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8/11/2019 O Conhecimento como uma relao de composio.PDF
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conhecim ento como um a
relao
de comp osi o
Encontro com Denise Bernuzzi Sant anna
a propsito do lanamento de
orpos de Passagem
Glaucia
Costa Henrique
Pereira Oliveira M arcos Schuh M aria
Bernardete Ram os Marlon Salomon
Marlon Quando pensamos neste encontro de
sbito uma
imagem nos veio cabea: ele poderia ser algo como uma
avant-
premire
de filme independente. Voce sabe este tipo de encontro
uma das poucas possib
il
idades em que
o pblico
que acompanha
de perto ou a distncia um certo cineasta tem de questionar certos
pontos esclarecer citaes que aparecem comentar sobre sua pre-
ferencia por certos planos de enfim construir problemas em con-
junto. Voce sabe tambm
que este tipo de encontro se caracteriza
por alguns elem entos interessantes: no h qualquer tipo de
glamour
como
o
h em grandes entrevistas no se trata de um espao
em que imperam as objees
e
hi quase sempre um pequeno gru-
po. Foi um pouco assim que pensamos este encontro.
Denise Em primeiro lugar gostaria de agradecer. Para mim
um grande prazer acho que esta a melhor definio estar
discutindo com um grupo que no muito grande; acho que a
primeira vez que fao isso. Sempre
o
fao ou com uma pessoa ou
com um pblico maior. Mas dessa forma se cria uma dinmica
muito interessante. Agradeo a todos
vocs
pelo convite.
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DOSSI CORPO
E
HISTRI
M arlon
Gostaramos,
para
comear,
que voce loca lizasse seu
l ivro n a sua trajetria intelectual na sua filmo grafia, aproveitando
o
jogo de palavras e
que
t ambm
no s falasse com o essa sua t rajetria
se insere
e
on de ela se loca liza n a histria da histria do corpo sil .
Den ise Este livro uma coletnea:
so
vrios
ensaios, a lguns
inditos e
outros j publicados, dent ro de um a t ra je tria n a qual ve-
nho pensando
o
corpo co m o um obje to histrico. Desde meu curso
de mestrado utilizo
o
corpo como um pretexto
bem
um pre-
texto m esm o para pen sar os l imites da histria. Ele m e interessa. ,
em primeiro lugar, por seu aspecto parado xal. Por que ele
parado-
xal? Porque ele nos
extrem am ente fam il ia r
e
ao mesmo tempo
aquilo que temos de mais desconhecido; ele natural
e
cultural; ele
nunca est pronto mas nunca
est
no rascunho. HA uma serie de
paradoxos que caracterizam um corpo seja humano ou no no
caso , es tou t rabalhando especif icam ente com corpos hum ano s . Esses
paradoxos nos levam a pensar sobre os prprios paradoxos da es-
crita da histria; ou seja, pen so que h um a rela o en tre ser historia-
dora e trabalhar com
o
corpo. Quando se est trabalhando com
qualquer objeto na histria, h sempre uma parte de impondervel,
dificil de transpor para
o
discurso
e
que nos escapa. Ora, trabalhar
com o
corpo
exatamente isso: no se consegue
transp-lo
total-
mente para
o
discurso, nem entende-lo, esclarece-lo, desvend-lo com -
pletamente. Por sermos em certa medida comprometidos com di-
versos ideais da modernidade somos igualmente fascinados pela
tarefa do desvendamento. Parece-me portanto que
o
corpo um
objeto propicio para testar os limites dessa tarefa. HA um filsofo
que uso no livro e
que se chama Franois Dagognet; segundo ele
estudar o
corpo
como caminhar no escuro: voce est sempre es-
pecialmen te na medicina desvendando novas doenas , nova s curas
e
ao mesmo tempo descobrindo novos riscos
perigos. Essa cam i-
nhada, que nunca esclarece com pletam ente, de cer to m odo a cam i-
nhada
do historiador; ela que m e interessa. No tanto o obje to em
r r
i , ate po rque n o existe objeto em si, pois
o
que m ais me interessa e,
0
o trabalhar com
o
corpo em diversos domnios esbarrar sempre
rm
isso
que no con sigo passar para
o
discurso. De certo mo do, essa
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O
CONHECIMENTO
COMO UM REL O DE
OMPOSIO
uma das propostas do livro manter
o
corpo como enigma estud-
lo para mante-lo como enigma. No sei se consigo mas e uma pro-
posta com um certo fundo politico dedicado a lutar para que o
historiador tenha limites quando pretende
o desvendamento. Feliz-
mente no
conseguimos desvendar- tudo
Talvez exista aqui a vontade de trabalhar com a histria sem-
pre enfrentando paradoxos contrariando portanto a suposio
de que seu curso destina-se
decadncia,
ao progresso ou ao total
desvendamento. 0 mesmo ocorreria com
o
corpo. De maneira
mais ampla h em minha trajetria de pesquisa a afirmao desse
paralelo entre
o
trabalho do historiador
e
aquele de pensar
o cor-
po. Alem
disso j em minha dissertao de mestrado ao
traba-
lhar
com o
lazer me deparei com questes relacionadas ao tem-
po livre ao
ldico
e sobretudo aos cuidados do corpo. 0 Ultimo
capitulo dessa
dissertao
chama-se
Sade e
Velocidade;
nele traba-
lho com os cuidados do corpo a partir das campanhas esportivas
e
investigo as demandas por gestos
e
ritmos corporais cada vez
mais velozes. Sem ainda entrar nos
domnios que Foucault traba-
lha mas de uma maneira mais simples a partir das fontes que
dispunha eu me perguntava: ate que ponto seria
possvel
fazer
uma histria dos cuidados de si a partir das campanhas esportivas
dos anos 70 no Brasil?
Na verdade quando comecei a estudar os cuidados do cor-
po este no era ainda um tema
to glamuroso
como
o e
hoje; acho
que desde
ento
ele foi progressivamente ganhando charme. Mas
naquela
poca
era mais charmoso trabalhar com
o
espirito
e
com
o pensamento; o
corpo no era ainda um tema muito discutido nas
cincias
humanas.
De todo modo eu me perguntava: como
e
possvel,
em plena
ditadura dos anos 60
e 70 o
culto ao corpo ter se transformado
em uma coisa extremamente normal
e desejvel desencadeando o
surgim ento de salas de ginstica
e musculao?
Como e que
o jogg ing
e o
estilo esportivo entre outras
prticas
outrora restritas a uma
minoria foram banalizadas? Hoje
o jo g g i n g e
praticado em inme-
t
ros
lugares por mulheres homens de diferentes idades
e condi-
es
sociais. Em Sao Paulo ele est presente ate mesmo nas grandes
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DOSSIE CORPO
HISTRI
avenidas
poludas
(aqui pelo menos mais
agradvel,
pois h a
Beira Mar). Ora, como foi
possvel
transformar uma prtica como
essa em algo natural
e saudvel?
Como que esse tipo de cuidado
do corpo
pde
sair do reino da exceo
e
virar uma necessidade
para muitos? Meu interesse em pensar
o
corpo tambm vinha dai.
J durante
o
doutorado, trabalhei basicamente com a histria
do embelezamento feminino no Brasil. Foi quando me perguntava:
como era
possvel,
nos anos 40, por exemplo, segundo os conse-
lhos das revistas femininas, considerar natural
o
fato de fingir ser
bela? Pois, naquela
poca,
muitos conselheiros de beleza recomen-
davam para a mulher
o
seguinte: "finja ser bela" "No precisa se-
lo, finja apenas; use laqu,
suti
de bojo, etc . M uitas mulheres seri-
am, portanto, livres para aparentar uma beleza que no
possuam,
ate porque havia um pudor naquela
poca,
de intervir cirurgica-
mente no corpo com intuito de torn-lo belo, um pudor moral
e s
vezes religioso. Ora, como foi possvel, a partir dos anos 70, trans-
formar aquele tipo de fingimento ou dissimulao numa hipocrisia
pouco aconselhada?
E
como foi
possvel
tornar natural
o
que na-
quela
poca
era imoral, ou seja, transformar-se em mulher bela
na
aparncia,
modificando a
essncia?
Na verdade, eu estava estudando
o
embelezamento do cor-
po, mas minhas questes se voltavam para uma problemtica bem
maior que a da produo de um sujeito de si. Nesse sentido, no
Brasil,
o estudo
dessa produo
facilitado, de certo modo, quan-
do estudamos
o
corpo feminino pois, os cuidados a ele dirigidos
relacionam-se diretamente com sua entrada no mercado de traba-
lho, com a redescoberta do desejo sexual, com
o
boom
da
meg aindstria da beleza, etc.
Assim, no
o
corpo em si que m e interessa, mas certas ques-
tes que
o perpassam, incluindo
o
amplo processo de subjetivao
da verdade, a partir do qual uma pessoa se torna sujeito do seu
prprio corpo. Para vrias
pocas e
culturas foi completamente
sem sentido para uma mulher de elite ou uma mulher pobre, por
exemplo, pensar que
o prprio
corpo era dela. Segundo a pesquisa
O
que atualmente realizo sobre os usos da Agua na cidade de
s a c
Paulo, no incio do
sculo
XIX,
o
corpo no era ainda considerado
r
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O
CONHECIMENTO
COMO UM RELAO
DE COMPOSIO
uma substncia fechada propriedade de cada um. 0 corpo da
muffler por exemplo era pensado muito mais como sendo de res-
ponsab
ilidade e
de direito do pai dela de Deus do padre do des-
tino... Os dirios das mulheres de elite, os processos judiciais
e mui.-
tas
outras fontes de estudo mostram
o quanto a nog
do de corpo
no era a mesma que hoje aceitamos como normal. Em casos de
estupro por exemplo no era sempre
o
corpo estuprado que era
considerado a principal vitima,
e sim
os seus genitores ou respons-
veis. Ora como que esse corpo passou a pertencer a cada um?
Por meio de questes como essas me interesso pelo corpo
para entender
o que se encontra em torno dele incluindo
o se u
espao, a sua vivncia.
Trata-se, tambm
de realizar a histria, sem-
pre
heterognea e
incompleta da inveno de um
indivduo autO-
nomo.
Marlon De certa forma a filosofia foi quem primeiro
problematizou o
corpo como um objeto
possvel
de ser estudado
historicamente mas sempre privilegiando certas zonas do saber
como a medicina por exemplo. Como historiadora voce procura
pens-lo no de forma isolada mas como por exemplo existem
implicaes do que ocorre na medicina na biotecnologia na
informtica na mudana de percepo do corpo que se constitui
com
o
advento da acelerao em nossa sociedade
o
que de certa
forma uma juno
de vrias zonas de anlise
que existiam na
filosofia isoladamente. Como essa possibilidade se constitui no sa
ber historiogrfico?
Denise Durante sculos o
corpo foi muito mais um assunto
da filosofia ou das cincias da vida medicina
e biologia). Esse tem
a
comeou
a aparecer com m aior
frequncia
nas cincias hum anas du-
rante o sculo
XX, especialmente depois dos anos 20
e 30,
com M arcel
M auss, por exemplo. Acho que ai se localiza uma grande contribui-
o, que aparece naquele texto famoso chamado
Tcnicas Corporais
no
qual Mauss vai mostrar que cada cultura tem um tipo de gesto um
tipo de expresso corporal. Na mesma
poca, alis,
Norbert Elias
outro autor importante estava produzindo um trabalho que dife-
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DOSSI CORPO
E
HISTRI
rente daquele de M auss que m ais horizontal
e considera
cada socie-
dade e
cada cultura, verticaliza as questes da s diferenas culturais no
curso do tempo (acho que por i sso ele to usado pelos historiado-
res . Elias detecta como os processos de ao sobre
o
corpo, os
invest im entos sobre
o
corpo, no disciplinares necessariamen te,
e
que
ensinam , por exemplo a comer com talheres , tornam -se um
hbito.
Trata-se de um a perspectiva de pesquisa que ganh ou um espao cres-
cente nas
cinci s
humanas,
e
especialm ente na Franga ; no que ape-
nas l se tenha problema tizado
o corpo, m as na Franga
o
corpo vem
sendo um tema m uito estudado, tanto que nos anos 70 havia
o
que
s e cha m a v a de
corporeismo
uma voga do corpo, com muita gente
toman do esse tema com o objeto de estudos, criando rev istas sobre
o
corpo, congressos sobre
o
corpo, etc.
Gostaria de juntar i sso com um segundo aspecto . Trata-se da
intrigrante
transformao
do corpo num a substncia; tenho um certo
receio de substancializi-lo, destituindo-o d a possibilidade de ser pensa-
do historicamente, ou com o um pretexto para se questionar a histria.
0 t i tulo deste l ivro,
Corpos
d e P a s s a g e m
proposital porque
o
corpo
algo que passa: no m e interessa fazer a histria do corpo, ate porque
seria fazer a histria da vida
o
que um pouco im possvel , mas me
interessa pensar com o que
o
corpo conseguiu adquirir a importncia
que possui hoje. Mas h um risco, apontado no livro, em transformar o
corpo num a
espcie
de alma
e
no lugar de trabalhar essa transforma-
go historicamen te, crer que doravante a verdade
est
no corpo. Por
isso, seria men os arriscado pensar
o
corpo passando ,
e no s
pas-
sando nos lugares como procuro m ostrar na primeira parte do l ivro,
quando
o
tom da escrita m ais critico, pois
o
corpo se limita aqui a ser
um veiculo, que passa por todos os lugares m as funcionando com o
um a passagem , com o um elo; quer direr, no lugar de ser um a subs-
tncia, ele seria um ato em proce sso de individuao, em conexo com
os dem ais corpos . Ai h i novam ente uma
que sto politica;
acho que
hoje devem os construir subjetiv idades que tenham um eu (ou um a
ideia de sujeito de si) men os
slido.
M enos sl ido no significa frag-
m entado, pulverizado; significa sim co nhecer a sua historicidade, saber
Q .
rofundamente que se um a m emria que carrega coisas de outros
rrn
empos, m as que tudo isso est em processo, que nasce
e
morre.
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O CONHECIMENTO COMO UM REL O DE COMPOSIO
Henrique Vou juntar duas questes em um a s. Talvez seja
curioso pensar a subjetividade justam ente a partir do corpo, que e
o
que vo ce faz. No entanto, pegando a histria do co rpo, nab sei se
voce pensou sobre isso, se pegarmos
o
incio
do
sculo
XX, com o
pessoal das artes, da dan a, ate os an os 60, a preocupao do co r-
po remetia muito recusa da cultura do artificio
e
a uma busca
primal, das
foras
mais terra etc. Se pegarmos sobretudo a partir
do final dos anos 80
e
anos 90,
o
corpo no e mais necessariamente
retoma do nessa p erspectiva, m as sim no artificio, no
piercing
na ta-
tuagem,
prtese e
etc. Com o voce pensa isso?
Denise No fcil pensar no apogeu dessa tendncia que
voce
est
apontando, incluindo a ideia de
expresso
corporal. Nos
anos 60 houve cursos
e
toda um a serie de organizaes que iriam
pensar, na universidade ou fora dela, que
o
corpo deve se expressar,
que ele possui uma
nguagem a palavra no e essa, mas vou utiliz-
la na falta de outra , uma linguagem corporal, pois
o
corpo no se
expressaria necessariamente
e
unicamen te pela voz. H a suposio
de que e preciso ouvir
o
corpo
e toc-lo.
Trata-se, evidentem ente, de
uma
poca
influenciada , entre outros, pela psicanlise, pela terapia
ocupacional
e
por inmeras
tcnicas
destinadas a fazer Q corpo se
soltar . Ai temos desde a influencia de Therese B ertherat ate Reich;
en
fi
m, o
corpo e pensado com o aquilo que dev e se liberar, tal com o
pregavam as bandeiras de luta dos anos 60. No entanto logo se
percebeu qu e, em prim eiro lugar, liberar
o
corpo e u m trabalho infi-
nito. Em segundo lugar, percebeu-se que a expresso corporal sem -
pre passava pela linguagem ; no caso d aquelas terapias em voga, era
difcil
escapar da linguagem, fosse ela oral ou escrita. Mesm o que
voce no escreva nada no diga nada acaba percebendo que a
cognio do gesto, culturalmente, passa pela linguagem escrita
e
oral,
passa p elas palavras, pelas frases.
E
a proposta de muitos como
vrias utopias dos an os 60, era sair desse campo da linguagem.
Mas ao mesmo tempo desde a
dcada
de 60, vivem os solD
um a acelerao, talvez
indita
na histria, do processo d e aproxima-
o do humano em relao ao
no-humano
da tecnologia
e
do or-
ganismo vivo. E
nesse
encontro ou infiltrao entre aquilo que est o
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O CONHECIMENTO COMO UM REL O DE COMPOSIO
Hen rique M as voltando a falar desse lim ite, do indiscernivel,
a produo da
diferena tambm
se tornou uma mercadoria de
ponta seja se falando no porquinho seja no ser diferente.
Denise Certamente. Acho que
o
livro toca numa
questo
que talvez se possa abordar aqui
e
que me norteou; nele hi um
momento que chamo de
nusea: tudo o
que era considerado a
diferena"
ate
o prprio
uso de conceitos como
diferena,
multiplicidade ,
comeou
a sair da boca do capitalismo , vamos
dizer assim, dos grandes empresrios, dos produtores de
market ing
E no s
da boca , mas,
tambm,
da
ao
do modo de vestir,
pensar etc.; no mais por essa linguagem que ser
po ssvel distin-
guir
se
algum est
produzindo
diferena
ou diversidade pura
e
simples. Em meio
confuso
entre
diferena e
diversidade, h a
nusea.
Mas talvez,
devssemos
pensar a partir de uma
diferena
fundamental, entre
dominao e composio;
isso que tento tra-
balhar nos ltimos artigos, em que abordo uma certa nog
do de
tica.
Trata-se de tentar manter relaes com as pessoas que no
sejam de pura
e
simples dominao, na qual eu domino
e voce
dominado
e
vice-versa. Trata-se, assim, de substituir a relao
assimtrica
da
dominao
por uma
simtrica,
em que no haja mais
um sujeito dominante
e
um objeto assujeitado. Mas essa
relao
simtrica tambm no
implica uma romntica fuso de ambos, a.
ponto de dissolver as suas
diferenas.
Portanto, trata-se de uma re-
lao em que ambos fortalecem
o
que tem de forte Por conseguin-
te, penso que no mais
possvel
condenar ou criticar aquilo que
puramente tecnolgico, partindo da hiptese de que a tecnologia
(ou
o artificio)
seja sempre ruim. 0 critrio no pode ser mais esse
porque hoje todo mundo faz uso do artificio; h ate mesmo a
indstria naturalizada, em que
o
natural
o
industrial. Parece que
agora torna-se claro que devemos mudar nosso
critrio
em
relao
a isso,
e
para tanto no p reciso "ter cultura" nem entrar na univer-
sidade.
Alis
a ideia um pouco essa: pensar em
critrios
que no
passem s pelo
inteligvel acadm ico,
mas que qualquer um tenha
acesso, na sua
vivncia,
na sua
experincia.
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DOSSI CORPO E
HISTORI
Bernardete
No teu livro fazes referencia ao debate entre a
fisica
e
a poesia tratado no filme
Ponto de
Mutao De um lado a
viso mecanicista
do mundo e
a possibilidade de super-la com
uma visa()
sistmica,
de outro, a prpria dificuldade em estabelecer
as cone xes de seus pressupostos. Numa das lt ims falas do
fi
lme,
o
poeta sugere que diante d esse dilema haveria um outro risco,
o
de
sair de um determinismo mecanicista
e de se cair num outro
determinismo: o sistmico. Acho
que
o que vens colocando uma
tentativa para se pensar para alem dessas determinaes tanto
a
sistmica, quanto a m ecanicista.
D enise Sim, porque, sem pre dificil sair da lgica essen cialista
e substanc ialista. Por vezes, no lugar de valorizar
o
sujeito ou
o objeto
de uma determinada relao, valoriza-se a relao mas de modo a
torn-la, ela mesm a, uma
essncia Substancializar
a
relao terrvel,
porque ela en durece
e
ela feita para ser uma relao Portanto, ela
provisria,
local
e histrica.
HA ce rtos autores que fazem quase um a
apologia das relaes, de um a m aneira s vezes ate perem ptria: "a
questo no
o sujeito, no existe
o sujeito, s existem as relaes".
No creio que seja
possvel avanar
sustentando essa idia. A
questo
justamente poder pensar
o
m undo onde c ada um se subjetiva, tor-
na-se su jeito ou objeto a todo instante, sem se limitar a ser sujeito ou
objeto. A
questo seria pensar o problema historicamente
e pergun-
tar "como que as pessoas se tornaram aquilo que so?" Creio que a
histria ajuda bastante nesse aspecto, na me dida em que as relaes
sociais sic) consideradas uma
espcie
de trama histrica que possui
permanncias e rupturas. Muitas vezes a sede de desvendar as em o-
es, assim com o a sede d e ver a substncia, nos faz confundir um a
relao com uma determinada ideia de movimento sustentada na
passagem do corpo no tempo
e no espao. Ora,
o movimento no
precisa necessariamente ser s isso. D ependen do da ideia de fisica, as
coisas podem ser vistas de outro m odo, seja pela fisica quntica, seja
pela fisica mecnica por exemplo. A ideia de se pensar um mundo
m ais conectado, com relaes de composio
e no de d ominao,
0
m grande desafio
dificlimo,
porque o
corpo no consegue viver
assim o tempo todo. A
tica s
existe porque ela no existe o
tempo
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O CONHECIMENTO COMO UM REL O DE COMPOSIO
todo; no creio que se possa chegar a um suposto mundo da
tica,
pois este seria um mundo muito tenso. A esse respeito, pode ser ail
um exemplo que sempre me ocorre, fornecido por um filsofo das
tcnicas
chamado Gilbert Simondon. Trata-se do exemplo de um
arteso que faz uma esttua a partir de um bloco de mrmore. Uma
primeira possibilidade
o arteso retirar
desse mrm ore a esttua de
uma mulher independente dos veios do mrmore, independente da
poca
em que ele vive,
e
especialmente independente do mrmore.
Pode ser que ele obtenha uma linda mulher, pouco importa. Mas,
uma segunda possibi
li
dade
o arteso
produzir uma esttua a partir
de um trabalho que resulte do respeito da sua prpria inteligncia
conectada a.
inteligncia
da
matria ,
de modo que a bela mulher
feita a partir do que se poderia cham ar das
foras
singulares de am -
bos: do arteso
e da
matria (neste
Ultimo caso refiro-me aos veios
do m rmore). No existiria, aqui, uma relao de fora que se instaura
e domina o
objeto, mas sim uma relao que se processa de fato n
a
conexo
com a informao da
matria e
isso, na
matem tica, cha-
ma-se mesmo informao , pois toda matria
tem uma informa-
gdo, no caso do mrmore, para falar a grosso modo, seriam os seus
veios. t, mu ito mais fcil voce esculpir uma m ulher independente dos
veios; e
muito mais
difcil o c ontrrio, quando
preciso conhecer a
matria, entrar
em relao de fato
e
se compo r com ela. Por isso que
dificil uma relao
tica
ou de com posio, pois ela demanda tem -
po; para se conhecer
o mrmore
preciso tempo,
e
na nossa vida
corrida m uito mais fcil recorrer a relaes de dom inao, porque
se ganha tempo com isso. J uma relao de composio implica em
se pensar que h uma pessoa ali, um sujeito (ou uma
matria
que
possui uma
inteligncia
de outro tipo . Sem ser
mstico,
pode-se su-
por que toda matria,
para as
cincias
exatas, possui informaes.
Quando se trata de um outro ser humano essas informaes Sao
ainda mais complexas, porque
o ser humano tem um a
vivncia hist-
rica
bastante densa;
ento,
essa sintonia da
inteligncia
de um com o
outro, de dois se conectando, uma sintonia que nem sem pre conse-
gue durar mais que segundos, pois exige uma presena desperta, em
estar onde se est completamente, de corpo
e
alma 0 que implica
em no descuidar em nenhum minuto, caso contrrio,
e o arteso
D
r l
9
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DOSSI:E CORPO
E HISTRI
sabe disso,
voce sai do veio ; s
vezes h sentimentos que ajudam a
manter
essa conexo,
como
o
am or, a paixo
ou os interesses ,
s
vezes os m ais
escusos
ajudam a estar onde se
est.
O
cime
e
alis,
uma experincia
que pod e ser vista dessa
maneira; h
aquele livro
maravilhoso do Deleuze
intitulado
Proust
e os Sign os
no qual o
autor
mostra
o
quanto o homem apaixonado
se faz presen te, rea
li
zando
diariamente
essa
prospeco,
um po uco como um detetive.
Bernardete Vimos
nesta semana, em todas as man chetes , a
foto das
1.200
pessoas que posaram nuas para um a rtista no Parque
do
Ibirapuera.
No teu
livro,
quando
te referes D olly
clonada e
dizes que a
plula anticoncepcional inventou
o
momento
em que se
inventou
o
uso do prazer sexual sem o
risco da
reproduo,
com
o
clone, com a
inseminao
artificial etc., pod em os reprod uzir
sem o
prazer sexual. No
dia-a-dia
estamos convivendo com algumas
ati
vidades,
como a
biodana, por exemplo, que trabalham , pelo m e-
nos no
meu
ponto de vista, a dessexualizao
do corpo
todos
aqueles toques a serem experimentados , ma s sem se deixar
envol-
ver no outro e nem esperar dele algum
envolvimento,
ou saber que
o
outro te toca sem esperar
teu
envolvimento
e nem est
querendo
envolver-se
em t i, para m im
um
herclio exerccio
de suspenso
da sexualidade, emb ora
apaream
com o gestos extremam ente sen-
suais ;
a proposta do fotgrafo,
segundo sua s entrevistas divulgadas
na im prensa, era a d e m ostrar que todo
o
corpo belo, pode des-
pir-se,
integrar-se natureza, ma s principalmente
tinha o intuito de
se dessexualizar. Fiquei ento pensando
se hi algum a
relao
entre
essa cultura
da
dessexualizao
e
a tua ques to.
Fiquei
pensando que
a de speito d a cultura da
dessexualizao, h
uma
enorme publicida-
de de crim es sexuais, assedio, pedofilia,
es tupro, em todos os
gru-
pos e camadas sociais. Hi uma propagao
do sexo animalesco,
instintivo.
Hi alguma
conexo entre um a coisa
e
outra? Go staria
que falasses um pou co sobre isso.
a
enise
Essa sua leitura
e
m ais verdadeira ainda se
pensar-
m o s
em outros 'Daises
que
possuem um certo
nvel
de conforto
..,
T r :
aior do que
o
nosso. Neles a
dessexualizao
do corpo, a
4 .
2 0
-
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O CONHECIMENTO COMO UM REL O DE COMPOSIO
deserotizao
e
a
violncia
sexual se colocam de modo mais evi-
dente; quer dizer, os estupros
e
os casos de pedofilia que aconte-
cem na Europa
e
nos Estados Unidos no so nada
desprezveis e
a mdia os explora. Sem sombra de
dvida,
este tema d muita
audinc ia o
que m e leva a pensar que h u ma fobia em relao ao
corpo, ou seja,
o
c orpo est mu ito em foc o. As pessoas esto extre-
mamente preocupadas com
o prprio
corpo. Fica a impresso de
que em momentos diferentes se elege na histria certos objetos em
que se colocam todos os pecados, todas as loucuras, todas as ver-
dades, todos os erros, pode ser a nag
do, pode ser
o
espirito pode
ser a igreja
e
hoje
o
corpo parece ocupar esse lugar. As pessoas
fizeram do corpo a prpria alma, a prpria ptria: me interessa
historicamente saber como isso aconteceu. Como foi
possvel
dar
essa visibi
li
dade alucinan te ao corpo;
e
se ele se torna
to visvel,
ele
o
lugar de todas as taras ele
o
lugar de todos os prazeres, ele
o
lugar da salvao. 0 qu e, talvez, resulte, em parte, do fato qu e, em
nossa
poca,
a idia das grandes utopias, das grandes ideologias,
ficaram um pouco abaladas. Richard Sennett, com as tiranias da
privacidade explica um pouco essa
tendncia.
Mas, parece-me, tambm, que alem do papel da
mdia
do
qual prefiro no falar hi um gran de
fascnio
pelo binmio violn-
cia/segurana. A nossa
poca est extremamente
fascinada
e ater-
rorizada
por esse binmio. 0 que no impede que exista, em meio
a esse binmio um
fascnio
pela sexualidade, por diversos tipos de
sexualidade,
e
ao mesmo tempo uma
espcie
de repulsa. HA vrias
pesquisas nos Estados Unidos que esto mostrando, sobretudo na
sociologia
e
na antropologia, uma grande quantidade de casais que
nab tem mais relao sexual por opo. No se trata mais do puri-
tanismo repressor do
sculo
XIX do puritanismo moral
e
eugenic
dos anos 20, do puritanismo j psicanalizado dos anos 60, mas de
uma outra tendncia, que ate poderamos chamar de puritanismo,
mas que traz como argumento a ideia de que
o
sexo no necessi-
rio. Como se fosse normal doravante pensar: a sexualidade no
nec essria, a sexualidade oferece m uito pou co,
o
corpo tem muitas
outras possibi
lidades .
c r
2
-
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DOSSI CORPO
E HISTORIA
Bemardete E
ao m esmo tem po se fa la tanto de que
o
sexo
faz bem sade. Torna-se quase um a obrigao.
Denise Ach o que ainda se trata da m esma
tendncia.
Segundo
um a pequena pesquisa que realizei h pouco tem po, com as m anch e-
tes de capa das revistas Veja
e isto
de 1968 ate h oje, im pressio-
nante, pensando s no corte quantitativo, sem pensar no qualitativo,
com o sic, progressivam ente r ed uzidos os assuntos polit icos.
E no
seu lugar, o
que comea a aparecer? A sexualidad e nos anos 80, com
assuntos sobre a
virgindade, sobre
o
prazer feminino (na
Veja
e
isto
nem estou falando da
Nova .
Quand o se chega aos anos 90, a sexua-
lidade
c o me a
a sair d e cena, lgico que ela va i continuar a aparece r,
m as ela com ea a dar lugar a
matrias sobre
sade,
sobre com o curar
o colester ol,
por exem plo. Tenho um colega que est fazendo um a
pesquisa com pessoas que praticam
jogging e
ele
t a m b m
nota algo
semelhante: ate
o
f inal dos anos 80 a preocupao era m uito m ais
c om a
esttica,
hoje m uito m ais com a sade. HA em nossos dias
um im perativo da sade,
do corpo saud vel , que recom enda fazer
sexo, cam inhar, etc., para ma nter a sade um a im ensa
parania que
tem a ver com questes sociais m uito precisas, com o, por exem plo,
com a quantidad e de pessoas que ultrapassaram a faixa dos 50 anos
e
os problem as que as acom panham ,
e isso significa um m erca do novo,
no s de m ed icam ento, m as de clubes, de lazer, de terapias, etc .
Estam os v ivendo um m om ento em que nunca
o m ercado da sade
foi to grand e, expand iu-se, tornou-se ate um a
questo turstica. M ui-
ta
gente vai praticar lazer para a sade.
Pen so que, se nos anos 60
e 70
era
o
prazer sexual que estava em foco, hoje
um outro tipo e
eugenismo que traz a sade com o
questo.
im pressionante com o
tema da
sade
aparece nas conversas corriqueiras, de m odo altam en-
te norm al, nos parques, avenidas, etc.
a:
or outros sabere s, vai se tornar ob jeto de outra s disciplinas. M ais
Q . .
ard e se constitui a clinica, a gentica, em seguida a biotecnologia,
e
. . . .
a:
em pre parece que h um a ressonncia d o que se pensa em relao
c v
M arlon O
corpo surge com o objeto de estudo com Vesale
e
a m edic ina com parada .
A
partir d ai e le vai ser problem atizad o
-
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DOSSI CORPO
E
HISTORI
de lado. Como
e
que tu
vs
este paradoxo: por um lado hi
o
corpo
e
os saberes que
o
constituem produzindo um a identidade,
e
por
outro
h
todo um conjunto de
prticas
que a nega?
Bernardete
Apenas com plementando essa
questo.
No teu
trabalho dizes q ue
o
corpo
e a
ltima
fronteira
a ser
conquistada
pela biotecnologia, pela
informtica
a
robtica,
etc.
corpo
e essa.
fronteira a ser manipulada, mas de certa forma hi. um
esfacelamen-
to hoje das fronteiras nacionais. No entanto, isso m e parece contra-
ditrio.
Vem os a cada dia
milhes
de pessoas atravessando as
fron-
teiras
nacionais
e
carregando a prpria
nao
em
seu corpo
um
corpo que
no
se desfez
a marca de sua p tria, de sua
nao
a sua
cor, a sua cultura, quanto m ais "de passag em ", mais identificado.
Com o pensar
o
corpo como a
ltima
fronteira da identidade,
e
ao
m esmo tempo, como a
ltima
fronteira a se r transposta
e
conquis-
tada
pela biotecnologia?
Denise
H um a coisa im portante
e
que toca nas duas per-
guntas.
Se pensarmos historicamente, resta a
impresso
de que hoje,
muito
mais
do que
h. 50
ou
100
anos, a identidade
st
no corpo.
Ou seja,
poderamos
imaginar que daqu i hi
100
anos a identidade
de uma pessoa
no
vai mais estar no seu corpo, mas numa
determi-
nada mquina
que ela possu a. Historicam ente a identidade do ser
nem sem pre esteve to m isturada ao corpo. HA um exemplo a esse
respeito que encontramo s na passagem da
pintura
medieval para a
pintura renascentista. Nela,
e impressionante
como o corpo vai
ga
nhando
peso e
visibilidade;
para um
leitor desavisado
a pintura da
Idade Media parece no ter
expresso;
ele pode ver uma tela
e
pensar: "os olhos daquelas pessoas
pintadas no
brilhavam ". M as
numa
pintura
de uma
poca
posterior
perceptvel o
brilho no
olhar. No primeiro caso,
e
como se
no
houvesse
expresso
mas
Obvio
que no e
isso, pois, de fato, a
expresso
era entendida de
outra
maneira
e o
corpo
no
tinha
o
peso
e
a v isibilidade que e le
assou a ter na cultura mo derna. Concordo com Norbert Elias: no
ensam ento ocidental, em particular na
histria
da
filosofia
e
n
a
histria
da m edicina,
o
corpo adquire progressivam ente mais
volu-
c
4
-
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CONHECIMENTO COMO UMA
RELAO
DE COMPOSIO
me e
autonomia. HA um momento inclusive em que aquele brilho
de Deus
e
da identidade que estava fora do corpo humano con-.
quista
o seu interior.
o
momento em que os olhos
comeam
a
emitir luzes; olhar, doravante, significa, inclusive, olhar com esse
olho da alma que foi interiorizado. interessante perceber como,
ao longo desse processo de interiorizao,
o
corpo ganha uma pro-
ximidade com a ideia de eu, a ponto de hoje se dizer assim: eu sou
esse corpo aqui .
Ento
me parece que a identidade foi historicamente sendo
cunhada no corpo
e
a publicidade no cessa de confirmar as su-
postas vantagens dessa densidade subjetiva das
aparncias fsicas
promovendo s l o g n s
do tipo: seja voce mesmo junto a um corpo
feliz; pense por si mesmo , seja mais isso, menos aqu
ilo ;
mas
sempre
o
corpo que aparece, sempre por meio de sua exibio
que se age no subjetivo. HA um investimento publicitrio forte nessa
espcie
de corpo subjetivo.
E
no Brasil, em relao s mulheres,
especialmen te, essa
tendncia
muito nova, pois a identidade no
estava no corpo.
fato de que cada vez mais a nossa identidade esteja no cor-
po e
seja o
corpo facilita e, ao mesmo tempo, dificulta as manipu-
laes corporais. Dificulta porque intervir no corpo significa imedi-
atamente mexer com a alma, manipular aquilo que as pessoas tem
de m ais profundo, de m ais singular, de mais intimo. F acilita porque,
segundo
o arrivismo
de um a parte da tradio hum anista ocidental,
uma vez sendo sujeito de seu corpo
o
homem se autoriza mais
facilmente a manipular os demais corpos em seu proveito. Hoje,
manipular
o prprio
corpo ou
o
corpo do outro, esbarrar nas
necessidades seculares de aproximar
o
corpo de si mesmo
e
de
aproximar a si mesmo de uma
essncia
que eterna.
Por fim, para ir mais diretamente nessa man ipulao das iden-
tidades, penso que muitas vezes ela existe para fortalecer uma
esp
cie
de
noo
de eu a-histrico.
E
isso surpreendente, porque com
todo
o
arsenal da biotecnologia a impresso que se tem a de que
se pode inverter, perverter, mudar de
gnero
de espcie, de grau,
ultrapassar todas aquelas fronteiras que existem h muito tem po. A s
fronteiras de sexo
e
de
espcie
se perdem quando a biotecnologia,
5
-
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DOSS 8
CORPO
E
HISTRIA
por exemplo,
prope
introduzir num morango genes de um ser de
outra
espcie
como aqueles de um
salmo.
A
primeira impresso
a de que tal experimento seja
revolucionrio
o
que em grande me-
dida
verdadeiro. Em
contrapartida, h
casos de pessoas que co-
meram morango
e
passaram mal porque
so
alrgicas
A peixe Ins-
pirada
em alguns trabalhos de
Deleuze
e
diante de experimentos
dessa natureza,
possvel
supor que a biotecnologia trabalha menos
com
o
sentido do que com
o
reino do
significante/significado.
Pois
a busca dos sentidos nem sempre
d
lucro, simplesmente por isso.
A produo do binmio significante/significado pode dar muito
lucro
e
ainda pode compactuar com a tendncia
de colocar fora
da h istria
e
da critica inme ras
experincias
sociais; por e xem plo
cria-se uma marca tal como a Nike
e seu
smbolo
coloc do em
inme ros lugares e
produtos considerados ecolgicos naturais ou
simplesme nte bons para a sade. Agre ga-se valor . marca
o
que
sem dvida conta positivamente para as suas aes na bolsa de
valores. M uitas empresas agem desse modo elas no criam apenas
o
produto mas agregam valor de mercado a e le . Acho qu e hoje
o
m undo c apitalista no l ida unicam ente co m
o
corpo
e
esse
o
grande paradoxo. Ao buscar
o
lucro econmico no lugar de lidar
somente com
o
cor po investe-se no imaterial na criao de signifi-
cados a e les agregando valor de mercado. No fundo vivemo s um
grande problema porque
o
corpo supe rvalorizado mas na en-
grenage m do sistema para alem dos corpos dos trabalhadores ex-
plorados quase no hi corpo pois l se est trabalhando com
o
imaterial.
Be rnardete
Os age nciame ntos hoje se do pela sem itica.
Denise Sim dai a
tendnci
d rte contemporne de
re mate rializar a obra. Toda via a desmate rializao fora do reino
dos se ntidos
e
presa
quele
do significante/significado acaba por
criar mais um smbolo; nesse caso qu alque r coisa passa a significar.
roce sso de resignificao da
sustica
durante a Segunda Gu erra
exe mplar a esse respeito.
Destituda
de alguns de seus sentidos
histricos ela passou a ter um significado qu e apontava para a su-
26
-
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O CONHECIMENTO COMO UMA RELAO DE COMPOSIO
peragdo
da historicidade de milhares de pessoas. Quem ganha a
guerra na verdade no s um
batalho
um exercito, uma
nao
determinadas empresas, mas um conjunto de signos. Hoje isso
terrvel
porque no h uma
tendncia
de se fazer do corpo
o signo;
h uma
tendncia
fundamental que a criao desses signos inde-
pendentes dos corpos, enquanto esses, por sua vez, so considera-
dos secundrios. Essa ideia do corpo ser secundrio est muito
presente na indstria
e
na biotecnologia; por exemplo cria-se uma
empresa como a Monsanto
e
seu nome no este por acaso,
ele responde necessidade da empresa precisar ser bem acolhida
na America Latina, porque ela age basicamente no terceiro mundo
e
ate mesmo antes da criao de certos produtos, a empresa
associada ao valor do bem-estar
e ideia
de acabar com a fome no
mundo. Depois,
difcil
acreditar que no isso, assim como fica
mais fcil colocar qualquer corpo l dentro. Ento,
o
corpo no
interessa muito para a indstria hoje
o
que interessa o im aterial.
Bernardete Ate que po nto Merleau-Ponty
e
a fenomenologia
contriburam neste
sentido?
Denise Acho que a fenomenologia do Merleau-Ponty
bom voce estar colocando isso, porque, especialmente no final, no
O
visvel e o invisvel
j no sei mais se podemos cham-la de
fenomenolgica faz um caminho que e
o
de sair da
relao sujei-
to /objeto distanciada, como fazia Husserl no inicio da
fenomenologia
e
seguiu caminhando em direo a uma fuso
entre
esse sujeito/objeto;
fuso na qual eles no perdem as diferenas.
H
uma passagem do Merleau-Ponty que eu no sei se
essa que cito
no livro em que ele refere-se a um pintor que entra numa floresta
e
quanto mais a observa
e a pinta em sua tela, menos sabe se pinta a
floresta ou se pintado por ela. Ou seja h um a relao de comp o-
sio: no que a floresta deixe de ser floresta e que o
pintor deixe de
ser ele m esmo
e
os dois se misturem num encontro romntico, no
isso. 0 pintor cada vez mais se afirma como quem pinta a flores-
ta
e
esta, por sua vez, afirma-se como floresta; h uma grande
conexo entre as
foras de um
e de outro em que o gesto de pintar
7
-
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T r
28
DOSSIE CORPO
E HISTRI
a floresta faz do pintor um pedao dela
e
vice-versa. A
fenomenologia aqui quase que se rompe, tanto que no 0
v i s v e l e
o
invisvel
ele cria a noo de
carne .
Ele no fala mais em sujeito
e
objeto,
ele fala em
carne
do mundo, que
muito semelhante ao que
o Deleuze
vai fazer posteriormente.
H momentos na vida que se percebe isso claramente, voce
voce, o
mundo
o
mundo, no h sujeito nem objeto em desapa-
recimento. Mas h momentos em que os dois esto agindo,
esto
interagindo num
equilbrio meta-estvel; no h
nem
desequilbrio
nem
equilbrio,
na verdade uma meta-estabilidade.
E
isso a.
biotecnologia rompe, porque sua finalidade, assim como a publici-
dade,
o
lucro. Alis,
o
modo como a publicidade age parece
extremamente aberto. Por exemplo: lembra da propaganda do ci-
garro
Free ,
o
fino que satisfaz ? Essa ,frase marcou uma
poca;
havia uma
espcie
de gall do
perodo, o Pedrinho Aguinaga
que
dizia:
Free ,
o
fino que satisfaz ,
e
inclusive ele era magro. Fino ,
no sentido de fineza, refinamento. No se trata de dizer que as
pessoas tenham necessariamente fumado mais ou menos
Free ,
a
questo
que aquele produto se colou, naquela
poca,
a essa ima-
gem. Ora, se a empresa lanasse roupas, sapatos
Free ,
a imagem
tenderia a permanecer a mesma. Nesse sentido, essa tendncia
pobre do ponto de vista cultural. sempre
o
me smo significante ,
com vrios significados. Bolsa, sapato, cigarro, etc. A lgica do sis-
tema capitalista essa. A biotecnologia age da mesma maneira; se
quero criar porquinhos sem gordura para vender para tais empre-
sas ate porque hoje
ningum mais cozinha com banha, j que a
soja tomou
o
lugar , assim que de ve ser, porco s de carne com
gordura, j
poderamos
chamar de animal de uma outra
espcie.
Dentro dessa finalidade, criam-se vrios tipos de porcos, mistu-
ram-se vrios tipos de genes, pode-se fazer um rosa, um homem
branco, depende do gosto. Criam-se seres de diversas formas
e
tamanhos,
mas, voce j tem determinado
o
que voce quer criar,
para que voce quer criar (tal como um arteso com
o
bloco de
mrmore que no se interessa pelo que
o mrmore,
como ele
0
ge, qual a sua
inteligncia).
A biotecnologia trabalha com essas
relaes,
ela pensa as relaes, em como combinar
com
B, por
-
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21/31
O
CONHECIMENTO
C O M O U N I R E L O D E
OMPOSIO
exemplo. Mas ela no transforma
o conhecimento
numa relao
Essa
diferena
fundamental. A filosofia pode fazer isso; ns no
nosso trabalho como historiadores podemos fazer do conheci-
mento uma relao; um homem humilde construindo uma casa
por exemplo
tambm
pode faz-lo,
mas a biotecnologia no pode
fazer do conhecimento uma relao entre seres.
M arlon Estvam os acostumados na histria, ate pouco tempo
atrs com uma noo que reunia os
desgnios
politicos do histori-
ador
e o
seu trabalho de e scrita, que era a
noo
de
libertao. Voce
usa uma noo recorrente que a de
liberao; voce insiste: libera-
go
do corpo
liberao
da velocidade liberao das mulheres. En-
quanto a libertao percorria sempre um caminho teleolgico a
liberao no chega em lugar algum. Voc poderia falar um pouco
mais dessa
noo
de liberao como ela se
contrape
ou no com
a de libertao?
Denise Trata-se de uma nog
do ligada
quela
que considera a
histria um palmilhar de rupturas
e permanncias. Vejo
a histria como
algo
alis no
sou s eu q ue vejo, muitos autores
tambm
pensam
assim uma
tendncia
que sempre em qualquer tema que voce
escolha em qualquer perspectiva ou
perodo
vai incluir inmeras
coaes e
liberdades; elas andam juntas, eu diria. Prefiro, na verdade,
falar em
liberao,
porque um termo mais curto menos pretensio-
so. A liberdade tem mesmo esse sentido teleolgico; j a
liberao
pode ter ou no. Um a liberao pontual, local, semp re acompanha-
da de coao: uma
coao
que j existia que re-atualizada uma
coao
nova; por exemplo no caso do embelezamento isso muito
claro; libera-se o
corpo feminino para usar
o biquini, libera-se o cor-
po
para se soltar, para "ser
o
que ele 6".
E
junto com isso surgem, eu.
no diria prises mas novas formas de coao; a barriga pode apa-
recer mas agora ela deve estar bronzeada
e no
pode ser flcida.
Outros temas
tambm revelam
essa tendnc ia, o
que resulta na se-
guinte perspectiva: a histria muito m ais um movim ento paradoxal,
que impossibilita
o
historiador vir dizer que essa
poca
mais liberatria
do que a outra. Quando descobri isso no doutorado tenho um
9
-
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22/31
DOSSI CORPO E HISTORIA
amigo que me diz:
voce
descobriu a roda pois isso
no
nada
demais
nas minhas
fontes no meu tema foi
incrvel.
Como eu
trabalhava com a
histria
do embelezamento
feminino,
isso m e des-
pertou
um interesse real pelas mulheres do passado;
digo
real porque
descobri que ate
ento
meu
interesse no
era real,
o
me u interesse
pelas mulheres do passado era um interesse
distante;
no fundo eu
acreditava embora tenha toda uma
formao
para
no
acreditar,
mas eu achava, que elas
no
eram tio
liberadas quanto
eu evidente-
mente que
no o
so
da mesma m aneira
e, portanto, elas
no
me-
reciam
os mesmos cuidados que as
mulheres
do meu tempo;
talvez
elas no
fossem
to
complexas,
e
a eu poderia fac
i l
me nte cair numa
viso salvacionista
da histria
e
da mulhe r; quer dizer, estava fazendo
histria
para mostrar como elas eram interessantes, porque precisava
mostrar
isso como historiadora
e
no podia perder
o
emprego. M as
descobri que pior do que isso seria perder a
noo
da com plexidade
da
histria...
mergulhando nela, eu comecei a perceber
o
quanto aquelas
mulheres
do passado eram interessantes, com plexas e, por isso
mes-
mo,
difceis:
no
porque eram
exticas,
ou porque elas vivam
liber-
dades
e
coaes
diferentes das
minhas.
Com
a pesquisa
histrica
as
pessoas do passado, o u de ou tra cultura.
(pode ser hoje, no presente),
vo ficando, ao
mesmo
tempo, mais conhec idas
e
estranhissimas
lgico
que se eu pensar na Idade Media isso mais forte. Mas
e
interessante
que nos anos
40, 60,
ate mesmo
nos anos
70,
as
mulheres
que nesse caso p oderia ser a
minha m ie,
a
minha av eram outras
pessoas.
Comecei
a
v-las
de uma
maneira
muito
prxima
ao
exem-
plo
que dou no livro que
e
o
da escultura de
Giacometti,
em que a.
figura
hum ana, a mais familiar, aparece,
tambm
como a mais
estra-
nha, com o se fosse
assombrao. Mas ela humana
e
prxima, como
eu,
no
e
um fantasma; quer dizer ela
e
extremamente
estranha e
familiar ao mesm o tempo:
h
algo nela que
no
consigo captar, um a
profundidade,
um enigma, que
no
sei o que
e Isso m e fascina
mui-
to.
c r
0
laucia
u gostaria que
tu
voltasses a falar um pouco mais
0
obre a interferncia
da tecnologia no humano
e
nas suas
relaes,
, - ,
rt
rincipalmente na
criao
de novas subjetividades. Sair de casa,
prin-
4
3
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23/31
O CONHECIMENTO COMO UM REL O DE COMPOSIO
cipalmente quando
para se conhecer pessoas em bares, boates,
enfim, envolve um certo ritual relacionado ao corpo, que
o de
arrumar
o
cabelo passar um perfume maquiagem etc. Mas com a
Internet, e ai h uma
interferncia
da mquina, esse ritual torna-se
desnecessrio; com o chat
pode-se conhecer
algum estando em
casa, de pijama, sem compromisso algum com a
aparncia j
que
no se ye o outro. Perguntas sobre
o
corpo aparecem constante-
mente nessas conversas, mas trocam-se fotos
e tudo
fica mais ou
menos resolvido. Como que tu yes esse tipo de relao com
o
corpo a partir da massificao do uso da Internet?
Denise Primeiro preciso lembrar que eu moro em Sao
Paulo e
muito dessa desvalorizao da rua vem da classe media
paulistana. Quando venho a Florianpolis vejo muita gente na rua
felizmente, porque acho que a rua importante; no creio que ela
deva ser a nica coisa hoje porque a Internet possibilita um tipo de
contato interessantssimo. 0
que acho
terrvel numa
sociedade
sempre ter que optar por uma coisa ou outra: por que no ter
todas? Por que no se pode andar na rua de bicicleta a
p de carro
e
ainda usar a Internet? So formas d iferentes de enco ntro o u de
desenco ntros enfim. Acho que seria interessante no ter que limitar
a escolha: agora s se usa Internet porque a rua ficou invivel,
lugar de bandido ou policia . As vezes, nas ruas de Sao Paulo,
noite a gente tem essa
ntida impresso. No h
pedestre alis no
hi nem calada para se andar. uma
viso
de uma cidade onde
essa desvalorizao mais forte para a classe media, porque na
periferia paulistana, apesar dos problemas, h encontros nas ruas,
h festa popular, etc. Mas para a classe media paulistana a rua
lugar de policia de bandido no
lugar de encontro
e
isso se agu-
ou a partir dos anos 80.
No acho que a Internet a substitua acho que ela outra coisa
outro encontro que
tambm tem suas
coaes
(risos). Ali voce
ganha muito tem um conforto que a rua no te d seja a rua segura
ou no; em casa voce est de pijama, no precisa tirar o
bob da
cabea
etc. Mas h desconfortos: por exemplo, ao ver realmente
uma pessoa
possvel
captar algum as informaes que pela Internet
3
-
8/11/2019 O Conhecimento como uma relao de composio.PDF
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DOSSIt CORPO
E
HISTRI
no apa recem ; pela Internet pode-se captar outras coisas sobre ela:
por m eio da escrita, por exemplo.
Assim
o
papel da escrita com a
Internet, ao
contrrio
de desaparecer, adquiriu um peso
interessan-
te.
A inda gostaria de dizer uma coisa em
relao
A rua no B rasil
e
que surge a partir da leitura de Walter Benjamin,
quando
ele fala do
fliineur.
Acho q ue aqui
h
uma
experincia
tpica
de sociabilidade
nas
ruas das grandes cidades, que ocorre mais ou menos assim: na
Frana
Itlia Inglaterra houve um processo de passagem das pequenas
ruas
onde
h esses encontros, com
o
vendedor de vassoura, com
o
cara que grita a cabra , essas coisas populares que a gente ye nas
ruas pequenas, estreitas
para a entrada
na
cidade de
Haussmann
do
boulevard.
Todo m undo conhece isso. Na passagem da
r u a
para
o
boulevard
deixa-se de ser
o
homem-pessoa,
o
Antnio
o
Jose,
e
aparece
o indivduo annimo.
Acho que aqui no B rasil, em cidades
como
So
Paulo, Fortaleza
e
Salvador, no houve essa passagem da
rua para
o
boulevard e
e
l que a pessoa se torna
cidado
homem da
cidade, no mais
o
hom em do bairro, da casa. No B rasil, passou-se
da rua para a avenida, que no
o
boulevard
pois a avenida
e
feita
para
o
carro.
Ento
se sai da situao de pessoa para a de
automo-
bilista.
No
sei
se a
gente teve
a
experincia
do
boulevard;
excetuan-
do-se o
Rio de Jane iro, no creio que as
outras
cidades tiveram essa
experincia
da cidadania
proporcionada pelo
boulevard.
Ali as
cala-
das
so m uito
largas
as pessoas passam
e
se vem,
um
outro tipo
de viso,
com o mo strou B enjamin. No B rasil, surge a
avenida
feita
para os ca rros; a rua,
aqui
na m aioria das vezes,
no e
o
boulevard
ela
e
a avenida do
automvel.
Bernardete
Quando a
Glucia
fala da
substituio
da rua
pela Internet,
e
tu ests
dizendo que em S ao Paulo a
classe
media
realmente no vai para a rua lembro que hi pouco
recebemos
professores
espanhis e
eles levaram u m susto
quando
no viram
ningum
na rua; na Espanha a gente sabe que ate
11h
da noite
e
dia:
odo mundo dorm e ate A s
4
da
tarde mais
ou menos,
e depois
o
a se prolonga ate as
11h
da
noite;
ento, eles levaram um susto
quando
viram qu e
aqui
as
18h
hi poucas pessoas na rua; pode
3
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8/11/2019 O Conhecimento como uma relao de composio.PDF
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O
CONHECIMENTO COMO UM REL O DE COMPOSIO
haver algum
point,
alguma coisa assim, mas no na rua. Em
Florianpolis ns no temos isso. uma
experincia
diferente do
que acontece na Europa.
Denise Pensei que aqui em F lorianpolis houvesse algo nes-
se sentido.
Glaucia
Aqui, h alguns anos,
o
pessoal mais jovem ia A
Lagoa da Conceio onde havia inclusive um a rua com esse nome
boulevard.
Na realidade era um trecho da rua principal que era cheio
de barzinhos
e
as pessoas iam para ficar pelas caladas para passe-
ar; elas iam de carro m as
o
deixavam estacionado longe
e
ficavam
andando, indo
e
voltando, fazendo roteiros,
e
todo mundo falava
que ia para
o
boulevard
e
IA aconteciam os encontros.
Denise H
o
exemplo da Avenida Paulista. A ideia que
fosse um
boulevard,
no entanto, construiu-se em quase toda sua
extenso prdios
empresariais, agencias bancrias,
e h
poucos
moradores. Ento, criou-se uma estrutura que e a de passagem
rpida; isso
o
que quero dizer, porque passar rpido, andando a
p
a estrutura do
boulevard,
o
problema passar rpido de auto-
mvel.
Ainda assim eu acho que
e
essa
uma
questo
fundamental
as
resistncias
existem as reconfiguraes florescem; ou seja As
vezes se encontra em plena avenida inspita algo como um
boulevard,
ou melhor pessoas que comeam a usar aquela avenida de modo a
faze-la ser rua
e
boulevard
Por exemplo a avenida
Sumar, em
Sao
Paulo, uma avenida inspita, com lojas de
automvel, tudo
feito
para automveis;
eu me inspirei nela quando escrevi
o
texto alis.
Hoje muitas pessoas a ocuparam: agora h bancos de praga e algo
to surrealista (risos) Hi
ps
de amora,
e
As vezes voce ye os
varredores comendo amora ali.
E h
pessoas que fazem
jogging,
outros que fazem elstico no viaduto etc. ento h encontros points
h essa recriao constante das pessoas q ue fantstica.
E
no B rasil
isso particularmente fantstico muito mais do que na Europa h
aqui essa espcie de reciclagem.
33
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DOSSI ORPO
E HISTORIA
G la .u c ia
Hi ate
o
novo fenmeno dos postos de gaso
l in a
como lu gares de soc ia bi l ida de.
Denise Isto
fantstico
Posto de ga solina e o exemplo ma ior
D everia m fa zer teses sobre isso. Seria t imo.
M arcos G ostaria qu e voce retomasse a qu esto da genera l i -
d a d e e m tor no d o c or po, qu e s e c r ia c om a b iote c nologia , pr inc i -
pa lmente . Esqua drinha -se u m corpo que supostam ente se con hece
e
se genera l iza essa ideia ; qu er dizer, todas a s pessoa s so dessa
forma todas as pessoas funcionam dessa forma. Entretanto hi
u ma individua l izao do corpo, pensa-se em u m corpo individu a l;
ou seja, h u ma general iza o do objeto e
a o m e s m o t em p o u m a
total individualizao.
D e ni s e Um a gene ra l i za o e e u d i ri a u m i s o l am e n t o . E s se
l ivro iria se chama r
Iso lamento
e P a s s a g e m . Atravs
da arquitetura, co-
mecei a perceber a p rodu o do isolam ento corpora l na soc iedade
em qu e vivemos. No Brasi l isso e men os forte, ma s j est presente
entre pessoas da cla sse media. M u itas vezes voce est extrema men-
te conec tado, fa la ndo a o tele fone por exemp lo, e , a o mesmo tem-
po, extrema mente isolado, o
que no uma contradio.
H oje, mu itas
vezes,
o i so lamento impl ica em conexo
e o
esporte fornece bons
exemplos a este respeito: na s gran des tra vessias mart imas os espor-
t is ta s esto por vezes soz inhos ma s, a o mesmo tempo, conec ta dos
com u ma rede de agentes pu bl ic i trios , indstria s de a l imen tos
e
roupas esportivas que os patrocinam. 0 corpo de um esportista
isolado no meio do mar pode estar conectado a mil pessoas
imprensa, e tc . Essa
s i tuao
se torna muitas vezes um estilo de
vida: o i solamento e
a c onexo ju ntos , a o mesmo tempo. SO que a
co n e xo n o
substi tu i a
relao social no e a mesma coisa
e o
i so l am e n t o n o e a m e sm a c o i sa q u e o
individua l ismo. 0 individu-
a l i sm o d o f i n a l d o
s c u l o
XIX europeu , do
fineur
por exemp lo,
O
u m ou tro individua l ismo; hoje, diria qu e h ma is isolam ento do que
O
individu a l ismo, pois, no B rasi l , no se pode fala r de fato em indivi-
dual ismo. A "modernidade" brasi leira no contou necessariamente
1 )
4
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O CONHECIMENTO COMO UM REL O DE COMPOSIO
com um processo de criao de uma subjetiva extremamente indi-
vidualizada. Talvez isto explique em parte porque no Brasil, em
geral,
o
contato social e m ais fcil, ele localiza-se mais na supe rficie
do corpo; as pessoas sorriem mais facilmente, tem menos proble-
mas de contato do que em muitos outros
pases.
No entanto, vive-
m os um proce sso de isolamen to s vezes ate mais cruel que
o
deles,
extremamente cruel. As crianas, especialmente, mais do que os
adultos.
Marlon Hi uma
questo
a respeito das
epgrafes
do livro
e
que me chamou a
ateno,
que e sobre esse deserto que nos cerca.
Lendo-as, logo pensei no que
o Deleuze
diz, retomando Nietzsche,
sobre esse problema do deserto, de atravess-lo, de nascer
e viver
nele. E
uma das coisas de que Deleuze fala, duas alis, e a respeito
do deserto na filosofia, no pensamento,
e o
deserto na literatura.
Mas ele
tambm
fala de quando
e
por que se entra nesse deserto
e
se a gente pode atravess-lo ou no. Voce
tambm
acha que a g ente
se encontra num deserto hoje no pensamento historiogrfico?
Denise N o pensam ento historiogrfico? No
e
sim. No sei
se conseguiria fazer um diagnstico, nem rpido, nem longamente.
0 que vejo uma dificuldade de encontros entre as pessoas; encon-
tro em que exista troca de informao, em que exista conexo de
inteligncia
e
muita
ateno,
pois os encontros tem um tempo mui-
to determinado, limitado;
e
para se viver, de fato, uma
situao
de
composio
tica como
eu havia
dito
preciso outras experi-
ncias de tempo
e
uma
assdua ateno
ao que se passa com ns
mesmos
e
com os demais. Vivemos premidos pela ideia de que e
preciso fazer vrias coisas em pouco tempo,
e no
uma coisa num
tempo com grande ateno. No e A . toa que
o
Brasil, segundo
o
Le
M onde Diplomatique
o
segundo pais onde m ais se trabalha no mu n-
do o primeiro e
o Canad, e
muito jocosamente penso que
o
Ca-
nad e muito frio
e
por isso se trabalha tanto) risos). Isso faz com
que haja m uito cansao dificultando essas trocas. quando
o isola-
D
mento e
fruto do cansao. Apa tia, falta de animo, de possibi
li
dade
de corpo para ir a algum lugar, para fazer alguma coisa. Acho que
5
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DOSSI CORPO
E HISTORI
essa situao est aumentando de modo alarmante com as
crian-
as,
inclusive. As pessoas esto extremamente cansadas. No sei se
vocs
vivem isso em Florianpolis mas em So Paulo elas vivem
um cansao cotidiano isso faz com que a percepo do mundo
fique um pouco
desrtica
por que no deserto
o
que que voce
tem? Sede
e cansao.
A ideia do andarilho e isso, e cansao. uma
sede que parece infinita, e
acho que vivemos um pouco essa situa-
o. No que
o
mundo virou deserto porque as coisas desapare-
ceram no e tanto no sentido material/visual no sentido subjeti-
vo que me refiro ao deserto: as pessoas vivem um cansao junto
com uma asma, uma sede de ter que fazer, de ter que acontecer, de
ter que encontrar. preciso traba lhar, escrever, publicar
e
assim va i,
ma s e preciso ir As festas risos).
Glaucia
Tem a ver com ideia do nomadismo/fixo de que
falas no livro?
Denise Pode levar a isso, pode levar a uma asm a a bsoluta
e
a um movimento muito grande. De onde emerge uma
espcie
de
sensao de deserto de estar sem companheiros falo sobre isso
vrias vezes no texto; Machado de Assis
e Saint-Exupery referem-
se,
tambm ao deserto. Utilizo
o termo companheiro no no sen-
tido de acompanhar mas para evocar a possib
ilidade de trocar ...
companheiro
tambm e colo risos). As pessoas
esto autnomas
em relao A famlia, e
por razes bvias cada vez querendo mais
essa autonomia. As pessoas so
autnomas
em relao ao Estado
que no Brasil est desaparecendo e em relao As empresas, que
no assumem mais nada. Elas esto completamente livres mesmo
que elas no queiram: foram jogadas A. liberdade. Ento elas tern
que se tornar responsveis, elas tem que cuidar de si, tem que deci-
dir sobre a carreira; a mulher tem que decidir se quer ter filho ou
no se vai fazer plstica etc. tudo
deciso e
responsabilidade
individual. Estamos a tal ponto acostumados a decidir
e
escolher
O
tudo que numa festa
e
num momento de lazer por exemplo tor-
t ,
O
na-se um grande problema no querer pensar em nada, no ter que
decidir sobre nada risos).
36
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O CONHECIMENTO COMO UM
RELAO
DE
COMPOSIO
Refiro-me ao deserto no sentido desse novo tipo de
solido.
Nas sociedades mais tradicionais, as pessoas dividem essa respon-
sabi
lidade, voce no
decide sozinho. Mas como so todos que de-
cidem, ou muita gente decide com voce, se no d certo
o
que se
decidiu, seja cirurgia plstica, seja l
o
que for,
o
peso nab fica se
com voce, voce distribui
o
peso dessa responsabilidade no coleti-
vo. Mas
o
que se passa conosco diferente: em meio valorizao
da liberao, na qual hom ens
e
mulheres usufruem de um a liberda.-
de inexistente nas sociedades tradicionais, caso as escolhas fracas-
sem, a
razo e
a responsabilidade desse fracasso so inteiramente
do indivduo: estamos mais livres, conectados
e
isolados, mais res-
ponsveis
e sozinhos. t,
um tipo curioso de solido.
M arlon Por um lado contraditrio, porque esses mecanis-
mos de avaliao que existem,
o acmulo
do trabalho
acadmico,
por exemplo, so os prprios historiadores
e
os colegas que esta-
belecem, ou seja, voce
avaliado pela sua capacidade de produzir
mais ou no, no por
critrios
qualitativos. Sao mecanismos que de
certa forma nos cercam, mas que ao mesmo tempo somos ns que
os fizemos.
Bernardete
Sao os mecanismos
e critrios
de avaliao que
fazem
o
ritmo.
Denise Ao mesmo tempo, h um lado interessante nisso,
por
incrvel
que parea risos). Acho que essa compulso pela pro-
dutividade leva as pessoas rapidamente a perceberem algumas coi-
sas no digo todas. U ma certa inspirao nietzcheana indica que,
em certas situaes de terror, de presso... se faz necessrio
aprofundar a indignao. 0 que pode levar algumas pessoas a per-
ceberem mais rapidamente que a produtividade, por exemplo, no
o
Santo Graal. Por enquanto parece que no podemos escapar
dela em toda a parte; alis, eu diria que fora da universidade isso
mais
terrvel;
quem trabalha com
market ing
por exemplo, percebe
que
o
imperativo da produtividade muito mais pesado a compe-
tigdo, especialmente , tudo nele rapidam ente descartvel. Na uni-
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DOSSIE CORPO
E
HISTRIA
versidade h,
ainda, embora seja cada vez mais raro, a
possibiliade
de viver outros tempos, de funcionar como se
estivssemos
no
sculo
X IX, por exemplo. Felizmente Em outros lugares isso
no
mais
possvel, o nico
tempo vivel
o presente, a nica
chance de
aparecer pensar o
aqui
e
agora, ou
investir
num futuro virtual.
lado interessante
que
a
saturao
de tudo isso pode levar um
jovem
a perceber qu e a produ tividade
no
o
Santo
Graal,
e
que
ele vai precisar lidar com ela para poder sobreviver Fiqu ei alguns
anos fora do Brasil
e retornei em
1995.
Naq uele ano
havia, ainda,
um fascnio
pela globalizao.
Lem bro-m e de muitos colegas qu e
acreditavam q ue iramos finalmente
"virar
primeiro
mundo".
Ora,
hoje, se algum disser
isso, pelo m enos aqu i na universidade, pode
se tornar alvo de chacota; quer dizer,
ns aceleramos
e
ampliamos
a
exigncia da produ tividade
e o
temp o da globalizao,
financeira,
norte-americana. Mas ao m esmo tem po, a critica tambm
avanou:
hoje, a nossa
viso
dos E stados
Unidos no s por causa do
atentado , tem u m realismo q ue em 1994 no tinha.
Assim, o
deslumbre com a modernidade
ocidental,
que se
estende
desde a
repblica
brasileira, hoje
est sendo mais
frequente-
mente colocado em
questo. Torgo
para que esse questionamento
no
implique numa bomba caindo na cara Que seja
possvel
descolonizar a nossa cabea e
mante-la
bem
viva, sabendo qu e
esse mod elo ocidental de corpo, de
mente,
de
histria
que
est ai,
mais um m odelo, m ais uma
referncia,
e
qu e a partir dele
nem
preciso
jog-lo
fora
podemos criar outras
referencias.
Com
um a certa tranq ilidade. No se trata,
simplesmente,
de negar:
"no
leio mais nada que da
Frana
ou dos E stados Unidos ", ou ento,
leio tudo e
fao igualzinho a eles".
um pouco
a tranqilidade
para utilizar as referencias externas
suas teorias, sistemas de
avali-
ago, mtodos de produtividade, por exem plo
como ferramen-
tas:
se servir eu uso, se
no
servir eu no
preciso usar". A cho qu e
precisamos cheg ar a isso e
talvez um certo realismo ajud e.
laucia
Tu falastes do mom ento em q ue o corpo da m ulher
o pertencia a ela,
no
era um problema seu. Estava lembrando
de um ensaio do livro, em q ue escrevestes sobre
o
sujeito
que cor-
m
8
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O CONHECIMENTO COMO UM
REL O DE OMPOSIO
tou
um pedao do seu dedo e
acabou tendo
um problem a com a
justia
para ver de qu em era,
afinal,
aquele
pedao. En fim , a qu em
pertence
o nos so corpo hoje?
Denise N o
sei lhe dizer, n o sei lhe responder essa questo.
Acho q ue historicam ente ele tem sido co nsiderado cada vez m ais
um a propriedade exclusiva de cada um , de respon sabilidade de
cada
indivduo e
de escolha sua
tambm:
voce faz o que quiser com
ele, se voce
tiver dinheiro,
especialmente.
Percebo, contudo, peque-
nas m udanas,
m as acho que
s o s sinais, algo vago . Isso
e
o meu
trabalho atual
eu sem pre tenho dois , um do
sculo
X X
e
outro
do
sculo
XX. Estou trabalhando com a questo
da
alimentao,
porque eu acho que o pecado do final do
s ulo
XX e
alimenta-
o , n o
mais
o sexo risos). M as isso um a hiptese grosseira.,
qu e eu estou tentan do util izar para pensar a obesidade m as, en-
fim, isso um a outra histria, qu e outro dia eu con verso com
vocs.
D