o conceito de psykhÉ no fÉdon · 2008-12-01 · além-túmulo, hades, porque a psykhé, o ser do...
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“Existência e Arte”- Revista Eletrônica do Grupo PET - Ciências Humanas, Estética e Artes da Universidade Federal de São João Del-Rei - Ano III - Número III – janeiro a dezembro de 2007
O CONCEITO DE PSYKHÉ NO FÉDON
Anselmo Carvalho de Oliveira (graduado em filosofia pela UFSJ)1
Resumo: Platão narra, no Fédon, o último dia de vida de Sócrates. Em sua cela, travou uma intensa discussão com os pitagóricos Cébes e Símias para convencer aos seus ouvintes, que a morte do corpo não é um terrível mal como a tradição homérica apregoava. Mas o homem que viveu em busca do conhecimento e se afastou dos prazeres corporais viverá a verdadeira vida no além-túmulo, Hades, porque a psykhé, o ser do homem, é imortal. Sócrates, em busca de provar a imortalidade, parte da tradição religiosa do orfismo conjugando-a com sua “teoria” das Idéias e polemiza contra a tradição homérica, dos naturalistas e de Filolau. Ao argumentar em favor da imortalidade, Platão propõe uma concepção ética que priorizava os valores ligados ao conhecimento e fundamenta uma nova interpretação da existência humana.
Palavras-chave: Psykhé, Fédon, imortalidade.
1. Introdução:
s pesquisas desenvolvidas pelo ser humano revelaram grandes mistérios da
natureza: as formas de energia, a estrutura espaço-tempo do universo, os recônditos da
matéria, a constituição biológica do ser humano e sua natureza evolutiva. Existem
questões profundas, no entanto, que continuam a ser um mistério. Apesar dos inegáveis
avanços científicos e tecnológicos em todas as áreas do conhecimento, duas questões
fundamentais permanecem sem soluções definitivas, e talvez, nunca encontraremos tais
soluções. As questões são: a natureza do pensamento, da linguagem, das emoções, da
crença, ou seja, os estados e processos mentais (como são atualmente chamados); e os
segredos da morte, fato inegável para o homem e causa de grandes constrangimentos.
As respostas às questões fundamentais para o homem possuem uma longa história e,
em grande parte, estão ligadas às crenças religiosas de cada povo, pois as religiões
estão comprometidas em explicar as causas e fins do universo e muitas, a seu próprio
modo, incluem uma alma imortal. Mas na Grécia, por volta do século VI a.C., alguns
pensadores abandonaram argumentos religiosos e usaram explicitamente de argumentos
prioritariamente racionais para resolver as questões sobre o universo, o pensamento e a
morte. Dentre estes pensadores destaca-se Platão.
1 Trabalho desenvolvido sob orientação do prof. Dr. Paulo César de Oliveira (DFIME-UFSJ) e vinculado ao projeto de pesquisa “O conceito de psykhé no Fédon de Platão”. Contato: [email protected]
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Sua teoria para explicar as relações entre a psykhé(alma)-corpo-(in)mortalidade abriu
novas perspectivas e dificuldades sobre estas questões, mas sua filosofia foi por dois
milênios e meio a influência norteadora do pensamento ocidental.2
É fundamental para a compreensão da história do pensamento ocidental e,
particularmente, das explicações sobre a história da psicologia, o correto entendimento
da psykhé em Platão e os contornos irrenunciáveis que a idéia adquiriu. Porque todo o
pensamento ocidental será condicionado por esta idéia na medida e enquanto a aceitar,
ou na medida e enquanto a negar. E ao negá-la deverá justificar e argumentar
polemicamente contra ela (Reale, 2004, p. 112).
O objetivo deste estudo consiste em analisar os argumentos platônicos, no Fédon, sobre
a psykhé e a sua imortalidade. Procura-se responder as seguintes questões: que é a
psykhé3? Quais argumentos são usados na tentativa de provar sua imortalidade? Quais
as conexões estruturais, se existirem, entre o corpo e a psykhé? Existem relações e
repercussões entre a idéia de psykhé e as concepções éticas de Platão? Se existirem,
quais são e como são fundamentadas?
Platão aborda a problemática da psykhé em vários diálogos visto que, em certa medida,
sua “teoria” das Idéias, sua ética e sua política dependem deste conceito. Entre os
diálogos destaca-se o Fédon, onde esta noção é explicitada de maneira renitente. O
Fédon foi escolhido, porque é considerado pelos estudiosos como um diálogo escrito na
maturidade filosófica do autor e exprime um pensamento próprio marcado pela
originalidade e capacidade dialética. Não abordaremos neste estudo os outros diálogos
nos quais Platão dilata e aprofunda os problemas deixados em aberto no Fédon. Platão
nestes diálogos reitera de muitos modos a convicção da imortalidade contida no Fédon.
2 Cf. Santos, 1999, p. 12 e nota 14; p. 45 e nota 2; Reale, 2004, 112-113; Reale, 1994, p. 9, 323-332; Willians, 2000, p. 8. 3 Etimologicamente, psykhé está relacionada com o último suspiro antes da morte e não com os processos psíquicos do homem. Psykhé é derivado regressivo do verbo psýkhein (“soprar, emitir um sopro”. Psýkho verbo, “eu sopro, deixo escapar o ar”, origina-se, provavelmente, da forma não sufixada *psýo * “soprar”, que possuí sua origem no indo-europeu. Esta composição assemelha-se a psýkho e sua forma secundária psýgo, “eu esfrio, refresco”, porém é necessário não confundi-las (cf. Chantraine, 1990, p. 1294-1295; Brandão, 1991, p. 335). O escopo do presente texto é o Fédon, o que não deixa completamente transparente todo o significado do conceito em Platão. Para uma análise do significado da psykhé em toda a obra platônica remeto a Reale, 2002, p. 175-280; Reale, 1994, p. 181-215; Andrade, 1993.
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Este diálogo, portanto, permanece como a mais importante apresentação da posição
platônica e uma das mais instigantes obras metafísicas do ocidente4.
2. Mito
A visão platônica sobre a psykhé apóia-se sobre dois alicerces, que não podem ser
negligenciados em suas importâncias argumentativas: a fé e a razão. Com o sucesso das
explicações científicas, a partir do século XVI d.C., estas duas dimensões foram
radicalmente separadas e contrapostas. Os argumentos sustentados na fé perderam sua
validade e foram substituídos pela evidência empírica e racional.
Platão, em seus diálogos, e particularmente no Fédon, parte de sua fé, compartilhada
com o movimento órfico5, - na imortalidade, no ciclo de reencarnações, na oposição entre
corpo e psykhé, em punições no além-túmulo -, e procura refunda-la em um plano
ontológico por meio da demonstração racional.6 Mas onde a razão não é mais capaz de
lograr êxito recorre-se à fé e à expressão através do mito.
À primeira [fé] confia a tarefa de transportar e elevar, imediatamente, o espírito humano para os âmbitos e esferas de conhecimento superiores, aos quais a razão por si mesma não teria possibilidade de chegar, mas das quais pode, todavia, apoderar-se mediatamente com articulação orgânica entre fé e razão. Em não poucas ocasiões, ao contrário, quando a razão atinge limites intransponíveis, Platão lhe atribui também a tarefa de superar intuitivamente esses limites a fim de completar e coroar o esforço da razão, elevando assim o espírito a uma visão ou, ao menos, tensão transcendente (Santos, 1999, p. 46-47 e nota 5).
O discurso mitológico, através de complexas imagens e alusões, busca “transportar e
elevar” àquilo que realmente pretendia-se dizer. A comunicação da mensagem filosófica
acontece em diferentes níveis de acordo com a estrutura dramática estabelecida para o
diálogo em questão.7 Para a correta compreensão da psykhé é fundamental a dimensão
4 Neste livro está traçado todo o “projeto metafísico” de Platão, pois nele estão contidas as linhas fundamentais de sua metafísica com a teoria da Idéias, a teoria dos Princípios e a doutrina do Demiurgo. Reale considera este diálogo a “magna charta” da “metafísica ocidental” (2004, p. 101). 5 O diálogo desenvolve-se em um contexto eminentemente órfico-pitagórico, pois Equecrátes e os interlocutores de Sócrates, Símias e Cébes são pitagóricos. Cf. Santos, 1999, p. 48-49. Platão evoca estas tradições em vários diálogos, como por exemplo: Mênon 81 ss, Górgias 492 ss e 523 ss, Crátilo 400c, Fedro 250 b-c, Fédon 62b, 63c, 67d, 69c. 6 Sobre o influxo do orfismo na filosofia de Platão e a tentativa de mediação entre as doutrinas misteriosóficas destes e o racionalismo socrático cf. Reale, 1994, p. 183. Para uma analise do orfismo cf. Oliveira, 2004, p. 7-19, Brandão, 1999, 141-172; Reale, 1993, apêndice I. 7 Para uma análise da estrutura do diálogo platônico remeto a Szlezák, 2005, e p. 29-36 e 155-159 para a questão do mito. Sobre a importância do contexto e dos interlocutores para a transmissão da mensagem
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mitológica. Platão deixa claro no Fedro: “sobre a imortalidade é isto suficiente. Mas,
quando ao seu [da psykhé] caráter, assim devemos explicá-lo: caracterizá-lo seria
ocasião para diversos e longos discursos. Representá-lo numa imagem já é coisa que se
possa fazer num discurso humano de menores proporções” (246a).8
Aprofundando o valor do discurso mitológico, Platão atribui-lhe uma força psicagógica
capaz de persuadir aqueles que não foram convencidos através dos argumentos
racionais. Existe uma conjunção, mas sem um ser subordinado ao outro, entre mito e
logos, que é imprescindível para a análise conceitual.
Luc Brisson (2003, p. 28), baseando-se nas distinções da semiologia entre “discurso
narrativo/discurso verificável” e “discurso narrativo/discurso argumentativo” avalia a
dimensão do mito-logos e explica as duas razões essenciais para o freqüente uso do
discurso mitológico: Por um lado, porque não se pode falar senão em termos míticos de um certo tipo de referentes, ou seja, de tudo o que diz respeito à alma e ao passado longínquo, e que, por isso, permanece inacessível tanto aos sentidos quanto à inteligência[...]Ademais, tudo o que diz respeito ao inteligível está associado ao mito por meio dessas crenças [metempsicose, pagamento de penas no além-túmulo, reencarnação] sobre a alma[...]Por conseguinte, a mitologia constitui um terreno em que vários temas filosóficos afundam suas próprias raízes: é um reservatório de axiomas e de premissas [grifo nosso].
Quando os mitos são lidos segundo a lógica do discurso racional (logos), eles aparecem
como contraditórios entre si. Mas através de suas alusões e representações em imagens
procura-se transmitir uma verdade fundamental, que não é ilógica nem redutível ao
discurso lógico, mas é meta-lógica (Reale, 1994, p. 191). O discurso mitológico é usado
nos diálogos como o meio para a transmissão de uma mensagem além dos limites da
razão e das provas empíricas, como no caso do destino escatológico da psykhé.
3. As provas em favor da imortalidade da psykhé Quantos são os argumentos em favor da imortalidade da psykhé?
filosófica de Platão remeto a analise de Paviani, 2001, p. 149-155; e a de Cardoso, 2006, p. 21-66. A interpretação de Cardoso, salvo o que é próprio do Fedro, pode ser estendida aos outros diálogos. 8 No Fédon (61d-e), Sócrates deixa claro que será necessário o uso do mito para expor suas idéias sobre a psykhé: “Ademais, não existe ocupação mais conveniente a um homem que deixará este mundo em tão breve tempo do que analisar bem e tentar conhecer a fundo o que significa precisamente essa viagem, e expor por intermédio de um mito o que nos parece ser. “
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O número de argumentos encontrados no texto varia de acordo com a tendência dos
comentadores. Os interpretes antigos identificaram cinco: dos contrários (70c-72e), da
reminiscência (72e-78b), da afinidade (78b-84b), a prova negativa da harmonia (84c-
86a), e da essência das Idéias (102a-107a). Os modernos, na maioria dos casos,
encontraram quatro ou três provas integradas pela última. Eliminou-se a prova da
harmonia por considerá-la não como uma afirmação da imortalidade da psykhé, mas
como a negação de sua semelhança com a harmonia.
Admitir a existência de quatro ou três provas é questão complexa9. Depende da aceitação
ou não da independência do argumento dos contrários em relação à prova da
reminiscência. O problema no argumento dos contrários é não se considerar a psykhé
uma substância real com a capacidade de pensar. A psykhé racional e afim com as
Idéias, que será considerada imortal, emerge somente a partir de 72d. O
enfraquecimento da prova, assim, não parece estranho.
Sua independência, no entanto, sustenta-se em várias passagens do texto. Em Fédon
72a e 72d-e, Sócrates afirma ter provado que as psykhaí revivem e existem quando o
corpo perece. Sua conclusão interrompe o raciocínio precedente para Cébes introduzir as
considerações iniciais sobre a reminiscência. Na passagem Fédon 77a-d, Sócrates
afirma que seria necessário “unir” os argumentos da reminiscência e dos contrários para
provar cabalmente a imortalidade. Isto caracteriza que o próprio autor as considera em
separado, mas interdependentes no contexto do diálogo.
As duas provas trabalham com questões diferentes: a primeira defende que tudo o que
vive provém do morto, e do vivo, todo o morto (ou seja, qual a origem das coisas); a
segunda, que a psykhé preexiste ao corpo e o conhecimento seria rememorar o contato
realizado com as realidades em si antes de renascer no corpo (ou seja, como o
conhecimento é possível). Sendo assim, neste texto segue-se a divisão em quatro
provas.
3.1 Os contrários
9 A teoria dos três argumentos foi defendida por H. Bonitz. Die im Phädon enthaltenen Beweise für die Unsterblichkeit der menschlichen Seele, Platonische Studien, Berlin, 1886. Reale, em suas obras, a retoma e defende integralmente. Para a crítica desta posição ver Hacforth, Plato’s Phaedo, Oxford, 1975. A posição de quatro argumentos é predominante entre os interpretes.
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Cébes, antes da argumentação socrática, traz ao primeiro plano a crença popular sobre a
psykhé. Correntemente, considerava-se que a psykhé seria destruída no momento da
morte do corpo, ou como supunha Homero, ela dissipar-se-ia em uma sombra no Hades
(Fédon 69e-70a). Sócrates inicia o argumento dos contrários também se referindo à
antiga tradição, segundo a qual as psykhaí dos mortos encontravam-se no Hades e, em
algum momento, renasceriam. De modo que os vivos nascem dos mortos (Fédon 70c-d).
Platão procura validar esta crença órfico-pitagórica na metempsicose (reencarnação)
provando-a de acordo com uma lei geral do universo: a origem dos contrários.
O filósofo parte das observações da incessante transformação dos objetos em seus
contrários: o maior é gerado do menor, o melhor do pior, o justo do injusto, o frio do
quente. “Este é o princípio geral de toda a geração, segundo a qual é das coisas
contrárias que nascem as coisas que lhes são contrárias” (Fédon 71a). À lei geral não
existe exceção, porque se o processo das gerações ocorresse em “linha reta”, sem uma
“eterna compensação recíproca da geração”, as coisas imobilizar-se-iam em um todo
unificado. O processo de mudança no universo é cíclico (Fédon 70a-b). O processo de
geração dos contrários, portanto, ocorre em relação aos opostos vida e morte: os mortos
provêm dos vivos; os vivos revivem dos mortos. “Há, pois, acordo entre nós, ainda neste
ponto: os vivos não provêm menos dos mortos que os mortos dos vivos. Ora, assim
sendo, haveria aí, parece, uma prova suficiente de que as almas dos mortos estão
necessariamente em alguma parte, e que é de lá que voltam para a vida” (Fédon 72a).
A dialética do argumento evidência que o princípio que dá vida ao corpo não provêm
dele. Portanto, os contrários não se excluem mutuamente, de certa forma, eles
conservam a possibilidade latente de transformar-se no outro (Paviani, 2001, p. 157). Na
existência cíclica da vida e da morte existe alguma coisa que permanece, a psykhé. Ela
existe no Hades, mundo invisível, e no momento de reviver a psykhé encarna em um
novo corpo e o círculo repetir-se-á até que purificadas as psykhaí se libertarão deste
círculo de reencarnações.
Nada há, com efeito, Cébes, que conforme meu próprio modo de pensar seja mais verdadeiro do que isso; e não erramos, creio, ao ficar de acordo a esse respeito. Não, aí estão coisas bem reais: o reviver, o fato de que os vivos provêm dos mortos, de que a alma dos vivos têm existência, e – insisto neste ponto – de que a sorte das almas boas é melhor, e pior das almas ruins! (Fédon 72 d-e)
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Sócrates conclui: o regresso à vida é real, e as psykhaí existem no Hades e sofrem
punições de acordo com seu comportamento neste mundo. A antiga tradição mostrou-se
verossímil, pois estava de acordo com a lei natural dos contrários. O argumento dos
contrários, entretanto, não provou o que Cébes desejava: se a “alma subsiste com uma
atividade real e com capacidade de pensar” (Fédon 70b). É necessário introduzir um
segundo argumento: da reminiscência.
3.2 A reminiscência
As afirmações de que os vivos provêm dos mortos e as psykhaí existem em algum lugar
lembraram Cébes do argumento da reminiscência: “aprender, diz ele, não é outra coisa
senão rememorar” um conhecimento adquirido no passado e “tal não poderia acontecer
se nossa alma não existisse em algum lugar antes de assumir, pela geração, a forma
humana” (Fédon 72e-73a). Este argumento pressupõe a existência das Idéias, do
dualismo corpo e psykhé e sua relação com o imortal, o divino e o invisível.
O argumento já fora discutido no diálogo Mênon10 para solucionar a problemática do
conhecimento. No Fédon, é abordado na perspectiva da imortalidade da psykhé (73a).
Conhecemos, através da experiência, várias coisas, mas os dados obtidos pelos sentidos
não são seguros, porque acontece de pedaços de pedras, por exemplo, ora se
apresentarem como iguais, ora como desiguais (Fédon, 74b). Mas o conhecimento
somente por meio dos sentidos é imperfeito, mas a inteligência em contato com estas
sensações aprofunda-as e busca através dos raciocínios e da interiorização os
conhecimentos perfeitos correspondentes. Nenhuma coisa sensível é perfeitamente igual,
no entanto, os sujeitos do conhecimento possuem noção do Igual em si. De modo que
antes das experiências já se possuía o conhecimento da Realidade em si para, então,
tomá-la como modelo para as sensações, que possuem o “desejo de serem tal qual essa
realidade, e que, no entanto, lhe são inferiores” (Fédon 75b). O conhecimento do Igual
10 No Fédon, Platão parte do argumento da reminiscência para provar a imortalidade da psykhé. No Mênon, parte-se do postulado órfico da imortalidade da psykhé, dado como certo, para provar que o conhecimento é rememorar. “Como a alma é imortal e nasceu diversas vezes e viu tudo aqui e no mundo subterrâneo, não há nada que ela não tenha aprendido; de modo que não é surpreendente que ela possa rememorar as coisas que conheceu antes, sobre a virtude e sobre outras coisas. Como a natureza inteira é afim, e a alma aprendeu tudo, nada impede um homem, depois de ter relembrado uma única coisa – o processo a que as pessoas chamam de aprender -, de descobrir tudo o mais por si mesmo, se ele for corajoso e não se cansar da busca; pois se buscar e aprender são simplesmente rememoração” (Mênon 81d).
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em si não foi adquirido com as experiências – é pré-experiênciavel -, portanto é uma
necessidade tê-lo obtido antes do nascimento.
Assim, pois, que o adquirimos antes do nascimento, uma vez que ao nascer já dele dispúnhamos, podemos dizer, em conseqüência, que o conhecíamos tanto antes como logo depois de nascer, não apenas o Igual, como o Maior e o Menor, e também tudo o que é da mesma espécie? Pois o que, de fato, interessa agora à nossa deliberação não é apenas o Igual, mas também, o Belo em si mesmo, o Bom em si, o Justo, o Piedoso, e de modo geral, digamos assim, tudo o mais que é a Realidade em si, tanto nas questões que se apresentam a este propósito, como nas respostas que lhes são dadas. De modo que é uma necessidade adquirir o conhecimento de todas essas coisas antes do nascimento (Fédon 75c-d).
Ao nascer, contudo, perde-se todo o conhecimento das Realidades em si, e para recordá-
las se usa os sentidos, que ajudam a rememorar coisas semelhantes ou com elas
relacionadas (Fédon 76a).
Poder-se-ia supor que perdemos, ao nascer, essa aquisição anterior ao nascimento, mas que mais tarde fazendo uso dos sentidos a propósito das coisas em questão, reaveríamos o conhecimento que num tempo passado tínhamos adquirido sobre elas (Fédon 75a).
As Realidades em si fundamentam a existência das coisas sensíveis, que procuram
alcançar a perfeição de seus modelos ideais sem, contudo, nunca atingi-las. O
conhecimento, para Platão, é a possessão interior, que a psykhé detêm destas realidades
e foram apreendidas no contato direto com as Idéias. Este conhecimento foi perdido no
momento que a psykhé decaí na prisão do corpo. Não obstante, pode ser recuperado
através da reminiscência. Este argumento, no entanto, provou somente a preexistência
da psykhé, mas não eliminou dos interlocutores de Sócrates, o medo da morte. Será
necessário um terceiro argumento para provar a sua sobrevivência após a morte.
3.3 Argumento da afinidade O terceiro argumento fundamenta-se na semelhança da psykhé com as características
das Idéias.
Sócrates parte da distinção entre coisas simples e coisas compostas. As coisas simples
conservam sempre sua natureza e relação, enquanto a natureza das coisas compostas
está em constante transformação. Os seres simples possuem uma natureza imutável,
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uma unidade formal, permanecem idênticos a si mesmos, são em si e por si e
unicamente captados pelos raciocínios puros. Existem, de outro lado, as coisas
compostas suscetíveis a transformação e a decomposição e apreendidas através dos
sentidos. Ao estabelecer a existência entre duas espécies de seres: uma visível e outra
invisível, é preciso saber, com qual espécie de seres a psykhé e o corpo possuem maior
afinidade? Necessariamente, o corpo possui maior semelhança com a espécie de seres
visíveis, e a psykhé com os seres invisíveis (Fédon 79b).
A psykhé, entretanto, quando se utiliza do corpo como instrumento para examinar as
coisas que lhe são afins é “arrastada” para próxima das realidades mutáveis, mas se a
psykhé recolhe-se em si mesma, questiona em sua interioridade desligada do corpo,
lança-se em direção ao que é puro, sempre existe, nunca morre, que possui identidade e
fixa-se nestas realidades, encontra nas Idéias o seu objeto adequado e ao conhecê-las
descobre ser-lhes afim, ela conserva sua identidade e seu modo de ser, que é o
pensamento (Fédon 79d). Platão, para completar seu argumento, afirma que o corpo
possui natureza para servir e obedecer, portanto se assemelha ao mortal. A psykhé, ao
contrário, assemelha-se ao divino, pois sua natureza consigna comando e senhorio
(Fédon 80a). Cebes, se tudo o que foi dito nos conduz efetivamente às seguintes conclusões: a alma se assemelha ao que é divino, imortal, dotado da capacidade de pensar, ao que tem uma forma única, ao que é indissolúvel e possui sempre do mesmo modo identidade: o corpo, pelo contrário, equipara-se ao que é humano, mortal, multiforme, desprovido de inteligência, ao que esta sujeito a decompor-se, ao que jamais permanece idêntico [..] Uma vez que as coisas são assim, não é acaso uma pronta dissolução o que convém ao corpo, e à alma, ao contrário, uma absoluta indissolubilidade, ou pelo menos qualquer estado que disso se aproxime? (Fédon 80b)
Platão chega à conclusão que a psykhé é afim ao imortal, ao inteligível, ao idêntico a si
mesmo e em sua relação, ao indissolúvel, ao divino e possui a capacidade de pensar. O
corpo assemelha-se ao corruptível e mortal. Portanto, mesmo que se retarde a
decomposição do corpo graças a certos artifícios ou a suas próprias partes (ossos e
tendões), é a psykhé quem se dirige para um lugar nobre, puro, invisível, o “verdadeiro
país do Hades”, e ao separar-se do corpo nunca será aniquilada (Fédon 80d).
3.4 O Argumento Final
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Os três argumentos precedentes foram insuficientes para convencerem Símias e Cébes.
Sócrates procura, na última cena do diálogo, demover qualquer dúvida e apresenta seu
último argumento. Ele constitui-se de diversos momentos: a objeção de Símias e a de
Cébes, a refutação das duas objeções, a “segunda navegação”, a impossibilidade das
Idéias contrárias coexistirem no mesmo objeto, a participação da psykhé na Idéia de
Vida.
3.4.1 A objeção de Símias (85c-86d) e a refutação de Sócrates (92a-95a)
Símias é o primeiro a levantar suas dúvidas. Influenciado pela doutrina pitagórica de
Filolau, afirma que o argumento socrático pode ser aplicado como analogia à harmonia e
à lira com suas cordas. A harmonia, segundo ele, é invisível, incorpórea, bela, divina; a
lira e suas cordas são corpóreas, compostas, terrenas, aparentadas à natureza mortal.
Quando se quebra a lira ou despedaçam-se suas cordas não é cabível sustentar que a
harmonia continuaria a existir. Portanto, a analogia entre a harmonia e a psykhé
demonstra que sua imortalidade não é concebível. Nesta visão, a psykhé emergiria da
combinação harmônica entre vários elementos constitutivos do corpo.
Admito que nosso corpo seja semelhante a um instrumento de cordas e que sua unidade seja mantida pelo calor e o frio, pelo seco, pelo úmido e outras qualidades análogas, é a combinação e a harmonia desses mesmos contrários que constituí a nossa alma, quando se combinam em proporções convenientes (Fédon 86b-c).
A psykhé, neste argumento, é considerada mortal e quando acometida por uma doença
(que destrói a harmonia) pereceria até mesmo antes dos elementos materiais.
A primeira crítica levantada por Sócrates contra a tese da harmonia é a sua
incompatibilidade com o argumento da reminiscência. A reminiscência implica
necessariamente a pré-existência da psykhé em relação ao corpo, mas na tese de Símias
a harmonia (= alma) surgirá por último e desaparecerá antes de tudo o mais. Símias é
convencido pela posição socrática em favor da reminiscência, pois ela “está assente em
bases mais sólidas” (Fédon 92b). Segunda crítica, a harmonia não governa e não pode
se opor aos elementos que a compõem, mas está sob dependência deles. A psykhé,
contrariamente, governa o corpo reagindo aos seus desejos. Terceira crítica, a harmonia
possui graduações em grau maior ou menor dependendo de seus elementos. Mas é
inimaginável a existência das psykhaí em grau maior ou menor, ou psykhaí harmônicas e
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psykhaí desarmônicas, existindo entre as primeiras um acordo “harmônico” entre razão e
desejos e entre as segundas não. Quarta crítica, existem psykhaí virtuosas e outras más.
Quando se considera a psykhé como harmonia, todas deveriam ser consideradas
uniformemente boas, o que não acontece.
A psykhé, conclui Sócrates, não pode ser harmonia.
3.4.2 A objeção de Cébes (86e-88b)
Cébes elabora uma objeção complexa contra os argumentos socráticos. Parte da
preexistência da psykhé, mas não admite sua capacidade de sobreviver após sucessivas
reencarnações. A cada passagem por um corpo, a psykhé perderia paulatinamente a sua
energia até se esgotar completamente, portanto ela não seria imortal e indestrutível.
3.4.3 “Segunda navegação”
A refutação de Cébes necessita de uma nova visão metafísica da realidade. Na
passagem 95d-102a do Fédon, através da comunicação de Sócrates aos seus discípulos
de seu itinerário filosófico, descreve-se o caminho, que a psykhé humana deve realizar
em busca da verdade. O itinerário socrático constitui a primeira explicação racional, na
história, sobre a existência de uma realidade transcendente. E é fundamental para a
prova da imortalidade e para a definição da psykhé.
A abordagem platônica distancia-se das explicações dos primeiros pensadores e abre a
perspectiva para uma explicação metafísica da realidade na qual a psykhé é justificada
pela existência de uma realidade transcendente e inteligível.
No itinerário investigativo do Fédon distinguem-se duas fases: a) a física é percorrida
segundo o método dos filósofos naturalistas; b) a metafísica segue um novo método e é
descrita na emblemática metáfora da “segunda navegação”. A fase física escalona-se,
por sua vez, em dois momentos: o primeiro é inspirado nas doutrinas dos físicos em
geral, dentre os quais se destaca Heráclito e o problema do movimento (Fédon, 95d-
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97a)11; o segundo é o encontro com a doutrina da “Inteligência” de Anaxágoras, a mais
elevada perspectiva lograda entre os naturalistas (Fédon, p. 97a-99d). A “segunda
navegação”12, uma travessia original, levou Platão a afastar-se do método naturalista
fundado sobre os sentidos, com a “descoberta” da realidade supra-sensível: a existência
das Idéias ou Formas () (Fédon, p. 99e-102a). Estabelecidos os pontos centrais
do itinerário socrático, explicitemos suas fases.
Os problemas de fundo da investigação platônica são a geração, a corrupção e o ser das
coisas. Platão afirma expressamente ter partido destes problemas de fundo quando
jovem em busca da sabedoria concernente à “análise da natureza” (
), e é, o tipo de investigação realizada pelos naturalistas, e analisa cada uma das
respostas àqueles problemas (Fédon, 96c-d). Por exemplo, se a causa do nascimento
era o calor ou o frio (milésios); que o pensamento era causado pelo sangue (como
propunha Empédocles), ou pelo ar (como diziam Anaxímenes e Diógenes de Apolônia),
ou pelo fogo (segundo pensava Heráclito), ou se era causado somente pelo cérebro
(como pensava Alcméon).
Mas as respostas obtidas pelos naturalistas eram limitadas ao caráter físico dos objetos.
E ao examinar estas respostas, Platão constatou que elas não explicavam a causa de
nada, mas, na verdade, obscureciam as coisas que antes se sabia com segurança.
Segundo Reale (2004, p. 104), Platão demonstra que os fisiólogos fizeram emergir ao
primeiro plano as inconsistências das explicações naturalistas sobre as quais o “senso
comum” fundava-se e ampliaram, em grande medida, suas aporias. No domínio das
explicações comuns, por exemplo, um cavalo é maior que outro por uma cabeça, mas a
cabeça é coisa pequena e o menor não pode ser causa do maior (Fédon, p. 100a e 102d-
e).
As explicações anteriores, segundo Platão, não o fizeram conhecer em nada as “causas
verdadeiras”. Ele depositou suas esperanças na concepção da “Inteligência” de
11 Cf. Aristóteles (Metafísica, 987a32-b1): “Tendo em sua juventude se tornado primeiro familiar a Crátilo e às doutrinas heraclíticas (que todas as coisas sensíveis estão sempre em um estado de fluxo e que não há nenhum conhecimento acerca delas), manteve essas visões mesmo nos últimos anos de sua vida”. 12 Segundo Reale (2004, p.108) a metáfora da “segunda navegação” foi tirada das linguagens dos marinheiros e sua melhor explicação foi oferecida por Eustáquio: “Chama-se ‘segunda navegação’ aquela que alguém empreende quando, ao ficar sem ventos, navega com os remos” (In Odyss. p. 1453, 20). A primeira navegação seria feita com velas ao vento e corresponderia ao empreendimento realizado pelos naturalistas. A “segunda navegação” feita com remos, na falta de apoio do vento, corresponde ao novo método platônico que leva ao supra-sensível.
O CONCEITO DE PSYKHÉ NO FÉDON - 13 -
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Anaxágoras, mas ele também fracassou em explicar as “causas verdadeiras”. A
Inteligência era a causa do movimento no espaço, mas quanto às outras questões
continuava Anaxágoras dependente da explicação mecânica dos naturalistas.
Ao sustentar a “Inteligência” como ordenadora, Anaxágoras deveria ter explicado o
critério do melhor em função do qual ela opera e com base nesse critério deveria explicar
os modos de agir, padecer e ser dos vários fenômenos. Deveria explicar como os
fenômenos sustentam-se em função do conhecimento do melhor (“Bem”) e do pior.
Anaxágoras introduziu a “Inteligência”, mas não a identificou com o “Bem”, e as causas
continuaram a ser atribuídas aos elementos físicos, que apesar de necessários à
constituição do universo não eram sua “causa verdadeira”. Sócrates exemplifica de
maneira esclarecedora: se um homem sustentasse que Sócrates faz tudo o que faz pela
Inteligência, mas em seguida explicasse sua permanência no cárcere em função de seus
órgãos locomotores, de seus ossos, de seus nervos, de sua capacidade de contração e
de extensão que permitem dobrar a perna; não recorreria à “causa verdadeira” que foi
sua convicção de ter escolhido racionalmente o “melhor” e o “justo” (Fédon, 98c-99b).
Para Sócrates locomover-se até seu cárcere fica evidente a necessidade de seus órgãos
físicos, contudo, e este é o ponto, ele age através dos órgãos, mas não por causa dos
órgãos (Reale, 2004, p. 107).
Para responder àqueles problemas, o método naturalista obscurecia o conhecimento e
levava a diversas aporias. “Eu almejava ser discípulo de qualquer homem que houvesse
podido me ensinar essa causa, mas, como não posso chegar a conhecê-la nem por mim
nem por outro, desejas, Cébes, que te conte a “segunda navegação” ( )
que fiz para encontrá-la?” (Fédon, 99c-d) A “segunda navegação” transcendia o nível do
conhecimento físico dos naturalistas e levou Platão a alcançar a esfera do supra-sensível
onde fundamentou outro tipo de causa: as realidades inteligíveis. São estas causas que
explicam a realidade sensível. Na visão platônica, o físico não pode ser considerado
como “causa verdadeira”, porque está sujeito ao movimento contínuo e,
conseqüentemente, reduz o sensível ao meio e instrumento mediante o qual a “causa
verdadeira” atualiza-se.
Para explicar-te o método que utilizei na pesquisa das coisas, volto ao que tanto discuti. Afirmo, então, que isto me serve de ponto de partida e de base quando admito que existe uma Beleza em si e por si, uma Bondade, uma Grandeza em si e por si, e a mesma coisa ocorre com tudo mais. Se concordas com isto, espero poder provar-te por que a
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alma é imortal[...]Por conseguinte, não posso mais compreender e não saberia compreender todas essas outras causas tão sábias que se nos apresentam, mas se alguém me disser que o que faz uma coisa seja bela é a vivacidade das cores ou a proporção de suas partes, deixo todas essas razões que podem embaraçar-me e respondo simplesmente que nada a faz bela, salvo o contato com o belo de que falamos ou por outros processos que implicam esta relação. A respeito deste último ponto, ainda não estou seguro, mas afirmo que o Belo é que torna belas todas aquelas coisas que o são. Pois nisto tenho a maior segurança em dar uma resposta, tanto a mim quanto a um outro. Ao seguir esse princípio parece-me que não me arrisco a desviar-me: que segurança responder a outrem que as coisas são belas por causa da Beleza![...] Da mesma forma quanto às coisas grandes, não o são pela presença da Grandeza e as pequenas pela Pequenez? (Fédon,100b-e)
Nesta ótica, as Idéias são o modelo com o qual os seres de uma espécie devem possuir
semelhança. A unidade das Idéias fundamenta a multiplicidade das coisas sensíveis. Ela
é a determinação ontológica, que torna a coisa aquilo que ela é. É na relação causal da
Idéia de Belo com algum objeto sensível, por exemplo, uma flor, que faz com que ela
mediante suas características físicas (a proporção, a figura, a cor) possua as condições
para ser chamada de bela.
Platão utiliza uma variada terminologia para estabelecer a relação entre sensível e
inteligível: o sensível é mimese do inteligível, porque o imita sem conseguir igualá-lo; o
sensível participa do inteligível, porque atualiza a essência; o sensível possui comunhão
com o inteligível, na medida em que o sensível recebe o ser e a inteligibilidade do
inteligível; o inteligível esta presente no sensível, na medida em que o princípio esta no
principiado, a causa no causado. Estas considerações platônicas levaram muitos
estudiosos a se confundirem em relação ao seu verdadeiro significado. Platão procura
estabelecer que o transcendente seja a causa do imanente, mas deixa sem resolver o
problema fundamental da relação entre o sensível e as Idéias, que não pode ser pensado
sem um princípio que realize e fundamente a participação das coisas nas Idéias. Este é o
problema da Inteligência demiurgica organizadora do cosmos. Apesar de Platão já
possui-lo na época de composição do Fédon não o desenvolve.13
As características das Idéias, apesar de desenvolvidas em vários diálogos, apresentam-
se como irrenunciáveis: 1) inteligibilidade, as Idéias são objetos da inteligência e são
13 Reale, 1994, p. 80-81. Platão refere-se ao problema da necessidade da “Inteligência” como ordenadora da realidade na passagem da “segunda navegação” no Fédon, embora somente no Timeu ele a desenvolve em amplo aspecto. Para uma inovadora e penetrante analise do “Demiurgo”, à luz do paradigma da Escola de Tübingen, na obra platônica, confira Reale, 2004, p. 375-408 e 437-530, especificamente sobre o Fédon, p.378-385.
O CONCEITO DE PSYKHÉ NO FÉDON - 15 -
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captadas somente por meio dela; 2) incorporeidade, as Idéias são uma realidade que
está além do alcance da experiência dos sentidos; 3) ser no sentido pleno, o ser das
Idéias é puramente inteligível e incorpóreo, que não nasce nem perece de modo nenhum
e é em si e por si; 4) imutabilidade, as Idéias são imunes a qualquer tipo de
transformação; 5) perseidade, as Idéias são em si e por si e possuem uma existência real
e objetiva, que independe do sujeito que conhece; 6) unidade, cada Idéia é una em si
mesma e unifica a multiplicidade das coisas sensíveis que delas participam.14
As Idéias, isto é, a realidade inteligível transcende as características dos corpos físicos,
mas também a própria fonte () material do que é físico. A transcendência das Idéias
é o fundamento que as tornam a causa do sensível. Segundo Reale (1994, p. 76),
“As Idéias não poderiam ser a causa do sensível (isto é, a “causa verdadeira”) se não
transcendessem o próprio sensível; e, justamente transcendendo-o ontologicamente
podem ser o fundamento da sua estrutura ontológica imanente. Em resumo, a
transcendência das Idéias é justamente o que qualifica a função que elas cumprem de
‘causa verdadeira’ [grifado no original]”. O inteligível é o ser determinado, que age como
causa determinante, ou seja, a “causa verdadeira” e “real”.
A descoberta das realidades meta-físicas como “causa verdadeira” levou Platão a
reconhecer a existência de dois planos da realidade: um fenomênico e captável através
do corpo e outro plano supra-sensível e captável apenas através da psykhé. Desta forma,
as Idéias redimensionam a argumentação sobre a psykhé e sobre a imortalidade para um
novo plano metafísico.
3.4.4 A Idéia de vida e a psykhé15
Sócrates estabelece o princípio de exclusão dos contrários: as Idéias contrárias não se
combinam e excluem-se mutuamente. Por conseqüência, quando uma determinada Idéia
“entra” em uma coisa, a Idéia contrária que estava em tal coisa cede o lugar.
14 Para uma análise detalhada das características das Idéias cf. Reale, 2004, p. 117-156. 15 Platão ao traçar o quadro de seu itinerário filosófico mostra a necessidade da constituição de um edifício metafísico fundado sobre a distinção entre mundo sensível e o mundo inteligível ou ideal. Procura-se, neste argumento, demonstrar que a psykhé traz em si a Idéia de Vida e, portanto, necessariamente exclui a morte e revela-se imortal e indestrutível.
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A grandeza em si jamais consente em ser simultaneamente grande e pequena. Da mesma forma procede a grandeza, nunca admitindo a pequenez nem desejando ser ultrapassada, mas optando por uma das alternativas: ou se retira e foge quando o seu contrário, a pequenez, se aproxima – ou, então, cessa de existir quando aquela avança (Fédon 102 d-e).
Um dos espectadores, no entanto, observa que no princípio da discussão ficou
estabelecido que o único meio de geração dos contrários é a partir de seu próprio
contrário. Mas, agora, afirma-se justamente o oposto, ou seja, é impossível a geração de
uma coisa acontecer a partir de seu contrário (Fédon 103a).
A objeção é levantada por um participante que certamente não compreendeu a nova
visão da realidade e, conseqüentemente, a mudança no nível da argumentação
alcançado com a “segunda navegação”. Antes, tratava-se de coisas contrárias às quais
eram atribuídos predicados não essenciais. Para a água ser água não é necessário que
ela esteja quente ou fria. Esses atributos são contingentes e dependem de certas
circunstâncias. A discussão, agora, trata-se das realidades em si, isto é, da Idéia que
determina a identidade da coisa.16
A exclusão dos opostos, segundo Platão, abrange também todas as Idéias e coisas que,
mesmo não sendo contrárias entre si, têm os contrários como atributos essenciais: o fogo
nunca admite em si a Idéia de frio; quando este se aproxima, aquele foge. E a neve
nunca admite a Idéia do quente. De maneira semelhante, o número três participa da Idéia
de três, mas participa também da Idéia de ímpar, que é essencial para este número. Mas
o número três, mesmo não sendo em si contrário ao dois, a imparidade é contrária a
paridade, de modo que o três nunca aceita a paridade; e o dois a imparidade (Fédon
104a-b).
Sócrates aplica o princípio da exclusão dos opostos à psykhé para fundar sua dupla
qualificação: imortal e, por conseqüência, indestrutível.
16 “No início de nossa palestra foi afirmado que uma coisa se forma da coisa contrária; mas, neste momento, o que se diz é que o contrário em si não se forma de seu contrário, tanto em nós como em sua natureza. Antes, meu amigo, falávamos de coisas que possuem qualidades contrárias, e então as classificamos de acordo com estas. Agora, porém, estamos a falar daqueles próprios contrários que estão dentro de uma coisa e lhe dão o nome, e não dissemos que esses contrários possam ter sua origem na coisa contrária” (Fédon 103b)
O CONCEITO DE PSYKHÉ NO FÉDON - 17 -
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“Qual é a coisa que, entrando num corpo, o torna vivo?” (Fédon 105a) A psykhé,
responde Sócrates, que mesmo não sendo a Idéia de vida em si, é portadora da vida.
Assim, a psykhé possui em si a vida cujo contrário é a morte. Dentro da lógica do
argumento, à psykhé é impossível receber a Idéia contrária à vida, isto é, a Idéia de
morte. Ora, não aceitar em si a morte implica, necessariamente, a sua imortalidade.
Conclui-se que a psykhé, em sua estrutura essencial, não pode acolher a morte, porque a
morte é contrária à vida. De modo análogo, é impossível à neve ser quente ou ao fogo
ser frio. Segundo Platão, se a psykhé é imortal, então é indestrutível.
Esta prova, em última instância, depende da concepção grega que relaciona o imortal = o
divino = o indestrutível. Os fundamentos da crença na imortalidade, portanto, não são
redutíveis às verdades proposicionais estritamente lógicas, mas estão arraigadas em
crenças muito mais profundas. Não obstante, as discussões racionais sobre um assunto
assaz importante não podem ser negligenciadas.17
4. A dimensão ética do Fédon
A aceitação, baseada em argumentos racionais, da imortalidade da psykhé, implica uma
revisão dos antigos valores morais, da compreensão do homem de si mesmo, da
estrutura ontológica do mundo, enfim, fundamenta uma nova compreensão da existência
humana.18
Se verdadeiramente a alma é imortal, cumpre que zelemos por ela, não só durante o tempo atual, mas também pela totalidade do tempo; pois seria um grande perigo não se preocupar com ela. Admitamos que a morte nada mais seja do que uma total dissolução de tudo. Que admirável sorte não estaria reservada então para os maus, que se veriam nesse momento libertos de seu corpo, de sua alma e da própria maldade! Mas, em realidade, uma vez evidenciado que alma é imortal, não existirá para ela, nenhuma fuga possível a seus males, nenhuma salvação, a não ser tornando-se melhor e mais sábia. A alma, com
17 Em uma passagem característica, Sócrates exorta seus discípulos a continuarem a investigação: “- Tampouco eu – confessou Sìmias – jamais poderia duvidar, após essas demonstrações – mas, apesar disso, devido à magnitude da matéria tratada e por desconfiança em face da fraca natureza humana, acho necessário não confiar na discussão”. “- Nem só isso – exclamou Sócrates. – A justeza de tuas palavras se estende também às premissas: por mais certas que vos pareçam ser, não deixam por isso de exigir um exame mais profundo” (Fédon 107a-b). 18 Cf. Dodds, 2002, p. 143. Segundo Santos (1999, p. 106), “a revolução da visão antiga elaborada por Platão acerca do “verdadeiro homem” corresponde igualmente a uma revolução profunda da concepção sobre o sentido da vida e da morte do homem, de sua missão e de seu destino. Em suma: corresponde a uma revolução radical daqueles que, com terminologia moderna, podemos chamar valores morais”. Sobre a revolução órfica que precedeu e fundamentou a platônica cf Oliveira, 2004; Reale, 1993 apêndice I; Dodds, 2002, p.139-180.
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efeito, nada mais tem consigo, quando chega ao Hades, do que sua formação moral e seu regime de vida – o que aliás, segundo a tradição [órfica], é justamente o que mais vale ou prejudica ao morto, desde o início da viagem que o conduz ao além (Fédon 107a-d).
Platão sustenta uma visão oposta a da tradição. Em Homero, a psykhé não é
responsável pelas capacidades cognitivas dos homens e tão pouco se manifesta quando
o corpo esta vivo. No momento da morte, um “duplo” do herói baixa para o Hades onde
continuará um tipo de “existência” privada de sentido. Segundo Reale (2002, p. 17), a
psykhé representa o “não-estar-mais-vivo” do homem, ou em linguagem filosófica, “o ser
do ter sido”19. As atividades sensitivas e cognitivas são explicadas por palavras que
representam o que chamamos de “órgão” e localizam-se no corpo: kradie, ker, etór,
thymós, phrén, phrénes, noûs. Os valores morais homéricos, conseqüentemente, são
ligados ao cuidado com o corpo: força, beleza, vigor, etc. Dentro desta visão, a
imortalidade é alcançada neste mundo e através da fama e estima pública decorrente da
superação do seu igual e transmitida à posteridade pelo poeta cantor da “sorte” dos
homens (Ilíada VI, 358-359). A radical desvalorização da vida no além-túmulo é
representada de modo emblemático por Aquiles, que preferia a sórdida existência do
lavrador sem terra a reinar sobre os mortos. 20
Na visão platônica, por outro lado, o corpo encontra-se em radical oposição à psykhé. É
considerado a origem de todos os meles infringidos ao homem: guerras, tumultos e
batalhas (Fédon 66c). Platão refere-se a ele através de metáforas negativas afirmando-o
como uma prisão ou túmulo21. Neste sentido, a psykhé esta mais próxima da morte
quando presa ao corpo nesta vida, mas com a morte do corpo – o morrer é característica
do que é composto – ela liberta-se de sua prisão para contemplar as Idéias, sem os
obstáculos impostos por ele. A comparação entre corpo e prisão é caracterizada dentro
do contexto do Fédon. Sócrates está preso, segundo as leis da cidade e sofrerá dentro
19 W. Otto. Theophania. Der Geist der Altgrienchischen Religion. Frankfurt a. M., 1975, apud, Reale, 2002, p. 75. 20 “Não me consoles da morte, Ilustre Ulisses!/ Preferiria, sendo um lavrador, alugar meus serviços a um outro,/ a um homem sem-lote, que não tem muitos recursos,/ do que reinar entre todos os mortos já perecidos.” (Odisséia, XI, 488-491) Para um estudo detalhado do significado da psykhé em Homero e a nova visão órfica sobre o homem ver Oliveira e Bulhões 2006b. 21 “Alguns chamam o corpo [sêma] túmulo [sôma] da alma, como se ela aí se encontrasse sepultada na vida presente[...]Todavia, parece-me que esse nome foi atribuído sobretudo pelos seguidores de Orfeu, dado que para eles a alma paga a pena das culpas que deve expiar, e tem esse invólucro, imagem de uma prisão, para que se salve. Este, portanto, como sugere o próprio nome, é ‘custódia’ da alma, enquanto ela não tiver pago o seu débito” (Crátilo 400c). Nesta passagem, Platão faz um jogo etimológico com as palavras sêma e sôma para mostrar como o corpo é um túmulo.
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em breve a mais grave punição, a morte; mas ele inverte o raciocínio, ele estava preso ao
corpo e com a ingestão da cicuta será libertado.
Vou dizer-te. É uma coisa bem conhecida dos amigos do saber, que sua alma quando foi tomada sob os cuidados da filosofia, se encontrava completamente acorrentada a um corpo e como que colada a ele; que o corpo constituía para a alma uma espécie de prisão, através da qual ela devia forçosamente encarar as realidades, ao invés de fazê-lo por seus próprios meios e através de si mesma; que, enfim ela estava submersa em uma ignorância absoluta. E o que é maravilhoso nesta prisão, a filosofia bem o percebeu, é que ela é obra do desejo, e quem concorre para apertar ainda mais as suas cadeias é a própria pessoas (Fédon 82d-83a).
O filósofo, portanto, deve afastar-se do corpo e de seus prazeres (como o sexo, os
ornamentos e as riquezas) voltando suas preocupações para o cuidado com a psykhé.
Porque o corpo é um empecilho para que a psykhé possa alcançar a verdadeira
sabedoria22. Por meio do corpo, o homem é inundado com sofrimentos, prazeres, dores,
sensações incertas e todo o tipo de desejos, que atrapalham o conhecimento. Somente
quando a psykhé estiver afastada do corpo poderá, com o puro raciocínio, conhecer o
que cada coisa é em si: a Idéia. E somente com a morte do corpo, a psykhé estará
complemente livre. E quem haveria de obter em sua maior pureza esse resultado, senão aquele que usasse no mais alto grau, para aproximar-se de cada um desse seres [Idéias], unicamente o seu pensamento, sem recorrer no ato de pensar nem à vista, nem a um outro sentido, sem levar nenhum deles em companhia do raciocínio; quem, senão aquele que, utilizando-se do pensamento em si mesmo, por si mesmo e sem mistura, se laçasse à caça das realidades verdadeiras, também em si mesmas, por si mesmas e sem mistura? e isto só depois de se ter desembaraçado o mais possível de sua vista, de seu ouvido, e numa palavra, de todo os seu corpo, já que é este quem agita a alma e o impede de adquirir a verdade e exercer o pensamento, todas as vezes que está em contato com ela? (Fédon 65e-66a)
22 A separação da psykhé e do corpo no Fédon é fundamentada em um nível ontológico e possui um valor provocador. Cf. Fédon 80a-b. Mas no plano antropológico (principalmente no Timeu), Platão assume uma posição menos radical e revaloriza os sentidos como necessários à natureza do homem: “A vista segundo meu entender, tornou-se para nós causa das maiores utilidades, pois de todos os raciocínios que agora são feitos a respeito do universo nenhum poderia ser feito se não tivéssemos visto nem os astros nem o sol, nem o céu. Agora, ao contrário, o dia e noite, à medida que são vistos, e os meses e os ciclos dos anos e os equinócios e solstícios realizaram o número e forneceram a noção de tempo e a pesquisa a cerca da natureza do universo. A partir dessas coisas forneceram-nos o gênero da filosofia, de modo que nenhum bem maior foi concedido, nem nuca será ao gênero humano, posto que é um dom dos deuses. Por isso que os olhos são o maior bem” (Timeu, 47a-b). Mesmo no Fédon é, no argumento da reminiscência (Fédon 75e), os sentidos que ajudam a psykhé a rememorar o conhecimento das Idéias. Sobre a compreensão da relação entre corpo e psykhé cf. Reale, 2002, p. 175. 180-184; Paulo, 1996, p. 60-62
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Platão redimensiona o significado da morte: tradicionalmente acreditava-se nela como o
maior dos males por privar o ser humano dos prazeres do corpo; mas, agora, transforma-
se em um bem, porque com a morte, a psykhé separa-se completamente do corpo, uma
espécie de prisão, que a privara de contemplar a verdade. A morte não destrói a psykhé,
que é afim à realidade supra-sensível, mas ontologicamente afeta somente o corpo. É,
portanto, um benefício, pois permite à psykhé viver uma vida autêntica imersa no
inteligível.
Platão, portanto, estabelece uma estreita relação entre filosofia e morte. O filósofo
perscruta incansavelmente para encontrar a sabedoria, mas também é aquele que,
enquanto estiver neste mundo, “prepara-se para morrer e estar morto” (Fédon 64a). A
morte é a separação entre as duas partes constituintes do homem: a psykhé inteligível e
o corpo sensível (Fédon 64c e 67d).
A kartáse no pensamento platônico, diversamente das iniciações misteriosóficas, é
realizada pelo filósofo e coincide com o processo do conhecimento do inteligível. O
modelo de vida ética, no Fédon, é dedicado exclusivamente ao conhecimento.23 O
homem é composto de duas realidades: o corpo e a psykhé, mas unicamente a psykhé é
afim a realidade inteligível das Idéias. Platão “revolucionou” a ética grega, porque os
valores tradicionais baseavam-se no visível e sensível; conquanto a “segunda
navegação” fundamenta uma ética transcendente.
Mas Platão nunca abandonou completamente os interesses sobre os assuntos deste
mundo. Na República, a volta dos guardiões para o interior da caverna para guiarem os
que lá ficaram, depois de terem alcançado o conhecimento verdadeiro. E, no Fédon, a
obediência de Sócrates, mesmo que isso lhe custe a vida, às leis da cidade mostra a
preocupação platônica com a organização da cidade.24 Para Platão, o conhecimento
poderia mudar o modo de vidas das pessoas tanto individualmente (buscarem as virtudes
23 “Assim se entende perfeitamente por que o processo do conhecimento racional seja, para Platão, processo de conversão moral: na medida em que o processo do conhecimento conduz-nos do sensível ao supra-sensível, converte-nos de um mundo a outro e nos leva da falsa à verdadeira dimensão do ser. Portanto, conhecendo [grifado no original], alma se cura, purifica-se, converte-se e se eleva. Nisso consiste a sua virtude” (Fédon, 1994, p. 214) 24 Sócrates tinha a oportunidade de fugir da prisão, mas não a aproveitou porque possuía a convicção que o cidadão deve obedecer às leis da pólis. “Estou aqui porque os atenienses julgaram melhor condenar-me à morte, e por isso pareceu-me melhor ficar aqui, e mais justo aceitar a punição por eles decretada. Pelo Cão. Estou convencido de que estes tendões e este ossos já poderiam há muito tempo se encontrar perto de Mégara ou entre os Beócios, para onde os teria levado uma certa concepção do melhor, se não me tivesse
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realmente importantes através do cuidado da psykhé), quanto socialmente (quando os
filósofos tornarem-se os governantes da pólis para a dirigirem de acordo com o melhor).
5. O conceito de psykhé no Fédon A idéia de psykhé é um dos vértices do pensamento grego e, na filosofia de Platão, é o
conceito que unifica, em suas diversas relações, a “teoria” das Idéias, a ética e a política.
No Fédon acontece a primeira tentativa de sistematizar a psykhé, abordando-a em
relação a sua imortalidade.
Na discussão, Sócrates caracteriza a psykhé como: a) infunde vida e movimento ao
corpo; b) é uma realidade matassensível “semelhante” às Idéias; c) imortal; d) seu modo
de vida neste mundo determina o seu destino escatológico; e) é, durante a existência
presa ao corpo, o verdadeiro ser do homem.
Platão redimensiona o valor atribuído ao corpo ao considerá-lo um impedimento à vida
moral e cognitiva da psykhé. A psykhé está presa a ele, mas é ela quem lhe infunde vida
e movimento. Sem uma psykhé, o corpo é um composto sem vida.
Mas para a psykhé conhecer as realidades em si mesmas, que são eternas e imutáveis,
é preciso se afastar dele. Essas realidades permanecem idênticas a si mesmas e
imutáveis, portanto, são superiores e a causa das realidades sensíveis. Assim, ao corpo
é atribuída a capacidade de conhecer o que lhe é semelhante, isto é, as realidades
sensíveis. Seguindo esta lógica, a psykhé apreende as realidades ontologicamente
diferentes das realidades sensíveis, porque sua natureza é afim a delas.
As Idéias ao transcenderem o sensível são justamente “causa verdadeira” e podem
somente ser captadas pela inteligência. As Idéias contrárias, por sua vez, excluem-se
mutuamente. De modo que, as coisas sensíveis que participam de Idéias que são
contrárias também não podem permanecer juntas. Por conseqüência, quando uma
determinada Idéia “entra” em uma coisa, a Idéia contrária, que estava em tal coisa cede o
lugar. Ora, a característica essencial da psykhé é a vida, enquanto é a portadora da Idéia
de vida: ela dá vida ao corpo enquanto está presente nele. A psykhé, por conseguinte,
parecido mais justo e mais belo preferir à fuga e à evasão a aceitação, devida à Cidade, da pena que ela me prescreveu!” (Fédon 98e-99a).
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nunca poderá aceitar em si a morte, porque esta é necessariamente contrária à vida.
Sócrates conclui que a psykhé é imortal.
A psykhé, contudo, pode libertar-se das sucessivas passagens pelos corpos para viver
em outro lugar. Mas, para tanto, deverá abandonar a vida dedicada aos prazeres do
corpo e viver dedicado à filosofia e ao conhecimento das Idéias em si.
Na perspectiva platônica no Fédon, a psykhé constitui o ser imutável e idêntico a si
mesmo do homem que sobreviverá ao constante movimento e mudança das coisas
corruptíveis deste mundo.25
6. Considerações Finais
Procurou-se na presente pesquisa evidenciar a compreensão platônica do homem,
abordada a partir do conceito de psykhé no Fédon.
Antes de Platão, a idéia de psykhé sofreu profundas transformações, que se refletiram
nas concepções gregas do homem e de seu lugar no universo.
Nos poemas homéricos, as bases da Paidéia grega, quando os homens morriam, a
psykhé voava para o Hades. Lá, elas existiriam privadas das características distintivas do
homem: os sentimentos, as sensações e as capacidades cognoscitivas. A existência de
um além-túmulo sem atrativos criou uma visão de mundo na qual se valorizava o destino
trágico dos heróis e as virtudes relacionadas ao corpo e a guerra. No mundo homérico, a
imortalidade somente era alcançada, no canto dos poetas, por aqueles que superavam
seus iguais.
Platão, no Fédon, ao polemizar contra a visão que negava à psykhé a imortalidade
recorre ao movimento religioso do orfismo, uma seita marginal à cidade e à postura da
religião cívica. Seu principal ensinamento considerava a psykhé descendente dos
deuses, portanto, imortal, que decaiu no corpo para expiar as culpas cometidas em vidas
25 “A psykhé, que é ‘nós mesmos’ dentro de cada um de nós, tem um caráter ‘demoníaco’: é uma parcela do divino no homem. Nesse sentido, poderíamos dizer que, no mundo onde nada é permanente, onde tudo está destinado a desaparecer, a psykhé constitui em cada criatura humana o reflexo que o Ser imutável imortal, nela projeta seu rastro mais ou menos apagado, imagem obscurecida, em suma, duplo ou fantasma: eídolon de um divino do qual o filósofo, como Aquiles assombrado pela saudade de Pátroclo, guarda a nostalgia” (Vernant, 2002, p. 433).
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passadas. Para se libertar do círculo de reencarnações, o homem precisaria cumprir
rigorosas práticas ascéticas de purificação, por exemplo, abster-se de comer carne e
passar pelos ritos iniciáticos. O orfismo redimensionou a visão sobre o homem: o homem
possui uma parcela da divindade em si, que precisa ser purificada através de rituais e de
suas escolhas na vida.
Platão parte da crença órfica na imortalidade e a repensa em um nível qualitativamente
diverso. Enquanto a ética órfica é uma convicção, embasada exclusivamente na crença
no mito de Zagreu, a ética do Fédon é fundamentada em argumentos racionais
construídos detalhadamente e que dependem, em sua estrutura interna, da nova
concepção metafísica da realidade: a “teoria” das Idéias.
A psykhé, segundo Platão, é semelhante às Idéias e ontologicamente distinta do corpo.
Assim como no orfismo, o corpo é considerado uma prisão na qual as psykhaí, que não
viveram uma vida dedicada ao conhecimento, estão condenadas. O método platônico,
contudo, capaz de libertar a psykhé de sua prisão é radicalmente transformado. É através
do exercício da filosofia em busca do conhecimento das formas perfeitas que a psykhé se
purifica. Mas é somente com a morte do corpo, que a psykhé será completamente
libertada, se cumpriu seu dever, viverá no Hades ao lado dos deuses e dos melhores
homens. A filosofia, portanto, é uma preparação para a morte. A esperança e o discurso
socráticos, no entanto, somente exortarão as pessoas a tornarem-se filósofas se se
comprovar que a psykhé viverá sem o corpo.
Entende-se, agora, perfeitamente o emblemático último pedido de Sócrates: “Críton,
devemos um galo a Asclépio” (Fédon 118). Asclépio era o deus da medicina e da cura.
Em seus templos os agraciados com a cura de seus males ofereciam um galo como
pagamento. Assim, Sócrates que estava prestes a ser curado do corpo, liberto de sua
prisão pede que Críton pague sua dívida com o deus da cura. Isso significa, segundo
Nietzsche (A Gaia Ciência, § 340), “para aquele que tem ouvidos: ‘Ó Críton, a vida é uma
doença’”.
A concepção platônica da alma transformou radicalmente a visão européia sobre a
existência humana: tirou o centro da vida deste mundo e o transferiu para o além. O ser
do homem é a sua psykhé, essa entidade invisível que ocupava o corpo e lhe infundia
vida.
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O conceito de psykhé, no entanto, será redimensionado em diversos escritos posteriores
ao Fédon. Na República, a psykhé articula-se em três partes diferentes: alma racional, a
alma concupiscível e a alma irascível. No Fedro, desenvolve-se a característica do
movimento da psykhé. No Timeu, Platão explica como o Demiurgo criou a alma do
mundo e alma do homem e suas relações com a estrutura do universo. Esses
desenvolvimentos subseqüentes articulam a psykhé platônica em um conceito
extremamente complexo e fundamento de toda a sua especulação filosófica.
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