o engenheiro judeu, de tavira, cidadão do mundo, afilhado de mário de sá-carneiro,

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Modernista – Revista do Instituto de Estudos Sobre o Modernismo - ISSN 2182-1488 5 O engenheiro judeu, de Tavira, cidadão do mundo, afilhado de Mário de Sá-Carneiro, protagonista do romance-drama – Teresa Rita Lopes Vou tentar dizer coisas novas, não tanto para vos surpreender mas para me surpreender a mim, que detesto referver um chá já feito. Olhar para Campos de um novo ângulo, reunir informações avulsas num recado único, é o que gostaria que fizéssemos , nestes dois dias aqui reunidos em torno de Álvaro de Campos. Reparemos que esta comemoração – dos 120 anos do protagonista do “drama em gente”, a que costumo chamar “romance-drama em gente” – não nos ocorreria para dar os parabéns a Alberto Caeiro ou a Ricardo Reis. Porquê, então, este privilegiado estatuto? E privilegiado por quem, por nós ou por Pessoa? Para começar, por Pessoa. Senão, repare-se: Álvaro de Campos, tal como Pessoa o descreveu na célebre carta a Adolfo Casais Monteiro, é o seu retrato melhorado: tem, como o seu criador, o vago aspecto de um judeu português mas é mais novo (dois anos), mais alto (dois centímetros), mais elegante, mais desenvolto, mais moderno, mais endinheirado (viaja pelo mundo, pernoita em hotéis cosmopolitas), e, em suma, mais vivido. Fez as viagens com que Pessoa apenas sonhou, teve as aventuras amorosas e, até, conjugais de que Pessoa se absteve, barafustou escandalosamente a sua eterna rebeldia em poemas e periódicos. Parafraseando o poema “Autopsicografia”, fingiu (isto é, representou) a dor que Pessoa deveras sentiu ou se esqueceu de sentir, vivendo a vida que Pessoa deveras teve mas em mais interessante – em combustão viva, por assim dizer, já que o seu criador só ardia para dentro, em combustão lenta (essa que Bernardo Soares assumiu). Muito tenho já falado das qualidades de dramaturgo de Pessoa mas vem ao caso lembrar, pelo menos, outra que muito o caracteriza: a sua capacidade de ver – como diz, em itálico, nessa carta – as caras e os gestos dos seus três heterónimos. Qualidades de pintor, de cineasta, de vidente? Tal como conta, dá a impressão que os viu, de repente, ao três, “no espaço incolor mas real do sonho”: “cara rapada todos”, “o Caeiro louro sem cor, olhos azuis; Reis de um vago moreno mate; Campos entre branco e moreno, tipo vagamente de judeu português, cabelo porém liso e normalmente apartado ao lado, monóculo.” Eis as aparições – ou os retratos. Vamos reparar sobretudo no de Campos, completado pelo desenho da silhueta : “alto (1m.75 de altura – mais dois cm do que eu), magro e um pouco tendente a curvar-se”. Feitas as contas, Campos tem mais dois centímetros que Pessoa e menos dois anos (o que lhe alonga a silhueta e a vida) e o mesmo “tipo vagamente de judeu português” do seu criador.

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Afilhado de Mário de Sá-Carneiro,

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  • MMooddeerrnniissttaa Revista do Instituto de Estudos Sobre o Modernismo - ISSN 2182-1488

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    O engenheiro judeu, de Tavira, cidado do mundo, afilhado de Mrio de S-Carneiro,

    protagonista do romance-drama Teresa Rita Lopes

    Vou tentar dizer coisas novas, no tanto para vos surpreender mas para me surpreender a mim,

    que detesto referver um ch j feito.

    Olhar para Campos de um novo ngulo, reunir informaes avulsas num recado nico,

    o que gostaria que fizssemos , nestes dois dias aqui reunidos em torno de lvaro de Campos.

    Reparemos que esta comemorao dos 120 anos do protagonista do drama em gente, a que

    costumo chamar romance-drama em gente no nos ocorreria para dar os parabns a Alberto

    Caeiro ou a Ricardo Reis. Porqu, ento, este privilegiado estatuto?

    E privilegiado por quem, por ns ou por Pessoa?

    Para comear, por Pessoa. Seno, repare-se:

    lvaro de Campos, tal como Pessoa o descreveu na clebre carta a Adolfo Casais

    Monteiro, o seu retrato melhorado: tem, como o seu criador, o vago aspecto de um judeu

    portugus mas mais novo (dois anos), mais alto (dois centmetros), mais elegante, mais

    desenvolto, mais moderno, mais endinheirado (viaja pelo mundo, pernoita em hotis

    cosmopolitas), e, em suma, mais vivido. Fez as viagens com que Pessoa apenas sonhou, teve as

    aventuras amorosas e, at, conjugais de que Pessoa se absteve, barafustou escandalosamente a

    sua eterna rebeldia em poemas e peridicos. Parafraseando o poema Autopsicografia, fingiu

    (isto , representou) a dor que Pessoa deveras sentiu ou se esqueceu de sentir, vivendo a vida

    que Pessoa deveras teve mas em mais interessante em combusto viva, por assim dizer, j que

    o seu criador s ardia para dentro, em combusto lenta (essa que Bernardo Soares assumiu).

    Muito tenho j falado das qualidades de dramaturgo de Pessoa mas vem ao caso lembrar,

    pelo menos, outra que muito o caracteriza: a sua capacidade de ver como diz, em itlico, nessa

    carta as caras e os gestos dos seus trs heternimos. Qualidades de pintor, de cineasta, de

    vidente? Tal como conta, d a impresso que os viu, de repente, ao trs, no espao incolor mas

    real do sonho: cara rapada todos, o Caeiro louro sem cor, olhos azuis; Reis de um vago

    moreno mate; Campos entre branco e moreno, tipo vagamente de judeu portugus, cabelo

    porm liso e normalmente apartado ao lado, monculo. Eis as aparies ou os retratos.

    Vamos reparar sobretudo no de Campos, completado pelo desenho da silhueta : alto

    (1m.75 de altura mais dois cm do que eu), magro e um pouco tendente a curvar-se.

    Feitas as contas, Campos tem mais dois centmetros que Pessoa e menos dois anos (o que

    lhe alonga a silhueta e a vida) e o mesmo tipo vagamente de judeu portugus do seu criador.

  • O engenheiro judeu, de Tavira, cidado do mundo, afilhado de Mrio de S-Carneiro, protagonista do

    romance-drama Teresa Rita Lopes

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    Faz-lo nascer em Tavira, a 15 de Outubro de 1890, 1h30 da tarde precisa, nesta carta

    significativo privilgio: nesta terra nasceram e viveram antepassados ilustres e por ele venerados:

    o av General Joaquim Pessoa e o tio-Av Cesrio Pessoa. Combateram ao lado das tropas

    liberais, foram presos, e um descendente mandou mesmo lavrar na pedra da sua campa, ainda

    hoje no cemitrio de Tavira, Aqui jaz o Livre Pensador Jacques Cesrio Pessoa.

    Apesar de ter sido educado por me, av materna e tia-madrinha aoreanas, catlicas

    (em Durban, a me matriculou Fernando num colgio de freiras irlandesa, onde fez a instruo

    primria e a primeira comunho), o pequeno Fernando quando, com treze anos, quase catorze,

    visitou em 1901-1902 a famlia paterna, em Tavira, ficou certamente abalado na sua condio de

    catlico. que se apercebeu, com certeza, de que essa famlia Pessoa era manica, no

    baptizada e reconhecida como militantemente anti-clerical. A sua ruptura com a Igreja Catlica

    iria jurar que aconteceu nessa altura. Data de ento a sua cruzada, em poesia e prosa, contra a

    Igreja de Roma, como, pejorativamente, lhe chamou at morrer.

    No poema com que Campos se deu a conhecer, Ode Triunfal, l est o cenrio da nora

    algarvia, no meio de todo o estardalhao sensacionista das ruidosas fbricas, dos motores como

    uma natureza tropical, do rodar frreo e cosmopolita dos comboios estrnuos : Na nora do

    quintal da minha casa / O burro anda roda, anda roda, / E o mistrio do mundo do tamanho

    disto.

    No poema de 1931, Notas sobre Tavira, diz que chegou finalmente (a viagem era

    longa) vila da [sua] infncia, aos 41 anos, e identifica-se com o que v: o que vejo sou eu.

    A ampla sala de jantar das tias velhas, na casa antiga da quinta velha, o pcaro de barro junto

    ao pote que chiava enquanto ele bebia, o ch com torradas na provncia de outrora sero

    sempre recordados com lgrimas ao longo da sua vida errante, assim como o seu horizonte de

    quintal e praia. Deve ser tambm dessa casa nico stio em que viveu na provncia - nesses

    lugares tradicionais da provncia, como diz que recorda , no seu pessoal jeito de ousar o

    prosaico, o penico antigo a que punham uma tampa, de que fala, num poema (precisamente

    para exprimir a criatura prosaica, desinteressante e sem horizontes em que se tinha tornado).

    Nessa casa, diz noutro poema, errar depois das tias morrerem e ser deixado ao cuidado do

    primo padre tratado por tio e depois de um tutor que decide envi-lo para a Esccia estudar

    engenharia.

    Numa entrevista que, mais tarde, dar, escolheu como cenrio o Terreiro do Pao, junto

    ao cais onde ia tomar o vapor para o rpido do Algarve, vindo de Newcastle-upon-Tyne

    escreve o entrevistador. Ficciona ento ser um judeu dos quatro costados, at proclama

    provocatoriamente o futuro imprio de Israel a que diz que temos que aderir para nos

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    salvarmos.1 E acrescenta que o que est morrendo no o capitalismo, nem a burguesia nem

    nenhuma outra dessas frmulas vazias mas a civilizao actual a civilizao greco-romana e

    crist. Esse imprio de Israel que prope seria, especifica, o dos tcnicos. (Numa polmica

    com Ricardo Reis quanto classificao das artes, que publiquei em Pessoa por Conhecer, (Lisboa,

    ed. Estampa vol.II, T.413), Campos afirma que h cinco artes, sendo as duas primeiras a

    Literatura e a Engenharia.)

    Campos afirma mesmo, nessa entrevista, que o nico imprio que pode haver o de

    Israel e a nica maneira de realizar hoje um imprio utilizando a tcnica.

    claro que Pessoa nunca subscreveria essas afirmaes, ele que afirmou, em seu prprio nome,

    que o Quinto Imprio seria um Imprio da Cultura, e, por outras palavras, um imperialismo

    de poetas : O imperialismo de poetas dura e domina; o dos polticos passa e esquece, se o no

    lembrar o poeta que os cante. ( D.Sebastio no , em tudo isto, mais do que um mito

    congregador Pessoa afirmou-o claramente.)

    Pessoa, na sua prpria pessoa, seria contra o tal Imprio de Israel, tendo referido

    mesmo, num texto indito, o perigo judeu, no que racial e o de todo o processo de deixar

    emergir as raas em desproveito das naes. O remdio contra o perigo judeu, no que racial

    afirma consiste apenas em um nacionalismo ntido e definido, sendo a nao um estdio

    evolutivo superior raa. E encara, nesse texto, algo que um judeu nunca admitiria: o proveito

    da assimilao dos judeus que, ingressam, por casamento, nas naes e, submersos pelo esprito

    da nao, desaparecem como raa.

    Na sua prpria pessoa, Pessoa, nacionalista mstico, como se declarou, pugnava por um

    Imprio da Cultura e por uma ptria-lngua-portuguesa mas incumbiu Campos de continuar a

    tradio dos seus antepassados judeus.

    Noutro texto indito, Pessoa considera os judeus portugueses e espanhis, a aristocracia dos

    judeus essa mesma a que se orgulhava de pertencer quando definia as suas origens, na sua

    prpria pessoa, como um misto de fidalgos e judeus.

    Pessoa disse a Casais Monteiro, na carta conhecida: pus em lvaro de Campos a emoo

    que no dou a mim nem vida. Poderamos metaforizar que Campos Pessoa em combusto

    viva, como Soares o ser em combusto lenta. lvaro tinha os rompantes de que Pessoa se

    abstinha, de viva voz e por escrito. Quando mandou, em 1915, uma carta para ser publicada num

    jornal dirio a congratular-se com a queda de um elctrico de Afonso Costa (poltico que

    particularmente abominava, chefe do partido Democrtico), assinada lvaro de Campos, os seus

    companheiros de Orpheu, para deixar a revista a salvo de represlias, escreveram ao dito jornal a

    1 Antnio QUADROS, Obras de F.Pessoa, vol.ll, pp.1119-1125.

  • O engenheiro judeu, de Tavira, cidado do mundo, afilhado de Mrio de S-Carneiro, protagonista do

    romance-drama Teresa Rita Lopes

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    dessolidarizar-se do autor da carta e ainda hoje os exegetas relatam o acontecido como tendo

    provocado a ruptura de Pessoa com esses amigos, esquecendo que era em relao a Campos que

    eles tomavam posio e no em relao a Pessoa. Se este at escreveu cartas aos peridicos,

    nomeadamente Contempornea, a discordar de um anterior artigo de Pessoa sobre a poesia de

    Antnio Botto, e Athena, contrariando o artigo de fundo do 1 nmero dessa revista, de que

    Pessoa era co-director!

    No hesito em admitir que o nascimento de Campos no teria acontecido se Pessoa no

    tivesse conhecido S-Carneiro e este no tivesse ido para Paris, de onde desafiava a fantasia do

    amigo com o seu entusiasmo pela grande capital, em particular, e pela Europa, em geral. A

    celebrao das cidades modernas, na Ode Triunfal, no correspondia a nenhuma emoo

    verdadeiramente sentida por Pessoa mas ao desejo de exaltar, para supremo enlevo do amigo,

    uma dessas cidades que o fascinavam, Delas fala assim S-Carneiro em carta de 17/ 7 / 1915: as

    cidades da minha nsia e dos meus livros rtilas de Europa, largas, pejadas de trnsito e

    movimentos rendez-vous cosmopolitas, farfalhantes de aco.

    No ms seguinte criao da Ode Triunfal, apenas escrita em Junho de 1914 e no em

    Maro, como reza a tradio do Dia Triunfal de 8/3/1914 - adivinhamos, atravs dos dizeres de

    Mrio, que Pessoa lhe dissera que tudo aquilo era fingido : Meu amigo, seja como for,

    desdobre-se voc como se desdobrar, sinta-de-fora como quiser o certo que quem pode

    escrever essas pginas se no sente, sabe genialmente sentir aquilo de que me confessa mais e

    mais cada dia se exilar. Saber sentir e sentir, meu Amigo, afigura-se-me qualquer coisa de muito

    prximo pondo de parte todas as complicaes. (carta de 13/7/1914.) De facto, a expresso

    sentir-de-fora aplica-se que nem uma luva a esse que confessou, em seu prprio nome: Sentir

    to complicado!

    Em carta de 20/6/1914, Mrio escreve a Pessoa: A sua Ode Triunfal a que chamou a

    obra-prima do Futurismo , do que at hoje eu conheo futurista, no s a maior a nica

    coisa admirvel.

    Diga-se, de passagem, que Pessoa ainda era mais reticente do que S-Carneiro a respeito

    do Futurismo. O futurista lvaro de Campos , como comeou a ser considerado e chamado (at

    por Pessoa - para simplificar, suponho), num texto pouco conhecido sobre ritmo paragrfico,

    refere - se incrvel idiotia de Marinetti, cuja banalidade mental lhe no permitia inserir

    qualquer ideia no ritmo irregular, porque lhe no permitia inseri-la em coisa nenhuma. E vai mais

    longe no seu julgamento do Futurismo que nisto atentem os que, de acordo com a tradio, o

    consideram futurista praticante: como se a expresso futurismo contivesse qualquer sentido

  • MMooddeerrnniissttaa Revista do Instituto de Estudos Sobre o Modernismo - ISSN 2182-1488

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    compreensvel. Futurista s toda a obra que dura; e por isso os disparates de Marinetti so o

    que h de menos futurista.2

    Seja como for, foi a provocao futurista que desencadeou o aparecimento de lvaro de

    Campos atravs da sua Ode Triunfal que, segundo se fica a saber por uma carta de Mrio,

    Pessoa considerava apenas um excerto de algo maior como considerou excertos os fins de

    duas odes que S-Carneiro acusa em carta de 5/7/1914, esses finais nocturnos a que lvaro

    queria acrescentar os anteriores andamentos , para dar ode o seu corpo inteiro, como o que

    deu Ode Martima. Surpreendentemente s esta correspondncia disso nos informa

    Pessoa encarava fazer o mesmo com a Ode Triunfal.

    lvaro de Campos presena assdua nas cartas que os dois amigos trocam, depois da sua

    criao at ao suicdio de Mrio, em 26/4/1916. Se passarmos em revista essa interessantssima

    correspondncia, damo-nos conta de que Mrio admirava ilimitadamente lvaro mas tinha um

    certo medo das suas ousadiasEm carta de 30/8/1915, escreve: Fico interessadssimo com o

    novo filme lvaro de Campos, engenheiro. E inquieto: no sei se se trata com efeito de mero filme

    literrio (obras) ou de filme de aco. E as aces do Engenheiro Sensacionista por belas e

    intensas fazem-me tremer pelo meu caro Fernando Pessoa claro que pensava no escndalo

    provocado pelo Campos a quando da queda do elctrico de Afonso Costa, que tinha obrigado os

    de Orpheu farsa (que os exegetas ainda hoje levam a srio) de se dessolidarizarem dele, para

    poupar a revista a represlias

    Em carta de 30 de Agosto do mesmo ano, Mrio torna a manifestar a mesma

    preocupao em relao s aces revolucionrias que Pessoa-Campos estavam engendrando,

    e no deixa de lhe dizer que, no caso combativo, para mim o Campos que existe, e o Pessoa, o

    seu pseudnimoTrata-se ainda do tal filme anunciado por Pessoa em carta anterior, afinal

    um artigo a publicar em forma de carta (certamente a carta que ficou indita, a um heri

    estpido, o Capito Arago, regressado do cativeiro alemo). Apesar de achar a ideia

    admirvel, Mrio tenta dissuadir o amigo dessa publicao, tendo talvez em mente o escndalo

    provocado pela j referida anterior carta de Campos a regozijar-se com a queda do elctrico de

    Afonso Costa. E diz-lhe: Se eu fosse rico, voc estava aqui em Paris comigo. E ento eu lhe

    editaria, para Lisboa, esses e outros sensacionismos.

    Campos tornou-se, de facto, at para Mrio de S-Carneiro, um verdadeiro ente.

    Os outros parceiros de Orpheu at lhe dedicaram poemas: assim fez Almada Negreiros,

    com a Cena do dio, sendo, por seu lado, contemplado com uma dedicatria no original da

    2 lvaro de Campos, Vida e Obras do Engenheiro, edio de Teresa Rita Lopes, Lisboa, editorial Estampa, 1992 (2ed.),

    p.124.

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    romance-drama Teresa Rita Lopes

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    Passagem das Horas, que devia figurar no Orpheu 3, nunca por eles publicado: Almada

    Negreiros, voc no imagina como eu lhe agradeo o facto de voc existir. Na desenvolta

    caligrafia de Campos, o texto, manuscrito, (no Esplio da Biblioteca Nacional), ostenta a

    assinatura deste seu autor.

    Desde o nascimento de Campos que provavelmente no teria acontecido sem as

    notcias sobre os derniers cris do Futurismo e outros ismos que S-Carneiro, sempre sedento das

    novidades europeias, ia enviando a Pessoa, de Paris Mrio confessa que simpatiza

    singularmente com este cavalheiro (carta de 27/6/1914). E diz ainda: Acho-o perfeitamente

    maquinado, soberbo e confessa-se ansioso pelas obras do lvaro de Campos. Em 13/7/1915

    diz, numa carta de San Sebastian, que mandoudois postais ao Engenheiro e apenas um, para

    ele, Pessoa

    Noutra carta de 17/7/15, a ele se dirige, interseccionando-lhe o nome: Fernando lvaro

    Pessoa de Campos lhe chamaEstas cartas e postais de Mrio so contemporneas da tal

    ruptura com Pessoa, anunciada pelos exegetas, a propsito da referida carta que os do Orpheu

    enviaram ao jornal a dessolidarizar-se de lvaro de Campos

    Tambm Oflia, a fiel namorada que nunca desistiu de Pessoa at ao final da sua vida,

    escrevia cartas a lvaro de Campos que, por sua vez, se lhe dirigia tambm, por escrito e at

    pessoalmente: Pessoa, s vezes, dizia-lhe que era lvaro que nesse dia tinha vindo, em seu

    lugarO mesmo afirmou aos discpulos da presena, Joo Gaspar Simes e Jos Rgio, quando

    o foram conhecer pessoalmente, num Caf de Lisboa coisa que (Simes disse-mo) nunca ambos

    lhe tinham perdoado, sentindo-se gozados por eleNo souberam aparar o jogo, com a

    inteligncia que Oflia sempre demonstrou nesse mnage--trois que o namoro, finalmente, foi

    O excesso de introverso de Pessoa, correspondia, em Campos, a um excesso de extroverso.

    Camposdizia de Pessoa, em Notas para a Recordao do meu Mestre Caeiro, que ele era um

    novelo enrolado para dentro. Campos seria esse mesmo novelo mas desenrolado para fora

    O recortador de paradoxos que Pessoa confessava ser tinha em Campos a sua pujana

    mxima. Num texto em prosa afirma mesmo que o paradoxo alegra no contgio das almas3,

    como se falasse de um generoso vinhoNoutra prosa, Campos assume ser um blagueur,

    acrescentando: Blagues? E as de Deus?4 como se considerasse Deus o blagueur o supremo.

    O socilogo que Pessoa praticou ser tinha em Campos um provocante mulo. Sem deixar

    de ser poeta, como declara. Diz dos seus apontamentos para uma Poltica do Futuro: Escrevo-

    os como se escrevesse um poema. Enquanto raciocinava, ia passando rasteiras: nosso dever

    3 lvaro de Campos, Vida e Obras do Engenheiro, edio de Teresa Rita Lopes, Lisboa, 1992 (2 ed.), p.145 4 Ibidem, p.148.

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    de socilogos untar o cho, ainda que seja com lgrimas, para que escorreguem nele os que

    danam. declara, num texto intitulado, Mensagem ao Diabo.5

    E comea assim esta Mensagem: preciso criar abismos, para que a humanidade que

    os no sabe saltar se engolfar neles para sempre.

    O criador de anarquias que Pessoa afirmava ter que ser todo o intelectual digno desse

    nome assumido inteiramente por lvaro de Campos, esse que era, concomitantemente, um

    criador de abismos. ele, de facto, que levar s ltimas consequncias o fascnio pelo Diabo

    manifestado por Pessoa.6

    lvaro de Campos, a quem os operrios da fbrica em que era engenheiro chamavam o

    engenheiro doido, viveu catarticamente a loucura que Pessoa receava ser-lhe hereditariamente

    destinada isto , purgando Pessoa desse medo de enlouquecer (como a av paterna) que toda a

    vida o atormentou. Tenho a loucura aqui, exactamente na cabea declara Campos, noutro

    poema.

    Podemos dizer que Campos no s fingiu (parafraseando o poema Autopsicografia) a

    dor que Pessoa deveras sentia mas tambm a vida que deveras teve, a que poderia ter tido e,

    sobretudo, a que no teve mas sonhou ter. Campos emparceirou-se com as mulheres e, at, os

    homens de que Pessoa se absteve, sublimando o instinto, preferindo sempre sonhar o amor a

    pratic-lo. (No esqueamos que Campos, assim como Pessoa, sentiam de fora, usando a

    expresso de S-Carneiro) Campos, que desenrolou para fora o tal novelo enrolado para dentro

    que Pessoa figurava ser, no s fala provocatoriamente, num clebre soneto a uma Daisy com

    quem teria tido um caso, desse pobre rapazito que [lhe] deu tantas horas to felizes, como

    tambm, em poemas dos ltimos anos, (inditos at 1990)) o vemos espojar-se, na praia, como

    um elemental inferior, a sua viso de uma evocada mulher explodindo literariamente. (Era

    provavelmente numa praia dos arredores de Tavira, onde vinha visitar a famlia) Noutro poema,

    tambm ausente da tica, fala de uma inglesa que queria casar com ele, seu nico amor lhe

    chama. Noutro ainda, situa-se num interior conjugal, dialogando com uma voz de mulher que lhe

    fala do jardim, ou toca piano e fala ao mesmo tempo. Todos estes poemas s foram conhecidos

    em 1990: ignormos at ento esse Campos que tambm gostava de mulheres e at se

    fotografava, em verso, na sua intimidade conjugal Disse fotografava porque Campos confessa,

    num poema, ter um crebro fotogrfico. Por vezes, vai mesmo mais alm, e temos fotografias

    em movimento, isto , cinema, como nesse magnfico poema que comea Passo, na noite da rua

    suburbana tambm s conhecido em 1990.

    5 Ibidem, pp.140-141.

    6 Por exemplo, num conto dos primeiros tempos, F.Pessoa, LHeure du Diable / Hora do Diabo, ed. bilingue, de Teresa Rita Lopes, Paris, Ed. Jos Corti, 2000 (3ed.)

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    romance-drama Teresa Rita Lopes

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    Atravs de Campos, Pessoa fez todas as viagens que sonhou mas nunca empreendeu

    porque, tal como em relao ao amor, tornar o sonho real seria perder a coisa ou pessoa

    sonhada: Viajar, perder pases! - exclamou ele, num poema. Enfim, sejamos prosaicos e

    admitamos que Pessoa no viajou porque no teve nunca dinheiro para o fazer - mas que fez

    todas as viagens sonhadas na mais endinheirada pessoa de Campos

    Nos planos de Pessoa dos anos 10, figura o ttulo de um livro a compor, Vida e Obras do

    Engenheiro, significativamente associado a uma outra obra mltipla, mas dela independente, que

    reuniria as obras de Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Antnio Mora, intitulada Na Casa de Sade de

    Cascais que, pasme-se, era um manicmio. H mesmo um texto em que Antnio Mora, nele

    internado, exprime as suas teorias sobre o mundo moderno, que recusa, vestido com uma tnica

    grega e recitando squilo. Esta uma das verses do romance-drama em gente, que , por si s, um

    grandioso paradoxo. Neste manicmio-templo, Antnio Mora aparecia como o profeta de um

    novo messias, uma espcie de Cristo ao contrrio, solar, vindo ao mundo para combater o

    Catolicismo e curar o mundo moderno do morbo mental que o Cristianismo viera trazer.

    Denunciando a loucura estril do mundo seu contemporneo, o louco Antnio Mora apresenta-se

    assim no s como o Profeta mas tambm como o Evangelista de Caeiro, esse Deus que faltava

    (expresso usada no VIII poema do Guardador de Rebanhos, de Caeiro).

    (Note-se, de passagem, que S-Carneiro se refere a Antnio Mora numa das cartas, o que

    mostra que este enredo dos primeiros tempos.)

    Noutro projecto, os poemas de Caeiro aparecem, ao lado do Banqueiro Anarquista, como

    Anti-teses. Assim, Antnio Mora, o louco Profeta, anunciava um novo Deus, o igualmente

    internado Alberto Caeiro, cujos ensinamentos no eram mais que paradoxos luminosamente

    expostos. Ricardo Reis aparece como o coadjuvante mais directo de Antnio Mora: poeta mas

    tambm, s vezes, prosador, contribuindo para a revelao do Mestre Alberto Caeiro, e difuso

    da religio individual, segundo Mora, metafsica recreativa, segundo Ricardo Reis, apelidada

    de Novo Paganismo. (No esquecer que Pessoa e os seus outros escreveram vrias vezes que

    Cristo tinha sido louco, mas dessa loucura fecunda enaltecida no poema de Mensagem: Sem a

    loucura o que o homem / mais do que a besta sadia /cadver adiado que procria?)

    Curiosamente, o Engenheiro lvaro de Campos no reside dentro do manicmio-templo:

    um visitante, no pode ser mais do que isso, porque, apesar de discpulo de Caeiro, nunca pde

    abandonar as atitudes msticas de desequilbrio, de que foi acusado pelos neopagos do grupo.

    E, neste esquema que tenho referido, tambm o Livro do Desassossego considerado parte,

    como fico independente, ento assumido por Vicente Guedes.

  • MMooddeerrnniissttaa Revista do Instituto de Estudos Sobre o Modernismo - ISSN 2182-1488

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    Pessoa, num escrito j do fim da vida, precisou que cada um dos seus outros constitua

    um drama e que, todos juntos, perfaziam outro drama. E disse tambm que a evoluo de cada

    personagem estava perfeitamente prevista, assim como a sua entreaco. E anunciava mesmo

    que as suas fices seriam ilustradas com fotografias e horscopos. E ao conjunto chamou drama

    em gente.

    O longo conto que foi a obra pessoana concilia trs gneros: a poesia, a narrativa (porque

    Pessoa ou seus heternimos se contam em prosa, uns aos outros) e o drama, j que os poemas-

    monlogos dos heternimos se respondem, apoiando-se ou contradizendo-se, embora para isso

    necessitem da colaborao do leitor. Por isso proponho a expresso romance-drama em gente.

    At 1990, ano do centenrio do nascimento de lvaro de Campos, os seus leitores s

    dispunham da edio da tica, publicada por Joo Gaspar Simes e Lus de Montalvor: 102

    poemas a que Maria Aliete Galhs, em 1960, na edio que fez para a Editora Aguilar, brasileira,

    acrescentou dois inditos. A edio da Poesia de lvaro de Campos, da responsabilidade da

    Equipa Pessoa, pela Imprensa Nacional Casa da Moeda, publicada nesse ano, 1990, ampliou

    largamente esse nmero de poemas para mais do dobro, mas as leituras defeituosas, as colagens

    abusivas de textos soltos, a no identificao de muitos textos como pertencentes s chamadas

    grandes odes do incio, as erradas articulao dos textos e atribuio de autoria, tornaram essa

    edio imprpria para consumo. Alm disso, no respeitaram a tal evoluo da personagem

    que Pessoa previra, indicando o primeiro e ltimo poemas do Livro: arrumaram os poemas, como

    em gavetas, por categorias definidas por ter ou no atribuio ou data. Obrigada pelo meu mestre

    e amigo David-Mouro Ferreira a fazer a crtica dessa edio para a revista Colquio-Letras, de

    que era director, cheguei concluso de que as lacunas e os erros eram tantos que mais valia

    fazer um novo livro. E assim aconteceu. Recolhi mais oitenta textos que a Edio da Imprensa

    Nacional-Casa da Moeda e o triplo dos da tica (digo textos porque as grandes odes so

    constitudas por textos que se apresentam soltos, em geral). E retirei, da tica, cinco poemas e da

    Edio da Equipa Pessoa dezanove poemas, que me no parecem atribuveis a A. de Campos.

    Mas no tenho a inconscincia de supor que a minha edio da Poesia de Campos est

    perfeita e a ltima. Eu prpria, quando a refizer, lhe notarei defeitos e lacunas