a fraqueza dos homens faz com que esse regime seja propenso à tirania, e

disso se dá a conveniência da forma mista”114.

No governo misto, dá-se a mistura das partes boas de cada forma pura de governo,

conforme ensina Gutiérrez, representam “[...] a monarquia, a unidade superior de ação e

direção; a aristocracia, a seleção dos governantes; a democracia, o imprescindível sentido

popular e comum, sem o qual todo regime político está de antemão perdido”115, porém, o

monarca considerado por Tomás de Aquino é, segundo Gutiérrez, “o monarca eletivo,

rodeado de conselheiros e agentes, surgidos todos do sufrágio universal”116, sendo, o sufrágio

universal, elemento democrático.

Considera Gutiérrez, que Tomás de Aquino não se referiu a um tipo concreto de

organização política. De acordo com a situação de determinada comunidade, determinado

regime pode adequar-se melhor que outro:

Santo Tomás não se referiu a nenhum tipo concreto de organização política, senão que sua formula alcança a toda forma de organização que – de acordo com uma série de circunstâncias e condições acidentais que em cada caso concreto é necessário atender, ainda quando não possam entrar em uma fórmula geral – combine, segundo as diretrizes indicadas, os três princípios de governo.117

E segue explicando que Aquino não é partidarista de uma só forma de governo:

113 AQUINO, Santo Tomas de. Suma Teológica: Tomo VI. Madrid: B.A.C., 1956. p. 486. (Tradução Livre). 114 GUTIÉRREZ, Eustaquio Galán y. La Filosofia Política de Sto. Tomás de Aquino. Madrid: Editorial Revista de Derecho Privado, 1945. p. 173-174. (Tradução Livre).

115 GUTIÉRREZ, Eustaquio Galán y. La Filosofia Política de Sto. Tomás de Aquino. Madrid: Editorial Revista de Derecho Privado, 1945. p. 174-175. (Tradução Livre).

116 GUTIÉRREZ, Eustaquio Galán y. La Filosofia Política de Sto. Tomás de Aquino. Madrid: Editorial Revista de Derecho Privado, 1945. p. 175. (Tradução Livre).

117 GUTIÉRREZ, Eustaquio Galán y. La Filosofia Política de Sto. Tomás de Aquino. Madrid: Editorial Revista de Derecho Privado, 1945. p. 176. (Tradução Livre).

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Porque uma forma de governo não é nunca boa em abstrato, senão boa para este ou para o outro povo determinado, boa para esta ou aquela circunstância histórica concreta, na qual, formas que em tempos foram convenientes deixam de sê-lo ao variarem as condições.118

E, finalmente, conclui Gutiérrez que:

Poderíamos dizer que a filosofia política de Santo Tomás tinha um sentido experimental: em seus textos podem buscar justificação todas as formas ou regimes, sejam quais forem, contanto que sejam exercidos justamente e para o bem do povo. Mas quando isto não ocorre, quando o bem comum é depreciado e em seu lugar se põe o interesse pessoal dos governantes, toda forma de governo se faz mal em geral e se converte em tirania.119

Em suma, o estudo político de Tomás de Aquino, estrutura-se em uma forma de

governo na qual se sustente a inclinação para o bem comum na comunidade. Sendo

genericamente mais adequado o governo misto, ainda que possa ser aconselhável para

determinado povo, algum outro regime.

Tomás de Aquino, uma vez posicionado a favor do Governo Misto, como um

exemplo dessa forma de governo passa a examinar do direito de Israel, ainda sob a lei antiga.

3.3 O Direito Constitucional de Israel

Tomás de Aquino tem na história de Israel e idealização da forma de governo misto.

A partir dela, ele trabalha “os preceitos da lei relativos à organização da autoridade, no direito

constitucional de Israel”120, demonstrando a importância da forma mista de governo, uma vez

que “o povo de Israel era regido por uma especial providência de Deus”121.

Apregoa Fr. Alberto Colunga a importância de “termos por conta a sábia suavidade e

condescendência com que Deus governou seu povo”122, e sendo esse governo feito por Deus,

dá-se sua magnitude.

O primeiro a receber a autoridade de Israel foi Moisés, que “recebeu de Deus a

missão de livrar seu povo e conduzi-lo à terra prometida, recebendo autoridade suprema, que

118 GUTIÉRREZ, Eustaquio Galán y. La Filosofia Política de Sto. Tomás de Aquino. Madrid: Editorial Revista de Derecho Privado, 1945. p. 178. (Tradução Livre).

119 GUTIÉRREZ, Eustaquio Galán y. La Filosofia Política de Sto. Tomás de Aquino. Madrid: Editorial Revista de Derecho Privado, 1945. p. 178. (Tradução Livre).

120 COLUNGA, Fr. Alberto, O. P. in AQUINO, Santo Tomas de. Suma Teológica: Tomo VI. Madrid: B.A.C., 1956. p. 466. (Tradução Livre).

121 AQUINO, Santo Tomas de. Suma Teológica: Tomo VI. Madrid: B.A.C., 1956. p. 486. (Tradução Livre). 122 COLUNGA, Fr. Alberto, O. P. in AQUINO, Santo Tomas de. Suma Teológica: Tomo VI. Madrid: B.A.C., 1956. p. 466. (Tradução Livre).

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podemos chamar ditatorial”123. Porém, a autoridade exercida por Moisés é paternal e guiada

por Deus. Afirma Fr. Alberto Colunga, na introdução da Suma Teológica, que “a autoridade

do chefe da tribo é suprema, sobretudo na guerra. Mas a exerce de forma paternal, procurando

proteger a tribo e todos os indivíduos, fomentar a paz entre eles, defendê-los de toda

injúria”124.

Moisés, como autoridade suprema, tinha poder para julgar todos casos ocorridos em

seu povo, porém, sabiamente o delegou aos membros da comunidade: “elegeu dentre todo o

povo, homens capazes, que pôs sobre o povo, como chefes de milhar, de centena, de

cinqüenta e de dezena. Eles julgavam o povo a todo o tempo e levavam a Moisés os assuntos

graves, resolvendo por si mesmos todos os menores”125.

Ensina o Doutor Angélico que a boa constituição deve visar duas coisas: “a primeira,

que todos tenham alguma parte no exercício do poder, pois assim se alcança a melhor paz do

povo, e que todos amem essa constituição e a guardem, como disse a ‘Política’. A segunda

visa a espécie de regime e a forma constitucional do poder supremo”126, e continua explicando

que:

A melhor constituição em uma cidade ou nação é aquela em que um é o depositário do poder e tem a presidência sobre todos, de tal sorte que alguns participem desse poder e, contudo, esse poder seja de todos, enquanto que todos podem ser eleitos e tomem parte na eleição.127

E exemplifica Aquino que:

Tal foi a constituição estabelecida pela lei divina, pois Moisés e seus sucessores governaram o povo, gozando de um poder singular, que equivalia a uma espécie de monarquia. Depois, eram eleitos setenta e dois anciões para exercer o poder [...] e isto era a aristocracia. E à democracia pertenciam os que eram eleitos dentre todo o povo [...] e eram eleitos pelo povo.128

Desse modo, dá-se clara a constituição mista no governo de Moisés.

Semelhantemente ocorre o governo de Josué, designado por Moisés como seu sucessor,

afirma Fr. Alberto Colunga: “tampouco Josué está só. [...] aqui também temos a continuação

123 COLUNGA, Fr. Alberto, O. P. in AQUINO, Santo Tomas de. Suma Teológica: Tomo VI. Madrid: B.A.C., 1956. p. 467. (Tradução Livre).

124 COLUNGA, Fr. Alberto, O. P. in AQUINO, Santo Tomas de. Suma Teológica: Tomo VI. Madrid: B.A.C., 1956. p. 466. (Tradução Livre).

125 COLUNGA, Fr. Alberto, O. P. in AQUINO, Santo Tomas de. Suma Teológica: Tomo VI. Madrid: B.A.C., 1956. p. 467. (Tradução Livre).

126 AQUINO, Santo Tomas de. Suma Teológica: Tomo VI. Madrid: B.A.C., 1956. p. 485. (Tradução Livre). 127 AQUINO, Santo Tomas de. Suma Teológica: Tomo VI. Madrid: B.A.C., 1956. p. 486. (Tradução Livre). 128 AQUINO, Santo Tomas de. Suma Teológica: Tomo VI. Madrid: B.A.C., 1956. p. 486. (Tradução Livre).

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dessa espécie de monarquia, ou ditadura paternal e teocrática, unida a aristocracia e

democracia tradicionais do povo”129.

Posteriormente, tem-se em Israel a monarquia de Saúl, advinda da “necessidade de

expulsar os novos inimigos (filisteos)”130. Saindo, Israel, temporariamente, do regime misto

de governo.

O sucessor de Saúl foi David. Esclarece, mais uma vez, Fr. Alberto Colunga que “a

constituição que David deu ao seu reino parece ter respeitado bastante a antiga organização de

Israel, e assim os chefes das tribos e famílias continuaram desfrutando do prestígio que antes

tinham”131. Junto ao reinado de David, o reinado de seu filho, Salomão, “representam o

apogeu da história de Israel”132.

Compreendida a idealização, feita por Tomás de Aquino, do governo misto na

história de Israel, podemos observar que durante esse período em que o povo hebreu possuiu

como regime a forma mista de governo, essa nação foi próspera.

Uma vez que essa forma de governo do povo hebreu tem caráter misto e logrou

prosperidade, Tomás de Aquino reconhece isso ao apresentar a história de Israel e,

concomitantemente, posicionar-se favoravelmente ao Governo Misto, em sua Suma

Teológica.

CONCLUSÃO

Foram tomados, nesse trabalho, vários conceitos políticos que aparecem ao longo da

obra de Tomás de Aquino, para construir uma idéia do que se constitui uma boa forma de

governo.

No primeiro capítulo, foram demonstradas as vantagens do governo misto, o que

somente pode ser visto ainda na antiguidade por causa das teorias políticas aristotélicas, que

levaram Políbio a uma análise da constituição romana, podendo este concluir favoravelmente

em relação às vantagens deste regime, assim como também vimos em Cícero.

129 COLUNGA, Fr. Alberto, O. P. in AQUINO, Santo Tomas de. Suma Teológica: Tomo VI. Madrid: B.A.C., 1956. p. 467. (Tradução Livre).

130 COLUNGA, Fr. Alberto, O. P. in AQUINO, Santo Tomas de. Suma Teológica: Tomo VI. Madrid: B.A.C., 1956. p. 468. (Tradução Livre).

131 COLUNGA, Fr. Alberto, O. P. in AQUINO, Santo Tomas de. Suma Teológica: Tomo VI. Madrid: B.A.C., 1956. p. 468. (Tradução Livre).

132 COLUNGA, Fr. Alberto, O. P. in AQUINO, Santo Tomas de. Suma Teológica: Tomo VI. Madrid: B.A.C., 1956. p. 468. (Tradução Livre).

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Aristóteles evidenciou-se ao escrever a Política, uma teoria bastante avançada. Tendo

analisado várias constituições, pôde concluir por uma nova forma de governo. Assim como o

governo misto mostrou-se capaz de ser estável por possibilitar que vários setores da sociedade

participem da administração, trabalhando por seus interesses e controlando uns aos outros de

forma a garantir seus interesses. Dessa forma, a busca pelo seu fim, a prosperidade, o bem

comum daquela comunidade restará preservado.

Ao longo do segundo capítulo, foram construídos conceitos políticos importantes da

política de Tomás de Aquino. Uma vez que o homem tende a unir-se, formará uma

comunidade, que deverá ter um líder. Esse líder, ou líderes, formará um governo. Em sua

obra, Aquino estudou profundamente a virtude e, partindo do conceito de justiça legal,

vinculou a responsabilidade desse governante em agir virtuosamente, para assim levar aquela

comunidade ao bem comum.

Nesse sentido, dá-se o papel do governante. De extrema importância, deverá

conduzir a comunidade, legislar de forma a não se desviar do bem comum.

Conseqüentemente, a forma de governo em que se insere esse governante deverá estabelecer

tais limites, além de ser estável.

Das formas simples de governo, Tomás de Aquino concluiu que a monarquia é a

melhor; porém, dentre todas, opta pelo governo misto.

Em sua obra a Monarquia, Aquino defendeu a monarquia, de forma que surge a

dúvida de qual seria sua posição ou até quanto à autoria da obra. Comprovada sua

autenticidade, resta a solução de que esse livro, escrito ao rei de Chipre, foi somente um

aconselhamento ao monarca.

Do que se conclui que, por lograr maior estabilidade e participação do povo, o

governo misto é defendido pelo filósofo. Essa forma de governo é mais competente para levar

sua comunidade ao bem comum, tem menos chances de se corromper e transformar-se em

uma tirania.

Por outro lado, podemos aferir que se uma constituição consegue lograr estabilidade,

guiar-se para o bem comum, terá sucesso. Mesmo sendo uma monarquia, Tomás de Aquino

vê a possibilidade de o rei de Chipre, a quem dedica sua obra – Monarquia, conseguir fazer

um governo próspero. Afirma que a monarquia é a melhor forma de garantir um bom governo

para esse país.

Assim, percebemos no filósofo a preponderância dos conceitos vistos no segundo

capítulo, como a virtude do governante e o guiar-se ao bem comum, em relação à forma de

governo em si, como fez na Monarquia. Além de apoiar o regime, apontou uma alternativa.

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Resta clara, contudo, a posição do filósofo favoravelmente ao governo misto, como

forma teoricamente mais apurada. Em sua forma pura e não aplicada, independente de casos

particulares, o governo misto se mostra vantajoso sobre os demais. É exemplificado na

constituição de Israel. Por conseguinte, vê-se sua relevância no pensamento de Aquino e é

firmemente prescrito em seu Tratado da Lei, na Suma Teológica. Entretanto, é uma assertiva

que não deve ser tomada de forma absoluta, pois poderá variar se aplicada ao caso concreto.

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