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  • 8/11/2019 O Conhecimento como uma relao de composio.PDF

    1/31

    conhecim ento como um a

    relao

    de comp osi o

    Encontro com Denise Bernuzzi Sant anna

    a propsito do lanamento de

    orpos de Passagem

    Glaucia

    Costa Henrique

    Pereira Oliveira M arcos Schuh M aria

    Bernardete Ram os Marlon Salomon

    Marlon Quando pensamos neste encontro de

    sbito uma

    imagem nos veio cabea: ele poderia ser algo como uma

    avant-

    premire

    de filme independente. Voce sabe este tipo de encontro

    uma das poucas possib

    il

    idades em que

    o pblico

    que acompanha

    de perto ou a distncia um certo cineasta tem de questionar certos

    pontos esclarecer citaes que aparecem comentar sobre sua pre-

    ferencia por certos planos de enfim construir problemas em con-

    junto. Voce sabe tambm

    que este tipo de encontro se caracteriza

    por alguns elem entos interessantes: no h qualquer tipo de

    glamour

    como

    o

    h em grandes entrevistas no se trata de um espao

    em que imperam as objees

    e

    hi quase sempre um pequeno gru-

    po. Foi um pouco assim que pensamos este encontro.

    Denise Em primeiro lugar gostaria de agradecer. Para mim

    um grande prazer acho que esta a melhor definio estar

    discutindo com um grupo que no muito grande; acho que a

    primeira vez que fao isso. Sempre

    o

    fao ou com uma pessoa ou

    com um pblico maior. Mas dessa forma se cria uma dinmica

    muito interessante. Agradeo a todos

    vocs

    pelo convite.

  • 8/11/2019 O Conhecimento como uma relao de composio.PDF

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    DOSSI CORPO

    E

    HISTRI

    M arlon

    Gostaramos,

    para

    comear,

    que voce loca lizasse seu

    l ivro n a sua trajetria intelectual na sua filmo grafia, aproveitando

    o

    jogo de palavras e

    que

    t ambm

    no s falasse com o essa sua t rajetria

    se insere

    e

    on de ela se loca liza n a histria da histria do corpo sil .

    Den ise Este livro uma coletnea:

    so

    vrios

    ensaios, a lguns

    inditos e

    outros j publicados, dent ro de um a t ra je tria n a qual ve-

    nho pensando

    o

    corpo co m o um obje to histrico. Desde meu curso

    de mestrado utilizo

    o

    corpo como um pretexto

    bem

    um pre-

    texto m esm o para pen sar os l imites da histria. Ele m e interessa. ,

    em primeiro lugar, por seu aspecto parado xal. Por que ele

    parado-

    xal? Porque ele nos

    extrem am ente fam il ia r

    e

    ao mesmo tempo

    aquilo que temos de mais desconhecido; ele natural

    e

    cultural; ele

    nunca est pronto mas nunca

    est

    no rascunho. HA uma serie de

    paradoxos que caracterizam um corpo seja humano ou no no

    caso , es tou t rabalhando especif icam ente com corpos hum ano s . Esses

    paradoxos nos levam a pensar sobre os prprios paradoxos da es-

    crita da histria; ou seja, pen so que h um a rela o en tre ser historia-

    dora e trabalhar com

    o

    corpo. Quando se est trabalhando com

    qualquer objeto na histria, h sempre uma parte de impondervel,

    dificil de transpor para

    o

    discurso

    e

    que nos escapa. Ora, trabalhar

    com o

    corpo

    exatamente isso: no se consegue

    transp-lo

    total-

    mente para

    o

    discurso, nem entende-lo, esclarece-lo, desvend-lo com -

    pletamente. Por sermos em certa medida comprometidos com di-

    versos ideais da modernidade somos igualmente fascinados pela

    tarefa do desvendamento. Parece-me portanto que

    o

    corpo um

    objeto propicio para testar os limites dessa tarefa. HA um filsofo

    que uso no livro e

    que se chama Franois Dagognet; segundo ele

    estudar o

    corpo

    como caminhar no escuro: voce est sempre es-

    pecialmen te na medicina desvendando novas doenas , nova s curas

    e

    ao mesmo tempo descobrindo novos riscos

    perigos. Essa cam i-

    nhada, que nunca esclarece com pletam ente, de cer to m odo a cam i-

    nhada

    do historiador; ela que m e interessa. No tanto o obje to em

    r r

    i , ate po rque n o existe objeto em si, pois

    o

    que m ais me interessa e,

    0

    o trabalhar com

    o

    corpo em diversos domnios esbarrar sempre

    rm

    isso

    que no con sigo passar para

    o

    discurso. De certo mo do, essa

    1

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    3/31

    O

    CONHECIMENTO

    COMO UM REL O DE

    OMPOSIO

    uma das propostas do livro manter

    o

    corpo como enigma estud-

    lo para mante-lo como enigma. No sei se consigo mas e uma pro-

    posta com um certo fundo politico dedicado a lutar para que o

    historiador tenha limites quando pretende

    o desvendamento. Feliz-

    mente no

    conseguimos desvendar- tudo

    Talvez exista aqui a vontade de trabalhar com a histria sem-

    pre enfrentando paradoxos contrariando portanto a suposio

    de que seu curso destina-se

    decadncia,

    ao progresso ou ao total

    desvendamento. 0 mesmo ocorreria com

    o

    corpo. De maneira

    mais ampla h em minha trajetria de pesquisa a afirmao desse

    paralelo entre

    o

    trabalho do historiador

    e

    aquele de pensar

    o cor-

    po. Alem

    disso j em minha dissertao de mestrado ao

    traba-

    lhar

    com o

    lazer me deparei com questes relacionadas ao tem-

    po livre ao

    ldico

    e sobretudo aos cuidados do corpo. 0 Ultimo

    capitulo dessa

    dissertao

    chama-se

    Sade e

    Velocidade;

    nele traba-

    lho com os cuidados do corpo a partir das campanhas esportivas

    e

    investigo as demandas por gestos

    e

    ritmos corporais cada vez

    mais velozes. Sem ainda entrar nos

    domnios que Foucault traba-

    lha mas de uma maneira mais simples a partir das fontes que

    dispunha eu me perguntava: ate que ponto seria

    possvel

    fazer

    uma histria dos cuidados de si a partir das campanhas esportivas

    dos anos 70 no Brasil?

    Na verdade quando comecei a estudar os cuidados do cor-

    po este no era ainda um tema

    to glamuroso

    como

    o e

    hoje; acho

    que desde

    ento

    ele foi progressivamente ganhando charme. Mas

    naquela

    poca

    era mais charmoso trabalhar com

    o

    espirito

    e

    com

    o pensamento; o

    corpo no era ainda um tema muito discutido nas

    cincias

    humanas.

    De todo modo eu me perguntava: como

    e

    possvel,

    em plena

    ditadura dos anos 60

    e 70 o

    culto ao corpo ter se transformado

    em uma coisa extremamente normal

    e desejvel desencadeando o

    surgim ento de salas de ginstica

    e musculao?

    Como e que

    o jogg ing

    e o

    estilo esportivo entre outras

    prticas

    outrora restritas a uma

    minoria foram banalizadas? Hoje

    o jo g g i n g e

    praticado em inme-

    t

    ros

    lugares por mulheres homens de diferentes idades

    e condi-

    es

    sociais. Em Sao Paulo ele est presente ate mesmo nas grandes

  • 8/11/2019 O Conhecimento como uma relao de composio.PDF

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    DOSSIE CORPO

    HISTRI

    avenidas

    poludas

    (aqui pelo menos mais

    agradvel,

    pois h a

    Beira Mar). Ora, como foi

    possvel

    transformar uma prtica como

    essa em algo natural

    e saudvel?

    Como que esse tipo de cuidado

    do corpo

    pde

    sair do reino da exceo

    e

    virar uma necessidade

    para muitos? Meu interesse em pensar

    o

    corpo tambm vinha dai.

    J durante

    o

    doutorado, trabalhei basicamente com a histria

    do embelezamento feminino no Brasil. Foi quando me perguntava:

    como era

    possvel,

    nos anos 40, por exemplo, segundo os conse-

    lhos das revistas femininas, considerar natural

    o

    fato de fingir ser

    bela? Pois, naquela

    poca,

    muitos conselheiros de beleza recomen-

    davam para a mulher

    o

    seguinte: "finja ser bela" "No precisa se-

    lo, finja apenas; use laqu,

    suti

    de bojo, etc . M uitas mulheres seri-

    am, portanto, livres para aparentar uma beleza que no

    possuam,

    ate porque havia um pudor naquela

    poca,

    de intervir cirurgica-

    mente no corpo com intuito de torn-lo belo, um pudor moral

    e s

    vezes religioso. Ora, como foi possvel, a partir dos anos 70, trans-

    formar aquele tipo de fingimento ou dissimulao numa hipocrisia

    pouco aconselhada?

    E

    como foi

    possvel

    tornar natural

    o

    que na-

    quela

    poca

    era imoral, ou seja, transformar-se em mulher bela

    na

    aparncia,

    modificando a

    essncia?

    Na verdade, eu estava estudando

    o

    embelezamento do cor-

    po, mas minhas questes se voltavam para uma problemtica bem

    maior que a da produo de um sujeito de si. Nesse sentido, no

    Brasil,

    o estudo

    dessa produo

    facilitado, de certo modo, quan-

    do estudamos

    o

    corpo feminino pois, os cuidados a ele dirigidos

    relacionam-se diretamente com sua entrada no mercado de traba-

    lho, com a redescoberta do desejo sexual, com

    o

    boom

    da

    meg aindstria da beleza, etc.

    Assim, no

    o

    corpo em si que m e interessa, mas certas ques-

    tes que

    o perpassam, incluindo

    o

    amplo processo de subjetivao

    da verdade, a partir do qual uma pessoa se torna sujeito do seu

    prprio corpo. Para vrias

    pocas e

    culturas foi completamente

    sem sentido para uma mulher de elite ou uma mulher pobre, por

    exemplo, pensar que

    o prprio

    corpo era dela. Segundo a pesquisa

    O

    que atualmente realizo sobre os usos da Agua na cidade de

    s a c

    Paulo, no incio do

    sculo

    XIX,

    o

    corpo no era ainda considerado

    r

    2

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    O

    CONHECIMENTO

    COMO UM RELAO

    DE COMPOSIO

    uma substncia fechada propriedade de cada um. 0 corpo da

    muffler por exemplo era pensado muito mais como sendo de res-

    ponsab

    ilidade e

    de direito do pai dela de Deus do padre do des-

    tino... Os dirios das mulheres de elite, os processos judiciais

    e mui.-

    tas

    outras fontes de estudo mostram

    o quanto a nog

    do de corpo

    no era a mesma que hoje aceitamos como normal. Em casos de

    estupro por exemplo no era sempre

    o

    corpo estuprado que era

    considerado a principal vitima,

    e sim

    os seus genitores ou respons-

    veis. Ora como que esse corpo passou a pertencer a cada um?

    Por meio de questes como essas me interesso pelo corpo

    para entender

    o que se encontra em torno dele incluindo

    o se u

    espao, a sua vivncia.

    Trata-se, tambm

    de realizar a histria, sem-

    pre

    heterognea e

    incompleta da inveno de um

    indivduo autO-

    nomo.

    Marlon De certa forma a filosofia foi quem primeiro

    problematizou o

    corpo como um objeto

    possvel

    de ser estudado

    historicamente mas sempre privilegiando certas zonas do saber

    como a medicina por exemplo. Como historiadora voce procura

    pens-lo no de forma isolada mas como por exemplo existem

    implicaes do que ocorre na medicina na biotecnologia na

    informtica na mudana de percepo do corpo que se constitui

    com

    o

    advento da acelerao em nossa sociedade

    o

    que de certa

    forma uma juno

    de vrias zonas de anlise

    que existiam na

    filosofia isoladamente. Como essa possibilidade se constitui no sa

    ber historiogrfico?

    Denise Durante sculos o

    corpo foi muito mais um assunto

    da filosofia ou das cincias da vida medicina

    e biologia). Esse tem

    a

    comeou

    a aparecer com m aior

    frequncia

    nas cincias hum anas du-

    rante o sculo

    XX, especialmente depois dos anos 20

    e 30,

    com M arcel

    M auss, por exemplo. Acho que ai se localiza uma grande contribui-

    o, que aparece naquele texto famoso chamado

    Tcnicas Corporais

    no

    qual Mauss vai mostrar que cada cultura tem um tipo de gesto um

    tipo de expresso corporal. Na mesma

    poca, alis,

    Norbert Elias

    outro autor importante estava produzindo um trabalho que dife-

    13

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    DOSSI CORPO

    E

    HISTRI

    rente daquele de M auss que m ais horizontal

    e considera

    cada socie-

    dade e

    cada cultura, verticaliza as questes da s diferenas culturais no

    curso do tempo (acho que por i sso ele to usado pelos historiado-

    res . Elias detecta como os processos de ao sobre

    o

    corpo, os

    invest im entos sobre

    o

    corpo, no disciplinares necessariamen te,

    e

    que

    ensinam , por exemplo a comer com talheres , tornam -se um

    hbito.

    Trata-se de um a perspectiva de pesquisa que ganh ou um espao cres-

    cente nas

    cinci s

    humanas,

    e

    especialm ente na Franga ; no que ape-

    nas l se tenha problema tizado

    o corpo, m as na Franga

    o

    corpo vem

    sendo um tema m uito estudado, tanto que nos anos 70 havia

    o

    que

    s e cha m a v a de

    corporeismo

    uma voga do corpo, com muita gente

    toman do esse tema com o objeto de estudos, criando rev istas sobre

    o

    corpo, congressos sobre

    o

    corpo, etc.

    Gostaria de juntar i sso com um segundo aspecto . Trata-se da

    intrigrante

    transformao

    do corpo num a substncia; tenho um certo

    receio de substancializi-lo, destituindo-o d a possibilidade de ser pensa-

    do historicamente, ou com o um pretexto para se questionar a histria.

    0 t i tulo deste l ivro,

    Corpos

    d e P a s s a g e m

    proposital porque

    o

    corpo

    algo que passa: no m e interessa fazer a histria do corpo, ate porque

    seria fazer a histria da vida

    o

    que um pouco im possvel , mas me

    interessa pensar com o que

    o

    corpo conseguiu adquirir a importncia

    que possui hoje. Mas h um risco, apontado no livro, em transformar o

    corpo num a

    espcie

    de alma

    e

    no lugar de trabalhar essa transforma-

    go historicamen te, crer que doravante a verdade

    est

    no corpo. Por

    isso, seria men os arriscado pensar

    o

    corpo passando ,

    e no s

    pas-

    sando nos lugares como procuro m ostrar na primeira parte do l ivro,

    quando

    o

    tom da escrita m ais critico, pois

    o

    corpo se limita aqui a ser

    um veiculo, que passa por todos os lugares m as funcionando com o

    um a passagem , com o um elo; quer direr, no lugar de ser um a subs-

    tncia, ele seria um ato em proce sso de individuao, em conexo com

    os dem ais corpos . Ai h i novam ente uma

    que sto politica;

    acho que

    hoje devem os construir subjetiv idades que tenham um eu (ou um a

    ideia de sujeito de si) men os

    slido.

    M enos sl ido no significa frag-

    m entado, pulverizado; significa sim co nhecer a sua historicidade, saber

    Q .

    rofundamente que se um a m emria que carrega coisas de outros

    rrn

    empos, m as que tudo isso est em processo, que nasce

    e

    morre.

    4

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    O CONHECIMENTO COMO UM REL O DE COMPOSIO

    Henrique Vou juntar duas questes em um a s. Talvez seja

    curioso pensar a subjetividade justam ente a partir do corpo, que e

    o

    que vo ce faz. No entanto, pegando a histria do co rpo, nab sei se

    voce pensou sobre isso, se pegarmos

    o

    incio

    do

    sculo

    XX, com o

    pessoal das artes, da dan a, ate os an os 60, a preocupao do co r-

    po remetia muito recusa da cultura do artificio

    e

    a uma busca

    primal, das

    foras

    mais terra etc. Se pegarmos sobretudo a partir

    do final dos anos 80

    e

    anos 90,

    o

    corpo no e mais necessariamente

    retoma do nessa p erspectiva, m as sim no artificio, no

    piercing

    na ta-

    tuagem,

    prtese e

    etc. Com o voce pensa isso?

    Denise No fcil pensar no apogeu dessa tendncia que

    voce

    est

    apontando, incluindo a ideia de

    expresso

    corporal. Nos

    anos 60 houve cursos

    e

    toda um a serie de organizaes que iriam

    pensar, na universidade ou fora dela, que

    o

    corpo deve se expressar,

    que ele possui uma

    nguagem a palavra no e essa, mas vou utiliz-

    la na falta de outra , uma linguagem corporal, pois

    o

    corpo no se

    expressaria necessariamente

    e

    unicamen te pela voz. H a suposio

    de que e preciso ouvir

    o

    corpo

    e toc-lo.

    Trata-se, evidentem ente, de

    uma

    poca

    influenciada , entre outros, pela psicanlise, pela terapia

    ocupacional

    e

    por inmeras

    tcnicas

    destinadas a fazer Q corpo se

    soltar . Ai temos desde a influencia de Therese B ertherat ate Reich;

    en

    fi

    m, o

    corpo e pensado com o aquilo que dev e se liberar, tal com o

    pregavam as bandeiras de luta dos anos 60. No entanto logo se

    percebeu qu e, em prim eiro lugar, liberar

    o

    corpo e u m trabalho infi-

    nito. Em segundo lugar, percebeu-se que a expresso corporal sem -

    pre passava pela linguagem ; no caso d aquelas terapias em voga, era

    difcil

    escapar da linguagem, fosse ela oral ou escrita. Mesm o que

    voce no escreva nada no diga nada acaba percebendo que a

    cognio do gesto, culturalmente, passa pela linguagem escrita

    e

    oral,

    passa p elas palavras, pelas frases.

    E

    a proposta de muitos como

    vrias utopias dos an os 60, era sair desse campo da linguagem.

    Mas ao mesmo tempo desde a

    dcada

    de 60, vivem os solD

    um a acelerao, talvez

    indita

    na histria, do processo d e aproxima-

    o do humano em relao ao

    no-humano

    da tecnologia

    e

    do or-

    ganismo vivo. E

    nesse

    encontro ou infiltrao entre aquilo que est o

    15

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    O CONHECIMENTO COMO UM REL O DE COMPOSIO

    Hen rique M as voltando a falar desse lim ite, do indiscernivel,

    a produo da

    diferena tambm

    se tornou uma mercadoria de

    ponta seja se falando no porquinho seja no ser diferente.

    Denise Certamente. Acho que

    o

    livro toca numa

    questo

    que talvez se possa abordar aqui

    e

    que me norteou; nele hi um

    momento que chamo de

    nusea: tudo o

    que era considerado a

    diferena"

    ate

    o prprio

    uso de conceitos como

    diferena,

    multiplicidade ,

    comeou

    a sair da boca do capitalismo , vamos

    dizer assim, dos grandes empresrios, dos produtores de

    market ing

    E no s

    da boca , mas,

    tambm,

    da

    ao

    do modo de vestir,

    pensar etc.; no mais por essa linguagem que ser

    po ssvel distin-

    guir

    se

    algum est

    produzindo

    diferena

    ou diversidade pura

    e

    simples. Em meio

    confuso

    entre

    diferena e

    diversidade, h a

    nusea.

    Mas talvez,

    devssemos

    pensar a partir de uma

    diferena

    fundamental, entre

    dominao e composio;

    isso que tento tra-

    balhar nos ltimos artigos, em que abordo uma certa nog

    do de

    tica.

    Trata-se de tentar manter relaes com as pessoas que no

    sejam de pura

    e

    simples dominao, na qual eu domino

    e voce

    dominado

    e

    vice-versa. Trata-se, assim, de substituir a relao

    assimtrica

    da

    dominao

    por uma

    simtrica,

    em que no haja mais

    um sujeito dominante

    e

    um objeto assujeitado. Mas essa

    relao

    simtrica tambm no

    implica uma romntica fuso de ambos, a.

    ponto de dissolver as suas

    diferenas.

    Portanto, trata-se de uma re-

    lao em que ambos fortalecem

    o

    que tem de forte Por conseguin-

    te, penso que no mais

    possvel

    condenar ou criticar aquilo que

    puramente tecnolgico, partindo da hiptese de que a tecnologia

    (ou

    o artificio)

    seja sempre ruim. 0 critrio no pode ser mais esse

    porque hoje todo mundo faz uso do artificio; h ate mesmo a

    indstria naturalizada, em que

    o

    natural

    o

    industrial. Parece que

    agora torna-se claro que devemos mudar nosso

    critrio

    em

    relao

    a isso,

    e

    para tanto no p reciso "ter cultura" nem entrar na univer-

    sidade.

    Alis

    a ideia um pouco essa: pensar em

    critrios

    que no

    passem s pelo

    inteligvel acadm ico,

    mas que qualquer um tenha

    acesso, na sua

    vivncia,

    na sua

    experincia.

    17

  • 8/11/2019 O Conhecimento como uma relao de composio.PDF

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    DOSSI CORPO E

    HISTORI

    Bernardete

    No teu livro fazes referencia ao debate entre a

    fisica

    e

    a poesia tratado no filme

    Ponto de

    Mutao De um lado a

    viso mecanicista

    do mundo e

    a possibilidade de super-la com

    uma visa()

    sistmica,

    de outro, a prpria dificuldade em estabelecer

    as cone xes de seus pressupostos. Numa das lt ims falas do

    fi

    lme,

    o

    poeta sugere que diante d esse dilema haveria um outro risco,

    o

    de

    sair de um determinismo mecanicista

    e de se cair num outro

    determinismo: o sistmico. Acho

    que

    o que vens colocando uma

    tentativa para se pensar para alem dessas determinaes tanto

    a

    sistmica, quanto a m ecanicista.

    D enise Sim, porque, sem pre dificil sair da lgica essen cialista

    e substanc ialista. Por vezes, no lugar de valorizar

    o

    sujeito ou

    o objeto

    de uma determinada relao, valoriza-se a relao mas de modo a

    torn-la, ela mesm a, uma

    essncia Substancializar

    a

    relao terrvel,

    porque ela en durece

    e

    ela feita para ser uma relao Portanto, ela

    provisria,

    local

    e histrica.

    HA ce rtos autores que fazem quase um a

    apologia das relaes, de um a m aneira s vezes ate perem ptria: "a

    questo no

    o sujeito, no existe

    o sujeito, s existem as relaes".

    No creio que seja

    possvel avanar

    sustentando essa idia. A

    questo

    justamente poder pensar

    o

    m undo onde c ada um se subjetiva, tor-

    na-se su jeito ou objeto a todo instante, sem se limitar a ser sujeito ou

    objeto. A

    questo seria pensar o problema historicamente

    e pergun-

    tar "como que as pessoas se tornaram aquilo que so?" Creio que a

    histria ajuda bastante nesse aspecto, na me dida em que as relaes

    sociais sic) consideradas uma

    espcie

    de trama histrica que possui

    permanncias e rupturas. Muitas vezes a sede de desvendar as em o-

    es, assim com o a sede d e ver a substncia, nos faz confundir um a

    relao com uma determinada ideia de movimento sustentada na

    passagem do corpo no tempo

    e no espao. Ora,

    o movimento no

    precisa necessariamente ser s isso. D ependen do da ideia de fisica, as

    coisas podem ser vistas de outro m odo, seja pela fisica quntica, seja

    pela fisica mecnica por exemplo. A ideia de se pensar um mundo

    m ais conectado, com relaes de composio

    e no de d ominao,

    0

    m grande desafio

    dificlimo,

    porque o

    corpo no consegue viver

    assim o tempo todo. A

    tica s

    existe porque ela no existe o

    tempo

    8

  • 8/11/2019 O Conhecimento como uma relao de composio.PDF

    11/31

    O CONHECIMENTO COMO UM REL O DE COMPOSIO

    todo; no creio que se possa chegar a um suposto mundo da

    tica,

    pois este seria um mundo muito tenso. A esse respeito, pode ser ail

    um exemplo que sempre me ocorre, fornecido por um filsofo das

    tcnicas

    chamado Gilbert Simondon. Trata-se do exemplo de um

    arteso que faz uma esttua a partir de um bloco de mrmore. Uma

    primeira possibilidade

    o arteso retirar

    desse mrm ore a esttua de

    uma mulher independente dos veios do mrmore, independente da

    poca

    em que ele vive,

    e

    especialmente independente do mrmore.

    Pode ser que ele obtenha uma linda mulher, pouco importa. Mas,

    uma segunda possibi

    li

    dade

    o arteso

    produzir uma esttua a partir

    de um trabalho que resulte do respeito da sua prpria inteligncia

    conectada a.

    inteligncia

    da

    matria ,

    de modo que a bela mulher

    feita a partir do que se poderia cham ar das

    foras

    singulares de am -

    bos: do arteso

    e da

    matria (neste

    Ultimo caso refiro-me aos veios

    do m rmore). No existiria, aqui, uma relao de fora que se instaura

    e domina o

    objeto, mas sim uma relao que se processa de fato n

    a

    conexo

    com a informao da

    matria e

    isso, na

    matem tica, cha-

    ma-se mesmo informao , pois toda matria

    tem uma informa-

    gdo, no caso do mrmore, para falar a grosso modo, seriam os seus

    veios. t, mu ito mais fcil voce esculpir uma m ulher independente dos

    veios; e

    muito mais

    difcil o c ontrrio, quando

    preciso conhecer a

    matria, entrar

    em relao de fato

    e

    se compo r com ela. Por isso que

    dificil uma relao

    tica

    ou de com posio, pois ela demanda tem -

    po; para se conhecer

    o mrmore

    preciso tempo,

    e

    na nossa vida

    corrida m uito mais fcil recorrer a relaes de dom inao, porque

    se ganha tempo com isso. J uma relao de composio implica em

    se pensar que h uma pessoa ali, um sujeito (ou uma

    matria

    que

    possui uma

    inteligncia

    de outro tipo . Sem ser

    mstico,

    pode-se su-

    por que toda matria,

    para as

    cincias

    exatas, possui informaes.

    Quando se trata de um outro ser humano essas informaes Sao

    ainda mais complexas, porque

    o ser humano tem um a

    vivncia hist-

    rica

    bastante densa;

    ento,

    essa sintonia da

    inteligncia

    de um com o

    outro, de dois se conectando, uma sintonia que nem sem pre conse-

    gue durar mais que segundos, pois exige uma presena desperta, em

    estar onde se est completamente, de corpo

    e

    alma 0 que implica

    em no descuidar em nenhum minuto, caso contrrio,

    e o arteso

    D

    r l

    9

  • 8/11/2019 O Conhecimento como uma relao de composio.PDF

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    DOSSI:E CORPO

    E HISTRI

    sabe disso,

    voce sai do veio ; s

    vezes h sentimentos que ajudam a

    manter

    essa conexo,

    como

    o

    am or, a paixo

    ou os interesses ,

    s

    vezes os m ais

    escusos

    ajudam a estar onde se

    est.

    O

    cime

    e

    alis,

    uma experincia

    que pod e ser vista dessa

    maneira; h

    aquele livro

    maravilhoso do Deleuze

    intitulado

    Proust

    e os Sign os

    no qual o

    autor

    mostra

    o

    quanto o homem apaixonado

    se faz presen te, rea

    li

    zando

    diariamente

    essa

    prospeco,

    um po uco como um detetive.

    Bernardete Vimos

    nesta semana, em todas as man chetes , a

    foto das

    1.200

    pessoas que posaram nuas para um a rtista no Parque

    do

    Ibirapuera.

    No teu

    livro,

    quando

    te referes D olly

    clonada e

    dizes que a

    plula anticoncepcional inventou

    o

    momento

    em que se

    inventou

    o

    uso do prazer sexual sem o

    risco da

    reproduo,

    com

    o

    clone, com a

    inseminao

    artificial etc., pod em os reprod uzir

    sem o

    prazer sexual. No

    dia-a-dia

    estamos convivendo com algumas

    ati

    vidades,

    como a

    biodana, por exemplo, que trabalham , pelo m e-

    nos no

    meu

    ponto de vista, a dessexualizao

    do corpo

    todos

    aqueles toques a serem experimentados , ma s sem se deixar

    envol-

    ver no outro e nem esperar dele algum

    envolvimento,

    ou saber que

    o

    outro te toca sem esperar

    teu

    envolvimento

    e nem est

    querendo

    envolver-se

    em t i, para m im

    um

    herclio exerccio

    de suspenso

    da sexualidade, emb ora

    apaream

    com o gestos extremam ente sen-

    suais ;

    a proposta do fotgrafo,

    segundo sua s entrevistas divulgadas

    na im prensa, era a d e m ostrar que todo

    o

    corpo belo, pode des-

    pir-se,

    integrar-se natureza, ma s principalmente

    tinha o intuito de

    se dessexualizar. Fiquei ento pensando

    se hi algum a

    relao

    entre

    essa cultura

    da

    dessexualizao

    e

    a tua ques to.

    Fiquei

    pensando que

    a de speito d a cultura da

    dessexualizao, h

    uma

    enorme publicida-

    de de crim es sexuais, assedio, pedofilia,

    es tupro, em todos os

    gru-

    pos e camadas sociais. Hi uma propagao

    do sexo animalesco,

    instintivo.

    Hi alguma

    conexo entre um a coisa

    e

    outra? Go staria

    que falasses um pou co sobre isso.

    a

    enise

    Essa sua leitura

    e

    m ais verdadeira ainda se

    pensar-

    m o s

    em outros 'Daises

    que

    possuem um certo

    nvel

    de conforto

    ..,

    T r :

    aior do que

    o

    nosso. Neles a

    dessexualizao

    do corpo, a

    4 .

    2 0

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    O CONHECIMENTO COMO UM REL O DE COMPOSIO

    deserotizao

    e

    a

    violncia

    sexual se colocam de modo mais evi-

    dente; quer dizer, os estupros

    e

    os casos de pedofilia que aconte-

    cem na Europa

    e

    nos Estados Unidos no so nada

    desprezveis e

    a mdia os explora. Sem sombra de

    dvida,

    este tema d muita

    audinc ia o

    que m e leva a pensar que h u ma fobia em relao ao

    corpo, ou seja,

    o

    c orpo est mu ito em foc o. As pessoas esto extre-

    mamente preocupadas com

    o prprio

    corpo. Fica a impresso de

    que em momentos diferentes se elege na histria certos objetos em

    que se colocam todos os pecados, todas as loucuras, todas as ver-

    dades, todos os erros, pode ser a nag

    do, pode ser

    o

    espirito pode

    ser a igreja

    e

    hoje

    o

    corpo parece ocupar esse lugar. As pessoas

    fizeram do corpo a prpria alma, a prpria ptria: me interessa

    historicamente saber como isso aconteceu. Como foi

    possvel

    dar

    essa visibi

    li

    dade alucinan te ao corpo;

    e

    se ele se torna

    to visvel,

    ele

    o

    lugar de todas as taras ele

    o

    lugar de todos os prazeres, ele

    o

    lugar da salvao. 0 qu e, talvez, resulte, em parte, do fato qu e, em

    nossa

    poca,

    a idia das grandes utopias, das grandes ideologias,

    ficaram um pouco abaladas. Richard Sennett, com as tiranias da

    privacidade explica um pouco essa

    tendncia.

    Mas, parece-me, tambm, que alem do papel da

    mdia

    do

    qual prefiro no falar hi um gran de

    fascnio

    pelo binmio violn-

    cia/segurana. A nossa

    poca est extremamente

    fascinada

    e ater-

    rorizada

    por esse binmio. 0 que no impede que exista, em meio

    a esse binmio um

    fascnio

    pela sexualidade, por diversos tipos de

    sexualidade,

    e

    ao mesmo tempo uma

    espcie

    de repulsa. HA vrias

    pesquisas nos Estados Unidos que esto mostrando, sobretudo na

    sociologia

    e

    na antropologia, uma grande quantidade de casais que

    nab tem mais relao sexual por opo. No se trata mais do puri-

    tanismo repressor do

    sculo

    XIX do puritanismo moral

    e

    eugenic

    dos anos 20, do puritanismo j psicanalizado dos anos 60, mas de

    uma outra tendncia, que ate poderamos chamar de puritanismo,

    mas que traz como argumento a ideia de que

    o

    sexo no necessi-

    rio. Como se fosse normal doravante pensar: a sexualidade no

    nec essria, a sexualidade oferece m uito pou co,

    o

    corpo tem muitas

    outras possibi

    lidades .

    c r

    2

  • 8/11/2019 O Conhecimento como uma relao de composio.PDF

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    DOSSI CORPO

    E HISTORIA

    Bemardete E

    ao m esmo tem po se fa la tanto de que

    o

    sexo

    faz bem sade. Torna-se quase um a obrigao.

    Denise Ach o que ainda se trata da m esma

    tendncia.

    Segundo

    um a pequena pesquisa que realizei h pouco tem po, com as m anch e-

    tes de capa das revistas Veja

    e isto

    de 1968 ate h oje, im pressio-

    nante, pensando s no corte quantitativo, sem pensar no qualitativo,

    com o sic, progressivam ente r ed uzidos os assuntos polit icos.

    E no

    seu lugar, o

    que comea a aparecer? A sexualidad e nos anos 80, com

    assuntos sobre a

    virgindade, sobre

    o

    prazer feminino (na

    Veja

    e

    isto

    nem estou falando da

    Nova .

    Quand o se chega aos anos 90, a sexua-

    lidade

    c o me a

    a sair d e cena, lgico que ela va i continuar a aparece r,

    m as ela com ea a dar lugar a

    matrias sobre

    sade,

    sobre com o curar

    o colester ol,

    por exem plo. Tenho um colega que est fazendo um a

    pesquisa com pessoas que praticam

    jogging e

    ele

    t a m b m

    nota algo

    semelhante: ate

    o

    f inal dos anos 80 a preocupao era m uito m ais

    c om a

    esttica,

    hoje m uito m ais com a sade. HA em nossos dias

    um im perativo da sade,

    do corpo saud vel , que recom enda fazer

    sexo, cam inhar, etc., para ma nter a sade um a im ensa

    parania que

    tem a ver com questes sociais m uito precisas, com o, por exem plo,

    com a quantidad e de pessoas que ultrapassaram a faixa dos 50 anos

    e

    os problem as que as acom panham ,

    e isso significa um m erca do novo,

    no s de m ed icam ento, m as de clubes, de lazer, de terapias, etc .

    Estam os v ivendo um m om ento em que nunca

    o m ercado da sade

    foi to grand e, expand iu-se, tornou-se ate um a

    questo turstica. M ui-

    ta

    gente vai praticar lazer para a sade.

    Pen so que, se nos anos 60

    e 70

    era

    o

    prazer sexual que estava em foco, hoje

    um outro tipo e

    eugenismo que traz a sade com o

    questo.

    im pressionante com o

    tema da

    sade

    aparece nas conversas corriqueiras, de m odo altam en-

    te norm al, nos parques, avenidas, etc.

    a:

    or outros sabere s, vai se tornar ob jeto de outra s disciplinas. M ais

    Q . .

    ard e se constitui a clinica, a gentica, em seguida a biotecnologia,

    e

    . . . .

    a:

    em pre parece que h um a ressonncia d o que se pensa em relao

    c v

    M arlon O

    corpo surge com o objeto de estudo com Vesale

    e

    a m edic ina com parada .

    A

    partir d ai e le vai ser problem atizad o

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    DOSSI CORPO

    E

    HISTORI

    de lado. Como

    e

    que tu

    vs

    este paradoxo: por um lado hi

    o

    corpo

    e

    os saberes que

    o

    constituem produzindo um a identidade,

    e

    por

    outro

    h

    todo um conjunto de

    prticas

    que a nega?

    Bernardete

    Apenas com plementando essa

    questo.

    No teu

    trabalho dizes q ue

    o

    corpo

    e a

    ltima

    fronteira

    a ser

    conquistada

    pela biotecnologia, pela

    informtica

    a

    robtica,

    etc.

    corpo

    e essa.

    fronteira a ser manipulada, mas de certa forma hi. um

    esfacelamen-

    to hoje das fronteiras nacionais. No entanto, isso m e parece contra-

    ditrio.

    Vem os a cada dia

    milhes

    de pessoas atravessando as

    fron-

    teiras

    nacionais

    e

    carregando a prpria

    nao

    em

    seu corpo

    um

    corpo que

    no

    se desfez

    a marca de sua p tria, de sua

    nao

    a sua

    cor, a sua cultura, quanto m ais "de passag em ", mais identificado.

    Com o pensar

    o

    corpo como a

    ltima

    fronteira da identidade,

    e

    ao

    m esmo tempo, como a

    ltima

    fronteira a se r transposta

    e

    conquis-

    tada

    pela biotecnologia?

    Denise

    H um a coisa im portante

    e

    que toca nas duas per-

    guntas.

    Se pensarmos historicamente, resta a

    impresso

    de que hoje,

    muito

    mais

    do que

    h. 50

    ou

    100

    anos, a identidade

    st

    no corpo.

    Ou seja,

    poderamos

    imaginar que daqu i hi

    100

    anos a identidade

    de uma pessoa

    no

    vai mais estar no seu corpo, mas numa

    determi-

    nada mquina

    que ela possu a. Historicam ente a identidade do ser

    nem sem pre esteve to m isturada ao corpo. HA um exemplo a esse

    respeito que encontramo s na passagem da

    pintura

    medieval para a

    pintura renascentista. Nela,

    e impressionante

    como o corpo vai

    ga

    nhando

    peso e

    visibilidade;

    para um

    leitor desavisado

    a pintura da

    Idade Media parece no ter

    expresso;

    ele pode ver uma tela

    e

    pensar: "os olhos daquelas pessoas

    pintadas no

    brilhavam ". M as

    numa

    pintura

    de uma

    poca

    posterior

    perceptvel o

    brilho no

    olhar. No primeiro caso,

    e

    como se

    no

    houvesse

    expresso

    mas

    Obvio

    que no e

    isso, pois, de fato, a

    expresso

    era entendida de

    outra

    maneira

    e o

    corpo

    no

    tinha

    o

    peso

    e

    a v isibilidade que e le

    assou a ter na cultura mo derna. Concordo com Norbert Elias: no

    ensam ento ocidental, em particular na

    histria

    da

    filosofia

    e

    n

    a

    histria

    da m edicina,

    o

    corpo adquire progressivam ente mais

    volu-

    c

    4

  • 8/11/2019 O Conhecimento como uma relao de composio.PDF

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    CONHECIMENTO COMO UMA

    RELAO

    DE COMPOSIO

    me e

    autonomia. HA um momento inclusive em que aquele brilho

    de Deus

    e

    da identidade que estava fora do corpo humano con-.

    quista

    o seu interior.

    o

    momento em que os olhos

    comeam

    a

    emitir luzes; olhar, doravante, significa, inclusive, olhar com esse

    olho da alma que foi interiorizado. interessante perceber como,

    ao longo desse processo de interiorizao,

    o

    corpo ganha uma pro-

    ximidade com a ideia de eu, a ponto de hoje se dizer assim: eu sou

    esse corpo aqui .

    Ento

    me parece que a identidade foi historicamente sendo

    cunhada no corpo

    e

    a publicidade no cessa de confirmar as su-

    postas vantagens dessa densidade subjetiva das

    aparncias fsicas

    promovendo s l o g n s

    do tipo: seja voce mesmo junto a um corpo

    feliz; pense por si mesmo , seja mais isso, menos aqu

    ilo ;

    mas

    sempre

    o

    corpo que aparece, sempre por meio de sua exibio

    que se age no subjetivo. HA um investimento publicitrio forte nessa

    espcie

    de corpo subjetivo.

    E

    no Brasil, em relao s mulheres,

    especialmen te, essa

    tendncia

    muito nova, pois a identidade no

    estava no corpo.

    fato de que cada vez mais a nossa identidade esteja no cor-

    po e

    seja o

    corpo facilita e, ao mesmo tempo, dificulta as manipu-

    laes corporais. Dificulta porque intervir no corpo significa imedi-

    atamente mexer com a alma, manipular aquilo que as pessoas tem

    de m ais profundo, de m ais singular, de mais intimo. F acilita porque,

    segundo

    o arrivismo

    de um a parte da tradio hum anista ocidental,

    uma vez sendo sujeito de seu corpo

    o

    homem se autoriza mais

    facilmente a manipular os demais corpos em seu proveito. Hoje,

    manipular

    o prprio

    corpo ou

    o

    corpo do outro, esbarrar nas

    necessidades seculares de aproximar

    o

    corpo de si mesmo

    e

    de

    aproximar a si mesmo de uma

    essncia

    que eterna.

    Por fim, para ir mais diretamente nessa man ipulao das iden-

    tidades, penso que muitas vezes ela existe para fortalecer uma

    esp

    cie

    de

    noo

    de eu a-histrico.

    E

    isso surpreendente, porque com

    todo

    o

    arsenal da biotecnologia a impresso que se tem a de que

    se pode inverter, perverter, mudar de

    gnero

    de espcie, de grau,

    ultrapassar todas aquelas fronteiras que existem h muito tem po. A s

    fronteiras de sexo

    e

    de

    espcie

    se perdem quando a biotecnologia,

    5

  • 8/11/2019 O Conhecimento como uma relao de composio.PDF

    18/31

    DOSS 8

    CORPO

    E

    HISTRIA

    por exemplo,

    prope

    introduzir num morango genes de um ser de

    outra

    espcie

    como aqueles de um

    salmo.

    A

    primeira impresso

    a de que tal experimento seja

    revolucionrio

    o

    que em grande me-

    dida

    verdadeiro. Em

    contrapartida, h

    casos de pessoas que co-

    meram morango

    e

    passaram mal porque

    so

    alrgicas

    A peixe Ins-

    pirada

    em alguns trabalhos de

    Deleuze

    e

    diante de experimentos

    dessa natureza,

    possvel

    supor que a biotecnologia trabalha menos

    com

    o

    sentido do que com

    o

    reino do

    significante/significado.

    Pois

    a busca dos sentidos nem sempre

    d

    lucro, simplesmente por isso.

    A produo do binmio significante/significado pode dar muito

    lucro

    e

    ainda pode compactuar com a tendncia

    de colocar fora

    da h istria

    e

    da critica inme ras

    experincias

    sociais; por e xem plo

    cria-se uma marca tal como a Nike

    e seu

    smbolo

    coloc do em

    inme ros lugares e

    produtos considerados ecolgicos naturais ou

    simplesme nte bons para a sade. Agre ga-se valor . marca

    o

    que

    sem dvida conta positivamente para as suas aes na bolsa de

    valores. M uitas empresas agem desse modo elas no criam apenas

    o

    produto mas agregam valor de mercado a e le . Acho qu e hoje

    o

    m undo c apitalista no l ida unicam ente co m

    o

    corpo

    e

    esse

    o

    grande paradoxo. Ao buscar

    o

    lucro econmico no lugar de lidar

    somente com

    o

    cor po investe-se no imaterial na criao de signifi-

    cados a e les agregando valor de mercado. No fundo vivemo s um

    grande problema porque

    o

    corpo supe rvalorizado mas na en-

    grenage m do sistema para alem dos corpos dos trabalhadores ex-

    plorados quase no hi corpo pois l se est trabalhando com

    o

    imaterial.

    Be rnardete

    Os age nciame ntos hoje se do pela sem itica.

    Denise Sim dai a

    tendnci

    d rte contemporne de

    re mate rializar a obra. Toda via a desmate rializao fora do reino

    dos se ntidos

    e

    presa

    quele

    do significante/significado acaba por

    criar mais um smbolo; nesse caso qu alque r coisa passa a significar.

    roce sso de resignificao da

    sustica

    durante a Segunda Gu erra

    exe mplar a esse respeito.

    Destituda

    de alguns de seus sentidos

    histricos ela passou a ter um significado qu e apontava para a su-

    26

  • 8/11/2019 O Conhecimento como uma relao de composio.PDF

    19/31

    O CONHECIMENTO COMO UMA RELAO DE COMPOSIO

    peragdo

    da historicidade de milhares de pessoas. Quem ganha a

    guerra na verdade no s um

    batalho

    um exercito, uma

    nao

    determinadas empresas, mas um conjunto de signos. Hoje isso

    terrvel

    porque no h uma

    tendncia

    de se fazer do corpo

    o signo;

    h uma

    tendncia

    fundamental que a criao desses signos inde-

    pendentes dos corpos, enquanto esses, por sua vez, so considera-

    dos secundrios. Essa ideia do corpo ser secundrio est muito

    presente na indstria

    e

    na biotecnologia; por exemplo cria-se uma

    empresa como a Monsanto

    e

    seu nome no este por acaso,

    ele responde necessidade da empresa precisar ser bem acolhida

    na America Latina, porque ela age basicamente no terceiro mundo

    e

    ate mesmo antes da criao de certos produtos, a empresa

    associada ao valor do bem-estar

    e ideia

    de acabar com a fome no

    mundo. Depois,

    difcil

    acreditar que no isso, assim como fica

    mais fcil colocar qualquer corpo l dentro. Ento,

    o

    corpo no

    interessa muito para a indstria hoje

    o

    que interessa o im aterial.

    Bernardete Ate que po nto Merleau-Ponty

    e

    a fenomenologia

    contriburam neste

    sentido?

    Denise Acho que a fenomenologia do Merleau-Ponty

    bom voce estar colocando isso, porque, especialmente no final, no

    O

    visvel e o invisvel

    j no sei mais se podemos cham-la de

    fenomenolgica faz um caminho que e

    o

    de sair da

    relao sujei-

    to /objeto distanciada, como fazia Husserl no inicio da

    fenomenologia

    e

    seguiu caminhando em direo a uma fuso

    entre

    esse sujeito/objeto;

    fuso na qual eles no perdem as diferenas.

    H

    uma passagem do Merleau-Ponty que eu no sei se

    essa que cito

    no livro em que ele refere-se a um pintor que entra numa floresta

    e

    quanto mais a observa

    e a pinta em sua tela, menos sabe se pinta a

    floresta ou se pintado por ela. Ou seja h um a relao de comp o-

    sio: no que a floresta deixe de ser floresta e que o

    pintor deixe de

    ser ele m esmo

    e

    os dois se misturem num encontro romntico, no

    isso. 0 pintor cada vez mais se afirma como quem pinta a flores-

    ta

    e

    esta, por sua vez, afirma-se como floresta; h uma grande

    conexo entre as

    foras de um

    e de outro em que o gesto de pintar

    7

  • 8/11/2019 O Conhecimento como uma relao de composio.PDF

    20/31

    T r

    28

    DOSSIE CORPO

    E HISTRI

    a floresta faz do pintor um pedao dela

    e

    vice-versa. A

    fenomenologia aqui quase que se rompe, tanto que no 0

    v i s v e l e

    o

    invisvel

    ele cria a noo de

    carne .

    Ele no fala mais em sujeito

    e

    objeto,

    ele fala em

    carne

    do mundo, que

    muito semelhante ao que

    o Deleuze

    vai fazer posteriormente.

    H momentos na vida que se percebe isso claramente, voce

    voce, o

    mundo

    o

    mundo, no h sujeito nem objeto em desapa-

    recimento. Mas h momentos em que os dois esto agindo,

    esto

    interagindo num

    equilbrio meta-estvel; no h

    nem

    desequilbrio

    nem

    equilbrio,

    na verdade uma meta-estabilidade.

    E

    isso a.

    biotecnologia rompe, porque sua finalidade, assim como a publici-

    dade,

    o

    lucro. Alis,

    o

    modo como a publicidade age parece

    extremamente aberto. Por exemplo: lembra da propaganda do ci-

    garro

    Free ,

    o

    fino que satisfaz ? Essa ,frase marcou uma

    poca;

    havia uma

    espcie

    de gall do

    perodo, o Pedrinho Aguinaga

    que

    dizia:

    Free ,

    o

    fino que satisfaz ,

    e

    inclusive ele era magro. Fino ,

    no sentido de fineza, refinamento. No se trata de dizer que as

    pessoas tenham necessariamente fumado mais ou menos

    Free ,

    a

    questo

    que aquele produto se colou, naquela

    poca,

    a essa ima-

    gem. Ora, se a empresa lanasse roupas, sapatos

    Free ,

    a imagem

    tenderia a permanecer a mesma. Nesse sentido, essa tendncia

    pobre do ponto de vista cultural. sempre

    o

    me smo significante ,

    com vrios significados. Bolsa, sapato, cigarro, etc. A lgica do sis-

    tema capitalista essa. A biotecnologia age da mesma maneira; se

    quero criar porquinhos sem gordura para vender para tais empre-

    sas ate porque hoje

    ningum mais cozinha com banha, j que a

    soja tomou

    o

    lugar , assim que de ve ser, porco s de carne com

    gordura, j

    poderamos

    chamar de animal de uma outra

    espcie.

    Dentro dessa finalidade, criam-se vrios tipos de porcos, mistu-

    ram-se vrios tipos de genes, pode-se fazer um rosa, um homem

    branco, depende do gosto. Criam-se seres de diversas formas

    e

    tamanhos,

    mas, voce j tem determinado

    o

    que voce quer criar,

    para que voce quer criar (tal como um arteso com

    o

    bloco de

    mrmore que no se interessa pelo que

    o mrmore,

    como ele

    0

    ge, qual a sua

    inteligncia).

    A biotecnologia trabalha com essas

    relaes,

    ela pensa as relaes, em como combinar

    com

    B, por

  • 8/11/2019 O Conhecimento como uma relao de composio.PDF

    21/31

    O

    CONHECIMENTO

    C O M O U N I R E L O D E

    OMPOSIO

    exemplo. Mas ela no transforma

    o conhecimento

    numa relao

    Essa

    diferena

    fundamental. A filosofia pode fazer isso; ns no

    nosso trabalho como historiadores podemos fazer do conheci-

    mento uma relao; um homem humilde construindo uma casa

    por exemplo

    tambm

    pode faz-lo,

    mas a biotecnologia no pode

    fazer do conhecimento uma relao entre seres.

    M arlon Estvam os acostumados na histria, ate pouco tempo

    atrs com uma noo que reunia os

    desgnios

    politicos do histori-

    ador

    e o

    seu trabalho de e scrita, que era a

    noo

    de

    libertao. Voce

    usa uma noo recorrente que a de

    liberao; voce insiste: libera-

    go

    do corpo

    liberao

    da velocidade liberao das mulheres. En-

    quanto a libertao percorria sempre um caminho teleolgico a

    liberao no chega em lugar algum. Voc poderia falar um pouco

    mais dessa

    noo

    de liberao como ela se

    contrape

    ou no com

    a de libertao?

    Denise Trata-se de uma nog

    do ligada

    quela

    que considera a

    histria um palmilhar de rupturas

    e permanncias. Vejo

    a histria como

    algo

    alis no

    sou s eu q ue vejo, muitos autores

    tambm

    pensam

    assim uma

    tendncia

    que sempre em qualquer tema que voce

    escolha em qualquer perspectiva ou

    perodo

    vai incluir inmeras

    coaes e

    liberdades; elas andam juntas, eu diria. Prefiro, na verdade,

    falar em

    liberao,

    porque um termo mais curto menos pretensio-

    so. A liberdade tem mesmo esse sentido teleolgico; j a

    liberao

    pode ter ou no. Um a liberao pontual, local, semp re acompanha-

    da de coao: uma

    coao

    que j existia que re-atualizada uma

    coao

    nova; por exemplo no caso do embelezamento isso muito

    claro; libera-se o

    corpo feminino para usar

    o biquini, libera-se o cor-

    po

    para se soltar, para "ser

    o

    que ele 6".

    E

    junto com isso surgem, eu.

    no diria prises mas novas formas de coao; a barriga pode apa-

    recer mas agora ela deve estar bronzeada

    e no

    pode ser flcida.

    Outros temas

    tambm revelam

    essa tendnc ia, o

    que resulta na se-

    guinte perspectiva: a histria muito m ais um movim ento paradoxal,

    que impossibilita

    o

    historiador vir dizer que essa

    poca

    mais liberatria

    do que a outra. Quando descobri isso no doutorado tenho um

    9

  • 8/11/2019 O Conhecimento como uma relao de composio.PDF

    22/31

    DOSSI CORPO E HISTORIA

    amigo que me diz:

    voce

    descobriu a roda pois isso

    no

    nada

    demais

    nas minhas

    fontes no meu tema foi

    incrvel.

    Como eu

    trabalhava com a

    histria

    do embelezamento

    feminino,

    isso m e des-

    pertou

    um interesse real pelas mulheres do passado;

    digo

    real porque

    descobri que ate

    ento

    meu

    interesse no

    era real,

    o

    me u interesse

    pelas mulheres do passado era um interesse

    distante;

    no fundo eu

    acreditava embora tenha toda uma

    formao

    para

    no

    acreditar,

    mas eu achava, que elas

    no

    eram tio

    liberadas quanto

    eu evidente-

    mente que

    no o

    so

    da mesma m aneira

    e, portanto, elas

    no

    me-

    reciam

    os mesmos cuidados que as

    mulheres

    do meu tempo;

    talvez

    elas no

    fossem

    to

    complexas,

    e

    a eu poderia fac

    i l

    me nte cair numa

    viso salvacionista

    da histria

    e

    da mulhe r; quer dizer, estava fazendo

    histria

    para mostrar como elas eram interessantes, porque precisava

    mostrar

    isso como historiadora

    e

    no podia perder

    o

    emprego. M as

    descobri que pior do que isso seria perder a

    noo

    da com plexidade

    da

    histria...

    mergulhando nela, eu comecei a perceber

    o

    quanto aquelas

    mulheres

    do passado eram interessantes, com plexas e, por isso

    mes-

    mo,

    difceis:

    no

    porque eram

    exticas,

    ou porque elas vivam

    liber-

    dades

    e

    coaes

    diferentes das

    minhas.

    Com

    a pesquisa

    histrica

    as

    pessoas do passado, o u de ou tra cultura.

    (pode ser hoje, no presente),

    vo ficando, ao

    mesmo

    tempo, mais conhec idas

    e

    estranhissimas

    lgico

    que se eu pensar na Idade Media isso mais forte. Mas

    e

    interessante

    que nos anos

    40, 60,

    ate mesmo

    nos anos

    70,

    as

    mulheres

    que nesse caso p oderia ser a

    minha m ie,

    a

    minha av eram outras

    pessoas.

    Comecei

    a

    v-las

    de uma

    maneira

    muito

    prxima

    ao

    exem-

    plo

    que dou no livro que

    e

    o

    da escultura de

    Giacometti,

    em que a.

    figura

    hum ana, a mais familiar, aparece,

    tambm

    como a mais

    estra-

    nha, com o se fosse

    assombrao. Mas ela humana

    e

    prxima, como

    eu,

    no

    e

    um fantasma; quer dizer ela

    e

    extremamente

    estranha e

    familiar ao mesm o tempo:

    h

    algo nela que

    no

    consigo captar, um a

    profundidade,

    um enigma, que

    no

    sei o que

    e Isso m e fascina

    mui-

    to.

    c r

    0

    laucia

    u gostaria que

    tu

    voltasses a falar um pouco mais

    0

    obre a interferncia

    da tecnologia no humano

    e

    nas suas

    relaes,

    , - ,

    rt

    rincipalmente na

    criao

    de novas subjetividades. Sair de casa,

    prin-

    4

    3

  • 8/11/2019 O Conhecimento como uma relao de composio.PDF

    23/31

    O CONHECIMENTO COMO UM REL O DE COMPOSIO

    cipalmente quando

    para se conhecer pessoas em bares, boates,

    enfim, envolve um certo ritual relacionado ao corpo, que

    o de

    arrumar

    o

    cabelo passar um perfume maquiagem etc. Mas com a

    Internet, e ai h uma

    interferncia

    da mquina, esse ritual torna-se

    desnecessrio; com o chat

    pode-se conhecer

    algum estando em

    casa, de pijama, sem compromisso algum com a

    aparncia j

    que

    no se ye o outro. Perguntas sobre

    o

    corpo aparecem constante-

    mente nessas conversas, mas trocam-se fotos

    e tudo

    fica mais ou

    menos resolvido. Como que tu yes esse tipo de relao com

    o

    corpo a partir da massificao do uso da Internet?

    Denise Primeiro preciso lembrar que eu moro em Sao

    Paulo e

    muito dessa desvalorizao da rua vem da classe media

    paulistana. Quando venho a Florianpolis vejo muita gente na rua

    felizmente, porque acho que a rua importante; no creio que ela

    deva ser a nica coisa hoje porque a Internet possibilita um tipo de

    contato interessantssimo. 0

    que acho

    terrvel numa

    sociedade

    sempre ter que optar por uma coisa ou outra: por que no ter

    todas? Por que no se pode andar na rua de bicicleta a

    p de carro

    e

    ainda usar a Internet? So formas d iferentes de enco ntro o u de

    desenco ntros enfim. Acho que seria interessante no ter que limitar

    a escolha: agora s se usa Internet porque a rua ficou invivel,

    lugar de bandido ou policia . As vezes, nas ruas de Sao Paulo,

    noite a gente tem essa

    ntida impresso. No h

    pedestre alis no

    hi nem calada para se andar. uma

    viso

    de uma cidade onde

    essa desvalorizao mais forte para a classe media, porque na

    periferia paulistana, apesar dos problemas, h encontros nas ruas,

    h festa popular, etc. Mas para a classe media paulistana a rua

    lugar de policia de bandido no

    lugar de encontro

    e

    isso se agu-

    ou a partir dos anos 80.

    No acho que a Internet a substitua acho que ela outra coisa

    outro encontro que

    tambm tem suas

    coaes

    (risos). Ali voce

    ganha muito tem um conforto que a rua no te d seja a rua segura

    ou no; em casa voce est de pijama, no precisa tirar o

    bob da

    cabea

    etc. Mas h desconfortos: por exemplo, ao ver realmente

    uma pessoa

    possvel

    captar algum as informaes que pela Internet

    3

  • 8/11/2019 O Conhecimento como uma relao de composio.PDF

    24/31

    DOSSIt CORPO

    E

    HISTRI

    no apa recem ; pela Internet pode-se captar outras coisas sobre ela:

    por m eio da escrita, por exemplo.

    Assim

    o

    papel da escrita com a

    Internet, ao

    contrrio

    de desaparecer, adquiriu um peso

    interessan-

    te.

    A inda gostaria de dizer uma coisa em

    relao

    A rua no B rasil

    e

    que surge a partir da leitura de Walter Benjamin,

    quando

    ele fala do

    fliineur.

    Acho q ue aqui

    h

    uma

    experincia

    tpica

    de sociabilidade

    nas

    ruas das grandes cidades, que ocorre mais ou menos assim: na

    Frana

    Itlia Inglaterra houve um processo de passagem das pequenas

    ruas

    onde

    h esses encontros, com

    o

    vendedor de vassoura, com

    o

    cara que grita a cabra , essas coisas populares que a gente ye nas

    ruas pequenas, estreitas

    para a entrada

    na

    cidade de

    Haussmann

    do

    boulevard.

    Todo m undo conhece isso. Na passagem da

    r u a

    para

    o

    boulevard

    deixa-se de ser

    o

    homem-pessoa,

    o

    Antnio

    o

    Jose,

    e

    aparece

    o indivduo annimo.

    Acho que aqui no B rasil, em cidades

    como

    So

    Paulo, Fortaleza

    e

    Salvador, no houve essa passagem da

    rua para

    o

    boulevard e

    e

    l que a pessoa se torna

    cidado

    homem da

    cidade, no mais

    o

    hom em do bairro, da casa. No B rasil, passou-se

    da rua para a avenida, que no

    o

    boulevard

    pois a avenida

    e

    feita

    para

    o

    carro.

    Ento

    se sai da situao de pessoa para a de

    automo-

    bilista.

    No

    sei

    se a

    gente teve

    a

    experincia

    do

    boulevard;

    excetuan-

    do-se o

    Rio de Jane iro, no creio que as

    outras

    cidades tiveram essa

    experincia

    da cidadania

    proporcionada pelo

    boulevard.

    Ali as

    cala-

    das

    so m uito

    largas

    as pessoas passam

    e

    se vem,

    um

    outro tipo

    de viso,

    com o mo strou B enjamin. No B rasil, surge a

    avenida

    feita

    para os ca rros; a rua,

    aqui

    na m aioria das vezes,

    no e

    o

    boulevard

    ela

    e

    a avenida do

    automvel.

    Bernardete

    Quando a

    Glucia

    fala da

    substituio

    da rua

    pela Internet,

    e

    tu ests

    dizendo que em S ao Paulo a

    classe

    media

    realmente no vai para a rua lembro que hi pouco

    recebemos

    professores

    espanhis e

    eles levaram u m susto

    quando

    no viram

    ningum

    na rua; na Espanha a gente sabe que ate

    11h

    da noite

    e

    dia:

    odo mundo dorm e ate A s

    4

    da

    tarde mais

    ou menos,

    e depois

    o

    a se prolonga ate as

    11h

    da

    noite;

    ento, eles levaram um susto

    quando

    viram qu e

    aqui

    as

    18h

    hi poucas pessoas na rua; pode

    3

  • 8/11/2019 O Conhecimento como uma relao de composio.PDF

    25/31

    O

    CONHECIMENTO COMO UM REL O DE COMPOSIO

    haver algum

    point,

    alguma coisa assim, mas no na rua. Em

    Florianpolis ns no temos isso. uma

    experincia

    diferente do

    que acontece na Europa.

    Denise Pensei que aqui em F lorianpolis houvesse algo nes-

    se sentido.

    Glaucia

    Aqui, h alguns anos,

    o

    pessoal mais jovem ia A

    Lagoa da Conceio onde havia inclusive um a rua com esse nome

    boulevard.

    Na realidade era um trecho da rua principal que era cheio

    de barzinhos

    e

    as pessoas iam para ficar pelas caladas para passe-

    ar; elas iam de carro m as

    o

    deixavam estacionado longe

    e

    ficavam

    andando, indo

    e

    voltando, fazendo roteiros,

    e

    todo mundo falava

    que ia para

    o

    boulevard

    e

    IA aconteciam os encontros.

    Denise H

    o

    exemplo da Avenida Paulista. A ideia que

    fosse um

    boulevard,

    no entanto, construiu-se em quase toda sua

    extenso prdios

    empresariais, agencias bancrias,

    e h

    poucos

    moradores. Ento, criou-se uma estrutura que e a de passagem

    rpida; isso

    o

    que quero dizer, porque passar rpido, andando a

    p

    a estrutura do

    boulevard,

    o

    problema passar rpido de auto-

    mvel.

    Ainda assim eu acho que

    e

    essa

    uma

    questo

    fundamental

    as

    resistncias

    existem as reconfiguraes florescem; ou seja As

    vezes se encontra em plena avenida inspita algo como um

    boulevard,

    ou melhor pessoas que comeam a usar aquela avenida de modo a

    faze-la ser rua

    e

    boulevard

    Por exemplo a avenida

    Sumar, em

    Sao

    Paulo, uma avenida inspita, com lojas de

    automvel, tudo

    feito

    para automveis;

    eu me inspirei nela quando escrevi

    o

    texto alis.

    Hoje muitas pessoas a ocuparam: agora h bancos de praga e algo

    to surrealista (risos) Hi

    ps

    de amora,

    e

    As vezes voce ye os

    varredores comendo amora ali.

    E h

    pessoas que fazem

    jogging,

    outros que fazem elstico no viaduto etc. ento h encontros points

    h essa recriao constante das pessoas q ue fantstica.

    E

    no B rasil

    isso particularmente fantstico muito mais do que na Europa h

    aqui essa espcie de reciclagem.

    33

  • 8/11/2019 O Conhecimento como uma relao de composio.PDF

    26/31

    DOSSI ORPO

    E HISTORIA

    G la .u c ia

    Hi ate

    o

    novo fenmeno dos postos de gaso

    l in a

    como lu gares de soc ia bi l ida de.

    Denise Isto

    fantstico

    Posto de ga solina e o exemplo ma ior

    D everia m fa zer teses sobre isso. Seria t imo.

    M arcos G ostaria qu e voce retomasse a qu esto da genera l i -

    d a d e e m tor no d o c or po, qu e s e c r ia c om a b iote c nologia , pr inc i -

    pa lmente . Esqua drinha -se u m corpo que supostam ente se con hece

    e

    se genera l iza essa ideia ; qu er dizer, todas a s pessoa s so dessa

    forma todas as pessoas funcionam dessa forma. Entretanto hi

    u ma individua l izao do corpo, pensa-se em u m corpo individu a l;

    ou seja, h u ma general iza o do objeto e

    a o m e s m o t em p o u m a

    total individualizao.

    D e ni s e Um a gene ra l i za o e e u d i ri a u m i s o l am e n t o . E s se

    l ivro iria se chama r

    Iso lamento

    e P a s s a g e m . Atravs

    da arquitetura, co-

    mecei a perceber a p rodu o do isolam ento corpora l na soc iedade

    em qu e vivemos. No Brasi l isso e men os forte, ma s j est presente

    entre pessoas da cla sse media. M u itas vezes voce est extrema men-

    te conec tado, fa la ndo a o tele fone por exemp lo, e , a o mesmo tem-

    po, extrema mente isolado, o

    que no uma contradio.

    H oje, mu itas

    vezes,

    o i so lamento impl ica em conexo

    e o

    esporte fornece bons

    exemplos a este respeito: na s gran des tra vessias mart imas os espor-

    t is ta s esto por vezes soz inhos ma s, a o mesmo tempo, conec ta dos

    com u ma rede de agentes pu bl ic i trios , indstria s de a l imen tos

    e

    roupas esportivas que os patrocinam. 0 corpo de um esportista

    isolado no meio do mar pode estar conectado a mil pessoas

    imprensa, e tc . Essa

    s i tuao

    se torna muitas vezes um estilo de

    vida: o i solamento e

    a c onexo ju ntos , a o mesmo tempo. SO que a

    co n e xo n o

    substi tu i a

    relao social no e a mesma coisa

    e o

    i so l am e n t o n o e a m e sm a c o i sa q u e o

    individua l ismo. 0 individu-

    a l i sm o d o f i n a l d o

    s c u l o

    XIX europeu , do

    fineur

    por exemp lo,

    O

    u m ou tro individua l ismo; hoje, diria qu e h ma is isolam ento do que

    O

    individu a l ismo, pois, no B rasi l , no se pode fala r de fato em indivi-

    dual ismo. A "modernidade" brasi leira no contou necessariamente

    1 )

    4

  • 8/11/2019 O Conhecimento como uma relao de composio.PDF

    27/31

    O CONHECIMENTO COMO UM REL O DE COMPOSIO

    com um processo de criao de uma subjetiva extremamente indi-

    vidualizada. Talvez isto explique em parte porque no Brasil, em

    geral,

    o

    contato social e m ais fcil, ele localiza-se mais na supe rficie

    do corpo; as pessoas sorriem mais facilmente, tem menos proble-

    mas de contato do que em muitos outros

    pases.

    No entanto, vive-

    m os um proce sso de isolamen to s vezes ate mais cruel que

    o

    deles,

    extremamente cruel. As crianas, especialmente, mais do que os

    adultos.

    Marlon Hi uma

    questo

    a respeito das

    epgrafes

    do livro

    e

    que me chamou a

    ateno,

    que e sobre esse deserto que nos cerca.

    Lendo-as, logo pensei no que

    o Deleuze

    diz, retomando Nietzsche,

    sobre esse problema do deserto, de atravess-lo, de nascer

    e viver

    nele. E

    uma das coisas de que Deleuze fala, duas alis, e a respeito

    do deserto na filosofia, no pensamento,

    e o

    deserto na literatura.

    Mas ele

    tambm

    fala de quando

    e

    por que se entra nesse deserto

    e

    se a gente pode atravess-lo ou no. Voce

    tambm

    acha que a g ente

    se encontra num deserto hoje no pensamento historiogrfico?

    Denise N o pensam ento historiogrfico? No

    e

    sim. No sei

    se conseguiria fazer um diagnstico, nem rpido, nem longamente.

    0 que vejo uma dificuldade de encontros entre as pessoas; encon-

    tro em que exista troca de informao, em que exista conexo de

    inteligncia

    e

    muita

    ateno,

    pois os encontros tem um tempo mui-

    to determinado, limitado;

    e

    para se viver, de fato, uma

    situao

    de

    composio

    tica como

    eu havia

    dito

    preciso outras experi-

    ncias de tempo

    e

    uma

    assdua ateno

    ao que se passa com ns

    mesmos

    e

    com os demais. Vivemos premidos pela ideia de que e

    preciso fazer vrias coisas em pouco tempo,

    e no

    uma coisa num

    tempo com grande ateno. No e A . toa que

    o

    Brasil, segundo

    o

    Le

    M onde Diplomatique

    o

    segundo pais onde m ais se trabalha no mu n-

    do o primeiro e

    o Canad, e

    muito jocosamente penso que

    o

    Ca-

    nad e muito frio

    e

    por isso se trabalha tanto) risos). Isso faz com

    que haja m uito cansao dificultando essas trocas. quando

    o isola-

    D

    mento e

    fruto do cansao. Apa tia, falta de animo, de possibi

    li

    dade

    de corpo para ir a algum lugar, para fazer alguma coisa. Acho que

    5

  • 8/11/2019 O Conhecimento como uma relao de composio.PDF

    28/31

    DOSSI CORPO

    E HISTORI

    essa situao est aumentando de modo alarmante com as

    crian-

    as,

    inclusive. As pessoas esto extremamente cansadas. No sei se

    vocs

    vivem isso em Florianpolis mas em So Paulo elas vivem

    um cansao cotidiano isso faz com que a percepo do mundo

    fique um pouco

    desrtica

    por que no deserto

    o

    que que voce

    tem? Sede

    e cansao.

    A ideia do andarilho e isso, e cansao. uma

    sede que parece infinita, e

    acho que vivemos um pouco essa situa-

    o. No que

    o

    mundo virou deserto porque as coisas desapare-

    ceram no e tanto no sentido material/visual no sentido subjeti-

    vo que me refiro ao deserto: as pessoas vivem um cansao junto

    com uma asma, uma sede de ter que fazer, de ter que acontecer, de

    ter que encontrar. preciso traba lhar, escrever, publicar

    e

    assim va i,

    ma s e preciso ir As festas risos).

    Glaucia

    Tem a ver com ideia do nomadismo/fixo de que

    falas no livro?

    Denise Pode levar a isso, pode levar a uma asm a a bsoluta

    e

    a um movimento muito grande. De onde emerge uma

    espcie

    de

    sensao de deserto de estar sem companheiros falo sobre isso

    vrias vezes no texto; Machado de Assis

    e Saint-Exupery referem-

    se,

    tambm ao deserto. Utilizo

    o termo companheiro no no sen-

    tido de acompanhar mas para evocar a possib

    ilidade de trocar ...

    companheiro

    tambm e colo risos). As pessoas

    esto autnomas

    em relao A famlia, e

    por razes bvias cada vez querendo mais

    essa autonomia. As pessoas so

    autnomas

    em relao ao Estado

    que no Brasil est desaparecendo e em relao As empresas, que

    no assumem mais nada. Elas esto completamente livres mesmo

    que elas no queiram: foram jogadas A. liberdade. Ento elas tern

    que se tornar responsveis, elas tem que cuidar de si, tem que deci-

    dir sobre a carreira; a mulher tem que decidir se quer ter filho ou

    no se vai fazer plstica etc. tudo

    deciso e

    responsabilidade

    individual. Estamos a tal ponto acostumados a decidir

    e

    escolher

    O

    tudo que numa festa

    e

    num momento de lazer por exemplo tor-

    t ,

    O

    na-se um grande problema no querer pensar em nada, no ter que

    decidir sobre nada risos).

    36

  • 8/11/2019 O Conhecimento como uma relao de composio.PDF

    29/31

    O CONHECIMENTO COMO UM

    RELAO

    DE

    COMPOSIO

    Refiro-me ao deserto no sentido desse novo tipo de

    solido.

    Nas sociedades mais tradicionais, as pessoas dividem essa respon-

    sabi

    lidade, voce no

    decide sozinho. Mas como so todos que de-

    cidem, ou muita gente decide com voce, se no d certo

    o

    que se

    decidiu, seja cirurgia plstica, seja l

    o

    que for,

    o

    peso nab fica se

    com voce, voce distribui

    o

    peso dessa responsabilidade no coleti-

    vo. Mas

    o

    que se passa conosco diferente: em meio valorizao

    da liberao, na qual hom ens

    e

    mulheres usufruem de um a liberda.-

    de inexistente nas sociedades tradicionais, caso as escolhas fracas-

    sem, a

    razo e

    a responsabilidade desse fracasso so inteiramente

    do indivduo: estamos mais livres, conectados

    e

    isolados, mais res-

    ponsveis

    e sozinhos. t,

    um tipo curioso de solido.

    M arlon Por um lado contraditrio, porque esses mecanis-

    mos de avaliao que existem,

    o acmulo

    do trabalho

    acadmico,

    por exemplo, so os prprios historiadores

    e

    os colegas que esta-

    belecem, ou seja, voce

    avaliado pela sua capacidade de produzir

    mais ou no, no por

    critrios

    qualitativos. Sao mecanismos que de

    certa forma nos cercam, mas que ao mesmo tempo somos ns que

    os fizemos.

    Bernardete

    Sao os mecanismos

    e critrios

    de avaliao que

    fazem

    o

    ritmo.

    Denise Ao mesmo tempo, h um lado interessante nisso,

    por

    incrvel

    que parea risos). Acho que essa compulso pela pro-

    dutividade leva as pessoas rapidamente a perceberem algumas coi-

    sas no digo todas. U ma certa inspirao nietzcheana indica que,

    em certas situaes de terror, de presso... se faz necessrio

    aprofundar a indignao. 0 que pode levar algumas pessoas a per-

    ceberem mais rapidamente que a produtividade, por exemplo, no

    o

    Santo Graal. Por enquanto parece que no podemos escapar

    dela em toda a parte; alis, eu diria que fora da universidade isso

    mais

    terrvel;

    quem trabalha com

    market ing

    por exemplo, percebe

    que

    o

    imperativo da produtividade muito mais pesado a compe-

    tigdo, especialmente , tudo nele rapidam ente descartvel. Na uni-

    37

  • 8/11/2019 O Conhecimento como uma relao de composio.PDF

    30/31

    DOSSIE CORPO

    E

    HISTRIA

    versidade h,

    ainda, embora seja cada vez mais raro, a

    possibiliade

    de viver outros tempos, de funcionar como se

    estivssemos

    no

    sculo

    X IX, por exemplo. Felizmente Em outros lugares isso

    no

    mais

    possvel, o nico

    tempo vivel

    o presente, a nica

    chance de

    aparecer pensar o

    aqui

    e

    agora, ou

    investir

    num futuro virtual.

    lado interessante

    que

    a

    saturao

    de tudo isso pode levar um

    jovem

    a perceber qu e a produ tividade

    no

    o

    Santo

    Graal,

    e

    que

    ele vai precisar lidar com ela para poder sobreviver Fiqu ei alguns

    anos fora do Brasil

    e retornei em

    1995.

    Naq uele ano

    havia, ainda,

    um fascnio

    pela globalizao.

    Lem bro-m e de muitos colegas qu e

    acreditavam q ue iramos finalmente

    "virar

    primeiro

    mundo".

    Ora,

    hoje, se algum disser

    isso, pelo m enos aqu i na universidade, pode

    se tornar alvo de chacota; quer dizer,

    ns aceleramos

    e

    ampliamos

    a

    exigncia da produ tividade

    e o

    temp o da globalizao,

    financeira,

    norte-americana. Mas ao m esmo tem po, a critica tambm

    avanou:

    hoje, a nossa

    viso

    dos E stados

    Unidos no s por causa do

    atentado , tem u m realismo q ue em 1994 no tinha.

    Assim, o

    deslumbre com a modernidade

    ocidental,

    que se

    estende

    desde a

    repblica

    brasileira, hoje

    est sendo mais

    frequente-

    mente colocado em

    questo. Torgo

    para que esse questionamento

    no

    implique numa bomba caindo na cara Que seja

    possvel

    descolonizar a nossa cabea e

    mante-la

    bem

    viva, sabendo qu e

    esse mod elo ocidental de corpo, de

    mente,

    de

    histria

    que

    est ai,

    mais um m odelo, m ais uma

    referncia,

    e

    qu e a partir dele

    nem

    preciso

    jog-lo

    fora

    podemos criar outras

    referencias.

    Com

    um a certa tranq ilidade. No se trata,

    simplesmente,

    de negar:

    "no

    leio mais nada que da

    Frana

    ou dos E stados Unidos ", ou ento,

    leio tudo e

    fao igualzinho a eles".

    um pouco

    a tranqilidade

    para utilizar as referencias externas

    suas teorias, sistemas de

    avali-

    ago, mtodos de produtividade, por exem plo

    como ferramen-

    tas:

    se servir eu uso, se

    no

    servir eu no

    preciso usar". A cho qu e

    precisamos cheg ar a isso e

    talvez um certo realismo ajud e.

    laucia

    Tu falastes do mom ento em q ue o corpo da m ulher

    o pertencia a ela,

    no

    era um problema seu. Estava lembrando

    de um ensaio do livro, em q ue escrevestes sobre

    o

    sujeito

    que cor-

    m

    8

  • 8/11/2019 O Conhecimento como uma relao de composio.PDF

    31/31

    O CONHECIMENTO COMO UM

    REL O DE OMPOSIO

    tou

    um pedao do seu dedo e

    acabou tendo

    um problem a com a

    justia

    para ver de qu em era,

    afinal,

    aquele

    pedao. En fim , a qu em

    pertence

    o nos so corpo hoje?

    Denise N o

    sei lhe dizer, n o sei lhe responder essa questo.

    Acho q ue historicam ente ele tem sido co nsiderado cada vez m ais

    um a propriedade exclusiva de cada um , de respon sabilidade de

    cada

    indivduo e

    de escolha sua

    tambm:

    voce faz o que quiser com

    ele, se voce

    tiver dinheiro,

    especialmente.

    Percebo, contudo, peque-

    nas m udanas,

    m as acho que

    s o s sinais, algo vago . Isso

    e

    o meu

    trabalho atual

    eu sem pre tenho dois , um do

    sculo

    X X

    e

    outro

    do

    sculo

    XX. Estou trabalhando com a questo

    da

    alimentao,

    porque eu acho que o pecado do final do

    s ulo

    XX e

    alimenta-

    o , n o

    mais

    o sexo risos). M as isso um a hiptese grosseira.,

    qu e eu estou tentan do util izar para pensar a obesidade m as, en-

    fim, isso um a outra histria, qu e outro dia eu con verso com

    vocs.

    D