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AGRADECIMENTOS

ÀescritoraBiancaSantana,leitoradosoriginaisequemeorientounaescritadocapítulo“Umacomunidadeparacuidar”,pelalongevaparceria;aojornalistaVictorSousa,querealizoupartedapesquisaparaestelivro;aosmeusparceirosdoInstitutoProcomum:GeorgiaNicolau,MaguiGuarita,NivaSilva,MarinaPereira,LuisMassonettoeJoãoBrant;aojornalistaCelsoNucci,pelaleituradosoriginais;àminhacompanheiraLiaRangeleameusfilhosJúliaeFrancisco,peloamorepelapaciência;aoprofessorSergioAmadeudaSilveira,pelaconfiança.

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Beiradomar,lugarcomumComeçodocaminhar

PrabeiradeoutrolugarGilbertoGil

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NOTADOEDITOR

Porsetratardetemaquereúneumgrandenúmerodetermoseexpressõeseminglêsquesãodeusouniversalounãocontamaindacomtraduçãoidealparaoportuguês,optamospornãousaritálicoparataisocorrênciasaolongodotexto–exceçãofeitaaostítulosdeobrascitadaseàspalavrasquenãofazempartedojargãorelacionadoaoassuntodolivro.Consideramosqueousorecorrentedoformatoitálicoterminariaportrazerdesconfortoàleitura.

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SUMÁRIO

Apresentação

Prefácio

IntroduçãoNavegandonacomplexidade

Capítulo1Noprincípio,odigitalInternet,webesoftwarelivreAlternativastecnológicas

Capítulo2Decifra-meedevoro-teIntroduzindooconceitoAtragédiadocomumOcomumcontraoneoliberalismoProduçãocolaborativabaseadaembenscomunsQuatroentornosdocomum

Capítulo3Nós,opovoPorumaconstituintecomuneiraSumakkawsayouobemviver

Capítulo4Acidadeénossa!Políticaspúblicas;cidadãosinteligentes

Capítulo5

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UmacomunidadeparacuidarQuilombos,terreirosealegria

Capítulo6OplanetaéumcomumÁgua:abasedavidaAéticadascomunidadestradicionais

Capítulo7Conhecimentoentretod@sMemória,ancestralidadeeoralidadeArteeinovaçãocidadãparaocomum

Capítulo8PresságiosparaoagoraConstruindoorganizaçõesdocomumIntuiçãoparacaptarsoluções

Referênciasbibliográficas

Sobreoautor

Créditos

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DESDEFINSDOSANOS1990,comadifusãodainternet,palavrascomointeração,colaboração,troca,recombinaçãoecompartilhamento

passaramaorganizarnãoapenasagramáticadasredesdigitais,mastambémpartedaprópriadinâmicasocial.Trata-sedeumconjuntodeexpressõesligadasaformasdeproduçãoedistribuiçãodeinformaçõesesaberesquedescortinamnovoscenários,cobrando-nosesforçosreflexivosparacompreenderseusefeitos,tantopelasperspectivasdacomunicaçãoedacultura,comopelosviesesdaeducação,daeconomiaedapolítica.

Hoje,épatenteoalcancedasredesdeconexãodigitalemumpaísdedimensõescontinentaiscomooBrasil.Se,porumlado,ainternetpromoveadinamizaçãosemprecedentesdasinteraçõesremotaseoexponencialincrementodoacessoedaproduçãodeconteúdo,poroutro,nota-seemseusambientesumaacirradadisputapelasatenções(eadesões),quesevãorevelandoconcentradasemumlequelimitadodeplataformas,siteseaplicativos.

SobocrescimentodousodasredesnoPaís,temascomoliberdade,direitoshumanos,igualdadesocial,censura,gêneroeraçapovoamocotidianodosfórunsvirtuais,nãorarofacultandoalternativasaotipodeabordagemdesenvolvidanosmeiostradicionaisdecomunicação,comoorádio,aTVeaimprensaescrita.Istosedeve,entreoutrosfatores,àrelativizaçãodadivisãoentreaquelesquepautameaquelesqueconsomemainformação,namedidaemqueessafronteiravaisendoapagada.

Umavezqueaexpansãodaredealavancaamultiplicaçãodovolumededadosedasuacorrelatadisseminaçãonaesferapública,assimcomoestimulaaparticipaçãodecrescentenúmerodepessoasnasdiscussõessobreassuntosdeinteressecomum,caberianosperguntarmossobreorealimpacto,nodebatepúblico,dessaformadecirculaçãodeinformaçõesevozes.

Nessesentido,épromissoraaconstituiçãodeumacoleçãoqueseproponhaareunirautoresbrasileirosdedicadosapensarasdinâmicasensejadaspelasredesdigitaisdeconexão,investigandoasuainfluênciasobreosrumosdademocracia.OrganizadapelosociólogoedoutoremCiênciaPolíticaSergioAmadeudaSilveira,acoleçãoDemocraciaDigitalconvidapesquisadoresdocampodaculturadigitalasedebruçarem,apartirdediferentesabordagens,sobrearecentehistóriadessaambivalenterelação.

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NolivroOcomumentrenós:daculturadigitalàdemocraciadoséculoXXI,oautorRodrigoSavazoniperscrutainúmerasformasdovivercomunitário,desdeostradicionaismodeloscomosquaisescolhemose/ounosélegadoexistir,aoscontemporâneosestilosdeumconvivervirtualemplataformasdigitaisqueextrapolamasdivisasgeofísicase,numarrojadomovimentodeliberdade,selançamcontraatémesmomodosdevidahegemônicosquenoscercamcotidianamente.

Pautando-seporumalinguagemclaraedireta,acoleçãopretendedespertar,emigualmedida,ointeressetantodepesquisadoresdaáreadetecnologiaecomunicaçãocomodeumpúblicoleitormaisabrangente,quesevêenvolvidoemseucotidianocomaparatostecnológicospermanentementeconectados.Emformatodigital,fazusodeumsuportehábilemampliaraspossibilidadesdeacessoaestudosacercadeaspectoscentraisdavidacontemporânea.Dessaforma,reforçaopapeldaleituracomoexpediente-chavedaeducaçãoconcebidaembasesemancipatórias,utilizandoatecnologiadigitalcomoferramentapropíciaaumespaçosocialcrítico,inventivoerenovador.

DaniloSantosdeMirandaDiretorRegionaldoSescSãoPaulo

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ESTELIVROTRATADOPASSADOEDOFUTURO,dopresentealtamentetecnológicoedatradiçãoorganizadaempráticasecuidadosde

quilombolas,ameríndiosetantasoutrascomunidades.Faladeaçõesconcretas,atuais,sofisticadasdemakersehackers.Aomesmotempoencontraastrilhaseosentidodasutopiasdequemquersuperarasociedadesemequidadeejustiça.Assim,estapublicaçãovaipercorreroscaminhosdocomum,ochamadocommonsemlínguainglesa.

RodrigoSavazoniconstróiumtextoindispensáveledeumaoriginalidadenecessária.Odebatesobreocomumpoucasvezesfoiorganizadodemodotãosintéticoe,aomesmotempo,abrangente.Massuaoriginalidadeestánofatodesuperarodiscursodocomumvinculadoprincipalmenteaomundoricoousomentecomoexpressãodegrupostradicionais.Aquiaforçadapráticacomumdosameríndiossemisturacomaculturadacolaboraçãodigitalpromovidapelosdesenvolvedoresdesoftwarelivre.

EsteémaisumlivrodacoleçãoDemocraciaDigital,quebuscatrazertemascomplexos,relevantesefundamentaisparacompreenderasrelaçõesepossibilidadesdasarticulaçõessociaisemaquínicasdeummundotecnológico,cibernético.Aideiaeaspráticasdocomumdialogamdiretamentecomofuturodanossademocracia,tãodesgastadaetãocorroídapelainsuficiênciadomodoliberaleplutocráticoquelhedáformaemnossocotidiano.Ademais,ocomumnãodeixadeserconstantementeacompanhadopelasombradofantasmadocomunismodeEstado,burocratizado,autoritário,derrotadonasuaversãosoviéticapelocapitalismocomandadopelosEstadosUnidos.

Seminclinarsuanarrativaapenasparadebaterodevirdocomum,Savazoniapresentaecontrapõeosprincipaispensadoresdaatualidadequeformularamedescreveramocomum,deElinorOstrom,acientistapolíticaqueganhouoprêmioNobeldeEconomia,atéoprofessorImriSimon,daUniversidadedeSãoPaulo,ambosinfelizmentefalecidos,eMiguelSaid,daUniversidadeFederaldoABC.Tambémmostraasdiversasmatrizesqueapostaramnaevoluçãodocomum,dapropostadeAntonioNegrieMichaelHardtaSilviaFederice,queocriticacomoportadordecertailusãotecnicista.DoliberalLawrenceLessig,criadordaslicençasCreativeCommons,inspiradasnamobilizaçãocolaborativadosoftwarelivreiniciadaporRichardStallman,aRigobertaMenchúeà

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perspectivadobemviver.TratoudedialogarcomLavaleDardotsemesquecer-sedepercorreraanálisedeAndréGorzeasuavisãodaimportânciadoimaterial,doshackerscomoumcertotipode“dissidentesdocapital”.

Mas,afinal,oqueéocomum?Savazoniconsegueexporacomplexidadeeapolissemiadesseconceitosemaprisioná-lo.Ocomumnãocabeemumaúnicadefinição.Ocomumpodeserumprincípio,comoquerLavaleDardot,masé,antesdemaisnada,umaconstruçãocomunicativaecoletiva.Porisso,ocomuméaesperançadeumasolidariedadeativadapelavontadedepotência,pelaenormecapacidadequetemosdeacreditarquepodemosviverummundosemviolênciaecomdignidade,impossíveldeobteremmeioatantadesigualdadeepráticasindividualistas.Ocomumsefaz,dificilmenteseexplica.Compartilhamento,colaboração,organizaçãoemancipatória,soluçõeseresultadossocializadossãoelementosdaaçãopelocomum.

Nessesentido,ocomuméumaalternativaqueultrapassaaspropostasdeaçãonoEstadoparaenfrentaraordemneoliberaleocapitalismodevigilância.Ocomumcolocaemchequeatransformaçãodetodaequalquerproduçãoemempresa,questionaoidealdeprecarizaçãoapresentadocomoinovaçãoemquecadapessoaéoempregadordesi.Oscuidadoscoletivos,abuscadobemviver,assoluçõescompartilhadasedistribuídasemtecnologiasdeparapar,aspossibilidadesdelibertaçãodapobrezasubjetivadocapitalismoquetransformatodasetodosemmerosalgoritmosmaximizadoresdeganhoseminimizadoresdeperdas,tudoissoépartedaconstruçãodocomum.

Estelivrotantopodeserlidoporumcuriosoquantoporumacadêmicoembuscadeumareflexãoaprofundadasobreocomum.Suaforçavemdaelegantereuniãodateoriaaosinúmerosexemplospráticosdescritoscomsuavidade,semsaltoseredundânciasdesnecessárias.SavazoninosapresentaaquiatrajetóriaconceitualepráticadocomumnasmontanhaseflorestasdaAméricaLatina,nasvielaseruasdasgrandescidades,noslaboratóriosdealtatecnologiaenasconexõesdociberespaço.Boaleitura.

SergioAmadeudaSilveira

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OESCRITORURUGUAIOEDUARDOGALEANO,emumtextoquesetornoufamosounsanosatrás,afirmanãohavernadamaisimportante

queodireitodesonhar.Segundoele,somentefixando“osolhosmaisparaládainfâmia”podemosdivisar“umoutromundopossível”.Éimportanterecuperaressaideiaporquenãonosfaltamrazõesparatemerofuturo.Vivemosumaépocadedemocraciasfrágeiseilegítimas,demercadoscadavezmaisperversos,sobaégidedeumsistemaprodutivoquealterou–comconsequênciasaindainimagináveis–omeioambienteplanetário,noqualafaltadesolidariedadeeempatiaentreospovosoperaoressurgimentodaxenofobiaeoextermínioemmassadecriançasejovens,sobretudonegros,eemquemilharesdepessoasdeixamsuasterrasvítimasdapobreza,dafomeedaviolência,conformandoumalegiãoderefugiados.Aindaassim,afiliadoàperspectivadeGaleano,proponhoatravessarmosjuntosooceanodainfâmia,comosefôssemosintrépidosnavegadoresembuscadealternativasquenosinspiremesperançaemumfuturomelhor.Nasmãos,vamoscarregarumconceitoquepodesernossabússolanabuscadobemviver:ocomum.Umconceitonãotãonovoassim,masquenasúltimascincodécadas1vemganhando,anoaano,impulsoentreasmulhereseoshomensquenãodesistiramdeconstruirumahumanidademaissadia,portanto,maislivreeigualitária,consequentemente,maisdemocrática.

Nodecorrerdaspróximaspáginas,ocomum,tambémchamadodecommons,eminglês,edeprocomúnoucomún,emespanhol–queapressadamentepodeserdefinidocomoumbemgeridopormeiodeumacomunidadequeseautogoverna–,seráesquadrinhadoapartirdediferentesperspectivas,buscandointroduzirparaumpúblicoamploessetemaumtantocomplexo.Parasairdaabstração,meproponhoanarraredescreverexemplosdepreservação,gestãoeconstruçãodecomunsqueconcretizemoqueautoresdediferentescorrentesdepensamentoecosmogoniaspropõemapartirdessaideia.Emespecial,etalvezessasejaumadasimportantescontribuiçõesdestetrabalho,citareicasoseprocessoslocalizadosnoBrasilenaAméricaLatina,umavezquegrandepartedabibliografiaatualsobreoassuntoéeuropeiaeporissoseconcentranosepisódiosecenasdoVelhoContinente–processoigualmenteimportantequetambéméobjetodestelivro.Comespecialatenção,oplanoépromoverumdiálogoentreoconceitodecomumeaideiadedemocracia,queseencontranestemomentosobataque–

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umavezqueasimplesenunciaçãodeseunomeevocatambémsuafaltadelegitimidade2.

Nestanossanavegação,vamospercorrer,aindaquebrevemente,umenormearquipélagodealternativas:doBrasilàVenezueladascomunascomuneiras;doEquadoredaBolívia,dobemviveredoviverbem,àdiásporadesseconceitopelospovosindígenasdaAmérica;daabordagemfeministadeautorascomoSilviaFedericiaodiscursodasmulheresnegrasbrasileiras;dosfuçadorescalifornianosaoshackersdescalçosdosulglobal;dosmovimentoscamponeses,quilombolas,caiçaras,ribeirinhosedepequenosagricultoresàshortasurbanasedeproduçãodealimentosorgânicosemnossasmegalópoles;dascasascoletivasdasidosasfrancesasàsocupaçõesculturaiseambientesdetrabalhobaseadosemmoedasocial;doscoletivosartísticosaoscientistaseeducadoresqueacreditamnocompartilhamentodoconhecimentoeconstroemplataformasparafacilitaroacessoirrestritodoscidadãos;dosdesenvolvedoresdesoftwarelivreaospoetasemúsicosqueproduzemcomtecnologiaslivreselicenciamsuasobrasemCreativeCommons;dosjovensmadrilenhosquetomaramasruasepraçasdeseupaísdefendendomaisemelhordemocraciaaosgestoresitalianosqueestãoembuscadeconstruirumdireitodocomum.Aotérminodestepériplo,nãoesperodasleitoraseleitoresoabandonodaperplexidadediantedaconjuntura,masadisposiçãodecaminharmosjuntosnaconstruçãodomovimentocomuneiro.ComoafirmaohistoriadorMassimodeAngelis,citandooconceitopropostoporseucolegaPeterLinebaugh,“thereisnocommonswithoutcommoning”,ouseja,nãohácomumsemoprocessodeproduzi-lo(ou,comotraduzadiretoradoInstitutoProcomum,GeorgiaNicolau,“nãohácomumsemcomunhar”).Assim,podemosdizercomtodasasletrasqueocomuméumcaminho,comoautopiadeGaleano:acadapassodado,seafastaumpoucodenós,masnospõeemmovimento.Importantetambémdizerquequandofalamosdecomunsénormalnosremetermosaosbenselementares,essenciais,comoaterra,oar,aluz,osoceanos,osrios,osalimentos,asflorestas,osgenes,oscorpos,mastambémdevemosconsiderartudoaquiloqueossereshumanoscriamemseuprópriobenefício,paraampliaraconexãodaspessoas,comoainternet,ossoftwaresdecódigolivreeosespaçospúblicosdascidades.Ocomuméumapautaampla,impossíveldeexplicarpormeiodafragmentação.Nestanavegação,buscamosumoutrojeitodeviver,ondeahibridizaçãoéregra,adivisãonatureza-culturanãofazsentido,eosonhonosconduz.Adentremosooceanodacomplexidade,nestanauequipadanãocomumaluneta,mascomumcaleidoscópio.

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***Olivroestádivididonestaintroduçãoeemoitocapítulosquetêmcomo

objetivoesquadrinharoconceitodecomumapartirdediferentesângulosdeabordagem,intercalandonarrativasedescriçõesdeestudosdecasocomasvozesdeautoresdevariadoscamposdopensamento.

Oprimeirocapítuloédedicadoaomomentoemqueapopularizaçãodainternettrouxenovofôlegoparaodebatesobreocomum.Nocaso,iremosanalisarnãosóoprocessoconstitutivodainternetedaworldwideweb,comotambémmergulharemosnafilosofiamatricialdosoftwarelivre,comocasoespecíficodoGNU-Linux.AhistórianostraráaoBrasildoiníciodoséculoXXI,emqueculturadigitaletecnologiaslivressetornarampolíticasdegoverno,produzindoumfenômenodereconhecimentointernacional.TambémtrataremosdaemergênciadaslicençasCreativeCommons,dodebatesobrepropriedadeintelectualedoprocessodeconcentraçãodepodernasmãosdascorporaçõesdomundodigital,quecolocaemriscoainternetcomoumcomum,paraaofinallançaralgunsquestionamentossobrequaistecnologiasprecisamosparaseguirmosvivos.

Osegundocapítuloapresentaumadiscussãoconceitualsobreocomum.Inicialmente,vamosquestionaroprópriotermo,umavezqueemportuguêsexistemdiferentesperspectivassobrecomosedevetraduzirotermocommons,amplamenteutilizadoeconsolidadonaliteraturaanglo-saxã.Depois,apartirdediferentesautores,comoGarretHardin,ElinorOstrom,ChristianLavalePierreDardot,MichaelHardteAntonioNegri,SilviaFederici,MichelBauwens,SilkeHelfrich,AntonioLafuente,JoanSubiratseCésarRendueles,YochaiBenkler,ImreSimoneMiguelSaidVieira,ofocoserácircundarosdiferentesolharessobreoconceito,paraintroduziroleitornacomplexidadedodebatequeenvolveocampo.Evidentemente,trata-sedeumsobrevoopanorâmicoeinsuficiente,masqueprocureiaprofundarnodecorrerdaobra.

ComoescrevemLavaleDardot,ocomumestáenraizadonatradiçãopolíticadademocracia,emespecialnaexperiênciagrega.Apartirdessapremissa,discutonoterceirocapítuloarelaçãoentrecomumedemocraciadesdeumpontodevistaconceitual,mastambémapartirdeexperiênciaspráticasdeenfrentamentoearticulaçãocomoEstadoquevêmocorrendo,sobretudo,naEuropaenaAméricaLatina.Dosprotestosàspropostas,da“democraciarealagora”àsdiferentesgestõespúblicasespanholasquebuscamocomumcomoescoraparaexperiênciaspolíticasinovadoras;aarticulaçãode

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comuneiros3naEuropa,acriaçãodaAssembleiadosComuns,comsuadisposiçãoparaabrirocódigodaUniãoEuropeia;aConstituiçãodoEquadorealógicadobemviver,eascomunascomuneirasdaVenezuelapós-HugoChávez.Estamosdispostosaavançardarepresentaçãoparaummodelomaisdistribuídodegovernança?

Ocapítuloquartobuscaoferecerumdosmaisaquecidosdebatessobreocomum:oquefazercomasnossascidades?Dosfestivaisdeocupaçãodoespaçopúblicoaoesforçodeimpediraprivatizaçãodeparques,praçaseruas,oschamadoscomunsurbanosseespalhampelasprincipaiscidadesdoplaneta.Nestelivro,recuperamosalgumashistóriasocorridasnoBrasiletambémascomparamosaexperiênciasjámundialmentereconhecidasqueconstamdabibliografiasobreotema.DeSãoPaulo,ocasodoParqueAugusta.DeRecife,ahistóriado#OcupeEstelita,umemblemáticoenfrentamentodoscomuneiroscontraomercado.QualopapeldoEstado?ApartirdeMadri,aexperiênciadoEstaesunaPlaza.DaItália,oscasosdeNápoleseBolonhaeacriaçãodelegislaçõesespecíficasparacomunsurbanos.IssoemdiálogocomosapontamentosdogeógrafoDavidHarvey,doarquitetoStavrosStavrideseoconceitodedireitoàcidade.

Trabalhodoméstico,trabalhoreprodutivo;quemcuidadascrianças?Quemcuidadosvelhos?Dosdoentes?Emumdeseusprovocativosartigos,apesquisadoraitalianaradicadanosEstadosUnidos,SilviaFederici,chegaaafirmarqueamulheréocomumdohomem.Emsuaobra,recuperaoarquétipodabruxaparaseperguntar:afinal,porqueocapitalismocombatecomtantaforçaasmulheres?Oquintocapítuloédedicadoaoconceitofeministadocomum.ElesófoipossívelapartirdodiálogocomapesquisadoraeescritoraBiancaSantana,quemeintroduziunadiscussãobrasileira,chamandoaatençãotambémparaosaspectosraciaisedeclasse,àimportânciadamemóriaedaancestralidade.Nessaseçãotambémiremosabordaracosmogoniaafro-brasileira.ApartirdasproposiçõesdeMãeBethdeOxum,vamosolharparaoterreirodecandomblécomoumbemcomum,ancestraleatual,umlaboratóriodepráticascomuneiras.

QuasetodotextosobreoscommonsrecontaahistóriadasterrascomunaisdaIdadeMédia,seuusocoletivoeseuposteriorprocessodecercamentoquedemarcaoiníciodocapitalismo.Nãoàtoa,portanto,muitosdosestudosinauguraisdocampodepesquisasobreessetemaenfocamarranjosprodutivosdeextrativistasouagricultores.Aquestãodaterraedospovostradicionais,daalimentação,daagriculturaedaáguasefazpresentesnosextocapítulo,bem

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comoodebatesobreopatrimônioambiental,osoceanos,aspraias,oar,oschamadosbenscomunsglobais.AquioeixocentraléafirmarGaia–parausaraexpressãocriadapeloambientalistaJamesLovelockparasereferiraoplanetaTerra–comoumcomum.Nessaseção,tragocontribuiçõesdascosmogoniasameríndiasàdiscussão(estamossobosdomíniosdePachamama)eapresentoalgumasformulaçõesdofilósofoBrunoLatouredoantropólogoEduardoViveirosdeCastrosobreaantropologiadasuficiênciaeainseparabilidadeentrenaturezaecultura.

OsétimocapítuloiniciarecuperandoahistóriadoativistaAaronSwartz,quepoderíamosdescrevercomoummártirdosbenscomuns.Jovembrilhante,Swartzlutoupelaliberdadedoconhecimento,enfrentandoospoderososlobbiesdapropriedadeintelectualeamáquinadeguerradogovernodosEstadosUnidos.Cercadoeaçoitado,sesuicidou.Suahistóriaevidenciaqueadefesadosbenscomunsintelectuais,aliberdadedoconhecimento,aculturalivreeaciênciacidadãconstituemumtemacentraldomundoatual.Deumlado,oscomuneiros.Deoutro,interessesbilionários.Nessecapítulo,apontoalgumasdasalternativasquetemosparaaconstruçãodeumaéticadoconhecimentoabertoelivre.Umadelas,oslaboratórioscidadãos,redesdepessoas,iniciativaseespaçosparaaproduçãodeummodelodeinovaçãocidadãeecologicamentecomprometida.Tambémvamosolharparaaculturapopularcomoumgrandemanancialdocomum.

Alíderdopovomaia,RigobertaMenchú,prêmioNobeldaPaz,dizterrecuperado“umconceitodevidanobemviver”.Eprossegue:“portrásdetodosessesconceitos,estãopresságiosquevêmnosconvidaramudarosistemadevidaquenosestáafogando,quenosestáapagandoasilusões,quenosestácontaminandodemaneiraglobal”4.Ooitavocapítulo,oqueencerraestelivro,lançaalgunspresságios,nãomaisqueisso,deumoutrocaminhopossívelparanossasvidas.Porumlado,seomomentonospedeumamudançadeposturaecomportamentodiantedarealidade,comadefesadeprocessoscoletivosdevivereadoçãodepráticascolaborativasnocotidiano,tambémexigequeenfrentemosodebatemacroeconômico,porqueosistemavigentesegueaprofundandoadesigualdadeereproduzindoapobreza,escoradoemummodelodedesenvolvimentopredatório.

Longedeesgotarotema,Ocomumentrenós:daculturadigitalàdemocraciadoséculoXXIpretendeserumensaiointrodutório,umamãoestendidaparaquemaisemaispessoasseponhamarefletirsobreasalternativase,assim,quemsabe,sesomaràrededeativistasdocomumqueganhaforçaemnossoplaneta.

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Nãonosrestaoutrocaminhosenão,emconjunto,agir.Afinal,omardacomplexidadeéagitado,cheiodeobstáculosearmadilhas,masnosconvidaasingrá-lo.

1AreferênciaaquiéoartigoTheTragedyoftheCommons,publicadonarevistaScienceemdezembrode1968,eosurgimentodainternet,nessemesmoperíodo.

2OestudoLatinobarómetro,queocorrehávinteanos,analisandoocomportamentodaopiniãopúblicanaAméricaLatina,apontaparaodeclíniodaconfiançadoscidadãosnademocracia,comespecialênfasenoBrasil.Parasabermaissobreotema,acesse:<http://www.latinobarometro.org/latNewsShow.jsp>.

3Usootermocomuneiroparamereferiraosmilitanteseativistasqueagemempunhandoabandeiradocomum.Nãousootermocomunistaporentenderqueeleserefereaumdeterminadotipodeagentehistórico,afiliadoaumavisãoespecíficadeatuação,quesedesenvolveuapartirdoséculoXIXequedefendeosocialismodeEstado.

4Cf.“RigobertaMenchú:haciaunavidaenplenitud”.Disponívelem:<https://www.youtube.com/watch?v=vsVM3TzK_dU>,acessoem:23maio2018.

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APRIMEIRAVEZQUEOUVIOTERMOCOMMONS,aindanoseuoriginaleminglêsesemtraduçãoparaoportuguês,foinoiníciodosanos

2000.NoBrasil,sopravamosventosrenovadoresdoFórumSocialMundial,cujasprimeirasediçõesocorreramemPortoAlegre,em2001,2002e2003,reunindoaolongodosanosmaisde200milativistasdetodooplaneta.Eufaziapartedeumgrupodejovensenvolvidoscomamilitânciapelosoftwarelivre,pelaculturalivreepelacomunicaçãoalternativa.Todoséramosentusiastasdastransformaçõesqueainternetvinhaoperandonomundo.Afinal,derepente,podíamosacessarumvastoconhecimentoaumcliquedemouse.Maisqueisso,podíamosproduzirnossosprópriostextosefotos–vídeoseramexceção–ecompartilhá-losemsitescriadospornós,comoosblogs,umainvençãodaquelemomento.Emboraonúmerodeusuáriosdecomputadordebandalargafossereduzido–emumpaísdecercade200milhõesdehabitantestínhamosapenasummilhãodepessoasconectadasaredesdemelhorqualidade–asensaçãoeraadequeestávamosmetidosemumarevoluçãoculturalsemprecedentes.EmcomputadoresrodandoGNU-Linux,comdistribuiçõesqueexigiamdenósalgumconhecimentodeprogramação,escrevíamoshistórias,trocávamosmúsicaspormeiodesoftwaresP2P(peer-to-peer),desenhávamossoluçõesparaocompartilhamentodoconhecimento,nosaventurávamosacriarsoftwaresoucontribuircomosexistentes.Aindanãosabíamos,maséramoscomuneirosdigitais.

Vivendointensamenteessaverdadeirabalbúrdia,descobriodebatesobrepropriedadeintelectual.Afinal,simultaneamenteaessaexplosivaocupaçãodainternetpelos“dissidentesdocapitalismodigital”,comoosnomeiaAndréGorzemOimaterial,ocorriaareaçãodapoderosaindústriademídiaeentretenimentoemdefesadocercamento1dessebemque,quandodigitalizado,torna-seintangíveleincontrolável:ainformação.Comonãorecordardocasomaisemblemáticodesseperíodo,oNapster,plataformadecompartilhamentodearquivosdemúsica(MP3)queem2001chegouater8milhõesdeusuáriosefoiduramenteatacadapelasgrandesgravadoraspormeiodeprocessosquealegavamviolaçãodepropriedadeintelectual?CriadopelosirmãosShawneJohnFanningeporSeanParker,oNapstereraumsoftwareparatrocadearquivosdeusomuitosimples.Suagrandecontribuiçãoerajustamenteutilizara

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tecnologiaP2P(peer-to-peer),ouseja,deparaparoudepontoaponto,querevolucionouainternet.IssosignificavaqueoNapsternãopossuíaumbancodedadoscentralizado.Eraapenasumagenteintermediário,oquefaziadeleumsistemadedádivaperfeitonoqualcadausuáriopartilhavadegraçaseuacervopessoal(obancodedadoslocalizadonodiscorígidodeseucomputador)comoutrosusuários.Nadadiferentedoqueamigosevizinhossemprefizeramcomdiscos(devinilouCDs)efitasK7,sóqueapartirdeentãoemescalaglobaleapartirdearquivosdigitais.Lembro-medoquesignificava,paramim,garotodointerior,aproveitaropulsoúnicodasconexõesdiscadasduranteamadrugada(sim,eraprecisoumalinhatelefônicaparaseconectaràinternet)parabaixarumdiscointeiroqueeuescutariamesesmaistarde.Eraumarevolução,porquejánãoestávamosisolados.Eapartirdessadinâmicadisruptivadeinterconectividadepoderíamosmudarmuitacoisa.

Aopçãopelaculturalivre,portanto,nãoeraapenasumaveleidadedosjovens.Elacriavaumnovoterrenopolítico,que,comoveremos,sófezaumentaraolongodosúltimosanos.Recordo-meque,naquelemomento,umadasquestõescentraisquemobilizavaosativistasdaculturaedacomunicaçãoeraentendercomofazerparadistinguirosconteúdosqueproduzíamosequequeríamosquefossempartilhados,distribuídosetransformadosporoutraspessoasdaquelesprotegidospelocopyright?Umasoluçãoeraocopyleft,colocandoumCinvertidonapáginaweb;dizíamosqueéramosa“esquerda”(left)revertendoumpadrãoqueerade“direita”(right).Umtrocadilhoquedefendiaumaespéciede“liberougeral”,umaprovocaçãoanárquica.Importantesplataformasativistas,surgidasnocalordooutromundismo,comooCentrodeMídiaIndependente(CMI),usavamdesseartifício.Foientãoque,em2002,surgiramaslicençasCreativeCommons,criadasnosEstadosUnidosporumgrupodepessoaslideradaspeloadvogadoLawrenceLessig,comumaabordagempolíticadecunholiberalequerapidamentesetornaramumsucesso.

AhistóriadoCreativeCommonscomeçacomumadisputajudicialnaSupremaCortenorte-americanaenvolvendoEricEldred,quemantinhaumsitedereimpressãodeobrasemdomíniopúblico,ouseja,cujotempodeexploraçãodedireitosautoraishaviaexpirado.EldredserevoltoucomamudançadaleinosEstadosUnidos,queestendeuotempodeproteçãodeumaobrade75anosapósamortedoautorpara95anos,numprocessoqueficouconhecidocomoMickeyMouseProtectionAct(LeideProteçãodoMickeyMouse)porquejustamentefoipropostopelaindústriadeentretenimentoparaestenderaproteçãodecriaçõesdaWaltDisney.OadvogadodeEldrednaaçãojudicialfoiLessig,ativista

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políticoeentãoprofessordedireitodaescoladeHarvard.Lessigmobilizouparaadefesaumgrupodenotáveisdefensoresdaliberdadedoconhecimento,quefoibatizadodeCopyrightCommons.Nofimde1999,ojuizrejeitouosargumentosdaaliançaemdefesadoconhecimentolivre,maselescontinuaramapelando.Em2001,EricSaltzman,queeradiretordoBerkmanCenterforInternet&Society,daUniversidadedeHarvard,propôsmudaronomedogrupoparaCreativeCommons.Eldredfoiderrotadoem2003,masdeseuprocessodedefesasurgiuummovimentopolítico-culturalcomfoconadefesadoscomunsculturais.

Apartirde2002,aestratégiasaiudostribunaisparaganharainternet.AequipedoCreativeCommonstrabalhouacriaçãodeumalicençaalternativa,quepudesseconvivercomaleidecopyrightvigente,masquepermitisseaoautorabandonaralógicado“todososdireitosreservados”paraassumiraopçãode“algunsdireitosreservados”.Inclusivepermitindoqueopróprioautorfizesseaescolhasobrequaisdireitosgostariade“preservar”equaisgostariade“partilhar”.AprimeiraversãodaslicençasCreativeCommonsfoipublicadaemdezembrode2002egerouumenormerebuliço.InspiradanaGNUGeneralPublicLicence,criadapelosdefensoresdosoftwarelivre,aslicençasCCapostavamnalógicadacolaboraçãoedoreúso(remix)queseapresentavacomomarcaprincipaldaculturadigital.Aforçadoprojetoconsistiajustamenteemsuaadaptabilidade,legalidadeecapacidadepedagógica.AslicençasCCforampensadasparaseremfuncionaiscombaseemqualquerleinacionaldecopyrightefáceisdeassimilarparausuáriospoucofamiliarizadoscomoscódigosjurídicosoucomlinguagensdeprogramaçãodecomputadores.Jáem2003,deacordocomumamatériadaediçãobritânicadarevistaWired2,ummilhãodeobrasforamlicenciadasemCreativeCommons.Em2006essenúmerochegoua50milhões,eplataformasdecompartilhamentodeconteúdosdigitaisdachamadaWeb2.0,comoFlickr(defotos),passaramaofereceraseususuáriosaopçãodelicenciarsuaspublicaçõesemCC.Hoje,seguemsendoumaalternativabastanteinteressanteparaquemquercompartilharsuaobracomoutraspessoas,permitindoadaptações,recriaçõeseatémesmoalivrereprodução.

NoBrasil,aslicençasCreativeCommonsforamimpulsionadaspeloCentrodeTecnologiaeSociedadedaFundaçãoGetúlioVargas,doRiodeJaneiro,sobabatutadoadvogadoRonaldoLemos.Ficaramnacionalmenteconhecidas,porém,devidoaumagrandeaçãopolítico-culturalqueenvolveuapublicaçãosoblicençalivredeumadasmúsicasdoentãoministrodaCulturaGilbertoGil.“Oslodum”,acançãoescolhida,dodiscoOsoldeOslo,foiliberadaemumatono

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5ºFórumInternacionaldeSoftwareLivre(FISL),ocorridoem2004,emPortoAlegre.AcançãoéexpressivadaperspectivaantropofágicaquemarcaaobradeGil,umsamba-reggaenabatidadoOlodum,comletraquecarregaparaaEscandináviaaturmadoPelô,fazendocarnavalembaixodeneveoudesol,eondeXangôéThor,ofilhodotrovão.AversãolivredamúsicafoiencartadaemumaediçãodarevistacalifornianaWired,emumálbumchamadoSampletheFuture3,comaparticipaçãodeváriosartistasadeptosdocompartilhamentodoconhecimento.Estivesseeleapenasnacondiçãodeartista,seuatoocolocariaumavezmaisconectado,destemido,àsdescobertasdocontemporâneo.Aofazê-lonacondiçãodeministro,lançouluzinternacionalparaoquevinhaocorrendonopaísnaquelemomento,apartirdaeleiçãodeLuizInácioLuladaSilvaparaapresidênciadaRepública:atransformaçãodaculturalivreemumapolíticadegoverno4.

Internet,webesoftwarelivreAinternet,comodescreveuosociólogoespanholManuelCastellsemA

galáxiadainternet,surgedeuminusitadoarranjodeforçasqueenvolveaciênciadeponta,atecnologiamilitareacontraculturacalifornianadosanos1960.Desdeoseuadvento,apartirdoprojetoacadêmicoArpanet(AdvancedResearchProjectsAgencyNetwork)financiadopelogovernodosEstadosUnidos,foipensadacomoumarededistribuídabaseadaemprotocolosabertos,emquenãohaverianodoscentrais,massimpontasinteligentesinterconectadas.Arazãodessaarquitetura,paraalguns,temavercomointeressemilitardeimpedirquesuacamadafísica(cabos,roteadores,switchesecomputadores),umavezbombardeada,permitisseainterrupçãodacomunicação.Paraoutros,deve-seàideologialibertáriadosengenheirosdaqueleperíodo,quebuscavamumarealdistribuiçãooudissoluçãodopoder5.Paraestelivro,importamenosesseembateemaisafirmarque,desdeoprincípio,ainternetdesenvolveu-secomoumcomum.Suagovernança,baseadaemcentrosdepesquisaelaboratóriosacadêmicoseempresariais,envolviaacooperaçãodeseususuários,embuscademelhorarsuascaracterísticaseusos.NemoEstado–nemmesmoodosEstadosUnidos–nemomercadopoderiamserconsideradososdonosdessarede.

Nofinaldadécadade1970,comacriaçãodoscomputadorespessoais,inicia-seoquepodemoschamardefasecomercialdamicroinformática,chegandoentãoaosusuáriosquepoderiamcomprarumequipamentoparausoresidencialouprofissional.Équandotambémseiniciaabatalhaemtornodo

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modelodedesenvolvimentodossoftwares,quepassaramaterenormevalordetroca,permitindoassimosurgimentodecorporaçõesqueaolongodosanossetornarampotênciaseconômicasglobais,comoaMicrosofteaApple.

Énessemomentoquecomeçamosaouviravozdeumdosgrandesfilósofosdaculturalivre:oengenheiroeprogramadorRichardStallman,quenoiníciodosanos1980criaoprojetoGNU(“GNUisnotUnix”),umsistemaoperacionallivre,eaFreeSoftwareFoundation(FSF),umaorganizaçãosemfinslucrativoscujamissãoédefenderqueoscódigos(alinguagemdeprogramação)comosquaisossoftwaressãoescritossejamdeacessoirrestritoatodasetodos.Stallmanestavaentãoinseridonadisputaemtornodosrumosdacomputação,massuasideiassobreliberdadedecriação,compartilhamentodoconhecimentoegenerosidadeintelectualtornaram-senasúltimastrêsdécadasummanancialinspiradorparaosativistasemilitantesdediversasáreas,comoatecnologia,ourbanismo,aagricultura,acomunicaçãoeaeducação.Aideiadasquatroliberdadesdosoftwarelivre(liberdadedeexecutá-lo;deestudarcomoelefuncionaeadaptá-lo;deredistribuircópias;edeaperfeiçoá-loefazermelhorias)tornou-seumvetorpotenteparaaconstruçãodeumprojetopolíticobaseadonaabertura,natransparênciaenacriaçãocoletiva,emoposiçãoaomodeloproprietáriodasgrandesempresasdeinformática.

Importantenotarque,naquelemomento,oconceitodecomum–emborajáemvogadesdeosanos1970emdebatessobremodeloseconômicoseambientais,principalmenteapartirdostrabalhosdacientistapolíticaElinorOstrom–nãoestavanovocabuláriodosativistasdosoftwarelivre.Essaaproximaçãoconceitual,atéondeidentificamos,sóviriaaocorrernofimdosanos1990enoiníciodadécadade2000,comostrabalhosdoestudiosodaculturaJamesBoyle,daredequedariaorigemaoCreativeCommonsedoprofessordedireitodeHarvardYochaiBenkler.Somentenasegundametadedaqueladécada,aliás,aprópriaOstrom,emparceriacomCharlotteHess,viriaasedebruçarsobreosbenscomunsintelectuais,masjánumoutrocontextopolítico,culturalesocial.Noentanto,osvaloresdacomunidadedosoftwarelivresemdúvidaseaproximamdaspráticasdaquelesqueseidentificamcomocomuneiroseinspiraraminclusivealeiturapolíticadeMichaelHardteAntonioNegriemsuatrilogiacompostapelostítulosImpério,MultidãoeBem-estarcomum,naqualelesdesenvolvemumoutroconceitodecomum,quemaisadiantedescreveremos.

Antesdisso,porém,afilosofiadaliberdadedoconhecimentoreverberariaemoutrasduascriaçõestecnológicaspraticamentesimultâneasquetransformaramo

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mundo:aworldwidewebeosistemaoperacionalLinux.Aweb,queatualmenteécompostapormaisdeumbilhãodesites,surgea

partirdeumapropostadoengenheiroTimBernersLeeescritaem1989,quandotrabalhavanoCERN,olaboratórioeuropeuparapesquisasnucleares,comsedenaSuíça.Somenteem1991,porém,elecriariaosprimeirossitesepáginasweb.Oanode1992marcaaexpansãodawebjustamenteporserumasoluçãouniversal,descentralizada,baseadaemtecnologiaslivresecomapropostadeimpulsionaracolaboraçãoglobal.Muitoslivrostrazemumadescriçãocompletadessaexperiência.OquenosimportaaquiédestacarofatodequeLeepoderiateroptadoporummodeloprivadodegestãodesuacriação.Masnãoofez.Eaweb,comsuadimensãográficaquecontribuiuparaglobalizarousodoscomputadores,cresceucomoumcomummetonímico:paramuitagente,atéhoje,internetewebsãosinônimos6.Aformaqueeleencontrouparagerirseugenialinventodeformademocráticafoifundar,em1994,umconsórcioglobal,oW3C,quesegueativoatéhojenagarantiadeumawebdescentralizada,sempreabertaatodos,adespeitodosaçoitesdemonopóliosquetentampromoverseucercamento.

Em1991,oestudantefinlandêsLinusTorvaldsdeuinícioaumprojetopessoalquemaisseassemelhavaaumhobby:criarumnovonúcleodeumsistemaoperacional.Aotorná-lopúblico,percebeuograndeinteressedaspessoas.OLinux,comoficouconhecido,tornou-seumfenômenomundial.LicenciadosobumalicençalivreGPL,foifundidocomosistemadaFSF,porissomuitosmilitantesdefendemqueseutilizeanomenclaturaGNU-Linux.Massuagrandecontribuição,aquemudouaculturacontemporânea,alémobviamentedainovaçãotecnológica,foiseuformatodegestão,baseadoemumacomunidadedeespecialistasqueseresponsabilizamautonomamenteporproduzirmelhoriasegarantirsuamanutenção.OLinux,porisso,éconsideradoummodeloalternativodeproduçãoemrede,quecolocaemxequeparâmetrosclássicosdaeconomia.Suasdistribuiçõesatuaismaisconhecidas,comochamamosaversãoempacotadadosistemaoperacionalparausufrutodosusuários,sãooDebian,oFedoraeoUbuntu.HistoricamentevaledestacaraConectiva,desenvolvidanoBrasilemfinsdos1990eque,depoisdesercompradapelaempresafrancesaMandrakeSoft,setornouaMandriva.

NoBrasildosanos2000,essesvaloresqueestruturamacomunidadedosoftwarelivrealimentaramumasériedepolíticaspúblicasousadas.Foiomomentoemqueocorreuumainsólitaaliançaentrehackersegestorespúblicos,eoscomuneirosdigitais–quenãoseidentificavamcomotal–adentrarama

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estruturadoEstadoembuscadetransformá-lo.Hoje,observandocertosdebatesqueganhamforçaquandofalamosdecomumedemocracia,podemosdizerqueaquelefoiumfenômenopioneiroquenosservedesubsídioparapensararelaçãoentreasforçasdocomumeosgovernos.Afinal,somoscapazesdemoverasestruturasdegovernançacentralizadasdademocracialiberalnadireçãodeumprocessomaisabertoecolaborativo?Umgovernopodeseorganizarparapromoverbenscomuns?NaqueleiníciodoséculoXXIpareciaquesim.

Asaçõespioneirasocorreramparalelamenteemduasfrentes:nogovernodoestadodoRioGrandedoSul,sobliderançadeMarioTeza,MarceloBrancoeMarcosMazoni,queseriamtambémfundadoresdaAssociaçãoSoftwareLivre,amaisimportantereferênciadasociedadecivilbrasileiranapromoçãodosoftwarelivre;eemSãoPaulo,ondeaprefeituradesenvolveuentre2000e2004umprojetodetelecentrospúblicoscomsoftwarelivrequeconformouumaexpressivaredepúblicademicroinformáticabaseadaemtecnologiasabertas.Apartirde2003,comapresidênciadeLuizInácioLuladaSilva,iniciou-seemcomputadoresdoserviçopúblicoumprocessodemigraçãodosistemaoperacionaldaMicrosoftparadistribuiçõesGNU-Linux.SobcoordenaçãodeSergioAmadeudaSilveira,quehaviasidocriadortambémdoprogramadetelecentrosdeSãoPaulo,aPresidênciadaRepúblicapublicouumdecretoregulamentandoousodosoftwarelivreemórgãospúblicosfederais.Umamploprogramadeinclusãodigital,comdiversasações,dediferentesministérios,foidesenvolvidointegralmentecombasenalógicadocódigoaberto.Entreeles,destacam-seostelecentrosdaCasaBrasileoprogramaPontosdeCultura,quereconheciapormeiodeumeditalnacionalprojetosculturaisjáexistentes,deartes,culturapopularouculturajovemurbana,eospremiavacomrecursoseumkitmultimídiabaseadoexclusivamenteemtecnologiaslivres.Essesprogramastambémforamacompanhadosdeaçõesdeaprendizagem,quebuscavampromoverumprocessodeapropriaçãocríticadastecnologiasdigitaisporpartedosusuários,concentrando-senãoapenasnainclusãotecnológica,mastambémemumapedagogiapromotoradaculturalivre.Porfim,éprecisocitaroprogramadevendadecomputadores(ComputadorparaTodos)destinadoàpopulaçãodebaixarenda,quecolocouemcirculação,apreçospopulares,máquinasquerodavamGNU-Linux,noquetalveztenhasidoomaiorprogramadepopularizaçãodetecnologiaslivrespromovidoporumEstadonacional.Nãoàtoa,em2005,ojornalestadunidenseTheNewYorkTimespublicouumareportagemcomotítulo“Brasil:Omaioremelhoramigodosoftwarelivre”7.

Recuperoessescasoscomafinalidadededemonstrarqueasrelaçõesentre

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comum,internetedemocraciaatravessamdiversascamadas.Ainternetéumcomum.Awebéumcomum.OGNU-Linuxéumcomum.EessasinvençõespropiciaramosurgimentodaquiloqueYochaiBenklerchamadesociedadeinterconectada(networkedsociety)edeumaproduçãocolaborativabaseadaembenscomuns(commons-basedpeerproduction).“Apesardeosprocessoscolaborativosjáexistiremhámuitotemponocenáriodosnegóciosedasempresas,ofenômenoatualédiferente.Adiferençaestánofatodeaatualcolaboraçãomassivaarticularagentesindividuaislivres,quecooperamereúnem-separaresolverproblemasquesãodoseuinteresse.Nãocolaboramporobrigação,nemestãosubmetidosainstituiçõesoucompanhias”,escreveosociólogoSergioAmadeudaSilveiraemseuartigo“Oconceitodecommonsnacibercultura”8.Poressarazão,paraBenkler,quandodapublicação,em2006,deseuseminalTheWealthofNetworks(Ariquezadasredes),estávamosvivendoumabatalhaporumanovaecologiainstitucionaldoambientedigital.Achancequetínhamoseraadecaminharparaumsistemapolíticoedeproduçãobaseadonaaberturaenacolaboração,promovidoporindivíduoseorganizaçõesflexíveis,interconectadasemrede.Paripassu,oexemplobrasileirorevelava-sesingular,porpermitirqueessaculturalivreinfluenciasseosrumosdeumadasgrandesdemocraciasdoplaneta.Mas,aolongodosúltimosanos,umamploprocessodecercamentoteveinício,apartirdeumprojetodecolonizaçãodawebporcorporações,oquefazcomquehojetenhamosduasempresas,GoogleeFacebook,concentrando85%dovolumedapublicidadedigital.NoBrasil,aindanoprimeiromandatodeDilmaRousseff(2011-2015),osoftwarelivrefoiabandonadopelogovernoetudovoltouaonormal,comasubmissãodogovernoaocapital.Aresistência,noentanto,segueativa.ElaseorganizaanualmentenoFestivalInternacionaldeSoftwareLivre,queem2017celebrousua16ªedição,emprojetoscapitaneadosporprefeiturasatentasaotemaenasaçõesdeumasociedadecivilquesehabituouàcondiçãodeprotagonista.

AlternativastecnológicasSe,noiníciodaprimeiradécadadoséculoXXI,nosencontramoscomo

conceitodecomum,pergunto-mehojeseessaideia-forçaaindafazsentidoparaexplicaromundodigital.Pararesponderaessaindagação,éprecisoreconhecerqueoprocessodecercamentodainternet,apartirdeumaaliançaentrecorporaçõesegovernos,caminhaapassoslargos.AsdenúnciasdeEdwardSnowdendistribuídaspeloWikiLeaksem2013,revelandooenormeaparato

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persecutóriomontadopeloDepartamentodeEstadonorte-americanocontraoscidadãosdetodooplaneta,somadasàconstruçãodejardinsmuradosquesetornaramverdadeirosmonopóliosdeextraçãodedadosindividuaisemaximizaçãodeganhosfinanceiros,moldamumapercepçãodequeoambientedigitaljánãoémaisumcomumsobreoqualpossamosinventarnovasformasdevivereproduzir.Poroutrolado,nenhumanação,isoladamenteouemaliança,nemempresaalguma,pormaioremaisrentávelqueseja,colonizouporcompletoainfraestruturadainternet–emborasejammuitasastentativas–,oquemantémawebvivaeosativistasdosoftwareedaculturalivreemcondiçãodeatuarparadesenvolveralternativas.Porisso,continuoacreditandonaforçadalógicacolaborativadainternet,baseadanaideiadequequandocooperamostodosganhamos.

Nãoporacaso,em2016,Berners-Leefalouemfavordadescentralizaçãodaweb,emumadeclaraçãoregistradapeloTheNewYorkTimes:“Awebjáédescentralizada.Oproblemaéodomíniodeumaferramentadebusca,deumagrandeplataformaderedesocial,deumTwitterparamicroblogs.Nósnãotemosumproblematecnológico,temosumproblemasocial”9.Berners-Leenoslembraquepodemosseguiravançandonaconstruçãodo“nãoproprietário”,poisamesmainfraestruturalibertáriaquevemsendosugadapelacompetiçãoéaquepermiteaprimaziadacolaboraçãoedasolidariedade.Oquefazer?Enfrentaressesnovosintermediários,noplanoregulatório,mastambémafirmarecriarprocessosemergentes,construídosdebaixoparacima,nadireçãodegerarnovosespaçoseesferascomuns.

NoâmbitodaUniãoEuropeia,umgrupodepesquisadoresdediversasuniversidadescriouoprojetonetCommons:networkinfrastructureascommons.Comoopróprionomediz,seusrealizadoresestãoembuscadepensarumaestruturaderedecomocomumnomarcodeumprogramaquepretendeformularperspectivasparaaUEaté2020.Odiagnósticodoqualpartemésimilaraoquedescrevonoiníciodestecapítulo.Emadição,elesrelembramqueabrechadigitalpersiste,ouseja,queexistemmuitaspessoasdesconectadasesemacessoàrede,equeomodelocorporativodeofertadeserviçosdeconectividadejamaisiráseresponsabilizarporincentivaroacessoequitativodoscidadãos.Comomissão,oprojetoaspiraestudar,apoiarepromoverserviçoscomunitáriosdeconectividadeecomunicaçãoquepossamoferecerumcomplemento,eventualmenteumaalternativa,aomodelodominantedainternet.Segundoelesexplicam,oprojetoatuaemdoisâmbitos:olocal,trabalhandocomascomunidadesparadesenvolverummodeloderedequepossaserimplementado

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emantidoporelas;eoglobal,estudandosoluçõeseinterpretaçõessobrecomoinfluirparaaconstruçãodeumaconsciênciaplanetáriasobreaimportânciadasustentabilidade,participação,cooperação,liberdade,democracia,produçãoentrepares,bemcomuns,entreoutrosaspectos,elevandoseusresultadosparaonívelregulatório.

Ointeressantedesseprojetoéqueeletemtrabalhadonãoapenasparacriarnovasredeslocais,masparaconectarasexistentes,quetêmconstituídoumfenômenocrescenteemterritórioeuropeu.UmcasojáhistóricodessemodelodeconectividadeéoGuifi.net,deBarcelona.Umaredelivre,abertaeneutra,desenvolvidanaCatalunhaapartirde2004,inspiradanosprincípiosdosoftwarelivre.AGuifi.netnãoéumaideianova.Oqueatornadiferenteéseusucesso,comacontinuidadedaprestaçãodoserviço,quehojechegaacercade30milnodos,pormaisdeumadécada.Seusintegrantessãopessoas,empresaseórgãospúblicosqueoptamporcomporaredeeparatantosetornamautônomosemsuagestão.Umprojetoexitosodecompartilhamentodeinfraestruturalivre,quetambéméumaescoladeapropriaçãocríticadetecnologias,umavezqueseusparticipantessóseincorporamaelaseconheceremafundoainfraestrutura.Nãoàtoa,naEspanha,muitosteóricoseativistastratamoarranjocomunitáriodaGuifi.netcomoaverdadeirainternetdocomum.

Outraestratégiaqueoscomuneirosdigitaistêmdefendidoparaenfrentaraconcentraçãodecapitalemalgumaspoucascorporaçõeseofalsomodelodecolaboraçãobaseadono“ubercapitalismo”10–emreferênciaaoaplicativodetransporteUber–,éodesenvolvimentodoqueoescritoreartistaalemãoTreborScholzchamadecooperativismodeplataforma.Seulivrodemesmonomedefendemodelosdepropriedadedemocráticaparainternet:“Nãosepodecombaterdesigualdadeeconômicacombenevolênciaaosproprietários;juntos,nósdevemosredesenharainfraestruturacomdemocraciaemseunúcleoduro”11.Aquestãodascooperativasdigitais(co-op)setornouumaalternativaorganizacionalparapensarmodelosdemocráticosdegestãoeproduçãoparaomundodigital.NoBrasil,éumaalternativaaindaincipiente,mastemosocasopioneirodaColivre,criadoradosoftwareNoosfero,umaplataformaabertaelivreparaodesenvolvimentoderedessociais.SegundoScholz,oconceitodecooperativismodeplataformaenvolvetrêsaspectos:(1)clonarastecnologiasemudarsuapropriedade;(2)promoverasolidariedade,pormeiode“cooperativasmultissetoriais(multi-stakeholderco-op),cooperativasdepropriedadedxstrabalhadorxs(worker-ownedco-op)ouplataformascooperativasdepropriedadedxs‘produsuárixs’(produser-ownedplatformcooperatives)”;(3)ressignificarasideiasde

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inovaçãoeeficiência,paraquepossamoscuidardaspessoas.Ouseja,“(...)issonãoéumaauroraborealtecnológica;ocooperativismodeplataformanãotratadapaixãoocidentalpelosavançosnatecnologia;eleéumamentalidade”12.EssadeclaraçãodeScholz,fazendoecoàfrasedeBerners-Leesupracitada,ajudaareforçaravisãodequesoluçõesparaaconcentraçãodecapitaleparaocercamentodainternetnãosãomeramentetecnológicas,maspolítico-sociais.

Nessesentido,paraconcluirestecapítulo,pensoquedeveríamosrecolocaraseguintepergunta:quaistecnologias,afinal,queremoseprecisamosparaconstruiroutrasformasdeviver?Omundodigitalseguecomsuaescaladaevolucionista:telefonesinteligentesmonopolizamoacessoàinternet,reduzindosoftwaresaaplicativos;makerspaces,comimpressoras3Demáquinasdecortealaser,seapresentamcomooepicentrodeuma“quartarevoluçãoindustrial”;ainternetdascoisas,conectandoàredegeladeiras,liquidificadoresemáquinasdelavarroupa,geraumgigantescomercadotecnológicodeconectividadededadoseinfraestruturasemcidadesdemédioegrandeporte,produzindoapanaceiadascasasecidadesinteligentes;chipsquânticos,computaçãoemnuvem,sensoresinseridosnoscorpose,paraumcardápiocompletodaspossibilidades(utópicasedistópicas),muitasopçõesdefilmesesériesdisponíveisnosserviçosdestreamingsobdemanda.Ocomum,porém,nospedeumolharemquenaturezaeculturasejamlidassimetricamenteparaaconstruçãodeumnovoprojetodedesenvolvimentoquevalorizeasdimensõesemocionais,espirituais,éticaseestéticasdemulheresehomens,nadiversidadeenadiferença.Qualconhecimentopodenosensinarmelhorestécnicasdemanejodaterraedaágua,paraquepossamosnosalimentaresaciarnossasede?Quemsãoosportadoresdemétodosderelaçãosaudávelcomanaturezaquepodemfazerdenossahistórianãoumcontodedestruição,mas,sim,umaodeaorespeito?Quemsãooscriadoresdasmetodologiasdecuidadoquenospermitiriamsonharcomumconvíviomaishorizontalentreossereshumanos,independentementederaça,gênerooucrença?Podemosfabricarcomputadores,telefones,videogamessemestimularguerrasnaÁfricaetrabalhoescravonaChina?Comoainterneteaculturadigitallivrepodemfavoreceradefesaepromoçãodosdiferentescomunsexistentes?Ahistóriacontinuaepodesernarradapornós.

1Oconceitodecercamentoéextremamenteimportanteparaestelivro.Iremosutilizá-loemmuitasocasiões.Suaorigemremontaaoprocessodecercamento(enclosure)dasterrascomunaisqueparamuitosautoresdemarcaapassagemdeumregimedepropriedadecoletivaparaoregimedepropriedadeprivadadosúltimosséculos.Nestecaso,cercamentoéusadocomometáforaparadescreveroprocessodetransformaçãodeumainfraestruturaabertaemumsilotecnológico,emqueháumdono(proprietário)eoacessopassaateralgumaformaderestrição(comoaofertadedados

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pessoaisparaacessarainformaçãodisponibilizada).2Disponívelem:<http://www.wired.co.uk/article/history-of-creative-commons>,acessoem:7maio

2018.3OdiscoSampletheFuturecontavatambémcomfaixasdeautoresreconhecidos,comoabandaBeastieBoys,

omúsicoalternativoDavidByrne,alémdeumaversãoremixadadaprópriamúsicadeGilbertoGilrealizadapeloDJDolores,dePernambuco.Disponívelem:<https://www.wired.com/2004/11/sample/>,acessoem:10jul.2017.

4Emnovembrode2004,aWiredfariaumamatériadestacandooprocessodeadesãodogovernobrasileiroàculturalivreeaumavisãocomuneiradacultura,comotítulode“Wepledgeallegiancetothepenguin”.Nessamatéria,orepórterchegaadizerqueoBrasilestavasetornandoumanaçãoopensource.“Apreservaçãoeaexpansãodecomunsinformacionaistêmsidoumacausadehackers,acadêmicosedeestranhosbibliotecáriostecnoliteratos,masnoquintomaiorpaísdomundoestárapidamentesetornandoumadoutrinanacional.Easimplicaçõesdificilmenteterminamemsambalivre:oBrasil,emsuaabordagemdepatentesdemedicamentos,emseuapoioaomovimentodosoftwarelivreeemsuaresistênciaaosgrandesprodutoresdeconteúdodemoldaremapolíticadeinformaçãoglobal,estásetransformandonumanaçãoopensource.”Disponívelem:<https://www.wired.com/2004/11/linux-6/>,acessoem:10jul.2017(emtraduçãolivre,assimcomoasdemaiscitaçõesdeobrasestrangeiras).

5Sobreisso,cf.olivrodeStevenLevy,Hackers:HeroesoftheComputerRevolution(1984).6Ainternetéoconjuntodeprotocoloseinfraestruturas,umaredederedes,queconectadiferentes

máquinas.Aworldwidewebéumadasformasdeacessarainternet.Trata-sedeumacamadagráficaquenecessitadeumsoftwaredeacessochamadonavegador(comooFirefox,porexemplo)edepáginasescritasemumalinguagemespecífica.

7ToddBenson,“Brazil:FreeSoftware’sBiggestandBestFriend”,TheNewYorkTimes,29mar.2005.Disponívelem:<http://www.nytimes.com/2005/03/29/technology/brazil-free-softwares-biggest-and-best-friend.html>,acessoem:7maio2018.

8Disponívelem:<https://casperlibero.edu.br/wp-content/uploads/2014/05/O-conceito-de-commons-na-cibercultura.pdf>.

9QuentinHardy,“TheWeb’sCreatorLookstoReinventIt”,TheNewYorkTimes,7jun.2016.Disponívelem:<https://www.nytimes.com/2016/06/08/technology/the-webs-creator-looks-to-reinvent-it.html>,acessoem:11jul.2017.

10Ocontextodetransformaçãodainternetpassatambémpelocrescimentodasaplicaçõesdirecionadasatelefonesinteligentes,quepermitiramaapariçãodenovosmercadosdetroca,aparentementecolaborativos,masqueaofinalseconstituememmáquinasrentistasedeextraçãodetempodaquelesqueaelasprestamserviço.OexemplomaisemblemáticodessenovomodeloéoaplicativodetransporteUber,queoperanoBrasildesde2014.

11TreborScholz,Cooperativismodeplataforma:contestandoaeconomiadocompartilhamentocorporativa,SãoPaulo:Elefante;AutonomiaLiterária;FundaçãoRosaLuxemburgo,2016,p.56.

12Ibidem,pp.60-2.

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NOLIVROALÉMDASREDESDECOLABORAÇÃO,organizadoporNelsonPrettoeSergioAmadeudaSilveira,oprofessordeciênciada

computaçãodaUSPImreSimoneopesquisadorMiguelSaidVieirapublicaramumartigocomosugestivotítulo:“Rossionão-rival”.Nele,defendemqueamelhortraduçãoparacommonsseriarossio,quedeacordocomodicionárioHouaisséumterrenoroçadoeusufruídoemcomum.Naaberturadoartigo,recordamqueumadasgrandeseimportantespraçasdeLisboa,hojebatizadacomonomedeD.PedroIV,chamava-seRossio.ApropostadeSimoneVieira,naquelemomento,erapromoverumaaproximaçãosemânticaeconceitual,afinal,aorigemdotermocommonsremontajustamenteàsterrascoletivasusufruídaspelascomunidadesagrícolasdaIdadeMédianomundoanglo-saxão,ouseja,algomuitosemelhanteaosrossiosibéricos.Mas,rossio?Fazsentido?Oobjetivodoesforçoempreendidopelosautoreseraencontrarumaformadetraduzirumtermoquenãoencontraemportuguêscorrelatoideal,oqueotornarealmentedifícildeassimilar.Aofim,aideianãoganhoumuitosadeptos.Tantoqueváriosautoresoptarampormanteraexpressãooriginaleminglês,commons,umanglicismoque,ameuver,manteveoconceitosecundarizadonosdebatespolítico-culturaisemportuguês.Vieira,emsuatesededoutorado,reconheceuqueofatoderossioserumapalavraemdesusodificultousuaadoção,eapontaquehádoistermosqueescapamaoestranhamentodeumpúblicomaisamploquandoutilizadoscomocorrelatosdecommons:comumebenscomuns.

Elastêmavantagemdeseremcomparativamentemaisautoexplicativas,umavezquenãorequeremumconhecimentodaspráticasespecíficasaquesereferemasoutrasexpressõesjámencionadas.“Comum/comuns”,noentanto,temadesvantagemdeprovocarumestranhamentodeoutrotipo:éumaexpressãobastantegenérica,eprovocacertaambiguidadecomousodessapalavracomoadjetivo,comossentidosde“usual”,“vulgar”,oumesmode“repetido”1.

Vieiraadotou,emseusartigosetextos,benscomuns.Nestelivro,porém,emborareconheçaaambiguidadegeradapelotermocomum,que,nousopopularecorrente,remeteàideiadealgoordinário,opteiporele.Parece-measolução

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quetemganhadomaisadesãoentreativistasepesquisadoresnosúltimosanos,sobretudoporcontadesuautilizaçãoporpensadoresdapolíticacomoasduplasHardteNegrieLavaleDardot,cujasobrassãocadavezmaisinfluentes,especialmentenoBrasil.Aindaqueopresentelivronãoseafilieaessecampoespecíficodevisãosobreocomum(porquemeuplanoéintroduziroleitoràsváriaspossibilidadesqueotermoeoconceitoevocam),reafirmoousoprioritáriodessapalavra.Tambémporqueapalavracompostabenscomunspediriaseuusopermanentenoplural,alémdecarregarumaconotaçãomaispróximadaeconomia.Entendo,porém,quecomum,comunsoubenscomunspodemserutilizados,emsituaçõesdistintas,comosinônimos,semqueacompreensãosejaprejudicada.

UmcasofelizdeacordodetraduçãoparacommonsocorreunaEspanha–masnãoemtodosospaísesquefalamoespanhol–comaadoçãodeprocomún,emboraaprópriaWikipediaredirecioneabuscaporessapalavraparaoverbetebiencomunal.PararesolveroproblemaqueapontaVieira,chegueiapensaremversionarprocomúnparaoportuguês,comacriaçãodotermo“procomum”.Isso,noentanto,sópoderiaocorrerseoutrosatoresjátivessemfeitoamesmaopção,oquenãoéocaso.Outrapalavrabastanteutilizadanodebatesobreocomumededifíciltraduçãoécommoning,quesignificaoprocessodefazerocomum,remetendoàcaracterísticacomunitáriaepolíticadesseconceito.Paracommoningnãoháumatraduçãoadequadaquepossamosconsiderarvalidada,nemmesmonoespanhol.Comunalizar,comunhar,fazerocomum,nenhumadessasexpressõesmeparecesuficiente,masseráaelasquerecorrerei,sempreseguidasdotermooriginaleminglês,quandofornecessárioseuuso.Reconheçoqueessedebateéumpoucoenfadonho,massemenfrentaressadificuldadeterminológica,queresultanagrandevariaçãodeusosqueencontramos,ficarámaisdifícilcompreenderasequênciadestecapítulo.

IntroduzindooconceitoHáumvídeonainternet,deapenastrêsminutos,criadopelo

GemeingüenterGermany,umcoletivoalemãodedicadoàdefesaepromoçãodoscomuns,cujoconteúdomerecesertranscritonaíntegra.Seuprincipalméritoéexplicarcomclarezaesimplicidadealgoquemuitasvezessoademasiadoabstrato:oconceitodecomum.Paratraduzi-loaoportuguês,utilizeiaversãoaoespanholfeitapelaGuerrillaTranslation:

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Nossaexistênciadependedosrecursosquenãosóincluemabiodiversidade,comoosespaçossociaisemnossasvilas,bairrosecidades,aeducação,asciênciasetodoomundodigital.Defato,temosrecursossuficientesparasatisfazertodomundo.Masomundonãoéassim.Háumprocessodecercamentodanatureza.Osespaçossociaisestãocadavezmaisprivatizados.Oacessoàeducaçãoseconverteuemummeroproduto.Ealiberdadedomundodigitalestáminguandoparafavorecermonopóliosprivados.Háquemchameissode“direitosdeuso”.Éalgomuitosimples:reduzirofornecimentodeumbemouserviçoprovocaescassez.Quemfomentaaescassezpodeganharmuitodinheiro.“Éassimqueascoisassão!”,dizemosquesebeneficiamdessearranjo.Emprincípio,tudoparecebastanterazoável.Porqueoraciocínioéoseguinte:oacessoirrestritoaosrecursospodelevaraumaexploraçãodesmedida.Imagine...nopastodeumavila,todosospastoresdeixamasovelhascomeremàvontade.Masquemvaiseconformarcomapenasumaovelhaseépossívelobtermuitomaisdinheirocomdez?Setodosospastoresagissemdessamaneira,opastoseesgotariaemmuitopoucotempo.Osaldeãosperderiamseumeiodesubsistência.Nãoéumcenárioinsensato,verdade?Aindaassim,aspessoaspodemsecomportardeoutrasmaneiras:falando,criandoregras,elassefazemresponsáveispelocomum.Egarantemsuaconservação.Sabemquedependemunsdosoutros.Obenefíciodeuméobenefíciodetodos.Essaéaessênciadocomum.Sãocomunidadesquecriamsuasprópriasregrasparacuidardeseusbenscomuns.Todosgarantemqueocomumseguirácrescendo...eparatodos.Sejananatureza,nasociedade,naeducação,naculturaounainternet.Éumaideiaquesepraticaaoredordomundo,diaadia.Esenosesquecemosdessaideia,ostemasmaisimportantescomoaeducação,asaúde,asmudançasclimáticas,asegurançaalimentarglobalnãoterãoumasoluçãoviável2.

Destacoumafrase:“Obenefíciodeuméobenefíciodetodos.Essaéaessênciadocomum”.Benscomuns,comoexplicaVieira,“sãocoisascompartilhadasporumacomunidade”,masnãosóisso:

umbemcomumnãoéapenasumconjuntoderecursos,decoisas;étambémumprodutosocial,umaprática.Ditodeoutraforma,nãoésóacoisacompartilhada,mastambémoseucompartilhamentoporumacomunidade;ou,naspalavrasdeMassimoDeAngelis,“thereisnocommons

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withoutcommoning”:umbemcomumésimultaneamenteum“substantivo”(oconjuntodebenscompartilhados)eum“verbo”(aaçãodecompartilhar;ocommoning,o“fazercomum”)3.

EssaabordagemseaproximamuitodaquiloqueescrevePeterLinebaughemseuManifestodaCartaMagna:“Falardoscomunscomosefossemrecursosnaturaisénomínimoenganosoepodechegaraserperigoso:oscomunssãoumaatividadee,emqualquercaso,expressamrelaçõessociaisinseparáveisdasrelaçõescomanatureza.Seriamelhorconservarapalavracomoverbo,comoatividade,emvezdeconservá-lacomoumnome,umsubstantivo”4.

Aideiadequenãohácomumsemoprocessodeproduzi-lo(“nãohácomumsemcomunhar”)tambémmerecenossaatenção.Porqueelareforçaqueocomuméumcaminho,emconstantemovimento.Naabordagemquemaismeagrada,ocomuméumasomaconstituídapelosbenselementares,essenciais,comooar,aluz,osoceanos,aalimentação,oscorpos,opatrimônioambiental,maisaquiloquecriamosemnossoprópriobenefício,comoaarte,ossoftwareslivres,ainternet,osespaçospúblicosdascidades,maisagestãocomunitáriadessesbensentreparesqueseautogovernam.Dentrodessalógica,naturezaeculturasãolidasdeformasimétrica.Osdireitos,portanto,deixamdesersomentedossereshumanosparaabarcaremtambémoqueénãohumano.

Écorriqueiroverpessoasconfundiremosbensemsicomumcomum.Issoocorrequandolemosqueoscomunssãoosrios,osmares,osoceanos,asideias.Não!Rios,mares,oceanoseideiassãorios,mares,oceanoseideias.Éapenasquandocompreendemosquesomosparteintegrantedeumfluxosocioambientalcontínuo–eapartirdessaconsciênciapassamosacuidarativamentedeGaia5comocuidamosdenossascrianças–queumrio,ummar,umoceanoenossasideiastransformam-senumcomum.ComoescreveDavidBollier,especialistaestadunidenseautordeinúmeroslivroseestudossobreoscomuns,entreosquaisThinkLikeaCommoner,quefoitraduzidoparaoespanholpormeiodeumacampanhaglobaldecrowdfunding,integrandoeditorasindependentesdeváriospaíses,“nãoexisteumafórmulapadrãoouummodeloparacriarcomum,éoquenosrevelaqualqueranálisedeumadeterminadacomunidade”6.

Ocaminhoquelevaaoentendimentodocomumdemandaforçadevontadepararepararnasparticularidades,paraveropotencialcriativodasrelaçõessociaiseabandonarabuscadeuniversaisabstratosecertezaspreconcebidas.Ocomunitáriofuncionaporqueaspessoaspassamaconhecereexperimentarcondiçõessingularesdegestãodeumrecurso,e

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terminamdependendoumasdasoutras,envolvendo-secomessafloresta,ouesselagoouaquelepedaçodeterra.Asrelaçõescriadasentreaspessoaseosrecursosimportam7.

Ocomumpedeainterdependência:entreaspessoas,aspessoaseosrecursos,ossereshumanoseoplaneta,aculturaeanatureza.Exige,porisso,umaentregadetodososenvolvidos.Nãohácomumsemumasólidaevibranterededeafetos.Bollierchegaatéaproduzirumaequaçãoparaexplicarocomum,quemeparecedivertida:

COMUM=RECURSO+COMUNIDADE+CONJUNTODEPROTOCOLOS(SOCIAIS)

Nessesentido,combasenosestudosdapesquisadoraeativistaSilviaFederici,háumainter-relaçãofundanteentreaideiadecomumeofeminismo.Muitodaquiloqueatualmenteevocamoscomocomunspreservados–principalmenteemsuadimensãocomunitária–sóassimseencontradevidoàaçãodasmulheresaolongodahistória.Éocaso,porexemplo,dosmodosdevidacoletivospreservadosnasmontanhasdoPeru,protegidosporaquelasquefugiramdadominaçãoimperialecolonial.Tambéméoquesevênocasodasagricultorasdesubsistênciaafricanasque,conformeFederici,produzem80%dosalimentosqueapopulaçãodocontinenteconsome.Eissonãoocorresónocampo,mastambémnascidades,ondemuitasmulheresretomaramparasilotespúblicosepassaramasemearmilhoemandiocaemterrenosbaldios.Umprocessoqueconsistenãosóempreservação,masemretomadaativadocomum.“ComodemonstradoemCalibanandtheWitch,naprimeirafasedodesenvolvimentocapitalista,asmulherespropuseramaprimeiralinhadedefesacontraoscercamentos,tantonaInglaterracomono‘NovoMundo’,eforamasdefensorasmaisaguerridasdasculturascomunaisameaçadaspelacolonizaçãoeuropeia.”8

Essasprimeirasideiasquearrolosódemonstramacomplexidadedoconceitodecomum,emsuadimensãopolítica,econômica,culturaleexistencial.Naspróximaslinhas,abordodiversasoutrasvisõesembuscadeumamplopanoramasobreotema.Meuintuitoaquiéodedesenvolverumpasseiopelasteorias,maisdescritivoquecrítico-analítico.Otextotalvezpercaemfluência,mascomcertezaganharáemdensidadeemultiplicidadedevozes.Obviamente,hámuitospontoscoincidentesentreosdiscursosqueselecionei,mastambémalgumadivergência.

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AtragédiadocomumEm1968,oecologistaGarrettHardinpublicounarevistaScienceumensaio

quesetornouumareferênciaparaadiscussãosobreocomum.Seutextointitulado“Atragédiadoscomuns”(TheTragedyoftheCommons),polêmicoecontroverso,éconsideradoatéhojeumareferêncianegativaparapesquisadoreseativistasquedefendemosbenscomunscomoumaalternativaaosmodeloshegemônicosdegestãoderecursospelomercadooupeloEstado.AtesecentraldeHardinbaseia-senaideiadequeossereshumanossãomotivadosporinteressespessoaisetendemsempreacompetirparamaximizarseusganhos,emquaisquercondições.

Hardin,naquelemomento,estavaocupadocomoproblemadocrescimentopopulacional,esuaabordagemalarmista,emprincípio,pretendiaevitarquevivenciássemosatragédiaqueeledescreveemseuartigo.Usandoumrebanhocomometáfora,umrebanhoemumaterracomunal,elevaticinaqueatendênciaéquetodosospastoresvenhamaexplorá-lodeformadesmedida:“Cadahomemestápresoemumsistemaqueocompeleaaumentarseurebanhosemlimites–nummundoqueélimitado.Ruínaéodestinoparaoqualtodososhomenscaminham,cadaumperseguindoseuprópriointeresseemumasociedadequeacreditaembenscomunslivres.Comunslivrestrazemruínaparatodos”9.

Aúnicaalternativadiantedessecenário,portanto,seriadesenvolverdoistiposderegulaçãoimpositivos:(a)pormeiodaprivatizaçãodaquiloquepossaserprivatizado,colocandoosbenscomunssobcontroledeumoumaisdonos;ou(b)pormeiodeforteregulaçãoestatal,parafazercomqueeconomicamentesejamaiscustosoàquelequeexploraumdeterminadobemserdestruidorquecuidadoso.Emnenhummomentoelereconheceapossibilidadedeumadeterminadacomunidadeseunir,conscientemente,paraimpedirasuperexploração.

Atragédiadosbenscomunsquandoestesconsistememumcestodecomidapodeserevitadapelaprivatização,oualgodamesmamodalidade.Masoareaságuasquenosrodeiamnãopodemsercercados,porissoatragédiadosbenscomunsquandoconsistememumafossadeveserprevenidapordiferentesmeios,medianteleiscoercivasoudispositivosdetributaçãoquetornemmaisbaratoparaopoluidortratarseuspoluentesdoquedescarregá-losnãotratados10.

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Emumapassagemdeseuartigo,Hardinreconhecequeosistemadepropriedadeprivada–comaconsequentepossibilidadedaherança–éummodeloinjusto.Paraele,noentanto,ainjustiçaépreferívelàruína,queseriaofiminexoráveldequalquerbemcomum.Éessa,inclusive,asoluçãoqueeleapontaparaosparquesnacionaisdosEstadosUnidos,sugerindoquesejamprivatizados(oquepassouaolongodosanosaserumabandeiradomovimentoambientalistaidentificadocomoconservacionismo).ParaHardinaexploraçãoprivadadosrecursosseapresentacomoamenospiordaspossibilidadesexistentes.Evaticinaqueocomumsósejustificariaemcondiçõesdebaixadensidadepopulacional.Numplanetaassombradopelofantasmanuclear–àquelaépocajáeramcercade3,5bilhõesdesereshumanossobreaTerrae,deacordocomadivisãodepopulaçõesdaOrganizaçãodasNaçõesUnidas(ONU),atualmentesomos7bilhões,caminhandopara9bilhõesem2050–,otextodeHardincontribuiuparaainterpretaçãodequeoscomunseramumarranjoinviávelesubsidiouoraciocíniodequeserianecessáriocentralizarsuagestão.

CertoéqueotextodeHardinfoitãorelevantequepraticamentetodososescritoresepensadoresdocampodocomumotomamcomoreferênciaparademarcarsuasdiferenças.UmacríticarecorrenteéqueemAtragédiadoscomunsHardinfaladebenscomunscomoseelesfossematerradeninguém,comosetodoarranjocomunitárioseassemelhasseaumterrenobaldioondequalquerumdepositaoquebementendesemqualquerpreocupaçãocomunitáriadeuso.Bollierrefutaessaabordagem,dizendoquenãoexistecomumsemcomunidadequeogestione:“Umcomumtemlimites,regras,normassociaisesançõescontraoportunistas.Umcomumnecessitaquehajaumacomunidadedispostaaatuarcomoguardiãrigorosadorecursoemquestão.EHardinconfundeumterrenocomunalcoma‘terradeninguém’,desacreditandoassimoscomunscomoumparadigmafrustradodegestãodosrecursos”11.

MasoprincipalconfrontoaomodelomentaldeHardinveiodacientistapolíticaElinorOstrom,cujotrabalhodesistematizaçãodosmodelosdegestãodebenscomunsrendeu-lhe,em2009,umanoapósagrandecrisemundialdocapitalismo,oprêmiodeCiênciasEconômicasemMemóriadeAlfredNobel.OtrabalhodeOstrom,apartirdeseugrupodepesquisaedaassociaçãoporelafundada(AssociaçãoInternacionalparaoEstudodosComuns–IASCCommons),constituiomaislongevoeestruturadoestudoemdefesadoscomunscomoalternativaàgestãoprivadaouexclusivamenteestataldosbensnaturais,sociaiseculturais.ApartirdeestudosdecasoempíricosqueconfrontamospresságiosdeHardin,Ostromdesenvolveosprincípios12(designprinciples)parao

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manejodeumconjuntoderecursoscomuns(commonpoolresources–CPR).Nocentrodesuaformulaçãoestáaideiadequeascomunidades,pormeiodeumsistemadeauto-organizaçãoedecooperação,fazem,aolongodosanos,umagestãomaiseficientedosrecursosdoquequandoseguemasnormasimpositivasdealgumagenteexterior.

ConformeanalisaJoanSubirats,paraOstromocomumé,sobretudo,umsistemadedireitoseobrigações:“Apartirdaacumulaçãoedaanálisedemuitoscasos,[Ostrom]conseguiuconstruirumsistemaderegrasinstitucionaisedeanálisequemostracomoseconstróiumaecologiaderelaçõesquegeramaofinalmaisincentivosàcooperaçãoentreosatoresdoqueàcompetiçãoentreeles”13.

MasaforçadopensamentodeOstromvaimuitoalémdeseuembatecomHardineoqueelachamadeteoriaconvencionaldosbenscomuns–estaqueprojetaatragédiacomodesfechodevidoaosinteressespessoaisdaespéciehumana.Suavastaobra–etodoocampodepesquisadoresqueelaformou–investigaacapacidadequetemosdeaprenderacooperaredeconstruirinstituiçõesesistemasdegestãoduradourosparaapreservaçãodoscomuns.Paracompreendê-la,énecessáriosuperarcertosparâmetrosdaeconomiaclássica,sobretudoadualidadeEstado-empresa,estatal-privatização,eateoriadaaçãoracional,quesebaseianofundamentodeumcomportamentohumanototalmenteegoísta.Emboranãorefuteplenamenteessaideia–quesegundoelapodeserútilemcontextosdemercadosexcessivamentecompetitivos–,Ostrompropõe,comJanssenePoteete,umateoriamaisampladocomportamentohumano,olhandoparaasmulhereseoshomenscomo“criaturasadaptativasquetentamprosperar”14.Comoconsequênciadessaelaboração,defendeacentralidadedaconfiançaparaqueumaaçãocoletivasejabem-sucedidaoumalsucedida,comaconsequentereciprocidadequeesseambientedeconfiançapropicia.

Quandousuáriospodemseenvolveremumanegociaçãofaceafaceetêmautonomiaparamudarsuasregras,éprovávelquetentemseorganizar.Essaorganizaçãodependedosatributosdosistemaderecursos,dosprópriosusuários,queinfluenciamaconfiançaunsnosoutros,edosbenefíciosaseremalcançados,bemcomodoscustosnecessáriosparaatingi-los.Seesseempreendimentoautogovernadoserábem-sucedidoaolongodotempoéalgoquedependedofatodeasinstituiçõescriadasmanteremaltosníveisdeconfiança,bemcomodecondiçõesdorecursoemsi.Émaisprovávelqueosusuáriosou

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estrategistasquecriamsistemascomlimitesbemdefinidos,fornecemarenaspararesoluçãodeconflitoseelaboraçãodepolíticasinternaseorganizammétodosparaomonitoramentoeasançãoànãoconformidadeobtenhammaissucessoaolongodotempo15.

EmumartigopublicadonarevistaScience,em1999,intituladoRevisitandoocomum:liçõeslocais,desafiosglobais16,Ostromecolegas,trintaanosdepoisdotextodeHardin,explicamaformulaçãosobreosCPRs,atualizandotambémaagendadediscussãoparaosdesafiosdosbenscomunsglobais.Apartirdasliçõeslocaiseregionais,ospesquisadoresdefendemanecessidadedecriaçãodeinstituiçõesmundiaisparagerirabiodiversidade,asmudançasclimáticaseosecossistemasvivos.Eapontamasváriasdificuldadesdepensarocomumemescalaglobal.Sintetizoospontosaquiporquecontinuamextremamenteatuais:(1)problemadeescala,afinal,estamosfalandodebilhõesdepessoas,oquedificultaacriaçãoderegraspartilhadas;(2)oproblemadadiversidadecultural,queseaprofundacomoconflitonorte-sul,entrenaçõesindustrializadasouemdesenvolvimento;(3)oproblemadecomointerligarosCPRsemescalaglobal,umavezqueessainter-relaçãoémuitomaiscomplexadoqueaqueexisteentreosgestoresdeumpastooudeumafloresta,oquedificultaotrabalhoconjunto;(4)oproblemadavelocidadedasmudanças,dadoqueaaceleraçãoéprogressivaeoaprender-fazendosetornamaisdifícil,poisasliçõespassadassãocadavezmenosaplicáveis;(5)oproblemadoconsensocomoregraparaaescolhacoletiva,queécomoosistemadediplomaciafunciona,oquegeraresistênciaseprivilégios.Observandooqueocorreunosúltimosanos,especificamentecomastentativasdeacordosinternacionaisemtornodasmudançasclimáticas,veremosqueaspreocupaçõesdeOstromesuaequipenofimdosanos1990erammaisquelegítimas.Oalertaalipontuadopermanece:“Nóstemosapenasumplanetacomoqualexperimentar.Nopassado,aspessoaspodiammigrarparaoutrasfontesderecursosecometessemumgrandeerronomanejolocaldeumCPR.Atualmente,temosmenosespaçoparaerraremnívellocal,enquantoemnívelglobalnãohámaisespaçoparasemover.”17

Oartigoencerradefendendoqueaproteçãodadiversidadeinstitucional,ouseja,amaneiracomoosdiversospovoslidamcomocomum,serátãoimportanteparaanossasobrevivênciacomoespéciequantoaproteçãodenossadiversidadebiológica.

Ocomumcontraoneoliberalismo

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ParaSubiratseRendueles,acrisedomodeloneoliberal,das“esperançasqueomundohaviadepositadonaglobalizaçãoeconômicaecultural”,bemcomoainsuficiênciadomodeloestatal-reguladorajudamaexplicarapopularidadedosbenscomunsentreativistaspolíticos,muitosdelesoriundosdopensamentodeesquerda.Emboranãoseja“nenhumanovidade”,selidoapartirdeumachavehistórica,inclusiveporser“umarealidadequaseuniversalnassociedadespré-industriais”,ocomum,poroutrolado,vemajudandoareconstruir“oespaçodevínculos,relaçõeseelementosqueconformamocoletivo”18.“Acriseeconômicaepolíticarecolocousobreamesaanecessidadedepensarquaissãoascondiçõessociaisdamudançapolítica,quaissãooscompromissoseasnormasqueconstituemumacomunidadepolítica.Creioqueoconceitodecomuméaformacomonossacontemporaneidaderecolocaessaquestãoclássica.”19

Amaislongevaanálisesobreessarelaçãoentreocomumeapolíticaencontra-senaobradosfrancesesChristianLavalePierreDardot.SeulivroComum:ensaiosobrearevoluçãonoséculoXXI,publicadooriginalmenteem201420,éumaextensapesquisaquesededicaa“exploraressasignificaçãopolíticadaslutascontemporâneascontraoneoliberalismo”21.Osteóricosfrancesesafirmamqueocomumsurgeemconsonânciacomoprocessooutromundista,quetemnosdiasdeAçãoGlobaldofimdadécadade1990enosFórunsSociaisMundiaisdoiníciodosanos2000seumomentodemaiorexpressividadepolítica.

Paraeles,nãosetratadeumainvençãoconceitual,masdafórmulaencontradapelosmovimentossociaisdeseoporà“apropriaçãoprivadadetodasasesferasdasociedade,daculturaedavida”.Nãoéoressurgimentodocomunismo,massima“emergênciadeumanovaformadeseoporaocapitalismo”,superandoomodelobaseadonocentralismoestatal.

Adefesada“democraciareal”pelosjovensespanhóis,aspraçaseasruastomadasnaTurquiaounosEUA,asprimaverasnonortedaÁfricaoudasnoitesdeParis,asmarchasdosestudanteschilenoscontraauniversidadeprivadaeporumsistemapúblicodeensino,amobilizaçãopopularnaBolíviacontraaprivatizaçãodaságuaseporsuagestãocomunitária,entreoutrosfenômenos,nãosão,noentenderdadupla,“acontecimentoscaóticosealeatórios,erupçõesacidentaisepassageiras,tumultosdispersosesemfinalidade.Essaslutasobedecemàracionalidadepolíticadocomum,sãobuscascoletivasdenovasformasdemocráticas”22.Emsíntese,ocomuméumaconstruçãoqueseestabelececomouma“instituiçãopolíticanotempodosperigosglobaisqueameaçamahumanidade”.“Ocomumtalcomooentendemossignificasobretudooautogovernodossereshumanos,dasinstituiçõesedasregrascriadas

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paraordenarsuasrelaçõesmútuas.Está,portanto,enraizadonatradiçãopolíticadademocracia,emespecialnaexperiênciagrega.”23

Importantedizer,porém,queparaLavaleDardotocomumnãoestárestritoapequenasunidadesdetrabalhoevida,maséalgoqueatravessatodososníveisdoespaçosocial,dolocalaoglobal.Nessesentido,ocomumdáorigemaumnovointernacionalismo,quetemalgumarelaçãocomosocialismoassociacionistadoséculoXIXeocomunismodeconselhosdoséculoXX.“Ditodeoutramaneira,trata-sedeinstituirpoliticamenteasociedade,criandoemtodosossetoresinstituiçõesdeautogovernocujafinalidade–paraalémdesuaracionalidade–seráaproduçãodocomum.Nemadissoluçãodapolíticanaeconomia,nemaestatizaçãoburocráticaetirânicadaeconomia,senãoainstituiçãodemocráticadaeconomia.”24.

ParaDavidHammerstein,umdoscriadoresdothinktankCommonsNetwork,ementrevistaparaestelivro,navisãoneomarxistadeLavaleDardot“nãoexistembensquesejamcomuns[porsuapróprianaturezaeporsuasqualidadesintrínsecas],massimcomunsainstituir”.Querdizer,oar,aáguaouabiodiversidade,porexemplo,sópodemserinstituídosemalgo‘inapropriável’pelaaçãosocial”.Hammersteinjulgaqueissoépartedeum“preconceitoantropocêntrico”,quecontrapõeculturaenatureza,o“vivoeonãovivo”,afirmandoassimodebatedemocráticocomoexclusividadehumana.“Paraeles,odesafiopolíticoedemocráticodocomumépassar‘darepresentaçãoàparticipação’,ouseja,‘ocomum’selimitaaumademocraciamaisdiretaedescentralizadaparaagovernançadosrecursos.”

Emseutrabalho,LavaleDardotatribuemaMichaelHardteAntonioNegriopioneirismodapassagemdeumavisãodebenscomuns(commons)paracomumcomoumdevirpolítico.Aolongodosanos2000,sobretudonolivroMultidão,publicadonoBrasilem2005,HardteNegridesenvolveramoconceitodecomumcomoresultantedapráticabiopolíticadamultidão,queseconstituicomoumarede“abertaeemexpansão”,múltiplaedisforme,amplaeplural,queageparaquepossamos“trabalhareviveremcomum”.

Dessamaneira,comoanalisaAmadeudaSilveira,nãohánaduplanenhumadisposiçãodevoltaaopassado,aoscomuns(commons)medievais,oumesmoàideiadecomunidade.Oqueelesfazeméproporumnovoambientedeluta–ocomum–nocontextodocapitalismocognitivo,quetransformoudefinitivamenteascategoriasdotrabalhodaeraindustrial.

Ocomumquecompartilhamos,narealidade,émenosdescobertodo

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queproduzido.(Relutamosemutilizaraexpressãonopluraloscomuns[thecommons]porqueelaremeteaespaçosdepartilhapré-capitalistaqueforamdestruídospeloadventodapropriedadeprivada.Apesardeumtantoestranho,ocomum[thecommon]ressaltaoconteúdofilosóficodotermoedeixaclaroquenãosetratadeumavoltaaopassado,masdeumnovodesenvolvimento.25

NolivroBem-estarcomum,oúltimodatrilogia,HardteNegriafirmamquea“democraciadamultidão”,resultadodeumprocessodeaprendizagemdasformasdeautogovernoedenovasorganizaçõessociais,sóé“imaginávelporquetodoscompartilhamosdocomumedeleparticipamos”.Porcomum,elesentendem“ariquezacomumdomundomaterial–oar,aágua,osfrutosdaterraetodasasdádivasdanatureza”mais“osresultadosdaproduçãosocialquesãonecessáriosparaainteraçãosocialeparamaisprodução,comoosconhecimentos,asimagens,oscódigos,ainformação,osafetoseassimpordiante”.“Esseconceitodocomumnãocolocaahumanidadeseparadadanatureza,sejacomosuaexploradoraousuaguardiã;centra-se,antes,naspráticasdeinteração,cuidadoecoabitaçãonummundocomum,promovendoasformasbenéficasdocomumelimitandoasprejudiciais.”26

NãorestadúvidadequeoscompêndiosdeLavaleDardotedeHardteNegriexigiriamapresentaçãomuitomaior.Noentanto,comoespecifiqueinoiníciodestecapítulo–edevidoàpróprianaturezadolivro–sótemosespaçoparaumsobrevoopanorâmico.Emsíntese,porém,comodistinçãoaoquevimosatéagoraquandofalamosdocomum,encontramostodoumcampopolíticosendoforjadoapartirnãodeumareivindicaçãodoscommons,massimdapossibilidadedecriaçãopolíticadocomumcomoumnovoconjuntodepráticasqueseopõeaosmodelosprivadoeestataldeorganização,osquaisorientaramopensamentoàdireitaeàesquerdaaolongodosanos.Ocomumaquiseapresentaassociadoàlutaanticapitalista,portanto,antineoliberal,eabsolutamenteconectadoàconstruçãodeumaoutrademocraciapossível.

ProduçãocolaborativabaseadaembenscomunsNaviradadosanos2000,autoresestadunidensesrecorreramaoconceitode

commonsparaexplicarastransformaçõesdoecossistemaculturalecomunicacionalocasionadaspelaeradigital.Entreeles,destaca-seoprofessordedireitodeHarvard,YochaiBenkler.Recorroaeleparaquepossamosavançar

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sobreacompreensãodocomum,agoraemdireçãoàeconomia.Noartigo“Aeconomiapolíticadoscommons”,Benklerafirmaqueo

comuméumtipodeliberdadequeexisteforadasrestriçõesexigidaspelomercado.Ouseja,seuregimedeexistênciapossuirestriçõesdiferentesdedireitodepropriedade,porqueestabeleceque“nenhumapessoatemocontroleexclusivodousoedadisposiçãodequalquerrecursoparticular”:“Pelocontrário,osrecursosgovernadospelacomunidadepodemserutilizadosedispostosporqualquerumentredadonúmerodepessoas(maisoumenosbemdefinido),sobregrasquepodemvariardesdeo“vale-tudo”atéregrasclarasformalmentearticuladaseefetivamenteimpostas”27.

Essateoriadefendequepodemosanalisaroscomunsapartirdedoisparâmetros:sesãoabertosatodosouapenasaumgrupo;esesãoreguladosounão.Noprimeirocaso,umexemplodecomumabertoéoar.Jáospastospré-capitalistas–tãoevocadoscomoexemplo–seriamcatalogadoscomocomunsparcialmenteabertos,porqueeramterrasdeusufrutodeumacomunidadeespecífica.Comrelaçãoàregulação,Benklernosexplicaqueascalçadas,ruaserodoviassãoumbomexemplodecomumregulado,poisexistemregraspreviamenteestabelecidasparaseuuso.Comoexemplodecomumnãoregulado,elecitaoconhecimentocientíficoanterioraoséculoXX.Ouseja,tudoaquiloqueexisteantesdainstituiçãodapropriedadeintelectual.

Emsuaobra,Benklersededica,sobretudo,àquestãodigital,especialmenteporqueparaeleasredes,emumregimedeliberdade,tendemafortaleceronãoproprietário(oscommons),nacontramãodoqueocorrianaeraindustrial.Nessenovocontextoosregimesbaseadosnocomumsão“sustentáveis”eprovavelmente“maiseficientesqueosregimesdepropriedadeindividual”.Ainformaçãodigital–elementocentraldereorganizaçãodocapitalismo–,umbempúblico(umpublicgood,nãorival),sónãofluilivrementeporcontadasrestriçõesestabelecidaspelasleisdepropriedadeintelectual.Comisso,emnomedeumavelhaeconomia,osdefensoresdocopyrightbloqueiamaforçadeumaproduçãocolaborativabaseadaembenscomuns(commons-basedpeerproduction–CBPP),ouseja,umanovaeconomiamaisdemocráticaedistributivaqueaeradigitalnospropiciaria.

Commonssignificamliberdade,sãoespaçosinstitucionaislivresdasrestriçõesimpostaspelosrequisitosdosmercados.Quandosefaladeumambientedeinformação,doespaçoculturalesimbólicoqueocupamoscomoindivíduosecidadãos,adiversificaçãodasrestriçõessobreasquais

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operamos,inclusiveacriaçãodeespaçosrelativamentelivresdasleisdeestruturaçãodemercados,atingeocernedaliberdadeedademocracia28.

EssaformulaçãoeconômicadeBenklervemsendolargamenteutilizadaporgrandepartedoseconomistasdocomum,entreosquaisMichelBauwens,criadordaP2PFoundation,queapontaqueaeconomiadosparesdáorigemaumterceiromododeprodução,degovernançaedepropriedade29.ParaBauwens,trata-sedeumaeconomiaquepersegueoadágio“decadaumdeacordocomsuascapacidades;acadaumdeacordocomsuasnecessidades”.Nãoseriauma“economiadadádiva”(gifteconomy),masummodelocomplementaremque,emsuaformapura,osprodutoresnãosãoobrigatoriamentepagosdenenhumamaneira,nemsequercomreciprocidade,mas,sim,compartilhamvalores.OprojetoP2PValue,desenvolvidopelafundaçãodeBauwens,temcomoobjetivoconstruirumdiretóriodeprojetos30ecomunidadesquepodemsercategorizadoscomoCBPP.Entreosexemplosporelescitadosestãoprojetosdesoftware,hardwareedesignlivres,comoLinux,WordpresseDrupal,aplataformadecrowdfundingespanholaGoteo,queatuaparaviabilizarprojetossocioculturaisdocomum,eaWikipedia.

Aproduçãocolaborativabaseadaembenscomuns[CBPP]podeserdefinidacomoqualquerprocessonoqualindivíduospodemcontribuirlivreeabertamenteparaumcomum(deconhecimento,códigosoudesign),necessariamenteassociadoaformasdegovernançaparticipativa(vistoquenãohárelaçãodedependênciaentreoscontribuinteslivres);eassimcriarumcomumdeconhecimentoqueestáabertoanovascontribuições31.

Ocomumé,portanto,tambémumaalternativaparaareorganizaçãodosistemaprodutivoemtornodocuidadoedasolidariedade.Aeconomiacolaborativaimpulsionaaproduçãosocialeatrocaequitativaentreparesevemsendopavimentadapormeiodaatuaçãodeempreendedorescidadãoscujoobjetivofinalnãoéamaximizaçãodolucro,massimamelhoriadascondiçõessociaisdetodasetodos.Novasinstitucionalidades,algumasrecuperandoeatualizandoomodelodascooperativas,apresentam-secomoalternativaparaviabilizararranjosprodutivossadios,osquaisseestruturamapartirdeumalógicadesuficiênciaenãodeacumulação.

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QuatroentornosdocomumOpesquisadorespanholAntonioLafuenteécoordenadordoLaboratóriodel

ProcomúndoMediaLab-Prado,naEspanha.Eleéautordeumartigointitulado“OsquatroentornosdoComum”32,noqualcompartilhaumframeworkquenosajudaaentenderosatravessamentosdosbenscomunsnasváriascamadasdenossaexistência.Oquadroporeleproduzido,quetraduzonasequência,versasobreoscorpos(sensibilidadeecorporalidade),anatureza(biosfera,geosfera),acidade(domésticos,culturaiseurbanos)eodigital(códigoseestruturas).

SegundoLafuente,ahumanidadeseestruturouemquatromeiosdiferentes.Emtermosconceituaispodemosimaginá-loscomocamadasqueseinterconectame,comoocorrenocérebro,representamumasucessãodeadaptaçõesaquatrodistintosentornos:ocorpo,anatureza,acidadeeodigital.

Emcadaumadessasdimensõestravamosárduosesforçosparaconstruiroqueédedomíniopúblicoeoqueédedomínioprivadoe,maisrecentemente,paranosabrirmosaocomum,umadimensãoemparteindependenteeempartesuporteparaasoutrasduas.Noprincípiotudoeracomum.Docomumfoiemergindooexclusivoe,maistarde,desdeamodernidade,especialmenteapartirdasrevoluçõesliberais(dofimdoséculoXVIII,iníciodoséculoXIX),oprivadoeopúblico33.

Ocomumemseusquatroentornos

CORPOOcorponuncateveumproprietárioclaroenãofaltamesforçosparaevitarquesejainstrumentalizado(comosúdito,paciente,forçadetrabalho,objetosexual,fábricadeórgãos)aserviçodeinteressesprivados.

SENSIBILIDADEOssentidosfortesdeprazer,liberdade

audição,olfato,paladar,expressividade,afetoecuidado

CORPORALIDADEAspartesdocorpo,separadasdocorpooriginal,pertencemaocomum.

tecidos,embriões,córneas,órgãos,funçõesdigestivas,reprodutoras,cerebral,dadosclínicos,genéticos

NATUREZAOcomumnaturaléomaisóbviodosquatroeincluioconjuntodosdonsdanatureza,todoscaracterizadosporsuaquádruplacondição:(1)seresgotáveis;(2)serpropriedadedeninguém(resnullius);(3)dependerdeformaexternadasnovastecnologias;(4)seremplanetários.

BIOSFERAAvidapertenceaocomum.

selva,plantas,animais,espécies,biodiversidade,bosques,rios,fotossíntese,polinização

GEOSFERAOplanetagaranteavida.

minerais,clima,oceanos,ar,luz/sol,montanhas,proteçãoUVA,ozônio,espaço,ciclos(água,ciclodenutrientes…),vento,

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chuva

CIDADEAadaptaçãoàurbeimplicaaconstruçãodeumasegundanaturezacomadomesticaçãodoespaçoedotempo.Osfluxosquecanalizamafala,alinguagemeocorpoporlugares,comunidades,bairros,comarcas,instituições,mercado,ruasepraçasseinterrompemsemadefesadenovoscomuns.

DOMÉSTICOTramaslocaisdefluxo

fala,língua,números,jogos,bailes,culturapopular,carnaval,ferramentas,cozinha,conhecimentoprimitivo,bosques,poçosaquíferos,lagos,pasto

CULTURAISTramassimbólicasdefluxo

conhecimento,leis,história,sementes,paisagens,nomes,símbolos,música,bibliotecas,paz,democracia,sistemafinanceirointernacional,rededecontroledeepidemias

URBANOSTramasespaciaisdefluxo

praça,parques,ruas,jardins,festas,museus/patrimônio,efemérides,memórias

DIGITALAculturahacker,astecnologiassociaiseosmovimentospelatransparência(openness)estãocriandoumquartoentornoquedemandaummetamovimentoparadefendê-losdaprivatizaçãoabusivaeasseguraraparticipação,equidadeediversidadenaproduçãoeacessoàinformaçãoeaoconhecimento.

CÓDIGOAlinguagememqueasmáquinasfalamdeveserumbemcomum.

softwarelivre,formatosabertos,GPL,protocolosabertos,acessoaberto,dadosabertos,interoperabilidade

ESTRUTURASAliberdadeparaqueociberespaçonãosejaumgrandemercadopatrimonializadopelasgrandescorporações.

internet,ICANN1,comunidadesvirtuais,direitosdoscidadãos,interconectados,liberdadesdigitais

Épossível,combasenessaformulação,anteverondepodemosagir,paraalémdomercadoedoEstado,emmúltiplasdimensões–garantindoassimqueentendamosoconceitodocomumcomomultidimensional.EstaversãododiagramapossuipequenasdiferençasemrelaçãoàpublicadanoartigooriginaldeLafuenteefoiproduzidaemdiálogocomseuautor.Pararegistrar,substituímosapalavrameioambientedaversãoanteriorpornatureza34,nosentidodepatrimônio(natural),afirmandoassimaperspectivasimétricanatureza-culturaquesubsidianossavisãodocomum.

DepoisdepercorrerasobrasdeImreSimon,MiguelSaidVieira,Garrett

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Hardin,ElinorOstromeváriosdeseuspesquisadoresparceiros,ChristianLavalePierreDardot,MichaelHardteAntonioNegri,SilviaFederici,MichelBauwens,SilkeHelfrich,JoanSubiratseCésarRendueles,YochaiBenkler,LawrenceLessigeAntonioLafuente,mepostodiantedaesfinge.Comsuasasasabertaseolhosvermelhos,sentadasobresuacaudadeleoa,elamefitaàesperaqueeudecifresuapergunta:afinal,oqueéocomum?Peço-lhepaciência.Jáavançamosbastante,masaindaéprecisoescutaroutrasvozes,narraroutroscasos,paraquepossamosentenderacomplexidadedoassunto.

1MiguelS.Vieira,Osbenscomunsintelectuaiseamercantilização,tesededoutoradoemEducação,FaculdadedeEducaçãodaUniversidadedeSãoPaulo,SãoPaulo,2014,p.110.

2“Queeselprocomún?”,disponívelem:<https://www.youtube.com/watch?v=xBtqYMXZhk8>,acessoem:20mar.2018.

3MiguelS.Vieira,op.cit.,pp.97-8.4“Hablardeloscomunescomosifueranrecursosnaturalesescomomínimoengañosoypuedellegaraser

peligroso:loscomunessonunaactividady,encualquiercaso,expresanrelacionessocialesinseparablesdelasrelacionesconlanaturaleza.Seríamejorconservarlapalabracomoverbo,comoactividad,antesquecomounnombre,unsustantivo.”PeterLinebaugh,ElManifiestodelaCartaMagna:comunesylibertadesparaelpueblo,Madri:TraficantesdeSueños,2013,p.285.

5Usoessetermoemreferênciaàobradolivre-pensadorJamesLovelock,queafirmaseroplanetaterra,Gaia,umorganismovivo,nãoumarochainertecomoboapartedopensamentoocidentaldefende.Desenvolvomelhoressaideianocapítulo8destelivro,intitulado“Oplanetaéumcomum”.

6DavidBollier,Pensardesdeloscomunes:unabreveintroducción,Madri:TraficantesdeSueños,2016,p.22.Disponívelem:<https://sursiendo.com/docs/Pensar_desde_los_comunes_web.pdf>,acessoem:20mar.2018.

7“Peroelcaminhoquellevaalentendimientodelprocomúndemandaunesfuerzodevoluntadpararepararenlasparticularidades,paraverelpotencialcreativodelasrelacionessocialesyabandonarlabúsquedadeuniversalesabstractosycertezaspredecibles.Locomunalfuncionaporquelaspersonaslleganaconoceryaexperimentarlascondicionessingularesdelagestióndeunrecurso,yterminandependiendolosunosdelosoutros,encariñandosecomestebosqueoeselagooaquellaparceladetierra.Lasrelacionesquesecreanentrelaspersonasysusrecursosimportan.”Ibidem,p.21.

8SilviaFederici,“Ofeminismoeaspolíticasdocomumemumaeradeacumulaçãoprimitiva”,in:RenataMoreno(org.),Feminismo,economiaepolítica,SãoPaulo:SOF,2014,p.151.Disponívelem:<http://www.sof.org.br/wp-content/uploads/2015/08/Economia-e-política-web.pdf>,acessoem:19abr.2018.

9“Eachmanislockedintoasystemthatcompelshimtoincreasehisherdwithoutlimit–inaworldthatislimited.Ruinisthedestinationtowardwhichallmenrush,eachpursuinghisownbestinterestinasocietythatbelievesinthefreedomofthecommons.Freedominacommonsbringsruintoall.”GarrettHardin,“TheTragedyoftheCommons”,Science,v.162,n.3859,pp.1243-8.Disponívelem:<http://citeseerx.ist.psu.edu/viewdoc/download?doi=10.1.1.124.3859&rep=rep1&type=pdf>,acessoem:19abr.2018.

10“Thetragedyofthecommonsasafoodbasketisavertedbyprivateproperty,orsomethingformallylikeit.Buttheairandwaterssurroundinguscannotreadilybefenced,andsothetragedyofthecommonsasacesspoolmustbepreventedbydifferentmeans,bycoercivelawsortaxingdevicesthatmakeit

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cheaperforthepollutertotreathispollutantsthantodischargethemuntreated.”Ibidem.11“Uncomúntienelímites,reglas,normassocialesysancionescontralosoportunistas.Uncomúnnecesita

quehayaunacomunidaddispuestaaactuarcualguardiánrigurosodelrecursoenconcreto.YHardinconfundeunterrenocomunalcomla‘tierradenadie’,desacreditandoasíaloscomunescomounparadigmafrustradodegestióndelosrecursos”.DavidBollier,op.cit.,p.31.

12OsoitoprincípiosdeOstromsão:(1)fronteirasbemdefinidas;(2)coerênciaentreasregrasdeapropriaçãoeprovisãocomascondiçõeslocais;(3)arranjosdedecisãocoletiva;(4)monitoramento;(5)sançõesgraduais;(6)mecanismosderesoluçãodeconflitos;(7)reconhecimentomínimodedireitosdeorganização;e(8)alinhamentoearticulaçãointersetorialnagestão.

13“Apartirdelaacumulaciónydelanálisisdemuchísimoscasos,logróconstruirunsistemadereglasinstitucionalesydeanálisisquemuestracómoseconstruyeunaecologíaderelacionesquegeneranalapostremásincentivosalacooperaciónentreacotresquealacompetenciaentreellos.”CésarRendueles;JoanSubirats,Los(bienes)comunes:oportunidadoespejismo?,Madri:Icaria,2017,p.31.

14AmiR.Poteete;ElinorOstrom;MarcoJanssen,Trabalhoemparceria:açãocoletiva,benscomunsemúltiplosmétodos,SãoPaulo:EditoraSenac,2011,p.288.

15Ibidem,p.317.16ElinorOstrometal.,“RevisitingtheCommons:LocalLessons,GlobalChallenges”,Science,v.284,n.

5412,9abr.1999,pp.278-82.Disponívelem:<http://science.sciencemag.org/content/284/5412/278.full>,acessoem:13jul.2017.

17“Wehaveonlyoneglobewithwhichtoexperiment.Historically,peoplecouldmigratetootherresourcesiftheymadeamajorerrorinmanagingalocalCPR.Today,wehavelessleewayformistakesatthelocallevel,whileatthegloballevelthereisnoplacetomove.”Ibidem.

18CésarRendueles;JoanSubirats,op.cit.,pp.10-6.19“Lacrisiseconómicaypolíticahavueltoaponersobrelamesalanecesidaddepensarcuálessonlas

condicionessocialesdelcambiopolítico,cuálessonloscompromisosylasnormasqueconstituyenunacomunidadpolítica.Creoqueelconceptodeloscomuneseslaformaenquenuestracontemporaneidadseestáplanteandoestacuestiónclásica.”Ibidem,p.11.

20Atraduçãoparaoportuguêsfoilançadaem2017,pelaeditoraBoitempo.21ChristianLaval;PierreDardot,Común:ensayosobrelarevoluciónenelsigloXXI,Barcelona:Gedisa,2015,p.

25.22Ibidem,p.24.23“Locomúntalcomoaquíloentendemossignificaantetodoelautogobiernodelossereshumanos,delas

institucionesydelasreglasquesedanparaordenarsusrelacionesmutuas.Estápuesenraizadoenlatradiciónpolíticadelademocracia,enespecialenlaexperienciagriega.”Ibidem,p.519.

24“Dichodeotramanera,setratadeinstituirpolíticamentelasociedad,creandoemtodoslossectoresinstitucionesdeautogobiernocuyafinalidad–ademásdesuaracionalidad–serálaproduccióndelocomún.Niladisolucióndelapolíticaenlaeconomía,nilaestatizaciónburocráticaytiránicadelaeconomía,sinolainstitucióndemocráticadelaeconomía.”Ibidem,p.523.

25MichaelHardt;AntonioNegri,Multidão:guerraedemocracianaeradoImpério,RiodeJaneiro:Record,2005,p.14.

26Idem,Bem-estarcomum,RiodeJaneiro:Record,2016,p.8.27YochaiBenkler,“Aeconomiapolíticadoscommons”,in:SergioAmadeudaSilveira(org.),Acomunicação

digitaleaconstruçãodoscommons:redesvirais,espectroabertoeasnovaspossibilidadesderegulação,SãoPaulo:FundaçãoPerseuAbramo,2007,p.13.

28Ibidem,p.16.

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29Cf.MichelBauwens,“ThePoliticalEconomyofPeerProduction”,CTHEORY.Disponívelem:<https://journals.uvic.ca/index.php/ctheory/article/view/14464/5306>,acessoem:20abr.2018.

30Disponívelem:<http://directory.p2pvalue.eu/>,acessoem:20abr.2018.

31“Commons-orientedpeerproductioncanbedefinedasanyprocesswherebyindividualscanfreelyandopenlycontributetoacommonpool(ofknowledge,code,anddesign),necessarilycoupledtoformsofparticipatorygovernance(sincethereisnorelationofdependencebetweenfreecontributors);andtherebycreateacommonpoolofknowledgethatisitselfopentonewcontributions.”MichelBauwens,“Commonsbasedpeerproduction:anintroduction”,8jul.2014,HeinrichBöllStiftung.Disponívelem:<https://www.boell.de/en/2014/07/08/commons-based-peer-production-introduction>,acessoem:14jul.2017.

32“Loscuatroentornosdelprocomún”,disponívelem:<http://digital.csic.es/bitstream/10261/2746/1/cuatro_entornos_procomun.pdf>,acessoem:23maio2018.

33Idem.34ComentáriodeLafuenteparaestatradução,emmensagemenviadaaoautor:“Masoqueéonatural?A

primeiradefinição,aqueseusouduranteamodernidade(especialmentecomachegadadaciênciaexperimental),équeonaturaléoquenãoésocial,político,cultural...melhordizendo,oqueexistesemintervençãohumana.Mas,defato,sóexisteoquesabemosvereoquesabemosnomear.Ou,emoutraspalavras,oquepudemostornarnossopelaviadaciênciaedatecnologia.Oquequerodizer?Ou,ditodeoutromodo,qualéomododeexistênciaquetêmosobjetosnaturais?Oarnãoéumacoisasenãoumobjetoquefoisetransformandocomotempoemfunçãodecomoforamavançandonossosconhecimentosdequímica,nossosinstrumentosdemedida,nossasformasdelegitimaçãodosaber...ouseja,issoquechamamosnaturezatampoucoéàmargemdemim,senãoqueestárelacionadacomminhasmáquinas,meusconceitos,minhasinstituições.Ditodeoutraforma:dissoquesechamanatureza,sóestouevocandoessapartedequeseifalar,dequepossofalar,dequequerofalar,sobreaqualpossolegislar(maisNewtonoumaisMontesquieu).Porisso,aindaqueoentornosechamenatural,nessaexplicaçãocreioqueseentendemelhorquandoofazsinônimodepatrimônio(natural)”.

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NÓS,OPOVO,COMODIZACONSTITUIÇÃOdosEstadosUnidos,napossibilidadedoexercíciodopoderpormeiodeseusrepresentantesou

diretamente,comoconsagraaConstituiçãobrasileira.Quandoconfrontadacomocomum,ademocraciasurgenãoapenascomoumsistemadegoverno,mascomoumafilosofiapolíticaemdefesadadistribuiçãoequânimedopoder.Devemos,pois,pensaressarelaçãodemocracia-comumemmúltiplascamadas.Qualademocraciaqueexercitamosevivenciamosnointeriordenossascomunidades?Qualademocraciaqueoscomuneiros,emaliança,queremconstruirparaoconjuntodasociedade?Qualdemocraciaéprecisoinventarparasuperarestemodelohegemônicobaseadonarepresentaçãoquefoicapturadopelosinteressesdosmercados?Qualdemocraciapreservarousuperarnasrelaçõesinternacionaiseemâmbitomultilateral?Afinal,quandopensamosaagendapolíticacontemporâneapercebemosqueprecisamosdeumaaliançatransnacionalparaenfrentardesafiosglobais.

ComoescrevemLavaleDardot,ocomuméabuscapornovasformasdemocráticas,ouseja,porimaginaçãonopoder.UmexemploemcursoéodaEspanha.DepoisdequasemeioséculodaditadurasanguináriadogeneralFranciscoFrancoedeumaexperiênciadequasequarentaanosdebipartidarismo–alternandogovernosdoconservadorPartidoPopular(PP)edoPartidoSocialistaObreroEspañol(PSOE),quepodemosdefinircomoumaagremiaçãodecentro-esquerda–,opaísdapenínsulaIbéricaexplodiu.Em2011,anodeeleiçõesparaaescolhadeseuprimeiro-ministro,aEspanhachegouaumasituaçãoinsustentável,comaltastaxasdedesemprego(quesubiramde8%para20%,númeroquesemantématéhoje),despejos,pacotesdeausteridadefiscal,reformasneoliberaisquereduziamdireitostrabalhistaseprevidenciários,corrupção,resgatepúblicodebancos,numcontextodefaltadecrescimentoeconômico.Nodia15demaio,umprotestopacíficoconvocadopelainternetpelomovimento“DemocraciaRealYa”,comolema“Nãosomosmercadoriasnasmãosdepolíticosebanqueiros”,reuniumilharesdepessoasemmaisdecinquentacidadesespanholasedeuorigemaumacampamentonaPuertadelSol,aprincipalpraçadeMadri.Aaçãofoireprimidaduranteanoite,resultandonaprisãodeváriosativistas.Comorastilhodepólvora,olevanteviralizoupelasredessociais,estimulandoacampamentosportodoopaís–a

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15Mpedia(plataformawikiparadocumentaçãodoprocessocriadapelosprópriosativistas)registra211acampamentosnodia22demaiode2011.OepisódioficouconhecidocomoMovimento15-MouMovimentodosIndignados,ouainda“revoluçãoespanhola”,emuitosanalistasointerconectamcomaPrimaveraÁrabe,nomedadoàsgrandesmobilizaçõespopularesempaísesdonortedaÁfrica,emespecialoEgitoeaTunísia,queocorrerampoucosmesesantes.Ahistóriado15-Méverdadeiramentefascinanteenãofaltambonslivrosparacontá-la,masdoissãoprimordialmenteosaspectosquemeinteressamnestecapítuloemquemepropusapensarasrelaçõesentreocomumeademocracia:(1)aexperiênciadosacampamentoscomoespaçosdeconstruçãodeumapolíticadocomum;e(2)osefeitosqueessemovimentopopulartevenareconstruçãodosistemapolíticoespanhol,emespecíficocomosurgimentodenovasforçaspolíticasquecarregamemseuprogramaaideiadebenscomuns,asquaisassumiramogovernodasprincipaiscidadesespanholas,comoMadri,BarcelonaeSaragoça.

ParaLavaleDardotemseulivroComum:ensaiosobrearevoluçãonoséculoXXI,osprotestosespanhóissãopartedeumamplomovimentoglobaldeemergênciadelutasdocomum,quesedestacampelaoposiçãoàracionalidadeneoliberal,bemcomonegamoestatismodepartedaesquerdatradicional.OsautoresfrancesesdesenvolvemessaideiatambémemumartigotraduzidoparaoportuguêspelaUniversidadeNômade,comomesmotítulodolivro.

Ocomumnospareceseroprincípioqueliteralmenteemergiudetodosessesmovimentos.Portanto,nãoéalgoquenósinventamos;istosurgiudaslutascorrentescomoseuprincípiointerno.Otermoadquiriuassimumsignificadocompletamentenovo,aqueleda“democraciareal”,paraoqualaúnicaobrigaçãopolíticalegítimanãodecorredaadesãoaumadeterminadacomunidade,pormaisamploqueissopossaser,masdaparticipaçãonessamesmaatividadeounastarefasqueaconstituem1.

Nessesentido,oprimeiroslogando15-Mnãopoderiasermaisexplícitoaoestabelecerofoconaaliançaentrepolíticosebanqueiros.Ouseja,entreEstadoemercadofinanceiro,consideradosporelesgêmeossiamesesnoprocessodedestruiçãodademocracia.Isso,porém,nosbastariaparaconcordarqueoMovimento15-Méumexemplodepolíticadocomum?Difícildizer,porqueoprocessoespanholenvolveupartidosdaesquerdatradicionaledelesurgiramrespostasorganizacionaisquenãoprezampelahorizontalidade,comoéocasodopartidoPodemos.Poroutrolado,nãorestadúvidadequehojeaEspanha

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viveumexperimentoavançadonessadireção.RecuperoumtrechodafaladeJoanSubirats,emseulivroemparceriacomCésarRendueles,Los(bienes)comunes,porentenderqueelepodenosajudaracompreenderqueasimplesreivindicaçãodoconceitonemsempreproduzumaefetivademocraciadocomum.

Comopodemosrelacionarocomumcomaideiadedemocracia?Tentandoveratéquepontofalamosdocomumcomoalgocoletivo,compartilhado,quegeravínculos,quegeraobrigações,quegeradireitos.Comopodemostransporessecompartilhareessecoproduzirparaagestãopolítica?Comorelacionamosissocomespaços,comformasdeconexão,emqueorecursodopúblicoestejaconectadocomacomunidade,comumavontadedesercomunidade?Essecommoning(fazerocomum)comoexpressãodeação,devontadedegerarocoletivo2.

OMovimento15-Msemdúvidafoi,comseusacampamentoseassembleias,umauniversidadededemocraciaparaseusparticipantes,resultandoemamplapolitizaçãodoscidadãosenarecuperação–aindaqueprovisória–daessênciademocrática.Nesseprocessocoletivo,ativistas,jovensdesempregados,trabalhadores,estudantes,aposentados,artistas,intelectuais,entretantosoutrosagentessociais,uniramseuscorposparaconversar,deliberar,decidir,discutirtendocomoúnicaperspectivaatarefaimprescindíveldetransformararealidade.Nessefazer-a-política,fazer-o-comum,criarampactos,regras,vínculos,obrigações,direitos.Umadasespecificidades,porexemplo,foioestabelecimentodogênerofemininonasconversaçõesdasassembleias,umareivindicaçãodomovimentofeminista.Paraviabilizaressadinâmicadeautogoverno,formaramgruposdetrabalho–dealimentação,segurança,comunicaçãoejustiça;compartilharamequipamentosesonhos;deliberaramporconsenso;ocuparamespaçosreaisevirtuais.Aexperiênciado15-Mengendrouefortaleceuinúmerosprocessosvivosnascidadesespanholas,comorganizaçãodecentrossociais,casascoletivas,assembleiasembairros,coletivospolíticoseartísticos,entreoutrasformasalternativasdeorganizaçãoqueseguemcontribuindoparaatransformaçãodarealidade3.Umdosfocosessenciaisdessa“novapolítica”passouaseradefesadaatuaçãonos“bairros”,comacriaçãodeassembleiascidadãs.

Em2015,muitosdosativistasquese“formaram”nessaricaexperiênciado15-Msesomaramàsfrentescidadãsvencedorasdaseleições.DevoltaaocasodeMadri,podemosdestacarcomoconsequênciadessatransferênciadequadrosdo

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movimentosocialparaaadministraçãopúblicaotrabalhodeusodastecnologiasdigitaisesociaisparagerarummodelodedemocraciadireta.SobabatutadohackerPabloSoto,criou-seumaáreadeparticipaçãocujofocoépromovera“desintermediação”dopoder.Em2017,foicriadaaplataformaDecideMadrid,deorçamentoparticipativovinculado,comacessorestritoaosmoradoresdacidade,paraaqualalocaram100milhõesdeeurosdestinadosaofinanciamentodeprojetospropostospelacidadania.Alémdaplataformaweb,oDecideMadridincluitambémpontosdeatendimentopresencialemtodaacidade,oschamadosescritóriosdeatençãoaocidadão.OutrainiciativainteressantesãooslaboratóriosdeprototipagemdesenvolvidosemparceriacomoMediaLab-Pradoemquefuncionáriospúblicosecidadãosseunemparacoproduzirsoluçõespráticasparaproblemasreais.

Subirats,refletindosobreiniciativasqueestãopipocandonaEspanhaatual,defendeoconceitodecoproduçãopolíticacomoumaformapráticadeimpulsionaralternativas:“Oconceitodecoproduçãonessesentidotentasaltarporcimadoconceitodeparticipação,esecolocamaisemrelaçãoaproblemasconcretos,nãogenéricos,afimdeestabelecerdiagnósticoscompartilhadosquegeremobrigaçõesconjuntasdecadaum”4.

Doprotestoàproposta.Daparticipaçãoàcoproduçãocidadã.Assembleiaspermanentesdeliberando,comoapoiodasnovastecnologias,osrumosdapolítica.Issotudojávemsetornandorealidade,bemcomoastensõespermanentescomasforçasqueresistemaonovo.Umarevoluçãodemocráticaépossível?OquepermitiriadefatoumareorganizaçãodoEstadoapartirdaideiadecomum?Pode-sedizerqueoquevemocorrendonaEspanhahojeéoprincípiodeumademocraciadocomum?Nessashoras,nossainfinitacapacidadedeimaginarpodenosajudarairalém.Escritoem2011,olivroLacartadeloscomunes:paraelcuidadoydisfrutedeloquedetodoses,coordenadopelocoletivoMadrilonia.orgepublicadopelaeditoraTraficantesdeSueños,propõeumaconstituiçãoimagináriaparaumacidadetotalmenterepensadaapartirdosbenscomuns.OcenárioprojetadoéaMadride2033,quenessapequenautopiateriaaprovadosuanovaConstituiçãodezanosantes.Exercíciodefuturismoouumaespéciedeantenaparabólicaquecaptaaquiloquejáestáemcurso,masaindanãosetornouhegemônico?Emseussetentaartigos,aConstituiçãoimagináriaversasobregestão,bensnaturais,osespaçoscomunsdacidade,saúdeecuidados,educação,culturaeconhecimentoeformasdegovernança.OlivroencerracomumensaioanalíticoproduzidopeloObservatórioMetropolitano,queevocaaideiadequepensarocomumnãoévoltaraumpassadomedieval,

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masbuscarumfuturopossível.Equeumdoscamposessenciaisparaaafirmaçãodeumademocraciadocomuméjustamenteododireito,daproduçãodeleiseregrasparatodasetodos.“Adiferençadessaconstruçãoinstitucionalédeordemsocial:asrelaçõescomunitárias.Ou,ditodeoutramaneira,arecuperaçãodaesferadareproduçãosocial,quegaranteavidaemcomum,nãopodeocorrerdesdeumarelaçãomediadainstitucionalmente,senãoqueestadevesecolocaremumpontoemqueseamarraàmaterialidadedasrelaçõescomunitárias.”5

Prestemosatençãonessaformulação.Elaédemasiadoimportante.Éprecisopensardesdeonívelcomunitárioparaelaborarumademocraciacomuneira.Aomesmotempoquenãopodemosdeixardeperceberqueestamoslidando,emváriasdenossaspreocupações,comcomunsuniversais.Assim,osgovernosqueestãosurgindo,buscandoemseusprogramasreferenciar-senoconceitodecomum,precisamteremcontaessadupladimensão.Emgeral,oquetemosvistoéqueessasgestões,mesmoasdeesquerda,supostamentecomprometidascomaideiadeigualdadeejustiçasocial,quandodepossedafunçãoderegularprocessospúblicos,contribuemparafacilitarcercamentosaoinvésdeevitá-los.EmdiálogocomBollier,pensoquegovernoscomprometidoscomapreservaçãoeconstruçãodecomunsestãoporserinventados.

Desuaparte,osgovernoseasburocraciassemostramcautelososarespeitodoscomunsaoseremestesumabasedepoderindependenteeumaameaçapotencial.Porisso,preferemascertezaseretribuiçõesdesuasaliançasmercantis.Pornormageral,osgovernospreferemgerirosrecursosmediantesistemasdecontroleestritamenteregulados.Paraeles,acriaçãodecomunsparecedemasiadoinformal,irregulareinstável,aindaqueosverdadeirosganhosdoscomunsrefutemessepreconceito6.

ParaDavidHammerstein7,daCommonsNetwork,cujoprincipaltrabalhoéarticularumaagendacomuneiraparaaUniãoEuropeia,oqueestáocorrendonaEspanhanãotemrelaçãodiretacomosbenscomuns.Segundoele,amaioriadosagrupamentosqueassumiramaadministraçãopúblicaem2015–comapossívelexceçãodeBarcelona–seguesobinfluênciadepartidosdeesquerdatradicionalemcoalizãocomsetoresdosmovimentossociais.Hammersteinavaliaqueprocedimentosparticipativosnãosãoemsiumvalorsubstantivo.Emsuaconcepção,ademocraciadoscomunsestábaseadanocompromissocomarealidade,nadisposiçãoparadeixardeladointeressespessoaisenaprimaziadacoletividade.Elemanifestaapreocupaçãodequeocomum–agoraquevoltouà

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moda–possasercapturadoporessasforças,comojáteriaocorridonopassadocomofeminismoeoambientalismo,entreoutrasmovimentaçõessociais.“Apesardeserpositivoquesefalemaispublicamentedosbenscomuns,nãodevemosconfundiraexistênciadepalavras‘emcomum’nosnomesdasplataformaspolíticascomummovimentosocialeeconômicoespontâneo,autogestionadoedescentralizadoemdefesadosbenscomuns”,avaliaHammerstein.

Pelaproliferaçãodemovimentoscomuneiros,pelaemergênciadeumgrandenúmerodeintelectuaisepensadoresquetêmsedebruçadosobreessaquestão,pelosexperimentalismosnagestãopública,aEspanhatemdespertadoatençãointernacionalesidoconsiderada,porváriosanalistas,umfarolglobaldealternativas.Obviamente,maisumavez,sãomuitasasomissõesnestaminhaelaboração–sobretudoporquenãopudetratardoemblemáticocasodoBarcelonaenComú,queem2015elegeucomoprefeitaalídercomunitáriaAdaColau.Acapitalcatalãtornou-seumepicentrodadiscussãosobreeconomiadacolaboraçãoetembuscadosereinventarapartirdaideiadeummandatocidadão.Em2016e2017,realizou-seumfórumdecocriaçãodepolíticaspúblicascomotítulodeProcomuns8quechegouadefinir120propostasparaumatransiçãodalógicahegemônicadaprivatizaçãorumoaumprocessopermanentede“comunificação”.Assim,agestãodeBarcelonatembuscadodesenvolverummodeloregulatórioparapreservar,protegereestimularnovoscomunsurbanos.UmadasbrigasdaprefeituratemsidocomaplataformaturísticaAirbnb,quepermiteaos“prosumidores”(pessoasquesãoaomesmotempoprodutoraseconsumidoras,umacaracterísticadasplataformasdigitaiscolaborativas)locaremimóveisinteirosouquartosdesuascasas.Oplanodopoderpúblicoétentarevitaraelevaçãodocustodemoradianacidadeegarantirafunçãosocialdapropriedade,sobretudoemregiõesdegrandeinteresseturístico.Poressasrazões,Barcelona,comoMadri,iluminaodebatesobreocomumeademocracia,emespecialsobreaeconomiadacolaboração.Otempodiráseessesexperimentosdeinvençãodemocráticaforambem-sucedidos.

PorumaconstituintecomuneiraBruxelassediou,em2016,arealizaçãodaprimeiraAssembleiaEuropeiados

Comuns.Durantetrêsdias,maisdecemativistas,de21países,sereuniramparadebaterarelaçãoentreocomumeademocraciaetambémparaavaliar

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propostasdepolíticaspúblicascomuneirasnoâmbitodoParlamentoEuropeu.Váriasorganizaçõesfazempartedacoalizãoquevemencabeçandoesseprocesso,comoaCommonsTransitioneaP2PFoundation,comespecialdestaqueparaaCommonsNetwork,thinktankcriadojustamenteparapromoveraintegraçãopolíticadaagendadoscomunscomaspolíticaspúblicaseuropeias.Aassembleiade2016,consideradaummarcoinicialnaarticulaçãocontinentaldosativistasdocomum,tambémfoiummomentodeaproximaçãocomoDiEM25,ummovimentotransnacionaleuropeucujomanifestodizqueoua“UniãoEuropeiasedemocratizaouelaserádesintegrada”9.InteressantenotarquetodaessaagitaçãoemdefesadeumaUEmaisdemocráticaocorreparalelamenteaoBrexit,quandoacrisedelegitimidadeatingiuseumaiselevadonívelcomaretiradadoReinoUnidodoblococontinental.

Ocrescimentodaxenofobiaedopopulismodedireita,baseadoemvaloresnacionalistas,acriseeconômicadazonadoeuroeoaprofundamentodasdisparidadesentreospaísesmembrossãocausaeconsequênciadeumorganismomultilateralmarcadopelafaltadetransparênciadeseuconselho,depoderrealdeseuparlamentoededebatepúblicoparaaconstruçãodepolíticas.Nãoàtoa,comoavaliaodocumentoSupportingtheCommons:OpportunitiesintheEUPolicyLandscape(Apoiandooscomuns:oportunidadesparapolíticaspúblicasemâmbitoeuropeu),elaboradoporSophieBloemeneDavidHammerstein,“háumafaltadeidentificaçãocidadãedecorresponsabilizaçãocomasdecisõespolíticas”,porqueatualmenteaUniãoEuropeiaédominadaporuma“enormeeinalcançávelmáquinaprofissionaldelobby”emdefesadosinteresseseconômicosdasforçasdemercadoemassociaçãocomEstadosnacionais.Aresistência,nessecontexto,deacordocomeles,sópodepartirdocomum.

Aperspectivadocomumpõeconfiançanacapacidadedaspessoasdegerenciarosbenscomunsdemaneirasustentávelejusta.Paraalcançaraverdadeirademocracia–nosentidodeaspessoascogovernaremrecursoseprocessosqueafetamsuasvidas–devemosreconheceroslimitesdanossaatualdemocraciarepresentativa.Temosdeprocuraralternativas,buscarformasdecomplementaremelhorarnossasinstituiçõesatuais.EstadeveserumadasmaioresprioridadesdaUE10.

Hammerstein,naentrevistaparaestelivro,avaliaqueasgrandesdecisõeseconômicas,sociaiseambientaisdomundocontemporâneovoamporsobreosEstados-nação,osquais,emsuagrandemaioria,aindaestãopresosaummodelohegemônicodedemocraciarepresentativa.Atéagora,nãoforamcriados

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mecanismosparticipativoseficazesparaumademocraciatransnacional,porquequantomaisdistantesdoscidadãos,maisimpenetráveissetornamasinstituições,comoéocasodaUE.Oqueocorre,noentanto,équecadavezmaisestamosdiantededesafiosdecaráterglobal,comonocasodasmudançasclimáticasedaimigraçãoemmassa,eissonoslevaàcertezadequeasrespostasnãoirãosurgirdedentrodasfronteirasnacionais,porqueosprocessospolíticoseeconômicosestãotodosinterconectados.Nunca,portanto,foitãoimprescindívelpensaradialéticalocal-globalcomoinspiraçãoparaaconstruçãodeummovimentopolíticosuficiente,nãoeficiente.ComodizHammerstein,“aperspectiva‘translocalista’(oubiorregional)e‘transnacional’doscomunsapontaparaumademocracialocalistaecomunitáriacomumacrescenteidentidadepolíticaeuropeiaoulatino-americanadentrodeummarcomoral(masnãoinstitucional)global”.

OdocumentodaCommonsNetworkpropõequatromedidasparaestimularmodelosinovadoreseparticipativosparareimpulsionarademocracianocontinente:(1)reconhecerecriarinstituiçõescriativasdedemocraciaparticipativa;(2)remodelaraIniciativadosCidadãosEuropeus(EuropeanCitizens’Initiative–ECI)paraquesetornedefatoumaferramentaútileacessível11;(3)ampliarosrecursosereconhecerpolíticaaáreadentrodaUniãoEuropeiaresponsávelpelasdinâmicasparticipativas,oComitêdePetiçõesdoParlamentoEuropeu(EuropeanParliament’sPettitionsCommittee);(4)usarasnovastecnologiasdeinformaçãoecomunicaçãoparafacilitaresimplificaraparticipaçãodemocrática.Nãosetratadenenhumapropostarevolucionária,masdecriarcanaisentreocomumeasinstituiçõesexistentes.

Algunsprocessosqueestãoemcursojánospermitemanteverqueessaagendadocomumpodeganharforçanospróximosanos.Recentemente,emboratenhasidoderrotado,umprojetodeleicontinentalquepropunhareconheceraenergiacomobemcomumrecebeuquasemetadedosvotosdoParlamentoEuropeu,lançandoluzaumasériedeiniciativasdeproduçãoenergéticadebasecomunitáriaquetêmseapresentadocomoalternativaaomodelocentralizadorvigente.Váriosprojetosdepesquisatambémvêmrecebendorecursosdaadministraçãodobloco,comooP2PValue,quebuscamapear,catalogaresistematizarexperiênciasdeproduçãocolaborativabaseadaembenscomuns;oD-Cent(DescentralizedCitizensEngagementTechnologies),quebuscafomentaraconstruçãodetecnologiascidadãs;eojácitadoNetCommons,deredeslivresedistribuídasdeconexãoàinternet.Valedestacar,porfim,ofatodeaUEterdefinidoaCiênciaAberta(OpenScience)comoumeixoestratégico,

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impulsionandoqueaté2020todososconteúdoscientíficosproduzidoscomrecursoseuropeusestejamacessíveisgratuitamenteàtotalidadedoscidadãos.

Oqueestáemjogo,porém,maisqueareformainstitucionaldeorganismosmultilateraisineficazes,éaarticulaçãodeumasociedadecivilcapazdedefenderacontinuidadedavidahumananoplaneta–daíaimportânciadacriaçãodaAssembleiaEuropeiadoComum.ParaHammerstein,osdireitosdocomumsebaseiamemuma“interdependênciasocialeecológicaqueseaplicasimbioticamentecomascomunidadeseseusentornos”.Eledefende,combasenaobradeBrunoLatour,aideiadeumademocraciaampliada,quedeveriaconsiderarasrelaçõesestabelecidasentrehumanosenãohumanos,entrepessoasecoisas,apartirdenovosprincípiosconstitucionaisemediadores.Issoimplicareconhecerdireitosnãosódaquiloqueconvencionamoschamardesocial,ouseja,ossereshumanos,mastambémosdireitosdanatureza,reposicionandoolugardatecnologiaedasmáquinasnesseprocesso.EmTheEcologyofLaw,UgoMatteieFritjofCapranosapontamqueprecisamosmudarasmetáforasquenosgovernam,deixardeconsideraromundocomoumamáquinaparavê-locomoumarede.Essecontexto,umavezmais,nospedeacompreensãodequeocomumésocioambiental.Recuperoessaformulaçãonãosomentepelasuaimportânciaintrínseca,mastambémpelaressonânciaquetemcomotemaemsequência:obemviver,avisãodocomumqueemergedacosmogoniaameríndiasul-americana.

SumakkawsayouobemviverOEquadoraprovou,em2008,suanovaConstituiçãoPlurinacional,como

apoiodedoisterçosdapopulação.AlémdeconfrontaromodelopolíticotradicionaldoEstado-naçãoporreconhecerapresençadediversasnacionalidadesepovoscompartilhandoomesmoterritório,anovacartamagnaoficializaoconceitoancestraletradicionaldebemviver(sumakkawsay,emquéchua;buenvivir,emespanhol;sumaqamaña,emaimara;nhandereko,emguarani)comoorientaçãopolíticaegovernamental.Notextoconstitucional,obemviverémencionado18vezesdeformadireta,inclusivenopreâmbulo:“[...]celebrandoanatureza,aPachamama,daquesomosparteequeévitalparanossaexistência[…]decidimosconstruirumanovaformadeconvivênciacidadã,emdiversidadeeharmoniacomanatureza,paraalcançarobemviver,osumakkawsay;umasociedadequerespeita,emtodasassuasdimensões,adignidadedaspessoasedascoletividades”12.

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TodoosegundocapítulodaConstituiçãoequatorianaédedicadoaobemvivereabordatemascomoáguaealimentação,reconhecendoaáguacomodireitofundamentalepatrimônionacionaldeusopúblico;ambientesaudável,garantindoodireitodeviveremambienteequilibradoquepossibiliteasustentabilidadedaboavida;comunicaçãoeinformação,atacandoooligopólioeomonopóliodiretoouindiretodosmeiosdecomunicação;culturaeciência,quereconheceadiversidadeculturaleenfatizaoacessoeusodossaberesancestraiscomodireito;educação;moradia;saúde;trabalhoesegurançasocial.AnovaConstituiçãotambémtemumcapítulointeirodedicadoaosdireitosdanatureza,queéentendidacomotitulardessesdireitos.

UmadasreferênciasparaodebatesobreobemviveréAlbertoAcosta,políticoeintelectualquefoipresidentedaAssembleiaNacionalConstituinteeposteriormenterompeucomogovernodeRafaelCorrea,chegandoasercandidatoàpresidênciaporumacoalizãominoritária.SegundoAcosta,obemviveréumconceitoplural;oquesepretendecomeleéaconstruçãodeumanovaformadeviver,naqualosdireitosdossereshumanosseharmonizemcomosdireitosdanatureza,oquenãoépossívelplenamentenocapitalismo.Umconceitodematrizcomunitáriaqueéresultadodoacúmulodospovosindígenasqueresistiramativamente,aolongodesuahistória,àexclusão,àexploraçãoeaocolonialismoequepressupõeumavidacentradanaautossuficiênciaenaautogestão.

Obemviverpropõeumacosmovisãodiferentedaocidental,postoquesurgederaízescomunitáriasnãocapitalistas.Rompeigualmentecomaslógicasantropocêntricasdocapitalismoenquantocivilizaçãodominanteecomosdiversossocialismosreaisqueexistiramatéagora–quedeverãoserrepensadosapartirdeposturassociobiocêntricasequenãoserãoatualizadossimplesmentemudandoseussobrenomes.Nãoesqueçamosquesocialistasecapitalistasdetodosostiposseenfrentarameaindaseenfrentamnoquadriláterododesenvolvimentoedoprogresso13.

Oquefascinanofenômenoequatorianoéessapossibilidadedefazercomqueumconceitooriundodeumacosmogoniaameríndia,oqualquestionaomodelodedesenvolvimentoocidental,torne-sereferênciaparaaelaboraçãodeumaConstituiçãonacional.Orisco,noentanto,éatransformaçãodobemviveremumslogandegoverno,numprocessoquereduzoconceitoaumjoguetesocial-democrata,ondevivermelhorseriaresultadodeumEstadoqueamplia

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direitossociaiseaprofundaodesenvolvimento.Paraqueissonãoocorra,temosqueafirmarqueoplenobemvivernãoserealizanumadimensãonacional,massimnointeriordascomunidadesemaliançacomexperiênciassemelhantesqueestãoocorrendoemtodooplaneta.Dolugaremqueestou,enxergoextremasemelhançaentreosconceitosdebemviverecomum,construídosapartirdecosmogoniasdistintas,masaliadosnaconstruçãodeumprocessorealdetransformação.

Outrasduasexperiênciassul-americanasquemerecemdestaquesãoabolivianaeavenezuelana.ABolíviatambémpassouporprocessosemelhanteaoequatorianoedefiniusuanovaConstituiçãoem2009afirmandooconceitodeviverbem(sumaqamaña,emaimara).Otextodestaca-sepeloreconhecimentoeautonomiadaspopulaçõesorigináriasdopaísepelabuscadeumnovomodelodedesenvolvimento,emharmoniacomanatureza.Maisdeoitentados411artigostratamdaquestãoindígena.Os36povosorigináriosquehabitamoterritóriodopaíspassaramaterparticipaçãonopoderestatalenaeconomia,comcotaparaparlamentaresepropriedadeexclusivaderecursosflorestais,hídricosedireitosobreaterradesuascomunidades.ComonocasodoEquador,estamosfalandodeumEstado-naçãoqueseconstróiinspiradopelascomunidades.Aperguntaqueficaé:seráesteocaminhoparaumademocraciadobemviveroudocomum?

Arealcontribuiçãodobemviverestánacriaçãodepossibilidadesdediálogo,abrindoasportasaumenormemapadereflexõesdestinadoasubverteraordemconceitualimperante.Umadesuasmaiorescontribuiçõespoderiaestarnaconstruçãocoletivadepontesentreosconhecimentosancestraisemodernos,assumindo,atodoinstante,queaconstruçãodeconhecimentoéfrutodeumprocessosocial14.

NaVenezuela,emdireçãobastantediferente,masnãomenosinteressante,destaca-seomodelodecomunascriadaspelosocialismodoséculoXXI.Emcertamedida,dasexperiênciasqueconheço,éaquelaquesepoderiaaproximardaprojeçãodeLavaleDardotsobreocomum,inspiradanosocialismoassociacionistadoséculoXIXenocomunismodeconselhosdoséculoXX.Baseadonaideiaclássicadecomunasocialista,depropriedadecoletivapartilhadaentreseusmembros,omodelobolivarianovemsendoimplantadopormeiodeumprocessocomplexodedisputasterritoriaiseproduçãodeleis.Jáem2006,aleidosConselhosComunaisabrecaminhoparaaexpressãodoex-presidenteHugoChávez“comunaounada”,definidoradaquelemodelode

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socialismo.Maisadiante,omodelocomunalseriadetalhadoemduasleisorgânicas,umaqueversasobreaformadeorganizaçãodascomunaseoutrasobreofuncionamentodeseusistemaeconômico.NolivroComunalizarelpoder:clavesparalaconstruccióndelsocialismocomunal,docoletivodemulheresCódigosLibres,ficaevidentequeocomunalétambémele,emseuinterior,umespaçocomplexodedisputa.

Detodasestasformasorganizadascompreende-sequeocomunaléabússolaparacaminharemprocessosdecisivosdetransformaçãoradical:aconsolidaçãodesistemaseconômicosautogestionáriosquepermitamamaterialidadenecessáriaparaumpoderpolíticonãodependentenemsubsidiado;autogovernoslegítimoselegaisemterritóriosliberados(comunalizados)quevãoassumindocompetênciastransferidasdoEstadoconstituído,quevaisetransmutandoatéocomunal;ultrapassarastensõespermanentescomainstitucionalidadedoEstadocomaqualsetentaavançaremlógicascogestionáriasouemaliançasestratégicas;reproduçãodesentidoscomunsemancipadoresquefaçamdavidanãoumbemmaterialsenãoumarazãoamorosaesolidáriadeexistênciaindividualecoletiva,sendoirredutíveisnabatalhapelaconstruçãodahegemoniacomunalsemimpornemtutelar,mascomaaudácianecessáriaparaconvencer,assumir,disputarecomprometervontadesnaedificaçãodesteoutromundo15.

EssaperspectivaéreforçadapeloensaiodoprofessordaUniversidadeCentraldaVenezuela,EnriqueReyTorres,Pensarlocomúnhoy:losbienescomunesenlaconstruccióndelsocialismodelsigloXXI.Nele,osociólogorealizaumarecuperaçãodoconceitodecomumparaapontaraconflitividadequecaracterizaaspráticassociaisquesearticulamemtornodascomunasedosconselhoscomunaisbolivarianos.Eleasvê,porumlado–sendoformasquetendemaoautogoverno–,comoinstrumentospossíveisdeconfiguraçãodeumanovainstitucionalidadebaseadaem“redesdemocráticasdecooperaçãoeencontroquesearticulamnoterritório”.Poroutro,comopossíveisnovasmatrizesprodutivasparaaconstruçãodeummodelodedesenvolvimentoquesupereoextrativismoeo“rentismocomosignoquecaracterizaosistemaeconômicovenezuelano”.Emsuaavaliação,oprocessovivodacomunaaocomumpassapelaafirmaçãodadiversidadenointeriordascomunidades,pelaconstruçãodeautonomiafrenteaoEstado,pelaafirmaçãodosbenscomunscomosistemanãohomogêneoepelapossibilidadedeantagonismofrenteàsredesclientelistasdecooptação.Como

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outrosprocessospolíticosqueanalisamosnestecapítulo,ocomumnosocialismodoséculoXXIéumprocessoqueestáemplenomovimento,numaconjunturavenezuelanamarcadaporfortesconflitosentregovernoeoposição,alémdegravecriseeconômica,comhiperinflaçãoecarênciadeprodutosbásicosparaapopulação.

1ChristianLaval;PierreDardot,“Ocomum:umensaiosobrearevoluçãonoséculo21”,trad.RenanPorto,UniNômadeBrasil.Disponívelem:<http://uninomade.net/tenda/3294/>,acessoem:19mar.2018.

2“Comopodríamosrelacionarlocomúnconlaideadedemocracia?Intentandoverhastaquépuntohablamosdelocomúncomoalgocolectivo,compartido,quegeneravínculos,quegeneraobligaciones,quegeneraderechos.Comopodemostrasladaressecompartirycoproduciralagestiónpolítica?Comolorelacionamosconespacios,conformasdeconexión,enelqueelrecursodelopúblicoestéconectadoconlacomunidad,conunavoluntaddesercomunidad?Essecommoningcomoexpresióndeacción,devoluntaddegenerarlocolectivo.”CésarRendueles;JoanSubirats,op.cit.,p.104.

3ParaummapadasiniciativascidadãsdeMadri,porexemplo,vejaLosMadrilesem:<http://www.losmadriles.org/>.

4CésarRendueles;JoanSubirats,op.cit.,p.106.5“Ladiferenciadeestaconstruccióndeinstitucionesesdeordensocial:lasrelacionescomunitarias.O

dichodeotromodo,larecuperacióndelasesferasdelareproducciónsocial,quegarantizanlavidaencomún,nopuedehacersedesdeunarelaciónmediadainstitucionalmente,sinoqueéstadebecolocarseenelpuntoenelqueseanudalamaterialidaddelasrelacionescomunitarias.”Madrilonia.org,Lacartadeloscomunes:paraelcuidadoydisfrutedeloquedetodoses,Madri:TraficantesdeSueños,2011,p.52.

6“Porsuparte,losgobiernosylasburocracíassemuestrancautelososrespectoaloscomunesalserunabasedepoderindependienteyunaamenazapotencial,porloqueprefierenlascertezasyretribucionesdesuasalizanzasmercantiles.Pornormageneral,losgobiernosprefierengestironarlosrecursosmediantesistemasdecontrolestrictamenteregulados.Paraellos,lacreacióndeprocomúnselesantojademasiadoinformal,irregulareinestable,inclusoaunquelosverdaderoslogrosdeloscomunesrefutenesseprejuicio.”DavidBollier,op.cit.,p.42.

7Ementrevistaaoautorpore-mailemjulhode2017.8Paraconheceroresultadodesseprocesso,acesse:<http://procomuns.net/wp-

content/uploads/2016/03/DeclaracioProcomuns_Cast_v03.pdf>.9OmanifestodoDiEM25encontra-sedisponívelem:<https://diem25.org/manifesto-short-version/>,

acessoem:20abr.2018.10SophieBloemen;DavidHammerstein,“SupportingtheCommons:OpportunitiesintheEUpolicy

landscape”,p.10.Disponívelem:<http://commonsnetwork.eu/wp-content/uploads/2017/05/CommonsPolicyOpportunities_FINAL-1.pdf>,acessoem:18maio2018.

11EssemecanismoéparecidocomaleideiniciativacidadãnoBrasil,emqueasociedadecivilpodeproporprojetosdeleiaoparlamentoquandoconseguemobilizar1milhãodeassinaturasemdefesadaproposta.

12“[...]celebrandoalanaturaleza,laPachaMama,delaquesomosparteyqueesvitalparanuestraexistencia[…]decidimosconstruirunanuevaformadeconvivenciaciudadana,endiversidadyarmoníaconlanaturaleza,paraalcanzarelbuenvivir,elsumakkawsay;unasociedadquerespeta,entodassusdimensiones,ladignidaddelaspersonasylascolectividades[...]”.ConstituiçãodaRepúblicadoEquador,disponívelem:

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<https://www.asambleanacional.gob.ec/sites/default/files/documents/old/constitucion_de_bolsillo.pdfacessoem:19mar.2018.

13AlbertoAcosta,Obemviver:umaoportunidadeparaimaginaroutrosmundos,SãoPaulo:Elefante;AutonomiaLiterária;FundaçãoRosaLuxemburgo,2016,p.72.

14Ibidem,p.239.15“Desdetodasestasformasorganizadassecomprendequelocomunaleslabrújulaparacaminaren

procesosdecisivosdeunatransformaciónradical:laconsolidacióndesistemaseconómicosautogestionariosquepermitanlamaterialidadnecesariaparaunpoderpolíticonodependientenisubsidiado;autogobiernoslegítimosylegalesenterritoriosliberados(comunalizados)quevayanasumiendocompetenciastransferidasdelEstadoconstituidoquevamutandohaciaelComunal;sortearlastensionespermanentesconlainstitucionalidaddeEstadoconlaqueseintentaavanzarenlógicascogestionariasoenalianzasestratégicas;lare-produccióndesentidoscomunesemancipadoresquehagandelavidanounbienmaterialsinounarazónamorosaysolidariadeexistenciaindividualycolectiva,siendoirreductiblesenlabatallaporconstruirlahegemoníacomunalsinimponernitutelar,sinoconlaaudacianecesariaparaconvencer,asumir,disputarycomprometervoluntadesenlaedificacióndeesteotromundo.”CódigosLibres,Comunalizarelpoder:clavesparalaconstruccióndelsocialismocomunal,Caracas:CódigosLibres;TiunaelFuerte,2017,p.27.

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OCAISJOSÉESTELITAFICANOCENTROHISTÓRICOdeRecife,Pernambuco,nonordestedoBrasil.Éumterrenoàsmargensdorio

Capibaribequecorrespondeaquase14camposdefuteboleerapropriedadedaRedeFerroviáriaFederalS.A.Emsuaárea,abrigaconstruçõeshistóricascomopátiosferroviáriosegalpõesdeaçúcar.Em2008,foivendidoparaumconsórciodeempreiteirasqueanunciouaconstruçãode12torresdequarentaandaresparausoprivado.Oprojeto,querecebeuosugestivonomedeNovoRecife–não,estenãoéoroteirodeumfilmedeKleberMendonçaFilho–,revoltouarquitetos,ambientalistas,ativistasegrandepartedapopulação.Apesardalocalizaçãoprivilegiada,queligaocentrohistóricoàpartericadacidade,oterrenofoivendidopelovalormínimodeR$55milhõesdereais,cercadeR$500ometroquadrado,umapechincha.Somentealgunsanosdepois,nodia21demaiode2014,oconsórciodasconstrutorasiniciouademoliçãodosgalpões.Foiquandoumgrupodemanifestantesocupouoterreno.

Comonanoiteinauguraldo15-Mespanhol,15pessoasacamparamnocais.Namadrugada,umdosativistasfoiagredidopelossegurançasprivados.Nodia22,porém,aJustiçaFederalconcedeuliminarimpedindoaderrubadadosgalpões.EdesseconfrontonasceuumamobilizaçãopopularquepodeserconsideradaumdosgrandesexemplosdedefesadeumcomumurbanodoBrasil:o#OcupeEstelita.Caisocupado,empoucotempoosativistasreunirammilharesdepessoasemprotestoscomrecitaldepoesias,exposiçãodefotos,feiradelivroseoutrasintervençõesartísticas.Anotíciaseespalhoupelasredessociais,gerandorepercussãopositivaemtodooBrasilenoexterior.Assim,em3dejunho,poucomaisdeumasemanaapósoiníciodaocupação,aprefeituraanunciouasuspensãodalicençaquepermitiaademoliçãodocais.Nosdiassubsequentes,oterrenoseguiuocupado,enquantoprefeituraeempreiteiros,oEstadoeomercado,mancomunados,buscavamaportasfechadasumasoluçãofavorávelaeles.Compoucomenosdeummêsdeocupação,ogovernadorJoãoLyraordenouareintegraçãodeposse,quefoirealizadapelaPolíciaMilitarcomusodebalasdeborrachaebombasdegáslacrimogêneo,descumprindoumacordocomoMinistérioPúblicoquepreviaasaídapacíficadosmanifestantes.

Quemimaginouquearepressãodesarticulariaomovimentoseenganou.Deláparacá,o#OcupeEstelitatornou-seumcampusavançadodeexperiências

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urbanas.Deacordocominformaçõesdosprópriosorganizadores,aolongodosúltimostrêsanoselesrealizaram64oficinas,6assembleias,5feiras,4ocupações,10manifestaçõesderua;promoveram23debates,14aulaspúblicas,2palestras,5rodasdediálogo,98apresentaçõesculturais,7mostrasartísticas,21intervenções,22exposiçõesdevídeo;eestiverampresentesem5audiênciaspúblicas,ondefizeram297contribuiçõesdediretrizesurbanísticasparaaárea.OmovimentocriouatéumplanourbanísticoespecíficoparaocaisEstelita.Olitígio,noentanto,segueemcursoeparecelongedeumdesfecho.

O#OcupeEstelitaéumcasoeloquentedastensõesquevivemosemnossasurbes.Ameuver,ilustraexatamenteaquiloqueogeógrafobritânico,DavidHarvey,defendecomodireitoàcidade,algoque,segundoele,sópodeservivenciadoapartirdaslutassociais,daaçãodosmovimentossociais1.Oprocessohistóricodemonstraqueosricoscostumamexercerseudireitoàcidadesemsepreocuparcomaexclusãoquesuasaçõesgeram.Dotadosdepodereconômicoepolítico,moldamsuascidadesdeacordocomseusinteresses,comonocasodaNovaYorkdosanos1970,dosirmãosRockfeller.Harveychegaadizerqueépreciso,então,encherdesignificadoaexpressãodireitoàcidade,que,emsi,éumconceitovazio.Nãopodeser,comomuitasvezesaparenta,umaespéciedeéticaagradável,quegeracomunhãoentretodososhabitantesdeumdeterminadoterritório.Odireitoàcidade,apartirdesseolhar,seconstróinalutaporafirmarocomumurbanoeaosecontraporàespeculaçãoimobiliária.Pergunto,então,senãofoiexatamenteissoqueosativistasdo#OcupeEstelitafizeram,inclusiveexplodindoasfronteirasdomovimentoparaganharoapoiodoconjuntodasociedade.

Ementrevistaparaestelivro,umdosativistasdo#OcupeEstelita,RudRafael,explicaqueacompreensãodequeestavamimersosnadefesadocomumfoiconsequênciadoprocessoderesistência,daexperiênciadeviveraocupaçãoedacoletivizaçãodoespaço.Seudepoimentocorroboraaideiadequeocomumnãoexistesemoprocessodeproduzi-lo.“Pode-sedizerqueissofoibemrepresentadonainsígniaquemarcouasmobilizações:‘Acidadeénossa!Ocupe-a!’.Nessesentido,agentetemumprocessoqueestabeleceacondiçãogeraldequeacidadeécomumequeoprocessodecisórioemtornodecomoeparaquemelaestásendoconstruídatemameaçadoessaconstrução”.Rafaelexplicaque,apartirdesseprocesso,

foramsendoformuladasoutrasquestões,comoadefesadodireitoàpaisagem,quedávisadaparaumconjuntodepatrimôniostombadose

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configuraumcartão-postaldacidade,edopatrimôniohistórico,postoqueopátioferroviárioéosegundomaisantigodopaís.Notranscorrerdaresistência,tantasoutraslutasabarcaramnoCais,fazendocomqueoterritórioemquestãosetornasseumpoloagregadordeváriasdiscussõeseresistências,umsímbolodopotencialderevitalizaçãoqueaapropriaçãocoletivaécapazdecriar2.

AocupaçãodoCaisfoigeridaporumprocessodeassembleias.Rafaeldestacaqueaexperiênciaproduziuconflitoseaprendizados,masacendeuachamadomovimentoemdefesadeumaoutracidade.OresultadofoiatransformaçãodanarrativaoficialsobreRecife,queestavanasmãosdomercadoimobiliárioAvisãodequeacapitalpernambucanaeraumespaçodeviolênciaequeasegurançasóseriapossívelemcondomíniosfechadosouemarranha-céuscomcaradebunkers,aprofundandoaexclusãodospobreseperiféricos,foisuperadapelaideiade“cidaderoubada”,saqueadapelaseliteseconômicasemaliançacomaelitepolítica.Ocomumsurgenessecontextocomoumsoprodeesperança,terceiradimensãopossível,baseadanaauto-organizaçãoenacoletivizaçãodoespaçourbanoembenefíciodasmaiorias.Oespaçopúblico,ressignificado,tornou-seespaçodeencontroedeproduçãodapolítica.

AocupaçãofoiaradicalizaçãodeumapráticapolíticaquejávinhasendodesenvolvidanadefesadoCaisequefoidesencadeadapelaatitudedestrutivadasempreiteiras,natentativadeiníciodedemoliçãoilegaldosarmazénsdeaçúcar.Atéentão,aexperiênciadasredessociais,daslutastravadasnoJudiciário,dasocupaçõestemporáriasdoespaçopúblicotinhamsidoimportantesferramentaspolíticas,masumaocupaçãopermanentegarantiuumsaltonaformadeviver.Diversosatoressociaisqueatéentãonãotinhamseenvolvidonalutapassaramasersujeitosimportantesnoprocesso(coletivosestudantis,organizaçõesautonomistaseoutrossetoresligadosalutasantissistêmicas).Issoenriqueceubastanteaformadefazerpolítica,principalmentenoquedizrespeitoàspráticasdeaçãodireta3.

SegundooativistadoMTST,asíntesepolíticadesseprocessofoiaampliaçãodasvisõesedaspráticaspolíticasporpartedosmovimentossociais,numaequaçãoqueenvolveu“umadisputacontraoEstado(confrontandoalógicaeasdecisõesdosentesenvolvidos),peloEstado(porexemplo,comaexigênciadequeasdecisõespassassempelosespaçosdegestãodemocrática

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institucionais,comooConselhodaCidadeeasaudiênciaspúblicas)eparaalémdoEstado(trabalhandofundamentalmenteaspráticasdeautogestãodoterritório)”.

Outrocasobrasileiroemblemáticodepelejaporumcomumurbanoéodeumterrenode24milmetrosquadradoslocalizadonocentrodeSãoPaulo,entreasruasAugusta,CaioPradoeMarquêsdeParanaguá.Quarentaanosatrás,atraídospeloremanescentedematanativaquehabitaolocal–únicaáreaverderodeadaporumoceanodeconcreto–cidadãospaulistanos,muitosdelesmoradoresdoentorno,passaramafrequentaresseterrenoinformalmenteeageri-lodemaneiraautônoma.Em1996,porém,aterrafoicompradaporumaincorporadoraparaespeculaçãoimobiliária,eem2001aassociaçãodemoradoresdobairrorealizouumabaixo-assinadopedindoaliacriaçãodeumparquepúblico,oquefoidefinidopeloPlanoDiretorpaulistanode2002.ÉnessemomentoquesurgeaideiadoParqueAugusta,eobosqueéentãotombadopeloDepartamentodoPatrimônioHistóricodeSãoPauloem2004.Deláparacáahistóriatemsearrastadoemumadisputaqueenvolveacidadania,omercadoimobiliárioeopoderpúblicoemquasesuatotalidade:Executivo,Legislativo,JudiciárioeMinistérioPúblico.

Umdosepisódiossingularesdessaespiralsemfim–equenosservedeganchoparaumaanálisesobreoscomunsurbanos–foiacriação,em2013,doOrganismoParqueAugusta.OOPAseconfiguroucomoummovimentoautogeridoehorizontal,organizadopormeiodeassembleiaspresenciais,gruposdetrabalho,açõesdiretasepelainternet.Comumaúnicareivindicação:acriaçãodoparque100%público,semprédios,semespeculaçãoimobiliáriaecomadministraçãopopular.Omovimentofoiresponsávelpelarealizaçãodefestivaisindependentes,quelevarammilharesdepessoasao“organismo-parque”,eporaçõesdiretaspermanentes,comopiqueniques,hortascomunitárias,atividadesculturaisegastronômicas,construçãodemobiliáriourbano,festaseshows–tambémproduziuumasériedepublicaçõescomenfoquenodireitoàcidade.Mesmodepoisdeoterrenotersidofechadopelaincorporadora,namesmaépocaqueoentãoprefeitodacidade,FernandoHaddad,sancionouaLei15.941criandooParqueAugusta,oOPAseguiurealizandomobilizaçõeseintervenções.Em2015,comaprefeituraquerendomediarumacordoqueenvolvesseaconstruçãodoparque,mastambémdetrêsgrandestorres,osativistasocuparamoterreno.Depoisde45dias,porém,aocupaçãofoireprimida,comreintegraçãodepossegarantidapelaPolíciaMilitar.Nosúltimosdoisanos,oMPmediouumacordoparaqueaprefeitura

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userecursosrecuperadospelasaçõesdecombateàcorrupçãonaconstruçãodoparqueeosadvogadosdoOPAobtiveramumadecisãodaJustiçaqueconsiderouotrancamentodosportõesilegal.Em2017,novogovernonacidade,aprojeçãomaisconcretaédequeomercadovençaaguerra.

Narradasessashistórias,talvezcaibaapergunta:porqueo#OcupeEstelitaeoParqueAugustapodemserconsideradosexemplosdecomunsurbanos?Ateoriapodenosajudararespondê-la.NaintroduçãodolivroTheCityasCommons:APolicyReader,lemosareproduçãodeumtrechodeumartigodeSheilaR.FostereChristianIaione:“[...]areivindicaçãodosbenscomunsestáalinhadacomaideiaportrásdo‘direitoàcidade’–odireitodefazerpartedacriaçãodacidade,odireitodefazerpartedosprocessosdecisóriosquemoldamavidadoshabitantesdacidadeeopoderdoscidadãosdemoldarasdecisõessobreosrecursoscoletivosemquetodosnóstemosumaparticipação”4.

Processosvivoscomoo#OcupeEstelitaeoParqueAugustasãoemblemasdessepossívelcomumurbano,queéumaformadeefetivaçãododireitoàcidadeapartirdanegaçãodocapitaledosgovernosaeledóceis.Porqueacidadedocomuméumacidadecoconstruídapelosseushabitantes,umacidadequepermiteagovernançacolaborativadoquenoshabituamoschamarespaçopúblico:asruas,praças,parques,várzeasdosrios,rios,bosquesremanescentesetc.Essacidadedocomumtambémpermiteareversãodeprocessosdeprivatização,dandolugaranovosarranjoscomunitáriosdeusufrutocidadão,comoocorrequandoterrenosbaldiospassamaserusadosparaaconstruçãodehortasurbanas,soláriosoumesmopraçasautogestionadas.Osdoiscasossãotambémdemonstraçõesdeumanovaculturacidadã,quenãopedepermissãoparaseafirmareproduz,comoqueroarquitetogregoStavrosStavrides,umespaçoque“acontece”.Ou,numainterpretaçãolivredogeógrafoMiltonSantos,quecriafluxosparaosfixos.“Umapotencialcidadeliberadapodeserconcebidanãocomoumaglomeradodeespaçosliberados,mascomoumarededecaminhos,comoumarededeespaçospertencentesaninguémeatodosaomesmotempo,osquaisnãosãodefinidosporumageometriadeumpoderfixomaspelaaberturaaumprocessoconstantede(re)definição.”5

Podemoscompreenderocomumurbano,portanto,comoumprocessosocialquebuscapromovernacidadecapturadapelomercado–emespecíficopeloneoliberalismo–novasdinâmicasdeencontro,articulandoduasredescomplementares:avirtualeavivencial(atual).Nãoàtoa,oteóricoManuelCastells,aoanalisarosprotestosocorridosnomundoapartirdaPrimaveraÁrabede2011,faladosurgimentodeumnovoambientedemobilização

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política,queeleconceituacomoespaçodaautonomia.Oqueécomum,afinal,nãotemumdono,masmuitos;éfluido,jamaisfixo.

Políticaspúblicas;cidadãosinteligentesPodeocomumserobjetodeumapolíticaurbana?Podeocomumserusado

comoargumentojurídicoparareorganizarumacidade?ViajemosàItália.MaisespecificamenteaNápoles,ondeem1572foiconstruídooAsiloFilangieri,umprédiohistóricotombadopelaUnescocomoPatrimôniodaHumanidadeequeentre1920e1980serviudesedeparaumorfanatoatéqueumterremotocausou-lhedanosestruturais,ocasionandoseufechamento.Portrintaanos,esseedifíciomajestoso,nocentrodacidade,estevelacrado,atéqueaprefeituraresolveureformá-loparasediaroFórumUniversaldaCultura,deumafundaçãoprivada.Oinvestimentode8milhõesdeeurosfoiporáguaabaixoporqueapropostaprivadanaufragou.Emprotestocontraodesperdíciodeverbaseacorrupção,umgrupodeartistasocupouoAsiloportrêsdiasedessaocupaçãonasceuummovimentoquejáéconsideradoummarcoentreoscomuneiros.

Issoporqueosartistasresolveramiralémdoprotestoelutaramparaassumiragestãodoedifício,construindoparaissoumasoluçãolegalbaseadaemumantigomecanismododireitoromanoquehaviacaídonoesquecimento:ousocívicodeumbempúblico.Esseinstrumentolegalaindaerautilizadoemcomunidadesruraispararegulamentarousodocampo,deriosedelenha–enocasodoAsilofoiadaptadoparaumalegislaçãourbana.Agora,oL’Asilo,comoéconhecido,éumlaboratóriourbanoeumcentroculturalautogovernado,combaseemumdecretoqueoreconhececomoumbemcomum.

GiuseppeMicciarelli,professordedireitodaUniversidadedeSalernoeumdosparticipantesdesseprocesso,contaementrevistaaojornalDiagonal,daEspanha,queL’Asiloégeridoporumademocraciaassemblearbastantecomplexa.Sãoduasinstânciasdedeliberação:umadegestãoeoutradedireção,maisgruposdetrabalhoautogovernados.Osparticipantesnãotiveramqueconstituirumaassociaçãooualgodogênero,massimumregulamentopactuadoqueestabelecedireitosedeveresdos“gestores”.ExplicaMicciarelli:

Comomecanismocomunitáriohorizontalqueorganizamosserespeitaatomadadedecisãodeummovimentopolíticoqueestáaberto.Ocoletivojáexistianomomentodaocupação,quefoiummomentogenéricoedeconflitoeestáemconstantemutação.Agentecriouuma

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regulamentaçãode23artigosatravésdeumprocessocoletivoemqueparticiparamartistasecidadãosqueusamoespaço.Essasnormassãooregulamentodeusodoespaço6.

Asduasinstânciasadministrativasbuscamcontemplaralgoqueemprocessoscoletivoscostumacausarproblemas.Enquantoaassembleiadedireçãoéoespaçodefazerocomum,deconstruçãopolítica,aassembleiadegestãoseresponsabilizapelasquestõespráticasdaadministração,comosegurança,limpezaeosgastosordinários(águaeluz).Opoderpúblicooferecealgumrecursoparaamanutençãodaexperiência,masaquestãodofinanciamentoseguesendoumdosgrandesdesafiosparaosmembrosdoL’Asilo.EssaexperiênciapioneiraabriuasportasparaoutrosprocessossimilareseatualmentejáexistememNápolesoutrossetecentrossociaisreconhecidoscomobemcomum.EmumartigoparaarevistaIltetto,Micciarelliafirmaquetudoquefoifeitoéumatentativadetorçãododireitonosentidodademocraciaradicaledasoberaniapopular7.Umexperimento.

Nestahora,lembro-meumavezmaisdeBollier,queafirmaquearegulaçãoé“comdemasiadafrequência”uma“farsaqueservemaisparalegalizarosabusosdomercadodoqueparaerradicá-los”8.Nãocontestariaessafrasecombasenasexperiênciasregulatóriasquevivencieicomoativistaoucomogestorpúblico.Masocasoitalianoparececolocaremperspectivaumnovoparadigma.AlémdeNápoleseseuscentrossociaiseculturaisdocomum,Bolonhavemcapitaneandoumaexperiênciaquemereceatenção.OdocumentoRegulationonthecollaborationamongcitzenandthecityforthecareandtheregenerationofurbancommons(Regulamentosobreacolaboraçãoentreoscidadãoseacidadeparaocuidadoearegeneraçãodosbenscomunsurbanos)narraessahistóriaecompartilhaosprincipaispontosdesseexperimentoquetembuscadodesenvolverumapolíticaurbanadocomum.

OprojetodeBolonhainiciou-seem2011,primeiramentecomumasériedeatividadesdentrodeumprogramachamado“ACidadecomoumComum”.Oregulamentosupracitado,resultadodessaexperimentaçãoprática,foipublicadoem2013.Desde2015,apartirdeumacooperaçãoentreaadministraçãodacidade,aFondazionedelMontediBolognaeRavenaeoLabGOV(LaboratoryfortheGovernanceoftheCommons),iniciou-seoprojetoCo-Bolonha,quebuscaestenderalógicadosbenscomunsparaaadministraçãodasdemaispolíticaspúblicasmunicipais.Deacordocomseuspromotores,oCo-Bolonhapretendedesenvolverumnovoarranjodegovernançabaseadonatríade

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compartilhamento,colaboraçãoepolicentralidade.EsseprocessotambéminstituiuacriaçãodoEscritórioparaImaginaçãoCívica,umlaboratóriodeinovaçãodentrodaadministraçãomunicipalvinculadoàassessoriadopróprioprefeito,eumaPolitécnicadosComuns,unidadetécnicaavançadaquereúnefuncionáriospúblicos,especialistasemgovernançacolaborativaecomuneiroscujoobjetivoérealizarosonhodeconstruirumaoutracidade.Otrabalhoéorientadoapartirdetrêsdimensões:fazerjuntos(processoscolaborativosdecriaçãodecomuns);viverjuntos(inovaçãosocialecidadã);ecrescerjuntos(economiacolaborativa).DeacordocomumdocumentopublicadonositedoLabGOV,aequipetemtrabalhadonaconexãodeexperiênciasjáexistentes,fortalecendoseupotencialeoferecendonovascondiçõesdecolaboraçãoparausodosespaçosurbanos,comfoconosbairros.

Defato,asexperiênciasdecomunsurbanosestãopipocandoaoredordoplaneta.OscasosdeNápoleseBolonhaapontamparaessadimensãoregulatóriaquepodemosconsiderarumrarocasodeinovaçãojurídica.Emmuitospaíses,odireitotemservidoparaperpetuardesigualdades,enãoparainstituirprocessosdetransformaçãosocial,oqueresultaemenfraquecimentodademocracia.Porissovaleacompanharosdesdobramentosdoqueestáocorrendonascidadesitalianas.Deantemão,alertoparaoriscodequeogoverno,mesmobem-intencionado,usedesuamãopesadaparaimporàscomunidadesautogovernadassuavontade.

Umademocraciavibranteexigeespaçosabertosenãocontroladosparaseefetivar.Jamaispodemosnosesquecerdisso.Importanterecordarquealgumasiniciativascidadãs–justamenteporconheceremosperigosdacooptação–resistememdialogarsobresoluçõesregulatórias,mesmoquandoointerlocutorinstitucionaléumaadministraçãoabertaàlógicadocomum.Umcasoqueconheciem2015eporissocompartilhoéoEstaesunaPlaza,dobairrodoLavapiés,emMadri,quenasceuapartirdeumainiciativadogrupoOperáriosdoEspaçoPúblicoemassociaçãocommoradoreslocais,emdezembrode2008.

Localizadoemumterrenoqueesteveabandonadoportrintaanos,oprojetoconsisteemlaboratóriodevizinhançaformadoporpessoasquesereúnemaosfinsdesemanaecuidamdeumahortaurbana,umaáreadepráticaesportiva,ummercadodetrocas,umteatroaoarlivreemobiliáriosparadescanso.Tudoaliéconstruídocolaborativamenteedemaneiraartesanal,commaterialrecicladoepresençacomunitária.Hojeconsolidado,oprojetotevedelutarcontraaprefeituraparaseestabelecer.Em2009,chegouaserintegralmentedestruídoporescavadeirasdopoderpúblico.Apóstensaelonganegociação–

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impulsionadaporcafésdamanhãpúblicosqueserviamcomopontodeencontroparaosativistas–conseguiramgarantirousufruto–provisório–doterreno.Hoje,EstaesunaPlazaéumaassociaçãovoltadaparaa“ocupaçãovegetaldacidade”eumaredecomunaldebairro.Organiza-sepormeiodeassembleiasquedeliberamsobreousodoespaçoeestabelecemregrasdeconvivência.Promovemoficinas,mercadosdetrocaeatividadesculturaiseartísticas.Queremapenascontinuarfazendoequeogovernonãoosincomode.

Essaexperiênciameconvocaatrazerumaúltimaquestão,inspiradaumavezmaisporHarvey.Ogeógrafobritânicodefendeumaideiarelativamenteheterodoxaquandooassuntoéocomum.Paraele,emalgunscasos,oqueosativistasdevemfazerécercar(enclosure)seusespaçosdeação.Cercá-los,paraprotegê-los,comofazemoscomuneirosdoLavapiés.ElecitaoexemplodoExércitoZapatistadeLibertaçãoNacional(EZLN)noMéxico,quecercouseuespaçodeatuaçãoeafirmouquegovernariaumdeterminadoterritório,oestadodeChiapas.

Entãoàsvezeseuachoqueháumaconfusão,naliteraturasobreocomum,queéoanticercamento,enãosoucontraocercamento;estoudizendoqueàsvezespodeserinteressantecercarascoisasparaprotegê-las.Espaçosheterotópicosprecisamserprotegidos.Ecomovocêosprotege?Vocêtemdecercá-los,apenasdeformaquepossamserprotegidos.Atémesmoascomunasanarquistastendematersuascercas9.

Festivaisculturaisnoespaçopúblico,piqueniquespolíticos,hortasurbanas,bibliotecaseparquessempreabertos,riosepraiaslimposporseusfrequentadores,bosquesrecuperados,prédiosabandonadosocupadospormovimentosdemoradia,porartistas,porsem-teto;levantesprovisórios,zonasautônomasepermanentesdeinvenção,centrossociaisautogovernados,canteirosdeexperimentação,encontrosdeciclistas,decaminhantes,deartesãos,dereparadores,deconstrutores,decriadores;derivas,tecnologiasdigitaislivres,dadosabertos,cadeirasnacalçadanofimdatarde,vizinhos,balançosquependemsobviadutos,muroscomotelasparapintoresrebeldes,criançasqueandampelasruassemmedo,comérciojusto,mercadosdetroca,quiosquesdecuidadospartilhados,mobiliáriosfeitosdematerialreutilizado,afetosabundantes,tecnologiassociaisparagarantiraacessibilidadedosdeficientes,paragarantiralivrecirculaçãodemulheres,negros,indígenas,trans...Paraenfrentarasmartcity(cidadeinteligente)docapital–internetdascoisasparaocontroledefinitivodoscorpos–acidadedocomum,múltipla,diversaeplural.

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1Cf.entrevistaconcedidaporHarveyàsociólogaturcaPelinTanemjunhode2012,disponívelem:<http://tanpelin.blogspot.fr/2013/03/an-interview-with-david-harvey-practice.html>,acessoem:19mar.2018.

2Ementrevistaaoautorpore-mailemjulhode2017.3Idem.4“[...]thecommonsclaimisimportantlyalignedwiththeideabehindthe‘righttothecity’–therighttobe

partofthecreationofthecity,therighttobepartofthedecision-makingprocessesshapingthelivesofcityinhabitants,andthepowerofinhabitantstoshapedecisionsaboutthecollectiveresourceinwhichweallhaveastake.”SheilaR.Foster;ChristianIaioneapudJoséMariaRamos(org.),TheCityasCommons,Melbourne:CommonsTransitionCoalition,2016,p.6.

5“Apotentiallyliberatingcitycanbeconceivednotasanagglomerateofliberatedspacesbutasanetworkofpassages,asanetworkofspacesbelongingtonobodyandeverybodyatthesametime,whicharenotdefinedbyafixed-powergeometrybutareopentoaconstantprocessof(re)definition.”StavrosStavridesementrevistaconcedidadurantea2ªBienaldeAtenas(2009).Disponívelem:<https://www.e-flux.com/journal/17/67351/on-the-commons-a-public-interview-with-massimo-de-angelis-and-stavros-stavrides/>,acessoem:22maio2018.

6“Conelmecanismocomunitariohorizontalquehemosorganizadoserespetalatomadedecisionesdeunmovimientopolíticoqueestáabierto.Elcolectivoyaexistíaenelmomentodelaocupación,quefueelmomentogenéricoodeconflictoyestáenconstantemutación.Nosotroscreamosunareglamentaciónde23artículosatravésdeunprocesocolectivoenelqueparticiparonartistasyciudadanosqueusanelespacio.Estasnormasseasumencomoreglamentodeusodelespacio.”Disponívelem:<https://www.diagonalperiodico.net/libertades/31726-esto-es-laboratorio-autogobierno.html>,acessoem:11maio2018.

7Cf.GiuseppeMicciarelli,“Pratiche_di_commoning_nel_governo_dei_beni_comuni:_il_caso_dell’ex_Asilo_Filangieri”,Iltetto,Nápoles,2015,pp.92-5.Disponívelem:<https://www.academia.edu/16133615/Pratiche_di_commoning_nel_governo_dei_beni_comuni_il_caso_dellex_Asilo_Filangieriacessoem:10ago.2017.

8DavidBollier,op.cit.,p.44.9“SoIthinkthereissometimesamixup,inthecommonsliteraturewhichisanti-enclosureandIamnot

anti-enclosureatall,Iamsayingwellyouhavegottobeinterestedsometimesinenclosingthingsinordertoprotectthem.Heterotopicspacehastobeprotected.Howdoyouprotectthat,youhavetoencloseit,onlyinthatwayitcanbeprotected.Evenanarchistcommunesbythewaytendtohaveenclosures.”DavidHarveyementrevistaconcedidaàsociólogaturcaPelinTanemjunhode2012,disponívelem:<http://tanpelin.blogspot.fr/2013/03/an-interview-with-david-harvey-practice.html>,acessoem:19mar.2018.

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AOLONGODOSCAPÍTULOSANTERIORES,vimosqueocomumocorreemcomunidadesqueseautogovernam.Tambémobservamosque

háumarelaçãoessencialentreosbenscomuns(opatrimôniosocioambiental,comooceanos,riosear,ascidadeseodigital)eaformaqueelegemosparageri-loseprotegê-los.Equenocentrodadiscussãopolíticasobreocomumestáabuscaporoutraformadeviver,baseadanacolaboração,napartilhaenosafetos.Falta-nosagoracruzarumatempestadequeassolaomardacomplexidadeeenfrentarodebatesobreochamadotrabalhoreprodutivo.Ouseja,aformacomocuidamosunsdosoutros,denossascriançaseidosos,lavamosnossasroupas,cozinhamosnossacomida,limpamosnossosbanheiros,arrumamosnossascasasoucomodelegamosissoaalguém.Nadiscussãosobreotrabalhoreprodutivo,interessa-nosaquiloqueocorre“daportaparadentro”e,historicamente,temficadoacargodasmulheres,sendoconsideradomenoroumenosimportantequeotrabalhoprodutivo,emumarranjodesigualquecaracterizaasociedadecapitalista.ComonosexplicaapesquisadoraitalianaradicadanosEstadosUnidosSilviaFederici,duranteséculosessesafazeresreprodutivoseramfeitosemcoletividade,comasfamíliaseascomunidadespartilhandotarefasedividindoresponsabilidades.Ocuidadoorganizavaotecidosocial,easolidãonãoeraregra.Comosurgimentodocapitalismo,areproduçãofoiprivatizadaedesenvolveu-seumaestratégiaperniciosadeisolamentoqueatéostemposatuaisseexpressaemrelaçõesdegêneroinjustasedesiguais:“Estáprofundamenteesculpidoemnossaconsciênciaqueasmulheresforamdesignadascomoocomumdoshomens,comoumafontederiquezaeserviçoscolocadosàsuadisposição,domesmomodocomooscapitalistasseapropriaramdanatureza”1.

Federiciéumdosexpoentesdavisãofeministadocomum.Seulivromaisconhecido,Calibãeabruxa,éumestudosobreaorigemdocapitalismoapartirdaperspectivadasmulheres.Deacordocomela,aspesquisasdeMarxeEngels,edeseusinúmerosseguidores,lançamluzsobreotrabalhoassalariado,desconsiderandoemgrandemedidaaquestãodareproduçãoedotrabalhodoméstico.Assim,FedericirefazopercursofeitopeloautordeOcapitale,aoregressaraofimdaIdadeMédia,àchamadafasedeacumulaçãoprimitiva,localizaque,apesardejáexistirdivisãosexualdotrabalhonaépocadaservidão,

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nãoexistiaumahierarquizaçãoentreoqueeraproduzidopormulhereseporhomens.Atéaquelemomento,homensemulherescultivavamaterraemcomunidade,emregimedesubsistência,baseando-senovalordeusodosolo.Écertoqueasmulheresjádesempenhavammaisqueoshomensopapeldecozinhar,lavar,cuidar,masessastarefaseramvalorizadasereconhecidascomoessenciaisàvida.Porqueotrabalhoreprodutivofeitodeformacoletivaerafontedeorganizaçãopolíticaepodersocialparaasmulheres.EmMarx,ocercamentodoscomuns,comaexpulsãodoscamponesesdesuasterras,empurrando-osparaotrabalhoassalariado,estánaorigemdacriaçãodocapitalismo.OutrosautoresdestacamcomoinstituintedessesistemaacolonizaçãodaAméricaeaescravidãonegra,queseriamresponsáveisporgeraracúmulodedinheiroparaaEuropa.Federiciintroduzemseulivroumelementoadicional:acaçaàsbruxas,umdosmaioresgenocídiosjáperpetradosemtodosostempos,quedizimoumulheresnaEuropaetambémnaAmérica.Portrêsséculos,mulheresacusadasdebruxariaforamenforcadasequeimadasempraçaspúblicas,nafrentedeseusfamiliareseamigos,paraserviremdeexemplo,fortalecendoomedosocialeinterrompendoatrocaancestraldeconhecimentostransmitidosdemãesparafilhas–muitasdasbruxaseramcurandeiraseparteiras,ouseja,detentorasdodomdetrazeràvidaeevitaramorte.Naquelemomentotambémseproduziuesedifundiufartaliteratura–comooMalleusMaleficarum–queatribuiàsmulheresaorigemdetodomal.AtesedeFedericidefendequeacaçaàsbruxasfoifundamentalparaenfraqueceraculturacamponesa,aopromoveradesigualdadenadivisãosocialentrehomensemulheres,etambémparadisciplinaroscorpos,nosentidodeadequá-losparaavendadaforçadetrabalho.

Tambéménessemomentohistóricoqueteminícioocismaentreotrabalhoprodutivo–emtrocadeumsalário–eotrabalhoreprodutivo–feitoparaamanutençãodavida,apriorisemvalordetroca.Aquele,atribuiçãodoshomens.Este,dasmulheres.PeterLinebaughescreve:“Ohomemcomumhaviaseseparadodamulhercomumedaterracomunal.Ohomosapienssetransformouemhomoeconomicus”2.Issoperdurouporséculos,atéqueocapitalnecessitassedeumcontingentemaiordetrabalhadoresepassasseaexigirdasmulheresajornadadupla,produtiva-reprodutiva.Oquesegueemcursoatéosdiasatuais.NoBrasil,conformeapontaoestudoMulheresetrabalho,doInstitutodePesquisaEconômicaAplicada(Ipea)3,astarefasdomésticascontinuamsendomajoritariamentepapeldasmulheres.Osdadosapontamquemetadedoshomensrealizaalgumtrabalhoreprodutivo,enquantoessepercentualnocasodasmulhereséde90%.Asmulheresdedicamàfaxinaumamédiade25,3horas

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semanaiseoshomensapenas10.Engana-se,porém,quemacreditaqueacaçaàsbruxaséumfenômeno

localizadonotempoenoespaço.ParaFederici,trata-sedeumprocessoqueserenovatodasasvezesqueháocercamentodeterrascomunais,oqueocorreatualmentesobretudonaÁfricaenascomunidadesindígenasdaAméricaLatina.

Comodesmontaressaarmadilhahistórica?Aativistaepesquisadoradefendequeocomumsópodeemergirquandonosconscientizarmosdanecessidadedeummodelocooperativodereprodução,emqueascomunidadespartilhemefetivamenteoscuidadoscomoviver,eliminandoasfronteirasentreopessoaleosocial,“entreoativismopolíticoeareproduçãodavidacotidiana”.

Seacasaéooikossobreoqualseconstróiaeconomia,entãosãoasmulheres,tradicionalmenteastrabalhadoraseasprisioneirasdomésticas,quedevemtomarainiciativadereivindicarolarcomocentrodavidacoletiva,deumavidaperpassadapordiferentespessoaseformasdecooperação,queproporcionesegurançasemisolamentoesemobsessão,quepermitaointercâmbioeacirculaçãodepossescomunitáriase,sobretudo,quelanceasbasesparaodesenvolvimentodenovasformascoletivasdereprodução4.

Ocapitalouavida!Umgritoentaladonagarganta.Umafrasequeinspiraaagir.Formasalternativasdeproduzireserelacionaremergemdasmulheresemmovimento,revolucionandootrabalhoreprodutivo.Issopodeserobservadonasváriasexperiênciasdehortascomunitáriasurbanas,emquesebuscagarantirasoberaniaalimentarpormeiodeautogestão;naslavanderiascoletivasdoNordestedoBrasil;nacozinhacomunitáriadosacampamentosdoMovimentodosTrabalhadoresRuraisSemTerra(MST)edosmovimentossociaispormoradia;nasredesdemãesepais,quepretendemoferecerapoiomútuoàcriaçãodosfilhoseassimenfrentaroisolamentounifamiliar;emfeirassolidáriasebazaresdetrocasdeprodutosouserviçosouemredesdeempréstimodeobjetos,quesãopráticasancestraisdeinúmerascomunidades,inclusiveasreligiosas;nasestratégiasdeconvíviointergeracionais–tãocomunsnoJapão,porexemplo–emquejovenseidososintercambiamsabereseafetos;nascasascoletivas(co-housing)oucomunidadesdemoradia,estratégiasparafugirdoisolamentoepartilharastarefasdomésticas.

LaMaisondesBabayagas,porexemplo,éumaalternativafeministademoradiaparaidosasinauguradaem2012naregiãometropolitanadeParis,

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França.“Babayaga”éonomedeumabruxadamitologiaeslava,eoprojetoconsisteemumahabitaçãosocialautogestionadaporumgrupodeidosasqueoptaramporviveremcomunidadeecomindependência.Dos25apartamentosdacasa,21sãoadaptadose4sãoreservadosparaestudantes.Ogastoéde420eurospormês.AcasaficaemumazonacentraldobairrodeMontreuil(Seine-Saint-Denis),próximadecomércioetransportepúblico.Em2016,viviam21idosasnacasa.Moramemquartospequenos,compartilhandoespaçoscomuns,semequipedecozinha,enfermagemouqualqueroutroserviçoprofissional.Todasasmoradorasconcordamemdedicar10horassemanaisàstarefascoletivasepartilharrecursosparagarantirvisitasmédicasmensais.Nessaexperiência,omorarnãoéapenasresidir.Umasériedeatividadesocorre,comocursos,gruposdediscussão,escritacriativaeshows.Asmulheressãoencorajadasarealizaratividadesemproldobairroeagirsocialepoliticamente.Amansãocustou4milhõesdeeurosetevepatrocíniodeoitofinanciadorespúblicos,maségeridaporumaassociaçãosemfinslucrativos.ComoobservaFederici:

Essaspráticasconstituem,domesmomodoqueosreflorestamentoscoletivoseaocupaçãodeterras,aexpressãodeummundoemqueoslaçoscomunaisaindasãopoderosos.Masseriaumerroconsideraressasatitudescomopré-políticas,“naturais”ouprodutosda“tradição”.Narealidade,[...]hánessaslutasumaidentidadecoletiva;elasconstituemumcontrapodertantonoespaçodomésticocomonacomunidadeeabremumprocessodeautovalorizaçãoeautodeterminaçãosobreoqualtemosmuitoqueaprender5.

Modificarospadrõesdomodelodereproduçãobaseadonaexploraçãonãoétarefasimples.Em2013,aCasadeLuasurgiuemSãoPauloparaserumexperimentodeauto-organizaçãocomunitáriademulheres.Eraumarranjointergeracional,maslideradosobretudoporjovens,emtornodostrintaanos.Ocupandoumcasarãoalugado,localizadonazonaoestedacapitalpaulista,asmulheresiniciaramsuasatividadescomocoletivoedepoisoptaramporseformalizarcomoumaassociaçãocujoobjetivoerasintetizadoporumafrase:“fazermosjuntasaquiloquenãopodemosfazersozinhas”.Dopontodevistaprático,acasaeraumcentrodereflexãoedeprojetosemtornodaquestãodegênero,nãoapenasdaportaparafora,massobretudodaportaparadentro.

ACasadeLuanãotinhafuncionários.Ascriançaseosidososerambem-vindos.Otempodofemininoerarespeitado.Orecolhimentodolixoeracoletivizado.Numalousalocalizadanasalaestavamfixadososdiasehoráriosda

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coletaseletivaeadosresíduosnãorecicláveis.Afaxina,noiníciodaexperiência,eramotivodefesta.Realizadatodasassextas-feiras,depoisquinzenalmente,alimpezacostumavareunircercadevintemulheres,asqueestavammaisvinculadasaodiaadiadaorganização.Aalegriaeraumimperativo:limpavamdançando,bebendo,conversandoecompartilhandosuastécnicas.Comotempo,porém,onúmerodepessoasdisponíveisparaessesencontrosfoiminguando.Aquestãodecontratarumafuncionáriaparaalimpezatornou-serecorrentenasreuniões,dividindoopiniõesdasintegrantes.AcasamantinhacomoatividadepermanenteumgrupodeestudossobreaobradeFederici,oqueasajudouacompreendermelhorodesafiodotrabalhoreprodutivo.Masacompreensãopolíticanãogarantiaaresoluçãodeumaquestãoelementar:comoorganizarotempoentreotrabalhoprodutivoeoreprodutivo?QuandoaCasadeLuaencerrousuasatividades,cercadetrêsanosdoiníciodesuasatividades,alimpezaerafeitaporumaempregadadoméstica.Aexperiência,porém,élembradapelasmulheresqueparticiparamdoprojetoepelopúblicoquefrequentavaoespaçocomoumimportantelaboratóriodeaprendizagembaseadonocomum.

UmolharimediatistapoderiajulgarqueaCasadeLuafracassou.Masoquedefatoocorreuéqueessaexperiênciafoiprecursoradaprimaverafeministaqueganhouforçanosúltimosanos.Asdificuldadesencontradaspelasativistassãoasmesmasquetodosenfrentamosquandotentamosdesconstruirpadrõespolítico-culturaishistoricamenteconstruídos.OqueaCasadeLuatestoufoiumprocessopráticodedesaprendizagem,eninguémquefrequentouacozinhadeazulejosverdesdaquelecentroculturalvoltouaolharparaaquestãodegêneroeparaaexploraçãodotrabalhoreprodutivodomesmojeito.

Quilombos,terreirosealegriaEmjulhode2016,arapperehistoriadoraJoyceFernandes,conhecidacomo

Preta-Rara,postounasredessociaisumrelatosobreosmaus-tratosquesofriaquandotrabalhavacomoempregadadomésticanacidadedeSantos,nolitoraldeSãoPaulo:“Joyce,vocêfoicontratadaparacozinharparaaminhafamília,enãoparavocê.Porfavor,tragamarmitaeumpardetalherese,sepossível,comaantesdenósnamesadacozinha;nãoépornada;sóparaagentemanteraordemdacasa”.Ocurtomasincisivotextoeraareproduçãodeumrecadoaeladadoporsuapatroa.Opostfoipublicadoacompanhadodahashtag#euempregadadomésticaeviralizou,atingindomilharesdepessoas.Coma

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enormerepercussão,JoycecomeçouareceberdenúnciasdeabusosnarradaspormulheresdetodooBrasileresolveucriarumapáginaparacompartilhá-las.Assimnasceuoprojeto#Euempregadadoméstica,queproduzconteúdospararedessociaisegerouumasérieaudiovisual,umlivroetambémaçõesativistasemdefesadosdireitoshumanos.

DeacordocomaOrganizaçãoInternacionaldoTrabalho(OIT)6,oBrasildetémomaiorcontingentedeempregadasdomésticasdomundo.Sãocercade6milhões,oquecorresponde,segundodadosoficiais,a14%dototaldasmulheresbrasileiras.Até2015,quandofoiaprovadaaleiregulamentandootrabalhodomésticonopaís,70%delasnãopossuíamcarteiraassinada.Quatroemcadacincodomésticassãonegras.

ConformenoslembraaescritoraepesquisadoraBiancaSantana,paracercademetadedessastrabalhadoras(48%),otrabalhodecozinhar,lavar,limparecuidarérealizadoduplamente:emsuascasasecomunidades,deformanãoremunerada,enascasasdaspatroas,recebendobaixossalários.Emseuartigo“Mulheresnegras:umconviteancestralaocomumeaobemviver”,eladescreveafacebrutaldessaexclusão,mastambémnoslembraqueasestratégiasdesobrevivênciacriadasporessasmulheressãoexemplosdebenscomuns.

Daprecariedade,afinal,podebrotarapotência.Recorrendoàsmemóriasdesuainfância,aoconvíviocomsuamãeesuaavó,aautoradolivroQuandomedescobrinegradescrevepráticascomunitáriasdepartilhaqueconformamtecnologiasdeconvíviohumano:asvizinhasquecuidamdascriançasumasdasoutras;ofogãocompartilhadoemqueumaofertaogáseoutramantimentos;apequenacriaçãodecodornasquegaranteumtrocoadicionaletambémoovoparaasrefeições;ahortadeervasquecurameacalmam.OcomumdeSantananãoéaqueleinspiradonasterrascoletivasdaEuropamedieval,masoutro,odosquilombos,territóriosnegroscomunitáriosqueduranteosmaisdetrezentosanosdeescravidãolegalforamoepicentrodaresistênciadapopulaçãopretaqueconquistavaindependênciaoufugiadaopressão.Nessaperspectiva,ocomuméumconceitoassociadoàmemóriaeàancestralidadedadiásporaafricana,enosconvocaàlutapelasuperaçãodoracismo,dosexismoedasdemaisformasdepreconceitoquedestroemotecidosocial.

NadesumanatravessiadoAtlântico,abrutalviolênciadaescravidãoeasinúmerasdificuldadesimpostaspeloracismoinstitucionaleadiscriminaçãodapós-abolição,quesemantémaindahoje,asmulheresnegrastrançamseuscabelos,cantam,dançam,adornamseuscorpos,

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contamhistórias,fazemroupasdeboneca,cozinham,cuidamdaservas,alimentamseusfilhos.Aafirmaçãoerecriaçãodecostumesehábitosdediversasetnias,portanto,inscreveramnocotidianodasmulheresnegrasbrasileirascondutasespecíficas7.

Essecomum-quilombolaétambémaquelequePreta-Rarapersegue.Seuprojeto#Euempregadadomesticapromoveunoprimeirosemestrede2017umfestivalcomatividadesvoltadasàideiadecuidadoparalançarumguiadedireitosparaempregadasdomésticas.OplanodeFernandeseraofereceràstrabalhadorasatençãoespecial,commassagens,oficinadeturbantes,comidassaudáveis,cosméticaeodontologianatural,jogosebrincadeiras,paralembrá-lasquequemcuidapodesercuidada.VoltandoaosensinamentosdeFederici,constatamosqueosbenscomunsconstituemo“mecanismoprimordialpeloqualsecriamointeressecoletivoeoslaçosdeapoiomútuo”.Sãoumaformaderesistênciapacíficaeumachancedevalorizarastrocashorizontaiseexperienciarasolidariedade.

Nãohácomumpossívelanãoserquenosneguemosabasearnossavidaenossareproduçãonosofrimentodeoutros,anãoserquerechacemosavisãodeum“nós”separadodeum“eles”.Defato,seocomumtemalgumsentido,estedeveseraproduçãodenósmesmoscomosujeitocomum.Esseéosignificadoquedevemosobterdoslogan“nãohácomunssemcomunidade”.Masentendendo“comunidade”nãocomoumarealidadefechada,comoumgrupodepessoasunidasporinteressesexclusivosqueasseparamdosoutros,comocomunidadesbaseadasnaetnicidadeounareligião.Comunidadeentendidacomoumtipoderelaçãobaseadanosprincípiosdecooperaçãoederesponsabilidade:entreunseoutroseemrelaçãoàsterras,àsflorestas,aosmareseaosanimais8.

Oquilomboéumareferênciaparaasmulheresnegras,masSantanatambémcitaasrodasdesambaeosterreirosdecandomblécomoextensãodesseraciocínio.Naediçãode2017dofestivalalemãodeculturadigitalRe:publica,odesenvolvedorepesquisadorRicardoRuizparticipoudamesa“CriandoNovasOrganizaçõesparaoComum”,emquedefendeujustamenteumavisãodoterreirocomobemcomum.RuizéfilhodesantodacasaIlêAxéOxumKarêdaIyalorixáMãeBethdeOxum.Emseutrabalho,elefundeaéticahackerdosdesenvolvedoresdosoftwarelivrecomareligiosidadedematrizafricana.

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Estudiosodainovação,inverteaordemdosfatorese,aoinvésdeperseguirofuturo,olhaparaaancestralidadeembuscadonovo.Ocandomblééamatriz.Certaaltura,emsuapalestra,eleindaga:comoexplicarumareligiãoque,apesardaperseguiçãogeneralizada,porpartedoEstado,doscatólicosedosevangélicos,mantevevivosseusrituais,práticaseconhecimentos?Essaculturasóseguevivaepreservadagraçasàspráticascomunitárias.Osterreirosdecandomblésãoespaçosdecuidado,autogovernados,emquesepodeproduzirecompartilharsaberesealimentosentreseusmembros,oqueparaRuizéaessênciadoviver.

EmumaentrevistaaBrunoTarin,paraolivroCartografiadasemergências,MãeBethdeOxumenfatizaumoutroaspectoessencialdademocraciadosterreiros:nãosepararamilitânciadafesta.Afinal,ocomumdaculturapopularbrasileiraécriadaalegria.“Issoficaparaospartidos,issoficaparaosintelectuais.Agentemisturaessascoisas,aomesmotempoqueestámetendoocaceteestátambémbebendo,estábrincando,estácurtindo,estádandoumbigada.”9

Todoprimeirosábadodomês,desde1998,semrecursosdegovernosoudomercado,pormeiodepartilhaearticulaçãoemrede,acomunidadelideradaporMãeBethrealizaassambadas.AfestaocorrenobairrodeGuadalupe,Olinda,noestadodePernambuco,ondefoifundadooCentroCulturalCocodeUmbigada,organizaçãosemfinslucrativosquerealizaatividadesartísticas,culturaiseeducacionais.SegundoMãeBeth,assambadassãoeventosquejuntamnobeco,emfrenteaoterreiro,maisde2milpessoas,semestruturadepalco,aproximandoosmoradoreslocaiscomgentedetodoopaísedoexterior.Tudoocorrenochãoemquesepisa,ochãosagradoporondetambémtransitamorixáseasentidadesindígenas.“Issoédaalma!Issoéaalmadaspessoas.”AexperiênciadoterreirodeMãeBethéadeumcomummultidimensional.Digoissoporquenessaexperiênciaseassociampelomenoscincobenscomuns:oterreirodecandombléeaJuremaSagrada–práticaxamânicadeorigemindígena–comoespaçodearticulaçãocomunitária;aruacomoespaçourbanoocupávelereprogramávelpelacidadania;aculturapopulardococoedasambada,expressãoancestralecoletiva,construídaporcorposresistentesquedançamecantamsemfazerdistinçãoentrenaturezaecultura;astecnologiaslivres,softwaresehardwares,quesãousadossobretudoparaaproduçãodenarrativasartísticas;issotudomediadopelobrincar.

[...]queriaacrescentarqueabrincadeiraalimentaanossaalma,mobilizanossacomunidade,nosfazrefletirsobrecomoqueremosnossas

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cidades.Praprédioseestacionamentos?Oupragentenaruaeagentesemisturandonela?[…]OTerreiroeabrincadeiradoCocotrazmuitosentidoànossavidaeàvidaculturaldanossacidade.Afamíliaeacomunidadetornam-seaextensãodabrincadeira.Atecnologiatemqueseruminstrumentoparamelhorarnossasvidas,aonosapropriarmosdastecnologiassecriampossibilidades,arranjospararodarumachavequesempretevefechadapragente:anossacomunicação10.

Nestecapítuloprocureipromoverumaponteentreosestudosdocomum–cujabibliografiaémajoritariamentedonorteglobal–easperspectivasfeministas,afro-brasileiraseindígenasdesseconceito.Atarefadedesenvolveressecampoestásendoempreendidacommaiorpropriedadepelasmulherespesquisadoraseavançagradualmente.Nocampodamilitância,ocomumaparece–seassimpodemosdizer–emsuavertentelatino-americana.

AMarchadasMulheresNegrasde2015,porexemplo,adotoupelaprimeiravezcomolemaobemviver–conceitodeorigemindígenaque,comodescrevemosanteriormente,guardagrandesemelhançacomaideiadecomum,aoafirmaradimensãocomunitáriadavida,enfatizandooafeto,orespeitoeosdireitosdanatureza.Olemaera“contraoracismoeaviolênciaepelobemviver”.Em2017,noDiaInternacionaldaMulherNegraLatino-AmericanaeCaribenha,amarchaconvocadacarregavaolema“Mulheresnegraseindígenaspornós,portodasnós,pelobemviver!”.Ospovosindígenasbrasileirostambémreivindicamaideiadebemviver.UmencarteproduzidopelojornalPorantim,doConselhoIndigenistaMissionário(Cimi),reúneváriosdepoimentosdeliderançasdetodooBrasil.Porisso,paraencerrarestecapítulo,quenãotemfim,reproduzoafrasedeKuraKanamari,dovaledoJavari,noAmazonas:“Estamoslutandoparavivercomnossacultura,falarnossalíngua,comeropeixepescadonahora,sentirocheirodafloresta,issoéobemviver![...]Nãofaloporumpovosó.Faloportodasaspessoasquevivemequerespeitamavidadosoutros.Ninguémvivesó!”.

1SilviaFederici,op.cit.,p.157.2PeterLinebaugh,op.cit.,p.279.3Disponívelem:

<http://trabalho.gov.br/images/Documentos/Noticias/Mulher_e_trabalho_marco_2016.pdf>,acessoem:20abr.2018.

4SilviaFederici,op.cit.,p.156.5Ibidem,p.152.

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6Cf.MarinaWentzel,“OquefazoBrasilteramaiorpopulaçãodedomésticasdomundo”,BBCBrasil,26fev.2018.Disponívelem:<http://www.bbc.com/portuguese/brasil-43120953>,acessoem:20mar.2018.

7BiancaSantana,“Mujeresnegrasbrasileñasysusprácticascolectivasdelcomún”,in:AdrianaBenzaquen;MarcelaBasch(orgs.),Comunes:economíasdelacolaboración,pp.78-9.Disponívelem:<http://www.encuentrocomunes.com/documents/libro_comunes.pdf>,acessoem:23maio2018.

8SilviaFederici,op.cit.,p.154.9AlanaMoraes;BrunoTarin;JeanTible,Cartografiadasemergências,SãoPaulo:FriederichEbert,2015,p.

64.10Ibidem,p.77.

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FOIAIMAGEMDATERRAVISTADOESPAÇOqueinspirouocientistaJamesLovelockadesenvolver,aindanadécadade1970,a

hipótesedeGaia.Umateoriainicialmentedesprezadaporseuspares,masque,aolongodosúltimosanos,setornoumaisemaisreferencial–sobretudocomaconstataçãodoaumentodatemperaturaglobaleaideiadequepassamosavivernoantropoceno(umanovaeraqueéconsequênciadastransformaçõesgeológicasocasionadaspelaaçãohumana).Quandoviuabolotaazul,encobertadenuvens,comoarespirar,Lovelockintuiuqueoplanetaéumorganismovivoe,combasenessainspiração,desenvolveuumateoriaquemobilizaconhecimentoscomplementaresdequímica,física,biologiaegeologia.Emessência,comoeledescreveemseulivroAserasdeGaia:abiografiadanossaTerraviva,aTerra–rebatizadadeGaiaemreferênciaàtitãdamitologiagrega–éa“maiormanifestaçãodevida”,umsistemaautorreguladoquebuscagarantiroambientenecessárioparasuasobrevivênciae,consequentemente,detodososseresqueahabitam.Nessesistema,a“atmosfera,osoceanos,oclimaeacrostaterrestre”sãoreguladospor“causadocomportamentodosorganismosvivos”.“Afronteiradoplanetacircunscreveentãoumorganismovivo,Gaia,queéumsistemacompostodetodososseresvivosedeseuambiente.NãoháumadistinçãoclaranasuperfíciedaTerraentrematériavivaenãoviva.Existeapenasumahierarquiadeintensidade,quevaidoambiente‘material’dasrochasedaatmosferaparaascélulasvivas.”1

MasoqueahipótesedeGaiatemavercomocomum?Boapartedaliteraturaafirmaqueosbenscomunsmaisevidentessãoaquelesquenosforam“dados”pelanatureza.Ouseja,tudoqueexistesobreabiotaterrestre:osoceanos,osmares,osrios,asflorestas,osbosques,oar–portanto,aatmosfera–,asrochas,mastambémosangue,ascélulaseosgenes.Podemospensarcadaumdessesbens–esuaespecíficagestãopormeiodecoletivosautogovernados–isoladamente.Masporquenãopensá-loscomoumaredesocioambientalinterdependente?Avida,comodizLovelock,ésocial,existeemcomunidadesquetêmapropriedadedeseremcoligativas.Seentendermosessaformulação,podemosaceitarqueGaia,esseservivoemquevivemos,podeseronossomaiorcomumcasogeridocoletivamente.Gostosobretudodessacompreensãoporqueelanospermiteaproximaropensamentoocidental–estruturadocombasena

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ciência–davisãocosmogônicadosindígenassul-americanos,adeptosdobemviver,paraquemoplanetaéPachamama.

BrunoLatour,emseuJamaisfomosmodernos,constróiatesedequeamodernidadeseiniciacomacisãoentrenaturezaesociedadenomundoocidental.Umacisãoqueconsideraanaturezacomoalgotranscendenteeasociedadecomoimanente,ouseja,dimensãoexclusivaondeocorreaaçãohumana.Noentenderdofilósofo,essaduplaseparaçãofoioqueabriucaminhoparaoprocessoinconsequentededestruiçãodanaturezaquetemosvivenciado.Parasuperaressecenário,elepropõeaafirmaçãodeque“anaturezaeasociedadenãosãodoispolosdistintos,masantesumamesmaproduçãodesociedades-naturezas,decoletivos”2.FaçoessapequenarecuperaçãoquevulgarizaacomplexateoriadeLatourparadefenderaideiadequeocomum,comosistemasocionatural,podenosajudarareverteramarchahumana–cadavezmaisacelerada–rumoaoabismo.Paratanto,éprecisoquedesconstruamosomodelodedesenvolvimentomoderno,edificadosobreoextrativismodesmedido.Issopodeserfeito,inicialmente,comadenúnciadosistemacapitalistaemsuafeiçãoneoliberal,masapartirdaídevemosnosconcentrarembuscaralternativasviáveis–garantindoqueGaiavolteanosacolheremseusbraços.

Nãoéumaquestãodepreservação,masdeperseverança.Nãoéumproblemadecontroleoudeprogressotecnológico,masdeautodeterminaçãopolítica.Éumproblema,emsuma,demudardevida,porqueemoutroemuitomaisgravesentido,vida,sóháuma.Mudardevida–mudardemododevida;mudarde“sistema”.Ocapitalismoéumsistemapolítico-religiosocujoprincípioconsisteemtirardaspessoasoqueelastêmefazê-lasdesejaroquenãotêm,sempre.Outronomedesseprincípioé“desenvolvimentoeconômico”3.

NessecurtoensaiopublicadopelarevistaSopro,EduardoViveirosdeCastrodefendecomoalternativaaideiadesuficiênciaantropológica.Formuladordosconceitosdemultinaturalismo4eperspectivismoameríndio5,oantropólogobrasileiroafirmaqueavisãoteológicadodesenvolvimentoéconsequênciadainsaciabilidadeinfinitadodesejo,característicadomundoocidentalquenãoépartilhadaporoutrospovos.Paraele,paradesarmarmosessabombadanecessidadeprecisamosrecorreràideiadesuficiência,ouseja,daquiloqueéestritamentenecessárionãosóparanossasatisfação,mastambémparaapreservaçãodoplaneta.Nessaperspectiva,nossametapassariaasera

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improdução,enossoprojetocoletivodevida,ainvoluçãointensiva.Nessecontexto,apragmáticadasuficiênciasurgiriacomoantídotoaoaceleracionismo,aocrescimentismo,abrindoespaçoparaadefesaradicaldodecrescimentoedaredistribuiçãodariquezaproduzida,cujafarturaatualjábastariaparanosgarantirnossasnecessidadesvitais.EmcorocomLatour,ViveirosdeCastroafirmaqueprecisamosmudarnossaideiado“nós”,quenosexcluidosoutros,ouseja,doambiente.Oqueelequeréqueaprendamoscomosameríndios.

Provedora,GaiaPachamamaécrispadadecomuns,quepoderiamserdivididosemduasgrandescategoriassocioecológicas:oscomunitárioseosglobais.Aprimeiracategoriaéformadapelasterrasusadascoletivamenteparaoplantio,ostrechosdelagoserioscuidadosparaproverágua,peixeetransportedaspopulaçõesribeirinhas,ospequenosbosquesdeondeosmembrosdaaldeiaadministramasombradasárvoreseacoletadosfrutosedalenha;jáoscomunsglobais,deacordocomadefiniçãopropostaporSusanJ.BuckemseulivroTheGlobalCommons:AnIntroduction,sãoaatmosfera,aAntártica,osoceanoseoespaçosideral,comoespectroeletromagnéticoincluído.Perceberasconsequênciasdaaçãoindividualemcontextocomunitárioémuitomaisfácildoqueemescalaglobal,masointeressantedetratarmosessasduasdimensõescomocomplementareséobservarmosainterdependênciadenossosatos.Maisumavez,parareforçar,eparaquefiqueclaro,vivemosemumplanetavivo,enossasações–qualquerumadelas–produzemconsequênciasparatudoqueexistesobacamadadeozônio.ComoobservaSubirats:“Não‘temos’umbemcomum,‘fazemosparte’docomum,namedidaemquefazemospartedeumecossistema,deumconjuntoderelaçõesemumentornourbanoourural,eporissoosujeitoépartedoobjeto.Osbenscomunsestãoinseparavelmenteunidoseunemaspessoas,ascomunidadeseopróprioecossistema”.6

ComoescreveElinorOstromnoprefáciodolivrodeBuck,durantemuitosséculosahumanidadedesenvolveuformasdeaferirasconsequênciasdesuasaçõesemcontextoscomunitários,masapenasrecentementepassamosatertecnologiasquenospossibilitariamfazeromesmoemescalaglobal7.Eissoaindanãoéplenamenteviável,porquefaltacoordenaçãopolíticanessesentido.Poroutrolado,começamasurgirorganizaçõesvoltadasaatuaremdefesadoscomunsglobais.NaAlemanhafoifundadooMercatorResearchInstituteonGlobalCommonsandClimateChangeparadesenvolverpesquisasquepossamsubsidiarostomadoresdedecisão,combasenaideiadequeaatmosfera,asflorestaseosoceanosnecessitamdecooperaçãoglobalparagarantirseuusosustentável.OttmarEdenhofer,ChristianFlachslandeBernhardLorentz,

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integrantesdessaorganização,escreveramparaolivroTheWealthoftheCommonsumartigointitulado“Aatmosferacomoumcomumglobal”8,noqualafirmamquenãohátempoparaesperaraconstituiçãodeumgovernomundialeoquetemosdefazeréarticularaçõesemnívelinternacional,nacional,regionalelocalparagarantiramitigaçãodasmudançasclimáticas.

Namesmadireção,DavidBolliereBurnsWestonpropuseramnoseulivroGreenGovernance“macropríncipiosepolíticas”paraumagestãotranslocaldocomumquereputoextremamenteválidosparanossareflexão9.Sãoeles:

•umagovernançaecológicabaseadanoscomunsenosdireitos,comoalternativapráticaaoEstadoeaomercado;

•oprincípiodequeaTerranospertenceatodos;•odeverestataldepreveniroscercamentosdosrecursoscomuns;•oscomunsdegarantiapúblicacomoferramentasdeproteçãodos

recursosdeusocomumdegrandeescala(acrescento:oscomunsglobais);

•aconstituiçãoestatutáriadoscomunsporpartedoEstado;•alimitaçãolegalàpropriedadeprivadaparaasseguraraviabilidadedos

sistemasecológicosdelongoprazo,e•odireitohumanodeestabeleceremantercomunsecológicos.Odesafiodepensaroplanetacomoumcomumnoscolocadianteda

necessidadedeconstruir,comodefendeuaprópriaOstrom,mecanismosdegovernançapolicêntrica.Oque,nomeuentender,sóiráocorrercomacoordenaçãodeesforçostranslocais,apartirdeumanovacompreensãodosdireitosqueincorporetodososseresvivos(humanosenãohumanos,dasociedadeedanatureza,Gaiaincluída).EssaéaprincipaltarefadademocraciadoséculoXXI.

Água:abasedavidaParaaativistaindianaVandanaShiva,abiosferaéoqueéporque,afinal,é

umahidrosfera.Ademocráticaágua,bemcomumabundante,trêsquartosdasuperfíciedeGaia,seapresentaemformadeoceanos,mares,rios,lagos,aquíferos,chuva...nós,humanos,comoespécie,nãopodemosviversemela.Impossívelsaciarasedesemágua.Cozinhar,lavar,banhar-se.Nãohá

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agriculturasemágua.Nãoháextrativismosemágua.Nemsequerháindústria.NoBrasil,paísdeproporçõescontinentaisdematrizhidrelétrica,éimpossívelpensaremgeraçãodeenergiasemágua.Nãohá,inclusive,fabricaçãodecomputadoressemágua–aMicrosoftchegouatéatestar,em2016,aoperaçãodeumanuvemdeservidoresnofundodooceano10.Nãoàtoa,paramuitosdosanalistasdageopolítica,aáguadehojeéopetróleodeontem.SemuitasdasguerrasdoséculoXXforamparagarantirocontroledoouronegro,asdoXXIsãoparapermitirodomíniodaimensidãoazul.Equandofaloemguerra,nãoestoufalandonecessariamentedeintervençõesterritoriaiscomsoldados,tanqueseaviõescaçadores,masdaguerraemsuaformafinanceira,queseapresentacomoprivatizaçãodosconjuntosderecursoscomuns(ouCPRs).

Umcasoemblemático–econsideradoinauguraldesseconflitocontemporâneoentrecomuneiroseprivatistas–ocorreunaBolíviaentrejaneiroeabrilde2000.Contráriaàprivatizaçãodosistemamunicipaldegestãoefornecimentodeáguapotáveleaoaumentoentre30%e300%dastarifascobradaspeloconsórcioAguasdelTunari(reunindoafilialdogruponorte-americanoBechteleEdison,aempresaespanholaAbengoaeasbolivianasPetrovicheDoriaMedina),apopulaçãodeCochabambamobilizou-seemumarevoltapopular.Aprivatizaçãoocorreracombaseemumaleiquegarantiaomonopóliodosrecursoshídricosaoconsórcioepermitiaqueessasempresascobrassempelaáguaqueaspessoasobtinhamdepoçoserios,eatémesmoasquecoletavamdachuvasemautorizaçãooulicença.Ouseja,nãoprivatizavaapenasofornecimento,mastambémospequenossistemasautônomosquerepresentavam60%doabastecimentodacidade.Oepisódioficouconhecidocomo“guerradaágua”daBolívia(oudeCochabamba)eatingiutamanhaproporçãoquelevouoentãopresidentedopaís,HugoBanzer,adeclararestadodesítionopaís.AsimagensdeummilitarvestidodecivilatirandocontramanifestantescomumrifleeamortedojovemVictorHugoDaza,de17anos,intensificaramosprotestosearevoltapopular.Ofimdahistóriaéavitória,aindaqueprovisória,doscomuneiros,comogovernobolivianorevogandoaleideprivatizaçõeseocontratodeconcessãodoserviçopúblico,quedurariaquarentaanos.

Alémdeexemplodedefesadaáguacomoumcomum,ocasodeCochabambanospermiteaprenderliçõesdedemocraciareal.TodaaarticulaçãoderesistênciaerevoltadoepisódiobolivianoocorreuapartirdacriaçãodeumaorganizaçãochamadaCoordenadoriaparaaDefesadaÁguaedaVida,quereuniuirrigadores,camponeses,trabalhadoresdasfábricasedo

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setordeserviços,professores,vizinhoseparticipantesdoscomitêsdeáguas.Essaentidadefoiformadanocalordadisputa,criandoumaforçacontráriaàleideprivatização.Efoiessasupraorganizaçãoquecoordenouaocupaçãodacidade,osbloqueiosdeestradaseasgreves,quetinhamcomoúnicoobjetivoexpulsaraempresamonopolistacriadaparagerirosrecursoshídricosmunicipais.Emumdocumentopublicadoapósumsemináriosobregestãodaáguarealizadopoucosmesesdepoisdessaesfuziantevitóriacontraoneoliberalismo–quefoiumsoprodeinspiraçãoparaativistasdomundotodo–,aCoordenadoriaafirmaclaramentequeseuobjetivoéseguirpromovendoespaçosdediscussãosobreocomum,endossandoassimquequalquersoluçãosóélegítimasediscutidaeexecutadapelapopulaçãoemseuconjunto.Nãoaceitariamjamaisaáguacomomercadoria.

AslutasdademocraciadaáguacontraosgigantescorporativostambémsetornaramlutascontraEstadoscentralizados.SemEstadocentralizado,aprivatizaçãonãoépossível.OmercadogovernapormeiodeEstadosnãodemocráticos,coercivoseantipovo.ÉporissoqueademocraciadaTerra,eumadesuasfacetas,ademocraciadaságuas,éaomesmotempoumaprofundamentodademocraciaeumadefesadeestruturasgenuinamentedemocráticas.Ésimultaneamenteumprocessodereivindicarocomumeosdireitosdascomunidadesedefenderosbenscomunseosserviçospúblicos11.

NoBrasil,temosinúmeroscasosdeconflitosopondocomuneiroseprivatistas.UmdelesocorrehámuitosanosemSãoLourenço,MinasGerais,quepossuinovefontesdeáguasmineraiscompropriedadesterapêuticasemedicinais.DesdeoséculoXIX,acidadeéconhecidapelapurezadassuaságuas,eporissotornou-seumpontoturístico.Em1992,aempresamultinacionalNestléassumiuadireçãodoParqueNacionaldasÁguasdeSãoLourençoeomodelodegestãodocomumfoicontroladoporoutralógica,quemodificoutotalmenteavidadacidade,ousodaágua,aqualidadeeaquantidadedorecurso.

Reunidosemumaassociaçãolocal,aAmar’Água,desdeentãoosmoradoresdenunciamosmalfeitosdacompanhiasuíça,queresultaramemmudançanosaborenavazãodaságuasdoparque.ForamencontradasirregularidadesnaexploraçãodopoçoPrimavera,quefoiabertosemautorizaçãoecujaáguapassavaporumprocessodedesmineralizaçãoproibidopelalegislaçãobrasileira.Aassociaçãotambémacusaaempresadesuperexploração:deacordocomosite

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oficialdaentidade,duasdasfontesjáteriamsecadoeasrestantesnãopossuemmaisvazãoespontânea,jáqueascaptaçõessãorealizadasemescavaçõesde450metrosdeprofundidade.Ironicamente,aáguaquejáfoimedicinalchegouàsmanchetesdosjornaiscomoumproblemadesaúde.Em2014,aAgênciaNacionaldeVigilânciaSanitária(Anvisa)determinouaproibiçãodadistribuiçãoecomercializaçãodeumlotedaáguamineraldamarcaSãoLourenço,produzidapelaNestlénolocal,porapresentarabactériaPseudomonasaeruginosaacimadolimiteestabelecidopelalegislaçãosanitária.

Omodelodeadministraçãoprivadaébaseadoemcompensaçãofinanceiradaexploraçãodosrecursosminerais,aCFEM,taxacalculadanofaturamentomensaldaempresa:12%vaiparaaUnião,23%paraogovernodoestadoe65%paraomunicípio.Em2016,acidaderecebeuR$536milreaisdaempresa.Infelizmente,nocasobrasileiro,alutadosativistasmineirostemconseguidoapenasmitigaralgunsdanos,masnãofoisuficienteparareverteroprocesso.Em2017,ogovernodeMinasGeraistambémanunciouointeressedeprivatizaraságuasdeCaxambueCambuquira,tambémdoCircuitodasÁguas.

Noseujácitadoartigo,ShivacontaahistóriadasmulheresdeumapequenaaldeianoestadodeKerala,naÍndia,queconseguiramfecharumafábricadaCoca-Cola.Aunidade,abertaemPlachimadaem2000,começouaextrairilegalmentemilhõesdelitrosdeáguadosubsolo,oqueresultouemumvertiginosoesvaziamentodasreservas,percebidopelastribosepelosfazendeiroslocais.Ealémdaextraçãoilegaldaágua,aCoca-Colatambémpoluiuaquesobrounosreservatórios:em2003,odistritomédicoconstatouqueaáguadePlachimadatinhasetornadoimprópriaparaconsumo.

Foramasmulheresqueselevantaramcontraesseabuso,começaramaacamparnosarredoresdafábricaesearticularaminternacionalmente,demonstrandoque,paraenfrentarascorporações,éprecisounirforçasentreolocaleoglobal.UmprocessomovidonaCorteSupremadeKeralaresultouemumadecisãojudicialordenandoofimdoroubodaáguapelaCoca-Cola.Nasequência,opoderpúblicodaprovíncia,pressionadopelascircunstâncias,ordenouofechamentodaplantafabril.Maisumcasoemblemáticodevitóriadascomuneirascontraoarbítriodosmercados.ComodizaDeclaraçãodePlachimada:

Aáguaéabasedavida;éodomdanatureza;pertenceatodososseresvivosnaTerra.Aáguanãoépropriedadeprivada.Éumrecursocomumparaosustentodetodos.Aáguaéodireitohumano

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fundamental.Temqueserconservada,protegidaegerenciada.Énossaobrigaçãofundamentalpreveniraescassezeapoluiçãodaágua,epreservá-laparaaspróximasgerações.Aáguanãoéumamercadoria.Devemosresistiratodasastentativascriminosasdecomercializar,privatizarecolocaraáguasobojugodeumacorporação.Somentedessaforma,podemosgarantirofundamentaleinalienáveldireitoàáguaaospovosdetodoomundo12.

DeacordocomaativistacanadenseMaudeBarlow,emseuartigoparaTheWealthofTheCommons,“acriseglobaldaáguaéomaiordesafiohumanoeecológicoqueahumanidadejáenfrentou”13.Notexto,elacompartilhadadosrealmentealarmantes,entreosquaisodequetodososdiasaindústriaeaagriculturadespejam2milhõesdetoneladasdeesgotonaságuas,mundoafora,oquecorrespondeaopesosomadodetodaapopulaçãoplanetária.Tambémafirmaqueaáguacontaminadaéamaiorresponsávelpormortesdecrianças,maisqueamalária,asguerrasouacontaminaçãoporHIV/aids.Dizqueaúnicasaídaparasuperaressacatástrofeéoreconhecimentodaáguacomoumbemcomumepropõealgumasmedidaspráticas,comoaproteçãoearestauraçãodasbaciashidrográficas;aconservaçãoeaproteçãodasfontesdeágua,dasnascentes;acoletadaáguadaschuvasetempestades;aproduçãolocalesustentáveldealimentoseleisparaimpedirapoluição.Trata-sedeumproblemadetodosnós.

AéticadascomunidadestradicionaisSeabancafinanceiranosgovernaemaliançacomumEstadocujafunção

primevaéoexercíciodaviolência(físicaesimbólica)paragarantirsegurançaaocapital;seosgovernosatuamcercandocomunsparaprovermaiscombustívelparaacaldeiradosmercados,sónosrestaagircomoenxame,inspirando-nosnaarquiteturadasredesdistribuídas,comsuaspontasinteligentessemcentroúnicodecomando.Comovimosnoiníciodestecapítulo,aquestãodoscomunssocioambientaispodeedeveserencaradaemescalaplanetária,pormeiodearranjosgeopolíticos,mas,paraquetenhamosalgumachancedevencernecessitamos,comoditoanteriormente,daemergênciadeumacidadaniatranslocal.Ouseja,umacidadaniaqueatuecomunitariamenteemseusterritórios,queteçateiasequesejaconscientedequeseusatostêmimpactoplanetário.Masondeencontrarinspiraçãoparaisso?Acreditoqueumpontode

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partidaéobservareaprendercomascomunidadesqueguardamosaberviveremharmoniacomanaturezaequedesenvolveramtecnologiasvoltadasapromoverumatransiçãoemdireçãoaocomum.

Recordo-mequando,cercadevinteanosatrás,estivepelaprimeiraveznaIlhadoCardoso,emCananeia,nolitoralsuldeSãoPaulo.Hospedei-menoMarujá,oprincipalnúcleohabitadodailha,ondevivemcercade50famílias,algoemtornode200pessoas.OquemeimpressionounoMarujáfoioníveldeorganizaçãodacomunidade.AIlhadoCardosofoitransformadaemumparquenosanos1960.Algunsmoradores,aquelesqueestavamnasáreasconsideradasdeconservaçãoabsoluta,foramexpulsosdesuasterras.NoMarujá,elesseorganizaramparapermanecer.Aolongodosanos,desenvolveramummodelodeadministraçãocomunitáriapróprio,estruturadoapartirdaculturacaiçara,portanto,baseadonocuidadocomaterraeomeioambiente.Em1993,parafixarospactoscomunitários,desenvolveramumplanodeocupaçãoparaoterritório.Quatroanosdepois,aadministraçãodoparqueestadualpropôsdesenvolverumplanejamentoparticipativoeescutarosmoradores.Pioneiros,entregaramaosadministradoresdoEstadooplanoquejáhaviasidoescritoequefoiincorporadoaooficial.

ComorelataEzequieldeOliveira,históricaliderançadacomunidadedoMarujá,emumdepoimentoparaoMuseudaPessoa,aprincipallutadoscomunitáriosdoMarujásemprefoicontraaespeculaçãoimobiliária.Eumaformaqueelesencontrarampararesistirfoiabrir-seaoturismo,masdemaneirainovadora.Diferentementedeoutrasáreaslitorâneasparadisíacasqueforaminvadidasporforasteirosembuscadeconstruircasasdeveraneio,acomunidadedoCardosodesenvolveuummodelodeturismodebasecomunitáriaqueéconsideradoexemplar.Esseprocessocomeçounosanos1990efoidesenvolvidoapartirdaaliançaentreosmoradores.Umaaliançaquebusca,atéhoje,valorizaraculturacaiçara,preservaromeioambiente,gerarrendaequanimementeparaacomunidadeegarantirapermanênciadeseumododevida.ReproduzoaquiumalongacitaçãododepoimentodeSeuEzequiel,comoeleéconhecido,porquemepareceumexemploeloquentedoqueéumaadministraçãocomunitáriaorientadaaocomum.

[...]amaioriadascasasadaptaramfizeramumquartoparaalugueleagenteposteriormentecomeçouem93,quandoimplantamosesseplanodegestãodacomunidade,umadascoisasfundamentaisquenósfizemosfoiumavisãodedistribuiçãoderenda,dereceitadoturismoparaa

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comunidadeinteira,porquejáqueelesvãochegar,vãocriarproblemasparaacomunidadeinteiranadamaisjustodoqueagranaserdistribuídanacomunidadeinteira.Agentecomeçouapegarascotasdasbarracaserepassarparatodososmoradores,criarinfraestruturasanitáriamínimaelevaronúmeroXdebarracaparaoquintaldelescomoformadedistribuirrenda.Equemtinhacincoquartosoumaisdentrodacomunidadefoiproibidodeconstruireagenteliberouparaquemnãotinhaparapoderconstruir.Eissoestávalendoatéhoje,entãofoiumpassofundamentaldopontodevistadaorganizaçãodoturismo,dasocializaçãodorecursoeparacriarumelodeunidadedacomunidade.Juntocomissoagenteestipulouumgrupo,umnúmerodesuporte:daítemtantosquartos,temtantosleitos,numerouumnúmeroXdebarracaseacabou.Sevocêquiserirlánaaltatemporada,temqueligaremoutubroparair...deixaeuveroutubro,novembro,dezembro...nomáximonocomeçodenovembroparaacharvagaláparairnoréveillon,porqueoscarasligamláantesreservam,porquetemlimiteestabelecidoeéatérígido,chegaláenãotemvaiterquevoltar.JuntocomissonósimplantamosumacoisamuitointeressantequeéumacontribuiçãodecadamoradorcomocaixadaAssociaçãoparageriracomunidade,aPrefeituranãofaznada,oEstadonãofaznada.Paranãoperderadinâmicadereivindicarnóstambémnãocruzamososbraçosesperandoqueelesfizessem,entãoagenteinventou,bolouessacontribuição.Daícadabarracaqueestánosquintaisoudonosdocampingpagaumrealpordiaecadahóspede50centavos,issovaiparaumcaixadacomunidadeparafazercoletaseletivadelixo,agendamento,pagarotelefonistadoagendamento,limpezadetrilhaenfimtodaatividadedacomunidade14.(Destaquemeu.)

EssaregiãosuldoestadodeSãoPaulo,ondeseencontraaIlhadoCardosoeoValedoRibeira,émarcadapelapresençaderemanescentesdequilombos,povosindígenas,mas,sobretudo,decaiçaras–umpovoneotradicionalformadopordescendentesdeíndioseportuguesesquehabitamacostalitorâneadosudesteedosuldoBrasil.Culturalmenteoscaiçarassão,emessência,comuneiros.Naagricultura,porexemplo,sempretrataramaterracomobemcoletivo,constituindoosroçadospormeiodacoivara(aqueimaparalimpezadosterrenos);plantandoemmutirãooupuxirão(dinâmicadetrabalhocoletivo)ecolhendoosfrutoscomamúsicaedançadofandango.Essemesmoraciocínioseaplicaaomar,consideradoumconjuntoderecursoscomuns,deondeos

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caiçarasextraempormeiodapescaseuprincipalsustento.Atualmente,tambémpraticamomanejosustentáveldeostrasemexilhões.NacomunidadedoMarujá,comovimos,ampliaramessavisãocoletivistaparaagestãocomunaldosrecursosgeradospeloturismo.Trata-sedeumaculturatransmitidapelaprática,degeraçãoparageração,pondoamãonamassanaroça,napesca,naproduçãodoartesanatoounapartilhadaspropriedadesmedicinaisdaservaseplantas.Semdúvida,oscaiçarastêmmuitoanosensinarsobrearranjosprodutivoslocaisquecriammodosdevidasustentáveis.

“Eeusemprefalo,nasminhasconversas,queocernedoserhumanoéograudesatisfaçãodeondesevive.Entãovocêpodeestarmuitosatisfeitocompoucacoisa,ounãoestarsatisfeitocomummontedecoisaesemprecorrendoatrásdonovo,doqueestánamoda.”CombasenessadeclaraçãodeSeuEzequiel,podemosdizerqueeleéumadeptopráticodaantropologiadasuficiênciadefendidaporViveirosdeCastro.Nãoàtoa,nacomunidadedoMarujáháumrigorosocontrolesobreoquepodeounãoservendidoecomprado,enenhumaalteraçãonasterrasocorresemanuênciadaassembleiacomunitária.Atensãoocasionadapelastrocasconstantescomosturistasepeloacessoaosmeiosdecomunicação(televisãoeinternet)épermanente.Principalmenteentreosmaisjovens.Afinal,asubjetividadeconsumistaestásempreàespreita,rondando,embuscadeangariarnovosadeptosparaocultodocapital.

Outracomunidadequegostariadedestacar,paraencerrarestecapítulo,éadoshorticultoresurbanos,ummovimentocrescentenasgrandescidadesdomundoequetemsidoevocadocomomodelodecomumpordiferentesautores,comoSilviaFedericiouChrisCarlsson.Aliás,Carlsson,naaberturadocapítulo“Cultivadoresdeterrenosbaldios”,deseuNowtopia,citaumtextodePatriciaHynessegundooqualcercade200milhõesdemoradoresdascidadesdomundosãoagricultoresurbanos,sendoagrandemaioriaformadapormulheres.Essemovimentofornecealimentoerendapara700milhõesdepessoas.“Seráqueétãosurpreendentequeasmulheresnegrasusemashortascomunitáriaspararemendarotecidodenossosbairrosmaispobres?”,pergunta-seHynes15.Não,nãoé.Porque,afinal,nashortascomunitáriascultivam-sealimentos,mastambémcultivam-sepessoas.Aoplantaremlegumes,verduraseervas,semagrotóxicosecommanejosustentáveldaterraedaágua,ashorticultorastrabalhampelapossívelsoberaniaalimentardoshabitantesdoplaneta.

Em2013,JoseLuisViveroPol,professordaUniversidadeCatólicadeLouvain,naBélgica,escreveuumartigoemquequestionaosistemaindustrial

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deproduçãodealimentos.Deacordocomopesquisador,alógicaprivadadaalimentação,quemaximizaolucro,enãoanutriçãoeosbenefíciosàsaúdehumana,falhounasuatarefamaisbásica:alimentaraspessoasdemaneirasustentávelevitando,porumlado,adesnutriçãoeafomee,poroutro,osobrepesoeaobesidade.Deacordocomdadosporelecitados,2,3bilhõesdepessoas,umterçodoplaneta,oupassafome(668milhõessegundoaFAO-ONUem2012)ouestáacimadopeso(1,4bilhão,sendo500milhõesdeobesos).Apesardessaprofundacrisealimentaredosesforçosdasorganizaçõesinternacionaisparacombatê-la,nãosecontestaestruturalmenteomodelodacomidacomoumbemprivado,aoqualsósetemacessocomprandonosmercadosouproduzindovocêmesmoemregimeprivativo.

Areversãodessecenáriosóserápossívelafirmandoaalimentaçãocomoumbemcomum.ViveroPolnãotemesperançadeumatransformaçãoradicalempoucotempo,masacreditaque,aomenos,devemoscomeçarapromoverasmudançasdemodogradativo.Eparaissopropõequeosativistassociaisatuemapartirdeumaperspectivamúltipladoproblema,reconhecendo:(a)aalimentaçãocomoumanecessidadehumanabásica,ouseja,umdireitoquedevesergarantidoatodososcidadãos;(b)acomidacomoumpilardanossaculturacomoprodutoreseconsumidores;(c)acomidacomoumprodutonegociávelcombaseemcomérciojustoeproduçãosustentável;(d)acomidacomoumbemcomumquedeveserpartilhadopelahumanidade.Noentenderdopesquisador,essavisãoestabeleceumcontrapontoàconcepçãomajoritáriaquevêosalimentosexclusivamentecomomercadoria.

Deumaperspectivahumana,osbenscomunssãobensessenciaisparaasobrevivênciadetodosedecadaserhumano,eosalimentos,aáguaeoarseajustamperfeitamenteaessadefinição.Ar,comidaeáguaestãodistribuídospelaTerraesãofacilmenteacessáveis.Ostrêssãolimitados,assimcomoaTerraéfinita,mastambémsãorecursosrenováveisproduzidospelanaturezaemumprocessocíclico.Alimentoseáguacostumavamestarlivrementeàdisposiçãoatéadomesticaçãodasplantaseanimais,quandoapropriedadeprivadacomeçouaexistir.Comosãoelementos-chaveparaanossasobrevivência,podemserconsideradoscomodireitoshumanosfundamentais,intimamenteligadosaomaisimportantedetodos:odireitoàvida.Nessesentido,devemsergarantidosparatodosecadaum16.

Hábonsexemplosdeorganizaçõesquerealizamprojetosparapromovera

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alimentaçãocomoumbemcomum.ACommonGoodFood,daEscócia,trabalhaapoiandocomunidadesparaqueassumamocontroletotaldesuaalimentação.Compartilhandoconhecimentoserecursos,celebramaculturadaboaalimentaçãocomoobjetivodequeaspessoasdeixemdeserapenasconsumidorasetornem-secapazesdeplantarsuaprópriacomidaegeri-lacomoumbemcomum.Em2016,emparceriacomoutrasorganizações,realizaramoFarmHackScotland,umfestivaldeinovaçãocidadãquereuniupequenosprodutoresefazendeirosparadesenvolverferramentasdepequenaescalaparacultivosustentável.Todososprojetosutilizaramlicençaslivresetiveramsuadocumentaçãocompartilhadagratuitamentenainternet.OutroexemploéaTheFoodCommondosEstadosUnidos,cujotrabalhoébaseadoemtrêspilares:(1)oincentivoàpequenaemédiaagriculturafamiliar;(2)oreestabelecimentodeumaeconomialocalparaaalimentação;(3)abuscadeoutrosmodeloseconômicosdeproduzir,distribuirevenderalimentos.Em2012,passaramadesenvolverumprotótiponacidadedeFresno,Califórnia.Aliremodelaramumantigorestauranteparafuncionarcomoumacentraldedistribuiçãodaproduçãodaagriculturaorgânicafamiliarpararestaurantesepessoas.Deumlado,facilitamoacessoaosprodutosaoschefesdecozinha,aosdistribuidoreseàsinstituiçõespúblicaseprivadase,deoutro,entregamprodutosfrescoseorgânicosnasresidências.Experiênciassemelhantesaessaestãoocorrendonamaiorpartedascidadesdomundo,inclusivenasregiõesmaispobres,ondeoprovimentodecomidasesomaàreconstruçãodotecidosocial.SilviaFedericidestacaqueashortascomunitáriasurbanasabriramcaminhoparaarurbanização,queelaconsidera“umprocessoindispensávelsequisermosmanterocontrolesobrenossaproduçãoalimentar,regeneraromeioambienteeproduzirparanossasobrevivência”17.

1JamesLovelock,AserasdeGaia:abiografiadanossaTerraviva,RiodeJaneiro:Campus,1991,p.36.2BrunoLatour,Jamaisfomosmodernos,RiodeJaneiro:Editora34,2009,p.138.3EduardoViveirosdeCastro,“Desenvolvimentoeconômicoereenvolvimentocosmopolítico:da

necessidadeextensivaàsuficiênciaintensiva”,Sopro,n.51,mai.2011.Disponívelem:<http://culturaebarbarie.org/sopro/outros/suficiencia.html>,acessoem:20abr.2018.

4“Essereembaralhamentodascartasconceituaislevou-measugeriraexpressão‘multinaturalismo’paradesignarumdostraçoscontrastativosdopensamentoameríndioemrelaçãoàscosmologias‘multiculturalistas’modernas:enquantoestasseapoiamnaimplicaçãomútuaentreunicidadedanaturezaemultiplicidadedasculturas–aprimeiragarantidapelauniversalidadeobjetivadoscorposedasubstância,asegundageradapelaparticularidadesubjetivadosespíritosedossignificados–,aconcepçãoameríndiasuporia,aocontrário,umaunidadedoespíritoeumadiversidadedoscorpos.A‘cultura’ouosujeitoseriamaquiaformadouniversal,anaturezaouoobjeto,aformadoparticular.”Idem,Metafísicascanibais,SãoPaulo:CosacNaify,2015,p.43.

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5“Vendo-noscomonãohumanos,éasimesmos–aseusrespectivoscongêneres–queosanimaiseespíritosveemcomohumanos:elessepercebemcomo(ousetornam)entesantropomorfosquandoestãoemsuasprópriascasasoualdeias,eexperimentamseuspróprioshábitosecaracterísticassobumaaparênciacultural–veemseualimentocomoalimentohumano(osjaguaresveemosanguecomocervejademilho,osurubusveemosvermesdacarnepodrecomopeixeassadoetc.),seusatributoscorporais(pelagem,plumas,garras,bicosetc.)comoadornosouinstrumentosculturais,seusistemasocialcomoorganizadodomesmomodoqueasinstituiçõeshumanas(comochefes,xamãs,festas,ritos…).”Ibidem,pp.44-5.

6“No‘tenemos’unbiencomún,‘formamosparte’delocomún,enlamedidaqueformamospartedeunecosistema,deunconjuntoderelacionesenunentornourbanoorural,yportantoelsujetoformapartedelobjeto.Losbienescomunesestáninseparablementeunidosyunenalaspersonas,lascomunidadesyalpropioecosistema.”JoanSubirats,“Algunosapuntessobrelarelaciónentrelosbienescomunesylaeconomíasocialysolidaria”,OtraEconomía,v.5,n.9,pp.195-204,jul.-dez.2011.

7Cf.SusanBuck,TheGlobalCommons:AnIntroduction,Washington,D.C.;Covelo,Cal.:IslandPress,1998.8Cf.OttmarEdenhofer;ChristianFlachsland;BernhardLorentz,“TheAtmosphereasaGlobal

Commons”,in:DavidBollier;SilkeHelfrich(orgs.),TheWealthoftheCommons:AWorldbeyondMarket&State,Amherst,MA:LevellersPress,2012.Disponívelem:<http://wealthofthecommons.org/essay/atmosphere-global-commons>,acessoem:20abr.2018.

9DavidBollier;BurnsWeston,GreenGovernance:EcologicalSurvival,HumanRights,andtheLawoftheCommons,Cambridge:CambridgeUniversityPress,2013.

10Cf.JulianSpector,“Whydatafarmsareheadingunderwater”,Citylab,2fev.2016.Disponívelem:<https://www.citylab.com/life/2016/02/microsoft-cloud-ocean-project-natick/459318/>,acessoem:20abr.2018.

11“Strugglesofwaterdemocracyagainstcorporategiantsthusalsobecamestrugglesagainstcentralizingstates.Withoutcentralizedstatecontrol,privatizationisnotpossible.Themarketrulesthroughcoercive,anti-people,undemocraticstates.ThatiswhyEarthDemocracy,andoneofitsfacets,waterdemocracy,issimultaneouslyadeepeningofdemocracyandadefenseofgenuinelydemocraticstructures.Itissimultaneouslyaprocessofreclaimingthecommonsandcommunityrightsanddefendingcommonpublicgoodsandpublicservices.”VandanaShiva,“ResistingWaterPrivatisation,BuildingWaterDemocracy”,WorldWaterForum,CidadedoMéxico,mar.2006,p.2.Disponívelem:<http://www.globalternative.org/downloads/shiva-water.pdf>,acessoem:20abr.2018.

12Cf.VandanaShiva,op.cit.,p.5.13“Theglobalwatercrisisisthegreatestecologicalandhumanthreathumanityhaseverfaced.”Maude

Barlow,“WaterasaCommons:OnlyFundamentalChangeCanSaveUs”,in:DavidBollier;SilkeHelfrich(orgs.),op.cit.Disponívelem:<http://wealthofthecommons.org/essay/water-commons-only-fundamental-change-can-save-us>,acessoem:20abr.2018.

14DepoimentodeEzequieldeOliveiraaoMuseudaPessoa.Disponívelem:<http://www.museudapessoa.net/pt/conteudo/pessoa/ezequiel-de-oliveira-24375>,acessoem:19mar.2018.

15ChrisCarlsson,Nowtopia:iniciativasqueestãoconstruindoofuturohoje,PortoAlegre:TomoEditorial,2014,p.109.

16“Fromahumanperspective,thecommonsarethosegoodsessentialforthesurvivalofeachandeveryhumanbeingandfood,waterandairperfectlyfitthatdefinition.Air,foodandwaterarewidespreadonEarthandeasilyavailable.Thethreeessentialsarelimited,asEarthisfinite,butrenewableresourcesandtheyareproducedbynatureinacyclicalprocess.Foodandwaterusedtobefreelyavailableuntilthedomesticationofcropsandlivestock,whenpropertyrightsbegantobeestablished.

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Astheyarekeyelementsforoursurvivaltheycanbeconsideredasfundamentalhumanrights,closelylinkedtothemostfundamentalone:therighttolife.Inthatsense,theyshouldbeguaranteedtoeachandeveryone.”JoseLuisViveroPol,“FoodasaCommons:ReframingtheNarrativeoftheFoodSystem”,23abr.2013.Disponívelem:<https://ssrn.com/abstract=2255447>,acessoem:20abr.2018.

17SilviaFederici,op.cit.,p.149.

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AOS26ANOS,AARONSWARTZeraumareferênciaparaosativistasdoconhecimentolivre.Garotoprodígio,aindaquandoadolescente

trabalhounodesenvolvimentodocódigodatecnologiaRSS(ReallySimpleSyndication),semoqualnãoexistiriaaweb2.0,efoiumdoscriadoresdomodelodaslicençasCreativeCommons,bemcomodeseumodelodeimplantaçãoonline.Estevesempreenvolvidoemprojetosdereconhecimentointernacional:foiumdossóciosdaplataformademídiasocialReddit;contribuiuparaaWikipedia,paraocódigodoInternetArchive,paraodesenvolvimentodosistemadecriptografiaTOR,entreinúmerasoutrasiniciativas.De2010a2012intensificouseuativismopolítico,tendosidoumadasliderançascontraoprojetodeleiS.O.P.A(StopOnlinePiracyAct),quepoderiaculminarcomadestruiçãodainternetcomoaconhecemos.Emumadesuasaçõeshacktivistas,Swartz,quesetornaraalunodaUniversidadedeHarvard,usouarededoMITparabaixararquivosdaplataformaproprietáriadeconhecimentocientíficoJSTOR.Suaaçãofoidescoberta,eelesofreuumprocessodesproporcionalmovidopeloDepartamentodeJustiçanorte-americanoporfraudecomputacional.Lutoucontraaperseguição,masnodia13dejaneirode2013,pressionadopelascircunstâncias,foiencontradomortoemsuacasa.

Swartzéummártirdoconhecimentolivre.Esuahistória,quepodesermaisbemconhecidapormeiododocumentárioOmeninodainternet1,umademonstraçãodequeocomumatingiuocentrodadisputasobreofuturodahumanidade.QuandoacoplouumdispositivoàrededoMITparafazerodownloaddabasededadosdaJSTOR,oqueSwartzqueriaeraevidenciaralógicaperniciosadosistemaproprietáriodedivulgaçãocientífica,quesubmeteoscientistaseopúblicoaopagamentodevaloresabusivosparaacessarosdocumentos(papers)queacomunidadedaciênciaproduz.Entre1986e2004,comoinformaBollier,“aseditorasderevistasacadêmicasaumentaramastarifasparaasuniversidadesestadunidenses273%”2.NoGuerillaOpenAccessManifesto,escritonaItália,em2008,Swartzchamouessesistemadepagamentoobrigatóriode“escandalosoeinaceitável”porgerarumregimedesigualdeacessoàinformação,garantindoqueasbibliotecasdigitalizadasestejamàdisposiçãodaelitedoPrimeiroMundo,masnãodascriançasdoSulglobal.

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Informaçãoépoder.Mas,comotodopoder,háaquelesquequeremmantê-loparasimesmos.Aherançainteiradomundocientíficoecultural,publicadaaolongodosséculosemlivroserevistas,écadavezmaisdigitalizadaetrancadaporumpunhadodecorporaçõesprivadas.Querlerosjornaisapresentandoosresultadosmaisfamososdasciências?VocêvaiprecisarenviarenormesquantiasparaeditorascomoaReedElsevier3.

Notexto,Swartznosconvocaaocontra-ataque,pormeiodadesobediênciaciviledaafirmaçãodequeumaleiinjustanãodeveserrespeitada,filiando-seàlongatradiçãolibertáriaestadunidensequetemnopensadordoséculoXIVHenryDavidThoreauseugrandeinspirador.

Aquelescomacessoaessesrecursos–estudantes,bibliotecários,cientistas–avocêsfoidadoumprivilégio.Vocêscomeçamasealimentarnessebanquetedeconhecimento,enquantoorestodomundoestábloqueado.Masvocêsnãoprecisam–naverdade,moralmente,nãopodem–manteresteprivilégioparavocêsmesmos.Vocêstêmumdeverdecompartilharissocomomundo.Evocêstêmquenegociarsenhascomcolegas,preencherpedidosdedownloadparaamigos.Enquantoisso,aquelesqueforambloqueadosnãoestãoempédebraçoscruzados.Vocêsvêmseesgueirandoatravésdeburacoseescalandocercas,libertandoasinformaçõestrancadaspeloseditoreseascompartilhandocomseusamigos.Mastodaessaaçãosepassanoescuro,numescondidosubsolo.Échamadaderoubooupirataria,comosecompartilharumariquezadeconhecimentosfosseoequivalentemoralasaquearumnavioeassassinarsuatripulação.Mascompartilharnãoéimoral–éumimperativomoral.Apenasaquelescegospelaganânciairiamnegaradeixarumamigofazerumacópia.(…)Precisamoslevarinformação,ondequerqueelaestejaarmazenada,fazernossascópiasecompartilhá-lacomomundo.Precisamoslevarmaterialqueestáprotegidopordireitosautoraiseadicioná-loaoarquivo.Precisamoscomprarbancosdedadossecretosecolocá-losnaWeb.Precisamosbaixarrevistascientíficasesubi-laspararedesdecompartilhamentodearquivos.PrecisamoslutarpelaGuerillaOpenAccess4.

AoposiçãoradicalàprivatizaçãodoconhecimentocolocouSwartznamiradasautoridadesdosEstadosUnidos.Seucasofoiusadocomoexemplopela

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justiça.Suamorte,noentanto,nãoseráemvão.Areaçãoconvocadaporelenomanifestoqueescreveuaos21anossegueavançando,porintermédiodomovimentopeloAcessoAberto(OpenAccess–OA).Afinal,comonosexplicamHardteNegri,ocapitalismosetransformou,easrestriçõesàcirculaçãodoconhecimentotornaram-seartificiais.Nemomaisaltodosdiquesconseguiráconterodilúvio.Aespiralviral,parausarumtermocunhadoporBollier,aindainocularásuabenéficamedicinanocoraçãodosistema.

Éimportanteentenderque,dopontodevistadocomum,anarrativa-padrãodaliberdadeeconômicaestácompletamenteinvertida.Segundoessanarrativa,apropriedadeprivadaéolugardaliberdade(assimcomodaeficiência,dadisciplinaedainovação),posicionando-secontraocontrolepúblico.Agora,pelocontrário,ocomuméolugardaliberdadeedainovação–livreacesso,livreuso,livreexpressão,livreinteração–queseposicionacontraocontroleprivado,ouseja,ocontroleexercidopelapropriedadeprivada,suasestruturasjurídicasesuasforçasdemercado.Nessecontexto,aliberdadesópodeseraliberdadedocomum5.

Doacessoabertoàciênciaaberta.Noprimeirosemestrede2016,sobpresidênciadaHolanda,aUniãoEuropeiapromoveuumasériedeaçõesparamudaromodelodedivulgaçãocientíficadocontinenteeadotaroacessoaberto6.DuranteaOpenScienceConference,emAmsterdã,líderesdoblocoanunciaramacriaçãodeumanuvem(EuropeanOpenScienceCloud)paracompartilhamentodeconhecimentocientífico.Ametaéque1,7milhãodepesquisadores/cientistase70milhõesdeprofissionaisdaciênciaetecnologiapossamarmazenar,compartilharereutilizarinformaçõesnesseambiente.Ofundamentaldesseepisódio,porém,nãoésomenteaplataformaemsi,masaobrigatoriedadeestabelecidadequetodososprojetosdoHorizon2020(omaiorprogramaeuropeudefomentoàpesquisaeàinovação,cominvestimentosde80bilhõesdeeuros)tenhamdesercompartilhadoslivremente.

ComolançamentododocumentoAmsterdamCallforActiononOpenScience,aUEpareceterefetivamenteadotadoomodelodeciênciaabertaparatodasaspublicaçõesepesquisas,oferecendoacessointegralatodososdocumentoscientíficosproduzidosnocontinente.Aestratégia,segundoaversãooficial,envolvetrêsprioridadesparaaáreadeciênciaeinovação:inovaçãoaberta,ciênciaabertaeaberturaparaomundo.EmdeclaraçãooficialregistradapeloTheGuardian,oportuguêsCarlosMoedas,comissárioeuropeu,dissequetodosos

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documentoscientíficospublicadosnaEuropadevemserdelivreacessoaté20207.Nãosetratadeumalei,masdeumaorientação.Umadecisãocomoessa,porém,podemudartodooecossistemacientíficoglobal,impulsionandooutrasinstituiçõesaadotaromesmomodelo.

AEuropaestáembuscadeevitaroqueoprofessordedireitoMichaelHellerchamoudetragédiadosanticomuns.Basicamente,atesedeHelleréadequeoecossistemadepatentessecomplexificoudetalmaneiraapontodegerarumafragmentaçãododireitodepropriedade,oquetemresultadonaimpossibilidadedequeospesquisadoresacessemosdetentoresdosdireitosparaobterautorizaçãoparaautilizaçãodeumdeterminadoconhecimentopatenteado.Aprivatizaçãodoconhecimento,noentanto,vemsendocombatidahámuitosanos,porváriosatores.UmcasodeenormesucessoequenãopoderiafaltarnestecapítuloéodaplataformaPLOS,quefoilançadaem2001peloprêmioNobelHaroldVarmus,oprofessordeStanfordPatrickO.BrowneoprofessordaUniversidadedaCalifórniaMichaelEisen.APLOSfoipioneiranacriaçãoderevistascientíficasgratuitas,baseadasemlicençasabertas.Aorganizaçãoatuaprincipalmentenaáreadeciênciasbiomédicas,esuasrevistasganharamenormereputaçãoaolongodosanos.Emummanifestopublicadoem2001,seuscriadoresdiziamacreditarque“oregistropermanenteeoarquivodepesquisaseideiascientíficasnãodevemserdepropriedadedeeditores,nemcontroladoporeles,masdevepertenceraopúblicoeestardisponívellivrementeatravésdeumabibliotecapúblicaonlineinternacional”8.NoBrasil,doisexemplosvitoriosossãoodoPortaldeRevistasdaUniversidadedeSãoPaulo,queem2014reunia129periódicosquepermitiram5,7milhõesdedownloadsdetextos,eoprojetodebancodetesesedissertaçõesdoInstitutoBrasileirodeInformaçãoemCiênciaeTecnologia(Ibict).EmborapublicaçõescomoScienceeNature,extremamenterelevantes,masconstruídassobreumimpérioproprietário,aindasejamreferêncianosistemacientíficoglobal,asalternativasdeacessoabertosemostramcadavezmaisrelevantes,realizandoassimosonhodeSwartzdevivermosemumaterradeliberdade.

Memória,ancestralidadeeoralidadeAlgunsanosatrás,umaconversacomoartistaAlfredoBello,também

conhecidocomoDJTudo,despertou-meparaalgoóbvio,masnemsempreevidente.Bellotemumselomusicalindependente,chamadoMundoMelhor,eaolongodosúltimosvinteanosvemfazendoumtrabalhodeinventariargêneros

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eritmosdaculturapopular.ComoopoetamodernistaMáriodeAndradefeznoiníciodoséculoXX,elerealizamissõesparaointeriordopaísmunidodecâmerasegravadores,registrandoatradiçãooralbrasileira,comoomaracatururaldeCruzeirodoForte,deRecife,ocongadodeMogidasCruzes,SãoPaulo,ouumabandadepife–umaflautapopular–doagrestepernambucano.Asmúsicascolhidaslheinspiramnovascomposições,nasquaiselefundeasonoridadeancestralcomgroovescontemporâneos.

Naquelepapo,consequênciadastransformaçõesocasionadaspelainternet,eufalavasobredireitosautorais,licençaslivres,músicalivreeanecessidadedeummodelojurídicoeeconômicoquepudessegarantirosdireitosdosartistasedopúblicoaomesmotempo.Bello,então,mecontestounarrandoumdiálogoqueteve–seminhamemórianãofalha–comummestredemaracatu.Eleteriapedidopermissãoparausarumtrechodamúsicadoartistapopularemumanovacomposiçãoeouviucomorespostaqueapermissãonãolhepoderiaserconcedidaporqueamúsicanãotinhadono,eradetodosospovos,portantodeletambém.AúnicaexigênciadomestreaoDJfoiquefizesseosomchegaramaisemaispessoas,eessaéumadaspremissasdeseutrabalho.Bello,então,alertou-meparaofatodequegrandepartedaartepopularcontinuaforadequalquersistemaocidentaldedocumentaçãoereproduçãoe,porisso,estáforadodomíniododireitoedaeconomia.O“óbviopoucoevidente”aquemereferiaacimaéqueaartepopularédetodosedeninguém.Évividaentretodos.Éummanancialinfinitodegenerosidadeeconexãoentreossereshumanos.Nãopertenceagovernos.Muitomenosaomercado.Pertenceaoconhecimentoimemorialqueatravessaotempoeoespaço.Éumcomum,queseexpressanãosomentecomocantooubatuque,mascomodança,moda,hábitos,quesãoaomesmotempotecidoediscursodascomunidadesemconexãocomsuasterras–sejaosertão,aflorestaouapraia.Adiversidadecultural,nessesentido,étambémdiversidadenatural.Formassingularesdevida,comodizoantropólogoEduardoViveirosdeCastro.

Memória,ancestralidadeeoralidadesãobenscomuns.Masalinguagemescrita–esseinventode5milanos–tambéméumbemcomum,comoafirmamHardteNegri.

E,noentanto,tantacoisaemnossomundoécomum,delivreacessoatodosedesenvolvidaatravésdeparticipaçãoativa.Alinguagem,porexemplo,comoosafetoseosgestos,équasesemprecomum;comefeito,sealinguagemsetornasseprivadaoupública–valedizer,segrande

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partedenossaspalavras,frasesouenunciadosfossesubmetidaàpropriedadeprivadaouàautoridadepública–,alinguagemperderiaseupoderdeexpressão,criatividadeecomunicação9.

CitoadupladefilósofoselogopensonoescritorargentinoJorgeLuisBorges.EmespecíficonaentrevistaqueeleconcedeuaFernandoSorrentinonaqualdizserum“errosuporqueoscontospopulares,porseremanônimos,nãotenhamsidoelaborados[…].PodemosdizerqueumcontopopularéumaobramuitomaistrabalhadadoqueumpoemadeDonneouGóngora,porqueaoinvésdesertrabalhadaporumapessoa,foiporcentenas”10.ExtrapolandoBorges,podemosdizerquealiteraturaemsuaorigeméumbemcomumeoautorésóumdetalhe.Outrosalto.NãodeixadesercuriosopensarqueaslicençasdedireitosautoraisflexíveisCreativeCommons–comonarradonoprimeirocapítulodestelivro–surgiramcomoreaçãoaumareformadalegislaçãodepropriedadeintelectualquebuscouestenderotempodeproteçãodas“criações”daWaltDisney.Justamentedessaempresadeentretenimentocujotrabalhoprincipalfoipromoverocercamentodaculturapopularedoscontospopulares–comoBrancadeNeve,Cinderela,ABelaeaFera.Históriasdecriaçãocoletivaquesealimentaramlivrementedaimaginaçãohumanaeforamtransformadasemprodutosculturaisaltamenterentáveis.VoltoaBollier,éprecisodizercomtodasasletras:“oscercamentosnãosãosóapropriaçõesderecursos,mastambémataquescontrasascomunidadesesuaspráticasdecriaçãodecomum”11.

Afirmaracultura–coletivaeancestral,obrademuitasmentesemãos,oralouescrita–comoumcomumétarefaurgente.Masapreservaçãodessepatrimônionãosedarápormeiodaconstruçãoderedomasprotetorascontraastrocascomocontemporâneo.Estamostodasetodosdentrodarede,inclusiveíndios,quilombolaseribeirinhos.Oúnicocaminhopossívelépromoveraaproximaçãodaculturapopularcomastecnologiasdigitaislivres.

“Emmeioàinsanidade,hásementesdeumnovomundoquecresce,pedaçosemergentesdeumanovariquezacomum,baseadaemtecnologiasredesenhadasecologicamente,querevitalizamascomunidadeshumanaseasconexõesentreavidahumanaeosprocessosnaturais”,observaCarlsson12.ÉissoqueestãofazendoosativistascriadoresdoprojetoBaobáxia,umaplataformadistribuídadecomunicaçãoquefuncionaonlineeofflineefoipensadaparaoperaremcomunidadesruraiscomnenhumaoupoucainternet,emespecíficonosquilombos.Onomedessaredeéumacontraçãodaspalavras

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baobáegaláxia.Baobáéumaárvoredeorigemafricanaque,porvivermuitotempo,éumsímbolodaancestralidadeecostumarepresentarolugardamemória.Nessametáfora,aárvoremilenarseconectaàsestrelasproduzindoumaredetranscendente.AarquiteturadoBaobáxiaéfeitadenós(múcua–ofrutodobaobá)baseadosemcomputadoresconectadosnacomunidade,usadosparafazerouploaddaproduçãoculturallocal(áudio,vídeo,textoeimagens),criandoumacervodigitalmultimídia.Osarquivosqueseencontramemcadaumadasmúcuaspodesersincronizadocomoutrasdeigualcaracterística,eissopodeocorrerdeformaonline–pelainternet–ouoffline.Nocasodaconexãooffline,elaéfeitaporpessoasquecirculampelascomunidades,polinizandoumasàsoutras.Oobjetivodessaaçãoéqueasmemóriassejampartilhadasequeosnóspossamviraguardartodooconhecimentodistribuídoproduzidopelosdiferentespovosqueintegramarede.

OprojetodaBaobáxiafoicriadopelaRedeMocambos,queconectaosterritóriosquilombolasàsredesdigitais.AMocambossurgiuefoiestimuladapeloprogramaCulturaViva,criadopeloMinistériodaCulturadoBrasilem2004,quetinhacomoprincipalaçãoosPontosdeCultura.Esseprogramafoiformuladocombasenoprincípiodeque,emboraindutordosprocessosculturais,oEstadonãoéoagenteresponsávelpor“fazercultura”.Cabeaele,emúltimainstância,criarcondiçõesemecanismosparaqueseuscidadãosnãoapenasacessembenssimbólicos,comotambémproduzameveiculemseusprópriosbensculturais,movimentandoseucontextolocalcomosujeitosativosdessesprocessos.Podemosdizerqueoespíritodoprogramaerareconhecer,protegereestimularocomum,emboraissonãoestivesseenunciadodessamaneira.

Naprática,eraumeditalpúblico,umachamadanacionaldirigidaaorganizaçõesdasociedadecivil.Asexigênciasdogovernoeramqueaorganizaçãotivessepelomenosdoisanosdeexistência,comhistóricocomprovadonaáreadacultura,eestivesselocalizadaemáreascompoucaofertadeserviçospúblicos,envolvendopopulaçõespobresouemsituaçãodevulnerabilidadesocial.Suagrandenovidade,quandosurgiu,erasuperardeumavezportodasaideiade“levar”culturaàperiferia,passandoareconhecerosatoresculturaisexistentescomoprotagonistasdeseusterritórios.AsorganizaçõesvencedoraspassavamaserchamadasdePontosdeCulturaerecebiamR$5milportrêsanospararealizarumplanodeaçãoqueelasmesmaspropunham.Emseuinício,oprogramapreviaqueemcadaPontodeCulturahouvesseumestúdiodigitalmultimídia,comcomputadoresconectadosàinterneteequipados

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comsoftwarelivre,alémdeequipamentosparacaptaçãoeediçãodeáudioevídeo–câmera,filmadora,mesadesometc.

NoperíododeGilbertoGil,JucaFerreiraeCélioTurinonoMinistériodaCultura(2003-2010),oprogramacontemploucercade3miliniciativas.Éconsideradopormuitospesquisadoreseanalistasomaiorprojetomundialpúblicodeculturalivre.Atualmente,éreguladoporumaleifederaleviroureferênciaparapolíticaspúblicasdeestadosemunicípiosdoBrasiledaAméricaLatina.MastalvezseuprincipallegadotenhasidoaconformaçãodarededeCulturaVivaComunitária,umaarticulaçãopolítico-culturaltranslocaldecoletivosepessoasqueatuamcomunitariamenteafirmandoaculturaesuasmanifestaçõescomoumbemuniversal.ComoobservaocolombianoJorgeMelguizo,noartigo“CulturaVivaComunitaria:convivenciaparaelbiencomún”,onortedessaarticulaçãoéaconstruçãodobemcomum.Elefazessaafirmaçãocombasenadeclaraçãofinaldo1°CongressoLatino-americanodeCulturaVivaComunitária,realizadoemLaPaz,naBolívia,em2013:“Aculturavivacomunitáriasópodeserentendidacomopartedeprocessosintegraisdecuidadodenossosbenscomuns,deeconomiasolidária,deigualdadenadistribuiçãodariquezaenaconstruçãodedemocraciasdeliberativas,participativasecomunitárias”13.

Algunsdessesexemplos,recolhidosdaexperiênciabrasileiraelatino-americana,sãorelativamenterecentes.MascomonoslembraLewisHyde,emseulivroCommonasAir,aideiadetrataraculturaeoconhecimentocomoumcomumémuitoantiga.Elerecordaqueofilósofopré-socráticoHeráclito,dedoismilêniosemeioatrás,defendiaque“oconhecimentoécomumatodos”;tambémevocaumpersonagemdopoemamedievalinglêsdeWilliamLanglandqueafirmaqueoconhecimento,comoaágua,oareofogo,foidadopeloPaidoCéuparasercompartilhadoemcomum;e,porfim,citaumacartadofundadordademocraciaamericana,ThomasJefferson,quedurantesuapresidênciaescreveu:“ocampodoconhecimentoéapropriedadecomumdahumanidade”.Emseulivro,HydededicaumcapítuloparadefenderqueessavisãodeJeffersonéumelementoessencialdademocraciaamericana.Segundoele,quandooassuntodos“paisfundadores”eraacirculaçãodoconhecimento,trêsaspectosdestacavam-secomoosmaisimportantes:“prepararoterrenoparaoautogovernodemocrático;encorajarcomunidadescriativas;epossibilitaraoscidadãossetornarematorespúblicos,simultaneamentecívicosecriativos”14.

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ArteeinovaçãocidadãparaocomumOCascoéumcentroculturallocalizadoemUtrecht,naHolanda,que

depoisde25anosdeatividadesartísticasresolveuseassumircomoumaorganizaçãoquetrabalhaparaocomum.Em2014elesiniciaramumprocessodereformulaçãosobonomede“CompondoosComuns”,quecontoucomváriosexperimentosartísticoseinvestigativos(exposições,residências,debates,publicações,reuniões).Emmaiode2017,umaexposiçãoemsuasede,reunindovídeos,painéiseexcertosdasconversasqueocorreramduranteostrêsanosdepesquisa,celebrouatransformaçãodoantigoCasco–EscritóriodeArte,DesigneTeoriaemInstitutodeArteCasco:TrabalhandoparaosComuns.Umprojetoabertodedesaprendizagemereaprendizagem,queresultou,porexemplo,emmudançasnadinâmicadecuidadocomoespaço.Entreasmedidasadotadasedocumentadas,osmembrosdoCascopassaramalimparelesmesmos,todasassegundas-feiras,oescritório,colocandoemevidênciaolugardotrabalhoreprodutivoemumacomunidadequepretendeexperienciaroutrasformasdeviverecriar.Paraeles,afinal,praticarocomumémaisdoquegerirumconjuntoderecursosemcomunidade.Trata-sedeadotarumoutrosistemadevaloresedegovernança,edeassumiradefesaderelaçõescontra-hegemônicas.

InspiradosnostextosdateóricaSilviaFederici,dacantoraecompositoraNinaSimoneedaintelectualefeministanegrabellhooks,criaramumanovapersonagem,NinaBellFederici,quesetornoua“padroeira”desseprocessodeimaginaçãoradical.Otrabalhodonovoinstitutosebaseiaemtrêspilares:ação(experimentosartísticosparaamudançasocial),corpo(mobilizarforçasorganizacionaisinvisíveis)eKirakira(espaçodeimaginaçãoradical).Essasdimensõessubstituemaspráticastradicionaisdecentrosculturais(exposição,educaçãoepublicação)eapontamparaumfuturoexperimental.ComonosrelataaativistaGeorgiaNicolau,emtextoparaoblogdoInstitutoProcomum15,naexposiçãode“reinauguração”dasede,documentosorganizacionaiscomoatasdereuniões,orçamentos,cronogramaselistasdetarefasproduzidosduranteafasedetransiçãoforaminspiraçãoparaartistascriaremcolagens,painéiseinstalações.

Nosúltimosanos,tenhoacompanhadoaemergênciadeumasériedeiniciativasdearte,ciênciaetecnologiaqueoptaramportrabalharpelaafirmação,preservaçãoeinvençãodoscomuns.Nãopretendoaquicatalogaressasiniciativas,masdestacarquenelasresideumprojetoinovadordeconstruçãosocialcontemporânea.Maisqueanalisá-las,acreditoqueomomento

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édedescrevê-las.OcasodoCascoéemblemáticoporsetratardeumcentroculturalcomumquartodeséculodeexistênciaquepropôsreadaptar-seemmovimentoedesenvolveuumaamplapesquisaparaisso,comunicando-adeformaradicalmentetransparente.EmSaragoça,naEspanha,temosocasodeLaColaboradora,umespaçopúblicocomunaldetrabalhocoletivo(coworking)que,pormeiodousodeumamoedadetempo,organizaosistemadepartilhadesuacomunidade;emMedellín,naColômbia,oExploratório,localizadodentrodoParqueExplora,éumhíbridodeateliêdeproduçãocolaborativaeambientedistribuídodeformaçãoquefomentaaculturalivre;naSerrinhadoAlambari,zonaruraldoestadodoRiodeJaneiro,aartistaepesquisadoraCinthiaMendonçaarticulaumaestaçãoruraldearteetecnologiaquevemtrabalhandoemprojetossocioambientaisenavalorizaçãodoprotagonismofeminino(EncontrADA).

Muitosdessesprojetosseidentificamcomoconceitodelaboratórioscidadãos.Umfenômenodecertamaneiraindefinível(porqueexistemmuitasexperiênciasdísparesqueseposicionamdebaixodesseguarda-chuva),masqueécriadoencontroentreaciênciacidadãeaculturalivre.Nesseslaboratórios,comoafirmamAntonioLafuente,HenriqueParraeMarianoFressolinoartigoqueabreumdossiêsobreessatemáticapublicadopelarevistaLiinc,doIbict,mobiliza-sea“imensaquantidadedeconhecimento”necessáriaparasustentarocomum.Assim,semprequehouverumbemcomumemconstrução,haveránecessidadedeumlaboratóriocidadão.Aofimeaocabo,constituem-secomoespaçosde“convivialidade”,ondepodemosaprendera“viverjuntos,deformaaberta,sustentável,democráticaeautogestionária[...].Seotradicionallaboratórioacadêmicoéumambientecomrígidasfronteirascomomundoexterior,olaboratóriocidadãoémarcadopeloatravessamentodemundosepeloesforçodepermanenteabertura.Éumespaço-tempoondeaexperiênciasejapossível,eondeaproduçãodeconhecimentoseenriqueçacomassingularidadesenvolvidas”16.

Emminhaconcepção,esseslaboratóriospodemserdefinidoscomoumarededepessoas,iniciativaseinfraestruturas,articuladasparaaproduçãodebenscomuns,emumdeterminadoterritório.Umarededearteeciênciaquepermiteodesenvolvimentodeumprojetoestratégiconoqualacidadaniasereúneparagerarconhecimentosúteisàhumanidade,formatandoumnovo“processosocialdeconvencimento”quefazdainovaçãocidadãumdiscursotãopotentequantoaquelequeoslaboratóriosprivados,públicosouuniversitáriosoferecemàsociedade.Seolaboratóriohegemônicoéolaboratórioquefabricao

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conhecimentoquedepoisseráformatadoempatenteseinovaçõesaserviçodasgrandesempresas,olaboratóriocidadãoéolaboratórioqueproduzalternativasparaacriaçãodenovasformasdeviver,ouseja,umambiente-rededecriatividadecontra-hegemônica,queatépoderiaservistocomoumaespéciedecontralaboratório.Afinal,oqueestáemdisputa,nestadiscussão,éondeecomoseproduzaverdade.Nãosetratadeformaalgumadenegaroconhecimentotradicional,masdeincorporaramultiplicidadedevisõesproduzidaspormulheres,negros,indígenas,gays,lésbicas,transexuaisedeficientes.Asvozesquenojargãodasociedadecivilreconhecemoscomosub-representadas:amaioriadoshabitantesdoplaneta.

Encerroestecapítulo,então,comumúltimoexemplo,odosLaboratóriosdeInovaçãoCidadã(Labic),promovidospelaSecretariaGeralIbero-Americana(Segib).BaseadosemumametodologiadesenvolvidapeloMediaLab-Prado,daEspanha,aperfeiçoadapelaequipedeinovaçãocidadãdesseorganismomultilateral,oLabicseconstróiapartirdeduasconvocatóriasinternacionais:aprimeiradedicadaaselecionardezpropostasdeprotótipos,osquaisterãodeserdesenvolvidosemduassemanasdeimersão;asegundadestinadaaescolherdezcolaboradoresparacadaumdessesprojetos-protótipos,oqueéfeitopelaequipeorganizadoraepelospromotores.Oresultadoéaformaçãodeequipesinterdisciplinareseheterogêneasdetrabalho,queintegramumacomunidadecriativatransnacionaldemaisdecempessoas.NosmesesqueantecedemoLabic,essasequipestrabalhamremotamente,atéquetodossereúnemnaetapapresencialparaviverumagrandeaventurabaseadanacooperação,nacolaboração,nacriaçãocoletivaeemtrocasintensasdeconhecimento.AequipedeapoiodoLabicéformadaporumacoordenaçãogeral,quatromentores(queatuamemparceriacomasequipesdosprojetos),mediadorestecnológicosemediadorescomunitários(quefazemainterfacecomoterritóriolocal).Umadascontribuiçõesdessametodologiadeciênciaeinovaçãocidadãécolocaremcontatodiferentespessoas,comdiferentesconhecimentos,emtornodeproblemascomuns.Nãoé,obviamente,ummétodoúnico.Masfunciona.Oquenãoépouco.ViviaexperiênciadesermentordedoisLabicse,emminhaopinião,omaisinteressanteéveratravessiaentreopontodepartidadoprojetoeoseuresultadofinal.Oriscosemprerondaoprocesso.Porisso,emumlaboratóriocidadãoadocumentaçãoémuitoimportante.Espera-sequenelesejamproduzidosprotótipos,depreferênciaquepossamcontinuaremdesenvolvimentoaofimdosquinzedias.Mastambémseesperaqueoprojetoconteumahistória,primordialmenteahistóriadecomoessatecnologia

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desenvolvidapoderesolverproblemascontemporâneos.UmLabic,afinal,nãoésomenteumespaçodecriaçãotecnológica,masdegeraçãodeconhecimentolivreedeafirmaçãodocomum.

1Disponívelem:<https://www.youtube.com/watch?v=uAe_9qBxwOc>,acessoem:13mar.2018.2DavidBollier,op.cit.,p.120.3AaronSwartz,GuerillaOpenAccessManifesto,traduçãodisponívelem:<http://baixacultura.org/aaron-

swartz-e-o-manifesto-da-guerrilla-open-access/>,acessoem:20abr.2018.4Ibidem.5MichaelHardt;AntonioNegri,Bem-estarcomum,op.cit.,p.312.6Estamosfalandodapráticadeproveroacessogratuitoeonlineparainformaçõescientíficasquepodem

serreutilizadas.Háduasgrandescategorias:peer-reviewedscientificpublications,pesquisaseartigospublicadosemperiódicosacadêmicoserevisadospelospares;scientificresearchdata,informaçõesepesquisasqueaindanãoforampublicadas,consolidadas,ouseja,omaterialbrutodaspesquisascientíficas.

7Disponívelem:<https://www.theguardian.com/science/2016/may/28/eu-ministers-2020-target-free-access-scientific-papers>,acessoem:20abr.2018.

8“Webelieve,however,thatthepermanent,archivalrecordofscientificresearchandideasshouldneitherbeownednorcontrolledbypublishers,butshouldbelongtothepublic,andshouldbefreelyavailablethroughaninternationalonlinepubliclibrary.”PLOSOpenLetter,set.2001.Disponívelem:<https://www.plos.org/open-letter>,acessoem:15maio2018.

9MichaelHardt;AntonioNegri,Bem-estarcomum,op.cit.,p.9.10JorgeLuisBorgesapudFernandoSorrentino(org.),JorgeLuisBorges:seteconversascomFernandoSorrentino,

RiodeJaneiro:Azougue,2009,p.22.11DavidBollier,op.cit.,p.46.12ChrisCarlsson,op.cit.,p.28.13Disponívelem:<https://www.scribd.com/document/147877286/Conclusiones-Final-4>,acessoem:

20abr.2018.14“...layingthegroundfordemocraticself-governance,encouragingcreativecommunity,andenabling

citizenstobecomepublicactors,bothcivicandcreative”.LewisHyde,CommonasAir:Revolution,Art,andOwnership,NovaYork:Farrar,Straus&Giroux,2010,p.77.

15Cf.GeorgiaNicolau,“Estética,imaginaçãoeexperimentação:aarteécomum(DossiêIASC2017)”,InstitutoProcomum.Disponívelem:<http://www.procomum.org/2017/08/04/estetica-imaginacao-e-experimentacao-a-arte-e-comum-dossie-iasc-2017-uma-viagem-pelo-comum/>,acessoem:23maio2018.

16HenriqueParra;MarianoFressoli;AntonioLafuente,“Ciênciacidadãelaboratórioscidadãos”,LiincemRevista,RiodeJaneiro,v.13,n.1,p.1-6,maio2017,pp.2-5.Disponívelem:<http://revista.ibict.br/liinc/issue/view/244>,acessoem:20abr.2018.

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OPORTONOSESPERA.ANAUPRECISAATRACAR.Todaviagem,quandochegaaofim,sugereduasatitudes:umbalançocríticoda

experiênciaeumalistadeinspirações.Durantenossopériplo,cruzamosumvastoarquipélagodeconceitosepequenasgrandeshistórias.Olhamosparaaquestãodocomumpordiferentesângulosdeabordagem:navegamospelaquestãodigital;pelosmuitosautoresquesearriscaramaproporconceitosparadefini-lo;peladificuldadedetraduçãodotermoparaoportuguês;pelainterfacecomasformasdegoverno,nosníveismunicipal,nacionaleinternacional;pelaproximidadecomaideiasul-americanadebemviver;pelosocialismodoséculoXXIvenezuelano;pelodireitoàcidade,pelaspolíticaspúblicasurbanaseosmovimentosdeindignaçãoeesperança;pelavisãofeminista,quenosmostranãohavercomumsemcuidadospartilhadosportodasetodos;pelodevir-quilombodocomum,baseadonosvaloresevisõesdapopulaçãodadiásporaafricana;pelacultura,conhecimentoeeducaçãolivre;pelalutadiuturnaemfavordaliberdade,queétambémmeiodegarantiraigualdade;pelasuperaçãodoidealdedesenvolvimentoepelabuscadasuficiência;pelodevir-malocadocomum,queemergedenossaescutaeobservaçãodaaçãodospovosoriginários;pelacompreensãoessencialdeque,aofimeaocabo,nossoplanetaéocomummaior,sesoubermosprotegê-lo–esseservivoquenosprovêar,água,terra,alimento,GaiaouPachamama.

Nessecaminho,pudepartilharumconjuntodedescobertasquefizaolongodosúltimosanos.Se,porumlado,ademocracialiberalclássicaencontra-sedeslegitimada,emconsequênciadessaaliançaespúriaentremercadosegovernosvorazesecorruptos,muitosatoresestãodedicandoseutempo,inteligênciaedisposiçãoparacriarumaalternativademocrática,baseadaemcolaboração,inteligênciadistribuída,criatividadeeinclusãodasdiferentesvozesquecompõemnossasociedade.Essasmulheresehomens,ostripulantesdaarmadadeGaleano,nãoqueremesperarumatransformaçãototaldesistemaparaagir.Majoritariamenteadeptosdo“façavocêmesmoeagora”,estãocolocandoamãonamassa,numesforçoqueenvolvesimultaneamenteinvençãodealternativasepreservaçãodopatrimôniosocioambiental.ChrisCarlssonoschamade“fuçadores”.Euprefirodizerquesãoascomuneiraseoscomuneiros.Nós,queestamosdispostosaentregarnossasenergiaspararemodelara

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democraciadoséculoXXI.Umbandoque,comoapontaDavidBollier,operacomumasubjetividadebaseadanasolidariedade,noafeto,napartilhaenaesperança.Acompetição,afinal,ésóumadasformaspossíveisdeserelacionar.

Levarasériooscomunsimplicamodificarpartedenossacosmovisão.Nossaspossibilidadesnãosereduzemasermosempregados,consumidores,empreendedoresouinvestidoresquebuscammaximizarseubem-estareconômicopessoal.Podemoscomeçaranosimaginarcomocomuneiros.Podemoscomeçarpornosconverternosprotagonistasdenossasvidas,aplicandonossosnotáveistalentos,aspiraçõeseresponsabilidadesaosproblemasdavidareal.Podemoscomeçaraatuarcomosetivéssemosinteressesinalienáveisnomundoemquenascemos.Podemosreivindicarodireitoeacapacidadehumanosdeparticipardagestãodosrecursosessenciaisparanossasvidas1.

Esseprocessonãocomeçouagora.Sempreretorna.Algunsanosatrás,noFórumSocialMundialde2009,queocorreuemBelém,naAmazôniabrasileira,inúmerasorganizaçõesdasociedadecivillançarama“ConclamaçãoparaaRecuperaçãodosBensComuns”2.Influenciadaspelacriseabissaldocapitalismode2008–demonstrativoeloquentedofracassodomodeloneoliberal–,chamaramcidadãsecidadãosaseengajaremna“açãopelarecuperaçãoecriaçãodebenscomuns”,embuscadeproduzir“ummundosustentável”.Nessedocumento,defendiamuma“visãodesociedadequecolocaorespeitoaosdireitoshumanos,aparticipaçãodemocráticaeacolaboraçãonocoração”doprocessopolítico.Ofococomuneiro,segundoelas,seria“defenderaáguaeosrios,aterra,assementes,abiodiversidade,oconhecimento,asciênciaseossaberesancestrais,asflorestas,osmares,ovento,amoeda,acomunicaçãoeacriaçãoderedes,acultura,amúsicaeoutrasartes,astecnologiasabertaseossoftwareslivres,osserviçospúblicosdeeducação,saúde,saneamentoeprevidência”.Trata-sedamesmaperspectivaquedescrevemosaolongodestelivroequevemganhandocadavezmaisforçacomaemergênciadeumativismotranslocalista.

Antesdeavançar,porém,precisamosnosrecordarquemarescomplexosnãosãosimplesdenavegar.Gostariaentãodemededicar,nesteprimeiroblocodeconsideraçõesfinais,àslimitaçõesdonossotema.Ameuver,seriaumerrotomarocomumcomoasoluçãototalparatodososnossosmales,comoumremédioquetudoirásanar.Vimos,inclusive,aolongodestelivro,queoutrosconceitossimilares,comobemviverouviverbem,elaboradospormulherese

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homensdecosmogoniasnãoocidentais,partilhamdevisãosimilarsemevocaromesmorepertório.Menosqueumconceitofechado,ocomuméumconviteàexperimentação,àexperienciaçãoeàconvivialidade.Nessesentido,valerecuperaroqueescreveuJoanSubirats:

[...]quandofalamosdocomumnãoestamosfalandodeumaespéciedepanaceiauniversalquetudoresolvedemaneiramágica.Trata-sedeentenderquecomeçaahaverconexõessignificativasentrevelhasetradicionaisformascoletivasdegerirrecursos,bensesubsistência,comnovasformasdecooperaçãoedecriaçãocoletivadevalor,vinculadasaumagrandetransformaçãotecnológicaeàglobalização.Porisso,frenteaosproblemasquetêmetiveramasopçõespuramentemercantiscomoaspuramenteestatais,aexistênciadeumpolocooperativocomunitárioexpressonaideiado“comum”,doscommons,abrenovoscenáriosparatransitareexperimentar3.

Outroperigoquenosrondaéodafaltadeclareza.Derepente,namoda,oconceitosetornou,paraalgunsanalistas,umguarda-chuvautilizadoparaexplicarqualquercoisa.DavidHammerstein,daCommonsNetwork,chegaadizerquesetornouum“termozumbi”ealertaque,parapartedaesquerdatradicional,ocomumvemsendousadoparadefenderarecuperaçãodopoderdoEstadoeorechaçoàprivatizaçãodeserviçoserecursos.Aseuver,“aesquerdatradicionaleuropeiatentafagocitaraideiade‘benscomuns’comojáfeznopassadocomoecologismo,ofeminismoeoutrosmovimentossociais”4.SilviaFedericinosrecordaqueatémesmooBancoMundialfalaemcomunsglobaisemalgunsdeseusdocumentos.Ainstituiçãoconsideradaumdosbraçosmaisimportantesparaaconstruçãodahegemonianeoliberalusaoconceitodistorcendo-oparajustificaraprivatizaçãodosrios,oceanosedoar.

Federici,aliás,desenvolveumacríticabastanteagudadoscomunsdigitais.Segundoela,emumaentrevistaconcedidaaBiancaSantananarevistaCult,cada“computadoréumdesastreecológico”5.Apesquisadoraitalianaacreditaserinviávelfalaremcomunsdigitaissemlevaremconsideraçãoqueasmáquinasquepermitemnossaconectividadesãoproduzidascommãodeobraescrava,usodeenormesquantidadesdeáguaeapartirdadestruiçãodevastosterritóriosparaaexploraçãomineral.Emespecífico,suacríticarecaisobreaextraçãodecolumbita-tantalita(coltan)noCongo,naÁfrica,ondeaguerraocorrejustamenteemfunçãododomíniodasjazidas.Ocoltangeraonióbioeotântalo,ummetalusadoparaaprodução,porexemplo,detelefonesinteligentes

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etablets.“Essescommonsdigitais,dequeestãofalando,sãonaverdaderesultadodadestruiçãodoscommonsdasterras”,apontaFederici6.Críticaforte,nãopoderiaestardeforadenossaanálise.Embora,comodefendonoprimeirocapítulodestelivro,possamosedevamosfalaremcomunsdigitais,jamaisdevemosfazê-losemestabeleceressaponderaçãoeafirmarqueprecisamoscolocarnossainteligênciaaserviçododesenvolvimentodetecnologiassocioambientalmentesustentáveis.

ConstruindoorganizaçõesdocomumUmdosdesafiosprincipaisqueestácolocadoparanós,comuneirase

comuneiros,éodeinventarorganizaçõesqueatuemparaafirmar,preservareconstruirocomum.Dissodependearealizaçãodopotencialrevolucionáriodessaideia,queconsisteemforjarumaredesolidáriadeproduçãoquesejabem-sucedidatantoempequenaescalacomoglobalmente.ComoafirmaPaulMason,emseulivroPostCapitalism:AGuidefortheFuture,seháalgoqueainternetnospropicioufoiqueindivíduos(asagregaçõestemporaisdeindivíduos)tambémpodemseragentesdetransformaçãoigualmentepotentes7.Issoestáacontecendotodootempoaoredordoplaneta:trabalhadoresfreelancerqueseauto-organizamparamontarumsistemaprópriodesaúde;paisquecriamcentrosdecuidadopartilhadodecriançaseidosos;cooperativasdeproduçãoenergética,construídasporvizinhos;coletivosdeajudamútuaqueocupamumapraçaedesenvolvemnesseespaçoumasériedeaçõesparamelhoraravidaunsdosoutros.Espremidospelafalênciadossistemascentralizados,quenocasobrasileirojamaisforamcapazesdegarantirminimamentedireitoscomoeducaçãoesaúde(diferentementedospaísesemquehouveumestadodebem-estarsocialquecomeçaaruir),eporummercadoabsolutamentedesregulado,quebuscamaximizarolucroaqualquercusto,essesindivíduosestãobuscandoumcaminhosingulare,aofazê-lo,renegamasestruturasorganizacionaisexistentes.Umapalavraquealgunspesquisadoreseativistasforjaramparaexplicaressenovomodelobaseadonalivreassociaçãodepessoas,semumaformajurídicaestável,é“extituições”.Masoqueseriaisso?Podemospensara“extituição”comoummodeloparaepré-organizacional.Ouseja,queprecedeomomentoemqueumconjuntodeindivíduosresolvesefixarcomopartedeumorganismocoletivo(umaassociação,umpartidoouumaempresa).Flexível,nelaosagentesseagregamesedissolvemcommaiorvelocidade.Assim,torna-seumdispositivotáticoparalidarcomaliquidezdomundocontemporâneo.Comodizemos

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arquitetosespanhóisdoViverodeIniciativasCiudadanas,quetêmrealizadoummapeamentodeexperiênciascomuneirasportodaaIbero-América,asextituiçõessão“recursivaseseredistribuem,porissotêmalcanceemvezdeescala”8.

NolivroTheDilemmaoftheCommoners,apesquisadoraTinedeMoor,daUniversidadedeUtrecht,analisaosdiferentesmomentoshistóricosemqueemergiramorganizaçõescomunaisedescrevecasos,nãosódaIdadeMédia,mastambémdaviradadoséculoXIXparaoXX,emqueaauto-organizaçãodostrabalhadoresfoiregra.DeMoorvaiatrásdasorigensjustamenteporenxergar,nestemomento,umareemergênciadeorganizaçõespromotorasdosbenscomuns:“Asociedadedofaça-você-mesmoqueestáemergindoatualmenteestáconstruindoinstituiçõesquesãomuitosemelhantesaosantigos,históricoscomunsesuascontrapartidasurbanas,asguildas,e,comotal,enfrentamdesafiossemelhantesparacriarinstituiçõesresilientesqueatendamaseusmembroscooperados”9.

Aquicabeumalertaimportante.Senossoobjetivoérealmenteinventarnovoscaminhosdevivereproduzir,precisamosolharcomargúciaparaascomunidadesaquepertencemos.Elassãodefatoexperiênciasdeumavidapartilhadaentretodasetodos?Quepadrõesestamosreproduzindo?Comolidamoscomopoder,essedispositivorelacionalqueatudoatravessa?Éhoradesuperarmosdefinitivamenteosmodeloscentralizadosbaseadosemcomandoecontrolevertical.Issoépossívelsetrabalharmospermanentementepelaconstruçãoderegraspactuadascomgenerosidade,empatiaecompreensãomútuas.Temosdebuscarapossibilidade,comodefendeGeertLovink,“deumaassociaçãodepareslivres”ouuma“livreassociaçãodepares”10.Atransparênciaémaisimportantequeahorizontalidade.Apossibilidadedetrocadeposiçõesconscientesémaisimportantequeahorizontalidadeestratificada.Quefiqueclaro,aquestãoaquiéapalavraliberdade.Semela,qualquertentativadeconstruçãocomunitáriaretrocedeaumdesejodeautoritarismoquemarcoumuitasdasexperiênciasdosocialismoedocomunismo.Tambémdevemoscuidarparaquenossascomunidadessejampermeáveiseestabeleçamtrocasconstantesalémdeseuslimites.

Entreasexperiênciasmaisinteressantesdenovasorganizaçõesbaseadasnocomum,destacoasqueestãoatuandoparaatransformaçãodaeconomia,emespecíficodamoedaedosistemafinanceiro.Essesatores,quepartiramparadentrodabocadoleão,têmdemonstradoaexistênciadeumalógicadocomumantagônicaaosmercados.Traduzoumquadro,desenhadoporSilkeHelfrich,

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quenosajudaaentenderadiferençaentreumaeconomiacentradanolucroeaquepromoveocomum11.

Oparadigmadolucro Oparadigmadocomum

Recursos

Aescassezédadaoucriada(pormeiodebarreiraseexclusões).

Parabensrivais,háobastanteparatodospormeiodocompartilhamento.Paraosbensnãorivais,háabundância.

Estratégia:alocação“eficiente”dosrecursos.

Estratégia:ofortalecimentodasrelaçõessociaisédecisivoparagarantirmercadosjustoseousosustentáveldosrecursos.

Ideiadeindivíduo Osindivíduosmaximizamosbenefíciosparasi(Homoeconomicus).

Oshumanossãoessencialmentesujeitossociaiscooperativos.

Relaçãohumanacomanaturezaeoutroshumanos

Separação•Individualismoxcoletivismo•Sociedadexnatureza

Inter-relacionalidade•Indivíduosecoletivosestãoaninhadosunsnosoutrosesereforçammutuamente.

Agentesdemudança

Lobbiespolíticospoderosos,gruposdeinteresseepolíticasinstitucionalizadasfocadasemgovernos

Comunidadesdiversastrabalhandoemredesdistribuídas,comsoluçõesquesurgemdasmargens

Foco

Trocasmercantisecrescimento(PIB),alcançadospormeiodainiciativaindividual,dainovaçãoeda“eficiência”

Valordeuso,bem-estarcomum,meiosdesubsistênciasustentáveisecomplementaridadedaempresa

Questãocentral Oquepodeservendidoecomprado? Oqueeu/nósprecisamosparaviver?

GOVERNANÇA

Tomadadedecisão

Hierárquica;decimaprabaixo;comandoecontrole

Horizontal,descentralizada,debaixopracima.Auto-organização,monitoramentoeusoadequadodosrecursos

Princípiodedecisão Regrasdamaioria Consenso

RELAÇÕESSOCIAIS

Relaçõesdepoder Centralizaçãoemonopólio Descentralizaçãoecolaboração

Relaçõesdepropriedade

Propriedadeprivadaexclusiva.“Eupossofazeroquequisercomoqueémeu.”

Posseeusocoletivo.“Eusoucorresponsávelporaquiloquecoutilizo.”

Acessoabensrivais(terra,água,florestas)

Acessolimitado;regrasdefinidaspelodono

Acessolimitado;regrasdefinidaspelosusuários

Acessoabens Acessolimitado:aescassezécriada

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nãorivais(ideias,códigos…)

artificialmentepormeiodeleisetecnologias.

Acessoilimitado:oacessoabertoéregrapadrão.

Direitosdeuso Concedidospelodono(ounão).Focoemdireitosindividuais

Decididoscoletivamentepelosusuáriosqueparticipamdaprodução.Foconoacessojustoeigualitárioparatodasetodos

Práticasocial Prevaleceràcustadooutro;predominaacompetição

Commoning(fazerocomum);predominaacooperação

PRODUÇÃODECONHECIMENTOIdeologiacorporativaevaloresintegradosnaeducaçãoenaproduçãodeconhecimento

Peer-to-peer(P2P),redesecolaboraçãopermitemdiversidadedepontosdevista.

Oconhecimentoéconsideradoumbemescassoparasercompradoevendido.

Oconhecimentoéconsideradoumrecursoabundanteparaobemcomumdasociedade.

Tecnologiasproprietárias Tecnologiasabertaselivres

Conhecimentoeexperiênciaaltamenteespecializadossãoprivilegiados.

Oconhecimentoestásujeitoaocontrolesocialedemocrático.

IMPLICAÇÕESPARA…

Recursos Exaustão/exploração:cercamento Conservação/manutenção.Reproduçãoeexpansão

SociedadeApropriaçãoindividualxinteressescoletivos

“Omeudesenvolvimentopessoaléumacondiçãoparaodesenvolvimentodosoutrosevice-versa.”EmancipaçãopormeiodeconvivênciaExclusão

Emjunhode2017entrounoaraversãobetadoBankoftheCommons,umainiciativaabertaqueenvolvediferentesorganizaçõesepessoascomoobjetivodetransformarospagamentoseossistemasmonetários,apoiandomovimentossociaiscooperativos.OelementocentraldoBankoftheCommonséousodoFaircoin,umacriptomoedabaseadanoblockchain,comoobitcoin,masqueéambientalmenteesocialmentesustentável.Todooseusistemaébaseadonacolaboração,enãonacompetição:umamoedaaberta,transparenteegeridapormeiodeumacomunidadehorizontalauto-organizada.Seusistemadevalidaçãoesegurançaédistribuídoentreatoresqueintegramacooperativaepossuimecanismosparaevitaraconcentraçãodecapital.OFaircointemsidodesenvolvidonosúltimosdoisanosefoicriadoparaseramoedadocomum.

ComoexplicaAlexPazaitis,daP2PFoundation,emartigosobreotema:

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Faircoinéoelementofundamentaldeumsistemaquefacilitatransferênciasdemoedaaumcustomuitobaixoouzeroentrecontinentes,países,usuáriosetambémentrecontasbancárias.NoecossistemaFaircoin,ainteligênciacoletivacriaferramentasúteisqueaspessoaspodemcompartilhar,incluindosistemasdepontodevendaparacomerciantes,cartõespré-pagos,câmbioinstantâneo,trocasemeurospormeiodecaixaseletrônicos,pagamentoderecibosdiretosetodososserviçosbancáriosqueatéagoraestiveramnasmãosdeumaelite12.

NaArgentina,háumaexperiênciasemelhante,aMonedaPAR,desenvolvidapelosmovimentossociaiscooperativistas.Tambémbaseadaemblockchain,ofereceaseususuáriosumaplicativonoqualépossívelsecadastrarparaorganizarastransações.MonedaPARéumdispositivoP2P(peer-to-peer).Suagovernançaéfeitapormeiodeumaassembleiademocráticadequeparticipamtodososatoresenvolvidos.

Nofinalde2015,oCommonsStrategiesGrouprealizouemBerlimumseminárioenvolvendo24liderançasdediferentesáreasdopensamentoparadiscutirademocratizaçãododinheiro.Oresultadodessaarticulaçãoestápublicadonorelatório“DemocraticMoneyandCapitalfortheCommons”(Dinheirodemocráticoecapitalparaocomum),quedestacajustamenteanecessidadededesenvolvermosexperiênciaseconômicasqueconfrontemoneoliberalismo,essesistemaresponsávelpela“destruiçãodosecossistemas,pelocercamentomercantildebenscomunsepeloassaltoàigualdade,àjustiçasocialeànossacapacidadedecuidarunsdosoutros”.Nossofoco,deacordocomessegrupodeestrategistas,deveser“cocriarnovasformasdedemocraciaeconômicaefinanceira–instânciasdeumamaisrobustademocraciadodiaadiaqueváalémdosperíodoseleitorais”13.Aeconomia,afinal,precisaserdemocratizada.Eocomumpodeajudarnisso.

IntuiçãoparacaptarsoluçõesOsaberracionalcostumacondenaraintuição.Seriaprivilégiodeadivinhos,

oráculos,sacerdotisasepoetas.Pormaisqueaciênciatente,aintuiçãonãoécomprovável,pornenhummétodo,indutivooudedutivo.Paraalguns,éumaportaabertaparaoinvisível.Paraoutros,umaponteespiritual.Hátambémquemacreiaumdutoatéoinconsciente.Daintuição,porém,emergemospresságios,rastrosdequealgo–debomouderuim–estáporacontecer.A

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intuiçãoantecipa,egrandescientistas,comoEinstein,delaforamdefensores.Escolhidepropósitoapalavrapresságioparaotítulodesteúltimocapítuloporqueestasconsideraçõesfinaisnãooferecemrespostas.Quandomuito,algumaselaboraçõescozidasemfogolento,algunspresságiosquepodemoferecerumalistadeinspiraçõesparanossaatuaçãopolítica,social,culturalouartística.Afinal,quem,nestemomento,arriscaria,mobilizandoapenasreferenciaisracionaisecientíficos,preverofuturo?

Naeradapós-verdade,emqueosEstadosUnidoselegemumpresidentedevotodocapitalismoreligioso,amembranaentrecertoeerradoparecedemasiadodelgadaepermeável.Assim,pararestabeleceraverdade,devemosrecorreratodososelementosqueestãoànossadisposição:aosindícios,semdúvida;àspesquisas,porcertoquesim;mastambémaosnossossentidos,desejosevontades.Realidadeémovimento,afinal.Seéimpossívelinterpretaromundo,aalternativaquenosrestaésenti-loeatuarparamodificá-lo.Reconhecendoqueomomentoédetransição.Tempodetravessiapermanente,quenospedesimultaneamenteaberturaaonovoeresiliência.Estelivro,pois,éapenasumasíntesedealgumascoisasqueaprendiaolongodeminhatrajetóriacomopesquisadoreativista.Combasenesseaprendizadocompartilhado,esperoqueosleitorespossamtirarconclusõesqueajudemaconstruirumpresentemelhorparanós.

Nãodesenvolviàtoaametáforadomardacomplexidade.Ocomum,ameuver,éumconceitomultidimensionalqueexigeainter-relaçãodassuasdiferentesdimensões–umsistemacomplexo.Vistoempartes,fragmentado,nãotemamesmaforçadoquequandoobservadodelonge.Éformadopelosbenscomunsemsi(oplaneta,opatrimôniosocioambiental,ocorpo,ourbanoeodigital),geridosporcomunidadesqueseautogovernam,criandoprocedimentoseregrasquegarantamousufrutodessesbensentretodasetodos–eimpeçamsuaapropriaçãoporumoualguns,ochamadocercamento.Umregimequeconformaumaredeentrecomuneiros,suascomunidadeseoplaneta(pessoas,iniciativaseinfraestruturas).Seudevirrevolucionárioseexpressaemumateiadediferentescomuns,articuladosdeformadistribuídaefederada,dandoorigemaumnovosistema-mundobaseadonacolaboraçãoenapartilha.UmavezmaiscitoDavidBollier,quetemsidooprincipalinterlocutordestelivro.Eleafirmaqueatualmenteestãosurgindonovosmovimentossociaisquesedãocontadeque“oparadigmadoscomunsdeterminaseusvínculoscomoutraspessoaserecursos.[...]Paramuitosdessescomuneiros,ocomumnãoéum‘sistemadegestão’ouuma‘estruturadegovernança’,senãoumaidentidadecultural,uma

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formaemeiodevidapróprios.Éummododeressuscitarapráticademocrática,deviverumavidamaisplena”.14

Deoutropontocomplementardevista,ocomuméumprocessopolíticoquenosconvocaaagirparaalémdasformasestratificadasdomercadoedoEstadomoderno.Girandomaisumavezaesfera,revela-secomoumaalternativademodeloeconômico,gerandonointeriordascomunidades(locaisouglobais)relaçõesdereciprocidade(dádiva),generosidadeesolidariedade,asquaisprivilegiamovalordeusoaodetroca.Eudiria,então,queumapossívelconsciênciaativadocomumsurgedaaceitaçãodavidaemcoletivo–sendoessecoletivoformadopeloshumanos,suascriações(osnãohumanos)eosdemaisseresviventesquecoabitamaTerra(elaprópriaumservivo).Umsistemasocioecológico,comopropôsElinorOstromemseusúltimostrabalhos.Ocomumétambémumatransformaçãoculturaldegrandesproporções,nãoapenascomoresultadodeescolhasracionais,masdeumprocessoescoradoemafetos,sentidosenaespiritualidade.Seriaumerro,portanto,afirmarocomumcomoideologia.Eleé,muitomais,umtutorialpráticoparaaconstruçãodeumavidadealegriaeimaginação.Umalentediferenteparainterpretararealidade.

1“Tomarseenserioloscomunes,sinembargo,implicamodificarpartedenuestracosmovisión.Nuestraspreferenciasnosereducenaserempleados,consumidores,emprendedoresoinversoresquebuscanmaximizarsubienestareconómicopersonal.Podemoscomenzaraimaginarnoscomocomuneros.Podemosempezarporconvertirnosenlosprotagonistasdenuestrasvidas,aplicandonuestrosnotablestalentos,aspiracionesyresponsabilidadesalosproblemasdelavidareal.Podemosempezaraactuarcomosituviéramosinteresesinalienablesenelmundoenelquehemosnacido.Podemosreivindicarelderechoylacapacidadhumanosdeparticiparenlagestióndelosrecursosesencialesparanuestrasvidas”.DavidBollier,op.cit.,p.150.

2Disponívelem:<http://bienscommuns.org/signature/appel/?a=appel&lang=pt>,acessoem:20mar.2018.

3“[...]cuandohablamosdelocomúnnoestamoshablandodeunaespeciedepanaceauniversalqueloresuelvetododemaneramágica.Loquesetrataesdeentenderqueempiezaahaberconexionessignificativasentreviejasytradicionalesformascolectivasdegestionarrecursos,bienesysubsistencia,connuevasformasdecooperaciónydecreacióncolectivadevalor,vinculadasalgrancambiotecnológicoyalaglobalización.Yque,portanto,antelosproblemasquetienenyhantenidotantolasopcionespuramentemercantilescomolaspuramenteestatales,laexistenciadeunpolocooperativocomunitarioexpresadoenlaideade‘locomún’,de‘commons’,abrenuevosescenariosatransitaryexperimentar.”JoanSubirats,op.cit.,pp.200-1.

4Ementrevistaaoautorpore-mailemjulhode2017.5SilviaFedericiapudBiancaSantana,“SilviaFederici:‘Ocapitalismotentadestruirasnossasmemórias’”,

Cult.Disponívelem:<https://revistacult.uol.com.br/home/silvia-federici-o-capitalismo-tenta-destruir-memorias/>,acessoem:23maio2018.

6Ibidem.7PaulMason,Postcapitalismo:haciaunnuevofuturo,Barcelona:Paidós,2016,p.344.

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8VIC,“EspeciesICsEspaciosEx”,14out.2014.Disponívelem:<http://viveroiniciativasciudadanas.net/2014/10/14/especies-ics-espacios-ex/>,acessoem:20abr.2018.

9“Thedo-it-yourselfsocietythatiscurrentlyemergingisbuildinginstitutionsthatareverymuchliketheformer,historiccommonsandtheirurbancounterparts,theguilds,andassuchtheyfacesimilarchallengestocreateresilientinstitutionsthatservecooperativemembers.”TineDeMoor,TheDilemmaoftheCommoners,NovaYork:CambridgeUniversityPress,2015,p.163.

10GeertLovink,“BeforeBuildingtheAvant-GardeoftheCommons”,Open!,1nov.2016.Disponívelem:<http://www.onlineopen.org/before-building-the-avant-garde-of-the-commons>,acessoem:20abr.2018.

11SilkeHelfrich,“TheLogicoftheCommons&theMarket:AShorthandComparisonofTheirCoreBeliefs”,in:DavidBollier;SilkeHelfrich(orgs.),op.cit.Disponívelem:<http://wealthofthecommons.org/essay/logic-commons-market-shorthand-comparsion-their-core-beliefs>,acessoem:20mar.2018.

12“Faircoinisthefundamentalelementofasystemthatfacilitatescurrencytransfersatveryloworzerocostbetweencontinents,countries,usersandalsobetweenordinarybankaccounts.IntheFaircoinecosystem,collectiveintelligencecreatesusefultoolsthatpeoplecanshare,includingpointofsalesystemsformerchants,prepaidcards,instantcurrencyexchange,exchangestoeurosviaATMs,paymentofdirectreceiptsandallthebankingservicesthathaveuntilnowbeeninthehandsofanelite.”AlexPazaitis,“Faircoinactivatesthefirstcooperativeblockchain”,P2PFoundation,20julho2017.Disponívelem:<https://blog.p2pfoundation.net/faircoin-activates-first-cooperative-blockchain/2017/07/20>,acessoem:20mar.2018.

13DavidBollier;PatConaty,“DemocraticMoneyandCapitalfortheCommons”.Disponívelem:<https://www.boell.de/sites/default/files/democratic_money_capital_for_the_commons_report_january2016.pdfacessoem:20mar.2018.

14“[...]elparadigmadeloscomunesdeterminasusvínculosconotraspersonasyrecursos.[...]Paramuchosdeestoscomuneros,elprocomúnnoesun‘sistemadegestión’ouna‘estruturadegobernanza’,sinoumaidentidadcultural,unaformaymediodevidapropios.Esunmododeresucitarlaprácticademocrática,devivirunavidamásplena.”DavidBollier,op.cit.,pp.39-40.

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SOBREOAUTOR

RodrigoSavazoniéjornalista,escritoreprodutorcultural.ÉumdosdiretoresdoInstitutoProcomum(IP)efoiumdosfundadoresdaCasadaCulturaDigital.CriadordofestivalCulturaDigital.BredoprojetoProduçãoCulturalnoBrasil,foichefedegabinetedaSecretariaMunicipaldeCulturadeSãoPaulo(2013).ÉautordoslivrosCulturaDigital.br(Azougue,2009),emparceriacomSergioCohn,eOsnovosbárbaros:aaventurapolíticadoForadoEixo(Aeroplano,2014).MestreedoutorandoemCiênciasHumanaseSociaispelaUniversidadeFederaldoABC,desenvolvepesquisassobrecultura,tecnologiaedinâmicasculturaiscontemporâneas.

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SERVIÇOSOCIALDOCOMÉRCIOAdministraçãoRegionalnoEstadodeSãoPaulo

PresidentedoConselhoRegionalAbramSzajmanDiretorRegionalDaniloSantosdeMiranda

ConselhoEditorialIvanGianniniJoelNaimayerPadulaLuizDeoclécioMassaroGalinaSérgioJoséBattistelli

EdiçõesSescSãoPauloGerenteMarcosLepiscopoGerenteadjuntaIsabelM.M.AlexandreCoordenaçãoeditorialJeffersonAlvesdeLimaProduçãoeditorialRafaelFernandesCaçãoCoordenaçãodecomunicaçãoBrunaZarnoviecDaniel

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[cc]RodrigoSavazoni,2018[cc]EdiçõesSescSãoPaulo,2018

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PreparaçãoSilvanaVieiraRevisãoMaiaraGouveiaProjetovisualediagramaçãoWernerSchulzCapaWernerSchulzFotodoautorAdrianaVichi

Sa937cSavazoni,RodrigoOcomumentrenós:daculturadigitalàdemocraciadoséculoXXI/RodrigoSavazoni.–SãoPaulo:EdiçõesSescSãoPaulo,2018.–

2.400Kb;e-PUB.–(DemocraciaDigital).BibliografiaISBN978-85-9493-132-0(e-book)1.Tecnologiasdigitais.2.Culturadigital.3.Democraciadigital.4.Conceitode

comum.I.Título.II.Commons.CDD004.019

EdiçõesSescSãoPauloRuaCantagalo,74–13º/14ºandar03319-000–SãoPauloSPBrasilTel.55112227-6500edicoes@edicoes.sescsp.org.brsescsp.org.br/edicoes