o dandismo de dois filmes contemporâneos dandyism in two
TRANSCRIPT
O dandismo de dois filmes contemporâneos
Dandyism in two contemporary films
André Antônio Barbosa 1
Resumo: Através da análise comparativa das mise-en-scènes de dois longas-metragens de 2014 – "Os Maias", de João Botelho (Portugal) e "Saint Laurent", de Bertrand Bonello (França) – este ensaio propõe o dandismo como chave de leitura para se compreender um caminho estético novo que o cinema contemporâneo tem tomado no contexto da sociedade de controle. Com a canonização e o engessamento, no campo institucional do cinema independente, da estética revolucionária modernista do “real”, vários cineastas tem experimentado uma configuração formal que poderia ser descrita como “dândi”: esteticista, agradável, artificial, irônica, lúdica e fria. Quais as implicações desse tipo de experiência estética? As hipóteses aqui expressas integram minha pesquisa mais ampla de doutorado sobre este tipo novo e recente de cinema.
Palavra chave: Artifício, Dandismo, Esteticismo, Frieza
Abstract: Through a comparative analysis of the mise-en-scènes of two 2014 films – João Botelho’s "Os Maias" and Bertrand Bonello’s "Saint Laurent" – this paper proposes dandyism as a reading key to understanding a new aesthetics that informs contemporary cinema in the context of control society; a formal setting that could be described as “dandy”: aestheticist, artificial, wit, playful and cold.
Keywords: Aestheticism, Artifice, Coldness, Dandyism
“O dandismo tomou muitas formas. Algumas estão tão disfarçadas que demandam decodificação. Seus efeitos
na arte, na literatura e na vida ainda estão conosco” Nigel Rodgers
Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação
www.compos.org.br - nº do documento: 349A3F88-C122-43B1-BDC8-D46375826A33Page 1
Figurinos extravagantes, cenografias luxuosas, cores prazerosas e, no centro desse estado
de coisas, o mais frívolo dos personagens: o dândi. Nada poderia destoar mais da estética
privilegiada nos últimos anos pelo cinema contemporâneo (isto é, pelas críticas publicadas, pelas
pesquisas e estudos feitos nas universidades e pela seleção e premiação de festivais). Estética cuja
força apoiou-se numa renovação da crença bazaniana no austero, na candura redentora do “real” e
na resistência heroica que personagens “simples”, cotidianos e banais apresentam contra o domínio
desumano do capital. De maneira curiosa, porém, dois longas-metragens de 2014 encaixam-se
completamente na descrição com a qual começo este ensaio: Os Maias: cenas da vida romântica
(Portugal) e Saint Laurent (França). Meu objetivo aqui é, muito mais que analisar o modo com que
cada um dos dois filmes aborda o dândi, perguntar de quê esse interesse renovado pelo personagem
é sintoma. Minha hipótese é que o dândi é mais que uma figura que pode protagonizar o enredo de
filmes recentes: é a cifra de uma estética cinematográfica nova, que encontra seus caminhos através
do esgotamento do já por demais canonizado “cinema do real”.
O dândi e o dandismo
A maioria dos escritos sobre o dândi aos quais pude ter acesso remete ao inglês George
Brummell (1778-1840) como o início do fenômeno: o primeiro dândi (a exceção é Baudelaire, que
afirma que o dandismo é uma instituição “antiga, pois dela César, Catilina, Alcibíades nos dão
exemplos impressionantes” [BAUDELAIRE, 2010, p. 62]). Significativa e constantemente referido
como “Beau” Brummell, ele foi considerado pelos seus admiradores o homem mais elegante de sua
época. O fascínio que Brummell exercia consistia em uma peculiar reunião de características: seu
modo impecavelmente sofisticado de se vestir tinha como único fim sua própria frivolidade – numa
espécie de “arte pela arte” da moda – ao contrário dos “homens de negócio” burgueses de que se
distanciava, os quais seguiam de maneira cega as regras do vestuário masculino apenas como
forma de aumentar seu status. Brummell também possuía um humor irônico permanente, ou wit –
isto é, com frequência tornava importantes coisas irrelevantes e descartava com um tédio mortal o
que os costumes burgueses consideravam moralmente valioso (é conhecida a pergunta que fez,
com uma expressão blasé, a seu criado quando ambos chegaram diante de uma belíssima paisagem
com lagos: “Robinson, qual dos lagos eu prefiro?”) – e isso concedia uma frieza estranha e inédita
à sua elegância e polidez. É como se aquele homem extremamente bem vestido, cortês e gentil
tivesse, paradoxalmente, a fragilidade superficial, inócua e cadavérica de uma máscara ou de um
Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação
www.compos.org.br - nº do documento: 349A3F88-C122-43B1-BDC8-D46375826A33Page 2
artifício em constante e infinita mutação:
Ele [Brummell] chegou ao mínimo do wit, conseguindo levá-lo, com felicidade ou dor, a um ponto quase invisível. Todos os seus bons mots fundam-se em uma única circunstância, a exageração dos mais puros disparates em negócios importantes... o seu significado é tão atenuado que “nada vive” entre estes e o não-sentido: estes ficam suspensos à beira do vazio, e na sua sombreada composição estão muito perto da nulidade... A sua arte consiste de fato em escavar algo do nada (HAZLITT apud AGAMBEN, 2007, p. 89).
A vida ostensivamente hedonista que Brummell levava – só saía de casa depois que
o sol se punha não apenas por acordar demasiado tarde, mas por gastar horas intermináveis em sua
toalete para passar a noite impressionando repetidamente salões, clubes, encontros, eventos, festas
e bailes – poderia parecer, no mínimo, irrelevante para qualquer discussão “séria” sobre arte. Não
fosse o fascínio notável que ele exerceu sobre gerações de escritores e intelectuais, tornando-se
personagem de obras literárias e objeto de análises e especulações filosóficas.
Na verdade, é possível afirmar que existe uma tradição de pensamento que
enxergou em Brummell algo de crucial para a vida nas sociedades modernas, algo que precisava
ser compreendido e cultivado. Assim, quando se fala que existiu o “dândi” é preciso também falar
que existiu o “dandismo”: embora Brummell não fosse um “intelectual” ou um “artista”, vários
artistas e intelectuais transformaram seu modo de vida numa espécie de paradigma estético. O que
estava em jogo em Brummell não era a excentricidade de um só homem em particular, mas a
possibilidade de uma nova forma de vida, uma nova maneira de se relacionar com o mundo: “A
homens que haviam perdido a desenvoltura, o dandy, que transforma a elegância e o supérfluo na
própria razão de viver, ensina a possibilidade de uma nova relação com as coisas” (AGAMBEN,
2007, p. 82). Ou, como afirmou Nigel Rodgers, “...não era dinheiro, posições ou poder. Essas
coisas podiam ser encontradas em outros lugares. Brummell oferecia algo muito mais encantador:
um exemplo de como viver” (2012, tradução minha, cap. 2).
Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação
www.compos.org.br - nº do documento: 349A3F88-C122-43B1-BDC8-D46375826A33Page 3
Baudelaire foi um dos primeiros a fazer a “transição” do dândi enquanto um
indivíduo específico (Brummell ou outro) às potencialidades mais gerais do dandismo, que ele
enxergou (2010) como uma espécie de religião para iniciados que pode estar presente em vários
contextos e culturas (“Chateaubriand descobre-a nas florestas e às margens dos lagos do Novo
Mundo” [BAUDELAIRE, 2010, p. 62]). Sobretudo, para Baudelaire, o dandismo era uma espécie
de atitude radicalmente oposta aos valores burgueses e à insipidez da sociedade capitalista
industrial, “o último rasgo de heroísmo nas decadências” (idem, p. 66):
A crítica capitalista de Baudelaire será crucial para desenhar o nascimento de um novo dandismo, mais ideológico e intelectual que o exercido por Brummell (...) Há um dandismo de Brummell como há um dandismo de Baudelaire. Mas ainda, a dificuldade se agudiza por ser, o dandismo, uma instituição situada nas fronteiras entre a história das condutas e a literatura, entre um personagem do século XIX e um tipo universal (SUTHERLAND, 2011, tradução minha, p. 18-19).
É interessante notar que esse caráter de “rebeldia” do dandismo contra o mundo
burguês é uma constante nos escritos sobre o tema. O que suscita a dúvida de por que o universo
dândi ficou tão marginalizado na história – tão sensível às conexões entre estética e política – do
modernismo ao longo do século XX. De fato, obras com tendências “dândis”, como as de Proust na
literatura ou as de Visconti no cinema, sempre fizeram parte do “cânone” sem, porém, nunca
conseguirem ser suas peças mais emblemáticas ou representativas. A frivolidade radical do dândi,
na maior parte dos textos sobre o tema, é entendida como uma potência que corrói as hierarquias e
partilhas que sustentam os valores burgueses. O dândi põe em cheque o que é sério e o que é
irrelevante, embaralha o que é considerado produtivo e inútil pela ordem econômica e social:
...[os dândis] desprezaram o dinheiro e louvaram com elegância e rigor a beleza da “arte do inútil”, imaginário cultivado onde entrarão os mestres do ócio, criadores, artistas, escritores, músicos, poetas e pintores, que em meio à ascensão e desenvolvimento da burguesia se dedicaram a trabalhos contra-produtivos ou diretamente em franco desdém pelo trabalho “produtivo” e “útil” (SUTHERLAND, 2011, p. 18).
Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação
www.compos.org.br - nº do documento: 349A3F88-C122-43B1-BDC8-D46375826A33Page 4
Como coloca Juan Pablo Sutherland, o dandismo é composto por “personagens, auras e
agudas frivolidades que interrogam a própria cultura burguesa” (idem, p. 15); isto é: “Vaidade,
frivolidade, futilidade, fatuidade são os termos que melhor descrevem a singular rebeldia que
expõe o dandismo frente à razão utilitarista da ordem capitalista” (BERNABÉ apud
SUTHERLAND, 2011, p. 25). Talvez, porém, o dândi comportasse uma ambiguidade que a
urgência do modernismo não tinha interesse de ruminar: “O dândi, superficial em seu orgulho de
pavão mas profundo em seu desafio ao mundo comercial, permanece um enigma. É ele um
aristocrata ou um democrata? Ou um aristocrata e um democrata?” (RODGERS, 2012, cap. 1).
Mas se a rebeldia do dândi – ou do dandismo – consistia numa espécie de
radicalismo da frivolidade e do inútil, ele fatalmente deveria ser marginalizado dos recortes
sensíveis que o modernismo construiu para a arte ao longo do século XX. A elegância lânguida do
dândi, por mais que incomodasse a ordem estabelecida, era demasiado diferente das convocações
para o “despertar” e para a “ação” caras à sensibilidade revolucionária do modernismo. O gosto
dândi pelo decorativo e pela moda não estava incluso no horizonte utópico modernista, que
almejada destruir o mundo artificial das mercadorias capitalistas. Pelo contrário, “Ao invés de fugir
do mundo industrial democrático, como a maioria dos românticos fez, o dândi o confrontou. Ele
tentou recriar uma elite pré-revolucionária – uma elite estética – num mundo pós-revolucionário,
saindo aos bulevares para impressionar e inspirar” (Idem).
Mas, no momento em que a sensibilidade política modernista, no cinema, parece
atingir um cansaço renovado, um engessamento ou canonização frente ao contexto cambiante e
cooptador da sociedade de controle, a fleuma paradoxal, ambígua e complexa do dândi, como um
sintoma recalcado que retorna, parece nos assombrar com uma força renovada nos dois filmes que
abordarei aqui. Seria o dandismo uma configuração estética interessante para compreender melhor
os caminhos que o cinema atual mais instigante tem tomado? Quando assisti a Os Maias no
Festival do Rio 2014 – significativamente porque os ingressos para o cânone absoluto do cinema
independente contemporâneo, Pedro Costa, haviam se esgotado – as cores, os personagens e os
figurinos do filme me trouxeram instantaneamente à memória a célebre pintura de Boldini do
Conde Montesquiou, o homem em que Proust se inspirou na construção de um dos principais
dândis da Recherche, o Barão de Charlus:
Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação
www.compos.org.br - nº do documento: 349A3F88-C122-43B1-BDC8-D46375826A33Page 5
Img 1 - Giovanni Boldini, "Conde Robert de Montesquiou", 1897
Decidi pôr a pintura neste ensaio acompanhando os frames dos dois filmes para formar uma
espécie de constelação de semelhanças visuais que fulguram entre as imagens e potencializam as
hipóteses traçadas, à maneira de um mural warburguiano através do qual é possível acompanhar os
rastros e sobrevivências de uma cifra cujo significado é preciso desvendar.
Duas mise-en-scènes
Minha leitura dos dois filmes aqui, portanto, tentará partir do dândi (o personagem) para
chegar ao dandismo (na forma dos filmes). Uma abordagem comparativa das duas mise-en-scènes
bem diferentes de cada filme poderá ser capaz de engendrar uma resposta mais esclarecedora à
pergunta: em que medida esses longas-metragens não apenas são narrativas sobre dândis mas são,
eles próprios, obras dândis? A noção de uma “obra dândi” soa menos estranha quando pensamos
Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação
www.compos.org.br - nº do documento: 349A3F88-C122-43B1-BDC8-D46375826A33Page 6
na passagem, acima mencionada, do “dândi” ao “dandismo”. Ela tem menos a ver com quão dândi
o autor da obra é ou em que medida há personagens dândis e mais com características formais da
própria obra. Nigel Rodgers, por exemplo, considera Don Juan, de Byron – cuja extravagancia
rebelde, romântica e despojada em seu modo de vestir não poderia estar mais distante da frieza
impecável de Brummell – “elegantemente satírico (...) o maior dos poemas dândis”.
[Don Juan] é soberbamente dândico. Ele pesquisa o mundo, do naufrágio ao harém e à corte real, com um divertimento mundano derivado das experiências de Byron na Inglaterra da Regência e no Mediterrâneo (...) Tal insensibilidade é intercalada com cenas ternamente românticas como a de Juan e Haidée, uma garota grega que o resgata. Eles vagam ao longo da praia, sozinhos, no pôr-do-sol... (...) Goethe, escrevendo a Byron, disse que a mistura do romântico e do cômico de Don Juan era impossível em alemão. É infernalmente difícil em inglês apesar de toda a aparente facilidade de Byron, mas é quintessencialmente dandesco (RODGERS, 2012, cap. 3).
Se o dandismo é uma relação com as coisas do mundo inspirada no modo de vida
do dândi, então é uma atitude estética que pode ser identificada na forma de uma obra de arte e,
portanto, na mise-en-scène de um filme. Mise-en-scène consistindo justamente no modo com que
os ângulos e movimentos de câmera, a dramaturgia com o corpo dos atores e com a cenografia e a
montagem implicam uma forma de se relacionar com o mundo. Para Rodgers, Don Juan, como um
verdadeiro dândi, possui, em sua construção formal, uma “insensibilidade mundana” ao mesmo
tempo que, paradoxalmente, uma indulgência prazerosa na “ternura romântica”. Há um jogo
complexo de ironia cômica e paixão emotiva que, segundo Rodgers, é dandesco.
Eu arriscaria, aqui, a seguinte definição de dandismo: um modo de se relacionar
com o mundo que, por um lado, privilegia o esteticismo, a beleza, a elegância, a delicadeza, o
pitoresco ou pictórico, isto é, uma ordem e, por outro lado, paradoxalmente, põe em cheque essa
“ordem” ao privilegiar a superficialidade, a frivolidade, a fragilidade, o artifício, o lúdico, a ironia
ou wit, a indiferença ou a frieza. É como se o encanto e o esplendor só pudessem ser acessados por
uma artificialidade infinitamente mutante: “Talvez a relação mais estreita de Brummel com Oscar
Wilde tenha sido pensar sua vida em permanente construção cênica” (SUTHERLAND, 2011, p.
17). Uma artificialidade que, portanto, gera uma espécie de frieza blasé: “Frio poderia descrevê-lo
perfeitamente se a palavra não tivesse sido terminalmente ultra-utilizada. Este froideur serviu,
como Baudelaire depois notou, para manter tolos à distância, algo essencial para o dândi”
(RODGERS, 2012, cap. 1).
Antes de responder qual a importância e que consequências esse tipo de estética –
tão diferente do cânone artístico e cinematográfico que as instituições contemporâneas parecem
Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação
www.compos.org.br - nº do documento: 349A3F88-C122-43B1-BDC8-D46375826A33Page 7
privilegiar – poderia ter em nosso contexto atual, pergunto: o quão “dandicamente” os dois filmes
aqui em questão se relacionam com o mundo, para além de terem dândis como personagens de seus
enredos? Em minhas análises a seguir, escolhi privilegiar de maneira comparativa a estética e a
mise-en-scène de cada filme específico, sem trazer uma abordagem autoral (isto é, sem mergulhar
nas obras mais amplas e relativamente coerentes que cada um dos dois auteurs possuem e dentro
das quais cada filme está, certamente, inserido).
Os Maias
As palavras com que Oscar Wilde descreveu seu O retrato de Dorian Gray, “Receio que se
pareça bastante com minha vida – repleto de conversas e nenhuma ação” (2010, p. 294), poderiam
com precisão ser aplicadas a Os maias: cenas da vida romântica, adaptação do romance de Eça de
Queirós dirigida pelo português João Botelho. Em termos de mise-en-scène, o filme repete e
reitera, ao longo de toda a sua duração, o mesmo princípio estilístico: há um plano mais aberto, na
maior parte dos casos mostrando uma cena de conjunto – tolos personagens da sociedade lisboeta
abastada em seus trajes luxuosos tagarelam em ricos salões ou terraços repletos de ornamentos,
quadros, vasos e pinturas murais –, que lentamente, através de um zoom-in muito sutil, vai sendo
fechado num grupo menor de personagens de mais destaque na cena ou plano em questão (muitas
vezes, as cenas e planos coincidem). A sensação do filme como um todo, ao cabo de suas mais de
duas horas (João Botelho também preparou uma versão para a TV, ainda mais longa, dividida em
quatro episódios), é o de vagar calmamente – no limite do tédio – por várias recepções da alta
sociedade portuguesa do século XIX e presenciar suas infinitas, e inúteis, conversas. A câmera de
Os Maias, por mais que produza planos longos e de duração estendida, é fria: estamos longe, aqui,
da candura material e das revelações redentoras do cinema do fluxo, do plano-sequência bazaniano
e da imagem-tempo, que parece dominar o gosto cinéfilo dos últimos anos. Ao invés de
personagens simples em sua resistência muda e cotidiana, o que temos aqui são grupos de pessoas
ricas e mesquinhas interagindo em conversas frívolas. O espectador parece estar diante, com o
desenrolar do filme, de um afeto mais congelado, discreto, que só poderá encontrar vazão nas
elegâncias decorativas da pictorialidade.
É possível dizer que a mise-en-scène de Os Maias é “dândica” em dois sentidos. Por
um lado, com seus ângulos abertos, põe o foco reiteradamente em cenários, na direção de arte e nos
figurinos. Há um rigor elegante na construção dos enquadramentos, quase tão polido quanto a
Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação
www.compos.org.br - nº do documento: 349A3F88-C122-43B1-BDC8-D46375826A33Page 8
forma de se vestir de um dândi. O filme opta claramente pelo esteticismo, por um embelezamento
pictórico que parece ser o exato oposto do realismo rosselliniano privilegiado pelo cânone do
cinema contemporâneo. Reforçando isso, no prólogo do filme, que tem a função de resumir boa
parte da história do romance original, um narrador familiariza o espectador com personagens da
família Maia através de uma sucessão de tableaux em preto-e-branco (o restante do filme é a cores)
de grande apuro plástico.
Por outro lado, os créditos iniciais do filme se desenrolam sobre o que parece ser
um espaço de bastidores do filme, com figurinos semi-preparados, perucas em manequins,
anotações, objetos e fotografias em uma luz “teatral”, dramática e contrastada, como se o filme
deixasse claro desde o princípio que o que está em jogo é, também, um interesse pelo artifício frio,
pelo superficial e pelo exterior. A dramaturgia sutilmente cartunesca que guia os atores reitera isso,
dando ao filme uma sensibilidade de máscara debochada.
É possível, assim, dizer que Os maias, tal qual um dândi, configura-se através de
um esteticismo frio. A insistência no plano aberto com, no máximo, o uso do zoom é uma forma de
não tomar o ponto de vista de nenhum dos personagens. Não há qualquer jogo de campo e contra-
campo ou planos subjetivos que façam o espectador se envolver ou se identificar nos dramas
apresentados. Tudo é visto de uma distância gélida, que cria o efeito de diminuir a relevância e o
peso das situações vividas pelos personagens. É como se qualquer possibilidade de pathos estivesse
destinada, na mise-en-scène do filme, a uma mesma exterioridade chapada e superficial. Todos os
personagens que compõem o mosaico do filme ganham um aspecto, em maior ou menor grau,
patético e ridículo – exatamente como as vítimas do wit brummelliano. O espectro desse mosaico
começa com as aspirações provincianas de uma elite decadente apresentada como ridiculamente
“cafona”, que julga o tempo inteiro se as coisas são “chiques” ou não dependendo do grau de
proximidade que elas tenham com países estrangeiros europeus como a França ou Inglaterra. Passa
pelas vaidosas discussões intelectuais dos homens “cultos” dessa sociedade. Na longuíssima
sequência do jantar, os personagens discutem disparatadamente – parecendo ter em vista sobretudo
suas próprias imagens como detentores de cultura e conhecimento – sobre a relevância do
Realismo e do Naturalismo literários, soltando vários clichês que chegam ao espectador como
ironias: o humor de Os Maias depende de mostrar seus personagens tentando sem sucesso ser
grandiloquentes, importantes e heroicos – quando não passam de simulacros vulgarmente ocos e
banais. O dandismo do filme põe em relevância o caráter artificial e cênico, de máscara, das
Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação
www.compos.org.br - nº do documento: 349A3F88-C122-43B1-BDC8-D46375826A33Page 9
relações sociais – caráter frágil, exterior e superficial.
O espectro do mosaico de personagens do filme chega, enfim, ao drama central da
narrativa, que é o incesto desconhecido. Novamente o filme reitera sua estratégia de “esfriar” as
paixões mais compulsivas ao comicamente interromper Afonso da Maia (João Perry) todas as
vezes em que ele tenta contar ao neto Carlos (Graciano Dias) que Maria Eduarda (Maria Flor) é na
realidade a sua irmã. Mas a ironia cômica atinge um tom mais amargo quando o filme narra o
destino de Maria Eduarda e Botelho permite um plano que, embora ainda construído com um
ângulo frio de uma plasticidade distante, registra a brutalidade física do choro dela. Essa
tragédia paradoxalmente experienciada pelo espectador de uma maneira distante é reforçada com
a morte de Afonso, que acontece em sua casa de veraneiro, perto de uma nascente d’água cujo
barulho calmo ele gostava de ouvir para se acalmar, para precisamente fugir de todos os dramas e
sofrimentos em que se via enredado na metrópole.
Se há alguma tragédia em Os Maias é exatamente essa: seus personagens querem
estar acima da dependência emocional e das paixões cegas, mas nunca conseguem.
Significativamente, o filme encerra com uma conversa entre os dois personagens dândis do filme
(cf. Imagem 2), os amigos Carlos da Maia e João da Ega (Pedro Inês): eles, olhando em perspectiva
tudo por que passaram, concluem que não vale à pena se desgastar com o pathos e as obsessões da
vida. É preciso viver com calma e elegância. Um deles fala: “se o bonde que precisamos tomar
passar agora, não correremos para alcança-lo, continuaremos em nosso passo lento e preguiçoso”.
No instante seguinte, porém, o bonde de fato passa e os dois, ridiculamente, correm para toma-lo.
O esteticismo cômico, ou dândi, de Os Maias parece ter sido o modo que João Botelho encontrou
de se relacionar com o mundo decadente e mesquinho do romance de Eça, muito parecido com o
mundo contemporâneo nesse sentido. Como se o que restasse frente à contingência sem sentido das
tragédias e egoísmos fosse justamente, apenas, a possibilidade de uma beleza fria, artificial,
indecisa e calma como a de uma nascente d’água.
Se uma vida ao lado da nascente d’água parece impossível aos personagens de
Os Maias e suas paixões, o gesto de João Botelho, através de uma mise-en-scène que enseja uma
espécie de atitude “pós-humana” – centrando a fruição visual nos objetos e na exterioridade ao
invés de priorizar as razões dos dramas interiores e ações emocionais dos personagens – parece ser
o de precisamente oferecer ao espectador contemporâneo uma “nascente d’água” cinematográfica.
Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação
www.compos.org.br - nº do documento: 349A3F88-C122-43B1-BDC8-D46375826A33Page 10
Isto é: uma fruição calma e superficial como o som da água corrente, uma relação lúdica com as
coisas do mundo que parece distanciar todas as paixões que nos ferem para ecos frios, decorativos,
delicados e longínquos. A imagem da nascente d’água, com seu barulho calmo e constante, me
remete ao curta-metragem de Keneth Anger, Eux d’artifice (1953): um filme “plástico”, azul, que
se debruça sobre a beleza fria e decorativa de um enorme jardim com fontes d’água e chafarizes
que se interligam. Nesse filme, como no de Botelho, uma aura longínqua de beleza decorativa
parece mais interessante que a materialidade carnal e apaixonada das narrativas e desejos humanos.
Em uma cena de Os Maias, a câmera, sem qualquer explicação ou causa narrativa, centraliza um
quadro na parede da residência da família Maia representando Salomé: exatamente a personagem
de Wilde que sucumbe ao pathos mais incontrolável e ao mesmo tempo está “caminhando
indolentemente, de uma maneira vegetal” (MOREAU, Gustave apud AGAMBEN, 2007, p. 27).
Com essa estranha mistura, a estética de Os Maias de Botelho possui algo de extremamente
“dândico” em seus gestos e estratégias formais, para além de ter qualquer dândi como personagem
de enredo.
Img 2 – João Botelho, “Os Maias”, 2014
Saint Laurent
Em uma sequência de Saint Laurent, cinebiografia do estilista francês Yves Saint Laurent
Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação
www.compos.org.br - nº do documento: 349A3F88-C122-43B1-BDC8-D46375826A33Page 11
(1936-2008) dirigida por Bertrand Bonello, a tela do filme se divide ao meio. Do lado esquerdo,
em preto-e-branco, vemos imagens de arquivo das manifestações do maio de 68 em Paris; do lado
direito, colorido, o desfile que na mesma época apresentava uma nova coleção criada por Saint
Laurent. Bonello deixa assim claro, de saída, que ao invés de posicionar sua câmera do lado
“fervilhante”, do lado do conflito político, vai permanecer, pelo contrário, filmando o conforto e a
calma de um desfile de moda e suas roupas luxuosas. Ao invés de mergulhar na materialidade da
película gasta de arquivo, no preto-e-branco austero, vai ficar com o brilho e com as cores festivas
do esteticismo artificial.
Se esse não é o universo diegético que mais vai engajar o altruísmo do espectador, o
protagonista do filme – o homem que “esqueceu como se vive no mundo real; que, sozinho, não
consegue mais sequer trocar uma lâmpada” – também não encoraja facilmente uma identificação
com seus problemas e valores. Para Yves Saint Laurent, exatamente como para o dândi, o que
normalmente se considera frívolo tornou-se crucial para a sua vida; e o que é “importante” no
mundo em que vive, ele recebe com um bocejo desdenhoso e entediado. É possível dizer, desse
modo, que há uma espécie de frieza envolvida na própria subjetividade do protagonista. Em uma
cena, Saint Laurent, de maneira cruel, demite levianamente de sua equipe uma costureira que acaba
de saber que está grávida e se sente insegura com essa nova situação. Bonello parece sintetizar a
condição do seu personagem numa espécie de delírio visual: a imagem de uma cobra que abocanha
seu próprio rabo e que aparece na cama do protagonista – uma frieza maligna inconsequente, que
se autodestrói.
Porém, a mise-en-scène de Bonello parece ir frontalmente de encontro a essa frieza
do mal, a essa frivolidade perversa que parece constituir a lógica que move o universo visual e
diegético de Saint Laurent. A câmera de Bonello é vigorosa e carregada de afeto. Ela se movimenta
com energia tentando enquadrar seu protagonista. Se a câmera de João Botelho possui uma espécie
de elegância desinteressada e por isso mesmo revela algo de ridículo nas máscaras sociais de todos
os sujeitos a que filma, a câmera de Bonello jamais abandona a esperança de encontrar, nos
confins gélidos do rosto andrógino de Saint Laurent (Gaspard Ulliel), uma faísca de humanidade e
salvação.
Não por acaso, o filme põe a si mesmo, ostensivamente, sob o signo de Proust. Em
um dos primeiros diálogos ouvidos pelo espectador, Saint Laurent se registra em um hotel com o
Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação
www.compos.org.br - nº do documento: 349A3F88-C122-43B1-BDC8-D46375826A33Page 12
nome falso de Swann. A mise-en-scène de Bonello, para narrar a trajetória do seu protagonista,
realiza uma espécie de movimento proustiano. O que isso significa? Em Proust e os signos,
Deleuze (2006) analisa toda a obra de Em busca do tempo perdido através da divisão do que é
narrado, nos volumes, em tipos de signos. Cada tipo de signo pertenceria a um “mundo” ou a um
“círculo” diferente. Segundo Deleuze, há o círculo mundano, o do amor, o das impressões e
qualidades sensíveis e, por fim, o círculo da essência ou da verdade. O herói da Recherche precisa
atravessar, mesmo que de maneira não-linear, todos esses mundos diferentes e lidar com cada um
dos tipos de signos em busca da essência redentora que lhe escapa, do temps retrouvé. Os signos
mundanos, precisamente, são os signos do dandismo – “Charlus é o mais prodigioso emissor de
signos, pelo seu poder mundano, seu orgulho, seu senso teatral, seu rosto e sua voz” (DELEUZE,
2006, p. 5) – são simulacros: “um signo que não remete a nenhuma outra coisa, significação
transcendente ou conteúdo ideal... é decepcionante e cruel e, do ponto de vista do pensamento,
estúpido... o signo mundano não remete a alguma coisa; ele a substitui... daí seu aspecto
estereotipado e sua vacuidade” (idem, p. 6). É interessante notar que, para Deleuze, os signos
mundanos e os da essência estão nos pontos extremos da Recherche. Os signos da essência e da
verdade são o ponto ao qual o herói precisa chegar: eles possuem uma espécie de transcendência
ideal e salvadora, talvez próxima ao brilho profético da imagem-cristal que é possível experimentar
na durée ou em um plano-sequência rosselliniano. Já “os signos mundanos são frívolos” (idem, p.
22). Eles são apenas uma etapa – que precisa ser superada e transcendida – num aprendizado maior.
Se a experimentação estética crucial de Os Maias é, justamente, ter a ousadia de
permanecer no círculo mundano (em jamais abandonar o wit, a frieza, a máscara artificial e
externa), a mise-en-scène de Saint Laurent leva a cabo algo que a sensibilidade modernista já havia
não apenas legitimado mas tornado regra sob pena de a obra de arte cair na banalidade ou na
frivolidade da cultura de massa: a passagem do círculo mundano ao círculo da verdade. Bonello
filma Aymeline Valade (Betty Catroux) dançando num belo e longuíssimo plano-sequência. A
imagem permanece na tela mais do que o “convencional”, como se a câmera sondasse algo por trás
daqueles signos: da luz colorida, das roupas sofisticadas, do corpo andrógino. A dramaturgia que
rege as atuações é naturalista. Ao contrário dos tempos dilatados de Os Maias, cujo efeito é um
tédio proposital que ironiza as aspirações dos personagens, os planos-sequências de Saint Laurent
parecem se construir através da lógica da imagem-tempo deleuziana (cf. DELEUZE, 2007): o
tempo é um cristal em lenta formação para o espectador vidente. Mesmo em meio à banalidade do
Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação
www.compos.org.br - nº do documento: 349A3F88-C122-43B1-BDC8-D46375826A33Page 13
mundo moderno, é possível vislumbrar um fugaz brilho redentor através da duração e das potências
da imagem. Do mesmo modo, os movimentos inventivos da câmera, na sequência do encontro
entre Saint Laurent e seu amante Jacques de Basche (Louis Garrel, cf. Imagem 3) na boate parecem
expressar o desejo de revelar uma convulsão, um afeto forte e quente através dos signos mais frios,
superficiais e exteriores daquelas roupas e sons de uma década ultrapassada. Se a câmera um tanto
ociosa de Os Maias se recusa a ter interesse por revelar qualquer coisa, a inventividade da câmera
modernista de Saint Laurent parece reiteradamente buscar uma Verdade.
Se Bonello filma as cores artificiais da alta costura parisiense de fins dos anos 60,
ele também precisou deixar claro, dividindo a tela, que não estava esquecido das convulsões e dos
conflitos mais “sérios” que desafiavam a época. Isso, com efeito, parece ser algo que assombra o
filme, como parece expressar uma fala de Jacques, que, reclinado num divã, lê um livro e, num
tédio que não consegue atingir a angústia, afirma que gostaria de ser capaz de escrever, de produzir
ele mesmo aquela beleza que ele lê preguiçosamente nas páginas. Até para Jacques, portanto – um
personagem que, com seu hedonismo inconsequente e incessante, é ainda mais dândi que o próprio
Saint Laurent – é preciso ultrapassar a beleza fria e frívola e atingir a beleza essencial e verdadeira.
Ao fim do filme, a parceira de trabalho de Saint Laurent comenta, num lamento: “você fazia
referencias a Proust e hoje fazem referencias a histórias em quadrinhos”. Mesmo que o filme
pareça utilizar esse pensamento conservador para realçar a decadência do velho Saint Laurent
(significativamente interpretado por Helmut Berger, numa espécie de reverência ao cinema
canonicamente legitimado de Luchino Visconti) sem exatamente concordar com ele, tanto o
virtuosismo modernista dos movimentos de câmera quanto o da montagem – que, ao fim, reforça
uma experiência não-linear do tempo ao intercalar velozmente imagens utópicas da infância de
Saint Laurent antes de uma nova e triunfante coleção surgir nas passarelas – apontam para o desejo
e superação do “mundano” em direção ao “essencial” ou “verdadeiro”.
Em Saint Laurent, não é a moda ou os signos frívolos que podem fornecer um
caminho novo para a fórmula modernista cansada da “essência” e para a imagem-tempo. Pelo
contrário, o movimento de Bonello parece ser o de querer subsumir a singularidade própria do
“dândi” ao cânone mais bem legitimado e nobre do “artista”. Em uma sequência, Bonello faz
questão de filmar uma reunião de negócios da marca YSL de maneira a gerar um efeito entediante
no espectador por causa dos termos financeiros, jargões e burocracias que, ainda por cima,
precisam ser traduzidos para outras línguas pelo caráter internacional do encontro. Saint Laurent é
Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação
www.compos.org.br - nº do documento: 349A3F88-C122-43B1-BDC8-D46375826A33Page 14
visto, de maneira um tanto romântica, como alguém distante de tudo isso: um gênio que, apesar de
toda a frivolidade e banalidade que o cercam, ainda está apto a, na esteira de seus grandes pares –
Proust, Visconti ou Warhol – contrapor a força da arte ao mundo frio do capitalismo. Ao cabo,
Saint Laurent, apesar de ter dândis como protagonistas cercados por um mundo frívolo e banal, é o
tipo de cinema “sério” que o campo institucional do “cinema de arte” no capitalismo de controle
atual espera receber.
Img 3 - Bertrand Bonello, "Saint Laurent", 2014
O filme dândi
Enquanto que Saint Laurent parte de um universo dândi – hedonista e esteticista – mas para
abraça-lo de uma forma romântico-modernista, legitimada pelo cânone cinematográfico teórico e
estético da imagem-tempo e da verdade redentora, Os Maias parece apontar para um caminho
novo. O filme de João Botelho pesquisa e explora formas de se relacionar com o mundo estranhas à
sensibilidade política do modernismo e que eu tentei compreender aqui partindo de uma ideia ou
sensibilidade um tanto anacrônica para os padrões estéticos e cinéfilos de hoje: o dandismo. Para
Aby Warburg, nada pode falar mais sobre uma época do que aquilo que lhe é anacrônico ou
recalcado e a ela e retorna, como um fantasma.
O que seria um filme dândi? Um filme que não necessariamente aborde
Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação
www.compos.org.br - nº do documento: 349A3F88-C122-43B1-BDC8-D46375826A33Page 15
personagens ou universos dândis, mas que tenha uma mise-en-scène, uma forma, e uma visão de
mundo “dândica”: ao mesmo tempo esteticista e irônica, elegante e lúdica, fascinada e fria. Os dois
filmes analisados aqui dramatizam a questão da estética dândi de maneira mais ostensiva por terem
personagens dândis e narrativas que chamam a atenção para o papel da frivolidade em
determinadas relações sociais. Mas o caminho da frieza dândi, do gosto irônico pela beleza e pelo
lúdico, pode ser seguido também independente disso, como mostram, por exemplo, os filmes do
cineasta brasileiro contemporâneo Guto Parente, do cineasta estadunidense Wes Anderson, ou
alguns trabalhos de nomes como Tavinho Teixeira, Leonardo Mouramateus, Anita Rocha (Brasil);
David Lynch, Todd Haynes, Harmony Korine, Sofia Coppola (Estados Unidos); Miguel Gomes,
João Pedro Rodrigues (Portugal); François Ozon, Xavier Dolan (França); Wong Kar-Wai, Hou
Hsiao-Hsien (China); Hong Sang-Soo (Coréia do Sul).
Arrisco, aqui, a hipótese de que – em meio ao engessamento da fórmula
cinematográfica modernista, de certa maneira vencida e cooptada pelo sistema que ela própria
almejava destruir (isto é, legitimada por instituições do capitalismo de controle como festivais, a
crítica e a pesquisa acadêmica) – o caminho que vislumbro nos filmes aqui analisados, e, portanto,
no dandismo, se constitui como uma configuração formal que pode ser valiosa para a experiência
estética no contemporâneo.
Ao contrário da recusa revolucionária e radical com a qual a sensibilidade política e
a configuração estética modernista propõe se relacionar com a ordem social, o dândi parece, pelo
contrário, propor uma subversão diferente, menos grandiloquente, mas não por isso menos efetiva.
Nigel Rodgers afirma que o dândi “zomba das regras mas ainda as respeita” (2012, cap. 6). Ou,
como coloca Sutherland, “Por definição o dândi se afastará das etiquetas conhecendo-as muito
bem, olfato que cultiva para esquivar socialmente de quem o deixa ancorado em um lugar
reconhecível.” (SUTHERLAND, 2012, p. 23).
A ideia de subverter as regras ao mesmo tempo que respeitá-las me remete, em
primeiro lugar, à ideia de Profanação de Giorgio Agamben em seu livro homônimo (2008). Para o
autor, profanar a mercadoria não significa ignorar seu valor de troca e retornar ingenuamente a um
valor de uso mais “verdadeiro”, como se fosse possível voltar atrás, a uma época mais “pura”,
anterior à mercadoria e ao capitalismo (algo que sem dúvida faz lembrar o discurso utópico do
modernismo estético). Isso seria destruir, com a violência de um modernista. Um filme como Os
Maias
Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação
www.compos.org.br - nº do documento: 349A3F88-C122-43B1-BDC8-D46375826A33Page 16
de João Botelho possui uma atitude mais “desligada”, mais lúdica, mais frívola: como quem
procura passar o tempo num período de tédio com uma brincadeira inconsequente e trivial, ele
acaba dando um novo uso à imagem reificada em mercadoria. Isto, para Agamben, seria profanar.
Mas, para nos determos na especificidade do cinema, me remete também e
sobretudo à forma como Gilles Deleuze (2008) enxerga o cinema dentro da sociedade
contemporânea de controle em sua Carta a Serge Daney. Nesse texto, Deleuze descreve uma
espécie de terceiro e novo caminho para a imagem cinematográfica. Não mais uma imagem que
revele algo que estava escondido (a imagem-movimento), nem uma imagem cristal que faça o
espectador se perguntar sobre como a imagem pode ser vista (a imagem-tempo, uma resistência
estética própria à sociedade disciplinar), mas uma imagem que é desde já sempre uma imagem –
artificial, superficial, vazia – uma imagem que desliza entre outras imagens: “quando não há mais
muita coisa para ver nela [na imagem] ou dentro dela, mas quando a sempre imagem desliza sobre
uma imagem preexistente, pressuposta quando ‘o fundo da imagem é sempre já uma imagem’,
indefinidamente” (DELEUZE, 2008, p. 97). Em sua carta, Deleuze parece, muito mais do que
descrever o que os críticos da Cahiers du Cinéma chamaram de cinema “maneirista” dos anos 70 e
80, propor um novo programa de pesquisa para dar conta do cinema no contexto da sociedade de
controle, um programa que descartasse a pureza grandiloquente e revolucionária que o cinema
possuía numa discussão modernista anterior:
...o cinema ficaria ligado não mais a um pensamento triunfante e coletivo, mas a um pensamento arriscado, singular, que só se apreende e se conserva no seu “impoder”, tal como ele retorna dos mortos e enfrenta a nulidade da produção geral (...) Seria preciso que o cinema deixasse de fazer cinema, que estabelecesse relações específicas com o vídeo, a eletrônica, as imagens digitais, para inventar a nova resistência e se opor à função televisiva de vigilância e de controle (Idem, p. 98).
Um “impoder” que retorna dos mortos. Longe do triunfo redentor da essência e da verdade,
o tipo de cinema a que Deleuze parece se referir é um cinema dândi, ruminando eternamente entre
os signos mundanos, deslocando-se entre infinitas máscaras artificiais, com uma tendência
estetizante (muito próximo, no limite da confusão, ao mundo colorido e brilhante da própria
mercadoria capitalista) e, tal qual o dândi, ambíguo, complexo e espectral: “Rubén Darío escreve
sobre a espectralidade de Bearsdley, como se a figura do dândi sempre devesse submeter-se a um
lugar pouco agenciável, ausente ou inalcançável” (SUTHERLAND, 2012, p. 14).
No ensaio intitulado Platão e Simulacro, Deleuze (1974) diferencia o ícone do
simulacro a partir do fato de o primeiro tipo de imagem estar ancorada a um Modelo (mesmo que
Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação
www.compos.org.br - nº do documento: 349A3F88-C122-43B1-BDC8-D46375826A33Page 17
utópico) que ela sempre deve almejar atingir, enquanto que a segunda é apenas a sucessão oca de
máscaras superficiais, externas, irônicas e debochadas. É uma imagem mundana que não tem onde
se ancorar, e que por isso sempre está aberta à diferença. O dandismo parece convocar o regime de
imagem do simulacro, pois “o artista-dandy deve transformar-se em cadáver vivo, tendendo
constantemente para um outro, uma criatura essencialmente não-humana e anti-humana”
(AGAMEBN, 2007, p. 85). Este me parece um caminho novo e instigante para a experiência
estética no contemporâneo, numa época em que o reinado completo da mercadoria na sociedade de
controle trouxe, de acordo com Sianne Ngai, a trivialidade como categoria estética dominante de
nossa época, cujas “imagens de indiferença, insignificância e ineficácia apontam todas para um
déficit de poder” (NGAI, 2012, tradução minha, p. 18).
1Doutorando, UFRJ, [email protected]
Referências
AGAMBEN, G. Estâncias: a palavra e o fantasma na cultura ocidental. Belo Horizonte: UFMG,
2007.
______. Profanações. São Paulo: Boitempo, 2008.
BAUDELAIRE, C. O pintor da vida moderna. Belo Horizonte: Autêntica, 2010.
DELEUZE, Gilles. A imagem-tempo. São Paulo: Brasiliense, 2007.
______. Conversações. São Paulo: Ed. 34, 2008.
______. Lógica do sentido. São Paulo: Perspectiva, 1974.
______. Proust e os signos. Rio de Janeiro: Forense, 2006.
NGAI, S. Our aesthetic categories. London: Harvard University Press, 2012.
RODGERS, N. The dandy: peacock or enigma? London: Benefactum, 2012.
SUTHERLAND, J (org). Cielo dândi: escrituras y poéticas de estilo en América latina. Buenos
Aires: Eterna Cadencia, 2011.
Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação
www.compos.org.br - nº do documento: 349A3F88-C122-43B1-BDC8-D46375826A33Page 18
WILDE, O. O retrato de Dorian Gray. São Paulo: Abril Cultural, 2010.
Arquivo PDF gerado pela COMPÓS
Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação
www.compos.org.br - nº do documento: 349A3F88-C122-43B1-BDC8-D46375826A33Page 19