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O CONTRATO DE SAFRA* Luís Carlos Cândido Martins Sotero da Silva** 1. Introdução. 2. Natureza jurídica do contrato de safra. 3. O conceito jurídico de safra. 4. O contrato de safra e os períodos não contínuos. 5. O contrato coletivo de safra (proposta legislativa). 6. Conclusões. 7. Bibliografia. 1 - INTRODUÇÃO Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE, as atividades agrícolas (das quais tem se ocupado, ao longo dos anos de 1997 a 2001, a média de 16 milhões de brasileiros 1 ) produzirão, no ano de 2004, safra de 125.506 milhões de toneladas de cereais, leguminosas e oleaginosas, o que representa um aumento de 1,53% em relação à safra de 2003 2 . Nesse bom desempenho da agricultura brasileira, merece destaque a *Texto acrescentado na 2ª edição (Nota dos Coordenadores) **O Autor é Juiz Corregedor do TRT 15ª Reg., Mestre em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. 1 Informação obtida na página <http://www.ibge.gov.br/brasil_em_sintese/default.htm>. 2 Informação obtida na página <http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/29042004lspahtml.shtm>.

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“O CONTRATO DE SAFRA”*

Luís Carlos Cândido Martins Sotero da Silva**

1. Introdução. 2. Natureza jurídica do contrato de safra. 3. O conceito jurídico de safra. 4. O contrato de safra e os períodos não contínuos. 5. O contrato coletivo de safra (proposta legislativa). 6. Conclusões. 7. Bibliografia.

1 - INTRODUÇÃO

Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE, as

atividades agrícolas (das quais tem se ocupado, ao longo dos anos de 1997 a 2001, a média

de 16 milhões de brasileiros1) produzirão, no ano de 2004, safra de 125.506 milhões de

toneladas de cereais, leguminosas e oleaginosas, o que representa um aumento de 1,53%

em relação à safra de 20032.

Nesse bom desempenho da agricultura brasileira, merece destaque a

*Texto acrescentado na 2ª edição (Nota dos Coordenadores)

**O Autor é Juiz Corregedor do TRT 15ª Reg., Mestre em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. 1 Informação obtida na página <http://www.ibge.gov.br/brasil_em_sintese/default.htm>.

2 Informação obtida na página <http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/29042004lspahtml.shtm>.

2

região Nordeste (com aumento de 44,35% em relação ao ano anterior), embora ainda seja a

região Sul a responsável por 42,30% da produção nacional - a despeito da redução de sua

safra em 10,12 pontos percentuais. A região Sudeste, com crescimento de 4,5%, contribui

com 13,59% da safra brasileira.

Dentre as culturas que tiveram as maiores variações positivas de

produção em relação ao ano de 2003 estão o algodão herbáceo em caroço (com aumento de

46,88%) e o arroz em casca (com aumento de 22,01%).

No que se refere ao estado de São Paulo, o maior destaque agrícola

é, sem dúvida, a cultura de laranja (em relação à qual o Brasil é o maior produtor mundial).

No ano de 2002, a produção paulista foi responsável por 80% da produção nacional; nesse

volume, o município de Itápolis contribuiu com a safra de 705.505 toneladas de laranja - o

equivalente a 5% da produção do estado, segundo o senso realizado pelo IBGE - Diretoria de

Pesquisas, Coordenação de Agropecuária, Produção Agrícola Municipal em 2002. Segundo,

ainda, previsões e estimativas do Instituto de Economia Agrícola do Estado de São Paulo

(IEA), a segunda prévia para a safra agrícola 2003/2004 aponta para a estabilidade na área

total plantada com laranja e o aumento de produtividade, na ordem de 3,5%, podendo a

produção atingir 337,1 milhões de caixas de laranja3

A região de São Paulo ainda concentra, em seu território, culturas

como a do abacate, da banana, da borracha (latex coagulado), do café (beneficiado), do

caqui, do chá-da-Índia (folha verde), do coco-da-baía, do figo, da goiaba, do limão, da maçã,

do mamão, da manga, do maracujá, da noz (fruto seco), do palmito, da pêra, do pêssego, da

tangerina, do urucum (semente) e da uva. Destaques, dentre esses, para o café, com

3 Informação obtida na página <http://www.iea.sp.gov.br/out/producao/ps-0204-31-t.htm>

3

produção em 2002 de 280.314 toneladas (no valor de R$544.527.000,00) e para a banana,

com produção em 2002 de 1.151.600 toneladas (no valor de R$354.290.000,00)4.

Os dados da safra nacional, sobretudo da produção agrícola paulista,

revelam que o agronegócio é atividade em franca expansão, produzindo riqueza nas áreas

rurais do estado. Esse aumento da colheita está diretamente ligado aos investimentos

tecnológicos e científicos no setor - seja por meio da aquisição de modernos equipamentos,

seja pelo controle de pragas ou pelo desenvolvimento de novas técnicas de irrigação e

plantio, ou ainda em face da seleção genética de sementes e vegetais mais resistentes e

produtivos5.

A expansão da atividade econômica no campo também vem

acompanhada da geração de empregos no setor; não por outra razão que, no ano de 2002,

os postos formais de trabalho aumentaram, na agropecuária regional, de 564.153 para

578.110, segundo informações do Ministério do Trabalho e Emprego6.

Nesse sentido, é importante que o cientista social - e, sobretudo, o

intérprete e o operador do Direito - acompanhe o crescimento econômico agrícola para que,

observando a nova realidade tecnológica, contextualize as normas reguladoras das relações

rurais, em especial aquelas que regem as relações de emprego no campo.

Abre-se, assim, espaço para o estudo dos denominados “contratos

de safra” - à vista da inevitável procura por mão-de-obra que atenda às necessidades

sazonais do setor agrícola - na tentativa de se reforçar e atualizar, doutrinariamente, a

4 Informação obtida na página <http://www.ibge.gov.br>.

5 O economista pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e técnico em Contabilidade Ronald Domingues afirma que o avanço das

pesquisas química e biológica e seus reflexos na produtividade agrícola produzem o momento histórico denominado de “revolução

verde” (informação obtida na página < http://www.ronalddomingues.com/economia.php?p=perfil_rural>).

6 Informação obtida na página <http://anuariorais.datamec.com.br/index1.asp?pag=emprego>.Todavia, o Instituto de Economia Agrícola

do Estado de São Paulo (IEA) estima que a população trabalhadora em atividades agrícolas, residentes e não residentes nas unidades de

produção do estado, decresceu de 1.158.962, em junho de 2002, para 1.051.438, no mesmo período de 2003. Registrou-se, contudo, o

aumento para 1.105.922 em novembro de 2003 (informações obtidas na página <http://www.iea.sp.gov.br/out/iinfecon.htm>).

4

interpretação das normas postas, sem prejuízo da discussão de novas formas de

contratação, segundo as exigências da realidade social contemporânea.

2 - A NATUREZA JURÍDICA DO CONTRATO DE SAFRA

O contrato de safra é, nas lições de MAURÍCIO GODINHO

DELGADO7, “o pacto empregatício rural a prazo certo, cujo termo final seja fixado em função

das variações estacionais da atividade agrária”. Trata-se, portanto, de modalidade de

contrato de trabalho por prazo determinado, cuja peculiaridade está na sua dependência às

variações climáticas e à sazonalidade da atividade agrária.

Parte da doutrina identifica o contrato de safra como um tipo

autônomo de contrato a prazo, fundado no art. 14 da Lei nº 5.889/73; outros recorrem ao

genérico art. 443 da CLT - cuja aplicabilidade ao trabalhador rural encontra amparo no art. 1º

da Lei nº 5.889/738 e no art. 4º do Decreto nº 73.626/749 - que legitima a contratação

especial em face de “serviço cuja natureza ou transitoriedade justifique a predeterminação do

prazo” ou mesmo “de atividades empresariais de caráter transitório” (parágrafo segundo,

alíneas “a”, “b”). Nesse diapasão, salienta PAULO EMÍLIO RIBEIRO DE VILHENA10 que “a

doutrina, que enfrentou conceitualmente o problema do safrista, qualifica-o trabalhador

7 In Curso de Direito do Trabalho. São Paulo: LTr, 2002, 3ª tiragem, p. 536.

8 Art. 1º - “As relações de trabalho rural serão reguladas por esta Lei e, no que com ela não colidirem, pelas normas da Consolidação das

Leis do Trabalho, aprovada pelo Decreto-lei nº 5.452, de 01/05/1943.”

9 Art 4º - “Nas relações de trabalho rural aplicam-se os artigos 4º a 6º; 8º a 10; 13 a 19; 21; 25 a 29; 31 a 34; 36 a 44; 48 a 50; 62 alínea b ;

67 a 70; 74; 76; 78 e 79; 83; 84; 86; 116 a 118; 124; 126; 129 a 133; 134 alíneas a, c, d, e , e f ; 135 a 142; parágrafo único do artigo

143; 144; 147; 359; 366; 372; 377; 379; 387 a 396; 399; 402; 403; 405 caput e § 5º; 407 a 410; 414 a 427; 437; 439; 441 a 457; 458

caput e § 2º; 459 a 479; 480 caput e § 1º; 481 a 487; 489 a 504; 511 a 535; 537 a 552; 553 caput e alíneas b, c, d, e e , e §§ 1º e 2º; 554

a 562; 564 a 566; 570 caput; 601 a 603; 605 a 629; 630 caput e §§ 1º, 2º, 3º, 4º, 5º, 7º e 8º; 631 a 685; 687 a 690; 693; 694; 696; 697;

699 a 702; 707 a 721; 722 caput , alíneas b e c e §§ 1º, 2º e 3º; 723 a 725; 727 a 733; 735 a 754; 763 a 914; da Consolidação das Leis do

Trabalho, aprovada pelo Decreto-lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943; com suas alterações.” (g.n.)

10 In Relação de Emprego - Estrutura Legal e Supostos. São Paulo: LTr, 1999, 2ª edição, p. 419.

5

adventício” - e, citando ALUYSIO SAMPAIO, aloja o safreiro no âmago da relação de

emprego, situando-o na tipificação do art. 443, § 1º da CLT.

Assim, seu termo pode depender, nos moldes daquele dispositivo, da

“execução de serviços especificados” (v.g. plantio ou colheita), da “realização de certo

acontecimento suscetível de previsão aproximada” (v.g. extinção do período de safra) ou

mesmo de termo cronológico, desde que, neste caso, esteja ajustado à variação estacional

da atividade agrária11.

MELCHÍADES RODRIGUES MARTINS12 chama a atenção para a

incompatibilidade jurídica entre o contrato de safra e o contrato de experiência, na medida

em que “em sendo o contrato de safra um contrato por prazo determinado, com

características próprias, definido na Lei n. 5.889/73, não poderia, por óbvio, abrigar no seu

contexto, outro contrato de prazo determinado, no caso, o de experiência.” Do mesmo modo,

salienta que o aviso prévio - “típico instituto do contrato por prazo indeterminado” - não tem

aplicação nos contratos de safra, nos quais “as partes já sabem das suas condições e o seu

término, de forma que não se notifica ou avisa alguém daquilo que já está ciente.”

O contrato de safra não é do tipo formalístico, podendo ser ajustado

pelas partes inclusive tacitamente, consoante disposição contida no art. 442 da CLT.

Relembra MAURÍCIO GODINHO DELGADO13 que “pode ele, desse modo, provar-se através

de qualquer meio probatório lícito (art. 332, CPC)”, ressaltando o doutrinador, em seguida, a

conveniência da contratação escrita.

11 Tal é o entendimento de Maurício Godinho Delgado (in op. cit.). Também assim se posiciona a jurisprudência, consoante ilustrativo

aresto, in verbis: “CONTRATO DE SAFRA – O contrato de safra é um tipo de contrato a termo, dependendo das variações dos períodos

de colheita. O despedimento de empregado, em razão do esgotamento progressivo da lavoura produzida, não constitui motivo para

torná-lo por prazo indeterminado e onerar o contratante com os encargos daí decorrentes. Recurso parcialmente conhecido e provido.”

(TST – RR 329876 – 4ª T. – Rel. Min. Ives Gandra Martins Filho – DJU 04.02.2000 – p. 325) 12 In Contrato de Safra - Aviso Prévio e Contrato de Experiência. Incompatibilidade. Revista do Tribunal Regional do Trabalho da 15ª

Região nº 12, 2000, p. 179.

13 In op. cit., p. 537.

6

Como contrato a termo, segue o contrato de safra, no mais, todas as

disposições constitucionais e legais atinentes a essa modalidade contratual. No que tange à

dissolução do vínculo empregatício, há especial controvérsia quanto à indenização por tempo

de serviço prevista no art. 14 da Lei nº 5.889/73, que será enfrentada no capítulo 4.

3 - O CONCEITO JURÍDICO DE SAFRA

Uma das questões polêmicas que envolvem a contratação do safrista

é a definição jurídica do termo “safra” - cuja extensão irá convalidar ou não a contratação por

prazo determinado para situações que envolvam não só a colheita, mas também o preparo

da terra e a semeadura, por exemplo.

A palavra “safra” - catalogada no Dicionário Houaiss da Língua

Portuguesa14 como de origem obscura ou duvidosa - é usualmente definida como “conjunto

dos produtos agrícolas de um ano; colheita”. A Lei Federal nº 5.889, de 08 de junho de 1973

(que fixa as normas juslaborais do trabalho rural), estabelece, no seu art. 14, parágrafo único,

que contrato de safra é “o que tenha sua duração dependente de variações estacionais da

atividade agrária”, vinculando-o, portanto, à sazonalidade que qualifica a agricultura.

O Decreto Regulamentador nº 73.626, de 12 de fevereiro de 1974,

define, em seu art. 19, parágrafo único, o contrato de safra como “aquele que tenha sua

duração dependente de variações estacionais das atividades agrárias, assim entendidas as

tarefas normalmente executadas no período compreendido entre o preparo do solo para o

cultivo e a colheita.”

A “Classificação Brasileira de Ocupações” - CBO do Ministério do

Trabalho e Emprego define o safrista como espécie de trabalhador volante da agricultura

(código nº 6220-20), atribuindo-lhe, bem assim aos demais, a tarefa de colher policulturas,

14 Rio de Janeiro: Objetiva, 2001, p. 2.495.

7

derriçando café, retirando pés de feijão, leguminosas e tuberosas, batendo feixes de cereais

e sementes de flores, bem como cortando a cana. “Plantam culturas diversas, introduzindo

sementes e mudas em solo, forrando e adubando-as com cobertura vegetal. Cuidam de

propriedades rurais. Efetuam preparo de mudas e sementes através da construção de

viveiros e canteiros, cujas atividades baseiam-se no transplante e enxertia de espécies

vegetais. Realizam tratos culturais, além de preparar o solo para plantio.”

Em face das acepções do termo “safra”, surgiram duas correntes

fundamentais acerca do conceito jurídico de safra: a primeira, restritiva, que entende que o

contrato de safra compreende tão-somente a colheita agrícola, não se estendendo a outras

etapas do ciclo produtivo; a segundo, extensiva, que sustenta que o contrato de safra pode

ser firmado não apenas para a colheita em si, mas também para as atividades de preparação

do solo e semeadura, abrangendo, ainda, o período de manutenção da área cultivada até a

maturação do fruto.

Na doutrina pátria, MAURÍCIO GODINHO DELGADO15, em

referência à corrente mais liberal, assevera que:

“Contrato de safra é o pacto empregatício rural a prazo certo, cujo termo final seja fixado em função das variações estacionais da atividade agrária. (...) Embora a expressão safra reporte-se mais diretamente à de produção e colheita, tem a jurisprudência compreendido que o lapso temporal dedicado ao preparo do solo e plantio também pode dar ensejo a um regular contrato de safra. O regulamento normativo da Lei n. 5.889/73 já se encaminhava nessa direção ampliativa: referindo-se às ´variações estacionais das atividades agrárias` dispunha estarem assim englobadas ´...as tarefas normalmente executadas no período compreendido entre o preparo do solo para o cultivo e a colheita` (parágrafo único do art. 19 do Decreto n. 73.626/74; grifos acrescidos).” (g.n.)

CLÁUDIA SALLES VILELA VIANNA16 entende que “a safra

compreende, muitas vezes, o plantio imediato à colheita, o esparrame em terreiro da cultura

de café, o ajuntamento de palhas e outras atividades, não se resumindo apenas à colheita.”

8

Assim também pensa PAULO EMÍLIO RIBEIRO DE VILHENA17, ao

salientar que:

“Com o trabalho estacional dá-se a periodicidade, que é mais espaçada entre uma e outra prestação e as prestações alongam-se coincidindo com as estações do ano, o que leva à circular ´mobilidade do trabalho` (´mobilità del lavoro`). Dá-se esse trabalho em épocas próprias, a do arroteamento da terra, a do plantio, a da colheita e assim sucessivamente, o que, pela jurisprudência foi muito seqüenciado: ´Prazo determinado. Configuração. Tarefas compreendidas entre o preparo do solo e a colheita. As tarefas executadas no período compreendido entre o preparo do solo e a colheita, como o despendoamento, quebra e descasque do milho, faz configurar como sendo de safra o contrato, com determinação de prazo (art. 19, parágrafo único, do Decreto n. 73.626/74)` TRT - PR - 4ª T. RO-10862/96. Rel. Armando de Souza Couto. Conquanto o ciclo de atividades a serem desenvolvidas possa compor-se de várias e sucessivas etapas, como topicamente escandiu o acórdão acima, nada obsta a que o trabalhador pactue um contrato tendo por objeto tão-somente uma ou duas destas etapas ou então todas elas. Tais circunstâncias não desfiguram o contrato como a prazo, obra certa ou por previsão aproximada de término.” (g.n.)

Essa interpretação, entretanto, não é uníssona, encontrando divergência no

ilustrativo pensamento de ÉDSON SILVA TRINDADE18, que, restritivamente, assenta:

“Dispõe a Lei nº 5.889, de 08.06.73 (parágrafo único do art. 14), que se considera contrato de safra ´o que tenha sua duração dependente de variações estacionais da atividade agrária`. O Decreto nº 73.626, de 12.02.94, estabeleceu que se considera ´safreiro ou safrista o trabalhador que se obriga à prestação de serviços mediante contrato de safra` (art. 19) e, além de transcrever o supracitado dispositivo legal, definiu ´variações estacionais das atividades agrárias` como ´tarefas normalmente executadas no período compreendido entre o preparo do solo para o cultivo e a colheita`. A definição presente no regulamento, todavia, não pode subsistir, por modificar substancialmente o dispositivo legal que pretensamente almejou regulamentar. DE PLÁCIO E SILVA (´Vocabulário Jurídico`, Ed. Forense, 2ª ed., 1990, vol. III) esclarece o que se deve entender por safra: ´De origem ignorada, exprime o vocábulo, não somente na linguagem agrícola, o sentido de colheita, como, em outras atividades, o resultado ou a produção obtida em determinada oportunidade`. Pode-se, pois, concluir, com respaldo na autoridade de HOLANDA FERREIRA, que safreiro é ´o operário que só trabalha na época de safra`. Ora, se safra significa colheita, como exposto, não poderia o Regulamento, como fez, estabelecer que o contrato de safra previsto na Lei do Trabalho Rural se estendesse por período superior à colheita, alcançando o preparo e o cultivo. (...)

15 In op. cit., p. 536.

16 In Atividade Rural. São Paulo: LTr, 1999, p. 69.

17 In op. cit., p. 420. 18 In Contrato de Safra e a Somatória dos Períodos Descontínuos Trabalhados: Algumas Considerações. Porto Alegre: Síntese

Trabalhista, ano X, nº 119, mai-1999, p. 15.

9

Imperativo reconhecer, pois, incidentalmente, a invalidade da parte final do parágrafo único do art. 19 do Decreto nº 73.626/74 (´as tarefas normalmente executadas no período compreendido entre o preparo do solo para cultivo`), por contrariar o disposto no parágrafo único, do art. 14, da Lei nº 5.889/73. Como conseqüência, não vislumbro a possibilidade de o trabalhador ser contratado como safrista para prestar serviços consistentes no preparo do solo para o cultivo, ou no plantio propriamente dito, serviços esses, obviamente, diversos dos destinados à colheita.” (g.n.)

Sopesadas tais posições e seus respectivos argumentos, sobressalta

a superioridade da tese mais liberal, segundo a qual, em consonância com o Decreto

Regulamentador, o contrato de safra abrange não só a colheita, mas também os períodos

precedentes de preparo do solo e plantio com a qual estejam vinculados.

Cediço que as culturas agrícolas estão sujeitas a ciclos produtivos

diretamente relacionados com as estações do ano, bem assim com circunstâncias climáticas

específicas (v.g. chuvas ou seca) que qualificam o desenvolvimento e a reprodução dessas

espécies. Esses ciclos - denominados “anos agrícolas” - podem ser razoavelmente definidos

em face de certas peculiaridades das culturas, que requerem, cada qual, um tempo mínimo

para crescimento, florescimento e maturação - embora reconheça-se hodiernamente que

esses interregnos podem ser acelerados ou retardados por ação do homem ou por evento da

natureza (v.g. período prolongado de estiagem ou geadas). Entretanto, não se escapa do

fato de que o cultivo de espécies agrícolas está sujeito (e condicionado) a uma seqüência

natural de determinados acontecimentos sem os quais não se poderá falar em produção

(colheita).

Desse modo, quando se faz referência a uma determinada safra -

assim se reportando a uma produção agrícola específica (v.g. safra nacional de soja de

2003/2004) - tem-se em mente não apenas o volume daquela colheita, mas também os fatos

antecedentes que a propiciaram. Vale dizer, a idéia de colheita já traz consigo, de forma

10

associativa, a idéia de prévio preparo do solo ou de plantio como resultado de implicação

lógica inevitável.

Nesse contexto, pode-se fixar dois sentidos para a expressão “safra”:

a) SAFRA EM SENTIDO RESTRITO: quando o termo indica exclusivamente a colheita, a

produção agrícola de determinada cultura em determinado período e em certa localidade.

Quando não é época de colheita, diz-se que há entressafra;

b) SAFRA EM SENTIDO AMPLO: quando a expressão se refere a todo o ciclo produtivo

vinculado à respectiva colheita (safra em sentido restrito), englobando, portanto, suas

fases anteriores, assim entendidas o preparo do solo (arroteamento, calagem, adubação

etc.), o plantio ou a semeadura, a polinização, a manutenção da cultura (controle de

plantas daninhas e pragas, adubação, irrigação etc.) e finalmente a própria colheita.

TABELA 01 - CICLO DA SAFRA

Importante reiterar que o processo agrícola em sua totalidade -

desencadeado pelo preparo do solo e ultimado com a colheita - está sujeito a variações

PREPARO

DO

SOLO

PLANTIO

COLHEITA

CONTROLE

DE PRAGAS E

ERVAS

DANINHAS

SAFRA EM

SENTIDO

RESTRITO

SAFRA EM

SENTIDO

AMPLO

11

climáticas e estacionais, que poderão, por exemplo, antecipar ou retardar a época do plantio

de determinada cultura.

Quando a Lei Federal nº 5.889/73 estabelece, no seu art. 14,

parágrafo único, que contrato de safra é “o que tenha sua duração dependente de variações

estacionais da atividade agrária”, por óbvio está se referindo ao ciclo produtivo in totum, não

somente à colheita. Tal é a melhor exegese do permissivo legal e que foi consagrada pelo

Decreto Regulamentador nº 73.626/74 (art. 19, parágrafo único).

A sazonalidade ou estacionalidade característica do setor rural

provoca ociosidade temporária de terras, equipamentos e, principalmente, de mão-de-obra.

Assim, a exigência de manutenção de contratos de trabalho durante toda a extensão do ciclo

produtivo acarretaria desarrazoada elevação de custos financeiros da safra, majorando

desnecessariamente seu preço final. Em outras palavras, não se pode exigir que um produtor

rural mantenha um quadro permanente de trabalhadores que só serão necessários na época

da colheita - circunstância que justifica, à toda evidência, a contratação a termo.

De outro lado, restringir a vigência do pacto de safra ao período da

produção propriamente dita é desestimular a contratação de trabalhadores, em evidente

prejuízo social. Tome-se como exemplo o ciclo produtivo da mamona, que tem duração

aproximada de 180 a 240 dias (dependendo da espécie cultivada). Sua época ideal de

plantio é entre outubro e novembro, e não deve ser cultivada por mais de dois anos no

mesmo local, sendo aconselhável a rotação de culturas com milho, amendoim ou adubos

verdes19.

Nesse sentido, a contratação de trabalhadores para a calagem e a

adubação do solo, com posterior controle de pragas e doenças até final colheita (safra em

sentido amplo) se compatibiliza com a própria temporariedade da cultura, ao mesmo tempo

12

em que possibilita a ocupação de trabalhadores durante os meses precedentes à produção.

Não se pode olvidar nem se pode perder de vista, nesse instante, que “na aplicação da lei, o

juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum” (art. 5º,

LICC).

Portanto, é inafastável a conclusão de que o safrista pode ser

contratado, por tempo determinado, para execução de tarefas exclusivas de colheita; mas

nada impede que também o seja para o preparo do solo, o plantio e o trato da cultura. Aliás,

poderá sê-lo apenas para uma das fases do ciclo - sem que essa seja, necessariamente, a

colheita.

Só não se admitirá, entretanto, a manutenção do liame por prazo

determinado se, encerrada a colheita (etapa final do ciclo), a prestação de serviços

permanecer ininterrupta. Nesse hipótese, estará o trabalhador inserido em mais de um ciclo

produtivo (safra em sentido amplo), não se justificando sua contratação a termo, nos moldes

do art. 14 da Lei do Trabalho Rural, porque o contrato não estará, na espécie, relacionado às

variações estacionais da atividade agrária.20

19 Informações obtidas na página <http://www.iac.sp.gov.br/cultivares/folders/mamona/iac266(tarabay).htm>. 20 Todavia, já se decidiu em contrário, acolhendo-se a tese da possibilidade de contratação por prazo determinado para as tarefas de

colheita e esparrame de cisco (atividade posterior à safra). Assim é o ilustrativo aresto, lavrado sob a seguinte ementa: “RECURSO DE

REVISTA. TRABALHO RURAL. CONTRATO POR PRAZO DETERMINADO. Por força do disposto no art. 4º do Decreto nº

73.626/74, que regulamenta a Lei nº 5.889/73, é legal a contratação de trabalhador rural a prazo determinado. Serviços de esparramação

de cisco, subseqüentes à colheita de café, contratados em conjunto com as atividades de safra. Possibilidade. Inexistência de nulidade.

Recurso de revista de que se conhece por divergência jurisprudencial e ao qual se dá provimento.” Na ocasião, deixou assentado o

Colendo Tribunal Superior do Trabalho, em voto proferido pelo relator Min. Gelson de Azevedo, que “a tese adotada pela Corte

Regional de que os serviços de esparramação de cisco, executados subseqüentemente à colheita, ensejam a nulidade do contrato de

safra firmado entre as partes, visto que somente é possível a contratação por prazo determinado para atividades de safra, em trabalho

rural não pode prosperar, porque: a) é falsa a premissa de que somente é possível a contratação por prazo determinado, em economia

rural, para atividade de safra. O art. 4º do Decreto nº 73.626/74, que regulamenta a Lei nº 5.889/73, expressamente refere a

aplicabilidade do art. 443 da CLT às relações trabalho rural. É legal, portanto, a celebração de contrato por prazo determinado entre

empregador e trabalhador rural, independentemente de tratar-se, ou não, de contrato de safra. Desnecessário dizer que , in casu , a

pré-determinação de prazo se justifica pela natureza e transitoriedade dos serviços executados pelo Reclamante-Recorrido; b) é

existente, no contrato de trabalho legalmente celebrado entre as partes, previsão discriminada dos serviços a serem realizados,

incluindo a esparramação de cisco após a colheita. Assim, irrelevante ser tal contrato, ou não, de safra, para efeito da respectiva

eficácia nos termos e limites em que celebrado. Dou provimento ao recurso, portanto, para excluir da condenação as parcelas relativas

a aviso-prévio, reflexos do aviso- prévio nas férias e na gratificação natalina proporcional e nos depósitos do FGTS e adicional de

40% sobre o FGTS.” (TST - RR nº 457248/1998, 5ª T. - DJ - 23/05/2003)

13

4 - O CONTRATO DE SAFRA E OS PERÍODOS NÃO CONTÍNUOS

Problema comum debatido na doutrina e na jurisprudência é o da

contratação do safrista, pelo mesmo empregador, para prestação (temporária) de serviço em

períodos não contínuos.

Já se disse (capítulo 3) que se a contratação do trabalhador vigorar,

de forma ininterrupta, entre fases de ciclos produtivos distintos (safra em sentido amplo), será

de rigor o reconhecimento do vínculo por prazo indeterminado. Igual conclusão, aliás, deve

ser alcançada se as contratações forem realizadas para trabalho em períodos de safras e

entressafras sucessivas, conforme já se decidiu, in verbis:

“RECURSO DE REVISTA – ADMISSIBILIDADE – I – CONTRATOS DE SAFRAS E ENTRESSAFRAS – VALIDADE – ART. 14 DA LEI Nº 5889/73 – UNICIDADE CONTRATUAL – A prestação de serviços, não obstante a celebração de diversos contratos, restou contínua sem um único dia sequer de intervalo, estando o Apelo mais que enquadrado no Enunciado nº 20 do TST. Assim, e não tendo havido, entre um e outro contrato, ociosidade, não pode ser descaracterizada a soma dos períodos. A Revista foi conhecida, pela divergência apresentada às fls. 438 e desprovida.” (TST – RR 461374 – 5ª T. – Rel. Min. Conv. Guedes de Amorim – DJU 26.10.2001 – p. 800)

E se as contratações forem sucessivas, porém para períodos

descontínuos de safra (v.g. contrato para a colheita de 2002 e, posteriormente, para a

colheita de 2003)?

Segundo DIRCEU GALDINO21, “o legislador brasileiro acolheu a tese

do contrato único, ou seja, o período de cada safra será considerado como um contrato

distinto e independente tanto dos anteriores quanto dos posteriores, razão pela qual fixou a

indenização ao safrista em cada término de safra.” Invocando o art. 453 da CLT, conclui:”

tendo o empregado recebido a indenização legal, mesmo em sendo contratado para safras

posteriores, o período anterior, pelo qual recebeu a indenização anterior, não será

21 In op. cit., p. 70.

14

computado como tempo de serviço. Cada contrato terá vida nova do safrista perante o

empregador.”

Definida a natureza jurídica do contrato de safra como um contrato

por prazo determinado, é certo que a questão ora em debate deve ser perquirida à vista do

mencionado art. 453 do Consolidado, que prescreve que “no tempo de serviço do

empregado, quando readmitido, serão computados os períodos, ainda que não contínuos, em

que tiver trabalhado anteriormente na empresa, salvo se houver sido despedido por falta

grave, recebido indenização legal ou se aposentado espontaneamente.” (g.n.) Cumpre

ressaltar que tal dispositivo é expressamente aplicável ao trabalhador rural, à vista da norma

contida no art. 4º do Decreto nº 73.626/74.

Nesse sentido, se o safrista, ao final do interregno de contratação,

receber a indenização que lhe seja devida por força de lei, não haverá que se cogitar em

unicidade contratual mesmo que venha a ser recontratado para novo período de safra -

desde que, como já salientado, não se trate de períodos contínuos. Assim já se pronunciou o

Colendo Tribunal Superior do Trabalho, segundo ilustrativo aresto, in verbis:

“PRODUÇÃO POR SAFRA – UNICIDADE CONTRATUAL – O contrato de safra é aquele que tem sua duração dependente de variações estacionais da atividade agrária, consoante o disposto no art. 14, parágrafo único, da Lei nº 5889/73. Nessa modalidade de contrato o empregado que produz por safra obriga-se à prestação de serviços apenas durante o período da safra, compreendido entre o preparo do solo para o cultivo e a colheita. Não se aplica a esta espécie de contratos a contagem de períodos descontínuos de que trata o art. 453 do Estatuto Consolidado, não cabendo falar em unicidade contratual, sendo o empregado indenizado ao fim de cada contrato, que coincide com o término da safra. Recurso de revista a que se dá parcial provimento.” (TST – RR 499168 – 5ª T. – Rel. Min. Gelson de Azevedo – DJU 19.04.2002)

Portanto, tendo sido paga ao safrista a devida indenização rescisória,

não há que se cogitar em unicidade contratual, caso venha a ser novamente contratado para

outro período de safra. Todavia, em que consiste essa indenização rescisória?

15

A controvérsia se instaura particularmente em face da regra contida

no art. 14 da Lei do Trabalho Rural, que estabelece que “expirado normalmente o contrato, a

empresa pagará ao safrista, a título de indenização do tempo de serviço, importância

correspondente a 1/12 (um doze avos) do salário mensal, por mês de serviço ou fração

superior a 14 (quatorze) dias.” Assim também o art. 20 do Decreto nº 73.626/74, que

confirma o dispositivo legal em apreço, com idêntica redação.

Do confronto da indenização em debate com o direito constitucional

ao FGTS, surgiram duas correntes acerca do tema, como salienta MAURÍCIO GODINHO

DELGADO22, in verbis:

“Duas posições existem a esse respeito. A primeira, sustentando que a norma constitucional citada teria revogado todas as indenizações por tempo de serviço existentes, desde a do art. 477, caput, da CLT, até a do empregado safrista. A segunda posição entende que a indenização do contrato de safra (que é contrato a termo) não se confunde com a indenização tradicional da CLT, que era inerente apenas a contratos sem prazo fixo. Esta última é que teria sido revogada pela Constituição, que previa, em seu art. 7º, I, ´relação de emprego protegida contra despedida arbitrária ou sem justa causa...`. Ora, o texto constitucional dirigir-se-ia apenas aos contratos por tempo indeterminado, por não se cogitar, em regra, de garantia de emprego em contrato a termo, o comando constitucional não estaria dirigido, pois, às regras dos contratos a termo existentes no Direito brasileiro.”

ALICE MONTEIRO DE BARROS23 salienta que “a Constituição

Federal de 1988, ao assegurar ao safrista o FGTS, retirou-lhe a indenização por duodécimos

em período concomitante. Logo, terminado o contrato de safra, defere-se o levantamento da

conta vinculada e não a indenização em duodécimos.”

Entretanto, o Colendo Tribunal Superior do Trabalho, apreciando a

questão, já se pronunciou, por intermédio da sua Segunda Turma, pela compatibilidade da

indenização do art. 14 da Lei nº 5.889/73 com o regime do FGTS, consoante ilustrativa

ementa decisória, in verbis:

22 In op. cit., p. 537-538.

16

“CONTRATO DE SAFRA – INDENIZAÇÃO AO TÉRMINO DO CONTRATO (ART. 14 DA LEI Nº 5889/73) – FGTS. COMPATIBILIDADE. No contrato de safra, a dualidade de regimes corresponde a um plus concedido ao safrista em face da própria temporariedade do aludido contrato, não havendo que se falar em bis in idem ao empregador rural. Recurso de revista não conhecido.” (TST – RR 557977 – 2ª T. – Rel. Min. Conv. Aloysio Corrêa da Veiga – DJU 14.12.2001)

Quer nos parecer, contudo, que a indenização ao safrista, estampada

na Lei do Trabalho Rural, não encontra mais guarida no ordenamento jurídico pátrio. A bem

da verdade, privilegiou-se, no caso em exame, o critério hierárquico sobre o especial, uma

vez que se fez prevalecer a norma constitucional sobre a lei específica (Lei nº 5.889/73).

Nesse contexto, oportuna a referência às lições de MARIA HELENA

DINIZ24, que assim ressalta:

“Com a implantação da nova Carta, ante sua supremacia, ter-se-á a subordinação da ordem jurídica aos novos preceitos. Deve haver compatibilidade de um dispositivo legal com a norma constitucional. Havendo contradição entre qualquer norma preexistente e preceito constitucional, esta deve, dentro do sistema, ser aferida com rigor, pois é indubitável o efeito ab-rogativo da Constituição Federal sobre todas as normas e atos normativos que com ela conflitarem. As normas conflitantes ficam imediatamente revogadas na data da promulgação da nova Carta, não sendo nem mesmo necessárias quaisquer cláusulas expressas de revogação. Tal ocorre porque, com a promulgação da Lei Maior, cria-se uma nova ordem jurídica, à qual devem ajustar-se todas as normas, sejam elas gerais ou individuais.”

Considerando-se que anteriormente à Carta Republicana de 1988

não era conferido aos trabalhadores rurais o direito ao FGTS (nada obstante o art. 20 da Lei

do Rural dispusesse sobre o assunto, jamais tendo sido ele efetivado mediante lei

específica), justificava-se a indenização do art. 14 da Lei nº 5.889/73. Com o atual sistema,

porém, não há mais o porquê de seu recebimento.

Assim, não subsiste, hodiernamente, o direito do trabalhador safrista

ao recebimento da indenização rescisória em comento.

23 In op. cit., p. 371. 24 In Norma Constitucional e seus Efeitos. São Paulo: Saraiva, 3ª ed., 1997, p. 46.

17

Nesse passo, expirado normalmente o contrato de safra, o

empregado fará jus: salário/saldo de salário; 13º salário proporcional e férias proporcionais

acrescidas de um terço, sendo autorizado a levantar os depósitos do FGTS.

Na hipótese do contrato ser rescindido antes do seu termo final, por

iniciativa do empregador, sem justa causa, receberá ainda uma indenização equivalente à

metade do valor a que teria direito até o fim do contrato de safra, por inteligência do art. 479

da CLT.

Se o rompimento se der por iniciativa do obreiro, este terá a receber

o saldo de salários e o 13º salário proporcional, nada mais. Além do que, o empregador terá

direito de receber dele indenização pertinente aos eventuais prejuízos que decorrerem do

rompimento antecipado, respeitado, como limite, o valor da indenização a que teria direito o

empregado.

Derradeiramente, cabe consignar que a descontinuidade da

prestação de serviços (como pressuposto à validade dos contratos de safra) está sujeita à

verificação em concreto, impondo-se o pronunciamento da unicidade contratual se

caracterizada a fraude ou a simulação resilitória. A jurisprudência já se manifestou a respeito:

“CONTRATOS DE SAFRA – INTERREGNO ÍNFIMO ENTRE UM CONTRATO E OUTRO – NULIDADE – APLICAÇÃO DO ART. 9º DA CLT – Somente nos casos expressos do art. 453 da CLT e no caso de safra, para os rurícolas, é que o contrato por termo certo é válido e eficaz. No caso, porém, de interregno ínfimo entre um contrato e outro, resta claro que não se cuida de contrato de safra. Assim, há de se reconhecer a nulidade dos contratos firmados, nos termos do art. 9º da CLT, devendo ser considerado como contrato por prazo indeterminado.” (TRT 15ª R. – RO 4.315/2000 – Rel. Juiz Luís Carlos Cândido Martins Sotero da Silva – DOESP 14.01.2002)

5 - O CONTRATO COLETIVO DE SAFRA (PROPOSTA LEGISLATIVA)

O Congresso Nacional discute, desde 26 de outubro de 2000, projeto

de lei apresentado pelo então deputado José Carlos Martinez (PTB/PR) destinado a alterar a

18

Lei do Trabalho Rural (nº 5.889/73), a fim de, dentre outras coisas, instituir o denominado

“contrato coletivo de safra”. A original proposta parlamentar foi assim redigida:

PROJETO DE LEI Nº 3.685, DE 2000 (Do Sr. José Carlos Martinez)

Altera a Lei nº 5.889, de 8 de junho de 1973, que “estatui normas reguladoras do trabalho rural e dá outras providências”, instituindo o condomínio de empregadores rurais e o contrato coletivo de safra. (...) Art. 3º A Lei nº 5.889, de 8 de junho de 1973, passa a vigorar acrescida dos seguintes artigos: “Art. 14-A. O empregador rural poderá celebrar contrato coletivo de safra, assim entendido o contrato firmado com mais de um empregado, com a intermediação do sindicato, mediante autorização em acordo com convenção coletiva de trabalho, para um período máximo de 29 (vinte e nove) dias. § 1º A relação de trabalho decorrente do contrato coletivo de safra tem caráter individual e obriga o contratante a fornecer cópia do contrato a cada empregado. § 2º A anotação da Carteira de Trabalho e Previdência Social - CTPS, poderá ser dispensada, desde que prevista em acordo ou convenção coletiva, sendo assegurados os direitos trabalhistas e previdenciários. § 3º A contratação de trabalhadores por intermédio de contrato coletivo de safra obriga o empregador a efetuar a homologação de todas as rescisões contratuais, independentemente da duração dos serviços prestados, sempre com a assistência da entidade sindical representativa dos trabalhadores. § 4º O contrato coletivo de safra, obriga o empregador a efetuar o pagamento dos direitos trabalhistas no ato da homologação da rescisão contratual, proporcionalmente aos dias trabalhados. § 5º O empregador rural deverá informar ao Instituto Nacional do Seguro Social - INSS sobre os fatos geradores de contribuições previdenciárias decorrentes do contrato celebrado na forma deste artigo, de acordo com o inciso IV do artigo 32 da Lei nº 8.212, de 24 de julho de 1991. § 6º O contrato coletivo conterá, necessariamente, a identificação das partes, a especificação do serviço a ser prestado, as cotas de produção, o salário e o prazo de duração do início e de término. § 7º O contrato coletivo de safra passará a vigorar sem determinação de prazo, desde a data da admissão, quando: I - o empregado desempenhar atividades diversas daquelas para as quais foi contratado. II - o prazo de duração do serviço prestado ao mesmo empregador, na mesma safra, com ou sem prorrogação, exceder a vinte e nove dias. (...)

Na sua justificativa, o deputado ressalta que o objetivo da proposta é

“trazer novas opções de contratação, além de incrementar a formalização dos contratos de

trabalho já existentes.”

O projeto seguiu originalmente para a Comissão de Agricultura,

Pecuária, Abastecimento e Desenvolvimento Rural - CAPADR, tendo sido designado relator o

19

deputado Nelson Meurer (PPB/PR), que, em seu relatório, opinou pela aprovação do projeto

na forma do substitutivo ora transcrito:

SUBSTITUTIVO AO PL Nº 3.685, DE 2000

Altera a Lei nº 5.889, de 8 de junho de 1973, que “estatui normas reguladoras do trabalho rural e dá outras providências”, instituindo o condomínio de empregadores rurais e o contrato coletivo de safra. (...) Art. 2o A Lei no 5.889, de 8 de junho de 1973, passa a vigorar com o seguinte texto e acrescida de parágrafos: “ Art. 14-A O empregador rural poderá celebrar contrato coletivo de safra, assim entendido o contrato firmado com mais de um empregado, com a intermediação do sindicato, mediante autorização em acordo com convenção coletiva de trabalho.

§ 1o A relação de trabalho decorrente do contrato coletivo de safra tem caráter individual e obriga o contratante a fornecer cópia do contrato a cada empregado.

§ 2o A anotação da Carteira de Trabalho e Previdência Social – CTPS poderá ser dispensada, desde que prevista em acordo ou convenção coletiva, sendo assegurados os direitos trabalhistas e previdenciários.

§ 3o A contratação de trabalhadores por intermédio de contrato coletivo de safra obriga o empregador a efetuar a homologação de todas as rescisões contratuais, independentemente da duração dos serviços prestados, sempre com a assistência da entidade sindical representativa dos trabalhadores rurais.

§ 4o O contrato coletivo de safra, obriga o empregador a efetuar o pagamento dos direitos trabalhistas no ato da homologação da rescisão contratual, proporcionalmente aos dias trabalhados.

§ 5o O empregador rural deverá informar ao Instituto Nacional do Seguro Social – INSS sobre os fatos geradores de contribuições previdenciárias decorrentes do contrato celebrado na forma deste artigo, de acordo com o inciso IV do artigo 32 da Lei no 8.212, de 24 de julho e 1991.

§ 6o O contrato coletivo conterá, necessariamente, a identificação das partes, a especificação do serviço a ser prestado, as cotas de produção, o salário e o período previsto para a safra.”(NR (...)

O deputado federal Nilson Mourão (PT/AC) apresentou emenda ao

substitutivo, argüindo a inconstitucionalidade do projeto no que tange à dispensa de anotação

do contrato de trabalho em CTPS. A proposta, com substitutivo, foi então aprovada pela

Comissão de Agricultura e Política Rural em 12 de dezembro de 2001, rejeitando-se as

emendas.

Em seqüência, o projeto foi enviado à Comissão de Trabalho, de

Administração e Serviço Público - CTASP, tendo sido apresentada emenda pelo deputado

20

Ricardo Barros (PPB/PR), a fim de suprimir do texto do projeto o prazo máximo de

contratação por 29 dias. Deixou o parlamentar assentado que esse limite temporal “não

atende e a nenhum tipo de cultivo agrícola”, pois “os prazos de safra mostram-se bastante

superior, variando de 120 (cento e vinte) a 180 (cento e oitenta) dias.”

O projeto foi arquivado em 31 de janeiro de 2003 e desarquivado em

25 de março daquele ano, quando então seguiu sua tramitação pela CTASP, com última

designação de relator, em 03 de junho de 2003, do deputado Carlos Santana (PT/RJ).

RICARDO TADEU MARQUES DA FONSECA25, analisando a

proposta em tela, inclusive sob o aspecto da dispensa de anotação do contrato de trabalho

em CTPS, considera a iniciativa “instigante, uma vez que a simplificação de procedimentos

estimulará a formalização dos contratos.”

A questão, entretanto, deve ser analisada com maior cautela. A idéia

da contratação de trabalhadores “com a intermediação do sindicato”, tal qual pensada,

transforma a entidade sindical em órgão meramente arregimentador de mão de obra,

afastando-lhe assim dos seus objetivos primários de representação da classe profissional,

em situação de duvidosa constitucionalidade26. Em situação análoga - porém no mesmo

trilhar - pronunciou-se o Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região, em decisão unânime

exarada por sua 6ª Turma (11ª Câmara), nos autos do Proc. TRT/15ª Região nº 000358-

2002-061-15-00-0 ROPS (23.440/2003), em que figuraram como recorrentes Spaipa S/A -

Indústria Brasileira de Bebidas e Benedito Alves Pereira e como recorrido Sindicato dos

Trabalhadores na Movimentação de Mercadorias em Geral e dos Estivadores e Capatazes

25 In Modalidades de Contratação no Meio Rural e o Consórcio de Empregadores, Suplemento Trabalhista nº 17/01, São Paulo: LTr,

2001, p. 99.

26 O art. 8º, inciso III da Carta Magna atribui ao sindicato “a defesa dos direitos e interesses coletivos ou individuais da categoria,

inclusive em questões judiciais ou administrativas”, do que se infere a institucional parcialidade desse ente diante da coletividade que

representa. A angariação de mão-de-obra, como é cediço, é tarefa exclusiva do empregador, não podendo a lei ordinária transferi-la para

o sindicato profissional, em evidente fragilização de sua condição de defensor da classe obreira.

21

de Araçatuba, tendo como relator o juiz Jorge Luiz Souto Maior que, em seu voto condutor,

deixou assentado:

“(...) Vale a pena lembrar, que com a promulgação da Constituição de 88, houve a equiparação do trabalhador avulso ao empregado, no que se refere aos direitos trabalhistas, o que culminou com a edição da Lei n. 8.630/93, que revogou os dispositivos da CLT referentes ao trabalho na estiva e hoje regulamenta a matéria. A Lei n. 8.630/93 adaptou a legislação brasileira ao texto da Convenção n. 137, da OIT, que trata dos métodos de processamento de carga nos portos, bem como disciplina a situação dos trabalhadores que possuem como principal atividade o labor portuário e uma das principais mudanças impostas pela legislação vigente, diz respeito ao controle que anteriormente era exercido pelos sindicatos no que tange à administração e distribuição de mão-de-obra nos portos e agora passa a ser exercido pelo Órgão Gestor de Mão-de-obra, que administra o fornecimento de mão-de-obra do trabalhador portuário e do trabalhador portuário avulso, mantendo cadastros e registros de forma exclusiva e direcionando a distribuição dos trabalhadores em relação às vagas registradas, além da fiscalização do trabalho e aplicação de normas disciplinares previstas em lei.

Sob o prisma da ordem jurídica vigente, corrigiu-se equívoco da legislação

anterior, que permitia a sindicato intermediar mão-de-obra. Os sindicatos,

historicamente, são representantes dos trabalhadores na luta por melhores

condições de trabalho perante o capital. Não são, e não podem ser,

agenciadores de mão-de-obra, com exercício de atividade típica do poder

econômico. Isto lhe desnatura na essência e depõe contra o movimento

sindical brasileiro. (...)” (destaque do original)

De outro turno, entendemos despicienda a necessidade de

autorização em acordo ou convenção coletiva de trabalho para validade da contratação em

debate: ora, se o contrato coletivo de safra deve ser feito por intermédio do sindicato (por

isso “coletivo”), essa intervenção sindical na raiz da contratação já supre qualquer omissão

em norma coletiva pretérita, pois se estará convencionando in concreto aquilo que o projeto

de lei, por si só, já autoriza.

Outra crítica à proposta legislativa é a previsão de limite temporal

máximo de 29 (vinte e nove) dias para essa modalidade contratual. Esse teto se afasta, à

toda evidência, das exigências da realidade agrária: primeiro, porque os ciclos produtivos da

maioria das culturas ultrapassam em muito esse prazo; segundo, porque é ínsito ao contrato

de safra a indeterminação do seu termo, que estará sujeito às variações estacionais da

atividade agrícola (art. 14, Lei nº 5.889/73).

22

A dispensa da anotação do contrato de trabalho em CTPS, por sua

vez, colide com o sistema jurídico em vigor, mormente com o art. 29 da Consolidação das

Leis do Trabalho. Aliás, sendo necessária a contratação coletiva de safra por escrito

(exegese dos parágrafos 1º e 6º do art. 14-A), não há motivo para a isenção do procedimento

preconizado pela CLT. Ressalte-se que a falta de interesse do trabalhador por anotações de

curto prazo não pode se sobrepor à regra de ordem pública, consubstanciada na segurança

jurídica da prova eficaz do vínculo empregatício.

Essas são as considerações ao projeto em debate no Congresso

Nacional.

6. - CONCLUSÕES

Analisadas as diversas questões relativas ao contrato de safra,

segundo sua disciplina legal e pretoriana, exsurgem as seguintes conclusões temáticas:

1) O contrato de safra, previsto no art. 14 da Lei nº 5.889/73 é uma modalidade de contrato

de trabalho por prazo determinado (art. 443, CLT), cuja vigência está vinculada às

variações estacionais da atividade agrária.

2) É incompatível com o contrato de safra o pacto de experiência ou o instituto do aviso

prévio, aplicando-se-lhe, no mais, as disposições constitucionais e legais que regem a

contratação a termo.

3) O termo safra, contemplado no art. 14, parágrafo único da Lei nº 5.889/73 e no art. 19,

parágrafo único do Decreto Regulamentador nº 73.626/74, deve ser entendido no seu

sentido amplo, assim se referindo a todo o ciclo produtivo - v.g. preparo do solo

(arroteamento, calagem, adubação etc.), plantio ou semeadura, polinização ou

manutenção da cultura (controle de pragas, adubação, irrigação, etc.) - vinculado à

respectiva colheita (safra em sentido restrito).

23

4) É lícita a contratação do safrista - por prazo determinado, nos moldes do art. 14, parágrafo

único da Lei nº 5.889/73 - para a prestação de serviços em uma ou em várias fases do

ciclo produtivo agrícola (sem que essa seja, necessariamente, a colheita).

5) É ilícita a manutenção ininterrupta do contrato de safra por mais de um ciclo produtivo

agrícola, transmudando-se o pacto, nessa hipótese, para contrato de trabalho por prazo

indeterminado.

6) A recontratação do safrista para a prestação de serviços, em períodos descontínuos, ao

mesmo empregador não implica unicidade contratual, desde que tenha sido o obreiro

devidamente indenizado ao término do primeiro pacto, ou nas demais hipóteses do art.

453 da CLT.

7) A indenização do art. 14 da Lei nº 5.889/73 é incompatível com o regime constitucional do

FGTS.

8)

7. BIBLIOGRAFIA

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Consórcio de Empregadores. Suplemento Trabalhista nº 17/01, São Paulo: LTr, 2001.

24

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Paulo: LTr, 2ª edição, 1999.