o discipulado e a cruz

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  • 5/20/2018 O Discipulado e a Cruz

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    O discipulado e a Cruz

    O chamado ao discipulado est, aqui, no contexto do anncio daPaixo de Jesus (Mc 8.31-38 *Texto no fim do Artigo). Jesus est

    para sofrer e ser rejeitado. esse o imperativo da promessa de Deus,para que se cumpram as Escrituras. Paixo e rejeio no so a mesmacoisa. Jesus podia ser o Cristo festejado ainda na Paixo. Em suaPaixo poderiam concentrar-se toda a piedade e admirao do mundo.A Paixo como acontecimento trgico poderia ainda ter valor prprio,honra e dignidade prpria. Jesus, porm, o Cristo rejeitado naPaixo. A rejeio tira da Paixo toda a dignidade e honra. Ela deve

    ser sofrimento sem honra. Paixo e rejeio, eis em resumo adefinio da cruz de Jesus. Ser crucificado sinnimo de sofrer emorrer rejeitado e repudiado por fora da necessidade divina.Qualquer tentativa de impedir o que necessrio satnica, mesmoque esta tentativa provenha do crculo dos discpulos (o que umaagravante),pois assim no se quer permitir que Cristo seja Cristo. Ofato de ser justamente Pedro, a Rocha da Igreja, a tornar-se culpado,logo aps sua confisso de Jesus como o Cristo e de sua instalao,

    revela que, logo de incio, a Igreja se escandalizou com o Cristosofredor. Ela no quer semelhante Senhor e, como Igreja de Cristo,no quer permitir que ele lhe imponha a lei do sofrimento. O protestode Pedro exprime sua relutncia em se dispor a sofrer. Deste modo que Satans entrou na Igreja, pretendendo arranc-la cruz de seuSenhor.

    Jesus, portanto, viu-se na contingncia de esclarecer de modo

    insofismvel que o imperativo do sofrimento era extensivo aosdiscpulos. Assim como o Cristo somente Cristo quando sofredor erejeitado, tambm o discpulo somente discpulo quando sofredor erejeitado, crucificado com Cristo. O discipulado como unio com a

    pessoa de Jesus Cristo coloca o discpulo sob a lei de Cristo, ou seja,sob a cruz.

    Porm, ao comunicar esta verdade inalienvel a seus discpulos, Jesuscomea por lhes dar plena liberdade, o que digno de nota. "Se

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    algum quiser vir aps mim...", diz Jesus. No algo bvio, nemmesmo entre os discpulos. Ningum pode ser forado a isso, nemmesmo se pode esperar que algum o faa; antes: "se algum quiser"segui-lo, a despeito de quaisquer outras ofertas que lhe sejam feitas.Uma vez mais, tudo depende da deciso individual; em plenodiscipulado, toda a carreira , uma vez mais, interrompida, tudo ficaem aberto, nada se espera, nada se impe. To incisivo o que agorase vai dizer que, uma vez mais, antes de se anunciar a lei dodiscipulado, os prprios discpulos tm que sentir-se em liberdade.

    "Se algum quer vir aps mim, a si mesmo se negue." Assim como

    Pedro disse com relao a Cristo: "No conheo esse homem", devero discpulo dizer em relao a si mesmo. A autonegao jamais podeconsistir de uma srie, por longa que seja, de atos avulsos deautomartirizao ou de exerccios ascticos; autonegao no suicdio, porque ainda a a vontade do ser humano pode impor-se. Aautonegao consiste em conhecer apenas a Cristo, e no mais a si

    prprio; em ver somente aquele que segue em frente sem olharmos ocaminho que julgamos to difcil. A autonegao diz apenas isso: ele

    vai na frente; apega-te a ele.

    "... tome a sua cruz". Jesus, em sua graa, preparou os discpulos parao impacto destas palavras atravs do ensino da autonegao. S apstermos esquecido real e totalmente a ns prprios, somente aps nonos conhecermos mais a ns mesmos, que poderemos estar prontos

    para levar a cruz por amor a ele. Se conhecermos to-somente a ele,no conheceremos mais as dores de nossa cruz, pois s a Jesus queveremos. Se ele no nos tivesse bondosamente preparado paraouvirmos estas palavras, no as poderamos suportar. Todavia, assimele nos deu condies de aceitar tambm esta dura palavra comograa. Tal palavra nos encontra na alegria do discipulado e nele nosconfirma.

    A cruz no desventura nem pesado destino; o sofrimento que

    resulta da unio exclusiva com Cristo. A cruz no sofrimento casual,mas sofrimento necessrio. A cruz no sofrimento relacionado com

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    a existncia natural, mas com o fato de pertencermos a Cristo. A cruzno , essencialmente, apenas sofrimento, mas sim sofrimento erejeio - rejeio no sentido rigoroso, rejeio por amor de JesusCristo, e no em conseqncia de qualquer outra atitude ou confisso.Um cristianismo que no vinha mais tomando o discipulado a srio,que transformara o Evangelho no consolo da graa barata e para oqual a existncia natural e a existncia crist estavaminseparavelmente misturadas, tal cristianismo tinha que considerar acruz uma desventura diria, uma tribulao e angstia de nossa vidanatural. Esqueceu-se que cruz significa sempre tambm rejeio, queo oprbrio do sofrimento inerente cruz. Ser rejeitado no

    sofrimento, desprezado e abandonado pelos seres humanos, como selamenta tanto o Salmista, eis a caracterstica essencial do sofrimentoda cruz que j no compreensvel a uma cristandade incapaz dedistinguir entre existncia civil e existncia crist. A cruz acompaixo com Cristo, sofrer com Cristo. Somente a unio comCristo, tal como esta se verifica no discipulado, est, de fato, sob acruz.

    "... tome a sua cruz." Ela j est preparada desde o incio; falta apenaslev-la. Porm, para que ningum pense que tem que sair procura deuma cruz qualquer, seja onde for, ou que deve procurarvoluntariamente o sofrimento, Jesus diz que existe uma cruz j

    preparada para cada um de ns, uma cruz a ns destinada e atribudapor Deus. Cada qual tem que suportar a medida de sofrimento erejeio que lhe reservada. Essa medida varia de pessoa para pessoa,

    pois a um Deus honra com maior sofrimento, dando-lhe, inclusive, agraa do martrio; a outro, porm, no permite que seja tentado almde suas foras. No entanto, a cruz uma s.

    A cruz imposta a cada crente. O primeiro sofrimento com Cristo, aoqual ningum escapa, o chamado que nos chama para fora dasvinculaes com o mundo. E a morte do velho ser humano noencontro com Jesus Cristo. Quem entra no discipulado entrega-se

    morte de Jesus, expe sua vida morte. Isso assim desde oprincpio; a cruz no o fim horrvel de uma vida piedosa e feliz, mas

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    se encontra no comeo da comunho com Jesus Cristo. Todo chamadode Jesus conduz morte. Quer devamos abandonar casa e profisso,como o fizeram os primeiros discpulos, para o seguir, quer, comLutero, abandonemos o convento para ingressar na profisso secular,em ambos os casos aguarda-nos a mesma morte, a morte em JesusCristo, a extino do velho ser humano por causa do chamado deJesus. Porque o chamado de Jesus ao jovem rico lhe traz a morte,

    porque este somente pode ser discpulo como algum cuja vontadeprpria morreu, porque cada ordem de Jesus nos chama a morrer comtodos os nossos desejos e ambies, e porque no podemos desejarnossa prpria morte, por isso Cristo tem que ser, em sua Palavra,

    nossa morte e nossa vida. O chamado ao discipulado de Jesus, oBatismo em nome de Jesus Cristo morte e vida. O chamado deCristo, o Batismo coloca o cristo em luta diria contra o pecado e odiabo. Assim, cada dia, com suas tentaes da carne e do mundo, trazconsigo novos sofrimentos de Jesus Cristo para o discpulo. Osferimentos a infligidos, as cicatrizes que o cristo leva desta luta, sosinais vivos da comunho na cruz de Jesus.

    H, porm, outro sofrimento e outro vexame que a nenhum crente poupado. certo que somente o sofrimento de Cristo sofrimentoexpiatrio; todavia, por Cristo ter sofrido pelo pecado do mundo, porter cado sobre ele todo o fardo da culpa, e por Jesus Cristo ter dadoaos que o seguem parte no fruto de seu sofrimento, recaem tambmsobre o discpulo a tentao e o pecado que o encobrem de grandevergonha e o expulsam, qual bode expiatrio, para fora das portas dacidade. Assim o cristo toma sobre si os pecados e a culpa de outrosseres humanos. Certamente o cristo estaria aniquilado sob tal peso,no estivesse sendo ele prprio sustentado por aquele que tomou sobresi todos os pecados. Deste modo, porm, o cristo pode, na fora daPaixo de Cristo, suportar os pecados que sobre ele caem no momentoem que os perdoa. O cristo toma fardos sobre si - "Levem as cargasuns dos outros, e assim cumpriro a lei de Cristo." (Gl 6. 2). Assimcomo Cristo toma sobre si nosso fardo, devemos tambm ns levar as

    cargas dos irmos; a lei de Cristo, que tem que ser cumprida, carregar a cruz. O fardo do irmo que devo levar no apenas sua

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    situao, a maneira de ser, o temperamento, mas, acima de tudo, seuspecados. No posso lev-los sobre mim de outra forma senoperdoando-os a ele no poder da cruz de Cristo, cruz da qual me torneiparticipante. Assim o chamado de Jesus para levarmos nossa cruzcoloca cada discpulo na comunho do perdo dos pecados. O perdodos pecados o sofrimento de Cristo ordenado ao discpulo, imposto atodos os cristos.

    Como, porm, saber o discpulo qual sua cruz? Ele a receber aoentrar no discipulado do Senhor sofredor; na comunho de Jesus,reconhecer sua cruz.

    O sofrimento , pois, a caracterstica dos seguidores de Cristo. Odiscpulo no est acima de seu mestre. O discipulado passio

    passiva, sofrimento obrigatrio. Por isso, Lutero incluiu osofrimento no rol dos sinais da verdadeira Igreja. Um anteprojeto daConfessio Augustana definiu a Igreja como comunidade dos que so"perseguidos e martirizados por causa do Evangelho". Quem noquiser tomar sobre si a cruz, quem no quiser expor sua vida ao

    sofrimento e rejeio por parte dos seres humanos, perde acomunho com Cristo e no seu discpulo. Quem, porm, perder suavida no discipulado, no carregar da cruz, tornar a encontr-la no

    prprio discipulado, na comunho da cruz com Cristo. O oposto dodiscipulado envergonhar-se de Cristo, envergonhar-se da cruz,escandalizar-se por causa da cruz.

    O discipulado unio com o Cristo sofredor. Por isso, nada h deestranho no sofrimento do cristo; antes, graa, alegria. Os relatossobre os primeiros mrtires da Igreja testemunham que Cristotransfigura para os seus o momento extremo do suplcio com a certezaindescritvel de sua proximidade e comunho. Assim, nos tormentosmais atrozes sofridos por amor a Cristo, os mrtires experimentaram amxima alegria e bem-aventurana da comunho com seu Senhor.Suportar a cruz se lhes revelou como a nica maneira de triunfar sobre

    o sofrimento. Isto, porm, aplica-se a todos quantos seguem a Cristo,porque foi igualmente vlido para ele.

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    Adiantando-se um pouco, prostrou-se sobre o seu rosto, orando edizendo: Meu Pai, se possvel, passe de mim esse clice! Todavia, nocomo eu quero, e, sim, como tu queres... Tornando a retirar-se, oroude novo, dizendo: Meu Pai, se no possvel passar de mim esseclice sem que eu o beba, faa-se a tua vontade. (Mt 26.39 e 42).

    Jesus pede ao Pai que faa passar aquele clice; e o Pai ouviu a precedo Filho. O clice do sofrimento passaria - porm, unicamente ao ser

    bebido. Jesus sabe isso perfeitamente ao se ajoelhar pela segunda vezno Getsmani; sabe que o sofrimento passar ao ser suportado.

    Somente suportando-o que ele o vencer e derrotar. A cruz suavitria.

    Sofrimento afastamento de Deus. Por isso que quem se encontra nacomunho de Deus no pode sofrer. Jesus confirmou esta lio doAntigo Testamento. Justamente por essa razo que ele toma sobre sio sofrimento de todo o mundo, vencendo-o assim. Ele sofre toda aseparao de Deus. O clice passa se for esvaziado. Jesus quer vencer

    o sofrimento do mundo; por isso, tem que prov-lo at ao extremo. Osofrimento continua a ser afastamento de Deus; porm, na comunhodo sofrimento de Jesus Cristo, o sofrimento vencido pelo sofrimento,e justamente no sofrimento se experimenta a comunho com Deus.

    O sofrimento precisa ser suportado para que passe. Ou o mundo temque suport-lo e sucumbir sob seu peso, ou ele recai sobre Cristo e vencido por ele. Dessa maneira que Cristo sofre em lugar do mundo.Exclusivamente o sofrimento de Cristo sofrimento expiatrio. Mastambm a Igreja sabe agora que o sofrimento do mundo est procurade algum que o tome sobre si. No discipulado de Cristo, talsofrimento recai sobre a Igreja, e esta o suporta sabendo-se, por suavez, suportada por Cristo. Ao seguir a Cristo, sob a cruz, a Igreja deJesus Cristo representa o mundo perante Deus.

    Deus um Deus carregador. O Filho de Deus tomou sobre si nossacarne e, por isso, suportou a cruz, suportou todos os nossos pecados e,

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    por seu carregar, trouxe a reconciliao. Da mesma forma, o discpuloest chamado a levar fardos. Ser cristo consiste em levar fardos.Como Cristo manteve a comunho do Pai levando fardos, assimtambm carregar fardos , para o discpulo, comunho com Cristo. Oser humano pode livrar-se do fardo que lhe imposto. Mas, assim

    procedendo, ele no se liberta propriamente do fardo; antes, passa alevar um fardo ainda mais pesado, mais insuportvel. Leva, por livreescolha, o jugo de si mesmo. Jesus convidou a todos os oprimidos portoda sorte de sofrimentos e fardos para os lanarem fora e tomaremsobre si seu jugo, que suave, e seu fardo, que leve. Seu jugo efardo so a cruz. Colocar-se sob essa cruz no significa misria e

    desespero, mas refrigrio e descanso para as almas, a supremaalegria. A, ento, no andamos mais sob o peso de leis e fardos defeitura prpria, mas sob o jugo daquele que nos conhece e caminha anosso lado sob o mesmo jugo, onde temos a certeza e a proximidadede sua comunho. a Cristo que o seguidor encontra ao tomar sobresi sua cruz.

    Isso deve ir no de acordo com teu entendimento, mas acima dele;

    mergulha na insensatez e dar-te-ei meu entendimento; no saber paraonde vais saber exatamente para onde vais. Meu entendimentotorna-te insensato. Assim saiu Abrao de sua ptria sem saber paraonde ir. Confiou em minha sabedoria e desistiu de sua prpria, eencontrou o caminho certo e o destino certo. Eis o caminho da cruz: tuno o podes achar; eu tenho que guiar-te como a um cego; por issonem tu, nenhum ser humano, nenhuma criatura, mas eu, eu em pessoate ensinarei, atravs de meu Esprito e Palavra, o caminho que devestrilhar. No a obra que tu escolhes, no o sofrimento que tu imaginas,mas sim o caminho que te preparado contra tua escolha, contra teu

    pensamento e desejo - a esse segue, a esse te chamo, nele s discpulo; tempo oportuno, teu Mestre chegou. (Lutero).Ento comeou ele a ensinar-lhes que era necessrio que o Filho do

    homem sofresse muitas coisas, fosse rejeitado pelos ancios, pelos

    principais sacerdotes e pelos escribas, fosse morto e que depois de

    trs dias ressuscitasse. E isto ele expunha claramente. Mas Pedro,chamando-o parte, comeou a reprov-lo. Jesus, porm, voltou-se e,

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    fitando os seus discpulos, repreendeu a Pedro e disse: Arreda!

    Satans, porque no cogitas das coisas de Deus, e, sim das dos seres

    humanos. Ento, convocando a multido e juntamente os seus

    discpulos, disse-lhes: Se algum quer vir aps mim, a si mesmo se

    negue, tome a sua cruz e siga-me. Quem quiser, pois, salvar a sua

    vida, perd-la-; e quem perder a vida por causa de mim e do

    evangelho, salv-la-. Que aproveita ao ser humano ganhar o mundo

    inteiro e perder a sua alma? Porque qualquer que, nesta gerao

    adltera e pecadora, se envergonhar de mim e de minhas palavras,

    tambm o Filho do homem se envergonhar dele, quando vier na

    glria de seu Pai com os santos anjos. (Mc 8.31-38).

    Dietrich Bonhoeffer