o brasil e o gatt (1973-1993): unidades decisórias e política externa
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Busca-se argumentar na dissertação que o Itamaraty não teve o monopóliodecisório na definição da atuação brasileira no GATT entre o período 1973-1993.Outros órgãos estatais participaram, junto com o Itamaraty, na determinação e execuçãoda posição do país nas negociações multilaterais. Na maioria das vezes, a interação eracooperativa; havia, no entanto, instâncias nas quais ocorriam conflitos entre aspreferências do Palácio dos Arcos com as de outras agências governamentais. Nestescasos, o Itamaraty geralmente saía perdendo a batalha burocrática pelo fato de ainstituição não ter o controle sobre as políticas domésticas relevantes, tornando-oespecialmente frágil nas disputas, mesmo quando detinha o poder de coordenarinternamente a definição da posição brasileira para as negociações externas. Para avaliaressa hipótese, foram analisados três casos nos quais o Itamaraty e outros órgãosdomésticos tinham preferências distintas sobre qual deveria ser a posição externabrasileira: as negociações tarifárias da Rodada Tóquio e da Rodada Uruguai; ocontencioso dos subsídios e a negociação do Código de Subsídios e DireitosCompensatórios da Rodada Tóquio; e as negociações agrícolas da Rodada Uruguai. Emtodos os casos a posição final brasileira não foi formulada e executada da formadesejada pelo Palácio dos Arcos.TRANSCRIPT
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Rogrio de Souza Farias
O Brasil e o GATT (1973-1993): unidades decisrias e poltica externa
Braslia 2007
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Rogrio de Souza Farias
O Brasil e o GATT (1973-1993): unidades decisrias e poltica externa
Dissertao submetida ao Instituto de Relaes Internacionais da Universidade de Braslia, como parte dos requisitos necessrios obteno do ttulo de Mestre em Relaes Internacionais. rea de concentrao: Histria das Relaes Internacionais Orientador: Prof. Dr. Antnio Carlos Lessa
Braslia 2007
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Rogrio de Souza Farias O Brasil e o GATT (1973-1993): unidades decisrias e poltica externa
Dissertao submetida ao Instituto de Relaes Internacionais da Universidade de Braslia, como parte dos requisitos necessrios obteno do ttulo de Mestre em Relaes Internacionais. rea de concentrao: Histria das Relaes Internacionais Orientador: Prof. Dr. Antnio Carlos Lessa
Banca Examinadora:
__________________________________________ Prof. Dr. Antnio Carlos Lessa
Instituto de Relaes Internacionais Universidade de Braslia
(orientador)
__________________________________________ Prof. Dr. Amado Luiz Cervo
Instituto de Relaes Internacionais Universidade de Braslia
__________________________________________
Prof. Dr. Paulo Roberto de Almeida UNICEUB Centro Universitrio de Braslia
__________________________________________ Prof. Dr. Eiiti Sato (suplente)
Instituto de Relaes Internacionais Universidade de Braslia
Data de aprovao: 22 de novembro de 2007 .
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Agradecimentos
Ao professor Antnio Carlos Lessa, orientador e amigo, pela pacincia em lidar
com meus erros e dvidas, pelos conselhos e ensinamentos ao longo dos tortuosos
caminhos da graduao e do mestrado. Outros professores tiveram importante papel
durante a formulao dos projetos, nas disciplinas e nos seminrios: Ana Flvia Barros,
Amado Cervo, Carlos Pio, Eduardo Viola, Norma Breda, Maria Izabel Vallado, Paulo
Roberto de Almeida e Virglio Arraes. Sou muito grato, tambm, pela ajuda dos
funcionrios de diversas instituies que, direta ou indiretamente, contriburam com os
meus esforos de pesquisa. Destaco, aqui, a CAPES e a Secretaria da Ps-Graduao do
Instituto de Relaes Internacionais da Universidade de Braslia Odalva, Wanderlei,
Maria Telma e Celi so anjos que facilitaram as agruras da vida acadmica.
Funcionrios do Ministrio das Relaes Exteriores, do CPDOC/Fundao Getlio
Vargas e Senado Federal tambm tiveram papel relevante na busca de fontes para o
trabalho. Vrias amigos me instigaram a ter lentes mais agudas na pesquisa: Carlos
Augusto Rollemberg, Luiz Guilherme de Castro, Matias Spektor e Raphael Cunha.
Outros tiveram papel relevante na busca de diversas fontes, como Jlio Csar Chaves e
Erica Barroso. Agradeo a todos pela ajuda e pacincia.
Em minha vida pude contar com o apoio irrestrito de meus pais e da minha irm
aos meus estudos. Sempre fizerem de tudo para criar o melhor ambiente possvel para
eu dar conta da difcil tarefa de pesquisa, mesmo quando isso implicava projetos
mirabolantes e quantidade insustentvel de papel acumulado nos cmodos da casa.
Marianne, minha namorada, foi igualmente relevante para me incentivar a chegar ao fim
dessa jornada leu e corrigiu diversos trechos da dissertao, alm de ter feito o
sacrifcio de acompanhar-me diariamente biblioteca.
Parte do segundo captulo da dissertao foi apresentada no encontro da
ANPOCS de 2006 (Farias: 2006). Uma verso modificada do quarto captulo foi
apresentada no primeiro encontro da ABRI, em julho de 2007. Agradeo aos vrios
professores que leram e comentaram esses trabalhos, em especial o professor Tullo
Vigevani e a professora Flvia de Campos Mello.
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Resumo
Busca-se argumentar na dissertao que o Itamaraty no teve o monoplio
decisrio na definio da atuao brasileira no GATT entre o perodo 1973-1993.
Outros rgos estatais participaram, junto com o Itamaraty, na determinao e execuo
da posio do pas nas negociaes multilaterais. Na maioria das vezes, a interao era
cooperativa; havia, no entanto, instncias nas quais ocorriam conflitos entre as
preferncias do Palcio dos Arcos com as de outras agncias governamentais. Nestes
casos, o Itamaraty geralmente saa perdendo a batalha burocrtica pelo fato de a
instituio no ter o controle sobre as polticas domsticas relevantes, tornando-o
especialmente frgil nas disputas, mesmo quando detinha o poder de coordenar
internamente a definio da posio brasileira para as negociaes externas. Para avaliar
essa hiptese, foram analisados trs casos nos quais o Itamaraty e outros rgos
domsticos tinham preferncias distintas sobre qual deveria ser a posio externa
brasileira: as negociaes tarifrias da Rodada Tquio e da Rodada Uruguai; o
contencioso dos subsdios e a negociao do Cdigo de Subsdios e Direitos
Compensatrios da Rodada Tquio; e as negociaes agrcolas da Rodada Uruguai. Em
todos os casos a posio final brasileira no foi formulada e executada da forma
desejada pelo Palcio dos Arcos.
Palavras-chave: processo decisrio, poltica externa brasileira, GATT, Rodada Tquio,
Rodada Uruguai.
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Abstract
It is argued in this dissertation that Itamaraty the Brazilian Ministry of Foreign
Affairs did not have the decision making control over the Brazilian position in the
GATT negotiations during 1973-1993. Other governmental agencies participated with
Itamaraty in the definition and implementation of the countrys position in the
multilateral negotiations. Usually the interaction was cooperative; nonetheless, there
were instances in which conflict emerged between Itamaratys preferences and other
governmental agencies predilections. In these cases, the former usually lost the
bureaucratic battle because it did not have the control of relevant domestic policies. To
evaluate that hypothesis, three cases were scrutinized in which Itamaraty and other
domestic agencies had distinct preferences about what should had been the external
policy of Brazil: the tariff negotiations of the Tokyo and Uruguay Rounds; the subsidies
controversy and the negotiations of the Subsidies and Countervailing Measures Code of
the Tokyo Round; and the negotiations over agriculture in the Uruguay Round. In all the
examined cases the Brazilian position was not devised and implemented in the way
Itamaraty wanted.
Key words: Decision making, Brazilian foreign policy, GATT, Tokyo Round, Uruguay
Round.
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Sumrio Introduo...................................................................................................................10
Fontes .....................................................................................................................19 Metodologia e Teoria ..............................................................................................24
Captulo 1: o(s) processo(s) decisrio(s) da participao brasileira no GATT ..............28 1.1 Unidade Decisria .............................................................................................29 1.2 nico ou mltiplos atores? ................................................................................30 1.3 Especializao funcional em grupos decisrios..................................................34 1.4 Diviso de tarefas e constrangimentos ao Itamaraty ...........................................36 1.5 Negociaes no GATT impactos no processo decisrio domstico .................38
1.5.1 Caractersticas do processo de negociao ..................................................38 1.5.2 Assunto (issue) ...........................................................................................40 1.5.3 Estgio........................................................................................................44 1.5.4 Oportunidades de ao................................................................................48
1.6 Intensidade perceptual, contexto e fatores domsticos........................................51 1.7 Tipologias de Processo Decisrio ......................................................................54
1.7.1 Delbragen ...................................................................................................55 1.7.2 rgos domsticos (formulao e execuo)...............................................56 1.7.3 Itamaraty (sem consultas) ...........................................................................58 1.7.4 Itamaraty (com consultas) ...........................................................................60 1.7.5 rgos domsticos (s formulao) ............................................................62 1.7.6 Mltiplos atores (poltica-burocrtica) ........................................................65
1.8 Concluso..........................................................................................................73 Captulo 2: a diplomacia da derrogao ou a arte da excluso......................................75
2.1 Negociaes tarifrias no GATT........................................................................76 2.1.1 Da entrada e at a reentrada do Brasil no GATT (1947-1958): ....................78 2.1.2 Rodada Kennedy.........................................................................................81
2.2 Renegociao do Waiver e Rodada Tquio........................................................84 2.3 Rodada Uruguai............................................................................................... 101 2.4 Concluso........................................................................................................ 114
Captulo 3: os limites da promoo comercial ........................................................... 117 3.1 Um modelo complementar: a dependncia competitiva das exportaes .......... 119 3.2 A formulao da posio externa brasileira no contencioso dos subsdios ........ 124 3.3 Tentativas de controle do poder de coordenao .............................................. 146 3.4 Concluso........................................................................................................ 155
Captulo 4: o Brasil e as negociaes agrcolas da Rodada Uruguai ........................... 157 4.1 A evoluo da posio brasileira em agricultura .............................................. 158
4.1.1 Idias institucionalizadas no Itamaraty...................................................... 170 4.1.2 Coalizes e relacionamentos bilaterais ...................................................... 173 4.1.3 Antecedentes: agricultura em negociaes anteriores ................................ 176 4.1.4 O papel da Misso Brasileira em Genebra................................................. 178 4.1.5 Itamaraty e unidades decisrias no tema agrcola ...................................... 179
4.2 Modelo de desenvolvimento econmico .......................................................... 184 4.3 Crises de abastecimento e importao de alimentos ......................................... 188 4.4 Polticas agrcolas............................................................................................ 201
4.4.1 Constituinte/ Lei Agrcola......................................................................... 205 4.4.2 Poltica tarifria e restries quantitativas ................................................. 207 4.4.3 Subsdios .................................................................................................. 210
4.5 Processo decisrio e o Ministrio da Agricultura ............................................. 214 4.6 Agricultores..................................................................................................... 224
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4.7 Concluso:....................................................................................................... 229 Concluses................................................................................................................ 232 Bibliografia............................................................................................................... 243
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Sumrio de figuras e tabelas: Figura 1: Planejamento inicial de consulta...................................................................23 Figura 2: Variveis que impactaram no processo decisrio ..........................................55 Figura 3: Delbragen como unidade decisria e executora ............................................55 Figura 4: rgos domsticos como unidade de deciso e execuo .............................57 Figura 5: Itamaraty como unidade decisria (sem consulta).........................................59 Figura 6: Itamaraty como unidade decisria (com consulta) ........................................60 Figura 7: Outros rgos como unidades decisrias (mas sem execuo) ......................63 Figura 8: Processo de poltica-burocrtica ...................................................................65 Figura 9: Unidade de Negociao................................................................................66 Figura 10: Grupos de Trabalho da Unidade de Negociao..........................................69 Tabela 1: Calendrio de eliminao das medidas de suporte. ..................................... 144 Tabela 2: Mdia da tarifa aplicada (%) em agricultura:.............................................. 210
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Introduo
O Brasil tem atuado, nas ltimas dcadas, de forma bastante ativa nas
negociaes do sistema GATT/OMC. Em um importante exame sobre a poltica externa
do pas, fala-se at que, hoje, a participao em negociaes comerciais o principal
veculo do exerccio de liderana brasileira no mundo (Studies: 2005, 121 e 4). As
declaraes das autoridades governamentais corroboram a percepo de centralidade
que esse domnio tem atualmente para o pas.1
Seguindo essa tendncia, a academia naturalmente d cada vez mais ateno ao
tema. Seminrios so promovidos, livros so publicados, papis de trabalho so
apresentados: um exerccio que soma crescentes pesquisadores, principalmente os mais
jovens. Eu fui, desde o final da graduao, um desses imberbes curiosos. Intrigava-me
principalmente o passado; a participao brasileira em mais de quatro dcadas de
negociaes internacionais no GATT parecia no ter sido examinada exaustivamente
pelos trabalhos disponveis. Observando essa lacuna, o meu desafio foi, a partir de
ento, tentar contribuir de alguma forma para esse crescente campo de estudo.
A minha pesquisa iniciou-se com uma preocupao puramente histrica de utilizar
as fontes recm disponveis sobre a Rodada Tquio e a Rodada Uruguai para delimitar
melhor os contornos da participao brasileira nas duas negociaes.2 Na elaborao
dos projetos iniciais, a premissa central que me guiava era a de que o Itamaraty era o
nico ator na definio da posio brasileira nas negociaes. Como unidade decisria,
ele tinha um conjunto de caractersticas cultura, crenas, procedimentos operacionais
que redundava em um tipo especfico de ao por parte do Brasil. No fundo, o que eu
desejava demonstrar era o efeito independente de caractersticas do aparelho
administrativo na poltica externa brasileira.3
Inicialmente, a perspectiva de centralidade no Itamaraty parecia condizente com as
impresses que eu colhia na pesquisa. Na literatura sobre a participao brasileira em
negociaes comerciais internacionais, excluindo os casos que apontam para
1 Discurso do Presidente Eleito Luiz Incio Lula da Silva proferido no Clube de Imprensa Nacional dos Estados Unidos durante visita a Washington. Washington, E.U.A., 10 de dezembro de 2002; Discurso do Presidente da Repblica, Luiz Incio Lula da Silva, no Conselho de Relaes Internacionais (Council on Foreign Relations). Nova York, 25 de setembro de 2003; Aula Magna do Senhor Ministro das Relaes Exteriores, Embaixador Celso Amorim, no Instituto Rio Branco, A diplomacia do Governo Lula. Braslia, 10 de abril de 2003. Fonte: www.mre.gov.br. Acesso: 5 de maio de 2007 2 Refiro-me aos acervos de Paulo Nogueira Batista, Marclio Marques Moreira e Azeredo da Silveira, depositados no CPDOC/FGV. 3 Preocupao tirada de (Egberg: 1999, 156).
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explicativas exgenas, no h um esforo sistemtico de identificao da fonte da
agncia externa brasileira nas negociaes fora do Itamaraty geralmente j se parte
da premissa que o rgo o formulador da posio do pas ou o Estado no comporta
divises internas significativas. Um exemplo importante conjunto dos trabalhos de
Marcelo Paiva de Abreu. Nos relevantes textos de sntese da posio brasileira no
GATT, o autor sempre foca a ao do Brasil nas negociaes e no quem, como e
quando a formulou internamente. No mximo, ressalta conflitos entre o Ministrio da
Fazenda e o Itamaraty nos episdios de definio da lista de oferta tarifria e assinatura
do Cdigo de Subsdios e Medidas Compensatrias na Rodada Tquio, alm do caso da
posio brasileira na definio da agenda da Reunio Ministerial de 1982 (Abreu: 1996,
206; 1998, 6-7, 23-4).4 Os textos do autor, assim, procuram apresentar aos leitores uma
sntese posio brasileira no GATT e no como ela foi formulada.
J na dissertao de mestrado de Flvia de Campos Mello, orientada por Marcelo de
Paiva Abreu, tambm h o mesmo foco na ao brasileira durante os primeiros cinco
anos da Rodada Uruguai, sem se deter nos processos de formulao da posio do pas
a dissertao foi redigida em um perodo no qual ainda no estavam disponveis
fontes governamentais sobre as negociaes, sendo a avaliao da posio brasileira
muitas vezes prejudicada por essa escassez de fontes.5
Na tese de doutorado de Ricardo Caldas, por outro lado, h um claro propsito de
examinar o processo decisrio da participao brasileira no GATT, particularmente no
tpico de servios da Rodada Uruguai. O autor afirma, nesse trabalho, que o Itamaraty
no s representa o pas externamente como formula a posio brasileira nessas
negociaes (Caldas: 1998, xxi). Na anlise, ele utiliza a premissa que o Itamaraty tinha
o monoplio decisrio outros Ministrios no detinham fora suficiente para intervir,
com a exceo do Ministrio da Fazenda (Caldas: 1998, 41-2). Caldas afirma, ainda,
que mesmo quando houve um processo de consultas entre o Itamaraty e outros
ministrios, era o primeiro que tomava a deciso final (Caldas: 1998, 44). Para o
autor, foi a luta entre faces e personalidades dentro do Itamaraty que teve um peso
4 O autor no consultou, para realizar esses esforos de snteses, os documentos oficiais do Itamaraty do perodo posterior a 1948 (Abreu: 1996, 215). 5 A anlise da posio brasileira no Grupo de Cairns, por exemplo, realizada tendo como suporte somente literatura secundria e um documento da Diviso de Poltica Comercial de 1987 (Mello: 1992, 106).
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considervel no processo decisrio da participao brasileira na Rodada Uruguai,
notadamente no caso de servios.6
O trabalho mais recente sobre a ao brasileira no GATT a dissertao de
Feliciano S Guimares. Ao analisar a evoluo da posio brasileira no GATT, o autor
vai criticar abordagens que enfatizam condicionantes domsticos na explicao da
participao brasileira na Rodada Uruguai, defendendo a posio inversa como o
cenrio especfico da Rodada [Uruguai] condicionou as possibilidades brasileiras e a
reorientao dos interesses nacionais (Guimares: 2005, 18). Dessa maneira, apesar de
em certos momentos apresentar dinmicas internas como variveis explicativas, o autor
ressalta a opo pelos elementos externos como variveis bsicas (Guimares: 2005,
184). No de se espantar, portanto, que aqui no haja uma considerao adequada
sobre a formulao da posio brasileira nas negociaes. A nica tentativa de
relacionar a posio brasileira com o processo decisrio domstico sem partir da
premissa implcita ou explcita de monoplio do Itamaraty a dissertao de mestrado
de Ana Paula Soares Felipe tentativa inicial de mapear os atores governamentais que
participam das negociaes agrcolas da Rodada Doha.7
Percebe-se, portanto, que, apesar das diferenas de enfoque na literatura, no h,
ainda, um exerccio mais sofisticado que analise o processo de formulao da posio
brasileira. Mais, corrente a falta de interesse em observar o papel de outros atores
domsticos na participao brasileira no GATT, pois, no final das contas, ela seria o
produto da atividade das lideranas do Palcio do Planalto e dos diplomatas no
Itamaraty.8 Foi com essa convico analtica que a pesquisa foi inicialmente ancorada.
Mas, em determinado momento, essa crena comeou a ser abalada. Tudo comeou
de forma indireta, em estudos paralelos sobre a historiografia americana dedicada ao
exame das origens da Guerra Fria. H, nesse campo, profcuo debate sobre o papel dos
Estados Unidos na gestao do conflito, em particular o embate entre John Lewis Gaddis
e Melvyn Leffler sobre a estratgia de segurana nacional do governo Truman (Gaddis:
6 Ele aventa at uma idia peculiar para justificar esse argumento: a tese das instrues reversas. Assim, no seria nem o Itamaraty que definiria a posio externa brasileira, mas o prprio representante do pas em Genebra (Caldas: 1998, 53). 7 A questo discutida no quarto e no quinto captulo da dissertao. O trabalho excessivamente formalista, descritivo e superficial reflexo, talvez, da contemporaneidade do tema (Felipe: 2006, 83-95 e 114-20). 8 H, na literatura, exames tpicos, como algumas consideraes sobre o caso do contencioso dos subsdios (Abreu: 1996, 206; Abreu: 1998, 6-7 e 23-4; Lima: 1986, 322-41) e o conflito entre a CPA e o Itamaraty na construo do Mercosul (Lima e Hirst: 1990).
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1984; Leffler: 1984a; b).9 Foi chocante notar que o contraste entre os dois autores nasce
de uma discusso sobre quais indivduos e instituies foram os responsveis pela
formulao e implementao da estratgia de segurana nacional americana no ps-
guerra. Assim, a escolha entre o Departamento de Defesa ou o Departamento de Estado
como unidade decisria para o entendimento da agncia da poltica externa tem
profundo impacto na anlise e concluses quem decide to importante quanto o que e
como se decide. Comecei a me perguntar, nesse momento, como o problema da agncia
na poltica externa brasileira deveria ser explicitado; mais, comecei a ser mais atento
quanto hiptese de centralidade do Itamaraty.
Ao iniciar a pesquisa em fontes primrias, guiado por essa nova preocupao,
percebia-se que, desde governo Geisel, existiam conflitos burocrticos em uma ampla
gama de nichos de polticas pblicas, inclusive no mbito da poltica externa sinal de
que poderia haver interferncias pontuais de outros rgos na definio da posio
brasileira no GATT.10 Depois, ao consultar especificamente a atuao brasileira no
GATT nos acervos do CPDOC e do Itamaraty, encontrava-se grande atividade de
interao entre rgos da rea econmica e o Palcio dos Arcos. Dessa maneira, j no
podia mais reputar como irrelevante a participao de outros atores no meu objeto de
estudo. Na verdade, ela era abundante e, no raro, central na determinao de o porqu o
Brasil ter se portado de uma determinada forma e no de outra nas negociaes.
O mesmo se pode dizer do exame de outros nichos da poltica externa brasileira na
literatura. No se pode afirmar de forma alguma que inexistem estudos que trabalham
com o impacto de outros atores domsticos na insero internacional do Brasil. Na
verdade, o volume de estudos at numeroso. Alguns exemplos so relevantes. Joaquim
9 Leffler critica duramente a noo de que os Estados Unidos no tinha uma concepo de segurana expansiva ao final da II Guerra Mundial. A posio do pas no era determinada por percepes da ameaa sovitica; muito pelo contrrio, a expanso da ao americana era resultado de uma crescente apreenso sobre a vulnerabilidade dos interesses econmicos e estratgicos do pas em um mundo catico e instvel, levando-os a conceber o mundo em termos de esfera de influncias e a garantir acesso territorial e construir bases militares em reas estratgias. Gaddis, por seu turno, tende a considerar que os constrangimentos oramentrios do governo americano objetivavam o estabelecimento de prioridades mais limitadas, buscando a emergncia no longo prazo de centros independentes de poder na sia e Europa e a utilizao de instrumentos econmicos, em detrimento de uma concepo militar, na garantia dos objetivos de estabilidade do sistema internacional e realizao dos interesses do pas (Gaddis: 1982, 41-50). 10 Assim, apesar do centralismo de Geisel, conflitos entre ministrios, autarquias e empresas estatais repe[tiam]-se incessantemente, na proporo do extraordinrio crescimento do aparelho de Estado. O presidente e seus ministros. O Estado de So Paulo. 18 de maro de 1977. De acordo com outro artigo: Mais uma vez pode-se recorrer sugestiva hiptese do professor e empresrio Celso Lafer: no existe no governo Geisel um rgo no qual as diversas faces da prpria mquina governamental - principalmente os tecnocratas da rea econmica - possam acomodar suas divergncias e encontrar uma poltica comum. O governo fez planos. Mas para qual pas? O Estado de So Paulo. 18 de maro de 1977.
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Nabuco, no clssico Um estadista do Imprio, j apresentava como crucial a
cooperao entre as agncias governamentais imperiais, em especial o Ministrio da
Justia, para o combate ao trfico de escravos (Nabuco: 1997, 219-27). Leslie Bethell
indicou o relevante papel do parlamento e do Conselho de Estado para a abolio do
trfico de escravos (Bethell: 2002, 143-5, 285, 318-9, 28). Amado Cervo examinou o
papel do parlamento na construo da insero comercial brasileira no Imprio (Cervo:
1981). Joo Resende-Santos perscrutou o papel dos militares no processo de emulao
do sistema militar alemo e francs entre 1870 e 1930 (Resende-Santos: 2007, 240-95),
tendo Eugnio Vargas Garcia estudado o impacto do Exrcito e da Marinha, em especial
as Misses estrangeiras ao pas, no equilbrio estratgico da Amrica do Sul e na
poltica interamericana brasileira na dcada de 1920 (Garcia: 2006, 193-274). Tlio
Vigevani analisou a interao entre o Itamaraty, o Congresso Nacional, o Servio
Nacional de Inteligncia (SNI) e o empresariado nacional no contencioso da informtica
com os Estados Unidos da dcada de 1980 (Vigevani: 1995). Letcia Pinheiro, em um
dos estudos teoricamente mais sofisticados sobre arenas decisrias na poltica externa
brasileira, trouxe a participao interativa entre militares, o Conselho de Segurana
Nacional e o Itamaraty no restabelecimento de relaes diplomticas com a China na
dcada de 1970 (Pinheiro: 1993). A mesma autora, em tese de doutorado, formula
sofisticado arcabouo analtico para se entender o processo decisrio da poltica externa
do governo Geisel, introduzindo a idia de que no h natural consenso dentro do
Estado (Pinheiro: 1994, 318).
A premissa de exclusividade do Itamaraty, que fundamentava ontologicamente a
natureza das variveis analisada, portanto, no mais subsistia tanto pelo exame da
literatura como pelas fontes primrias. A primeira pergunta, no momento, foi entender
por que eu a sustentara por tanto tempo, inclusive quando informaes discrepantes j
se apresentavam. Ao mergulhar na literatura sobre processo decisrio, percebi que no
existe um processo natural de induo na coleta e organizao de informao sobre
processo decisrio. Na verdade, todas as informaes, no momento que so
apreendidas, j so alocadas em um modelo pr-existente sobre quais arenas, atores e
variveis so relevantes (Teisman: 2000, 938). Os trabalhos sobre a poltica externa
brasileira geralmente trabalham dentro do modelo de centralidade do Itamaraty da a
dificuldade em, desde o incio, ter questionado esse aspecto central que permeia o
campo.
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Com a percepo da fragilidade da premissa, me vi em uma situao singular:
antes de entender a substncia da posio externa brasileira, eu teria que utilizar um
modelo que pudesse me indicar quem viria a formular a posio externa brasileira. Para
responder a questo, inicialmente, busquei compreender por que o Palcio dos Arcos
no detinha o monoplio do processo decisrio. A hiptese que defini foi que uma das
variveis centrais estava na fragilidade domstica do Itamaraty. Por um lado, o rgo
tinha grande capacidade, responsabilidade e reconhecimento em negociar externamente.
Por outro, a substncia do que se negociava externamente muitas vezes era algo que
fugia tanto do conhecimento tcnico dos diplomatas como da competncia do Itamaraty
quando pensamos em termos de ratificao e implementao ele no definia
domesticamente, por exemplo, procedimentos de valorao aduaneira, regras para
aplicao de subsdios e medidas compensatrias. O Itamaraty, portanto, no poderia
isoladamente tomar decises no plano multilateral. Havia a necessidade de alguma
cooperao com os vrios rgos domsticos que detinham controle sobre nichos de
polticas que impactavam ou eram impactadas pelas negociaes do GATT. Mas ser
que isso abrangia todos os assuntos, em todos os estgios de negociao e em todas
circunstncias? De que forma haveria essa interao? Em casos de conflitos de
preferncia do Itamaraty com outros rgos, que instituio prevalecia?
Partindo dessas perguntas, defini que os objetivos da dissertao deveriam ser:
primeiro, testar a hiptese de que outros atores governamentais tinham grande
participao na definio da posio brasileira nas negociaes do GATT durante a
Rodada Tquio e a Rodada Uruguai. Segundo, identificar se h uma variao da
unidade de deciso de acordo com fatores domsticos e internacionais um esforo
concentrado ser empreendido para entender como um nmero especfico desses fatores
afetou o poder relativo dos rgos e os contornos da unidade de deciso. Terceiro, na
maioria das vezes h uma cooperao entre o Itamaraty e os rgos domsticos na
definio das posies brasileira dentro de uma diviso de tarefas. H, porm, instncias
nas quais ocorre um conflito entre os rgos da administrao federal sobre qual deveria
ser a posio brasileira; o importante, aqui, saber qual a posio prevaleceu e por
qu.11 Com esses objetivos, deve ficar claro aqui que o propsito da dissertao no o
de relatar qual foi a posio brasileira em cada rea da agenda do GATT. O propsito,
11 A literatura de anlise de poltica externa geralmente analisa patologias no processo decisrio (Hermann: 2001, 51). Minha dissertao tambm cuidar de estudar um desvio: constrangimento do Itamaraty por outras foras governamentais.
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na verdade, ser compreender o impacto do processo decisrio na definio do
comportamento do pas em negociaes multilaterais comerciais, salientando a forma
pela qual outras foras burocrticas restringiram, em determinadas circunstncias, a
posio do Itamaraty.12
Trs casos vo ser examinados para se compreender de forma mais ntida o
conflito entre o Itamaraty e outros rgos do governo. A seleo dos casos decorreu de
diversas consideraes, entre elas: a) importncia relativa do assunto para o Brasil no
perodo; b) Nvel de relao entre rgos domsticos e o Itamaraty; e c) Disponibilidade
de fontes. A primeira nota de cautela a ser emitida que, mesmo sendo instncias
historicamente representativas, h um problema grave quando se pensa na contribuio
que esses casos possam dar para a construo de um conhecimento mais amplo sobre
processo decisrio na poltica externa brasileira: eles foram selecionados na varivel
dependente. Dessa forma, h um vis de seleo no qual a amostragem limita-se a casos
em que a ao de determinados rgos restringem as preferncias do Itamaraty.13 Os
casos, portanto, so somente uma ilustrao de como o Itamaraty foi constrangido na
definio da posio brasileira no GATT no serve de confirmao; o avano do
conhecimento, assim, s vir do exame de outros contextos (Geddes: 2003, 172).
A segunda nota de cautela que o desenho analtico dos trs captulos no
equivalente. Cada um abrange perodo, atores, foco, narrativa e antecedentes distintos.
A razo para esse contraste est na natureza do tema, na disponibilidade de fontes e,
principalmente, dos eixos causais e contextuais identificados. Optei por essa variao
para no amarrar os casos em uma estrutura pr-concebida com o fito nico de
homogeneizar formalmente as narrativas.
A terceira e ltima nota de cautela sobre a relao do primeiro captulo com os
demais. Busquei no resgatar de forma explcita nos casos estudados os conceitos e
marcos levantados no primeiro captulo. Isso de forma alguma significa que deixei de
us-los; na verdade, optei por deix-los implcitos, estruturando a narrativa de forma
mais sbria.
A dissertao vai procurar contribuir para a literatura de negociaes comerciais
internacionais, processo decisrio e poltica externa brasileira. No primeiro caso,
percebe-se que, excetuando os estudos sobre o caso americano, so poucos os trabalhos
12 Compartilha-se aqui da afirmao de que (...) a knowledge of the motivations and behavior of the bureaucracy is indispensable for understanding contemporary international politics (Fukui: 1978, 156). 13 Uma boa introduo sobre esse problema o texto de David Collier (Collier: 1995).
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17
que tentam demonstrar o funcionamento interno das burocracias na formulao da
posio dos participantes no sistema multilateral de comrcio (Nau: 1989, 2-3). Ao
fazer um exame sobre a atuao brasileira em trs temas no GATT durante a Rodada
Tquio e Uruguai, o estudo contribuir para a diversificao da literatura acadmica. J
na literatura de processo decisrio, perceptvel que h um vis americano na maioria
dos estudos tericos. Esse vis inadequado para generalizar certas concluses sobre
como decises so feitas e implementadas para outras estruturas governamentais
(Hermann: 2001, 49). Nesse aspecto, na dissertao ser desenvolvido um entendimento
especfico sobre dinmicas de processo decisrio em um contexto burocrtico distinto
do existente na literatura americana. Por fim, tentar-se- articular um novo enfoque para
o estudo da poltica externa brasileira. A dissertao identificar que no h um
monoplio do Itamaraty na definio da posio externa do pas no GATT; na verdade,
h uma variabilidade da unidade de deciso, o que implica a inexistncia de um nico
processo decisrio para todos os assuntos em todos os estgios de negociaes
multilaterais.
Isso no significa que o Itamaraty seja irrelevante. Muito pelo contrrio, a
instituio sempre est presente, mesmo com a participao de outros rgos
governamentais na determinao da posio externa brasileira. Mas o tipo de
participao da instituio no perodo examinado no homogneo, nem
necessariamente perene no futuro. Nos Estados Unidos, por exemplo, o controle do
Departamento de Estado sobre as negociaes comerciais externas durou trinta anos,
sofrendo um irreversvel revs na administrao Kennedy.14 No Brasil, semelhante
processo pode ocorrer em algum momento ulterior.
Para os analistas que tentam explicar a posio brasileira em negociaes
internacionais pelo exame da atuao de grupos de interesse, essa dissertao tambm
trar novidades. Isso porque, se partimos do ponto de vista usual, observaremos
somente a relao de grupos de interesse de um lado e o Itamaraty de outro. Mas
quando se observa que outros rgos da administrao tambm tiveram papel relevante
na formulao da posio brasileira, necessrio abarcar a interao dos grupos de
interesse nessas outras instituies. A lgica que est por trs dessa idia que h
diversos pontos de acesso no processo decisrio de definio da posio brasileira em
14 A causa dessa mudana foi a crescente insatisfao do Congresso Americano com o Departamento de Estado, que era qualificado como rgo que sacrificava os interesses nacionais pelos propsitos e objetivos da poltica externa americana (Dryden: 1995; Lee: 1991; Twiggs: 1987, 15).
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18
negociaes comerciais internacionais, pois a articulao da posio do pas, muitas
vezes, fruto da interao de diversos rgos do governo.15
Uma outra rea de contribuio ser sobre anlises que trabalham com o impacto
do sistema de crenas, idias e aspectos cognitivos na poltica externa brasileira. Se no
sabemos especificamente a origem da agncia do comportamento brasileiro em
termos organizacionais, como poderemos identificar as crenas e aspectos cognitivos de
indivduos que participam do processo decisrio? A alternativa da literatura , de certa
forma, ignorar a questo e partir da premissa que o Itamaraty a instncia principal,
quando no nica, na definio da posio brasileira so as crenas dos indivduos
desse rgo que importam. Isso, por seu turno, vai refluir para a definio da literatura,
em larga medida, da idia que certos paradigmas ou eixos analticos tm grande
estabilidade na formulao da poltica externa brasileira, pela forma que esto
incrustados em instituies e fornecem road-maps analticos para os decisores. Essa
questo, contudo, traz um problema, devido ao fato de ser muito difcil derivar
comportamentos especficos de tais parmetros genricos e difusos; alm de eles terem
sido construdos estruturados na viso de agncia tradicional, que observa o Itamaraty
como o ator nico do processo de definio da poltica externa brasileira.
Temos, portanto, que introduzir na anlise as idias, crenas e aspectos
cognitivos dos decisores de outros rgos que porventura venham a participar da
dinmica de deciso a no ser que se use uma anlise estruturada em predisposies
perceptivas de populaes nacionais, balizada em um sistema de valores culturais, h a
necessidade de saber qual o grupo e quais os decisores importam e em quais
condies.16 Um outro aspecto interessante nessa abordagem que ela lana luz sobre a
natureza de uma instituio missionria como o Itamaraty.17 Isso, por seu turno,
relevante para se interpretar o impacto comparado da cultura organizacional em
instituies insuladas e abertas, algo reputado como relevante na literatura terica
(Drezner: 2000).
15 Aqui cabe at uma reflexo sobre o conceito de policentrismo decisrio e policentrismo de acesso, aplicado no s poltica de comrcio exterior como a interao entre poltica comercial e diplomacia comercial, expandindo o trabalho de Olavo Brasil e Maria Regina Soares de Lima (Lima e Jr.: 1987). 16 Para uma anlise nesse sentido ver (Rohrlich: 1987). 17 O termo instituio missionria utilizado por Daniel Drezner para delimitar as unidades decisrias caracterizadas por um forte conjunto de crenas disseminado entre os seus integrantes. Para ele, instituies missionrias que possuem insulamento estrutural com relao influncia de outras organizaes tem maior probabilidade de sobreviver de forma consistente ao conjunto de idias fundador da organizao. Dessa forma, o insulamento permite a uma determinada agncia do governo o desenvolvimento de uma cultura dedicada sustentao de certas idias fundamentais, impedindo a introduo de outras idias (Drezner: 2000, 733).
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19
Por fim, a dissertao contribuir para trazer mais informaes sobre o passado
ainda no to bem mapeado, mesmo que mediadas sob uma preocupao terica
especfica. Isso relevante, uma vez que um maior entendimento sobre como os eventos
do passado se desenvolveram contribui para uma melhor tomada de deciso.18 Como
bem coloca Azeredo da Silveira:
[a]n appraisal of past () would be purposeless unless it is geared to future action, just as a projection of future action would be irresponsible if it is not based on the experience already gained.19
Fontes Em uma anlise sobre processo decisrio, as fontes que geralmente so
utilizadas na anlise so minutas de encontros, dirios, memrias, cartas, anotaes
pessoais e discursos no raro redigidos pelos autores com o olhar voltado para o
futuro. As melhores fontes so transcries literais de reunies informais e formais
como ata, minuta e ajuda memria. O problema com que nos defrontamos que esse
material raramente produzido no curso normal de funcionamento do governo
brasileiro. Dessa maneira, do lado governamental, de uma forma geral, h grande
dificuldade em se conseguir as fontes necessrias para pesquisas sobre processo
decisrio.20 Quando existentes, os arquivos, fontes essenciais para a anlise do processo
decisrio em agncias governamentais (Maier: 1980, 373), so muito pouco acessveis.
Essa dificuldade torna a observao uniforme do funcionamento do aparelho estatal
praticamente impossvel do ponto de vista metodolgico, uma barreira considervel
(Odell: 2000, 20).21
A literatura, ao realizar a anlise da ao brasileira no GATT, no reflete
adequadamente sobre os impactos das fontes em suas anlises. Percebe-se, aqui, que o
problema da escassez e disponibilidade de volume de material primrio talvez tenha
impactado sistematicamente para acomodar as anlises dentro das premissas
tradicionais de centralidade para o Itamaraty. A dissertao, ao buscar a ampliao da
18 Salienta-se, nesses termos, os problemas que o aprendizado do passado traz, da forma em que ele comumente processado por decisores (Jervis: 1976, 227-9). The student ignorant of yesterdays events will not understand the reasons for todays reasoned judgments, since those judgments may result from previous bureaucratic disputes (Hollis e Smith: 1986, 280). 19 Azeredo da Silveira. Statement by Ambassador A.F. Azeredo da Silveira. Head of the Brazilian Delegation (Geneva). 15 November 1967. AAS 1966.03.24. Pasta II 20 Sobre a questo, ler (Millar: 1969, 58). 21 Como afirma Janis, as informaes que os pesquisadores mais precisam usually are safely locked up in government files, doomed () to remain confined for a certain term, until the foul crimes of those earlier days are purged away(Janis: 1982, ix).
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20
base de fontes, tentar minimizar o potencial problema gerado pelo vis e seletividade
apresentados na literatura (Thies: 2002, 355).22 Mas, bom j deixar expresso, que ser
necessrio um trabalho complementar, com novas pesquisas que penetrem mais fundo
no substrato material deixado por esse passado. Assim, a metfora de Gaddis bastante
adequada para representar a natureza dessa dissertao: historiadores vivem em
montanhas de areia sempre em movimento, implicando que se deve preferir tendas
explanatrias a grandes templos monolticos (Gaddis: 1997, 81). O conhecimento de
um objeto to difuso, de difcil identificao e que deixou poucos registros fadado a
ser bastante modificado com a descoberta e utilizao de fontes e interpretaes no
utilizadas aqui.
Tendo feito essas consideraes, analisemos alguns aspectos especficos das
fontes utilizadas ao longo do trabalho. Um primeiro ncleo de fontes foram os artigos
de jornais nacionais e estrangeiros que reportaram a formulao da posio brasileira
nas negociaes. Jornais so particularmente relevantes, pois permitem traar uma
cronologia de processos, ainda que superficial, alm de no serem filtrados por
interpretaes posteriores ocorrncia sob exame (Thies: 2002, 357). Procurou-se
sempre conjugar a leitura dos acontecimentos por mais de um veculo de imprensa,
tentando diminuir as possveis distores de vis da linha editorial. Mas, mesmo sendo
teis para identificar certos traos da posio brasileira, as informaes dos jornais
sobre o processo decisrio governamental so escassas.23
Uma outra fonte importante para a dissertao so os discursos dos indivduos
posicionados estrategicamente dentro e fora do governo que puderam de alguma forma
impactar sobre o processo decisrio. Essa uma fonte muito utilizada na anlise da
poltica externa brasileira. O foco no discurso, de certa maneira, um resduo da prpria
realidade de escassas fontes sobre o funcionamento do Estado brasileiro. Portanto, o
trabalho tanto do jornalista quanto do analista da poltica exterior brasileira acaba se
concentrando em uma anlise de discurso, em que se busca deduzir e decifrar os reais
22 Para solucionar esse problema se utilizar, na dissertao, em diversos momentos, a chamada quase-triangulao, na qual a narrativa construda com referncia s teses e histrias de diferentes historiadores e fontes, explicitando ngulos polticos e tericos. Isso, contudo, no resolver vrios outros problemas metodolgicos (Lustick: 1996, 616). 23 Esse problema decorria principalmente do quadro de censura que, mesmo reduzida se comparada com o perodo precedente, ainda vigorava no perodo. Geisel procurava apresentar um governo sem divises internas. A imprensa, em grande medida, seguia essa linha; mesmo assim, havia desvios, que eram prontamente endereados por medidas fortes. Um exemplo foram as conseqncias que David Vidal, reprter da Associated Press, sofreria aps relatar algumas declaraes que Geisel teria feito a alguns lderes polticos. NARA. De Crimmins para o State Department. Reaction to AP story on Geisel meeting with political leaders. 27 de fevereiro de 1975. Para maiores detalhes ver (Gaspari: 2003).
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21
significados dos discursos e entender aes concretas da poltica exterior sob o prisma
da retrica, sem o depurado exame dos reais processos de deciso. A justificativa, nesse
caso, muitas vezes confunde-se com os motivos; a retrica, no raro, com a substncia.
Mesmo assim, os discursos foram relevantes na identificao da posio final brasileira
no plano multilateral ou dos instrumentos retricos utilizados para camuflar para uma
audincia especfica os problemas do processo decisrio. Colimando esse extrato
informativo com os dados sobre as posies especficas dos diferentes rgos
domsticos, foi possvel identificar se a posio do Itamaraty foi constrangida ou no.
Um outro tipo de fonte so as memrias dos participantes do processo decisrio.
De forma geral, os historiadores indicam que esse tipo de fonte inadequado e incerto,
at mesmo quando do testemunhos de personagens importantes dos acontecimentos do
passado (Evans: 2000, 77).24 As memrias dos participantes tambm no so textos
neutros. So, na verdade, uma confusa coleo de discursos organizados pelas
preocupaes pessoais e comprometimentos presentistas dos autores (Lustick: 1996;
Thies: 2002, 355). Assim como os discursos, no raro so recursos retricos, tentando
insuflar e influenciar o leitor futuro h at ocasies nas quais so preservados por
indivduos e organizaes para algum propsito, como propaganda ou para servir de
narrativa exclusiva de eventos (Thies: 2002, 357). Na dissertao, poucas memrias
sero utilizadas.
Vrios dos problemas das memrias e dos discursos podem ser encontrados na
histria oral. As dinmicas de processo decisrio analisadas se do de forma quase
secreta, deixando poucos registros para a posteridade. A restrio geralmente se d
porque, em negociaes internacionais na rea econmica, no raro os atores trabalham
com grandes incentivos para manter a privacidade como forma de diminuir presses de
constituintes e grupos que no venham a concordar com o contedo do processo. A
conseqncia que tanto estudiosos como jornalistas esto, no exerccio dos respectivos
ofcios, em grande dependncia sobre o que os negociadores esto propensos a falar e
estes tm grandes incentivos para manter em segredo questes relevantes (Matz: 2004,
361). Mesmo assim, h vrios pesquisadores que utilizam fontes de histria oral. De
acordo com esses, quando utilizado com cuidado e modstia, o recurso aumenta nosso
entendimento sobre o passado, indicando, principalmente, as ideologias na construo
da narrativa, desvendando as mentalidades e pressupostos subjacentes atividade
24 Sobre os diversos problemas no uso de memrias ver tambm (Schulzinger: 2004).
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22
poltica (Grele: 1987, 578; Soffer: 1995, 610). No entanto, argumentos e concluses na
rea de histria de poltica externa mais avanados, principalmente nos EUA, raramente
so estruturados primariamente em evidncia de histria oral. H na rea uma averso
ao uso da fonte, mesmo quando so abundantes.25 A impreciso e falha em enderear o
funcionamento detalhado das burocracias que lidam com a poltica externa so
apontados como as principais razes para essa falta de uso. Uma outra dificuldade que
os oficiais escutados geralmente repetem narrativas enlatadas (Soffer: 1995, 609).
Para algumas vises mais radicais, o historiador deve ser ctico at de testemunhas
oculares; a mente e os sentidos, principalmente na confiana da memria humana,
podem pregar peas em todos, inclusive nos historiadores (Schoonover: 2003).
No incio da pesquisa, realizei entrevistas com trs diplomatas brasileiros. Dois
acompanhavam as negociaes do GATT desde a dcada de 1970; o terceiro, desde a
dcada de 1980. Para os propsitos da dissertao, o exerccio foi excelente, mas no
to produtivo quanto se esperava, pois as informaes que eu procurava eram
especficas demais para que fossem lembradas havia at choque entre certas
afirmaes dos entrevistados e os documentos primrios que eu consultava. Os relatos,
no entanto, no foram em vo. As entrevistas abriram os meus olhos para o fato de que,
na maioria das vezes, a interao do Itamaraty com outros rgos do governo era
bastante cooperativa e as ocasies em que havia conflitos eram muito raras. Foi tambm
em uma entrevista que fui alertado para a situao de impotncia que muitas vezes o
Itamaraty ficava quando os rgos domsticos tomavam medidas contrrias s
obrigaes brasileiras consolidadas no GATT e se negavam a revog-las ou modific-
las. Alm das entrevistas que fiz, pude utilizar a de Azeredo da Silveira, disponibilizada
em fitas pelo CPDOC. As informaes do diplomata sobre o relacionamento do
Itamaraty com o Ministrio da Fazenda no Governo Geisel foram muito importantes,
principalmente para a redao do segundo e terceiro captulo da dissertao.26
Mesmo utilizando uma ampla gama de fontes, o trabalho ancorado nas fontes
primrias do Itamaraty de 1973 at 1991. No incio da anlise, meu objetivo era buscar
dois tipos distintos de fontes. O primeiro era o acervo de documentos da rea comercial
do governo que eram enviados e recebidos do Itamaraty principalmente os da CPA, 25 Jonathan Soffer d um exemplo interessante. Na produo acadmica sobre o governo Truman no h quase nenhum esforo em usar as fontes de histria oral, mesmo existindo um acervo de 371 entrevistas de altos funcionrios e oficiais de seu governo (Soffer: 1995, 607). 26 Um comentrio deve tambm ser feito entrevista de Marclio Marques Moreira. Foi nos comentrios do ex-diplomata que eu encontrei indicaes de que, mesmo em negociaes bastante polticas, como as da UNCTAD, havia um exerccio decisrio interburocrtico (Moreira: 2001, 96).
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23
CACEX e Ministrio da Fazenda. O segundo era o acervo de correspondncia entre o
Itamaraty, em Braslia, e a Delegao brasileira em Genebra (Delbragen). Para saber
qual foi o resultado da posio brasileira no plano multilateral, buscaria os documentos
disponibilizados pelo GATT. Com essa seleo, poderia observar no s o grau relativo
de poder dos rgos domsticos, como a possibilidade de as instrues de Braslia
serem modificadas em Genebra.
Primeiro foram levantados os despachos enviados do Itamaraty para a
Delgragen. Nesse momento, duas questes influenciaram a reviso do planejamento
inicial, no sentido de eliminar a consulta aos documentos trocados entre os rgos
comerciais e o Itamaraty. Primeiro, o volume de material to grande que seria
impossvel analisar todas as fontes no tempo disponvel para a pesquisa. Segundo, se
um documento encaminhado pelo Ministrio da Fazenda, CACEX e CPA fosse
relevante, ele geralmente era enviado para a Delbragen.
GATTItamaraty Delbragenrgos domsticos
Figura 1: Planejamento inicial de consulta
A limitao das fontes se, por um lado, potencialmente poderia prejudicar a
narrativa dos casos, por outro, acabou sendo a nica forma encontrada de tornar a
pesquisa vivel. No cmputo geral, o impacto para o trabalho no foi grande, pelo
seguinte motivo: eram os diplomatas do Itamaraty que geralmente redigiam as atas e
ajuda-memria das reunies com funcionrios dos rgos domsticos. Esses
documentos, por sua vez, eram encaminhados para a Delbragen, da o acerto na
limitao anlise da correspondncia entre Braslia e Genebra. Pode-se dizer que eles
so bastante enviesados as vozes dos outros rgos so filtradas pelo diplomata que
tomou as notas das reunies , mas foram as melhores fontes consultadas nas quais o
processo decisrio da participao brasileira no GATT desnudado. Uma outra base de
documentao tambm utilizada foi o rico acervo depositado no CPDOC Azeredo da
Silveira, Marclio Marques Moreira, Paulo Nogueira Batista e Ernesto Geisel.
Infelizmente, os maos de George Maciel representante brasileiro em Genebra em
grande parte da Rodada Tquio ainda no estavam disponveis para consulta quando
foram finalizadas as pesquisas de fontes primrias para a redao da dissertao.
As fontes no consultadas do Itamaraty e de outros rgos governamentais
podero trazer diversas revises tanto aos aspectos tericos e conceituais apresentados
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24
no primeiro captulo, como s narrativas dos captulos seguintes. Outras interpretaes
contrastantes tambm podero ser construdas sobre a mesma base emprica os
documentos no provam motivos, de forma que os pressupostos externos utilizados na
interpretao das mesmas fontes podem ter grande efeito para se chegar a outras
concluses (Finney: 1997, 38). Mesmo antes de terminar a redao da dissertao,
vrias fontes do National Archives (EUA) do perodo 1973-1976 j demonstraram que
aspectos factuais da minha dissertao deveriam ser ajustados o que eu fiz, mas,
infelizmente, no tive tempo suficiente para consultar e internalizar todas as fontes
relevantes disponibilizadas.
Metodologia e Teoria O objetivo da dissertao a anlise de um fenmeno especfico o processo
decisrio da participao brasileira no GATT, com especial destaque ao relacionamento
entre o Itamaraty e outros rgos governamentais. As escolhas metodolgicas feitas ao
longo do trabalho de pesquisa seguiram de perto a mxima de que o mtodo deve seguir
as caractersticas dos fenmenos que buscamos compreender (Bennett e Elman: 2006,
250). Dessa maneira, logo de incio afastei-me de uma metodologia rgida que pudesse
congelar premissas e crenas apriorsticas sobre o meu objeto de estudo.
Principalmente por ser um fenmeno marcado pelo subjetivo, pelo contingente e
pela constante mutao de relevncia dos processos e atores, acautelei-me contra o uso
irrefletido da metodologia excessivamente positivista e formalizada que varre hoje os
campi norte-americanos. Com efeito, a rea de cincia poltica americana, muito
influenciada por um modelo dedutivo-nomolgico de causalidade, no consegue
explicar fenmenos que ocorrem em sistemas abertos onde qualquer resultante est
sujeita a mltiplas causas conjunturais (Lebow: 2007).
Tendo em vista que atores podem mudar as regras do jogo, a dinmica de
processos ou at a natureza do sistema poltico em que operam, mtodos gerais de
anlise de processos da rea de relaes internacionais tero validade restrita, o que
implica um exerccio do analista em especificar as condies nas quais suas teorias e
mtodos so aplicveis (Lebow, Steinet al.: 2000, 48-52).27 Os historiadores, no
27 Social science tends to value parsimony and generalizability: the less said about a wide range of phenomena across time and space, the better. Social scientists seek to develop powerful and widely applicable conceptual blueprints. To explain specific situations, or cases (...), other levels of analysis may be added, reducing parsimony, but increasing explanatory power. Diplomatic historians typically work within a far more restricted range of time and space: much more must be explained about much less. Diplomatic historians value clarity, but clarity is not parsimony. Diplomatic historians tend to make
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25
entanto, esto familiarizados com esse fenmeno. A rea est acostumada com a idia
de que eventos muitas vezes so sobredeterminados tm diversas causas suficientes e
necessrias (Evans: 2000, 158).28 por essa razo que este trabalho trabalha dentro
dessa perspectiva metodolgica sem, claro, abrir mo dos importantes ensinamentos
da cincia poltica.
A primeira considerao metodolgica dentro do marco histrico adotada pelo
trabalho foi a forma de lidar com os fatos e interpretaes que temos conhecimento
hoje, mas que no estavam disponveis aos indivduos do perodo.29 A histria, como
afirma um arteso do ofcio, vivida de forma evolutiva, mas escrita em retrospectiva;
ns sabemos o final antes de considerar o incio (Gardner: 1956, xvi). Historiadores,
portanto, devem sempre levar em conta o mundo real no qual as aes dos tomadores de
deciso ocorreram, em vez de imaginar o mundo pelo prisma contemporneo (Pelz:
1988, 275). Por essa razo, busquei sempre fazer a avaliao interna e externa de um
documento considerando o contexto no qual os atores operavam (Thies: 2002, 357).
Como na interao entre fonte e mensagem na anlise de consistncia em servios de
inteligncia, a dissertao analisar as fontes de forma crtica indicada principalmente
pelas caractersticas da produo documental posterior e anterior ao documento, a
credibilidade e posio relativa do autor da evidncia, a natureza e funo do
documento na poca de sua produo (Howell e Prevenier: 2001; Jervis: 1976, 122).
Uma outra questo sempre presente na minha anlise foi a de diferenciar os intuitos
professados pelos agentes governamentais e os motivos reais por trs da retrica.30 A
ao governamental, como se sabe, no necessariamente aquilo que os decisores
desejam alcanar da o foco da dissertao em sempre buscar e comparar o que o
governo realmente faz com os motivos professados pelos decisores (Destler: 1974, 4;
Kingdon: 1995, 26; Millar: 1969, 59). Uma relao igualmente pertinente a entre a
estrutura formal de funcionamento do governo aquela expressa nas leis e
regulamentos e a existente na realidade do dia-a-dia.31 Como bem coloca Destler, os
complex multi-causal arguments. What is parsimony to political scientists is reduction to diplomatic historians. What is richly textured explanation to diplomatic historian is multi-causal promiscuity to political scientists (Eden: 1993, 179-80). 28 Os historiadores so treinados para analisar mudana e continuidade ao longo do tempo (Salomon: 1993, 386). 29 () policymakers often perceive other possible costs and risks and other benefits that analysts have not considered (George: 2006, 69). 30 Martin Hollis e Steve Smith afirmam que (...) the true motive for (...) actions need not be those () profess[ed] (Hollis e Smith: 1986, 277). 31 (...) the reality of power within any administrative structure depends far more on informal lines of influence and power than on formal patterns of authority (Lee: 1991, 78).
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26
espaos entre os padres formais de organizao e como os governos realmente
funcionam so bvios demais para serem ignorados, exigindo do analista a distino
entre a forma organizacional e a realidade decisria (Destler: 1974, 9 e 42).
Passando para o exame especfico da questo terica, primeiramente devemos
considerar que o historiador tem que ter alguma teoria bsica sobre como e por que as
coisas acontecem, alguma idia fundamental de motivao e comportamento humano
(Evans: 2000, 139). Acreditar que seu trabalho no guiado por algum tipo de teoria
bsica e que os fatos falam por si mesmos um ato de presuno com pouca recepo
no campo (Trachtenberg: 2006, 30-50). por isso que essa dissertao constitui-se em
uma narrativa histrica teoricamente informada.32
Mas h que se ter cautela. As teorias, mesmo quando do proeminncia a certos
fenmenos, tendem a exagerar a importncia deles e negligenciar outros fatores
(Destler: 1974, 65). Esse o grande problema dos trabalhos de anlise de poltica
externa calcados em uma nica varivel tendem a ser contraditrios e inconclusivos
(Price: 1978, 358) e a complexidade da poltica externa no se encaixa nesses
parmetros rgidos. Por isso, a dissertao utilizar a moderna perspectiva de integrao
terica. A integrao permite avaliar a interao de fatores em diversos nveis de
anlise, aumentando a qualidade da explicao (Hudson: 2007, 16, 165-6). As
causalidades podem ocorrer em uma ampla variedade de nveis, simultaneamente e
serialmente, em um ambiente dinmico, e com um agenciamento criativo (Hudson:
2007, 166-7; Pelz: 1988, 261).
A integrao vai ser feita de forma a no haver dissonncia heurstica entre as
diversas teorias utilizadas. Alm dessa questo, a sua utilizao vai ser exercida com
parsimnia, pois na maioria das vezes ela derivada do presente e no das fontes nas
quais o trabalho se estruturou (Evans: 2000, 83). As teorias de anlise de poltica
externa desenhadas dentro de um contexto exgeno ao aparelho estatal brasileiro, por
sua vez, sero adaptadas para o nosso contexto que, entre outras particularidades, tem
pouca interferncia do legislativo se comparado ao caso americano.
A organizao dos captulos foi feita da seguinte forma. O primeiro captulo
apresentar um profundo exame sobre a constituio de unidades decisrias na
participao brasileira nas negociaes do GATT. aqui que ser examinado em quais
circunstncias h o monoplio decisrio do Itamaraty e quando esse poder delegado e
32 Termo utilizado em (Rose: 1998, 168).
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27
compartilhado com outros rgos domsticos. Como o objetivo da dissertao tambm
examinar o poder relativo dos outros rgos frente ao Itamaraty, o captulo alentar
algumas hipteses para a razo de outros rgos poderem determinar as preferncias
brasileiras nas negociaes em detrimento das preferncias e da oposio do Palcio dos
Arcos. Os captulos seguintes da dissertao avaliaro as hipteses lanadas no primeiro
captulo em casos especficos nos quais o Itamaraty foi restringido por outros rgos
governamentais. O segundo captulo narrar a participao brasileira nas negociaes
tarifrias da Rodada Tquio at a Rodada Uruguai a Comisso de Poltica Aduaneira
(CPA) e Ministrio da Fazenda determinariam o ritmo e o contedo da posio final
brasileira. O terceiro analisar a interao do Brasil com os Estados Unidos no contexto
do contencioso bilateral de subsdios e da negociao do Cdigo de Subsdios e
Medidas Compensatrias na Rodada Tquio o Ministrio da Fazenda determinar a
posio externa brasileira. Tambm ser analisada, nesse captulo, a tentativa de retirada
de competncias do Itamaraty por parte da CACEX. Por fim, o quarto captulo
examinar a mudana da posio brasileira nas negociaes agrcolas da Rodada
Uruguai o Brasil, mesmo com certo ativismo do Itamaraty, demorou a mudar de
posio por conta da recalcitrncia do Ministrio da Agricultura e dos agricultores em
um contexto de instabilidade tanto da economia agrcola nacional como das polticas
pblicas voltadas para o setor.
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Captulo 1: o(s) processo(s) decisrio(s) da participao brasileira no GATT
Itamaraty no tem o monoplio decisrio de toda insero internacional do
Estado brasileiro. Outros rgos do governo participam do processo decisrio, de duas
formas distintas. Primeiro, pela delegao de determinadas decises para rgos
domsticos especficos; e, segundo, pela participao de outras instituies em arranjos
burocrticos de deciso, geralmente coordenados pelo Palcio dos Arcos. No primeiro
caso, no h restrio da posio do Itamaraty porque o rgo simplesmente se absteve
do processo decisrio ou delegou a deciso para outras entidades. somente no
segundo caso que possvel identificar conflitos entre ele e determinados rgos da
estrutura estatal sobre a substncia das decises; aqui estaro os episdios nos quais
outros rgos o suplantaram nas negociaes do GATT. Essa ltima situao bastante
contingencial, dependendo de vrios fatores tanto domsticos como internacionais.
Ento, para se identificar em que condies o Itamaraty vai ser restringido na definio
da posio brasileira no GATT, deve-se formular uma estratgia que identifique as
condies tericas em que esse tipo de dinmica decisria ocorre (Hermann: 2001, 49).
Esse captulo buscar esse objetivo, trazendo, inclusive, uma tipologia dos diversos
tipos de unidades decisrias encontradas na Rodada Tquio e na Rodada Uruguai.
Servir de arcabouo para o exame de trs casos nos quais o Itamaraty foi constrangido
por rgos domsticos na definio da posio externa brasileira, examinados nos
prximos captulos.
O grande propsito nesse captulo identificar o porqu de o Itamaraty, mesmo
tendo o poder de coordenar a formulao da definio da posio externa brasileira e
execut-la no plano multilateral, no conseguir, em alguns casos, impor-se aos outros
rgos do governo quando h conflitos em modalidades burocrticas de processo de
deciso. Primeiramente, ser definido o conceito de unidade decisria, salientando que
ela pode ser constituda de um ou vrios rgos governamentais. Pode haver, ainda,
uma unidade decisria com a participao de vrios rgos, mas cada um
desempenhando nos trabalhos uma funo distinta e especializada. Segundo, muito
difcil saber de antemo qual ser o desenho de uma unidade decisria. Porm, o
conhecimento de alguns fatores internacionais e domsticos pode ajudar-nos a
compreender por que um determinado tipo de unidade decisria emerge e no outro em
um determinado momento. Preliminarmente, sero apresentados os fatores
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internacionais relevantes caractersticas do processo negociador, assunto, estgio e
oportunidade de ao. Depois sero avaliados as caractersticas domsticas que
impactam na definio da unidade decisria. Por fim, ser apresentada uma tipologia de
unidades decisrias que emergiram nas negociaes da Rodada Tquio e da Rodada
Uruguai para formular a posio externa brasileira. Ser argumentado que a explicao
fundamental da fragilidade do Itamaraty est no fato de esse rgo no ter o controle
sobre a substncia de polticas pblicas relevantes.
1.1 Unidade Decisria O primeiro passo na definio de uma tipologia de unidade decisria
conceitu-la. O melhor conceito o de Charles e Margaret Hermann, que a define como
a entidade que tem a habilidade de comprometer recursos governamentais na poltica
externa, e o poder ou a autoridade de evitar que outras unidades do governo revertam
sua posio sem grandes custos (Hermann e Hermann: 1989, 363).
O interesse em definir com maior preciso as caractersticas das unidades
decisrias est no grande impacto que elas tm na substncia das decises essencial,
portanto, para uma explicao sobre o porqu de os decisores terem tomado
determinado curso de ao e no outro (Hagan: 2001; Hermann: 2001, 75; Snyder,
Brucket al.: 1962, 98). Uma das razes para a importncia dessa ligao entre
contornos institucionais e substncia das resultantes est na forma pela qual as unidades
decisrias servem de filtro entre os fatores domsticos e internacionais e as decises
estatais (Beasley, Kaarboet al.: 2001, 219; Drahos: 2003, 82-5; Hermann e Hermann:
1989, 362). Uma outra importncia est em determinarem como o poder sobre a tomada
de deciso alocado entre os atores nacionais; e a forma como o poder compartilhado,
por seu turno, afeta quais as preferncias sero levadas em conta no processo de deciso
(Milner: 1997, 99).
A grande preocupao nas definies tericas desse captulo a de balancear
uma estrutura explicativa que seja ao mesmo tempo abrangente e d o espao necessrio
para variaes. Isso porque qualquer conjunto que implique generalizaes tem a
tendncia de dar mais proeminncia para certo fenmeno em detrimento de outros,
havendo o risco de se exagerar sua importncia relativa. No fundo, esse um
reconhecimento de que no h fatores imutveis ou absolutos no domnio da poltica
externa (Millar: 1969, 59). Essa mutabilidade, por sua vez, redunda na baixa
probabilidade de que durante todo o perodo das negociaes comerciais multilaterais
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exista um mesmo conjunto de decisores que lida com todos os problemas de uma
mesma forma em uma mesma unidade decisria. Assim, no possvel fixar de
antemo quais so os atores importantes e o exato processo de deciso, pois h diversos
tipos de processos, com diferentes formas de participao, com variados atores
(Teisman: 2000, 946) necessrio, pois, um modelo contingente que demonstre sob
quais condies unidades decisrias alternativas iro engajar-se em diferentes tipos de
processos, levando a diferentes resultantes (Hermann e Hermann: 1989, 362).
1.2 nico ou mltiplos atores? Vrios indivduos e instituies podem fazer parte de uma unidade decisria, sendo
relevante a pergunta sobre quais importam em um determinado tipo de deciso e em
quais circunstncias. Uma primeira considerao que devemos fazer sobre a
possibilidade de um nico indivduo ou agncia do governo constituir a unidade
decisria ou seja, avaliar sozinho o grau de relevncia, o tempo de resposta, o tipo de
conhecimento demandado e tomar uma deciso. A primeira hiptese que podemos criar
que todos esses processos sejam controlados pelo Presidente da Repblica. Ocorre
que, mesmo se quisesse, o Presidente no conseguiria se ocupar com as tarefas de
controlar todo o fluxo de informaes, examinar a posio brasileira em todos os
assuntos, tomar todas decises e execut-las no plano multilateral o Presidente carrega
um pesado fardo, tendo que dividir responsabilidades em um conjunto mais organizado
de sub-tarefas, dadas a uma ou vrias unidades especializadas dentro do governo
(George: 1980, 109). inevitvel, portanto, haver uma delegao de suas prerrogativas
para algum sistema administrativo que cuide dessas tarefas ficando ele somente com a
arbitragem de conflitos e decises de grande relevncia.
Partindo dessa considerao, poderamos prever que o Itamaraty fosse a nica
instituio a receber essa delegao. Em alguns episdios especficos, isso ocorre. No
entanto, como veremos no decorrer do captulo, esse s um dos tipos de unidade
decisria possveis. Resultado, talvez, da dinmica de ao burocraticamente
fragmentada do governo, percebe-se que no h uma unidade administrativa com
controle completo dos recursos estatais que possa atuar em todas as atividades, em
todos os momentos; da a necessidade de entender o processo pelo qual outros atores
domsticos participam, isoladamante ou em conjunto com o Itamaraty, na definio e
execuo das posies brasileiras no GATT.33
33 Retirei essa idia de (Friedberg: 1988, 280).
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Para entender a razo do no monoplio do Itamaraty, convm desagregar as
funes de formulao e execuo. Quando fazemos isso, so visveis as vantagens do
Itamaraty em executar decises no plano externo. Trs argumentos do suporte a essa
afirmao: primeiro, ele o nico rgo brasileiro que tem uma estrutura permanente no
exterior para acompanhar as negociaes multilaterais e poder informar o aparato estatal
e os grupos sociais relevantes das oportunidades de deciso; segundo, o rgo o nico
que tem uma rede administrativa espalhada pelo mundo que possibilita o relevante
trabalho de gesto e convencimento bilateral para avanar as posies do pas; terceiro,
o rgo tem um ncleo de recursos humanos treinado para desempenhar atividades de
negociao e defesa dos objetivos do pas no exterior.
Se, por um lado, o Itamaraty tem diversas vantagens no desempenho de
atividades de execuo, o rgo, por quatro razes, sempre padeceu de srias
deficincias na atividade de formulao. A primeira que ele no tem o poder de
ratificar domesticamente o resultado das negociaes externas. Dessa forma, sempre
tem muitos estmulos para internalizar no processo decisrio os indivduos e instituies
que detm essa competncia pode-se esquivar de grandes problemas na hora da
ratificao dos acordos internacionais se os atores domsticos ratificadores forem
levados em considerao na definio da posio do pas (Elliott: 2000, 109). A
segunda razo que os assuntos que esto sob negociao so muito complexos e
tcnicos, de forma que o rgo, muitas vezes, no tem quadros adequados para
identificar o interesse brasileiro que deve ser colocado na mesa de negociao. A
terceira razo considerarmos que, mesmo se quisesse lidar autarquicamente com todas
as responsabilidades de deciso e execuo, o Itamaraty tem uma capacidade
administrativa limitada para lidar com todos os temas de uma complexa agenda de
negociao. H uma grande dificuldade de seus agentes processarem todas as
informaes pertinentes, interpret-las, tomar as decises e execut-las inclusive em
assuntos que possam ter grande conhecimento e tenham prerrogativas para agir
unilateralmente.34 natural que, alm do Itamaraty, haja outros rgos que tenham o
monoplio decisrio de um nicho de questes. Por fim, a quarta e mais importante razo
que o Itamaraty nunca teve a competncia para administrar os instrumentos
normativos de regulao do comrcio exterior do pas. O rgo nunca pde modificar
tarifas aduaneiras, nomenclatura de linhas tarifrias, aplicar subsdios para fomentar
34 Fao essa considerao baseando-me em (Touval: 1989, 163).
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exportaes, impor quotas, criar e emitir licenas de importao. Essas atividades, que
formaram o arcabouo clssico da atividade de poltica comercial, foram, at a dcada
de 1990, formuladas por outros rgos, sem a influncia do Itamaraty. Foi o Congresso
Nacional, a CEXIM, a CPA, a CACEX, o Ministrio da Fazenda, o Ministrio da
Indstria e do Comrcio, e o Ministrio da Economia, Fazenda e Planejamento que
tiveram a competncia de formular e executar todas essas atividades aps a dcada de
40 e no o Itamaraty. O Palcio dos Arcos no poderia, portanto, definir a posio
externa brasileira sem saber as preferncias das reas tcnicas do governo, sob pena de
que os resultados das negociaes externas no fossem implementados de forma
adequada. Mais, como veremos nos prximos captulos, durante as negociaes
multilaterais, esses rgos poderiam formular e implementar a poltica comercial
brasileira de forma contrria posio que se defendia durante as negociaes no plano
multilateral, diminuindo a credibilidade externa do pas.35
No difcil de entender os problemas decorrentes da atividade domstica dos
rgos. Por muito tempo, eles faziam reformas na legislao interna durante as
negociaes das Rodadas por simples ignorncia. No perodo da Rodada Tquio, na
maioria dos casos, no havia consultas com o Itamaraty sobre como essas impactavam a
posio externa do pas. Na Rodada Uruguai, porm, j possvel ver o Itamaraty
participando das definies dos marcos regulatrios domsticos, mas mesmo assim h
problemas.36 Um exemplo a atuao do IBAMA, em 1990, quando promulgou uma
portaria especificando os procedimentos necessrios ao registro para comercializao de
pesticidas. Havia na portaria a exigncia de realizao no Brasil de testes j feitos no
exterior e que, segundo prticas internacionais, no seriam normalmente exigidos,
aceitando-se os resultados apresentados pelo fabricante no pas em que foi realizada a
pesquisa original. O Itamaraty no foi informado da medida, de maneira que s tomou
conhecimento da portaria do IBAMA quando a delegao americana levantou o
35 H tambm um fator interessante a presso de rgos que tem prerrogativas domsticas sobre a questo sob negociao para participar do processo decisrio. De acordo com Robert Lovett, ao examinar o caso americano, the idea seems to have got around that just because some decision may affect your activities, you automatically have a right to take part in making it (Destler: 1974, 60) Lovett via essa tendncia de forma bastante crtica. 36 Desptel 1563. GATT. Comits Anti-dumping e de Subsdios. Reviso da legislao brasileira. Reunio. 17 de setembro de 1992. Telegramas recebidos e expedidos de Delbragen do ano de 1992. Do desptel 921 at 2000.1992.
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problema em uma reunio do Comit de barreiras tcnicas do GATT.37 , portanto,
muito difcil o Itamaraty atuar de forma isolada.
At agora, falamos somente dos casos em que uma unidade decisria constituda
por uma nica instituio. Ocorre que, em muitos casos, o processo decisrio
construdo com a participao de mltiplos atores diversos indivduos, por intermdio
de diferentes instituies estatais, interagem para tomar conhecimento de uma
oportunidade de ao, agregam recursos para processar um assunto, tomar uma deciso
e implement-la no plano externo (Destler: 1974, 161). Isso poderia levar a um
entendimento de que o prisma terico da poltica-burocrtica fundamental para uma
viso adequada do processo decisrio nessas instncias especficas. Com efeito, o foco
de anlise deve ser primariamente nos indivduos dentro de instituies governamentais,
e nas interaes deles como determinantes das aes de um Estado na poltica
internacional (Allison e Halperin: 1972, 43).38
Mas h srios problemas na aplicao crua do modelo da poltica-burocrtica
geralmente derivados do vis norte-americano da teoria.39 O primeiro est em ver as
decises como episdios ad-hoc, em vez de um conjunto de interaes evolutivas
(Kuperman: 2006, 537). O segundo est na tendncia em tratar a poltica-burocrtica
exclusivamente como uma varivel independente explicando resultantes (policy
outcomes). Assim, muitos analistas tenderiam a tratar a poltica-burocrtica como um
fato invarivel do processo decisrio, em vez de um fenmeno contingente que varia em
forma e intensidade de acordo com a situao, tpico e sistemas administrativos como
vimos, nem todas as decises so feitas em um contexto de grupos, devendo-se,
portanto, aceitar a poltica-burocrtica como varivel, tendo seu impacto sobre a
resultante tambm de forma varivel (Hart e Rosenthal: 1998, 236). Terceiro, a
literatura tende a dar mais ateno a dinmicas patolgicas de processo decisrio ou
atuao em situaes de crises, o que dificulta generalizaes para os casos normais,
que so bem mais numerosos (Hermann: 2001, 51). Quarto, h uma concepo muito
mecnica na relao entre a posio institucional dos indivduos e os papis que
representam (Hollis e Smith: 1986). Por fim, na definio do modelo da poltica-
burocrtica, os autores salientam que a resultante o resultado da barganha entre 37 Tel 735. GATT. Barreiras tcnicas. EUA-Brasil. Pesticidas. Portaria IBAMA. 6 de maio de 1992. Telegramas recebidos (701 at o 1400) do ano de 1992 de Delbragen. 38 Ver tambm (Destler: 1974, 52; Hudson: 2007, 75). 39 Indeed, the U.S. bias in the decision-making literature has made it difficult to generalize to other countries and has given researchers blind spots regarding how decisions are made in governments and cultures not like the American (Hermann: 2001, 49).
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jogadores (players) posicionados hierarquicamente dentro do governo (Allison e
Halperin: 1972, 43). No h, outrossim, uma preocupao com as funes que os
jogadores exercem dentro do processo decisrio e como a especializao desses
jogadores pode ser mais importante do que a posio relativa na hierarquia do aparelho
estatal na determinao das relaes de poder e das prprias caractersticas da unidade
decisria (Kaarbo: 1998, 75). Na prxima seo, abordaremos essa questo de maneira
mais pormenorizada.
1.3 Especializao funcional em grupos decisrios
Na literatura sobre poltica-burocrtica bastante generalizada a idia de que todos
atores dentro de um grupo compartilham o poder de forma equivalente e interagem em
jogos para se chegar a uma deciso nenhum indivduo ou departamento
preponderante e o poder compartilhado de forma igualitria entre esses atores
(Kaarbo: 1998, 74). Essa no uma caracterstica restrita a trabalhos puros de poltica-
burocrtica. Um exemplo o volume de Irving Janis, que trata de uma patologia
psicolgica de processo decisrio (Groupthink). De acordo com o autor, durante a Crise
dos Msseis, o grupo utilizado por Kennedy para deliberar sobre o problema funcionava
de forma que seus membros exerciam a funo de generalistas cticos, ou seja, em
uma situao no hierrquica (Janis: 1982, 141).
As diferenas dos recursos dos atores s emergem nessas teorias quando h a
discusso sobre as estratgias de barganhas utilizadas no processo de pulling and
hauling. Destler coloca a questo exatamente nesses termos quando afirma que quem
influencia qual discusso e em qual grau determinado pelas estratgias utilizadas
dentro do processo decisrio domstico. Essas estratgias, por seu turno, seriam
derivadas da autoridade formal, obrigaes, status, conhecimento, confiana do
presidente, representao de constituintes especficos, acesso ou controle sobre
informaes, alianas com governos estrangeiros e capacidade na produo de bons
trabalhos (Destler: 1974, 58).
Allison e Halperin tambm utilizam a mesma idia. Para os autores, em jogos
decisrios, a probabilidade de sucesso de um determinado ator depende de seu poder e
sua habilidade em utilizar vantagens de barganha derivadas da autoridade formal,
controle sobre recursos necessrios para implementar a ao, responsabilidade para
implementar a ao, controle sobre informao e capacidade de persuadir outros atores,
em especial aqueles que tm controle sobre a implementao (Allison e Halperin: 1972,
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52). Halperin e Kaarbo seguem a mesma linha de Destler e Allison. Somente quando os
autores falam em como as estratgias que os participantes utilizam para influenciar seus
pares que a questo da diferenciao dos atores abordada (Halperin: 1974, 139-50;
Kaarbo: 1998, 74).
Dessa maneira, a literatura no consegue ver como a diferena de recursos no
impacta o processo decisrio somente por intermdio das estratgias que os atores
utilizam para alavancar seus interesses dentro de uma unidade decisria. Na verdade, a
diferena de recursos ajuda a moldar a prpria unidade e o processo de deciso. A
dificuldade em ver a questo sob esse prisma talvez seja derivada da clssica distino
de Huntington entre processo decisrio legislativo e executivo usada por Rosenau,
Neustadt e outros autores, que criaram as bases para o modelo da poltica-burocrtica.
Para Huntingon, a natureza do processo decisrio pode ser ou legislativa ou
executiva. O processo legislativo ocorre quando as unidades participantes do processo
decisrio so relativamente semelhantes em termos de poder (e conseqentemente
devem barganhar entre si); h desacordo sobre os objetivos de uma poltica (policy); e
h mais de uma alternativa a ser considerada. J o processo executivo ocorre quando as
unidades participantes diferem em poder (so hierarquicamente posicionadas); objetivos
fundamentais e valores no esto sob discusso; e o nmero de alternativas limitado
(Rosenau: 1967, 43-4). Esses dois processos no apresentam-se necessariamente nos
respectivos ramos executivos e legislativos de um governo, podendo ocorrer os dois na
rea de poltica externa. Os trabalhos de poltica-burocrtica salientam a natureza
legislativa do processo decisrio, notadamente as caractersticas de barganha, desacordo
na definio da poltica (policy) e relativa semelhana em termos de poder dos atores.
Isso retira bastante alcance explicativo desses modelos. A principal razo que o
prprio desenho da unidade de deciso ser influenciado pela diviso dos recursos entre
os atores. Uma outra questo que no deve ser esquecida que no processo decisrio h
diversas atividades que devem ser realizadas podendo ocorrer uma diviso do
trabalho por uma coordenao lateral entre os atores e no uma barganha (Destler:
1974, 14). A coordenao lateral implica que os atores podem at ter poder igual, mas
como desempenham funes distintas, no se encaixam dentro do modelo legislativo; e
se a distino do poder no se d em linhas hierrquicas, e sim em linhas de funo
definidas por controle de recursos e especializao, o processo no se assemelha ao
processo executivo.
Devemos utilizar, portanto, outro modelo calcado, agora, no impacto da
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especializao e diferenciao funcional dentro do processo de deciso. A idia para
estruturar esse modelo a de que devemos analisar uma unidade decisria como um
sistema de relacionamento de competncias (Snyder, Brucket al.: 1962, 106). Isso