o edificio

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Tá Aqui. Abracinhos!!! O EDIFÍCIO Chegará o dia em que os teus pardieiros se transformarão em edifícios; naquele dia ficarás fora da lei.(Miquéias,VII, 11) "Mais de cem anos foram necessários para se terminar as fundações do edifício que, segundo o manifesto de incorporação, teria ilimitado número de andares. As especificações técnicas, cálculos e plantas, eram perfeitas, não obstante o ceticismo com que o catedrático da Faculdade de Engenharia encarava o assunto. Obrigado a se manifestar sobre a matéria, por alunos insatisfeitos com o tom reticencioso do mestre, resvalava para a malícia afirmando tratar-se de"vagas experiências de outra escola de concretagem". Batida a última estaca e concluídos os alicerces, o Conselho Superior da Fundação, a que incumbia a direção geral do empreendimento, dispensou os técnicos e operários, para, em seguida, recrutar nova equipe de profissionais e artífices. A LENDA Ao engenheiro responsável, recém-contratado, nada falaram das finalidades do prédio. Finalidades, aliás, que pouco interessavam a João Gaspar, orgulhoso como se encontrava de, no início da carreira, dirigir a construção do maior arranha- céu de que se tinha notícia. Ouviu atentamente as instruções dos conselheiros, cujas barbas brancas, terminadas em ponta, lhes emprestavam aspecto de severa pertinácia. Davam-lhe ampla liberdade, condicionando-a apenas a duas ou três normas, que deveriam ser corretamente observadas. A sua missão não seria

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Murilo rubião

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T Aqui. Abracinhos!!!

O EDIFCIO

Chegar o dia em que os teus pardieiros se transformaro em edifcios; naquele dia ficars fora da lei.(Miquias,VII, 11) "Mais de cem anos foram necessrios para se terminar as fundaes do edifcio que, segundo o manifesto de incorporao, teria ilimitado nmero de andares. As especificaes tcnicas, clculos e plantas, eram perfeitas, no obstante o ceticismo com que o catedrtico da Faculdade de Engenharia encarava o assunto. Obrigado a se manifestar sobre a matria, por alunos insatisfeitos com o tom reticencioso do mestre, resvalava para a malcia afirmando tratar-se de"vagas experincias de outra escola de concretagem". Batida a ltima estaca e concludos os alicerces, o Conselho Superior da Fundao, a que incumbia a direo geral do empreendimento, dispensou os tcnicos e operrios, para, em seguida, recrutar nova equipe de profissionais e artfices. A LENDA Ao engenheiro responsvel, recm-contratado, nada falaram das finalidades do prdio. Finalidades, alis, que pouco interessavam a Joo Gaspar, orgulhoso como se encontrava de, no incio da carreira, dirigir a construo do maior arranha-cu de que se tinha notcia. Ouviu atentamente as instrues dos conselheiros, cujas barbas brancas, terminadas em ponta, lhes emprestavam aspecto de severa pertincia. Davam-lhe ampla liberdade, condicionando-a apenas a duas ou trs normas, que deveriam ser corretamente observadas. A sua misso no seria somente exercer funes de natureza tcnica. Envolvia toda a complexidade de um organismo singular. Os menores detalhes do funcionamento da empresa construtora estariam a seu cargo, cabendo-lhe proporcionar salrios compensadores e constante assistncia ao operariado. Competia-lhe, ainda, evitar quaisquer motivos de desarmonia entre os empregados. Essa diretriz, conforme lhe acentuaram, destinava-se a cumprir importante determinao dos falecidos idealizadores do projeto e anular a lenda corrente de que sobreviveria irremovvel confuso no meio dos obreiros ao se atingir o octingentsimo andar do edifcio e, consequentemente, o malogro definitivo do empreendimento. No decorrer das minuciosas explicaes dos dirigentes da Fundao, o jovem engenheiro conservou-se tranquilo, demonstrando absoluta confiana em si, e nenhum receio quanto ao xito das obras. Houve, todavia, uma hora em que se perturbou ligeiramente, gaguejando uma frase ambgua. J terminara a entrevista e ele recolhia os papis espalhados pela mesa, quando um dos velhos o advertiu: Nesta construo no h lugar para os pretensiosos. No pense em termin-la, Joo Gaspar. Voc morrer bem antes disso. Ns que aqui estamos constitumos o terceiro Conselho da entidade e, como os anteriores, jamais alimentamos a vaidade de sermos o ltimo. A ADVERTNCIA A mesma orientao que recebera dos seus superiores, o engenheiro a transmitiu aos subordinados imediatos. Nem sequer omitiu a advertncia que o encabulara. E vendo que suas palavras tinham impressionado bem mais a seus ouvintes do que a ele as do ancio, sentiu-se plenamente satisfeito. A COMISSO Joo Gaspar era meticuloso e detestava improvisaes. Antes de encher-se a primeira forma de concreto, instituiu uma comisso de controle para fiscalizar o pessoal, organizar tabelas de salrios e elaborar um boletim destinado a registrar as ocorrncias do dia. Essa medida valeu maior rendimento de trabalho e evitou, por diversas vezes, dissenses entre os assalariados. A fim de estimular a camaradagem entre os que lidavam na construo, desenvolviam-se aos domingos alegres programas sociais. Devido a esse e outros fatores, tudo corria tranqilamente, encaminhando-se a obra para as etapas previstas. De cinqenta em cinqenta andares, Joo Gaspar oferecia uma festa aos empregados. Fazia um discurso. Envelhecia. O BAILE Inquietante expectativa marcou a aproximao do 800 pavimento. Redobraram-se os cuidados, triplicou-se o nmero de membros da Comisso de Controle, cuja atividade se tornara incessante, superando dificuldades, aplainando divergncias. Deliberadamente, adiou-se o baile que se realizava ao termo de cada cinqenta pisos concludos. Afinal, dissiparam-se as preocupaes. Haviam chegado sem embaraos ao octingentsimo andar. O acontecimento foi comemorado com uma festa maior que as precedentes. Pela madrugada, porm, o lcool ingerido em demasia e um incidente de pequena importncia provocaram um conflito de incrvel violncia. Homens e mulheres, indiscriminadamente, se atracaram com ferocidade, transformando o salo num amontoado de destroos. Enquanto cadeiras e garrafas cortavam o ar, o engenheiro, aflito, lutava para acalmar os nimos. No conseguiu. Um objeto pesado atingiu-o na cabea, pondo fim a seus esforos conciliatrios. Quando voltou a si, o corpo ensangentado e dolorido pelas pancadas e pontaps que recebera aps a queda, sentiu-se vtima de terrvel cilada. De modo inesperado, cumprira-se a antiga predio. O EQUVOCO Depois do incidente, Joo Gaspar trancou-se em casa, recusando-se a receber os seus mais ntimos colaboradores, para no ouvir deles palavras de consolo. J que se fazia impossvel continuar as obras, desejava, ao menos, descobrir o erro em que incorrera. Acreditava ter obedecido fielmente s instrues do Conselho. Se fracassara, a culpa deveria ser atribuda omisso de algum detalhe desconhecido da profecia. A insistncia dos auxiliares venceu sua teimosia e concordou em atend-los. Queriam saber por que desanimara, no mais comparecera ao edifcio. Ficara ressentido pela briga? Que adiantaria a minha presena? No lhes satisfez a minha humilhao? Como? indagaram. Aquilo fora uma simples bebedeira. Estavam todos envergonhados com o que acontecera e lhe pediam desculpas. E ningum abandonou o trabalho? Ante a resposta negativa, ele se abraou aos companheiros: Daqui para frente nenhum obstculo interromper nossos planos! (Os olhos permaneciam umedecidos, mas os lbios ostentavam um sorriso de altivez.) O RELATRIO Em ambiente calmo, todos se empenhando nas suas tarefas, mais noventa e seis andares foram acrescidos ao prdio. As coisas seguiam perfeitas, a mdia de trabalho dos assalariados era excelente. Empolgado por um delirante contentamento, o engenheiro distribua gratificaes, desfazia-se em gentilezas com o pessoal, vagava pelas escadas, debruava-se nas janelas, dava pulos, enrolava nas mos as barbas embranquecidas. Para prolongar o sabor do triunfo, que o cansao comeava solapar, ocorreu-lhe redigir um circunstanciado relatrio aos diretores da Fundao, contando os pormenores da vitria. Demonstraria tambm a impossibilidade de surgir, no futuro, outras profecias que pudessem embaraar o prosseguimento das obras. Ultimado o memorial, ele se dirigiu sede do Conselho, lugar em que estivera poucas vezes e em poca bem remota. Em vez dos cumprimentos que julgava merecer, uma surpresa o aguardava: haviam morrido os ltimos conselheiros e, de acordo com as normas estabelecidas aps a desmoralizao da lenda, no se preencheram as vagas abertas. Ainda duvidando do que ouvira, o engenheiro indagou ao arquivista nico auxiliar remanescente do enorme corpo de funcionrios da entidade se lhe tinham deixado recomendaes especiais para a continuao do prdio. De nada sabia, nem mesmo por que estava ali, sem patres e servios a executar.Ansiosos por descobrir documentos que os orientassem, atiraram-se faina de revolver armrios e arquivos. Nada conseguiram. S encontraram especificaes tcnicas e uma frase que, amide, aparecia margem de livros, relatrios e plantas: " preciso evitar-se a confuso. Ela vir ao cabo do octingentsimo pavimento". A DVIDA Esvara-se a euforia de Joo Gaspar. Vago e melanclico, retornou ao edifcio. Da ltima laje, as mos apoiadas na cintura, teve um momento de mesquinha grandeza, julgando-se senhor absoluto do monumento que estava a seus ps. Quem mais poderia ser, desde que o Conselho se extinguira?! Fugaz foi o seu desmedido orgulho. Ao regressar a casa, onde sempre faltara a diligncia de uns dedos femininos, as dvidas o perseguiam. Por que legavam a um mero profissional tamanho encargo? Quais os objetivos dos que tinham idealizado to absurdo arranha-cu? As perguntas iam e vinham, enquanto o edifcio se elevava e menores se faziam as probabilidades de se tornar claro o que nascera misterioso. Sorrateiro, o desnimo substituiu nele o primitivo entusiasmo pela obra. Queixava-se aos amigos do tdio que lhe provocava o infindvel movimento de argamassa, pedra britada, frmas de madeira, alm da angstia que sentia, vendo o montono subir e descer de elevadores. Quando a ansiedade ameaou lev-lo ao colapso, convocou os trabalhadores para uma reunio. Explicou-lhes, com enftica riqueza de detalhes, que a dissoluo do Conselho obrigava-o a paralisar a construo do edifcio. Falta-nos, agora, um plano diretor. Sem este no vejo razes para se construir um prdio interminvel concluiu. Os operrios ouviram tudo com respeitoso silncio e, em nome deles, respondeu firme e duro um especialista em concretagem: Acatamos o senhor como chefe, mas as ordens que recebemos partiram de autoridades superiores e no foram revogadas. O DESESPERO Joo Gaspar, inutilmente, apelaria para a compreenso dos servidores. Usava recursos convincentes, numa linguagem branda, porque seus propsitos eram pacficos. Igualmente corteses, os empregados repeliam a idia de abandonar o trabalho. Ouam-me pedia ele, impaciente com a obstinao dos subordinados. inexeqvel um monstro de ilimitados pavimentos! Seria necessrio que as fundaes fossem reforadas medida que se aumentasse o nmero de andares. Tambm isto impraticvel. Apesar de ouvido sempre com ateno, no convencia a ningum. E teve que assumir uma atitude de intransigncia, demitindo todo o pessoal. Os operrios se negaram a aceitar o ato de dispensa. Alegavam a irrevogabilidade das determinaes dos falecidos conselheiros. Por fim, disseram que iriam trabalhar noite e aos domingos, independente de qualquer pagamento adicional. O ENGANO A deciso dos assalariados de aumentar o nmero de horas de servio deu novo alento ao engenheiro, que esperava v-los vencidos pela estafa, pois lhes seria impossvel manter por muito tempo semelhante esforo coletivo. Logo verificaria seu engano. Alm de no apresentarem sinais de cansao, para ajud-los vieram das cidades vizinhas centenas de trabalhadores que se dispunham a auxiliar gratuitamente os colegas. Vinham cantando, sobraando as ferramentas, como se preparados para longa e alegre campanha. Pouco adiantava recusar-lhes a colaborao, eles mesmos escolhiam as tarefas e as iniciavam com entusiasmo, indiferentes agressiva repulsa de Joo Gaspar. OS DISCURSOS Vendo multiplicar as levas de voluntrios, o engenheiro no teve mais animo de enxot-los. Passou a percorrer, um por um, os andaimes, exortando-os a abandonar o trabalho. Fazia longos discursos e, muitas vezes, caa desfalecido de tanto falar. A princpio, os empregados se desculpavam, constrangidos por no ouvirem atentamente as suas palavras. Com o passar dos anos, habituaram-se a elas e as consideravam pea importante nas recomendaes recebidas pelo engenheiro-chefe antes da dissoluo do Conselho. No raro, entusiasmados com a beleza das imagens do orador, pediam-lhe que as repetisse. Joo Gaspar se enfurecia, desmandava-se em violentos insultos. Mas estes vinham vazados em to bom estilo, que ningum se irritava. E, risonhos, os obreiros retornavam ao servio, enquanto o edifcio continuava a ganhar altura."

Murilo Rubio: um clssico do conto fantstico

Jorge Schwartz

Clssico no um livro (repito) que necessariamente possui estes ou aqueles mritos; um livro que as geraes dehomens, urgidas por razes diversas, lem com prvio fervor e com uma misteriosa lealdade.Jorge Luis Borges

Ilhado em Minas Gerais, Murilo Rubio (1916-1991) participa de um gnero sem saber que estava em total sintonia com autores que posteriormente consagrariam o assim denominado boorn da literatura fantstica latino-americana. Enquanto Borges publica Fices (1944) e Gortzar estria na revista Los Anales de Buenos Aires com o clssico "Casa tomada (1946), Murilo publica, em 947, seuprimeiro livro composto exclusivamente de contos fantsticos: 0 ex-mgico, pela Editora Universal, do Rio de Janeiro, contendo os temas centrais que marcaro presena em sua narrativa posterior.

0 que primeiro chama a ateno em praticamente todos os seus contos a utilizao de epgrafes extradas da Bblia. Esses minitextos, alm de universalizar os temas tratados e longe de exercer qualquer funo religiosa, servem como fragmentos antecipadores das temticas dos contos. E como se o autor reafirmasse continuamente que, embora fantsticos, seus temas so to antigos e to atuais como a propria Bblia. No texto sagrado, assim como nos contos do escritor mineiro, so recorrentes o drama da existncia do ser humano e a incessante busca de respostas diante do mal-estar e da estranheza da passagem ou da dispora do homem pelo mundo. Embora o texto cristo aparea de forma explcita, os temas murilianos so agnsticos, cticos: no h salvao para seus personagens desesperados num cotidiano sufocante. Os espaos determinam a condio humana desterritorializada, condenada auma espcie de exlio fsico e psicolgico.

O fantstico que impregna as histrias serve de artifcio ficcional para chamar a ateno sobre a crua realidade do homem na Terra. Ao contrrio dos modelos cannicos do sculo XIX, em que prevalece a hesitao do narrador, do personagem e at do leitor, o sobrenatural moderno nunca postula um enigma a ser decifrado, uma intriga que vise a desvendar o inexplicvel ou uma explicao racional para a intruso do irracional. A clssica tenso ou suspense dos contos de horror e de mistrio e o subseqente desfecho narrativo pelo desvendamento da presena do fenmeno sobrenatural perdem totalmente a sua funo na fico muriliana. Pelo contrrio, os "efeitos do real, como os denominaria Roland Barthes, acabam assimilando os diversos graus de excepcionalidade, criando um efeito de verossimilhana dentro da narrativa que culmina com o carter autnomo da irrealidade. J em 1954, por ocasio do "Primeiro Manifesto do Surrealismo, Andr Breton afirmaria que 0 que h de admirvel no fantstico que no h mais 0 fantstico, s h o real. E assim que aceitamos com tranqilidade e sem nenhum sobressalto, e a partir das primeiras linhas, a presena de um encantador coelho, Teleco, que pede cigarros ao seu interlocutor, com quem logo passa a conviver, ou a existncia de drages que ingressam irremediavelmente na sociedade, ou a presena de Zacarias, morto que, semelhana de Brs Cubas, narra sua prpria histria.

Esse pacto de leitura um procedimento herdeiro dos mecanismos narrativos de A metamorfose (1916), de Franz Kafka, um divisor de guas do gnero.1 Em momento algum o narrador ou o personagem se detm para explicar as razes ou os mecanismos da transformao de Gregrio Samsa em enorme inseto. 0 leitor tampouco se detm para questionar o fenmeno. Produz-se uma inverso, em que a barata se converte no instrumento por excelncia de crtica do meio social com o qual Samsa obrigado a conviver. A reviravolta narrativa faz que a monstruosidade mude de lugar, passando a instalar-se no seio da famlia, e no no ser metamorfoseado em bicho. O fantstico deixa assim de ser um fim em si mesmo, deslocando o eixo da hesitao do leitor diante do fenmeno sobrenatural, para fazer daquilo que convencionamos chamar de "realidade" o centro da crtica ou ateno literria.2 A maneira moderna de narrar os fatos fantsticos fez com que a crtica associasse Murilo a Kafka autor que o escritor mineiro sempre afirmara desconhecer na poca da composio de suas primeiras narrativas. "O mais estranho o seu dom forte de impor o caso irreal. O mesmo dom de um Kafka: a gente no se preocupa mais, preso pelo conto, vai lendo e aceitando o irreal como se fosse real, sem nenhuma reao mais." Com essas palavras escritas em 1943, Mrio de Andrade j apontava para o fenmeno mais caracterstico da obra de Murilo Rubio: os temas fantsticos, aceitos pelo leitor como se fossem reais.3 Murilo Rubio cria um paradoxo entre uma linguagem alicerada numa sintaxe simples e depurada e temas absolutamente inverossimeis, uma forma linear e transparente que visa a desafiar as leis da lgica.

Embora a crtica insista em mostrar a divida com Kafka e com a vertente latino~americana, sua maior fonte sem dvida a Bblia e Machado de Assis, em especial aquele Machado de Memrias pstumas de Brs Cubas: "Meus contos devem muito a Cervantes. Gogol, Hoffmann. Von Chamiss, Maximo Bontempelli, Pirandello, Bret Harte, Nerval, Poe e Hen1y]ames. Mas 0 autor que realmente me influenciou foi Machado de Assis. talvez meu nico mestre", afirmou Murilo Rubio em entrevista.

Desespero dos personagens, desespero do escritor. o carter circular das intrigas remete aos mecanismos criativos do prprio autor, um mestre na arte da reescritura. Rubio reescreveu mais do que escreveu. lvaro Lins, um dos seus primeiros crticos, percebera essa espcie de compulso correo: "Trata~se de uma obra de estria, mas na qual o autor, segundo fui informado, trabalhou durante vrios anos, fazendo e refazendo os contos".4 Cria-se assim uma identidade entre os temas formulados e a maneira de constru-los. Foi uma forma de lutar circularmente contra a prpria sensao de esterilidade, preenchendo o horror vacui da criao literria. lnusitadamente, as mudanas formais no produzem modificaes de cunho temtico; mais ainda, as contnuas variantes acabam se constituindo em significado per se, num sistema continuo de permutaes. "Reelaboro a minha linguagem at a exausto, numa busca desesperada de clareza, afirmara Murilo em entrevistas.5 Nesse processo de reescritura, um tema que desperta a ateno o da castrao. Seja na descrio da carncia fisica propriamente dita (a mutilao incontrolada das mos de O ex~mgico), seja na mutilao dos desejos, seja pela cegueira ("A ?or de vidro"). Nesse conto, a cristalizao do ttulo j uma imagem da morte; 0 proftico desejo da personagem Marialce ("Tomara que um galho Lhe fure os olhos, diabo !") e a posterior realizao ("Na volta. um galho cegou-lhe a vista") retomam a temtica da angstia da, castrao pela cegueira, antecipada pela navalha no incio do conto ("Afobado, colocou uma venda negra na vista inutilizada e passou a navalha no resto do cabelo que lhe rodeava a cabea").6 Essa ausncia pode aparecer simbolizada pela procura de um outro que jamais encontrado ou pela espera daquele que nunca vem: uma ausncia motivada pelo sbito desaparecimento ou pelo desencontro do outro. Um abismo criado pela impossvel chegada de ou chegada a. Esse mesmo vazio pode tambm aparecer representado pelo silncio de um personagem. As tentativas de resgate desse silncio chegam at o infatigvel refazer da prpria obra. E se esse vazio aparece representado por uma esttica da carncia, ele tambm pode surgir s avessas. ou seja, mascarado pelo excesso, em que a repetio e 0 crescimento desmedido ("Brbara e "O edificio", por exemplo) nada mais so do que possibilidades invertidas do mesmo processo. Essa luta com o fazer, atravs do refazer, gera algumas matrizes temticas fundamentais. Nesse sentido. a tentativa continua de preenchimento de um tempo e de um espao vazios reflete o carter espectral dos seres murilianos. Desprovidos de interioridade psicolgica, eles erram por corredores, restaurantes, trens. salas, quartos, numa espcie de presena ausente e fantasmagrica. As metamorfoses de Teleco nada mais so do que tentativas frustradas de adequao ao mundo; isso explica que a ltima das transformaes seja em uma "criana encardida, sem dentes. Morta. O tema da metamorfose, iniciado no conto "O ex-mgico da Taberna Minhota, tem continuidade em contos como "Os drages e "Teleco, o coelhinho". verdadeiros clssicos do seu repertrio. As transformaes contnuas dos personagens revelam uma tentativa v de adaptao a um mundo onde no h mais lugar para valores como a pureza e a inocncia. O clima ldico desses contos serve para mascarar questes profundas da existncia humana.

Na seleo dos onze contos feita para esta edio, percebemos temas centrais que se disseminam pela obra de Murilo Rubio:

1. Inverso da causalidade espao-temporal: "O pirotcnico Zacarias", "A flor de vidro";2. Tendncia ao infinito: "Brbara", "O edifcio", "A fila;3. Contaminao sonho/realidade: "O lodo":4. Metamorfose/zoomorfismo: "O ex-mgico, "Os drages", "Teleco, o coelhinho;5. Saudade mineira, do mar: "Oflia, meu cachimbo e o mar.76 .Acusado, preso ou sitiado, inde?nidamente e sem razo: "A cidade";

Subjazendo s categorias temticas, existem processos formais que se caracterizam como um sistema adjunto gerador dos contedos da expresso narrativa: entre eles, e os mais importantes, a hiprbole e a reiterao. Algica da repetio adquire dimenses mais amplas no conto "A fila", em que o personagem, em suas vs tentativas de tentar se aproximar e falar com o gerente do local, volta a ocupar um lugar cada vez mais afastado na fila, no conseguindo jamais atingir os fins inicialmente propostos. O meio (a fila) transforma-se, assim, no prprio fim. Novamente, a temtica kafkiana latente, lembrando O castelo e as tentativas que o personagem K. faz para conseguir nele penetrar. H tambm ressonncias da resistncia paralsante do escrivo Bartleby (Barlleby, 1853), Herman Melville. Os temas, aliados aos instrumentos retricos, acabam se refletindo nas prprias estruturas narrativas; medida que "O edifcio cresce, o conto tambm aumenta; a impossivel e "interminvel espera" na fila se reflete na amplificao narrativa. De forma semelhante, medida que Brbara "pedia e engordava, o conto tambm sofre com os acrscimos.

Murilo Rubio, como bom mgico, tenta nos distrair durante a leitura, para nos fazer mergulhar nos desfechos de uma maneira implacvel, irreversvel e desesperanada. O prprio mgico se apresenta como ex-mgico eTeleco no a nica nem a ltima criana morta. As metamorfoses, as policromias, o fazer incessante, a volta ao incio ou a impossibilidade de chegar a um fim nada mais so do que gestos mascarados das cicatrizes da mutilao e da esterilidade. No ventre das heronas murilianas no h lugar para a fertilidade. No caso da colossal Brbara, me devoradora por excelncia, quanto mais ela pede e cresce, mais definha 0 seu raqutico filho, num movimento proporcionalmente inverso. O excesso e a ausencia nada mais so do que metforas da morte.

Murilo Rubio critica, atravs do fantstico, a sociedade e seus sufocantes costumes. Ele contesta assim as convenes sociais ("O convidado" e "Os comensais"), o exerccio da psiquiatria ("O lodo") e um dos seus alvos prediletos, a burocracia ("A fila") . Acreditamos que a longa carreira em cargos oficiais tenha servido para alimentar o imaginrio refletido nos contos. Entre outros cargos, Murilo foi chefe de gabinete do governador ]uscelino Kubitschek, chefe do Escritrio de Propaganda e Expanso Comercial em Madri, fundou o Suplemento Literrio do Minas Gerais, tornou-se diretor da Imprensa Oficial (1983) e at presidente de honra da Associao Profissional de Escritores de Minas Gerais. Alis, em vsperas do de final do Estado Novo, ele chefiou a delegao de escritores mineiros n0 famoso I Congresso Brasileiro de Escritores em So Paulo (de 22 a 27 de janeiro de 194.5). L foram debatidas questes sobre a censura, eleies e direitos autorais.

Qual a fascinao exercida pela contstica de Murilo? Na primeira etapa de sua produo, provavelmente a maneira singela e aparentemente natural de retratar 0 sofrimento, os modos de mascarar o tedium vitae e 0 desentendimento humano, seja atravs de formas alegricas, como em "O edifcio" (que recupera o mito da Torre de Babel), seja atravs das inocentes presenas do coelho Teleco, dos drages ou do canguru Alfredo, Estamos diante de um bestirio em permanente metamorfose usado simbolicamente para retratar a solido ou a insensatez humana. Considere-se tambm que o fantstico sempre serviu a Murilo Rubio como mscara de uma realidade cruel. Nesse sentido, contos como "O lodo" ou "Afila", de sua ltima produo, passam a ser recobertos por um clima sombrio, no qual as luzes dos fogos de artifcio parecem ter perdido o seu efeito sedutor de desviar-nos da realidade. Contos dolorosos, marcados pelo " espanto congelado de seus personagens, para usar a certeira expresso do crtico DaviArrigucci.8 De alguma maneira, os personagens aparecem na contstica muriliana transfigurados em espectros alienados de um universo agnico. Nele, o homem acaba sendo condenado esterilidade pela prpria incapacidade de modificar o mundo sem sada no qual vive.

Os primeiros contos de Murilo Rubio sem dvida apontam para um fantstico ldico e rarefeito, prximo de Cortazar e de Felisberto Hernndez, e at daquilo que posteriormente leramos em Garcia Mrquez ou ]uan jos Arreola. A evoluo de sua contistica leva a uma escritura mais prxima da fantasmagrica cidade de Comala de Rulfo, onde reina a esterilidade dos seres que transitam por uma paisagem erma. Nesse sentido, Murilo Rubio talvez o mais dramtico dos escritores do gnero fantstico no Brasil: um drama que se faz e refaz e se reescreve a si mesmo, na maestria de uma escritura cujo ponto de fuga ilude o leitor para retomar, ao modo de Ssifo, 0 trajeto circular de sua prpria narrativa.9

Esquecido do grande pblico durante quase trs dcadas, Murilo Rubio ressurgiu com extraordinrio sucesso na edio O pirotcnico Zacarias, de 1974, da Editora tica: em pouco tempo foram vendidos mais de 1oo mil exemplares. Depois vieram as primorosas tradues para o ingls, de Thomas Colchie, The Ea:-Magician and Other Stories (19'z9)z para o alemo, de Ray-Gde Mertin. Der Feu.erwerker Zacharias (1981), para o checo, de Pavla Ludmilov (Dum u Cerven Slunecnice, 1936) e para o espanhol, de Cyro Lavie1'o,Lalcalsa del girasol rojo yotros relatos (1991).

Se, conforme a reflexo de Borges, aquilo que confere a uma obra o status de "clssica" no o cnone institudo pelos historiadores da literatura nem pelos defensores da tradio, mas sim a capacidade de revelao e renovao derivada do ato da leitura, podemos ento afirmar, sem dvida. que Murilo Rubio hoje um clssico do conto brasileiro do sculo XX.