o dito por não dito

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O Dito por Não Dito Um Conto de O Energúmeno

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O Dito por Não Dito

Um Conto

de

O Energúmeno

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O Dito por Não Dito

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O presente conto é

uma obra de ficção.

Qualquer semelhança

com factos ou pessoas

reais é pura e simples

coincidência.

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O Dito por Não Dito

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Dedicado aos verdadeiros

Homens, àqueles que jamais

seriam capazes de fazer aos

outros o que eles próprios não

gostariam de experienciar!

Dedicado também a todos

aqueles que, depois de lerem

este conto, consigam perceber

melhor as causas e os efeitos

do comportamento humano!

O Energúmeno

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O Dito por Não Dito

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ra uma pequena cidade, igual a tantas outras; igual a todas afinal,

independentemente do seu tamanho e da sua localização geográfica.

Tal como as outras, esta pequena cidade continha em si todos os ingredientes

necessários para a sua subsistência actual: tinha pessoas ocas e ambiciosas, tinha

pessoas sérias e honestas, ainda que, destas, poucas, muito poucas, tinha edifícios

pomposos e elitistas, tinha casas que transbordavam pobreza e miséria. Tinha

estruturas públicas que afinal não eram tão públicas assim, tinha estátuas e

monumentos que homenageavam vá-se lá saber quem ou o quê. Tinha infra-

estruturas deficientes que, como não poderia deixar de ser, beneficiavam uns e

prejudicavam outros. E tinha, obviamente, os seus homens de poder, uns corruptos

e outros nem tanto, os políticos e os homens de negócios, essa minoria que, à

sombra dos interesses pessoais, puxa os cordelinhos do destino dos ignorantes e

dos incautos. Como em toda a parte, nesta cidade também se mostrava a obra feita

para encobrir a “obra” que se ia fazendo.

Com papas e bolos se enganam os tolos! É antigo o ditado mas sempre tão actual o

seu significado! E a cidadezinha tinha, portanto, ostentação e empáfia quanto

bastem para transmitir aos cidadãos, aos fúteis e aos ignorantes claro está, a ideia

de uma cidade pautada pela modernidade e pelo progresso. Já o mesmo não se

passava no que tocava a valores: imperavam ainda os mesmos pelos que se regiam

os cro-magnons há cerca de trinta mil anos atrás.

Eram uma constante as críticas e as conspirações de mesa de café, que nunca

passam disso mesmo; a coragem que magicamente aparece ante meia dúzia de

imperiais, o cortar na casaca alheia que sempre se finaliza com um “Oh, pá, vê lá,

não digas nada senão ainda me arranjas problemas”; a bajulação e a aparente

vassalagem prestadas aos políticos e às ditas pessoas importantes com toda a

parafernália inerente: “se me conseguires isto, arranjo-te aquilo”, “é só fechares os

olhos desta vez e vais ver que não te arrependes”, “meu caro, faça-me este favor e

verá como isso só lhe trará vantagens”. Como em todas as cidades, um oculto

vaivém de “luvas”, um secreto rodopiar de “sacos” e o esboçar de sorrisos que

nasciam dos lodos do egocentrismo e das entranhas da ambição de poder,

constituíam o quotidiano citadino.

Sentado na esplanada do café que diariamente frequentava, quanto mais não fosse

para ter oportunidade de se mostrar solidário e atento no convívio com os seus

concidadãos, o presidente da câmara desta pequena cidade olhava em volta com ar

satisfeito. A coisa corria-lhe de feição. O partido dele, na oposição, ganhava terreno

eleitoral, o que não era difícil dada a conjuntura presente, e o povo, que tem

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memória curta e comportamento robotizado, se nas anteriores eleições tinha

votado no partido do governo, nas próximas votaria no seu partido. Para além

disso, na sua autarquia tudo rolava pacífica e serenamente. Ninguém se queixava e

por conseguinte nada interferia nos sistemas implantados.

- Bom dia Sr. Presidente! E então, a coisa rola?

- Bom dia – respondia ele com ar de quem sabe que é reverenciado.

- E então diga lá – perguntava curiosamente o cidadão enquanto se sentava algo

estrepitosamente na mesa do presidente – o arquitecto Salgado já tem o projecto

aprovado?

- O gabinete ainda não me informou acerca disso. Passe pela câmara mais logo, vou

ver o que posso fazer.

- Óptimo, Sr. Presidente, óptimo – dizia enquanto esfregava as mãos sapudas que

faziam jus à sua estatura pequena e redonda. – É preciso andar p’ra frente. As

condições que temos agora para construir o empreendimento são as melhores. Há

dificuldades e sabe que quando há dificuldades é mais fácil negociar. Materiais e

mão-de-obra, é tudo mais fácil, o senhor sabe.

- Passe na câmara mais logo – concluiu o presidente pousando a chávena do café

que tinha acabado de tomar e fazendo menção de meter a mão no bolso do casaco

para tirar dinheiro.

- Não, não, Sr. Presidente, deixe estar. Tenho muito gosto em pagar-lhe o café –

dizia o cidadão remexendo atabalhoadamente nos bolsos à procura de trocos.

- Bom, obrigado. Então até logo – e dizendo isto levantou-se dirigindo-se ao

aglomerado de edifícios autárquicos construídos com o quinhão dos salários de

muitas pessoas anónimas cuja única função na sociedade parecia ser a de produzir

dinheiro para a classe política malgastar.

Ao entrar no gabinete a secretária seguiu-o até à mesa de trabalho que sem dúvida

condizia com o cargo da pessoa que a ocupava: ampla, maciça, algo majestosa e

com um toque de luxo, elementos imprescindíveis para poder confraternizar em pé

de igualdade com os pares e para intimidar e apequenar os simples e os humildes.

- Sr. Presidente, acabou de chegar este e-mail – disse ela num tom de voz decidido

e aparentando um ligeiro desagrado. Estendendo-lhe o e-mail perguntou com

secreta esperança – quer que me ocupe disso? O senhor tem os ofícios para rever e

assinar e há uma data de processos que requerem a sua atenção imediata…

- Não, deixe cá ver – disse ele pegando na folha de papel e dispondo-se a lê-la –

vamos lá ver o que é isto.

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E baixando os olhos, pousou-os no papel e iniciou a leitura. A secretária aguardava,

calada e em pé, perscrutando com o olhar as expressões que o rosto do presidente

ia fazendo à medida que avançava na leitura.

- Huuum – o que é que esta quer? Não tenho a certeza de estar a entender isto

muito bem! O que é que ela quer dizer com “um exemplo inequívoco do apoio que

uma autarquia pode dar à arte, à verdadeira arte, que é concebida sem segundas

intenções”?

A secretária, sempre silenciosa, estava agora completamente focada nas

expressões faciais do presidente, que iam do incrédulo até ao espantado, passando

pela surpresa, pela dúvida e pela hesitação.

- Diz ela “Gostaria de ter o prazer de o cumprimentar e de constatar que, tal como

eu, também o Sr. Presidente, apoliticamente, imparcialmente, apoia a arte pela

arte, independentemente de todos os protagonismos e interesses que um tal acto

possa suscitar!” – ó Ângela – interpelou ele a secretária – recebemos algum convite

do gajo da junta?

- Que eu saiba não Sr. Presidente, mas também não é para admirar… - insinuou ela.

- Olhe, vou responder aqui a esta fulana que terei o maior prazer em aceitar o

convite dela e que lá estarei na junta para a inauguração da exposição. E pode ir,

não preciso de mais nada.

A secretária saiu fechando a porta atrás de si. Recostado na cadeira de executivo

em pele preta e oscilando lentamente para a direita e para a esquerda, uma mão

em gesto interrogativo acariciando o queixo e a outra segurando a folha de papel, o

presidente lia e relia o conteúdo daquele e-mail.

- Será que a gaja está a gozar comigo ou está a falar a sério? – pensou. – Tem aqui

partes que não percebo… não consigo perceber se está a ser sincera ou se me está a

insultar com subtileza… Bom – disse pousando o papel e concluindo em voz alta – a

junta é da oposição e como sempre os gajos não me convidaram. O convite desta

fulana é uma boa desculpa para lá ir e marcar a minha presença.

Começou a redigir a resposta, aceitando o convite e tentando deixar bem patente e

sem qualquer interpretação dúbia que:

- … tenho por hábito participar em todas as iniciativas realizadas no concelho –

dizia ele em voz baixa à medida que ia batendo nas teclas – ou fora dele, quando

envolvem pessoas do concelho, sempre que para tal sou convidado. Só raramente

não vou e faço-me representar se, por qualquer motivo estou ausente ou não

posso, de nenhuma forma estar presente. – continuava ele a teclar.

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O texto ia fluindo e à medida que escrevia, sentia que devia dar toda a ênfase

possível ao aspecto da aceitação de convites:

– …. uma vez que sempre faço questão de marcar presença… - e lá ia prosseguindo.

ra o dia da inauguração da tal exposição. A junta de freguesia era um edifício

novo e tinha uma galeria de exposições assaz agradável. Não era grande mas a

madeira que o revestia emprestava-lhe conforto e calidez e o espaço tornava-se

convidativo. Estava lá uma escassa dúzia de pessoas: os artistas que estavam a

expor, uma mulher de meia-idade sorridente e com uma postura desinibida que

conversava alegremente com eles, uma jornalista bastante jovem e bastante

reservada, e algumas pessoas que pausadamente e em silêncio iam contemplando

as obras expostas.

Decorridos alguns minutos eis que chega o presidente da câmara. Sorridente,

acompanhado pelo seu assessor de imprensa, entrou no espaço. A mulher de meia-

idade esboçou um amplo sorriso e acorreu a dar-lhe as boas vindas:

- Muito obrigada por ter acedido ao meu convite Sr. Presidente – dizia ela – fico

realmente feliz por tê-lo aqui!

Trocando apertos de mão, diz ele:

– Você escreve muito bem – e retirando um pedaço de papel rabiscado do bolso

leu em voz alta um par de frases – “Sou… uma cidadã comum, do mais comum

possível. Pauto-me por uma vida simples e principalmente de respeito pelo meu

semelhante, seja ele quem for, seja de que cor for, seja qual for o seu estatuto

social, religioso, político ou económico. Sou assistente de direcção por profissão,

escritora por devoção e ser humano por contingência da própria Vida!”

- Ainda bem que gosta – disse a mulher de meia-idade inegavelmente satisfeita

com o elogio – mas o senhor está aqui não por mim mas pelos nossos três artistas,

não é verdade? Permita-me que lhos apresente.

Um a um, a mulher de meia-idade apresentou-lhe os artistas e o sorriso do

presidente continuava intacto, exibindo exactamente a mesma amplitude. Depois

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das apresentações, e tomando um ar mais sério e solene como convém à

apreciação de obras de arte, percorreu toda a galeria elogiando os artistas de

forma clara e inequívoca. A mulher de meia-idade acompanhava-o e o presidente

tecia elogios às obras e às palavras que ela lhe tinha endereçado quando o

convidou:

- Você escreve mesmo muito bem…

- Qualquer dia edito um livro – respondia-lhe ela a sorrir.

- E faz-se a apresentação do livro no fórum – dizia ele.

- Quem sabe! Olhe que não me vou esquecer dessa oferta – ia dizendo ela.

Quando terminou de ver todos os quadros expostos, o presidente dirigiu-se aos

artistas e para espanto deles e da mulher de meia-idade, ainda com mais

solenidade declara:

- Estou surpreendido com o que vi! Gostei mesmo muito. Estão convidados para

expor no fórum da autarquia. Apareçam na câmara para a gente tratar disso!

A mulher de meia-idade ficou visivelmente agradada e os artistas algo

estupefactos. Passados os primeiros segundos de surpresa logo ali se trocaram

agradecimentos e elogios e a mulher de meia-idade foi imediatamente nomeada,

por entre risos e satisfações, representante oficial dos artistas na organização da

futura exposição. O presidente, entretanto, faz saber que está na hora de se retirar

e, sem esquecer o sorriso, cumprimentou os presentes e saiu.

inha-se passado quase um ano. A cidadezinha continuava pacificamente

enraizada na sua rotina.

Quase nada tinha mudado: os rituais sociais eram os mesmos, as discussões de café

repetiam o de sempre, o trânsito às horas de ponta continuava infernal e os cães,

sem e com dono, continuavam a defecar pacificamente nos passeios sem que

alguém parecesse importar-se ou até se tocasse pelo facto das caganitas serem do

seu próprio animal de estimação. De vez em quando lá se ouvia uma imprecação

proferida entre dentes: - Merda, lá borrei os sapatos todos! – mas a coisa ficava

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por aí. Aliás como tudo fica por aí. Passa-se um pano ou uma folha de jornal para

limpar os vestígios da porcaria que se calcou e passada a fúria inicial da

constatação de um facto desagradável e tão rapidamente quanto o cheiro

desaparece, o conformismo volta, impávido, a instalar-se nos corações

empedernidos e nas mentes mentecaptas do cidadão robotizado.

A mulher de meia-idade, sentada em frente ao seu laptop, como tantas vezes fazia,

antes de começar a escrever relembrou mentalmente e com um sorriso aquele fim

de tarde de inauguração na junta de freguesia. Inspirada pelas lembranças

agradáveis, começou a escrever:

“Estimado Sr. Presidente, esperando que se recorde de mim… “ e lá ia escrevendo

embalada por um convite que lhe pareceu sincero, espontâneo, verdadeiro. “Num

mundo que se vê cada vez mais insensível, indiferente ao sofrimento dos seres

humanos, num mundo que insiste em mergulhar profundamente nas trevas e que

não deseja sequer vislumbrar a sensatez e a formosura da claridade, num mundo

de crescente crueldade, do salve-se quem puder, nem que isso signifique

espezinhar das formas mais hediondas o nosso semelhante, é preciso que a

sensibilidade de uns poucos, que o seu sentido de preocupação e de seriedade, que

a sua inequívoca e verdadeira intenção de mostrar o lado belo, criativo e humano

do homem possa florescer! Ainda que em pequena escala, ainda que num pequeno

círculo, o importante é que a semente seja lançada à terra!

“E foi precisamente esta oportunidade de semear que o Sr. Presidente tão

simpática e altruisticamente ofereceu aos artistas que dentro de si transportam o

desejo fervente de uma humanidade melhor, mais sensível, mais justa; e esse

desejo deles manifesta-se, cresce e expande-se em cada obra que criam, em cada

mensagem que, cada um à sua maneira, transmitem; ao convidá-los para expor no

fórum do concelho, o Sr. Presidente ofertou, não só a eles mas a todos, um solo

fértil para que a semente de um mundo melhor cresça e prolifere!

“É, pois, neste âmbito, que venho de novo incomodá-lo com as minhas palavras,

pedindo-lhe que, tão prontamente quanto as suas ocupações lho permitam, me

indique qual seria a melhor data para a realização da exposição…”

A resposta não se fez esperar. Dois dias depois o chefe do gabinete da presidência

faz saber à mulher de meia-idade que o presidente “de imediato despachou o

assunto ao Vereador do Pelouro da Cultura para tentar arranjar uma data em que

fosse possível realizar-se a exposição que sugere.”

- A exposição que sugere? Que sugere? Mas eu não sugeri nada. Foi o presidente

que convidou… – pensava ela enquanto lia e relia o e-mail tentando perceber o

verdadeiro valor e sentido da palavra “sugere”.

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Passadas duas semanas, a mulher de meia-idade, a tal que entre risotas e boa

disposição tinha sido nomeada representante dos artistas, recebe um e-mail de um

funcionário do pelouro da cultura a solicitar que ela o contactasse para marcarem

uma data para a calendarização da exposição. Podia ler-se no e-mail “gostaria que

entrasse em contacto comigo no sentido de combinar uma data para nos

encontrar-mos no forum, para ter opurtunidade de conhecer os trabalhos que

pretende expor, assim como discutir pormenores para a calendarização e

produção de uma exposição.” Os erros ortográficos eram tão gritantes que não só

fariam cair o Carmo e a Trindade como fariam corar todas as pedras da calçada, e a

mulher de meia-idade deu por ela a questionar-se sobre como era possível

trabalhar-se numa área ligada à arte e assassinar uma língua de forma tão

contundente. Sim, porque para ela, as palavras constituíam um tesouro e deviam

ser respeitadas. Aliás, deviam ser respeitadas tanto as palavras como a palavra.

A reunião foi agendada telefonicamente e o diálogo tido foi insípido e insensível. A

frase infeliz nessa altura pronunciada pelo funcionário – “nós costumamos

trabalhar com artistas” – era já indubitável prenúncio do lastimável desfecho que

um convite presidencial, ou melhor, uma “escorregadela” presidencial, viria a ter.

Mas não nos adiantemos aos acontecimentos! A mulher de meia-idade à hora

marcada, ou melhor, um pouco antes da hora marcada, encontrava-se já no local

combinado. Convidaram-na a sentar-se e pediram-lhe para aguardar. Agradeceu e

sentou-se. Estava um pouco cansada e tinha andado à pressa para não se atrasar, já

que era sua convicção que o tempo dela era tão importante quanto o dos outros e

portanto tinha por hábito não se fazer esperar. Era uma questão de respeito pelos

outros, dizia ela muitas vezes.

Esperou talvez uns vinte minutos. Então, com um andar algo indolente e

desconchavado, lá apareceu o funcionário do pelouro da cultura. Com um ar

estudado que exibia talvez para tentar transmitir uma segurança e uma

superioridade que na realidade não tinha, intento esse perfeitamente inútil aos

olhos de um qualquer atento observador, o funcionário deu início ao seu discurso.

Em cada palavra tentava deixar ficar patente o distanciamento que pretendia criar.

Nada, no entanto, que afectasse a mulher de meia-idade que, sem papas na língua e

sem preconceitos e inibições, lhe estendia, a pedido dele, o portfólio de um dos

artistas.

O funcionário, pegando nele, fez um notório esforço para, desta vez, dar ares

inequívocos de entendido. Esforço inútil, diga-se. Folheou-o lentamente e com uma

expressão que ele supunha ser de especialista na matéria, e com a mesma lentidão,

exclama:

- Isto não é um trabalho profissional. Mal tem qualidade para ser exposto.

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- Desculpe-me, mas o senhor é crítico de arte? – indagou a mulher de meia-idade

com um tom que podia já deixar adivinhar um certo sarcasmo.

- Não, não sou – apressou-se a dizer o funcionário.

- Ah, bom – disse a mulher de meia-idade sorrindo e atirando as mãos para trás

num gesto de despreocupação – então o que acabou de dizer não passa da sua

opinião pessoal! Assim sendo, podemos continuar – incitou ela.

Depois deste pequeno incidente que por certo desagradou a ambos, e a cada um

por razões diferentes, a impossibilidade de comunicação estabeleceu-se

firmemente e ainda mais se solidificou quando a mulher de meia-idade lhe disse

que não gostava da pintura de um reconhecido pintor e o funcionário ficou com o

ar aparvalhado de quem é beato até ao tutano e é apanhado desprevenido ante

uma infame blasfémia. A mulher de meia-idade ainda tentou explicar-lhe que os

seres humanos sendo iguais em natureza, não o são porém em matéria de gostos, e

que a beleza não pode ser definida por decreto mas reside nos olhos de quem a vê,

mas tudo foi em vão. É que quem estuda a cartilha e se autolimita, acreditando

piamente que o conhecimento universal e absoluto está nela contido, jamais

conseguirá pensar pela própria cabeça e ter o dom do discernimento.

Os tempos que se seguiram foram tempos difíceis. Começaram pela mulher de

meia-idade a tentar obter uma data para a exposição e o funcionário empenhado

em não lha dar. Ela telefonava a perguntar se já havia uma data e ele dizia-lhe que

todavia não e pedia-lhe para ela voltar a ligar no mês seguinte. Aconteceu duas ou

três vezes e a mulher de meia-idade sentia-se algo exasperada.

Cansada da falta de informação e da inércia em que o pelouro da cultura parecia

estar imerso, resolveu escrever ao presidente. Talvez ele conseguisse agilizar as

coisas já que tinha sido ele o autor do convite. Se bem o pensou melhor o fez, e

para sua surpresa, não recebeu do presidente qualquer resposta. Silêncio total.

Como se o e-mail que ela mandou nunca tivesse existido. Depois dos telefonemas

foram os e-mails, muitos, que ela mandava directamente para o chefe desse

funcionário e aos quais não recebia resposta. E se recebia, eram sempre respostas

evasivas e cuja única finalidade era indiscutivelmente a de empalear.

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nze meses se passaram e a coisa nem atava nem desatava.

O presidente continuava a frequentar o café habitual e, olhando-se para ele,

lia-se-lhe no rosto a expressão mais inocente do mundo. Os compinchas da

política continuavam a poder contar com as benesses de quem está no poder: mais

um murozito ali na casa do vereador X, mais uns saquitos de cimento e uns tijolos

acolá para a moradia do vereador Y, um arranjozito no jardim do vereador Z e um

empurrãozito no licenciamento para o doutor Fulano de Tal! Claro que os

materiais e a mão-de-obra eram da autarquia, claro que um “jeito” na papelada é

sempre rentável, portanto, desde que as gentes andem contentes e satisfeitas com

festarolas, inaugurações e afins, desde que continuem com um comportamento

social cristalizado e apático, e permaneçam naquela ignorância inerte que fecunda

e fortalece as raízes do poder e da corrupção, que importa o que se faz na sombra?

Reinava, pois, naquela cidadezinha, a paz aparente e a passividade ilusória de uma

comunidade tipicamente humana, com todo o egoísmo e interesses puramente

pessoais que, a nível global, fazem com que a humanidade não saia do profundo

marasmo básico e primitivo de uma civilização a anos-luz de saber o que é a

verdadeira evolução. Sim, porque a sociedade, a civilização é o reflexo de cada um,

o reflexo de cada acto individual, por mais oculto ou manifesto, por mais ínfimo ou

grandioso que seja!

A mulher de meia-idade, com aquela forma de ser activa, enérgica e directa que tão

bem a caracterizava, e que, descobriu mais tarde, incomodava muita gente,

permaneceu firme no propósito de concretizar o convite presidencial. Os artistas

que ela representava mereciam que ela se esforçasse. Continuou portanto a insistir

e, finalmente, vencendo-os pela exaustão – pensou ela – conseguiu reunir-se com

os responsáveis por segunda vez. Como era de esperar, a reunião decorreu com

aquela falta de entusiasmo, por parte dos ditos responsáveis, que delata uma

profunda contrariedade. Ficou então acordado que muito em breve comunicariam

o período de tempo em que seria possível realizar a exposição. Quando o fizeram,

nem se dignaram contactar directamente a mulher de meia-idade. Simplesmente

incumbiram uma funcionária, que nunca tinha estado envolvida no processo, de

transmitir telefonicamente as datas.

- Bom dia. Pede-me o doutor Cicrano – o tal “entendido” e aspirante a crítico de

arte – para lhe dizer que pode escolher a data da exposição – dizia a funcionária,

comunicando o período em que a sala de exposições estaria livre. E a data foi

finalmente escolhida!

Havia toda uma série de coisas a preparar, a organizar. A mulher de meia-idade,

tendo bem uma noção do trabalho que seria necessário efectuar e no intuito de

O

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definir objectivamente o que seria de sua incumbência e o que seria da

incumbência do respectivo pelouro, tratou de contactar o responsável pela

exposição.

- Boa tarde! Seria possível ligar-me com o doutor Cicrano?

- Boa tarde. Só um momento.

- Obrigada.

- Estou – disse uma voz de mulher.

- Sim, muito boa tarde. Seria possível falar com o doutor Cicrano?

- E qual é o assunto?

- É a exposição conjunta que vai efectuar-se dentro de duas semanas sensivelmente

a convite do presidente.

- Ah, sim, já sei. Pode falar comigo porque sou eu que vou tratar disso – disse a

mulher, apresentando-se de seguida – sou a Isaura, a irmã do Cicrano.

Foi inevitável que pela cabeça da mulher de meia-idade passasse, como um

relâmpago, o slogan batido de “jobs for the boys” que obviamente inclui no

conceito os chamados tachos para os familiares.

- Muito gosto – disse a mulher de meia-idade. – Estou a ligar para definirmos com a

maior exactidão possível o que é preciso fazer – continuou ela.

- Não se preocupe. Agora é comigo. Preciso é que me mande a sinopse e o logótipo

da exposição para eu começar a fazer o mailing…

- Ah, são vocês aí que fazem o mailing? Óptimo. E quanto aos convites?

- Somos nós que os fazemos também.

- O convite ao presidente também?

- Sim, sim, nós tratamos de tudo – insistia ela.

- E o Porto de honra? E a informação aos meios de comunicação social? –

perguntava a mulher de meia-idade, tendo dificuldade em acreditar num serviço

tão, digamos, amplo e expedito por parte da função pública.

- Nós tratamos de tudo, – repetia a irmã do doutor Cicrano – somos profissionais,

sabemos o que fazemos – garantia ela.

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Entretanto, a mulher de meia-idade pensou que seria correcto também ela

endereçar um convite ao presidente. Afinal tinha sido ele o impulsionador de tudo

isto e ela tinha estado presente desde o início. Quase sem dar conta, veio-lhe no

entanto à mente o silêncio do presidente em relação à sua última mensagem,

aquela em que ela lhe comentava a falta de interesse e a deliberada passividade do

pelouro da cultura. Sacudindo esse pensamento com veemência por não querer

incorrer em maus juízos, precisamente ela que, até prova em contrário, acreditava

piamente que todo o ser é bom por natureza, começou a redigir o convite ao

presidente. “Estimado Sr. Presidente” – escrevia ela – “… a concretização do seu

convite só estará totalmente ultimada quando… nos agraciar com a sua inestimável

e imprescindível presença… “ – ia continuando ela – “ … com profunda gratidão…” –

e lá enviou o convite.

Os dias foram passando e o presidente nem tugia nem mugia em relação ao

convite. A mulher de meia-idade, apesar de, por essa altura, ter já começado a

somar dois mais dois, recusava-se determinantemente a aceitar que o que vinha

pensando pudesse ter algum fundamento.

Na véspera da inauguração da exposição, pegou no telefone e falou com a irmã do

doutor Cicrano para se certificar de que tudo estaria em ordem para o dia seguinte.

O facto de os convites lhe terem sido entregues apenas três dias antes da exposição

não a tinha deixado muito tranquila quanto à capacidade de organização do

pelouro.

E falando de convites, muito curioso era o facto de neles constar, fazendo o convite,

o nome do presidente e o do vereador do pelouro da cultura! O nome do

presidente indiscutivelmente teria que constar nos convites oficiais, mas… o do

vereador do pelouro da cultura? Se o fulano nem sequer foi mencionado ou

apareceu em altura alguma deste processo que durou dois anos?! Mas pensando

bem, isto apenas confirmava a regra. Aqueles que se julgam importantes e

poderosos não fazem o trabalho sujo, apenas o planeiam e o sugerem com

subtileza e requinte aos funcionários servis e interesseiros; e estes, sendo como

autómatos acéfalos e portanto não pensantes, não sentem o cheiro da imundície

quando lhe metem as mãos, porque, estupidamente, estão já inebriados pelo

perfume do poder que julgam hão-de vir a ter um dia! E quando o trabalho está

feito, quem colhe os louros, e apenas daquilo que lhes convém, são os que urdem as

tramas e não os que chafurdaram na porcaria!

- Queria apenas certificar-me de que está tudo em ordem para amanhã – disse ela à

irmã do tal doutor.

- Nós somos profissionais – dizia ela, com um tom de resoluta afirmação que

decididamente não convencia. – Está tudo pronto.

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- E o mailing e tudo isso? – insistia a mulher de meia-idade.

- Fique descansada. Está tudo tratado.

- Bom, então muito obrigada. Espero ter o gosto de a conhecer amanhã na

inauguração! – e despediu-se.

exta-feira, vinte e uma e trinta. A mulher de meia-idade chega ao local da

exposição. As únicas pessoas que lá estavam a essa hora eram o porteiro e o

doutor Cicrano. A mulher de meia-idade, com alguma ansiedade estampada no

rosto, cumprimentou-o:

- Olá, boa noite! Então, está tudo a postos?

- Olá. Sim, sim, está tudo – confirmou ele com um olhar inexpressivo.

- E a sua irmã? Ela vem, não vem? Teria muito gosto em conhecê-la! – perguntou a

mulher de meia-idade.

- Sim, deve ir – respondeu ele com a mesma inexpressividade do olhar plasmada na

voz.

Entretanto a mulher de meia-idade dirigiu-se à sala de exposições e, agora com o

agrado estampado no rosto, concluiu que tudo estava a postos. Aos poucos foram

chegando, primeiro os artistas e depois familiares e amigos dos artistas. A mulher

de meia-idade, enquanto falava alegremente com as pessoas presentes, ia olhando

para a porta na expectativa de ver o presidente da câmara. Depois começou a

estranhar a ausência de jornalistas. Era deveras estranho! Pelo menos um dos

jornais locais deveria ter aparecido, a exemplo do que tinha acontecido na

exposição na junta de freguesia dois anos antes – pensava ela. O tempo ia passando

e nem sinal do presidente, dos jornalista e da irmã do outro.

Circulando por entre familiares e amigos dos artistas, subitamente a atenção dela

foi captada por uma conversa no mínimo espantosa.

S

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- É inadmissível – dizia indignada uma senhora – eu nunca teria aceitado que

alguém me dissesse que obras é que eu deveria expor! Mas afinal quem é aqui o

artista?

A mulher de meia-idade, não conseguindo conter-se, perguntou:

- Desculpe intrometer-me, mas o que é que se passou afinal?

- O que se passou foi que houve censura às obras dos artistas, – desabafava ela com

acrescida indignação – os quadros expostos foram escolhidos pelo fulano que

andava a organizar a exposição e três ou quatro deles nem sequer foram expostos!

A surpresa tomou intensamente conta do rosto da mulher de meia-idade e também

ela, agora que começava a ter certezas quanto às suas desconfianças, sentiu crescer

em si a indignação. Mas quem diabo se julgava aquela criatura desconchavada,

aquele aspirante a crítico, aquele nariz empinado “tomador de ares de entendido”,

para se atrever a semelhante coisa? – ia pensando ela enquanto se dirigia com

passo enérgico à dita criatura.

- Quer fazer o favor de me explicar porque carga d’água é que decidiu o que se ia

expor? Estamos outra vez com a mania de que somos críticos de arte, é? – explodiu

ela perante o ar surpreendido e algo nervoso do doutor Cicrano.

- Eu falei com o artista em causa… - começou ele a dizer.

- Mas você não está a perceber que no que toca às obras você não tem que opinar

nada, e muito menos decidir? – barafustava ela visivelmente irritada perante tão

prepotente atitude.

- Eu tenho um curso de arte – lançou ele como arma de arremesso, como que a

pretender intimidar, como se aquela afirmação o ilibasse totalmente do abjecto

ataque de autoridade que o tinha assolado aquando da montagem da exposição.

- Você não tinha esse direito, não tem esse direito – cortou ela.

Visivelmente sem argumentos, comprovadamente sem capacidade de

contraposição, patente no rosto, nos gestos a impossibilidade de se explicar, a

criatura foi procurar refúgio e conforto na sensatez, nos princípios e educação

irrepreensíveis dos artistas. “Eles eram pessoas bem mais tranquilas que a mulher

de meia-idade. Essa era insuportável, um autêntico furacão indominável” –

pensava o doutorzito enquanto balbuciava, procurando apoio para a razão que

julgava ter, frases básicas e inconsistentes.

Entretanto os ânimos acalmaram. A mulher de meia-idade, readquirida a

serenidade, constatou, desta vez sem qualquer sombra de dúvida, que não se tinha

enganado: a exposição tinha tido lugar única e exclusivamente pela tenacidade e

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insistência dela. A vontade do pelouro, tivesse ela partido do seu ilustre

desconhecido vereador ou dos seus incompetentes funcionários, era obviamente a

de não a realizar. E tudo fizeram para que assim fosse: silenciaram o presidente,

protelaram o quanto puderam a sua realização, ludibriaram hipocritamente a

mulher de meia-idade durante dois anos.

O presidente, nitidamente um joguete nas mãos de vereadores e quiçá de

funcionários, não apareceu. Tal como todos os políticos, disse e escreveu “tenho

por hábito participar em todas as iniciativas … sempre que para tal sou convidado.

Só raramente não vou e faço-me representar se…estou ausente ou não posso, de

nenhuma forma estar presente” e depois não fez nada disso. Geralmente, as figuras

de topo em qualquer hierarquia, não importa a dimensão dela, são meramente

ornamentais e por isso mesmo desprovidas de carácter. Aparentam mandar muito

mas são manipuladas a bel-prazer por aqueles que ilusoriamente lhes são

subalternos. São figuras de temperamento amorfo e descaracterizado, munidas de

uma importância balofa que elas próprias se atribuem. Impulsionadas por aqueles

que as rodeiam, por aqueles que raramente dão a cara e que na realidade detêm o

poder, essas figuras dançam, consciente e inconscientemente, ao ritmo dos seus

caracteres fortes, porém vis e desprezíveis.

ui ver a exposição que me recomendaste mas estava fechada – informou

um amigo da mulher de meia-idade.

- Fechada? Não é possível. Vai estar patente ao público até ao final da próxima

semana – respondeu ela admirada.

- Pois, mas eram seis da tarde quando lá fui – insistiu o amigo – e apesar de na net

o horário de fecho indicado ser às sete, garanto-te que estava fechada. Fui embora

sem conseguir vê-la!

No dia seguinte resolveu ir ao local da exposição. Quando lá chegou verificou que

não estava afixada, na entrada, uma única indicação sobre a exposição, ou sobre os

horários de funcionamento da mesma. Nada, rigorosamente nada! Quem por ali

passasse jamais diria que dentro do edifício estava a decorrer algum evento

cultural. Entrou e dirigiu-se à sala de exposições. Para sua surpresa a sala estava às

- F

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escuras. Olhou em redor e não se via vivalma. Tinha entretanto verificado também

que nenhum jornal havia noticiado o que quer que fosse a respeito da exposição. Já

quase certa de que a coisa afinal era bem pior do que aquilo que pensava, no dia

seguinte a mulher de meia-idade telefonou à irmã do doutor Cicrano:

- Bom dia Isaura! Como está? Olhe, diga-me uma coisa: de certeza que chegou a

fazer o mailing da exposição a convidar as pessoas habituais, os jornalistas, etc?

- Ah, isso não é comigo, é com o gabinete de imprensa – apressou-se ela a dizer

num timbre de voz que não disfarçava uma determinada atrapalhação.

- Ah, pois, com o gabinete de imprensa! – repetiu algo cinicamente a mulher de

meia-idade – Então obrigada. Muito bom dia – disse pousando o telefone. Sim,

senhor! Que rico grupinho se juntou: uns mentem, outros enganam, outros fazem

figuras tristes! – pensou ela, ponderado se havia de ficar contente por não se ter

enganado nas suas deduções, ou triste por tomar consciência da existência de

tantos seres humanos indignos de tal denominação!

Voltou a pegar no telefone e desta vez ligou para o gabinete de imprensa da

câmara:

- Bom dia! Eu gostaria de saber por que razão é que esse gabinete não fez a

divulgação da exposição que está a decorrer no fórum.

- Desculpe? Exposição que está a decorrer? Mas que exposição? – perguntou o

homem inequivocamente surpreendido. – Não temos conhecimento de nada –

afirmou ele.

- Mas eu acabei de falar com uma funcionária do pelouro da cultura que me disse

que o gabinete de imprensa é que teria que ter feito a divulgação – contrapôs ela.

- Desculpe minha senhora, mas isso não é bem assim – contrariou educadamente o

homem do outro lado da linha. – Nós só procedemos à divulgação de qualquer

evento se o pelouro da cultura nos informar dele. Como compreenderá, se nada

nos disserem, nós não vamos certamente adivinhar… - prosseguiu ele.

- Claro, claro. Tem toda a razão – assentiu a mulher de meia-idade. – Quer dizer

então que não foram informados por parte do pelouro da cultura sobre a exposição

que está a decorrer?

-Exactamente – corroborou o homem.

- E portanto o gabinete não informou a imprensa nem enviou convites para os

nomes constantes na lista de pessoas a convidar? – insistiu ela.

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- Obviamente que não – reconfirmou ele. – No que respeita a este gabinete essa

exposição é inexistente!

Agradecendo ao homem educado e simpático que tão bem a atendeu, a mulher de

meia-idade pousou o telefone e desta vez a tristeza profunda instalou-se-lhe

mesmo na alma! O que levaria o ser humano à mentira, à perfídia, à má acção

deliberada e consciente? Seria a sua própria natureza ou seria apenas a sua

ignorância? Seria a ânsia de poder ditada pela constatação da própria

insignificância ou seria a total inconsciência perante o bem e o mal? Que

incapacidade teria o ser humano para conseguir compreender que se hoje vitima

amanhã será vitimado? Pondo de lado a fealdade dos actos, a argúcia das

artimanhas, a mesquinhez dos propósitos e a falta de respeito pelos semelhantes,

eu diria que o homem, em termos de valores e princípios, é todavia uma criança e

não tem a mínima consciência do dano que as suas brincadeiras e os seus

brinquedos podem causar – concluiu ela tristemente em pensamento.

Entretanto a exposição termina e mais uma vez aquele aparente clima de

normalidade se instala na cidadezinha, palco e exemplo vivo da ignomínia e da

mediocridade do ser humano. E se eu, o Energúmeno, alguém que aos vossos olhos

não passará de um ser desprezível e abjecto, não lhes tivesse contado este conto,

provavelmente os caros leitores iriam, mais cedo ou mais tarde, cair em análoga

esparrela ou continuar enganados a respeito de alguns dos vossos conterrâneos.

Pelos menos assim, quando desconfiarem de que algo não está a correr como

devia, podem sempre lembrar-se deste conto e tomar cautela. Sim, porque caros

leitores, não creiam que vida real está assim tão longe da ficção!

Senão reparem: em quantas cidades, em quantas câmaras, de quantos países do

mundo podemos encontrar presidentes mentirosos, peritos em afirmar que não

disseram o que disseram, hipócritas e fracos como o deste conto? Quantos

vereadores do pelouro da cultura, manipuladores e sub-reptícios, silenciosos e

ardilosos, podemos encontrar por esse mundo fora, como o do nosso conto?

Quantos doutores Cicranos, papagaios repetitivos, ufanos de um valor que não têm,

convencidos de uma superioridade inexistente e com personalidades

inconsistentes não conseguiremos nós encontrar iguaizinhos ao deste conto?

Quantas funcionárias sem qualquer noção de sensatez e coerência, tontas e servis,

incapazes de enfrentar consequências sem lançar mão da mentira, tal qual a irmã

do doutorzito, conseguiremos encontrar ao virar de cada esquina? E quantas

situações tão francamente imaturas e tão degradantemente tristes como a deste

conto poderemos encontrar nesse vasto mundo? Quantos? Quantas? Respondam

vocês, caros leitores, porque eu, tendo-lhes contado o conto, dou por finda e

cumprida a minha missão!

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E o presidente desta cidadezinha igual a tantas outras que se acautele, não vá a

mulher de meia-idade, imprevisível e activa como é, forçá-lo a cumprir a oferta que

lhe fez de fazer a apresentação do livro que ela escrevesse precisamente no mesmo

lugar da exposição sabotada! Cuidado, porque palavras nem sempre as leva o

vento!

Fim