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O Diabo e o Cristo na recriação pictórica dissidente de William Blake para
Paraíso Perdido
Dissident pictorial recreation of Devil and Christ in William Blake’s Paradise
Lost illustrations
Prof. Ms. Enéias Farias Tavares1
Resumo: Embora inicialmente tenha defendido a centralidade do Satã de Paraíso Perdido,
uma década mais tarde Blake apresentaria uma interpretação díspar do poema de Milton. Nela,
Satã manteria a força dramática e a centralidade inicial, embora decaísse gradualmente nas
ilustrações do poema em contraste com a figura do filho redentor. O objetivo desse artigo é
apresentar a tradição de ilustrações de Paraíso Perdido anterior a Blake e analisar seu
conjunto de lâminas para o poema. Meu mapa de análise partiu de David Bindman em Blake
as a painter e foi auxiliado pelas notas de Stephen C. Behrendt em The moment of
explosion, além das de June Singer, Foster Damon, Danièle Chauvin, Northrop Frye e J.
Davies.
Palavras-Chave: Crítica Literária, Pintura, Blake, Milton, Paraíso Perdido
Abstract: Although Blake has initially defended the centrality of Satan in Paradise Lost, a
decade later the poet presented a different interpretation of the work of Milton. In that, Satan
would keep dramatic power and initial centrality but decayed gradually in the illustrations of the
poem in contrast with the figure of the redeemer son. The aim of this paper is to present the
tradition of Paradise Lost illustrations before Blake and analyze his set of paintings for the
poem. My map of analysis was based on David Bindman in Blake as a painter and was aided
by the notes of Stephen C. Behrendt in The moment of explosion, besides June Singer,
Foster Damon, Danièle Chauvin, Northrop Frye and J. Davies’s analyses.
Key-Words: Literary Criticism, Painting, Blake, Milton, Paradise Lost
Ao compor Matrimônio do céu e do inferno (1793) William Blake foi
associado pelos críticos da obra de Milton, em especial os que debruçaram
sobre Paraíso Perdido, aos principais responsáveis pela valorização da
personagem satânica do poema no período romântico. Tais críticos, que em
1 Enéias Farias Tavares é professor mestre em Estudos Literários e doutorando em Literatura Comparada pela Universidade Federal de Santa Maria. Traduziu Otelo - O mouro de Veneza, de Shakespeare, e agora, debruça-se sobre a poesia e a pintura de William Blake. Além de autor de artigos e ensaios que tratam da relação entre literatura e outras artes, integra o corpo editorial das revistas Querubim e Todas as Musas.
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sua grande maioria se dividem entre os que defendem o heroísmo de Satã
como protagonista e os que fazem uma leitura cristã da obra, comumente citam
a frase de Blake, “Milton era do partido do demônio sem o saber”, ao lado das
considerações de Shelley, Byron e Coleridge, para justificar essa afirmação.
Para tais críticos, Blake teria, não apenas em Matrimônio como também em
outros poemas e pinturas, defendido um ideal de rebeldia contra a ordem
vigente, quer divina ou política, inspirado na personagem de Milton.
Entretanto, a partir da década de 1940, com os estudos de Frye e
Davies e da análise pontual de Stepehn C. Behrendt em 1983, essa opinião
crítica da obra de Blake tem sido contestada. Tal mudança é resultante,
sobretudo, da ênfase que tais críticos deram à obra pictórica de Blake. Nela,
pode-se notar uma relação ainda mais evidente do que a crítica textual sugeria
entre as personagens blakeanas Urizen, Orc e Los e as bíblicas ou miltonianas
Deus, Satã e Cristo. A partir dessa constatação, pode-se então empreender
uma interpretação bíblica ou cristã da obra de Blake assim ou ainda, meu
intento neste texto, propor uma interpretação blakeana das figuras ou tipologias
bíblicas. Para segurarmos essa hipótese, aludirei às ilustrações que Blake fez
de Paraíso Perdido entre os anos de 1807 e 1808.
Nas doze pinturas, uma década mais tarde somadas às dedicadas ao
Paraíso Reconquistado, Blake colocou muito de suas concepções míticas
como também apresentou uma interpretação dissonante da obra de Milton. Na
opinião de Bentley Jr., em The Stranger from Paradise, Blake mostrou nessas
lâminas “poder e graça em cenas de tensão hiper-natural, demonstrando tanto
que havia compreendido profundamente Milton quanto também estendendo os
sentidos da obra do poeta num característico modo blakeano” (2003, p. 287).
Sobre isso, Foster Damon, em A Blake Dictionary, menciona que “nenhum
outro ilustrador fora tão preciso em seguir o texto de Milton, mesmo em suas
mais complicadas metáforas, e nenhum outro nunca incluiu em suas
ilustrações tanto de suas próprias interpretações” (1988, p. 285). Assim, o que
se percebe na versão pictórica de Blake para Paraíso Perdido é um esforço
tanto de interpretar e ilustrar a obra de Milton como também o de apresentar
uma visão cultural e poética muito particular, visão que perpassa toda sua obra.
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Neste ensaio, o desafio que propus foi o de apresentar a tradição de
ilustrações de Paraíso Perdido para então analisar seu conjunto de pinturas,
tendo por interesse as personagens de Satã e de Cristo. O mapa de análise
que segui partiu de David Bindman em Blake as a painter e foi auxiliada pelos
comentários pontuais e detalhados de Stephen C. Behrendt em The moment
of explosion – Blake and the ilustration of Milton, além dos de June Singer,
Foster Damon, Danièle Chauvin, Northrop Frye e J. Davies.
De forma geral, os ilustradores de Paraíso Perdido nos séculos XVII e
XVIII ignoraram a importância da figura de Cristo tanto ao ilustrarem o acordo
de redenção no terceiro canto do poema, quanto ao representarem
pictoricamente a antevisão de Miguel no canto doze. Segundo Beherendt, esse
desvio interpretativo por boa parte dos ilustradores resultou em uma
transferência visual e interpretativa do herói original do poema, Cristo, para o
anti-herói Satã. Essa caracterização imagética equivocada dos ilustradores2 foi
um dos fatores responsáveis pela visão forma errônea de considera Satã o
herói do poema e relegar as outras personagens a coadjuvantes (1983, p. 124).
Segundo o crítico, esse tipo de ênfase pictórica dada à personagem
demoníaca havia começado ainda no renascimento, quando gradualmente
convencionou-se representar de forma humana a anterior caracterização
grotesca e burlesca do diabo medieval3. A observação das ilustrações para
Paraíso Perdido demonstra que a fascinação pela personagem satânica de
Milton é ainda anterior ao romantismo, tendo encontrado no período um público
de poetas e pensadores que viram na personagem um molde de muitas de
suas inquietações e reflexões, reflexões essas que vão até o século vinte4. Se
2 Entre os ilustradores de Paraíso Perdido, que vão do século XVII ao XIX, encontram-se Bernard Lens (1688), Henry Aldrich (1688), Jean Baptista de Medina (1688), Louis Cheron (1720), James Thornhill (1720), Francis Hayman (1749), Henry Fuseli (1779 e 1802), Edward Burney (1799), William Blake (1806-7), John Martin (1827), J. M. Turner (1835) e Gustave Dore (l866). 3 Para um estudo aprofundado da variação entre a forma pictórica monstruosa do demônio até o fim do medievo e de sua alteração para uma imagem atraente no renascimento, ver livro de Luther Link. (LINK, Luther. O Diabo – A Máscara sem Rosto. Companhia das Letras. São Paulo, 1998.) Para um estudo da alteração literária da personagem demoníaca que tem início no século quinze e que resulta na concepção do anti-herói romanesco ver Mario Praz (PRAZ, Mario. A carne, a morte e o diabo na literatura romântica. Editora da Unicamp. São Paulo, 1996). 4 Shelley em Defesa da Poesia, menciona que “O demônio de Milton, como um ser moral, é muito superior ao seu Deus, como alguém que persevera em um objetivo que assumiu como
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o romantismo observaria na personagem um aspecto de rebeldia contra a
ordem estabelecida, o século anterior esteve mais interessado na essência
teatral e dramática do Satã de Milton (Behrendt, 1983, p. 124).
Como resultado dessa interpretação equivocada e tendenciosa,
Beherendt afirma que essa ênfase ao que deveria ser o vilão do poema
resultou num apagamento da trama e da atenção que o poeta havia dado as
outras personagens. Em vista disso, ao invés das ilustrações sumarizarem o
poema, objetivo e primeira meta dessa arte, elas serviriam apenas como
holofotes teatrais que focariam um pretenso heroísmo prometeico em Satã.
Buscando essa ênfase, os ilustradores dramatizaram ou ressaltaram os
aspectos mais teatrais do poema. Tal percepção fez com que escolhessem
cenas de confronto em detrimento dos diálogos visando assim os episódios de
maior plasticidade estética ou de conflito, artificializando-as ou até mesmo
exagerando-as. Behrendt afirma que quase todos os ilustradores anteriores e
mesmo contemporâneos de Blake usaram a temática de Milton apenas como
desculpa para suas próprias concepções de arte, religião ou de caracterização
demoníaca (1983, p. 125), execução interpretativa que seria anulada por Blake.
Figura 1 – Ilustrações para Paraíso Perdido Canto IV Francis Hayman (1749), Henry Fuseli (1779) e Edward Burney (1799)
sendo excelente, apesar da adversidade e da tortura; é alguém que, na fria segurança do triunfo indubitável, impõe a mais terrível vingança ao inimigo, não por fazê-lo se arrepender mas no planejamento de um plano que significará mais horrores para seu oponente” (LOBO, Luiza. Teorias poéticas do romantismo. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1987, p. 220). Quase um século mais tarde, Gustav Jung, na introdução para o livro de Z. Weblowsky, Lúcifer e Prometeu, escreveu que o Satã de Milton é o primeiro grande exemplo de individuação da história por ser o primeiro que se recusa a fazer parte de um cosmos organizado. Na opinião de June Singer, comentando o texto de Jung, o Satã de Milton seria ficcionalmente um Hamlet pré-histórico (SINGER, June. Blake, Jung e o Inconsciente Coletivo. São Paulo: Madras, 2004, p. 109).
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Usaremos para ilustrar essa tendência, três ilustrações de artistas
diferentes que não apenas conferiram a Satã uma centralidade exagerada
como igualmente diminuíram outros aspectos e personagens do poema5. Num
período de meio século, entre 1749 e 1799, não houve grandes alterações na
ilustração do quarto canto do poema. Na primeira imagem, de Hayman, Satã
em forma angelical circunda a árvore em que Adão e Eva descansam. Sua
expressão facial condiz mais com uma sordidez exagerada do que com o misto
de desespero e inveja que permeiam as elucubrações satânicas na passagem
original. No segundo caso, na pintura de um grande admirador de Milton e que
teve influência central no estilo de Blake, Henry Fuseli, Satã não é nem o
sórdido vilão a maquinar um plano de tentação e queda nem o ressentido herói
miltoniano, mas uma figura imponente e soberba, mais prometeica que
satânica. Mesma característica que Burney demonstrará mais tarde.
Nesse sentido, é ilustrativo o fato de nenhum dos artistas ter configurado
o misto de sentimentos dicotômicos de Satã diante da intimidade que Adão e
Eva dividem, justamente o que explicaria a relativa simpatia que o leitor nutre
pela personagem. Comunhão essa que Satã desconhece e que aprofunda nele
a consternação por ter sido expulso da presença divina.
Num outro aspecto, Fuseli e Burney também “falham” enquanto
ilustradores ao intentarem narrar, numa imagem, dois episódios distintos. O
encontro de Satã com os Anjos que protegem o jardim se dá no final do canto e
não durante a observação que o vilão faz do casal edênico. Essa aparição e
aparente proteção militar dos anjos dedicados a Adão e Eva desvia a atenção
justamente para o que é fundamental no poema de Milton: o tema da escolha.
Na pintura e na ilustração se compreende uma proteção angelical que, se
retirada, resultaria na completa fragilidade do casal diante de Satã. Em vista
dessa caracterização, perdeu-se o que deveria ser importante numa
interpretação pictórica da obra de Milton: a altivez demoníaca – nas duas
imagens Satã parece mais amedrontado e indignado com a presença dos anjos
5 Para mais ilustrações dedicadas ao poema de Milton, acessar www.paradiselost.org. A seção da página dedicada às Ilustrações está dividida conforme as cenas dos cantos em ordem cronológica, facilitando a observação da variação de diversos artistas para o mesmo episódio.
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do que interessado na reflexão sobre si mesmo ou sobre a realidade material –
e o tema da escolha que levaria à queda física e a redenção do homem.
Como demonstrarei em artigo posterior, esse equívoco dos artistas
também se repete na caracterização do casal no último canto do poema, no
qual é narrada a sua saída do Éden. Enquanto em Milton fica a sutil impressão
de que a queda seria necessária para o desenvolvimento e aperfeiçoamento da
humanidade, todos os artistas retratam a cena ressaltando sentimentos como
vergonha e aflição. É sobre essa tradição de leituras e versões pictóricas
equivocadas e tendenciosas que Blake se ressurgirá ao ilustrar o poema.
Em resposta a interpretação mais tradicional de Paraíso Perdido, Blake
criou um conjunto de imagens que visava não apenas ressaltar as qualidades
da personagem de Satã como também evidenciar a centralidade de Cristo no
enredo do poema. Segundo Beherendt, para Blake o importante foi separar
visão total da detalhada, ou seja, buscando uma arte que elucidasse o épico
miltoniano ao invés de uma que apenas o decorasse (ibidem, p. 125).
A técnica escolhida por Blake para a ilustração de Milton – em Comus
(1801), Paraíso Perdido (1806-1807), L’Allegro e Il Penseroso (1816) e
Paraíso Reconquistado (1816-1820) – diferia tanto da usada em seus livros
iluminados quando nas ilustrações que havia feito para obras como Night
Thoughts, de Edward Young, ou para os Poems, de Thomas Gray. Nas
primeiras, Blake criou uma técnica que possibilitou gravar texto e imagem
numa mesma lâmina. No caso das ilustrações para obras de outros autores,
Blake usou a gravação normal, apenas da imagem, deixando no centro da
página um retângulo em branco para posteriormente ser impresso o texto do
poema.
De forma diferenciada, na criação de ilustrações para os principais
poemas de Milton Blake optou por painéis maiores que poderiam tanto ser
contrastados ao poema no ato da leitura quanto igualmente observados como
peças autônomas. Se tal escolha foi intencional ou exigência dos que
encomendaram as pinturas, não se sabe. Entretanto, importa aqui o fato do
resultado final da arte de Blake para Milton resultar numa interpretação nova e
estimulante para poemas que já haviam sido ilustrados por diversos artistas.
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Figura 2: Três Diferentes Técnicas de Composição de Blake em Europa uma profecia (Lâmina 12), Night Thoughts (Lâmina 6) e L’Allegro e Il Pensoroso (Lâmina 5)
Com Paraíso Perdido, Blake deparou-se tanto com o maior poema
inglês do período, com uma considerável iconografia já publicada. Henry
Fuseli, por exemplo, já havia até mesmo organizado duas exposições de obras
de diferentes artistas baseadas nos poemas de Milton. Todavia, o que diferia
Blake de outros pintores foi sua capacidade de interpretar e recriar suas fontes,
fazendo dele tanto intérprete quanto par criador de seus precursores. Segundo
Behrendt, “Blake recusou-se a aceitar os dois limites – da tradição textual e
iconográfica – como absolutas, julgando-as mais como pontos de partida ou
como indicadores de um contexto visual e verbal específico, um contexto que
ele desejava evocar para seus próprios objetivos críticos” (1983, p. 67).
Para compreender esses objetivos, primeiramente é necessário nos
reportarmos à leitura que Blake havia feito da obra de Milton no poema O
matrimônio do céu e do inferno. Nele, Blake acusou Milton de ter incorrido
numa série de “erros poéticos” na estrutura e na concepção de seu poema.
Desfavorável a qualquer tipo de repressão ou instrução religiosa – sobretudo
depois de sua decepção pessoal com a Igreja da Nova Jerusalém de Emanuel
Swedenborg – a década de 1790 marcou a obra de Blake por sua completa
releitura do imaginário bíblico e miltoniano em obras como ficaram conhecidas
como Proféticas destacando caracteres como “energia” e “oposição”.
Ao citar Milton e Paraíso Perdido, Blake propõe em seu poema a
centralidade de Satã como verdadeiro protagonista e como catalisador da
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energia poética necessária ao artista. June Singer, em Blake, Jung e o
Inconsciente Coletivo, refletiu sobre a relação de Blake com a obra de Milton
ao comentar a composição de Matrimônio do céu e do inferno, livro que
marcaria
a “virada” dos poemas simples ou aparentemente simples para as obras mais recentes, profundas e proféticas. Nesse pequeno livro, que consiste de 27 gravuras com texto, imagens e bordas decorativas, Blake retratou o problema do bem e do mal e anunciou sua crença em que a regra da ordem, convenção e moralidade expressa nos códigos atuais de comportamento, como ensinadas pela lei e pelas igrejas, era extática, restritiva e enfraquecedora, enquanto que o livre exercício do desejo e as energias da psique eram doadores de vida. Tanto para ele, como para Milton em Paraíso Perdido, o demônio representava a energia criativa e doadora de vida. Ele era o verdadeiro herói, trazendo redenção para um mundo envelhecido e deteriorado. (2004, p. 16)
Blake tinha trinta e três anos quando compôs o poema, trabalhando nele
os aspectos dicotômicos entre o opressor divino e o rebelde demoníaco,
oposição que seria recriada nos livros posteriores nas personagens Urizen e
Orc. Segundo Behrendt, essa leitura primeira de Blake estaria distante da
leitura posterior que data da composição do épico Milton (1804) e das
ilustrações de Paraíso Perdido e Paraíso Reconquistado. Para o crítico, um
dos grandes erros dos estudiosos de Blake foi resumir algumas idéias esparsas
nas primeiras obras do poeta – como essa suposição de que Satã seria o herói
supremo e definitivo de sua mitologia – como exemplificadoras de seu
pensamento. Antes, o que se percebe em Blake é um recorrente exercício de
análise de suas percepções, quer pessoais quer artísticas.
Como exemplo desse exercício, pode-se afirmar que as opiniões de
Blake sobre a obra de Milton e sobre o texto Bíblico, opiniões expressas direta
ou indiretamente nas obras compostas nos anos 1790 e que seriam
completamente revistas nos poemas épicos finais: Milton (1804) e Jerusalém
(1820). No primeiro, o criador de Paraíso Perdido foi transformado em
personagem, travando um diálogo com o próprio Blake numa resposta mais
complexa do que as afirmações de Matrimônio sobre as oposições
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Deus/Diabo ou Opressão/Energia poderiam expressar. Já em Jerusalém, o
texto bíblico e sua interpretação religiosa, católica ou protestante, seriam
completamente repensados num poema dedicado a públicos específicos:
judeu, deísta, cristão e homem comum. Tal variação crítica é recorrente em
toda a obra de Blake. Nela, o leitor encontra um pensamento em revulsão
constante em que antigas inquietações nunca deixaram de ser analisadas,
poética e pictoricamente.
Desse modo, as formulações de Blake em 1794 não corresponderiam
totalmente às idéias do próprio poeta quando ilustrou Milton, uma década mais
tarde. Embora Matrimônio sirva de parâmetro para o modo como Blake
demonstrou sua admiração pelo precursor – “Oposição é verdadeira amizade”
– as afirmações de Blake sobre o “erro poético” de Milton poderiam somente
marcar o início da leitura que faria de Paraíso Perdido e de outras obras.
Nessa releitura efetuada na primeira década de 1800, perceptível tanto
no poema Milton quanto nas ilustrações de Paraíso Perdido, Beherendt supõe
que Blake teria diminuído sua opinião sobre a centralidade de Satã, passando
a interar-se mais na caracterização miltoniana de Cristo. Igualmente, o que
David Bindman, numa passagem esclarecedora e de notável precisão em
Blake as a painter, argumenta é que o poeta observou a encomenda de
ilustrações para Paraíso Perdido como uma possibilidade de revisitar não
apenas a obra de Milton como também de rever sua própria interpretação do
poema. Segundo o crítico, nessa série de ilustrações
Blake deslocou a ênfase de Milton de Satã para Cristo, “corrigindo” o poema de acordo com a popular crença de que Milton havia feito de Satã o herói do poema. Blake demarcou centralmente suas aquarelas apresentando Cristo e Satã num campo de contestação. O último ocupa o campo nas primeiras duas lâminas, mas após a decisão de Cristo de abdicar de sua posição no céu para descer a Terra (Lâmina 3), Satã é revelado como um ser patético a observar Adão e Eva, enquanto abraça onanisticamente a serpente, emblema do seu próprio ser (L 4). O poder superior de Cristo é visualizado na dramática batalha contra os anjos rebeldes (L 7), na sua clara identificação com o Deus que criou Eva (L 8), na sua central posição no julgamento de Adão e Eva (L 10), e na profecia de Miguel sobre a crucificação (L 11). (2003, p. 100)
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Essa constatação de Behrendt e Bindman não é nova. Na primeira
metade do século vinte, alguns críticos destacaram que havia em Blake uma
correlação entre o seu ideal de herói, a divindade forjadora de metal Los, e a
figuração literária e pictórica de Cristo. Um dos primeiros a desenvolver essa
relação foi Northrop Frye no clássico Fearful Symmetry, de 1947. Nele, o
crítico afirma que, na acepção de Blake, Cristo era central ao cânone artístico
do ocidente nem tanto por sua caracterização perfeita e sim por apresentar em
equilíbrio aspectos divinos e humanos. Nessa acepção Cristo seria o matador
do deus vulcânico judaico e das leis tirânicas e impositivas. Além disso, em
suas histórias e fábulas, deixara claro que apenas a inocência, não a culpa,
poderia levar o homem à salvação imaginativa (1990, p. 79).
Um ano depois do estudo de Frye, J. G. Davies escreveu The theology
of Wiliam Blake, livro no qual traçou a relação de alusões temáticas e
estruturais na obra de Blake com sistemas cristãos, místicos e bíblicos. No
caso deste, quando se fala da centralidade desses sistemas em sua obra, não
se quer dizer que sua percepção passaria pela lente de qualquer crença ou
credo religioso. Pelo contrário, como Davies deixa claro, Blake nutria uma total
aversão pelas instituições religiosas de seu tempo. Como muitos artistas, Blake
“concebeu Cristo ao seu próprio modo, ressaltando no personagem sua própria
personalidade vívida e complexa naquilo que mais interessava ao seu gênio, e
negligenciou completamente aquilo que não o interessava. Nas mãos de Blake,
Cristo tornou-se um herói rebelde”, similar a tantos outros na mitologia do autor
(1948, p. 110). Baseado nisso, quando trago a personagem de Cristo aqui, a
título de análise, como Frye e Davies fizeram, trago-a em sua versão blakeana,
como reconfiguração artística e mítica de sua própria personagem heróica, seja
ela o demônio de Matrimônio ou o Los dos livros proféticos posteriores.
Contudo, se Blake diminuiria a participação da personagem Satânica em
detrimento da figura de Cristo, como veremos em suas ilustrações para o épico
miltoniano, sua completa antipatia pela figura da divindade paternal judaica
permaneceu. Nas ilustrações para Paraíso Perdido Blake recusou-se a
representar pictoricamente o deus miltoniano, personagem importante no
poema de Milton, mas que, na acepção de Blake, continuava sendo sua
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principal falha. Desprezando Javé, Deus ou o seu próprio Urizen, sua releitura
mais importante incidiria sobre as suas versões pictóricas de Satã e Cristo.
No início do dezoito, Blake completou dois conjuntos de ilustrações para
Paraíso Perdido, o primeiro para o Reverendo Joseph Thomas em 1807 e o
segundo para Thomas Butts em 1808. Antes de empreender seu trabalho de
composição, Blake havia feito uma série de estudos para aquela que seria sua
versão pictórica definitiva para o poema de Milton. Blake também fez um
estudo cuidadoso da tradição de ilustração anterior, dando-se ao trabalho de,
em muitas lâminas, fazer referências diretas às interpretações anteriores,
visando unicamente corrigi-las ou contrapô-las à sua leitura do poema.
Tematicamente, as lâminas de Blake evitam a ordenação cronológica
bíblica e apresentam uma fissura no tempo, estando ele mais interessado
numa visão imaginativa da realidade, “a eternidade numa hora”, do que numa
ordenação temporal previsível. Citando alguns versos de Milton, Beheredt
afirma que nos designs de Paraíso Perdido Blake teria mostrado que “no seio
de um momento, arde a pulsação de uma artéria na qual todas os eventos
temporais tiveram início, e no qual foram concebidos e concretizados” (Milton,
Lamina 29, versos 1-3). Na arte de Blake, nota-se esse instante de suspensão
da realidade física, um fotograma da condição interior de suas personagens.
Tal condição seria picturalizada por Blake apenas quando associada a
personagens que teriam uma capacidade imaginativa elevada (1983, p. 130).
Assim, tal momento de explosão poético e existencial seria inacessível para o
Deus Pai de Paraíso Perdido, personagem que praticamente inexistente nas
ilustrações de Blake, assim como também inexistiria para o filho caído,
encerrado em seu próprio sofrimento e vingança. Nas lâminas essa dádiva de
percepção e imaginação seria visível apenas no Cristo, o único no poema que
conseguiria guiar a história da queda para um final de possibilidades positivas.
Na leitura de Blake, tanto Satã quanto o Pai teriam promulgado, segundo a
narrativa do velho testamento, uma guerra contra a humanidade. No novo
testamento essa guerra teria sido revertida em compreensão e aceitação pela
personalidade compassiva do Filho. Em vista dessa oposição, primeiro
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centrarei a análise na ilustração que Blake faz de Satã, para depois me
concentrar naquele que seria para o poeta o protagonista do épico.
Nas primeiras duas lâminas de sua série, Blake homenageia a leitura
dos aspectos heróicos de Satã, leitura no qual ele mesmo havia incorrido. Em
Satã Clamando às suas Legiões, lâmina que abre sua série, Blake de
imediato renega a tradição já comum de ora mostrar Satã com asas ora com
uma indumentária militar romana. Nela, ao invés de liderar ou guiar tropas e
legiões demoníacas, Satã tenta silenciá-las ou acalmá-las. Todas as outras
figuras demoníacas estão em estado de desespero e lamento, exceto Satã,
inegavelmente figura central e apolínea da imagem. Segundo Berehedt, nessa
primeira ilustração, ao invés de exaltar Satã, Blake o distingue como antítese
perfeita de Deus, tentando organizar o caos. O autor observa os braços abertos
de satã como paródia negativa do sacrifício do filho. Segundo o crítico
Satã é tão bom – ou mau – quanto seu pai no que concerne aos rebeldes. Energia contra Razão é criativa e construtiva – a dialética sempre o é; já Energia transmutada em Repressão da Criatividade, por outro lado, é sempre destrutiva. Reconhecendo isso, o homem precisaria descobrir com Blake uma alternativa correta: a liberação de criatividade imaginativa representada pelo filho como Blake veio a perceber. (1983, p. 132).
Mesmo ao aceitar a leitura de Berehedt, está sutilmente subscrito na
versão de Blake a majestade e o heroísmo das versões e interpretações
anteriores de Satã. Em sua escolha e composição pictórica, tendo os raios
solares atrás de si, as armas postas ao lado e recebendo a atenção dos
demônios e do expectador, Satã abre o conjunto de designs de Blake com a
mesma centralidade que possui tanto no poema de Milton quanto nas suas
interpretações mais radicais. Se o poema abre com Satã, será em seu
desenvolvimento que a personagem será temática e estilisticamente diminuída.
Nesta lâmina, Blake relê sua própria tradição mítica, podendo ser vista como
recriação da energia de Orc, deus revoltoso e mercurial na cosmologia
blakeana, ao redor de Urizens demoníacos acorrentados as suas imperfeições.
Na segunda pintura, Satã chega aos portões do inferno, Blake corrige
as leituras errôneas da descrição de Milton sobre a Morte, que em obras
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anteriores figurava como esqueleto envolto num manto negro, representação
tipicamente medieval. Nela, Blake opõe a posição corporal de Satã e sua lança
à arma e a posição corporal da Morte incorpórea. Entre os dois, o Pecado.
Segundo Beheredt, o objetivo dessa cena, tanto em Milton quanto em
Blake é representar a trindade demoníaca em nítida oposição. Enquanto os
ilustradores anteriores ressaltaram apenas o aspecto dramático e teatral da
cena, Blake opõe as três figuras como forma de exprimir sua união dissonante
e desorganizada (1983, p. 135). Essa trindade demoníaca será recorrente em
ilustrações posteriores, sobretudo pela transmutação que Blake fará da
caracterização incorpórea da Morte numa versão do Deus Pai.
Na recriação de Blake, Morte e Pecado são alegóricos, ao lado de uma
representação de Satã que continua a ressaltar os aspectos elogiosos da
aparição anterior. Abaixo do ventre da versão feminina do Pecado, Blake recria
a descrição do dragão de sete cabeças segundo o Apocalipse e a narrativa do
segundo canto de Paraíso Perdido. Nessa caracterização do Pecado, Blake
segue tradição tanto ao caracterizá-la em forma feminina quanto em relacioná-
lo com a Prostituta do livro de Apocalipse. Poucos anos depois, ele próprio
dedicaria a tela A prostituta da Babilônia (1809) à caracterização alegórica da
personagem. Em contrapartida às figuras mais opacas do Pecado e da Morte,
a fúria de Satã ao avançar contra o segundo prevê a crise identitária que a
personagem sofrerá ao abandonar os limites férreos de seu reino infernal.
Na quarta lâmina, Satã espiando Adão e Eva, percebe-se num primeiro
plano a figura satânica envolta pela forma serpentina de sua contraparte animal
futura. Abaixo da união narcísea entre Satã e a Serpente, Blake opõe a união
igualmente especular entre Adão e Eva. Neste, o artista trabalhou com a
totalidade da união do casal, sua completa perfeição e adaptabilidade à
imagem e a posição corpórea um do outro. São imagens espelho, que
encontram na sua gêmea as particularidades de si mesmas, unidas pelo corpo,
pelas faces, pelos olhos. Ao redor delas, uma prodigiosa natureza que pulula
de flores, frutos e folhas, objetos vegetais e naturais que as protegem,
sugerindo o caráter produtivo e procriador de sua união. O que Blake intuiu e
evidenciou nessa lâmina foi a integração física e espiritual do homem e da
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mulher antes da queda, uma integração que Satã não mais acessaria.
Figura 3 – Ilustrações de William Blake para Paraíso Perdido (Lâminas 1, 2 e 4)
Em contraste com a imagem iluminada e resplandecente de Adão e Eva,
a metade superior da lâmina é dominada por Satã, cuja divisão entre luz e
trevas resulta numa elaborada caracterização dos estados passado e futuro da
personagem. Na imagem de Blake, Satã ainda reuniria algumas características
angelicais, traços que por fim se dissolveriam ao abraçar seu desespero e sua
falsidade. Por isso a escolha de Blake de caracterizar satã justamente nessa
linha limítrofe entre luz e trevas, entre aspecto angelical e demoníaco, situação
em que sua própria angústia seria mais evidente. Tal iluminação ambivalente é
também usada por Blake para ressaltar o caráter dúbio de Satã, sendo essa a
primeira vez que a forma angelical e serpentina de Satã aparecem fisicamente
unidas. Enquanto Adão e Eva configuram uma máxima caracterização de
satisfação física e de inserção material, Satã paira acima do cosmos,
desconectado dessa realidade, podendo apenas vislumbrá-lo a distancia.
A mão ainda angelical almeja tocar a união do casal, tocar seus corpos
ou sua materialidade, e talvez sua cumplicidade especular, mas não consegue,
pois há um alo verdejante e angélico de proteção divina ao redor deles. Em
contraste a mão direita do anjo caído aproxima a face da serpente recriando o
mesmo gesto dos amantes. Estando só, o Satã blakeano apenas pressente e
ressente o negativo de uma sexualidade inexistente. Segundo Beheredt, “a
sexualidade satânica é, sem dúvida, a pervertida e isolacionista sexualidade do
ciúme e da paranóia, procurando condenar e destruir aquilo que não pode
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possuir, compreender ou apreciar” (1983, p. 140).
A coexistência do sol e da lua no horizonte marca o momento de fissura
temporal ao qual havia aludido. Nesse contexto de embevecimento especular
de Adão e Eva o tempo representado é o da eternidade, eternidade de uma
união perfeita e idealizada que o casal experiência e eternidade de completa
desconexão e angústia para o anjo caído. Somente aqui, no limite dessas três
lâminas, pode-se perceber resquícios da glorificação dedicada à personagem
pelos outros ilustradores de Paraíso Perdido. Entretanto, mesmo nessas,
Blake reforça apenas o limite daqueles caracteres elogiosos e divinos que
apenas potencializam e intensifica a queda vertiginosa de Satã.
Na terceira lâmina do conjunto, como veremos a seguir, Satã é
representado à parte do contexto celestial, cujos limites na ilustração de Blake
são demarcados pelo círculo de nuvens. Nessa paisagem, Satã está
completamente excluído da presença divina e angélica. Expulso do céu e
perdido no cosmos físico, sua energia confrontadora ilimitada o afasta
continuamente, quer dos anjos antigos irmãos quer dos demônios atuais
companheiros. Excluído e exilado, o Satã de Blake também configura o
aspecto solitário que tanto despertou nos românticos sua admiração.
Se Blake fez de Satã, nas primeiras lâminas de seu poema talvez a
caracterização mais atraente da cultura ocidental, foi apenas para ressaltar sua
decadência posterior. Nas outras imagens do artista, Satã é apenas o inimigo,
o opositor, primeiramente apartado da presença divina e depois ressentido e
invejoso da materialidade física que desconhece e de uma conexão que lhe
proibida. Por fim, na leitura de Blake e no poema de Milton, relegado e
condenado à forma do animal que escolheu para tentar Eva, Satã é apenas
uma sombra do ímpeto e da força anterior. Por outro lado, há uma elevação
temática fundamental na leitura que Blake efetua da figura de Cristo.
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Figura 4 – Ilustrações de William Blake para Paraíso Perdido (Lâminas 3 e 7)
O início dessa ênfase na caracterização de Cristo já é perceptível na
terceira lâmina da série de Blake, Cristo se oferece para redimir o homem.
Nela, temos a única representação da figura paternal divina da série. Uma
divindade cansada, escondida, cabisbaixa, como o Urizen blakeano,
acorrentado à sua própria limitação moral e impositiva. A figura do filho,
contrariamente, reconfigura corporalmente a futura crucificação. Ao redor do
pai e do filho, anjos em formas humanas louvam segurando coroas doutoradas,
embora dirijam sua percepção para o anjo caído, na parte inferior da lâmina.
Ao invés de representar a materialidade da cruz, como os artistas
anteriores fizeram nessa passagem, Blake opõe o filho à composição corporal
da cruz. Segundo Beheredt, “tanto Milton quanto Blake – em particular o último
– atentaram para as implicações metafóricas da crucificação, cujo emblema
carrega na arte ocidental não apenas conotações de morte e auto-sacrifício,
mas também de irmandade, redenção e criatividade” (1983, p 137).
No contraste entre as posições do pai e do filho, encontra-se na figura
divina um aspecto similar ao que resultou na queda de Satã. O Deus blakeano
possui um racionalismo dissociado de expressões faciais carecendo, portanto,
de emotividade e subjetividade. Suas mãos contem ou limitam o corpo do filho.
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Por outro lado, Blake legou a este a espontaneidade e a acessibilidade corporal
e imaginativa que é imperceptível na sombria e fugas aparição paterna.
Também se opõe à imagem desse Cristo, a caracterização satânica que
observa a cena celestial à distância. Nessa configuração, Blake contrasta a
energia retentiva do Pai com a energia explosiva e incontrolada, incontida do
anjo caído. São imagens dicotômicas, bipolares e antagônicas em
caracterização corporal e subjetiva.
Na sétima lâmina, A fuga dos anjos rebeldes, Blake opõe os exércitos
celestes, que tem por comandante um Cristo guerreiro com um arco e uma
flecha, às hostes rebeldes. Na imagem, os demônios caem com uma
diversidade de expressões faciais e corpóreas, todas elas ressaltando o fardo
da derrota e da expulsão. Este é o design mais impactante de toda a coleção e
também, num certo aspecto, o mais artificial. Contribui para essa impressão
Blake ter dividido a lâmina em dois blocos, um celeste e um infernal.
No primeiro deles, Cristo está rodeado por um halo de anjos que,
assombrados e inquietos, testemunham a guerra narrada em Apocalipse 12.
No segundo, preponderantemente composto em tons vermelhos mais pesados
e escuros, Blake ilustra o poder e a centralidade do general divino diante da
miséria dos caídos. Segundo Behrendt, essa lâmina no centro do poema
ressalta não apenas a oposição entre os elementos divinos e satânicos do
poema de Milton, como também a capacidade do seu herói em estabelecer um
relativo equilíbrio num espaço permeado pela aflição da queda.
Na décima ilustração de Blake, O julgamento de Adão e Eva, Blake
centraliza a posição de Cristo por colocá-lo entre o casal pecador. Acima deles,
o Pecado e a Morte adentram o mundo físico após o pecado original. Como a
condenação à morte decorrente do pecado fora promulgada por Deus, Blake
apresenta a Morte com os caracteres do seu paternal Javé-Urizen.
Se na segunda lâmina Blake havia retratado a Morte em forma etérea,
aludindo e corrigindo os artistas anteriores, aqui ele a mostrará como um
homem velho e coroado, aparentemente maléfico. Nas palavras de Chauvin,
em L´oeuvre de William Blake – Apocalipse et transfiguration, este será,
em toda a sua obra “o arquétipo blakeano da tirania” (1992, p. 154). A décima
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lâmina também marca a decadência definitiva de Satã que, nas lâminas
anteriores já havia tomado a forma da serpente.
Figura 5 – Ilustrações de William Blake para Paraíso Perdido (Lâminas 10 e 11)
A grande inversão que Blake propõe na décima lâmina é mostrar a cena
do julgamento destituída da angústia e do desespero comumente associado ao
arrependimento de Adão e Eva. Embora esta esconda o rosto com as mãos,
num gesto de tristeza, a expressão facial de Cristo e de Adão revelam
aceitação e confiança. Segundo Beheredt, os corpos de Adão e Eva serem
representados de perfil, em Blake tem a conotação de incompletude ou
fragmentação, em contraste com a figura unificadora, frontal, do filho,
novamente numa pose que lembra a crucificação ou sacrifício redentor.
Por sua vez, a trindade demoníaca é retratada igualmente como
apartada. Enquanto satã em forma serpentina se arrasta pelo chão da terra,
Pecado e Morte jogam setas de trovão e derramam a forma líquida do
sofrimento sobre a terra. A opressão alegórica do pecado e da morte serve de
contraste para a expressão compassiva do Filho. Como Milton fez no decorrer
de todo Paraíso Perdido, as noções de Julgamento e Queda unem-se e
mesclam-se com a de Redenção, diminuindo os limites entre o surgimento de
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uma e de outra. Blake capta perfeitamente essa idéia, diferente de outros
artistas que apenas ressaltaram o desespero e as maldições advindas da
queda, ao expor nessa lâmina, e em outras, tanto a severidade do julgamento
divino, sugerido pela trindade demoníaca, quanto a imagem salvadora do filho.
Na penúltima lâmina, Miguel narra a crucificação, Blake torna visual e
realista a narrativa angélica do poema de Milton. Nela, o anjo mostra a Adão o
futuro do salvador crucificado, tendo aos pés da estaca, o Pecado e a Morte,
subjugando-os. Eva dorme agora sobre o solo, não mais sob a relva, cercada
por uma natureza que não mais acolhe o humano.
Blake é o primeiro é o primeiro dos ilustradores de Paraíso Perdido a
representar a cena da crucificação. Os outros artistas apenas aludiram mesmo
que materialmente ao símbolo em lâminas anteriores, mas nunca colocando e
evidenciando visualmente que a queda do homem, na concepção de Milton, foi
o que propiciou a demonstração de amor divino por meio da redenção.
Ao apresentar a forma física conciliadora de seu Cristo, quer entre o pai
limitador, quer diante da falha do homem, Blake dedicou a sua caracterização
pictórica uma harmonia que inexistem nos extremos Deus/Satã. Diante da
crucificação, quer na leitura religiosa ou artística, o pintor supôs estar ali diante
de uma das mais marcantes figurações da cultura ocidental. Diante da cena, as
alegorias Pecado, Morte, Satã, e outras, resultam anuladas perante a imagem
conciliadora do sacrificado. Com a lâmina onze de sua série, Blake não apenas
findou sua interpretação pictórica da obra de Milton como também previu a
guinada crítica que perceberia o filho, não o demônio, como herói do poema.
Diferente do pai desejoso de dominação ilimitada e do anjo caído
desejoso de glória infinita, o Cristo de Blake parece saber que o homem
constitui-se dos opostos do pai e do demônio. Entretanto, longe de confrontar
ou lutar por um ou outro, ele aceita as vontades e os desejos do corpo e da
existência humana, equilibrando-as. Nesse aspecto, as ilustrações para
Paraíso Reconquistado, que Blake faria uma década mais tarde, celebram
tanto a divina natureza de Cristo quanto sua encarnação mortal. No final deste,
Cristo retorna após a peregrinação pelo deserto ao convívio dos homens, à
presença da mãe e dos amigos, final presente tanto no poema de Milton quanto
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nas pinturas de Blake. Em resumo, Beherendt afirma que Blake dissecou em
suas ilustrações para Paraíso Perdido
o sacrifício do filho, apresentando seus vários aspectos e efeitos numa série de designs que analisam o significado universal de ato crucial da escolha que perpassa todo o poema – na verdade toda a história do homem ocidental – enfim resolvendo-o. A percepção madura de Blake sobre o poema de Milton, segundo a qual o deus de vingança do velho testamento seria eclipsado por um ser divino benevolente e compassivo num paradigmático ato de autoflagelação, caracterizaria toda a sua interpretação pictórica. Tal leitura constitui a mais radical ruptura com a interpretação convencional e conservadora da tradição crítica dedicada ao Paraíso Perdido. (1983, p. 127)
Diferente dos livros ilustrados do período, Blake não imprimiu versos
abaixo das gravuras, marcando o momento preciso de suas representações.
Sequer numerou-as numa ordem precisa ou sequer indicou em que passagem
elas deveriam figurar. Antes, parece que ele objetivou uma obra autônoma que
deveria e seria lida ao lado do poema, mas que também exigiria do leitor-
observador sua própria interpretação. Diante das lâminas, caberia ao leitor
encontrar seja no guerreiro satânico seja no salvador sacrificado e benévolo
seus próprios ideais literários e imaginativos.
Portanto, ao negar ou reinterpretar criativamente a iconografia
convencional dedicada ao Paraíso Perdido, de Milton, William Blake não
apenas apresentou sua própria interpretação do Gênesis bíblico nem tampouco
apenas a interpretação da leitura que Milton havia feito do mito. Quando
contrastados com as figuras míticas do próprio Blake, como Urizen, Orc e Los,
com Javé, Satã e Cristo, todo o conjunto de lâminas ganha um novo tom de
significância e apreciação artística, colocando as pinturas de Blake acima
mesmo, em alguns aspectos, da interpretação bíblica ou miltoniana.
Na oposição Javé/Satã ou Urizen/Orc, Blake remontou a própria
oposição psicológica entre Razão e Desejo. Entre eles, num tom conciliador,
Blake colocou a figura do filho sacrificado da leitura cristã ou do deus forjador
de metais de sua própria mitologia. Quaisquer leituras ou interpretações
apenas demonstram a capacidade de Blake, capacidade ainda inédita em toda
a cultura ocidental anterior ou posterior a ele, de, quer em poesia ou pintura,
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que em poesia e pintura, conjurar diferentes elementos da cultura e da arte e
construir com estes uma pedra filosofal múltipla e facilmente adaptável a
múltiplas leituras, interpretações ou expectativas de apreensão estética.
Bibliografia
BEHRENDT, Stephen C. The Moment of explosion – Blake and the
illustration of Milton. Lincoln and London: University of Nebraska Press, 1983.
BENTLEY JR., G. E. The Stranger from Paradise – A biography of William
Blake. New Haven and London: Yale University Press, 2003.
BINDMAN, David. Blake as a painter. In: EAVES, Morris (ed) The Cambridge
companion to William Blake. Cambridge: Cambridge University Press, 2003.
CHAUVIN, Danièle. L´oeuvre de William Blake – Apocalipse et
transfiguration. Grenoble: Ellug, 1992.
DAMON, Foster. A Blake Dictionary. London: University Press of New
England, 1988.
DAVIES, J. G. The theology of Wiliam Blake. Oxford: Clarendon Press, 1948.
FRYE, Northrop. Fearful Symmetry – A Study of William Blake. Princeton
University Press: Princeton, 1990.
SINGER, June. Blake, Jung e o Inconsciente Coletivo. São Paulo: Madras,
2004.
Referências Digitais
The William Blake Archive (www.blakearchive.org)