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O CAIPIRA CIENTÍFICO Wilson Gonçalves da Cruz

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O CAIPIRA CIENTÍFICO Wilson Gonçalves da Cruz

ISBN:::: 590 332 L1 129 P138 Todos direitos autorais reservados.

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AGRADECIMENTO

À Deus por permitir que eu tome parte do milagre maior da vida com discernimento, a meus pais Fileto e Emília pelo amor irrestrito; à minha amada Eliana pela confiança e estímulo incondicional e a meus filhos Vanessa, Michel, Marcel e Priscila.

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O autor: Wilson Gonçalves da Cruz é morador nato de Lins-SP. Professor formado em Física pela Faculdade Auxilium de Filosofia Ciências e Letras de Lins-SP. Possui Especializações em: Física pela PUC de Belo Horizonte em Minas Gerais; Astrofísica e Cosmologia pelo Observatório Nacional do Rio de Janeiro; Docência em Ensino Superior e Mestrado em Odontologia pela USC de Bauru-SP. Com experiência de décadas em ensino superior e secundário, atualmente dedica-se a música, leitura e à escrita.

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SUMÁRIO

Capítulo 1 – O milagre que veio do céu--------07

Capítulo 2 – O golpe ------------------------------14

Capítulo 3 – Fugindo para sobreviver ----------26

Capítulo 4 – O enigma ----------------------------40

Capítulo 5 – Ladrões no cemitério---------------55

Capítulo 6 – Um tiro, uma mulher --------------66

Capítulo 7 – De volta à zona de guerra --------81

Capítulo 8 – O fundo do poço -------------------88

Capítulo 9 – Retomando os caminhos ---------93

Capítulo 10 – A recompensa--------------------103

Capítulo 11 – A prova final ----------------------110

Ilustrações da aventura----------------------------122

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CAPÍTULO 1

O MILAGRE QUE VEIO DO CÉU.

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O galo começava a cantar. Era o anúncio costumeiro de um novo dia para Tonho, que há anos

presenciava diariamente essa cena acontecer. Abriu os olhos depois de uma noite mal dormida e contemplou novamente o leve clarear do dia por entre os largos vãos de seu barraco.

Casa de madeira tão desgastada pelo tempo, pobre e humilde que simbolizava bem a natureza de Tonho que, com um grande nó na garganta e uma forte dor no peito via esse cenário, seu mundo, pela última vez.

No dia anterior havia sido despedido como empregado da fazenda Jacinta, lugar que ocupava nos últimos dez anos, desde que se separara de Guilhermina, sua amásia com quem conviveu por alguns anos.

Tonho trabalhava como um dos empregados do Dr. Rui, proprietário da bela fazenda Jacinta que estava sofrendo uma desapropriação, de modo que, na mente de Tonho, circulava a lembrança dos momentos em que foi chamado e teve que enfrentar o Dr. Rui para ouvir o que temia: ser despedido. Durante algum tempo esse confronto foi rejeitado pelos pensamentos de Tonho, depois que ficou sabendo que os empregados estavam sendo chamados no escritório da fazenda e sendo despedidos.

Algumas palavras, que no dia anterior haviam sido pronunciadas pelo Dr. Rui, consolaram-no nesse amanhecer:

-Tonho, você é um homem especial e merece todo respeito e consideração, por ser trabalhador, honesto e uma pessoa de bom coração. Sempre nos serviu e eu gosto muito de você, mas infelizmente tenho que dispensar seus trabalhos. Estou totalmente sem posses e perdi quase tudo que eu tinha.

Mas quero pagar o que ainda lhe devo. Além do seu dinheiro, leve com você o burro Malhado. Ele está sob seus cuidados há tantos anos e vocês se dão muito bem... é como se você fosse seu dono. Ele obedece a você e sei que lhe vai ser útil. Quando desejar, você poderá vendê-lo e conseguir algum dinheiro.

Tonho não estava feliz. Não queria deixar aquela vida que, embora sem possibilidades de progresso, tinha sido seu mundo durante tantos anos. Mas, de certo modo, algo confortava seu coração: ultimamente vinha pensando muito em voltar para sua casa de infância onde morava com seus avós.

Desde pequeno Tonho não vira mais sua avó. Quando tinha 12 anos, não querendo mais voltar para escola, fugiu de casa e passou a trabalhar em um circo, depois de enganar seu dono com uma história mirabolante em que ele se passou por um garoto desamparado que perdeu a mãe e era violentado pelo padrasto. De lá para cá, além de alguns anos no circo, Tonho só trabalhou na zona rural, em muitas fazendas e era um matuto nato.

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Ultimamente Tonho andava sonhando, vez ou outra, com a avó e sentia que ela estava ainda viva, mas que deveria estar precisando dele devido à velhice. Esse pensamento perseguia-o, desde quando soube da morte do avô, alguns meses após sua morte. Dessa forma, voltar para casa da avó era reconfortante apesar de tudo. Havia, pois, chegado o momento.

Como pretendia sair com o raiar do dia, Tonho já havia preparado algumas coisas para levar. Algumas poucas peças de roupa, um galão de água, algumas ervas, palha, fumo e, também, alguns pães para viagem. Tonho não possuía bens além de uma cama, um guarda roupa velho e uma mesa. E, também, não podia levar nada, mesmo que tivesse.

Pegou os preparativos para viagem, colocou no arreio do burro Malhado e deixaram a casa rumo à estrada que passava na entrada da fazenda, a oito quilômetros da casa que ocupava.

A paisagem da fazenda exibia uma belíssima visão com o relevo montanhoso e muito verde da relva ainda úmida e das árvores exuberantes que refletiam um colorido estonteante sobre as águas do lago. Emocionado meio aos cantos dos pássaros e com o coração tomado de tristeza ele falava com o burro Malhado.

- É, Maiado,...agora a coisa ta feia. To disimpregado, só cum dinheirin di nada, i cuma baita viage pa fazê. E pa piora num sei se vai vale a pena vortá ...e se avó tive murrido? Vamu criditá qui naum.

E uce, Maiado, acho bão i cumeno um poco dessa grama verdinha que é pa mode enche o buchu pruque a viage é danada de longe até o sítio qui trabaia u Bilermino. A fazenda qui u Bilermino trabai tamem é uma mensidão e tem muita potranca. Vo dexa uce cum ele. Ele vai cuida muito bem duce...e vai te arruma umas namorada pur lá.

Eu sei que uce já ta meio baquiado e cansado de tanto trabaiá i pricisa dum bom lugar pa fica. Lá oce vai fica bem...mas é longi...e nesse passo di tartaruga que oce ta só vamo chega lá nu ano que vem...

O Malhado era um burro qualquer, porém, sua relação com o Tonho o tornava muito especial. Ele parecia entender Tonho, sobretudo obedecia aos seus comandos, aliás, somente a ele, Malhado obedecia. No entanto era espetacular o modo como Malhado obedecia Tonho. Se pedia para sentar, ou deitar, por exemplo, Malhado atendia prontamente, além de muitos outros comandos.

Absorto em seus pensamentos e conversando com o burro – provavelmente para evitar o excesso de pranto – Tonho percorreu a estradinha da fazenda por entre os grandes montes verdes e, quando estava próximo aos limites da propriedade, algo extraordinário aconteceu. Tonho nem imaginava que aquele momento traria consequências que mudariam drasticamente a sua vida. Um avião teco-teco, voando muito baixo e mostrando claramente que tinha problemas devidos às manobras

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desesperadas que executava, voou em sua direção e fez uma desastrosa aterrissagem por entre os arbustos. Foi a cena mais assustadora que Tonho já havia presenciado em toda sua vida.

- Arriegua. Qui diabo é isso, Maiado? Essa coisa quaisqui tiro minha cabeça...até arranco meu chapél!

Espantado com a cena e o barulho, correu até o avião que estava a poucos metros dele. No avião havia apenas o piloto, uma bonita mulher que estava totalmente presa entre as ferragens meio à fumaça e combustível. Mesmo assim, Tonho aproximou-se da mulher com a intenção de socorrê-la, mas ela estava muito ferida e imóvel.

- Ajude-me, implorava. Eu vou morrer... não há mais esperança para mim. Agora estou perdida e eles venceram.

Rápido! Tire os meus brincos. O avião vai explodir. Tire os meus brincos... é só puxar das orelhas...TIRE MEUS BRINCOS...

Obedecendo, Tonho puxou seus brincos e cada um tinha uma grande pérola.

Nesse momento, assustados, viram ao longe na estrada dois automóveis que se aproximavam com grande velocidade.

- Esconda esses brincos... isso não pode cair nas mãos deles. Eles vão me matar e matam qualquer um. Você precisa fugir e esconder essa joia. Dentro de cada pérola há uma bolinha azul que se parece com uma pequena bala. Não deixe que eles peguem essas balas. Depois que fugir com elas... abra uma das pérolas e chupe a balinha azul que está dentro dela...mas apenas uma. Se chupar uma bala você vai ter muito mais chance de devolver a única amostra que restará. A outra deve ser entregue ao professor Dr. Ramon... encontre-o ... ele precisa muito disso....e sai daqui agora...o avião vai explodir...sai daqui...fuja, fuja...corra.

Enquanto falava essas palavras, foi perdendo as forças e o cheiro de combustível tomou conta do lugar...

- Cumu é qui é moça?...onde eu vou axa esse professo Rumão...e como qui eu vo sabe que ele é ele mes? E a moça murmurou: ele tem um braço diferente...você vai saber que é ele...sai daqui...foge...foge...não deixe que eles fiquem com os brincos.

Confuso, Tonho correu por um instante pra lá e pra cá...foi até o burro que estava a alguns metros dali, colocou os brincos no arreio e ordenou:

- Maiado, vai pra casa...vai, Maiado, vai pra casa. E o burro afastou-se, sozinho, de volta, em galope, obedecendo a

uma ordem que Tonho constantemente lhe dava. Assim que o animal saiu em disparada, Tonho tentou voltar ao avião, mas, nesse exato momento, os dois veículos chegaram bruscamente e estacionaram levantando muita poeira.

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Todos puderam então presenciar uma grande explosão do avião acidentado, seguida por uma nuvem de fumaça, enquanto as portas dos automóveis se escancaravam. Homens bem vestidos e armados desceram dos carros e mandaram Tonho afastar-se. Com certeza pensaram que o caipira havia chegado junto com eles e não perceberam toda movimentação que ali houvera, muito menos o burro que se afastou rapidamente por entre as árvores.

Um dos brutamontes ainda gritou com Tonho, enquanto disparou uns tiros para o alto:

-Sai daqui, Zémane. Aqui não tem nada pra você... - Zemané? Ei ta mi confundino cum otru. Vo pica mula qui os omi

num tão di brincadera! Assim, Tonho tratou de correr e sumiu por entre a vegetação

regressando para a casa que acabava de deixar. Andou o caminho de volta quase que em disparada até a metade do percurso e só depois reduziu o ritmo. Quando se aproximou do curral deu de cara com o próprio Dr Rui e dois empregados ao lado de um caminhão de boi, conversando com o motorista. Espantado ele interrogou:

-Tonho, você por aqui? Eu achava que você já estava longe. -Ahh, Doto, cunteceu uma tragédia horrive na entrada da fazenda.

Cail um avião i isprudiu. O Maiado disispero i saiu correno qui nem um buscapé e deve te vortado pra casa e eu vim busca ei i já to vortano di novo.

Com a notícia recebida, Dr. Rui e o motorista do caminhão já se mobilizaram. Tonho afastou-se e encontrou Malhado pastando perto da casa que ele estava deixando. Aproximou-se do burro, verificou seus pertences e tudo estava em ordem, olhou dos lados para ver se não havia ninguém olhando e pegou os brincos que recebeu da jovem mulher moribunda. Chacoalhou e viu que realmente tinha algo solto dentro de cada pérola.

As cenas do acidente invadiram novamente sua lembrança. -Ajude-me, implorava. Eu vou morrer... não há mais esperança para mim. Agora eles vão me pegar. Tire rápido o meu brinco. O avião vai

explodir. Tire os meus brincos... é só puxar das orelhas...TIRE MEUS BRINCOS...

Tonho fechou os olhos, viu e sentiu tudo novamente recordando todos os detalhes:

-Você precisa esconder essa joia. Dentro de cada pérola há uma bolinha azul que se parece com uma pequena bala. Não deixe que eles peguem essas balas. Depois que fugir com elas... abra uma das pérolas e

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chupe a balinha azul...mas apenas uma delas. Se chupar a bala, você vai ter muito mais chances de devolver a única amostra que restará. A outra deve ser entregue ao professor Ramon... encontre-o ... ele precisa muito disso....e saia daqui, agora...o avião vai explodir...sai daqui...foge.

Guardou o par de brincos com todo zelo, escondendo-os entre seus pertences. Montou e tratou de ir embora de volta para estrada.

Ao passar no local do acidente existia uma grande movimentação de carros, dois caminhões e, também, um helicóptero, todos do exército que isolara a área. A fumaça ainda persistia. Mas não viu nenhum dos dois automóveis que estiveram ali com ele.

Tonho ainda estava assustado e curioso com tudo o que se passou e pegou a estrada para Santa Rita, rumo ao “sítio do Bilermino”, onde pretendia deixar Malhado.

Caminhou o restante do dia até o pôr do sol, quando chegou, já cansado, a um pequeno posto de combustível, que mais parecia um oásis na imensidão do estradão poeirento. O lugar era pequeno, humilde, com uma bomba de combustível, um pequeno bar e alguns quartos, usados para pernoite.

Tonho soltou o burro embaixo de uma grande árvore, abasteceu-se com a água de uma torneira do posto, lavou o rosto e levou um pouco de água para o Malhado num pedaço de pneu velho que achou por ali.

Comeu uns pedaços de pão e relaxou, encostando-se no tronco da árvore.

Estava exausto e sabia que ia pegar no sono ali mesmo, mas, novamente lembrou-se das palavras da linda mulher que viu morrer tragicamente:

-Depois que fugir com elas... abra uma das pérolas e chupe a balinha azul que vai encontrar dentro dela...mas apenas uma delas.

Tonho só havia comido pão e um pedaço de linguiça e a ideia de chupar uma bala não era má. Afinal, que mal havia? Se isso fosse realmente perigoso a jovem mulher que explodiu com o avião não lhe teria pedido para guardar e proteger uma das balas e entregar para o tal professor Ramon, pensou!

Assim, Tonho abriu uma das falsas pérolas com os dentes, tirou a tal balinha azul que estava dentro, cheirou – tinha um leve aroma de anis – e enfiou na boca. Não mascou, nem foi preciso, pois rapidamente, ela se dissolveu com calor da boca e deixou um frescor levemente amargo. Tonho ainda lambeu os beiços, ajeitou-se melhor e entregou-se profundamente ao sono.

Depois das primeiras horas de sono, muitos sonhos tomaram conta da mente de Tonho. Viajou, voando entre números, séries numéricas, frações, equações, figuras geométricas, tudo com muitas cores e texturas e

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o cansado homem parecia gostar do que sonhava, pois esboçava um marcante semblante que delineava um sorriso, enquanto babava e roncava com o chapéu de palha cobrindo os olhos.

A noite foi longa e os sonhos não paravam. Muitas luzes e cores como cenário de um mundo onde os números e a ciência pareciam ganhar vida. E em seu sonho Tonho admirava:

-Mãe di Deus. Qui diabo é isso. É tudin diferenti mas to intendeno sô. Óia as raiz quadrada,, us triango...alá a dona hiputenusa i us cateto...nossasiora (Nossa Senhora) que catetin...nossa qui catetão!

O que Tonho não imaginava é que aquelas duas balinhas contidas no par de brincos da jovem mulher que pilotava o avião que sofrera aquele acidente trágico era o resultado de quase dez anos de trabalho de um ultra-secreto centro de pesquisa tecnológica do governo, envolvendo códigos biogenéticos e nanotecnologia.

A jovem que conduzia o avião e as duas balas era quase tudo que havia restado depois de um ataque inesperado que sofreram e que fora promovido por um núcleo terrorista internacional que devastou o centro de pesquisa que tinha suas instalações subterrâneas a uns oitenta quilômetros dali, numa base militar.

O Dr. Ramon era o cientista responsável pela pesquisa e a jovem mulher que morrera no avião era a cientista Drª. Nancy. Eram muito amigos e compartilhavam em segredo o êxito das pesquisas que culminou com a obtenção da substância contida nas duas balinhas que Tonho agora possuía.

Após inúmeras pressões para concluírem a pesquisa de caráter militar Dr. Ramon e Drª Nancy ocultavam o produto final depois que souberam que o fruto de seus trabalhos seria usado com propósitos bélicos, muito diferentes daqueles que faziam parte do projeto. Assim, ambos pretendiam fugir e difundir suas descobertas para objetivos humanitários.

Entretanto foram descobertos e a Drª. Nancy conseguira fugir, apesar de estar sendo perseguida. Ela não sabia o que houvera com o Dr. Ramon, porém, acreditava que ele também deveria ter escapado ao atentado, utilizando uma das suas estratégias para situações de emergência, já que era tão meticuloso e astuto.

O produto final dos dez anos de trabalho do centro de pesquisa resultou nas balinhas que poderiam transformar drasticamente a mente de quem a ingerisse.

De modo excepcional as substâncias contidas nas cápsulas em forma de balinhas atuavam no cérebro de quem as digerisse fazendo com que, como num passe de mágica, a pessoa adquirisse alto conhecimento matemático e científico. O real motivo de como isso ocorria ainda estava

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sendo investigado pelos dois cientistas, entretanto, o importante é que a aquisição de conhecimentos era inevitável e crescente, com o tempo. Assim, apesar de a substância não alterar seu comportamento, trejeitos e linguagem, indubitavelmente, a vida de Tonho sofreria grandes mudanças.

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CAPÍTULO 2

O GOLPE

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Na manhã seguinte, já perto das nove horas da manhã, Tonho acordou com o Malhado lambendo seu rosto. Há muitos anos ele não acordava tão tarde. Abriu os olhos e ficou assustado com o que viu.

Tudo estava muito igual, mas, ao mesmo tempo, novas formas de observar apareceram. Todo cenário estava recheado de conhecimentos. Formas geométricas como as do prédio do posto, da cerca ao lado; o formato das árvores, das nuvens e quase tudo se mostrava numérico e científico. Via e compreendia claramente coisas que jamais imaginara e não entendia como aqueles pensamentos passavam pela sua mente como uma música. A luz, o calor, a eletricidade e o magnetismo e muitos outros tópicos das ciências passavam a fazer parte de seu conhecimento.

Levantou-se e tentou não dar muita importância a tudo isso. Dirigiu-se até a torneira, lavou o rosto e voltou até o burro. Nesse momento um homem aproximou-se deles educadamente. Tonho desligou-se dos devaneios científicos e concentrou-se no recém-chegado.

- Bom dia, senhor! - Dia, moço. -Muito prazer. Meu nome é Carlos. -Praze tamém, Tonho... - Esse burro malhado é seu? - É sinsinhô. -E como é o nome dele? - Maiado. - E ele sabe fazer alguma coisa especial? - Num sei se é especiá mai ei mi bedece. -Pode demonstrar alguma coisa que ele faz? -Posso. Maiado! E o burro olhou para Tonho. Sai pralá! Sai pralá, Maiado! E o burro afastou-se umas dez ou doze passadas, virou-se para ele e

parou. -Deita! E o burro deitou. -Ta veno. Ei mi bedece. Num bedece mai ninguém, só eu. -É fantástico. -Escute. Você quer ganhar um bom dinheiro fácil? - Depende, moço. Se num fo nada qui põe a puliça trás di mim,

porque o so muito dereito. -Não é nada disso. Você só precisa me emprestar o burro por uma

noite. -Isso num dá certo não, moço. Maiado é como um irmão. Nóis é

muito pegado. -Além dumais nóis tamu viajanu. Vamu pru sur.

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-Se vai para o sul então vai passar por Santa Rita que está a cinqüenta quilômetros daqui, não vai?

- Vo sinsinho, mas vo deixa o Maiado no sítio que trabaia o Bilermino, que só ta a uns trinta quilômetros daqui, purisso eu vou passa em Santa Rita, mai u burro, naum. Prumiti pro Maiado que vo deixa ei lá. O Bilermino é muito quirido pelos patrão i a fazenda que ei trabaia tem muita jumenta pu Maiado iscoie pa namora, num sabe? Ei vai gosta di lá. Si eu pudessi lavava ei cumigo, mais eu vo pa muito longi. Temo que separa mes, faze o que.

-Tenho uma proposta pra você. Ouça: Estou levando uma caminhonete com três animais. Um burro

também malhado, uma égua branca e um cavalo preto. São todos animais de raça e valem muito dinheiro. Vou entregar esses animais numa fazenda da família Pedreira pertinho de Santa Rita hoje, no fim do dia. Venha até o carro que vou lhe mostrar eexplicar melhor.

Enquanto se dirigiam para a caminhonete ao som da tagarelice do rapaz com a mão no ombro do caipira, Tonho parecia interessado já que podia pegar uma carona com Malhado até seu primeiro destino e ainda ganhar algum dinheiro.

- Isso parecia bom. Tonho ficou espantado com a beleza dos animais e, a caminhonete

tinha espaço para quatro animais em compartimentos independentes e Malhado poderia viajar ali sem problemas.

Também percebeu que a forte interferência científica a que agora estava sujeito não afetava seu modo de ser e muito menos causava perturbação de congestionamento de ideias se ele não desse importância a esse fato e se concentrasse no que estava fazendo.

E...continuou Carlos. - Minha proposta é a seguinte: Você e seu burro vêm comigo na

caminhonete e vamos viajar pra Santa Rita. Chegando lá eu deixo o meu burro num lugar seguro. Você vem comigo e nós entregamos o seu Maiado e os outros dois na fazenda, mas eu te prometo que é só por essa noite. Amanhã cedinho nós vamos pra Santa Rita que eu tenho que encontrar um cliente na estação às oito horas, quando o trem for sair. Assim que eu conversar com ele, nós voltamos para a fazenda, trocamos o meu burro pelo seu e eu te dou uma nota de 100. Além disso, nós voltamos e levo vocês até a fazenda em que trabalha seu amigo, onde você quer deixar o burro. O que acha?

- O Maiado num vai te qui trabaia? Só vai passa a noite lá e é só isso?

Ta muito isquisito isso moço. Gosto da fruita mai num gostu di inguli caroço!

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I oce acha qui eis vão aceita o Maiado? A égua e o cavalo são uma maravia. O Maiado ainda ta jeitoso mais num si compara eis. Eis é bichu de raça.

- Mas é aí que você entra e faz seu serviço. Você dá umas ordens para seu burro e, depois que ele lhe obedecer, vão achar que o burro foi comprado porque seu grande porte está na inteligência. Fique tranquilo.

Amanhã cedo, quando eu chegar para trocar o burro, eles vão aceitar imediatamente quando olharem para o meu burro. Ele tem muito mais corpo e basta olhar pra ele e a gente nota que é um animal especial.

Confie em mim que vai dar tudo certo. É só isso. Eu entrego o seu burro hoje no pôr do sol. Você fica com

meu burro que é de raça e muito valioso durante essa noite, como garantia. Amanhã cedo, vamos à cidade. Enquanto você toma um cafezinho, eu falo com meu cliente na estação. Voltamos, trocamos os burros e eu o deixo na fazenda do seu amigo, você e seu animal e ainda ganha uma nota de 100 e eu lhe pago agora. Combinado?

Tonho pensou por um instante e Carlos já lhe entregavou o dinheiro. Meio duvidoso o caipira topou.

E assim fizeram: ajeitaram o animal na caminhonete e partiram depois de o caipira esconder em seus trajes o outro brinco, sem que Carlos percebesse.

Durante a viagem Carlos e Tonho conversaram bastante. Carlos lhe contou do seu trabalho transportando animais valiosos. Demonstrou conhecer toda a região, nome de fazendas famosas e seus proprietários e até comentou que também pretende viajar para o sul, como Tonho, porém, quando chegasse a hora, disse resignado e que estava se preparando para isso.

Carlos ficou intrigado com Tonho porque, algumas vezes durante a viagem, o caipira pronunciava números grandes como, por exemplo, setenta e oito mil novecentos e trinta e oito, ou falava coisas que ele não entendia, tal como polarização, fotossíntese térmica, ressonância e outros termos esquisitos. Quando questionado sobre isso, Tonho disse que gostava de números, matemática e, também, de ciências. O rapaz ficou intrigado, mas não deu muita importância para isso e, como era do tipo falador, continuou tagarelando.

Tonho se mostrava bem matuto e sem cultura, apesar de seu olhar, agora mais atento. Tinha um ralo e fino bigode, era meio dentuço com os dentes da frente ligeiramente separados e não tirava o chapéu de palha da cabeça. Tinha o andar meio desengonçado e uma leve barriguinha.

Carlos era moreno, estatura mediana, magrelo, ágil e usava cavanhaque.

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Chegando à cidade, foram imediatamente para a fazenda onde deixariam os animais. Carlos parecia conhecer muito bem o local. Antes porém, afastou-se a uma pequena estradinha deserta e escondeu o burro de raça amarrado com corrente e cadeado, na sombra de uma árvore.

Dirigiram-se à fazenda e logo na entrada foram recebidos por dois empregados que o encaminharam para o estábulo onde se encontrava o administrador e mais meia dúzia de empregados.

Enquanto tiravam os animais da caminhonete, o administrador indagou:

-Espere um pouco. Dá pra ver claramente que a égua e o cavalo são animais de raça. Mas e esse burro? Ele não parece ter a qualidade dos animais que vivem aqui. Não tem algum erro nisso?

Imediatamente Carlos interferiu: -Conheço seu patrão, o senhor Almir Pedreira, e sei que ele está

viajando e só chega na semana que vem. Porém, ontem ele estava em Esperança e lá comprou esses animais num leilão. Meu patrão, um dos diretores do leilão deu-me a tarefa de entregar esses animais aqui. Quando o senhor Pedreira chegar, na semana vindoura, vai confirmar a compra.

- Além disso, está enganado quanto a esse animal, meu senhor, afirmou Carlos.

-Ele é especial. Quer ver? -Tonho. Dê alguma ordem ao burro para esses senhores apreciarem

a qualidade desse animal. E Tonho ordenou: -Maiado! Sai pralá. Sai pralá, Maiado. E o burro afastou-se uns quinze passos, virou-se para ele e parou. -Deita! E o burro deitou. -Vem, Maiado! E o burro aproximou-se. Está bem, disse o administrador, ainda desconfiado. Considere

entregues os animais. E assim, quase noite voltaram para a cidade depois de buscar o burro

de raça. Trataram de ir para uma pequena pousada nos arredores da cidade para passar a noite.

Um quarto com duas camas custava mais barato que dois quartos individuais e, assim, Tonho que nunca se hospedara em lugar nenhum preferiu estar junto a Carlos.

Na verdade o plano de Carlos era desonesto, porém tramava tudo escondendo a verdade de Tonho. Sabia que o caipira era honesto e, de modo algum, concordaria em praticar algum delito.

Almir Pedreira e Osmar Pedreira eram dois irmãos ricos fazendeiros que se tornaram inimigos mortais após a morte do pai que lhes deixou grandes fazendas e muita fortuna. Acabaram recebendo partes diferentes na

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herança do velho pai devido à existência de dois testamentos que gerou até briga corporal entre eles durante a disputa judicial. Mesmo assim eram muito ricos, mas se odiavam. Um culpava o outro pela morte do velho. Viviam em permanente disputa de poderes e, cada um queria se mostrar melhor que o outro.

Almir era o proprietário da fazenda onde os animais foram entregues, porém, no dia do leilão Osmar estava presente e também almejou o animal e só desistiu dos lances devido ao alto valor que o burro tinha atingido pela disputa nos lances dados pelos dois irmãos inimigos. Osmar desistiu, mas ficou furioso.

Na verdade ambos os irmãos não ficaram satisfeitos. Osmar, porque não adquiriu o burro e Almir, por ter desembolsado tanto dinheiro pelo animal. Cerca de trinta mil. Valor muito maior que a quantia que o animal valia realmente.

Carlos tinha conhecimento de que o Sr. Osmar Pedreira, irmão rival de Almir, iria embarcar no trem que passa em Santa Rita numa viagem para capital. Sua intenção era ir até à estação antes de ele chegar, dispensar Tonho de alguma maneira e oferecer o burro à venda por apenas dez mil.

Na verdade ele já tinha planejado uma história que acusava seu patrão de ter ocultado o animal que agora lhe oferecia, para um próximo leilão. Garantiria que o burro que estava na caminhonete seria irmão gêmeo do burro que seu irmão havia adquirido.

Tinha plena convicção de que o Sr. Osmar compraria o animal e pediria que o entregasse na sua fazenda. Só teria que receber na mesma hora da venda e até imaginava que receberia um cheque que, sem nenhum problema, poderia ser descontado num banco da cidade. Depois de descontar o cheque, pretendia realmente trocar o burro com o Malhado, livrar-se do caipira e fugir com o carro. Osmar pagaria, mas ficaria sem o animal.

A partir daí ele sabia que seria então procurado pela grande confusão que armaria, mas, de posse do dinheiro e da caminhonete, pretendia ir para muito longe e desaparecer de vez da região sem intenção de um dia voltar por ali.

E assim a trapaça desenrolou-se. Acordaram muito cedo e deslocaram-se rumo à estação ferroviária.

Chegaram por volta das sete horas e trinta minutos. Carlos sabia que não adiantava chegar muito antes porque, muito provavelmente, o Sr. Osmar só chegaria em cima da hora de o trem partir, já que era um homem de negócios e muito ocupado.

Carlos sabia que, mesmo que Tonho não se afastasse de perto da caminhonete, na hora que o esperado chegasse, ele diria para Tonho ficar

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distante, enquanto falava com o seu “tal cliente” por isso, estacionou o automóvel um tanto afastado no pátio da estação. Mesmo assim, sugeriu:

-Tonho, você sabe que tenho negócios pra tratar com um cliente agora, antes de o trem partir. É melhor eu ficar sozinho por aqui esperando por ele.

Você, está vendo ali adiante aquelas pessoas e aquelas barracas? É uma feira. Lá há muita coisa pra você olhar e comprar, se quiser. Também pode tomar um bom café da manhã. Assim que o trem apitar para partir você vem e vamos trocar os burros, não gosta da ideia?

-Ce acha qui so besta? retrucou Tonho. Se eu sai di perto duce oce pode imbora i mi larga na mão. A genti

mar si conheci, cumo posso confia... - Não seja por isso, afirmou Carlos, sacando do bolso o documento

do automóvel. - Fique com ele até você voltar. Depois me devolve, ta bem? -Ta bem eu vo mai ce tem qui dexa cumigo tamem a chavi do carru. Não vendo saída e preferindo que Tonho se afastasse logo e não

presenciasse sua transação, concordou, depois de muito recomendar atenção com a chave e os documentos do veículo.

Minutos depois de o caipira afastar-se da caminhonete chegou o homem. Desceu de um carro de luxo cercado por quatro capangas e já se preparavam para subir à plataforma da estação, quando Carlos se aproximou em passos largos dirigindo-se à vítima:

-Bom dia, senhor Osmar Pedreira. Perdoe minha intromissão, mas o senhor se lembra de mim?

-Acho que sim, disse o homem com cara de poucos amigos. - Já vi você no leilão. Acho que é empregado dos donos, não é isso? - Isso mesmo. Acontece que trago uma pechincha para o senhor.

Lembra-se do burro que desistiu de comprar, depois que ofertou vinte e um mil e seu irmão saltou a oferta para trinta mil?

O rosto do homem tomou um aspecto ainda pior e seus olhos brilharam com ódio.

-Pois bem. Meu patrão tinha mais um burro igual àquele. Eles são gêmeos, filhos da mesma mãe. Ele só mostrou um no leilão e guardou esse que esta comigo para um próximo evento. Acontece que seu irmão pagou trinta mil no animal e, no final das contas, acabou tendo uma discussão calorosa na hora de pagar o que comprou. Estava furioso e reclamou muito. Pelo que eu entendi meu chefe tinha prometido a ele algum tipo de ajuda durante a disputa. Assim seu irmão pensou que não precisaria pagar os trinta mil que ofereceu exageradamente como lance, mas, pelo visto, não foi isso que lhe foi prometido e descontente, ele teve que pagar para o

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empregado responsável por receber as vendas, os trinta mil para levar o animal. Deu uma grande confusão.

No outro dia meu chefe tomou conhecimento dessa discussão e, como ele tem um xodó pelo seu irmão e, não querendo perdê-lo nos próximos eventos, me mandou ir até ele e oferecer essa pechincha. Esse excelente animal por apenas dez mil, que é um valor muito bom no mercado. Ele acredita que dessa forma seu irmão vai se sentir mais satisfeito, pois no final da história, terá adquirido dois animais excelentes por quarenta mil. Trinta de um mais dez do outro e isso deve deixá-lo contente.

Mas eu acho que isso não está certo e por isso vim, por conta própria, oferecer o animal ao senhor. Sei que isso pode até complicar minha vida quando meu patrão ficar sabendo, mas vai demorar um pouco até que ele saiba e, pelos meus riscos... achei que o Sr. também poderia me dar uma pequena recompensa por esse feito.

Devo acrescentar que eu faço isso também, porque não gosto do seu irmão. Ele foi muito grosso comigo num evento alguns meses atrás e acabei levando uma surra de seus capangas.

-Onde está o animal? Interrogou o homem já interessado. Aproximaram-se da caminhonete e ouviram o som do apito do trem

que se aproximava ao longe. O homem examinou o burro e gostou do que viu.

-Está bem, concordou. Vou lhe dar dez mil e quinhentos. Dez pelo burro e mais quinhentos

pra você. - Muito obrigado, senhor, exclamou Carlos animadíssimo – o senhor

pode me dar um cheque que eu desconto. -Nada disso, esnobou o homem. Vamos até meu carro. Pegou em seu interior uma pasta preta e abriu sobre o capô do

carro. Estava completamente cheia de dinheiro. Pegou um dos maços com dez mil em notas de cem e contou mais quinhentos de um outro maço.

Os olhos de Carlos brilhavam, porém a próxima frase do Sr. Osmar Pedreira fez Carlos bambear.

- Paulão! - Sim, senhor! Prontificou-se um dos capangas – um brutamonte de

dois metros de altura. -Você não vai mais viajar comigo. - Sim senhor! - Acompanhe esse homem até minha fazenda e certifique-se que o

animal vai ser colocado lá, ordenou. - Sim senhor, não se preocupe! - Agora vamos senão eu perco o trem.

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E se afastou junto a seus capangas seguidores em direção à plataforma de embarque onde o trem já apitava o sinal de partida.

Carlos e o capanga mal encarado foram rumo à caminhonete e, quando se aproximaram dela, depararam-se com Tonho trazendo uma gorda e grande leitoa puxada por uma cordinha, acompanhando seus passos.

- Carlo, mi ajuda a po essa porca no carro. É qui ganhei essi bicho na fera.

- Ganhou? Como é isso?Do que você está falando? - Carma homi, adispois o isprico. E o brutamonte do Paulão reagiu. - Peraí. Ninguém vai por nada de nada. O trato não é esse. Nós

vamos entregar o burro na fazenda do Sr. Pedreira e é só isso. Nem esse baguá, garantiu apontando para Tonho, e muito menos essa porca vão subir na caminhonete.

- Espere, Sr, disse Carlos. O carro é dele. Mostre a ele, Tonho. E o caipira tirou do bolso a chave e o documento do carro. - Não estou entendendo e muito menos gostando de tudo isso, mas... Está certo então, seus idiotas. Fazer o quê? Estamos perdendo

tempo. Ponham logo esse bicho no carro e vamos embora. Enquanto Tonho e Carlos colocavam a porca na carroceria da

caminhonete, Tonho questionava o golpista desesperadamente, aos cochichos:

- Essi qui é seu criente? U homi mais pareci um quardaropa. E cumu oce tem boca grandi i já falo prele que nóis vamu dexá u burro na fazendo do Pedrera!

- Fica quieto. A gente tem que se livrar dele senão nunca mais você verá seu burro.

- Cumu assim? - Vamos com isso, gritou Paulão. - Psiu. Fique quieto. Vou pensar alguma coisa. A gente tem que se

livrar dele. Entraram na caminhonete e Tonho sentou-se no meio entre Carlos e

Paulão e seguiram rumo à fazenda do Sr. Osmar, que ficava do outro lado da cidade e percorreram alguns quilômetros em completo silêncio.

Nesse momento todos estavam confusos. Paulão não entendia muito bem tudo o que estava acontecendo. Ia apenas acompanhar a entrega de um burro e agora estava na caminhonete de um caipira com uma porca gorda. Tonho não entendia porque não estavam no caminho que vieram e se afastavam ainda mais da fazenda onde estava Malhado e Carlos, matutando desesperadamente, um modo de se livrar do Paulão.

Foi ai que o Paulão perguntou.

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- E então. Conta pra nós como foi que você ganhou essa leitoa. - Bão. La na fera tinha um povaréo ino e vino e comprano. Tamém

tinha uns vendedô di barraca gritano qui nem loco. Mai tinha uma barraca qui um homi prumitia qui qualqué um pudia

ganha um premio. Pra ganha o caboco tinha qui arrespunde certinho um pobrema.

Ei gritava u qui tava iscritu num cartais grudadu na barraca deli. Essa melancia pesa um quilu mai meia melancia iguar a ela. Quanto é qui pesa uma melancia i meia? Quem acerta i porva (provar) leva o premio! E eu acertei i ganhei u brindi que era a Mariaduarda.

-Quem é Maria Eduarda? – questionou Paulão. - A porca uai. Já di um nomi prela, - respondeu orgulhoso. - E como fez para acertar a resposta, indagou Carlos. - Eu carculei, ué. Acha qui tenho cabeça pa separa oréia? I oces

sabe a resposta poracaso? - Deixe-me pensar, disse Paulão, e repetiu o problema: “ Uma melancia pesa um quilo mais meia melancia igual a ela.

Quanto pesa uma melancia e meia?” ... é isso? - É sinsinho. Carlos e Paulão olharam um para o outro, pensaram, pensaram,

disseram algumas respostas erradas e o caipira continuou: - I num bastava só acerta a resposta. U homi queria que provaci cum

a matemática. - Já vi qui uceis tamém num sabi e é muito faci. - Qual é a resposta, perguntaram. - A resposta certa é treis quilo. - E como chegou à resposta, disse Carlos, curioso. - Facim. Eu maginei a balança di dois prato cum uma melancia num

prato i nu otro prato meia melancia mai um peso di um quilo, certo? Intãu pensei qui si eu tirasse a meia melancia de um prato ela ia fica

quilibradinha ainda si eu tirasse meia melancia tamém du otro prato. Isso qué dize que ia sobra meia melancia num prato e o peso de um quilo no otro. Então, meia melancia pesa um quilo. Uma melancia pesa dois quilo e finarmente, uma melancia i meia pesa treis quilo.

- Que esperteza, comentou Carlos. - É mai o homi num aceito essa minha ispricação i falo que eu so ia

leva u premio se mataci a cobra i mostraci u pau, pruque a Girtrudi era u premio mai importanti du dia. Ei quiria que eu iscrivinhaci tudo isso ca matemática. Intão, eu mostrei preli, uai.

- E como fez isso, indagaram ao mesmo tempo. - Bão, num sei si oceis vão intende mai eu arrezurvi pra ei num

pedaçu di papel di pão.

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Si u peso da melancia é m e o pobrema dizia: m = 1 +(1/2)m . Intão isso qué dize que m – (1/2) m = 1.

Cumu m menos meio m é meio m, intão (1/2) m = 1. Issu é, uma melancia pesava dois quilo. Facim pra acha que uma melancia e meia era treis quilo. Prontin ganhei a porca.

Sem entenderem nada Paulão e Carlos se entreolharam espantados e surpresos. Paulão finalizou:

- Esse cara não é desse planeta!

Chamando o peso da melancia de X, o peso de meia melancia é de ½ X.

Assim, pode-se equacionar:

X = 1 + ½ X

Resolvendo a equação obtem-se X = 2, ou seja, o peso da melancia vale 2 kg.

Nesse instante um estouro ouviu-se e a caminhonete serpenteou pela estrada até parar. Um dos pneus estourou. Por sorte encontravam-se a uns cem metros de um outro posto e tiveram que empurrar a caminhonete até lá. Apesar de ela ter estepe, não possuía macaco.

Nesse percurso Tonho tomou o volante da caminhonete, enquanto empurravam, pois o caipira se recusou a empurrar o carro, alegando ser o dono do veículo.

Empurram até a borracharia do posto e dirigiram-se ao banheiro. Lavaram as mãos e fizeram um xixi, mas também perceberam que

havia uma larga rachadura na parede que dava para o lado do banheiro das mulheres. Aproximando o olho bem perto da fresta, ela focalizava precisamente o local embaixo de um chuveiro.

Afastaram-se dali e entraram na lanchonete onde uma bela mulher com um decote generoso lhes serviu café. Ninguém se atreveu a olhar detalhadamente para a bela mulher, já que seu forte e mal encarado marido trabalhava junto a ela, do lado de dentro do balcão.

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Depois de pagarem pelo café, o caipira ficou para trás, enquanto olhava alguns “souvenires” que estavam à venda. Paulão e Carlos foram até a borracharia, mas antes do borracheiro apertar o último parafuso Tonho chegou comentando:

- Viru qui muierão é aquela? A muié parece uma potranca! I oceis qué sabe? ... ela vai toma um banho agora. Iscuitei ela dize isso pu marido quando ia saino da lanchonete.

Imediatamente, Paulão afirmou. -A caminhonete já está quase pronta, mas esperem por mim que me

deu uma dor de barriga agora. Eu volto já. E saiu apressadamente em direção ao banheiro masculino com

intenção de buraquear a mulher. - Ce num quiria se livra dele? Intão é agora, cochichou Tonho a

Carlos. Pagaram rapidamente o conserto e afastaram-se em disparada

deixando Paulão para trás. - É verdade mesmo que a mulher ia tomar banho? interrogou Carlos

assim que saíram. - Não, afirmou o caipira. - Quem ia tuma banho era o marido dela... e caíram na gargalhada. Retomaram o plano inicial e foram imediatamente à fazenda onde

trocariam o burro de raça pelo Malhado. Lá chegando a cena se repetiu. Foram recebidos à entrada, por dois empregados, só que, desta vez, um dos homens acompanhou, a cavalo, a caminhonete até próximo ao estábulo.

Antes mesmo de o carro parar já ouviram o administrador da fazenda gritar de modo desbocado:

- Bom mesmo que voltou para dar jeito nesse pangaré orelhudo que não atende a ninguém. Não obedece a comando nenhum, mais parece uma porta! Sabia que havia algo errado.

-Calma meu senhor, interrompeu Carlos. - Voltamos para resolver um mal entendido. O burro malhado que

está com o senhor não era para ser trazido com os outros animais. Foi um erro do meu patrão. Esse animal que está na caminhonete é o que deveria ter recebido. Sinto muito, senhor, mas viemos trocá-lo.

O homem aproximou-se de Carlos olhando bem dentro de seus olhos e concordou:

-Eu seria um louco, se não aceitasse trocar esse burro tantã por esse animal que trouxe agora. Mesmo assim, estou farejando que tem alguma coisa muito errada nessa história. Por isso vou aceitar a troca, mas... também vou chamar a polícia, porque sei que “nesse pau tem mel”.

Não demonstrando uma falsa tranquilidade Carlos comentou eloquente:

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- Sabe senhor. Cada dia que passa eu percebo o quanto meu chefe merece que eu tire o chapéu para ele. Antes de eu sair de lá com esse animal quase divino, ele me disse o quanto o senhor é homem meticuloso e quanto gosta das coisas muito certinhas. Por isso ele me pediu para que lhe trouxesse um presente para o próximo final de ano. Vê na caminhonete essa leitoa que mais parece uma princesa? Pois é sua. Seu Natal já estará garantido! Ele também me recomendou muito que eu não esquecesse dos seus sinceros pedidos de desculpa por qualquer transtorno.

Tonho arregalou os olhos, mas se calou, entendendo a piscadela que Carlos lhe dirigiu.

-Está bem, concordou o homem. Dessa vez passa... e mande um abraço para seu chefe.

E ordenou a dois empregados que fizessem a troca dos animais e afastou-se.

Já no interior da caminhonete respiraram aliviados, mas antes mesmo de saírem da fazenda Tonho protestou.

- Ce ta doido que deu a minha Mariaduarda pa esse animá? - E o que você queria? Perder seu burro e a gente ir pra cadeia?

(fim da amostra)