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O CONTEXTO HISTÓRICO-SOCIAL DO PENSAMENTO
GEOPOLÍTICO DE MÁRIO TRAVASSOS
Tales Henrique Nascimento Simões1
RESUMO
O presente trabalho tem por objetivo compreender o contexto histórico-social que antecedeu e
acompanhou o pensamento geopolítico de Mário Travassos, nas décadas de 1920 e 1930. Com
base em uma perspectiva interdisciplinar, busca-se apreender a entronização de ideais e
concepções presentes em uma sociedade brasileira em plena efervescência política, ideológica
e cultural e como a conjuntura doméstica e internacional influenciaram os escritos de Travassos.
O resgate histórico do Brasil dos anos 1920 e 1930 são fundamentais para o entendimento da
perspectiva de Travassos, que tem como pano de fundo político-econômico os estertores da
República Velha (1889-1930) e a ascensão de Getúlio Vargas (1930-1945) ao poder. Por fim,
mira-se o contexto internacional, em especial o continente sul-americano, envolto em
nacionalismos, regimes autoritários e conflitos armados interestatais, para interpretar como
Travassos ocupou-se dos estudos sobre o papel do país no entorno regional, apontando os
potenciais geográficos do território nacional com base no cariz estratégico da bacia Amazônica
e do Prata e das costas do Pacífico e do Atlântico.
Palavras-chave: Mário Travassos; Geopolítica; História do Brasil.
ABSTRACT
The present work aims at understanding the social-historical context that preceded and followed
the geopolitical thinking of Mário Travassos in the 1920s and 1930s. Drawing on an
interdisciplinary perspective, we seek to understand the enthronement of ideals and conceptions
present in a fully political, ideological and cultural effervescence of Brazilian society and how
the domestic and international conjuncture influenced the writings of Travassos. The historical
review of Brazil in the 1920s and 1930s is fundamental for understanding Travassos’
perspective, with the political-economic background of the fall of the Old Republic (1889-
1930) and Getúlio Vargas’ rise to power (1930- 1945). Finally, we look at the international
context, especially the South American continent, wrapped in nationalisms, authoritarian
regimes and interstate armed conflicts, to interpret how Travassos took on the studies on the
country's role in the regional environment, highlighting the geographical potentials of the
national territory based on the strategic aspect of the Amazon and La Plata basins and the Pacific
and Atlantic coasts.
Keywords: Mário Travassos. Geopolitics. History of Brazil.
1 Mestrando em Geografia Humana na Universidade de São Paulo (USP). E-mail: [email protected]
INTRODUÇÃO
Este trabalho tem por objetivo observar os fatores histórico-sociais que convergiram
para o entendimento do pensamento geopolítico de Mário Travassos. Privilegia-se uma
perspectiva geopolítica dos contextos nacional, regional e global para identificar os
fundamentos históricos de Travassos, considerado o precursor da escola geopolítica brasileira,
sem esgotar os acontecimentos dos períodos discorridos. Para além da importância da
Geopolítica Clássica presente na obra travassiana, analisa-se o cenário político e
socioeconômico brasileiro, com enfoque, entre outros, na emergência do movimento tenentista;
na edificação do pensamento intelectual conservador-autoritário; nas novas dinâmicas
econômicas e no advento de camadas médias urbanas envolvidas na política; e na interpretação
da formação da sociedade brasileira e do fervor cultural nascente.
Ademais, analisa-se como o projeto econômico nacional-desenvolvimentista de Getúlio
Vargas alinhava-se com o desenvolvimento das concepções geopolíticas de Travassos, a partir
da priorização de programas para a construção do Estado-nação brasileiro, cujo fio condutor
consistia em uma política territorial que incluía o desenvolvimento de vias de transportes e
comunicação que balizaram a projeção geopolítica brasileira na região. Finalmente, observa-se
a conjuntura internacional, com foco especial na América do Sul e na rivalidade Brasil-
Argentina, para interpretar como Travassos debruçou-se sobre o papel do Brasil em seu entorno
regional, com ênfase nas características geográficas do território sul-americano.
Este artigo utiliza fontes presentes na historiografia brasileira e mundial recente e
remota, com o escopo de interpretar o panorama histórico dos escritos de Mário Travassos,
apontando de que maneira o pano de fundo efervescente do Brasil das décadas de 1920 e 1930
moldaram sua perspectiva e suas proposições para o Estado brasileiro. O trabalho é
desenvolvido em três etapas. Em primeiro lugar, aborda-se o legado do período imperial e o
cenário político da Primeira República. Em seguida, discorre-se sobre a crise dos anos 1920, a
Revolução de 1930 e a politização das Forças Armadas. Por fim, enfocam-se as políticas
nacionais pós-1930, as transformações culturais do período e o pensamento de Mário Travassos.
1. A CONJUNTURA HISTÓRICA DO PENSAMENTO TRAVASSIANO
1.1 O legado do Império e o cenário político na Primeira República
Mário Travassos nasceu em 1891, ano da promulgação da primeira Constituição
brasileira sob a nascente República. O cenário nacional das décadas seguintes testemunhou
profundas transformações na realidade política, econômica e social do país, com crises e
rupturas se manifestando nas mais diversas esferas políticas. Como integrante das Forças
Armadas, Travassos participou ativamente da efervescência política pela qual passava o país.
Suas experiências pessoais no cenário conturbado da Primeira República (1889-1930) e nas
significativas mudanças associadas à Revolução de 1930 permitiram a Travassos colocar-se
como observador arguto e crítico da realidade ao seu redor e levaram-no a debruçar-se sobre
questões consideradas prementes para o Brasil de então, notadamente a política territorial e a
inserção internacional do Brasil diante da rivalidade com a Argentina e do difícil equilíbrio de
poder regional. Foi este o pano de fundo dos dois livros escritos pelo militar durante o governo
de Getúlio Vargas, “Projeção Continental do Brasil” (19312) e “Introdução à Política de
Comunicações Brasileiras” (1941). O primeiro deles lançou as bases da geopolítica brasileira,
tendo grande influência no pensamento de sua geração e das gerações vindouras, ao tecer
análises e orientações sobre a política nacional para elevar a posição do Brasil no cenário
regional. Para Meira Mattos (1983, p. 59), “suas ideais coincidiram com os propósitos políticos
de fortalecimento do Estado brasileiro oriundas dos revolucionários de 1930”.
Questões prementes que ganharam ainda mais ênfase com a Revolução de 1930 – como
a coesão interna, o embate entre centralização e descentralização, as relações brasileiras com
os países sul-americanos, o fortalecimento do país no entorno regional, entre outras – não
podem ser entendidas sem uma análise dos períodos que precederam e que permitiram o
advento de uma nova fase na história do Brasil no governo Vargas. A história nacional, desde
a Independência, tem como um dos pontos nevrálgicos as relações do Brasil com seus vizinhos.
O próprio processo independentista no país apresenta-se como sui generis quando comparado
às independências da América do Sul, devido à continuidade política e institucional herdada da
metrópole portuguesa e, em especial, à integridade territorial preservada pelo Império
2 Antes de lançar “Projeção Continental do Brasil”, o livro havia sido publicado no ano anterior com outro título,
“Aspectos Geográficos Sul-americanos”.
brasileiro3, única Monarquia em meio a diversas Repúblicas fragmentadas e dirigidas por
diferentes caudilhismos.
Nesse cenário, os conflitos políticos entre Brasil e o resto da América do Sul sempre
condicionaram as relações, as decisões governamentais e a inserção regional dos países da
região. Com efeito, logo após as independências políticas sul-americanas, as rivalidades
oriundas das antigas metrópoles (Espanha e Portugal) e o problema da consolidação dos Estados
nacionais desencadearam embates que permaneceram latentes ao longo de todo o século XIX,
especialmente aqueles relacionados à segurança. O Brasil iniciou sua primeira guerra
interestatal apenas três anos após sua emancipação política, a Guerra da Cisplatina (1825-1828),
em que combateu a Argentina pela posse da Banda Oriental. Por isso, após a guerra, “os
objetivos de segurança configuraram-se nos anos 1830 e 1840, para todo o século XIX, em duas
frentes: conjurar as ameaças à integridade territorial que vinham do Prata e assegurar o legado
territorial da época da Independência” (CERVO, 2008, p. 123).
Foi essa a postura das elites dirigentes do Brasil, que enfrentariam constantemente as
pressões dos acontecimentos regionais que giravam, sobretudo, em torno da Bacia do Prata. O
Brasil, como maior potência relativa na América do Sul, precisou lançar mão de uma série de
políticas de intervenção de modo a preservar o status quo regional, em especial diante do temor
das pretensões expansionistas argentinas – na figura de Juan Manuel de Rosas. Exerceu controle
firme sobre o Prata entre 1851 e 1876, por meio de alianças políticas, do fomento a desavenças
políticas locais, de empréstimos e investimentos e de acordos de comércio para evitar o
surgimento de ameaças à ordem regional (CERVO, 2008). Após a retirada das tropas brasileiras
do Paraguai, em 1876, após a Guerra da Tríplice Aliança (1864-1870), o Brasil havia logrado
estabelecer uma hegemonia na América do Sul, exercendo protagonismo nos rearranjos do
subsistema do Prata ao longo de todo o século XIX. Esse papel hegemônico pode ser ilustrado
pelas políticas territoriais, em que as negociações de tratados de limites eram balizadas por
negociações bilaterais, com a diplomacia prevalecendo sobre o militarismo, e a condução de
relações pacíficas com os vizinhos.
3 Para José Murilo de Carvalho (2003), a integridade do território nacional deve-se à homogeneidade do
pensamento das elites brasileiras, que conduziu a manutenção do aparato estatal organizado, coeso e poderoso. Segundo o autor, o Brasil tinha na Independência uma elite homogênea por causa da formação jurídica em
Portugal, do treinamento no funcionalismo público e do isolamento ideológico. A elite continuou semelhante
depois da Independência, quando a formação foi concentrada em duas faculdades de direito, passagem pela
magistratura e por cargos políticos provinciais. Essa elite não existia nas colônias espanholas.
O cenário nacional e internacional nos estertores do regime imperial já mostrava sinais
de mudanças significativas para o Brasil. De fato, “a economia de capitalismo da Era dos
Impérios (1875-1914) penetrou e transformou praticamente todas as partes do globo”
(HOBSBAWM, 2008, p. 202). Apesar do êxito das políticas fronteiriças, o novo contexto estava
assinalado pelas pressões imperiais das grandes potências e sua expansão territorial após o
Congresso de Berlim (1885). No plano interno, o novo regime republicano alteraria
sobremaneira a condução da política doméstica e internacional diante das ameaças imperialistas
e do crescimento econômico da Argentina, tendo na instrumentalização da amizade com os
Estados Unidos um dos principais marcos do Brasil na Primeira República (1889-1930).
Logo nos primeiros meses da Primeira República, os setores que haviam se unido
momentaneamente – cafeeiros, industriais, profissionais liberais, militares – entraram em
choque, rompendo a coalizão revolucionária (VIOTTI DA COSTA, 1999). Os diversos fatores
que levaram ao ocaso da monarquia nacional contribuíram para a heterogeneidade da frente
republicana. Para além das cediças instituições imperiais e das mudanças socioeconômicas da
sociedade brasileira durante o Segundo Reinado (1840-1889), devem ser levadas em especial
consideração a crise econômica advinda da Guerra do Paraguai, a emergência do movimento
republicano, as Questões Militar e Religiosa, e a agitação emancipacionista. Aos poucos, o
governo imperial foi perdendo apoio das forças que o secundavam e o golpe militar de 1889
ocorreu sem grandes esforços. Os primeiros anos da nova República transcorreram em elevado
grau de incerteza depois do abandono das estruturas públicas da monarquia, cuja instabilidade
resultou em crises inquietantes, como a Revolução Federalista (Rio Grande do Sul) e a Revolta
da Armada (Rio de Janeiro). Após dois mandatos de governos militares instáveis, com
agitações, revoltas e medidas autoritárias, a estabilidade veio apenas em 1898, com a criação
de um pacto político conhecido como “política dos governadores”, idealizado pelo presidente
Campos Salles4.
Ao longo da Primeira República, oligarquias cafeeiras apossaram-se do poder, uma vez
que o Brasil tinha no setor exportador (sobretudo de café) o centro dinâmico de sua economia
4 De acordo com Marieta Ferreira e Surama Pinto (2008), o objetivo da “política dos governadores” era limitar os
conflitos políticos no seio de cada estado, evitando que as tensões intra-oligárquicas transpassassem as fronteiras
regionais, o que provocaria instabilidade no âmbito nacional. Ela funcionava por meio de um acordo entre a União
e os estados que findava as hostilidades entre Executivo e Legislativo: enquanto o governo federal sustentava os
setores dominantes dos estados, estes correspondiam apoiando as políticas do presidente da República ao votar
com o governo no Congresso. O mesmo acordo era repetido entre governadores e os coronéis (que exerciam o
controle local).
(FURTADO, 2007). A forte aliança entre Minas Gerais e São Paulo, detentores das maiores
bancadas do Congresso no período, simbolizavam um federalismo desigual, com oligarquias
de primeira e segunda grandezas. No início da década de 1920, contudo, a “política dos
governadores” apresentaria muitos sinais de esgotamento com o surgimento de conflitos
consideráveis entre as oligarquias (FERREIRA, PINTO, 2008). Na política externa, a mudança
do regime político não acarretou uma mudança brusca na condução internacional. De imediato,
tentou-se uma precipitada adaptação da política exterior, logo revertida com a recuperação das
tendências da diplomacia imperial pelo Barão do Rio Branco (1902-1912).
No entanto, algumas transformações transcorreram de modo a acompanhar as
transformações geopolíticas no sistema internacional e no subsistema regional. Para Rubens
Ricupero (2013), houve três transformações estruturais da política externa brasileira na
Primeira República: (1) a “aliança não escrita” com os Estados Unidos; (2) a sistemática solução
das questões fronteiriças e a ênfase em maior cooperação com os latino-americanos; e (3) os
primeiros lances da diplomacia multilateral, na versão regional ou global.
No que se refere à aliança com os EUA, faz-se mister esclarecer que a aproximação se
deu não por motivo ideológicos, mas por questões pragmáticas, dada a emergência dos EUA
como potência na época. Comercialmente, os EUA representavam o destino de mais de 70% do
café exportado pelo Brasil, enquanto a Inglaterra passava a segundo plano. Os EUA pretendiam
converter a América Latina em mercado para seus produtos industriais, uma vez que não
participavam da divisão de mercados proporcionada aos países europeus por meio do
colonialismo (CERVO, 2008). O novo eixo das relações internacionais brasileiras mudaria da
Europa para os EUA, com exceção dos vínculos financeiros com os ingleses. No período
monárquico, as relações haviam sido relativamente escassas – ressalvadas as exportações de
café –, e estiveram sujeitas a certas divergências, como a questão da livre circulação do
Amazonas e a recusa de Washington de reconhecer o bloqueio de Assunção na Guerra do
Paraguai.
Com o advento da República, emerge uma nova fase nas relações bilaterais. Não apenas
o Brasil identificava-se fortemente com o modelo político dos EUA, que inspirou a Constituição
de 1891, o federalismo, a bandeira, entre outros, como também o país contou com a simpatia
dos EUA em diversos momentos, como no rápido reconhecimento do novo governo, na ajuda
militar a Floriano Peixoto na Revolta da Armada e nos favores comerciais outorgados (CERVO,
2008). A relação pragmática de aproximação do poder emergente dos EUA manifestava-se
mormente na busca de defesa do imperialismo europeu e no encaminhamento de litígios com
os países sul-americanos. Por sua vez, o Brasil estava disposto a secundar as posições dos EUA
e alavancar sua condução pan-americanista.
Com efeito, a visão realista de Rio Branco permitia-lhe conceber a importância dos EUA
na nova configuração de poder internacional e dar-se conta de que a América Latina estava em
sua órbita de influência, buscando converter o estreitamento das relações em prol dos objetivos
geopolíticos brasileiros. Para Burns (2003, p. 259), “parece ter havido um acordo tácito pelo
qual o Brasil reconhecia a hegemonia americana na América do Norte e os EUA respeitavam
as pretensões brasileiras a uma posição hegemônica na América do Sul”. Nesse diapasão, os
EUA contribuíram nas soluções de litígios fronteiriços e mesmo no reequipamento naval
brasileiro (CERVO, BUENO, 2008).
No que se refere às soluções fronteiriças com os vizinhos sul-americanos, muitos dos
tratados haviam sido entabulados ainda no Império e tiveram continuidade no período
republicano. A situação mais problemática encontrava-se na Questão de Palmas com a
Argentina. Após uma malograda negociação bilateral com base na divisão equitativa, foi
retomada a preferência pela arbitragem, que foi realizada pelo então presidente dos EUA,
Grover Cleveland, em 1895, com ganhos evidentes para o Brasil. O país, na figura do Barão do
Rio Branco, deu encaminhamento a outros litígios fronteiriços pendentes no início do século
XX, como a Questão do Pirara com o Reino Unido e na controvérsia com a França na Guiana
Francesa, cujas soluções foram cruciais para consolidar o afastamento do Brasil das pretensões
imperiais das potências europeias. Igualmente merece destaque a questão do Acre, em que o
Barão do Rio Branco lançou mão da diplomacia para garantir a posse de importante território
boliviano, que passou a conformar o corpo da pátria brasileira.
A Primeira República foi caracterizada pela maior cooperação com os países sul-
americanos. A preocupação de Rio Branco com o imperialismo europeu levou à consecução da
política de aproximação dos vizinhos, uma vez que a estabilidade da região poderia evitar
ameaças aos Estados sul-americanos, sobretudo em períodos de guerras civis internas ou de
guerras interestatais. Com exceção da intervenção brasileira no Paraguai na década de 1890,
justificada pela necessidade de evitar a posse de José Decoud, um candidato pró-Argentina, o
Brasil buscou salvaguardar a estabilidade regional, inclusive por meio do estreitamento de
relações com os argentinos. Para garantir o equilíbrio de poder na América do Sul, o Brasil
isentou-se de intervir no Paraguai em 1904, deixando o caminho livre para que este país entrasse
na órbita da Argentina até meados do século XX. Em compensação, o Brasil aproximar-se-ia
do Uruguai, com a concessão do condomínio do Rio Jaguarão e da Lagoa Mirim em 1909, de
modo a equilibrar o jogo de poder geopolítico no subsistema platino (DORATIOTO, 2014).
Mais emblemática foi a proposição, pelo Barão do Rio Branco, do chamado Pacto ABC em
1907, buscando articulações conjuntas entre as três potências regionais, Argentina, Brasil e
Chile, ainda que o acordo não tenha sido ratificado pela Argentina de José Figueroa Alcorta.
Nesse particular, “as relações com a Argentina, desde a recomposição da Tríplice
Aliança e a desocupação do Paraguai pelas tropas brasileiras em 1876 enveredaram por um
ciclo de alternâncias de tensão e distensão” (CERVO, 2008). O paroxismo das tensões deu-se
durante o governo Alcorta (1906-1910), quando o chanceler argentino, Estanislao Zeballos,
articulou para atacar o Rio de Janeiro, convencido de que o Brasil queria guerrear contra a
Argentina ao analisar o ativismo diplomático e militar brasileiro, mas não conseguiu consumar
a ofensiva bélica5. Apesar de não constituírem ameaças mútuas reais, Brasil e Argentina viam-
se como expansionistas, armando-se, então, contra uma eventual agressão. Desde 1905, uma
corrida armamentista começara no subsistema geopolítico do Prata (DORATIOTO, 2012).
Apesar das desconfianças de ambos os lados, a partir da queda de Zeballos na Argentina,
as tensões com o Brasil arrefeceram. O bom entendimento com o governo de Sáenz Peña – que
visitou o Brasil e proferiu a célebre frase “tudo nos une, nada nos separa” –, foi fundamental
para não despertar desconfianças diante de crises políticas no Uruguai e no Paraguai na década
de 1910, quando as duas potências se mantiveram neutras. Ainda que a Argentina tenha
igualmente adotado a posição de neutralidade durante a Primeira Guerra Mundial, enquanto o
Brasil entrara no conflito ao lado da Tríplice Entente, as relações entre os países eram
excelentes, conforme ilustram as homenagens prestadas pelo governo brasileiro à Argentina em
comemoração do centenário do Congresso de Tucumán. Além disso, uma importante atuação
hemisférica conjunta por parte de Brasil, Argentina e Chile ocorreu na mediação proporcionado
pelos países ao conflito entre EUA e México, em Niagara Falls, em 1914. Mas tanto o Brasil
quanto a Argentina continuava fortalecendo suas forças armadas.
5 O plano de Zeballos consistia na cessão, pelo Brasil, de um dos encouraçados recém-encomendados, para a
manutenção do poder bélico entre os países. Em caso de recusa, a Argentina atacaria o Brasil, com a ocupação
do Rio de Janeiro pelas tropas argentinas. O plano, contudo, vazou e, diante das reações políticas e públicas,
Zeballos se demite da chancelaria argentina.
No intuito de arrefecer as tensões interestatais e de fortalecer a solidariedade continental,
uma série de conferências pan-americanas ocorreram durante a Primeira República, tendo o
Brasil sediado uma delas, em 1906. As conferências lograram oferecer uma preciosa plataforma
de diálogo e solução de controvérsias, mesmo com dissensões marcantes entre os países. Na
Conferência de Santiago, em 1923, por exemplo, as divergências manifestaram-se na definição
da paridade naval entre Brasil, Argentina e Chile, na esteira da corrida armamentista
supracitada, tendo o Brasil enfrentado a desconfiança dos demais países quanto ao rearmamento
das Forças Armadas nacionais. O Brasil foi acusado pelos vizinhos de fomentar uma corrida
naval, mesmo que, desde a Revolta da Armada (1893), quando a esquadra brasileira fora
destruída, as forças navais do Brasil estavam em situação inferior às de Argentina e Chile
(MONIZ BANDEIRA, 2010). As denúncias de uma suposta postura “prussiana” do Brasil
isolou-o durante a conferência, sobretudo porque o país havia contratado uma missão naval dos
EUA no ano anterior. Os demais países sul-americanos queriam a preservação do status quo
naval na região. A controvérsia teve fim com a proposta da delegação paraguaia de obrigar os
países a recorrerem ao arbitramento para evitar conflitos armados (DORATIOTO, 2012).
Segundo Ricupero (2013), depois do Barão do Rio Branco, a diplomacia brasileira se
convertera em um duplo movimento de universalização e de integração. O país busca superar
os limites geográficos da Bacia da Prata e da América do Sul para dedicar-se a instituições
internacionais e às grandes amizades internacionais, ressaltando o tamanho de seu território,
sua população e sua cultura. Na projeção brasileira no âmbito multilateral global, vale ressaltar
a participação de Rui Barbosa na Segunda Conferência de Haia (1907), cuja atuação foi
fundamental para que a adoção do princípio da igualdade soberana entre os Estados na recém-
criada Corte Permanente de Arbitragem. Ademais, o Brasil foi o único país latino-americano a
participar na Primeira Guerra Mundial, com envio de 13 aviadores para a Royal Air Force do
Reino Unido, de uma missão médica à França e de seis navios da Divisão Naval de Operação
de Guerra (DNOG). Como principais resultados de seu envolvimento na guerra, o Brasil pôde
assegurar sua participação na Conferência de Paz de Paris e na Liga das Nações, organização
da qual, em 1926, o governo Artur Bernardes retiraria o Brasil, após o malogro da tentativa de
obter um assento permanente em seu Conselho.
Na década de 1920, o Brasil daria início a uma “fase de hiperatividade diplomática e
histrionismo político” (GARCIA, 2006, p. 597). Após a conferência pan-americana de 1923, as
relações com os países latino-americanas foram pautadas por questões burocráticas, com
poucos empreendimentos substanciais e mesmo pelo descaso por parte do Brasil. Com efeito,
além das numerosas crises na sociedade brasileira que marcaram a década e que tiveram
repercussão nas decisões de política externa, houve certamente muitos erros de avaliação, como
no fracasso em obter um assento permanente na Liga das Nações. A frustração no plano
multilateral levou o país a tentativa de estreitar ligações com a América do Sul, mas a Revolução
de 1930 rompeu esse movimento (DORATIOTO, 2012).
1.2 A crise dos anos 1920, a Revolução de 1930 e a politização das Forças Armadas
A década de 1920 foi, certamente, aquela que mais influenciou os escritos de Mário
Travassos, porquanto antecede à publicação de suas principais obras no início dos anos 1930.
Este período esteve permeado por importantes transformações, crises e fraturas políticas. No
plano econômico, a Primeira República levara a especialização da economia agroexportadora
ao seu paroxismo, cuja expansão das plantações do café teria repercussões drásticas com a
Grande Depressão de 1929. As transformações da sociedade brasileira, com o aumento da
população urbana, uma burguesia nacional nascente, greves operárias, insatisfações no seio das
Forças Armadas e da intelectualidade diante de estruturas político-institucionais que se
mostravam arcaicas contribuíram para o cenário de mudanças paradigmáticas. No âmbito da
inserção internacional brasileira, Amado Cervo (2008, p. 44) afirma que “o paradigma liberal-
conservador da política externa não combinava com a nova conjuntura externa e interna”, de
modo que o modelo centro-periferia deu lugar a novas formulações de projetos nacionais que
imprimiram novo rumo às diplomacias dos países da região nos anos 1930. As elites
agroexportadoras cederiam o poder a novas lideranças com visão moderna e industrialista.
O ano de 1922 representou uma amálgama de acontecimentos que transformaram
sobremaneira o cenário político e cultural do Brasil. Eventos como a Semana de Arte Moderna,
a criação do partido comunista e do Centro Dom Vital e a comemoração do centenário da
Independência funcionaram como catalizadores de insatisfações para com os paradigmas
político-culturais da Primeira República. A “política dos governadores”, que regia o sistema
político nacional, começava a mostrar indícios de esgotamento com dissensões no seio das
oligarquias, estimuladas pelo surgimento de algumas indústrias de base e da diversificação da
agricultura, apesar do domínio absoluto da economia cafeeira, com suas marchas e
contramarchas ao longo da década (FERREIRA, PINTO, 2008).
O aumento dos setores urbanos, com a ampliação da classe média e da classe
trabalhadora foi um dos principais aspectos que condicionaram as mudanças nas primeiras
décadas do século XX. O complexo cafeeiro, a industrialização incipiente e o advento de
atividades urbanas multifacetadas deram a tônica para a emergência dos novos estratos sociais
no país. Ressalte-se que, com o fim do sistema escravagista, a mão de obra passou a ser
substituída pela torrente de imigrantes atraídos para o trabalho agrícolas, sobretudo europeus.
O trabalho integralmente assalariado na economia brasileira geraria demandas de produtos
pelas novas classes em formação, algo que intensificava a dinâmica urbana, com o provimento
de serviços como a construção de ferrovias e moradias e o provimento de gás, bondes,
telégrafos, bancos e casas comerciais. O processo de industrialização, que começara em São
Paulo e no Vale do Paraíba fluminense, com a aplicação do capital do café para a atividade
industrial, foi igualmente importante no crescimento das camadas urbanas, dado que parte
significativa da imigração europeia foi empregada nas novas indústrias. Muitos italianos,
inclusive, são associados à criação dos primeiros movimentos grevistas operários no Brasil,
como na onda de manifestações que ocorreram no ano de 1917. Ademais, os imigrantes italianos
e japoneses, concentrados na atividade agrícola, forneciam insumos para as indústrias e
abasteciam o consumo dos cidadãos urbanos. As novas classes urbanas, mais educadas que a
população rural e livres das imposições da política dos coronéis, conformariam o alicerce de
muitos movimentos políticos da década de 1920, cujas reivindicações contemplavam os anseios
das camadas médias citadinas, como maior participação política, mudanças nas políticas de
valorização do café e na “socialização das perdas”6, e mais investimentos nos serviços públicos
das cidades.
Dentre as atividades insurgentes a partir da década de 1920, o movimento tenentista, em
particular, causou impactos substanciais não apenas no âmago das Forças Armadas, como no
plano político brasileiro. Para José Murilo de Carvalho (1986), o Exército consistiu no “poder
6 O conceito de “socialização das perdas” foi cunhado por Celso Furtado (2007). Quando havia crises nos países
centrais, os preços dos bens primários – no caso brasileiro, o café – despencavam e a desvalorização cambial era
uma política deliberada para valorização do café. Contudo, o encarecimento das importações impunha a maior
parte do ônus do ajuste àqueles que consumiam bens importados (com destaque para a população urbana), e
melhorava a condição do setor exportador. Assim, a transferência de renda de todos os consumidores de produtos
importados para o setor exportador foi o que Furtado denominou “socialização das perdas”.
desestabilizador” da Primeira República, quando houve intensa luta para que o exército pudesse
ser capaz de executar uma política de defesa nacional. Os militares passaram a uma inédita
hiperpolitização no período. As mudanças no seio do Exército, contudo, eram originárias da
Guerra do Paraguai. No fim do século XIX, uma distinção foi estabelecida no quadro de oficiais,
entre o “tarimbeiro” e o “soldado-cidadão”. Enquanto os “tarimbeiros” correspondiam aos
militares formados na vida militar e no combate na Guerra do Paraguai, tendo como símbolo o
marechal Deodoro da Fonseca, o “soldado-cidadão” associava-se à formação acadêmica
positivista na Escola Militar da Praia Vermelha (RJ), com estudos de matemática, filosofia e
letras, ao passo que o ensino militar passou para segundo plano, com o objetivo de formar um
soldado pronto para adentrar a vida política e promover o progresso do país. As contendas entre
“tarimbeiros” e “soldados-cidadão” estiveram subjacentes às disputas políticas mais amplas dos
primeiros anos da República (FAUSTO, DEVOTO, 2004).
Ao longo da Primeira República, muitas autoridades defendiam a modernização do
Exército e o reaparelhamento das Forças Armadas nacionais, sobretudo após os
constrangimentos em Canudos e na Guerra do Contestado. Dentre as mudanças efetuadas, está
o envio de jovens oficiais brasileiros à Alemanha para realizar estágios entre 1906 e 1912, sob
recomendação do Barão do Rio Branco. Dotados de uma visão mais técnica, seriam
denominados “jovens turcos”. Houve também a fundação da Escola Militar do Realengo
(1911), que representava o oposto da Escola da Praia Vermelha, foco de rebeliões até ser
fechada em 1904, e a criação da Revista “Defesa Nacional”. A Primeira Guerra Mundial
mostrara igualmente o imperativo de modernizar as forças armadas brasileiras. Além do
estabelecimento da Lei do Sorteio (1916), com aplicação definitiva do alistamento obrigatório,
e da extinção da Guarda Nacional (1918), absorvida pelo exército, o Brasil contou com uma
Missão Militar Francesa (1919) e uma Missão Naval Norte-americana (1920). A missão
francesa teve efeitos de grande magnitude na organização do exército, ao gerar um grupo de
novos oficiais que, frustrados com a política nacional, alinhar-se-iam com as oligarquias
dissidentes (FAUSTO, DEVOTO, 2004).
O elemento mais atuante no exército na Primeira República foram os jovens oficiais,
com grande predominância dos tenentes. O baixo grau de controle hierárquico, as insatisfações
profissionais e as origens sociais deram margem a rebeliões capitaneadas pelos tenentes, que
retomaram, a partir de 1922, a ideia de “soldado-cidadão” e defendiam uma intervenção
reformista (CARVALHO, 1986). O primeiro movimento subversivo ocorre com o levante
militar dos “Dezoito do Forte de Copacabana”. Embora prontamente abatido pelas forças
federais, seguiram-se outros episódios de revolta: a revolução em São Paulo (1924) para
derrubar o presidente Artur Bernardes e a marcha da Coluna Miguel Costas-Luís Carlos Prestes,
que percorreu 25 mil quilômetros e passou por treze estados brasileiros entre 1924 e 1927,
difundindo a queda das oligarquias (FAUSTO, DEVOTO, 2004). O movimento tenentista teve
repercussão em amplos setores da sociedade, sobretudo as camadas médias urbanas e classe
operária, com suas ideias de combate às oligarquias, nacionalismo, reforma da Constituição,
centralização e moralização dos costumes políticos (FERREIRA, PINTO, 2008).
No meio dessa efervescência política, aos movimentos que irrompiam na sociedade
brasileira – tenentismo, greves operárias, partido comunista, oligarquias dissidentes,
emergência de camadas urbanas médias –, somou-se um episódio de proporções alarmantes, a
Grande Depressão de 1929, quando a economia mundial entrou na mais dramática crise que
conhecera desde a Revolução Industrial e, “(...) os interesses de economias dependentes e
metropolitanas entraram claramente em choque, inclusive porque os preços dos produtos
primários (...) caíram muito mais dramaticamente que os dos bens manufaturados que eles
compravam no Ocidente” (HOBSBAWM, 2008, p. 211). No Brasil, a queda brusca do preço
internacional do café atingiu a economia brasileira em grande magnitude, corroendo o setor
agroexportador cafeeiro, esteio do sistema político-econômico da Primeira República.
1.3 Os anos 1930 e os novos rumos da modernização do Brasil
O cenário de convulsão econômica e de crises políticas permitiu o triunfo da Revolução
de 1930. Iniciada por um golpe que destitui Washington Luís, ela deve ser entendida como o
resultado de conflitos intra-oligárquicos fortalecidos por movimentos militares dissidentes que
almejavam derrubar a hegemonia da burguesia cafeeira. Getúlio Vargas, alçado ao poder,
pertencia ele mesmo a uma oligarquia dissidente. Para contemplar os anseios de um grupo
social e politicamente heterogêneo, Vargas criou o chamado “Estado de compromisso”, cujo
fim último era combater as tradicionais oligarquias. As oligarquias dissidentes buscavam
assenhorar-se do poder com poucas mudanças institucionais; a geração de jovens políticos
desejava reformar o sistema político; os tenentes defendiam a centralização do poder e reformas
sociais. Constata-se também a renúncia do modelo liberal pelos novos dirigentes, apesar de ter
sido amparado pela Constituição de 1934, e uma aproximação com o pensamento autoritário
(FAUSTO, 1997).
No plano econômico, Hobsbawm (2008, p. 109) destaca não ser fácil caracterizar o
impacto político da Depressão na América Latina, pois “embora seus governos caíssem como
paus de boliche à medida que o colapso nos preços mundiais de seus produtos básicos de
exportação quebrava suas finanças, não caíram na mesma direção”. A tendência, contudo, foi a
adoção de um populismo baseado em líderes autoritários buscando o apoio dos trabalhadores
urbanos. Os anos 1930 foram uma década crucial para os países em desenvolvimento, “não
tanto porque a Depressão levou à radicalização, mas antes porque estabeleceu contato entre as
minorias politizadas e a gente comum de seus países” (HOBSBAWM, 2008, p. 212). A
aproximação do trabalhador urbano foi o sustentáculo do governo Vargas quando se viu em
meio à tarefa de endereçar as aspirações do grupo heterogêneo que o levara ao poder.
Iniciava-se o tempo do nacional-estatismo, com a construção da cidadania social sob o
amparo de um Estado fortemente centralizado e o advento de novas dinâmicas políticas e
econômicas. O desenvolvimento tornou-se o vetor da política nacional e coube ao Estado
colocar o Brasil em direção à modernização integrada ao sistema capitalista por meio da
industrialização. No Brasil, “a ratio do Estado desenvolvimentista estender-se-á sobre governos
e regimes políticos durante sessenta anos, entre 1930 e 1989, apesar de sofrer inflexões”
(CERVO, 2008, p. 46).
O primeiro governo Vargas (1930-1945) foi um período de muitas ambiguidades. Da
Revolução de 1930, passando pelo governo constitucional e o golpe do Estado Novo, até a
queda de Vargas após a participação do Brasil na Segunda Guerra Mundial, diferentes projetos
disputaram o jogo político. Para aqueles presentes na construção do novo regime, a Revolução
de 1930 e o golpe de 1937 eram fases de um mesmo processo. Mas, se houve continuidade entre
os dois acontecimentos, houve também importantes rupturas (PANDOLFI, 2007). Essas
rupturas se manifestaram em episódios de conflitos abertos e ideologias inconciliáveis, como
nos casos da Revolução Constitucionalista (1932), da Intentona Comunista (1935) e do putsch
integralista (1938).
Para Oliveira (2007), o panorama cultural havia se alterado sobremaneira, com a
profusão de novas perspectivas e vanguardas. Desde a década de 1920, muitos eventos já
questionavam os padrões culturais do Império e da Primeira República. A teoria do
“branqueamento” do Brasil, com a atração de muitos imigrantes brancos foi sendo
paulatinamente abandonada. A Primeira Guerra Mundial levara à descrença nos valores
ocidentais e fez-se necessário “repensar” o Brasil, combatendo a imitação cultural europeia.
Autores como Oliveira Viana, Silvio Romero e Nina Rodrigues, que conferiam conotação
negativa à miscigenação brasileira, foram superados pelos pensadores modernistas, cujos
estudos folclóricos e etnológicos marcaram uma inflexão a partir da exaltação da amálgama
étnico-cultural do país, representada na Semana de Arte Moderna, na literatura de Mário de
Andrade, nas pinturas de Tarsila do Amaral e Cândido Portinari, na música de Villa Lobos, nos
escritos de cientistas sociais como Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda, entre outros.
A “brasilidade” era exaltada tanto pelo movimento verde-amarelo de Plínio Salgado e Menotti
Del Picchia, como por Oswald de Andrade e seu manifestos Pau-Brasil e Antropófago, com a
apropriação das influências europeias pelo “canibalismo cultural”. Surgem o mito da
“democracia racial” e a valorização do personalismo e do caráter cordial do povo.
Esse movimento atinge seu apogeu na década de 1930, sendo o processo de
nacionalização da cultura nacional capitaneado pelo Estado. O samba e o Carnaval são
destinados a simbolizar o Brasil; o regionalismo nordestino de Graciliano Ramos e José Lins
do Rêgo valoriza o homem miscigenado. Durante o Estado Novo, rádio, cinema, esporte e
música popular são instrumentalizados para integrar os indivíduos no novo contexto nacional,
apesar dos constantes episódios de censura e repressão. Em 1939, com a criação do DIP
(Departamento de Imprensa e Propaganda), as atividades culturais tornam-se mecanismo para
divulgação de informações educacionais e científicas e para valorizar a figura de Getúlio
Vargas. Intelectuais de diferentes matizes participaram do entrelaçamento entre cultura e
política com grande destaque, como Gustavo Capanema, Carlos Drummond de Andrade e
Manuel Bandeira. O Estado Novo, caracterizado pela adoção do modelo de modernização
conservadora, implementou práticas autoritárias em consonância com muitas propostas
antiliberais emanadas do Centro Dom Vital e de conservadores católicos, defendidas por
intelectuais como Oliveira Viana, Azevedo Amaral e Francisco Campos. Mas, ao mesmo tempo,
encorajou diversas práticas novas e modernas, com destaque para a educação.
Nas relações internacionais, desde o primeiro governo Vargas, o desenvolvimento
tornou-se o vetor da política externa brasileira, já que, “assegurada a soberania do território,
configuradas as suas fronteiras, o desenvolvimento desse território tornou-se a terceira função
histórica sucessiva da diplomacia brasileira” (CERVO, 2008, p. 40). Em vez de adotar o modelo
agroexportador e as tentativas de obter prestígio externo encetados na Primeira República, a
diplomacia sob Vargas tentou alcançar novos resultados, como autonomia decisória, boas
relações com as grandes potências e os países sul-americanos por meio de ações cooperativas
e um comércio exterior diversificado e flexível que atendessem às novas políticas
desenvolvimentistas em curso. Assim, o Estado tentaria contemplar as demandas de
empresários, industriais, agricultores, camponeses, militares, e outros segmentos.
Assim, Getúlio Vargas procurou dar continuidade às relações comerciais com os Estados
Unidos, pautada pelas exportações de café, mas, ao mesmo tempo, passou a entabular um
relacionamento comercial vultoso com a Alemanha. Esse equilíbrio delicado só iria ser rompido
com a Segunda Guerra Mundial, quando o governo brasileiro foi forçado a tomar uma posição.
Dadas as disputas ideológicas do período entreguerras e as dificuldades econômicas da crise de
1929, Getúlio pôs-se a manipular o comércio exterior com EUA e Alemanha na tentativa de
obter dividendos para o desenvolvimento brasileiro baseado na industrialização por substituição
de importações. Tanto os EUA quanto a Alemanha precisavam vincular-se a outras economias
para sua recuperação econômica, tendo no Brasil um fornecedor de matérias-primas e
importador de manufaturados. Contudo, enquanto os EUA defendiam o livre-comércio, os
alemães optaram pelo comércio de compensação, que consistia na troca de mercadorias sem a
intermediação de moeda forte, sob uma fórmula protecionista. O processo pragmático de
barganha com a Alemanha e os EUA ficou conhecida por “equidistância pragmática”, na
expressão de Gerson Moura (1980). O Brasil, afinal, inclinou-se em direção aos EUA, em
virtude de graças uma série de fatores, que inclui a política de boa-vizinhança de Franklin
Roosevelt, a diversidade de interesses domésticos e o esgotamento dos recursos de barganha no
início da Segunda Guerra Mundial, quando o bloqueio imposto pelos britânicos à navegação
alemã dificultou o acesso ao comércio com o Brasil, conferindo maior margem de manobra
para os EUA. A situação se definiria com a entrada dos Estados Unidos na Segunda Guerra
Mundial, no final de 1941.
Deve-se ressaltar que, a partir de 1930, obter ajuda para a industrialização seria o
leitmotiv da diplomacia brasileira e é nesse contexto que se deve entender a participação militar
do Brasil na Segunda Guerra Mundial. Os EUA dependiam da ajuda brasileira no abastecimento
de matérias-primas para suas operações militares e do uso de bases no Nordeste brasileiro para
o acesso à guerra no norte da África. Em compensação, o Brasil conquistava dois objetivos, a
consolidação do parque industrial, com a construção da Companhia Siderúrgica Nacional, e a
modernização das Forças Armadas, inclusive sendo o Brasil um dos poucos países latino-
americanos a envolver-se militarmente da Segunda Guerra Mundial, cuja participação foi fruto
da estratégia de desenvolvimento nacional vinculada à condução da política externa. Ao apoiar
os Aliados, até mesmo na tentativa de convencer os países sul-americanos romper com o Eixo,
como na III Conferência de Chanceleres (1942), o Brasil percebe que, com o envolvimento no
conflito, poderia ampliar seus ganhos no pós-guerra em termos de prestígio e projeção
internacional.
No que se refere às relações na América do Sul, nos anos 1930 o Brasil estava em grande
desvantagem política no Prata, enquanto a Argentina exercia considerável domínio, em razão
de sua supremacia militar – era a maior potência naval da região –, do controle dos rios
Paraguai, Paraná e Uruguai, onde o Brasil sequer contava com bases navais, além do fato de o
Paraguai ser praticamente uma província argentina. Subsistia, portanto, o temor de a Argentina
absorver os territórios de Bolívia e Paraguai (MONIZ BANDEIRA, 2010). No entanto, as
relações Brasil-Argentina foram estáveis nos aspectos comercial e diplomático. O Brasil não
ignoraria os problemas de seus vizinhos, com reforço da tendência pan-americanista da política
externa brasileira, manifestada em três aspectos: a participação em todas as conferências pan-
americanas; a política de mediação quando surgiam conflitos na região7; e a melhoria das
relações com a Argentina, permitida pela troca de visitas de seus presidentes e a assinatura de
um tratado antibélico de não agressão e conciliação, aberto a outros países (SEITENFUS,
1996).
Se por um lado, a Segunda Guerra Mundial propiciou a ampliação das relações
comerciais entre o Brasil e o Rio da Prata, a partir da interrupção de fluxos comerciais com os
países europeus, com grande aumento das vendas de manufaturas brasileiras aos argentinos,
por outro lado, o conflito viria a expor dissonâncias entre Brasil e Argentina. A posição
brasileira em prol dos Aliados foi acompanhada no Prata apenas por Uruguai e Paraguai.
Segundo Doratioto (2014, p. 119), “a ação brasileira também era motivada pela preocupação
de haver uma guerra com a Argentina e, neste caso, se o Paraguai estivesse na órbita desta,
ficaria ainda mais fragilizada a defesa do ‘flanco’ do Mato Grosso”. A adoção da neutralidade
na guerra pela Argentina, em razão da influência dos setores pró-Eixo, dos interesses britânicos
e de setores nacionalistas no exército, assustava os países da região. Ao fim e ao cabo, a
7 Houve mediação e solução de três conflitos: a reconciliação de Peru e Uruguai, que haviam rompido relações
diplomáticas; o caso Letícia (Colômbia-Peru) sobre a disputa de um território que faz fronteira com o Brasil; e a
Guerra do Chaco (Paraguai-Bolívia), por indefinição de limites precisos no Chaco Boreal.
Argentina foi obrigada a declarar guerra ao Eixo em 1945, pouco antes da derrota da Alemanha,
para contornar as sanções econômicas e diplomáticas aplicadas pelos EUA e para que pudesse
participar da criação das Nações Unidas e da ordem internacional pós-guerra.
Em suma, o governo Vargas marcou uma mudança fundamental na diplomacia
brasileira, direcionada para o desenvolvimento nacional e para a melhoria nas relações
econômicas externas, além da preocupação com a segurança e com as rivalidades que marcam
os cenários mundial e regional, e a integração física com os países vizinhos da Bacia do Prata,
através da construção de estradas, ferrovias e pontes de acesso, com esforços para a promoção
de paz na América do Sul (DANESE, 1999). No Rio da Prata, o Brasil “atuou conforme as
diretrizes do Barão do Rio Branco, com a defesa da estabilidade política regional, a não
intervenção nos assuntos internos dos países vizinhos e a permanente preocupação de manter o
entendimento e o diálogo fluido com Buenos Aires” (DORATIOTO, 2014, p.115-116).
1.4 As políticas nacionais e o pensamento de Mário Travassos
Desde a década de 1920, intelectuais brasileiros passaram a associar a geopolítica com
o centro de poder político que impulsionou um pensamento estratégico nacional para lidar com
questões internas e externas. Com efeito, a geopolítica brasileira clássica, de inspiração
basicamente militar e forjada num ambiente de rivalidades internacionais e especialmente
regionais, desenvolveu-se fortemente calcada nas relações do país com o contexto sul-
americano e americano (COSTA, 1999). Problemas da coesão interna, como a grandiosidade
do território e o povoamento escasso e fragmentado, ensejaram ideias de integração nacional
que marcaram a retórica político-territorial, que teve na geografia a sua base científica.
Parte significativa desse pensamento foi amplificada pela Revista Defesa Nacional,
fundada em 1913, que conseguiria galvanizar, até 1930, ensaios e projeções fundamentais para
a política e o exército do período desenvolvimentista no Brasil. Ao lado de figuras como Eurico
Dutra, Góis Monteiro, Bertoldo Klinger, e dos futuros presidentes da ditadura civil-militar
(1964-1985) Castelo Branco e Médici, Mário Travassos desenvolveu, sobretudo a partir de
1926, quando se torna redator da revista, importantes análises acerca da percepção da
superioridade militar com a Argentina, na esteira dos entreveros das primeiras décadas do
século XX. Muitos daqueles que se aglutinaram em torno da revista fizeram parte dos jovens
oficiais enviados à Alemanha (1906-1912), alcunhados “jovens turcos” e cuja visão era mais
técnica. Esses militares tiveram grande impacto na política nacional pós-1930, até mais que o
movimento tenentista, por eles influenciado (ZORTEA VIEIRA, 2017).
Muitos dos oficiais que desenvolveram projetos reformistas e modernizantes
desenvolvidos na Revista Defesa Nacional na década de 1920 atuaram no que ficou conhecido
por “Missão Indígena”, grupo que viria a preponderar no quadro de docentes na Escola Militar
do Realengo, entre 1918 e 1922, dominando a estrutura do ensino militar. O nome designava
os instrutores que se dedicavam a desenvolver uma missão militar que abarcasse uma doutrina
e cultura militares nacionais. A ideia da modernização das forças armadas consubstanciada na
Missão Indígena colocou em prática o pensamento dos “jovens turcos”, e seriam essenciais para
a queda das oligarquias da Primeira República e da emergência da Revolução de 1930. Dentre
os instrutores selecionados na Escola Militar do Realengo, estão Mário Travassos, Henrique
Lott e Juarez Távora. No comando da Escola Militar do Realengo, implementariam um
programa com a inclusão de disciplinas de claro interesse militar, a exemplo dos estudos de
geografia militar, encabeçada por Travassos.
O governo Vargas, em sua busca para erigir um Estado capaz de implantar uma
sociedade moderna, nacionalista e desenvolvida, teve nas relações entre território e poder um
importante instrumento para alinhavar políticas de integração e desenvolvimento. Nesse
particular, a concepção geográfica do Brasil explicitada pelos geopolíticos militares estava em
simbiose com os anseios de seu projeto de poder e dos revolucionários de 1930. A geografia
passaria a constituir uma das bases para as políticas de desenvolvimento nacional,
especialmente durante o Estado Novo, com a criação de instituições como conselhos de
geografia, cartografia e estatística e do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). A
preocupação com a integridade nacional dominava os escritos de geopolíticos brasileiros, como
Everaldo Backheuser, que alertava para os riscos da desagregação político-territorial do país e
do brigadeiro Lysias Rodrigues, veemente defensor da centralização pós-1930.
Em 1940, Getúlio Vargas lança a chamada “Marcha para o Oeste” como um modelo de
integração territorial para o Brasil, centrada em políticas de povoamento, comunicações e
transportes. Essas políticas foram ilustradas pela criação de territórios federais em 1943
(Amapá, Rio Branco, Guaporé, Iguaçu e Ponta Porã), do Departamento Nacional de Estradas
de Rodagem (DNER) e dos “Planos de Viação” e pela colonização do oeste paranaense. Assim
como outros regimes autoritários que lhe eram contemporâneos, o Estado Novo estabelecia
como meta estratégica para a segurança nacional um efetivo controle sobre o povo e o território,
cuidando das fronteiras, ameaçadas, seja por inimigos externos, seja por inimigos internos
(GOMES, 2013).
A construção de um Estado nacionalista no governo Vargas, secundada por propostas
modernizadoras de geopolíticos civis e militares, permitiu o desenvolvimento da geopolítica
brasileira e da adoção de projetos que deram novos contornos ao território do país. Travassos
havia proposto o delineamento de um plano de infraestrutura nos transportes, com base em
linhas naturais e geográficas de circulação do próprio território com fins políticos, para a
manutenção da unidade geográfica e da segurança do Estado brasileiro, chegando mesmo a
elogiar o Plano de Viação varguista de 1934 (VLACH, 2003). É possível inferir que o
posicionamento de Travassos, apesar das constantes referências a Ratzel e a Vidal de La Blache,
estava em consonância com os escritos de Camille Vallaux, que demonstrara, nas primeiras
décadas do século XX, que a estrutura de circulação de um país (interna) e o que ela projeta em
termos de fluxos (externa) manifesta uma estratégia de construção da coesão interna e de defesa
da integridade territorial – envolvendo fronteiras, infraestrutura, entre outros –, além de revelar
a projeção externa do Estado, seja na forma de cooperação ou no exercício de poder e
hegemonia regional (COSTA, 1999).
A obra de Travassos não se destaca apenas pelas importantes contribuições para
introduzir uma política territorial assentada em uma rede de transportes de escopo nacional que
promova a interconexão das regiões do país e do povoamento de porções isoladas do território.
Segundo Vlach (2013, p. 4), “paralelamente, ele mostra que a política territorial é uma das
armas mais consequentes para transformar em realidade a ambição brasileira de exercer
hegemonia na América do Sul”. Com efeito, além de debruçar-se sobre questões internas,
Travassos abordou principalmente as projeções externas de poder brasileiro, tendo importante
influência nas doutrinas estratégicas nacionais posteriores e grande repercussão em países sul-
americanos, sobretudo entre geopolíticos argentinos. “Interessa-lhe sobretudo a posição
brasileira em face do conjunto de terras e Estados sul-americanos, e especialmente a projeção
do país na região, vis-à-vis a presença e influência aí exercidas pela vizinha Argentina”
(COSTA, 2013, p. 196).
Em sua principal obra, Projeção Continental do Brasil (1935), Mário Travassos analisa
a posição política de Brasil e Argentina na região sul-americana e aponta para o papel
coordenador que o Brasil deveria desempenhar em função da dimensão e da localização de seu
território, cujo fim último consistiria em exercer hegemonia política na região. Costa (1999, p.
30) realça que a principal estratégia que Brasil e Argentina tinham para a região versava sobre
a manutenção do status quo fronteiriço e sobre uma “clara política de contenção de potenciais
ou reais movimentos de expansão da influência dos rivais históricos”. Nesse sentido, para a
verdadeira projeção continental brasileira, era imperativo implantar conexões terrestres com a
Bolívia e o Peru, países que tanto Brasil quanto Argentina buscavam atrair para sua esfera de
influência.
A formulação geopolítica de Travassos apontava para a presença de dois antagonismos
geográficos fundamentais na América do Sul, entre Atlântico e Pacífico e entre Prata e
Amazonas, os quais teriam evidentes desdobramentos geopolíticos. No que concerne à oposição
das duas vertentes continentais, a do Atlântico e a do Pacífico, o autor descreve que enquanto
o Atlântico representaria a vertente mais dinâmica, voltada para a Europa, cujas águas eram as
mais utilizadas para o comércio mundial, o Pacífico era menos aproveitado comercialmente,
sendo considerado o “mar solitário”. Assim, os países mais privilegiados geograficamente
seriam aqueles voltados para o Atlântico, Brasil e Argentina, ao passo que os países do Pacífico
estariam em relativo isolamento. O contraste entre a Bacia da Prata e a Bacia do Amazonas
dava-se a partir da dinâmica das disputas hegemônicas entre Brasil e Argentina, em que o
domínio da Bacia Platina se encontrava em vantagem argentina, sendo necessário, portanto,
neutralizar suas ações para ampliar a influência brasileira no continente. Esse processo ocorreria
por meio da aproximação com a Bolívia, cujo território era estratégico na região, tendo recebido
a denominação de “heartland” sul-americano, em uma aplicação local da teoria de Mackinder.
Dependente de outros países para ter uma saída para o mar – após tê-la perdido para o Chile
após a Guerra do Pacífico (1879-1883) – a Bolívia situava-se entre os dois antagonismos
levantados por Travassos.
O geopolítico militar reconhecia que a Argentina, além de ter uma economia mais
estruturada, estava à frente do Brasil na questão da rede de transportes. Sua política de conexões
terrestres voltava-se para as terras a montante do Rio da Prata, de modo a estender sua influência
até o Pacífico e alcançar a Bacia Amazônica. A fluidez das articulações terrestres com Chile,
Uruguai, Paraguai, Bolívia e Peru, conquistada por meio de uma vasta rede ferroviária que
intensificou a centralidade do porto de Buenos Aires e aumentou a possibilidade de
comunicação com o Pacífico, preocupava Travassos, sobretudo a ligação com o território
boliviano, uma vez que permitiria aos argentinos controlar o “heartland” sul-americano e,
consequentemente, obter a hegemonia político-econômica na região (VLACH, 2013). Ao
Brasil, portanto caberia conter a influência argentina e projetar-se para além dela, por meio de
uma rede de transportes sistematizada, que articulasse toda a potencialidade dos diferentes tipos
de transporte – fluvial, ferroviário, terrestre e aéreo – pela extensão territorial.
A partir da melhoria das vias navegáveis amazônicas, seria possível conectar a Bolívia
ao Atlântico brasileiro, em especial por meio do rio Madeira e da ferrovia Madeira-Mamoré. A
preeminência da vertente atlântica sobre a pacífica deveria superar os acidentes geográficos,
sobretudo dos Andes, que dificultavam a comunicação e o adensamento populacional no centro
da América do Sul. Na porção meridional da região, era necessário robustecer a rede de
transportes com ênfase na articulação entre Santa Cruz de la Sierra (Bolívia) e o porto de Santos,
que traria grande repercussão geopolítica, além da ponte Brasil-Paraguai e as transcontinentais
orientadas segundo os paralelos (COSTA, 2013). Travassos acreditava que a unidade
geográfica brasileira deveria ter suporte político para a consolidação do território em sua
unidade política, conectando o Atlântico ao interior do continente (TRAVASSOS, 1935). Por
fim, “fazendo eco à geopolítica do período, Travassos defende com veemência o movimento
de integração nacional em direção ao oeste” (COSTA, 2013, p. 198). Dotado o Brasil de um
sistema de articulações por meio da construção de infraestrutura adequada, seria possível
neutralizar a influência argentina no Prata e conquistar a hegemonia na América do Sul.
A análise de Travassos mostra-se pioneira no país, ao contrário das demais no período,
pois ele elaborar de uma descrição pormenorizada das condições geográficas da América do
Sul e do continente e do território brasileiro, de modo que “ele deriva daí um projeto geopolítico
que está centrado não na unidade interna strictu sensu, mas na repercussão externa do
movimento de integração interna, subordinando este àquele objetivo maior”. (COSTA, 2013, p.
198-199).
2. CONDIDERAÇÕES FINAIS
Este trabalho apresentou a contextualização da história brasileira e sul-americana nos
estertores do Império e nas primeiras décadas do século XX com o fito de proporcionar uma
compreensão mais acurada do pensamento geopolítico do General Mário Travassos. Pioneiro
nos estudos geopolíticos no país, Travassos mostrou-se um arguto observador da realidade
histórica então vigente, com participação importante em uma série de acontecimentos
marcantes da história do Brasil. A análise da sociedade brasileira em pleno processo de
transição após a Proclamação da República, caracterizado pelas mais diversas crises políticas e
econômicas da Primeira República, as transformações no seio das Forças Armadas da qual
Travassos fazia parte e a ascensão da Revolução de 1930, com um projeto de modernização e
industrialização, faz-se imperiosa para que se possa compreender as ideias subjacentes às
escritas de Travassos.
Demonstrou-se que, a partir do resgate histórico das condições políticas, econômicas,
institucionais, sociais e culturais do Brasil em momentos de transformações substanciais na
sociedade nacional, é possível apreender e assimilar as ideologias, convicções e princípios
incutidos na obra travassiana, a qual teve especial repercussão não apenas nas doutrinas
estratégicas nacionais ulteriores, como também entre os geopolíticos sul-americanos que
buscavam entender com maior rigor as pretensões hegemônicas brasileiras na região. Pode-se
inferir que Travassos estava plenamente concatenado com os fatores históricos de seu tempo,
tendo sua obra contribuído sobremaneira para episódios destacados na trajetória política
brasileira, sobretudo no projeto político pós-1930, em que a defesa da unidade política, do
desenvolvimento econômico e da defesa militar evidenciaram a sintonia entre as propostas de
Travassos e o governo Vargas, com destaque para a ambição brasileira de exercer influência
geopolítica na região.
Portanto, além de oferecer subsídios para uma interpretação das relações entre o Brasil
e os demais países da América do Sul, em especial a Argentina, com quem nutria rivalidades
históricas, e as marchas e contramarchas nas relações com os EUA, buscamos apresentar o
contexto histórico-social das décadas que antecederam e acompanharam os escritos de Mário
Travassos com o objetivo de fornecer um importante instrumento para a interpretação de suas
obras mais célebres, em especial “Projeção Continental do Brasil”, referência para os estudos
de geopolítica no Brasil.
REFERÊNCIAS
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