o ensino do interesse público na formação de jornalistas
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ENIO MORAES JNIOR
O ENSINO DO INTERESSE PBLICO NA FORMAO DE JORNALISTAS
ELEMENTOS PARA A CONSTRUO DE UMA PEDAGOGIA
UNIVERSIDADE DE SO PAULO So Paulo - 2011
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ENIO MORAES JNIOR
O ENSINO DO INTERESSE PBLICO NA FORMAO DE JORNALISTAS
ELEMENTOS PARA A CONSTRUO DE UMA PEDAGOGIA
Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Cincias da Comunicao da Escola de Comunicaes e Artes da Universidade de So Paulo na rea de concentrao Estudos dos Meios e da Produo Meditica, como exigncia parcial para obteno do grau de doutor em Cincias da Comunicao.
Orientador: Prof. Dr. Jos Coelho Sobrinho
UNIVERSIDADE DE SO PAULO So Paulo - 2011
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UNIVERSIDADE DE SO PAULO
ESCOLA DE COMUNICAOES E ARTES
PROGRAMA DE PS-GRADUAAO EM CINCIAS DA COMUNICAO
ESTUDOS DOS MEIOS E DA PRODUAO MEDITICA
A tese O ENSINO DO INTERESSE PBLICO NA FORMAO DE JORNALISTAS:
ELEMENTOS PARA A CONSTRUO DE UMA PEDAGOGIA foi aprovada no dia
___ de ___________ de 2011 pelos seguintes membros:
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Jos Coelho Sobrinho (orientador)
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Ficha catalogrfica:
MORAES JNIOR. Enio. O ENSINO DO INTERESSE PBLICO NA FORMAO
DE JORNALISTAS: ELEMENTOS PARA A CONSTRUO DE UMA PEDAGOGIA.
So Paulo, 2011. Tese (Doutorado) Escola de Comunicaes e Artes, Universidade de
So Paulo.
Autorizo a divulgao de texto completo em base de dados especializados ou a reproduo
total ou parcial, por processos fotocopiadores, exclusivamente para fins acadmicos e
cientficos.
Este trabalho foi realizado com apoio da Capes (Coordenao de Aperfeioamento de
Pessoal de Nvel Superior) e do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico
e Tecnolgico).
Esta tese est com a grafia atualizada segundo o Acordo Ortogrfico da Lngua Portuguesa
de 1990, que entrou em vigor no Brasil em 2009.
Enio Moraes Jnior
So Paulo, ___ de _________ de 2011
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SUMRIO
INTRODUO, p. 01
PARTE 01
CAPTULO I
Cidadania e Interesse Pblico, p. 08
1.1 Cidadania e direitos humanos, p. 13
1.2. Individualidade e empoderamento: a cidadania reajustada, p. 21
1.3. Da cidadania ao interesse pblico, p. 25
1.4. A cidadania brasileira, p. 31
CAPTULO II
Jornalismo e Interesse Pblico, p. 40
2.1. Intencionalidade e agendamento, p. 48
2.2. Jornalistas e tecnologias, p. 55
2.3. Jornalismo, interesse pblico e cidadania no Brasil, p. 58
CAPTULO III
Ensino do Jornalismo, p. 72
3.1. O ensino do Jornalismo no Brasil, p. 75
3.2. Imprensa e ensino do Jornalismo em Portugal, p. 81
3.3. Jornalismo e formao l e c, p. 87
3.4. Pedagogia na formao do jornalista brasileiro, p. 89
3.5. Contedos curriculares e didtica do ensino do Jornalismo, p. 91
CAPTULO IV
Formao de Profissionais de Desenvolvimento Humano, p. 97
4.1. A formao superior do profissional de desenvolvimento humano, p. 99
4.2. Dilogos com o pensamento de Rogers e Freire, p. 104
4.3. As equipes educativas no ensino interesse pblico na formao de jornalistas, p. 109
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PARTE 02
CAPTULO V
Mtodo e dados da pesquisa, p. 120
5.1. Escolas e currculos, p. 121
5.2. Docentes entrevistados, p. 129
5.3. Fenomenologia, entrevista e anlise de contedo, p. 137
5.4. O processo de interpretao dos dados, p. 140
5.5. Tabelas de enunciados e inferncias, p. 141
CAPTULO VI
Elementos para o ensino do interesse pblico na formao de jornalistas, p. 266
6.1. O que ensinar: os contedos curriculares, p. 267
6.2. Como ensinar: a didtica, p. 283
6.3. Avaliao e empregabilidade, p. 309
6.4. Em tese, uma formao de desenvolvimento humano, p. 313
CONSIDERAES FINAIS, p. 316
AGRADECIMENTOS, p. 323
DEDICATRIA, p. 324
REFERNCIAS, p. 325
APNDICE
Apndice 01, p. 336
Referncia das entrevistas da amostra da pesquisa
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ANEXOS
Anexo 01, p. 339
Diretrizes Curriculares para a rea de Comunicao Social e suas habilitaes, 2002
Anexo 02, p. 347
Declarao de Bolonha, 1999
Anexo 03, p. 350
Currculo do curso de Jornalismo da Faculdade Csper Lbero
Anexo 04, p. 352
Currculo do curso de Jornalismo da Universidade Federal de Sergipe
Anexo 05, p. 356
Currculo do curso de Informao e Jornalismo da Universidade do Minho
Anexo 06, p. 358
Currculo do curso de Jornalismo da Universidade Nova de Lisboa
Anexo 07, p. 360
Modelo de entrevista semi-estruturada aplicada aos docentes
Anexo 08, p. 362
CD de dados
Transcrio das entrevistas da amostra, 2010
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NDICE DE TABELAS
1. Entrevista com Carlos Costa, p. 142
2. Entrevista com Heitor Ferraz Mello, p. 145
3. Entrevista com Igor Fuser, p. 151
4. Entrevista com Simonetta Persichetti, p. 158
5. Entrevista com Caio Tlio Costa, p. 162
6. Entrevista com Pedro Ortiz, p. 167
7. Entrevista com Gilberto Maringoni, p. 173
8. Entrevista com Pedro Vaz, p. 177
9. Entrevista com Sandra Marinho, p. 182
10. Entrevista com Joaquim Fidalgo, p. 189
11. Entrevista com Sara Pereira, p. 196
12. Entrevista com Lus Santos, p. 199
13. Entrevista com Madalena Oliveira, p. 205
14. Entrevista com Jos Manuel Mendes, p. 210
15. Entrevista com Nelson Traquina, p. 214
16. Entrevista com Paula S, p. 219
17. Entrevista com Pedro Coelho, p. 224
18. Entrevista com Carla Baptista, p. 228
19. Entrevista com Messiluce Hansen, p. 232
20. Entrevista com Beatriz Colucci, p. 238
21. Entrevista com Sebastio Figueiredo, p. 242
22. Entrevista com Michelle Tavares, p. 246
23. Entrevista com Josenildo Guerra, p. 250
24. Entrevista com Snia Aguiar, p. 255
25. Entrevista com Carlos Franciscato, p. 260
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RESUMO
A tese O ENSINO DO INTERESSE PBLICO NA FORMAO DE JORNALISTAS:
ELEMENTOS PARA A CONSTRUO DE UMA PEDAGOGIA prope como objeto
de estudo a formao do jornalista, nomeadamente em seus aspectos cidados. O trabalho
tem como objetivo geral refletir e propor bases para um modelo pedaggico de ensino do
interesse pblico e da cidadania na formao de jornalistas. Como hiptese central, parte
do princpio de que a cidadania e os valores pertinentes e decorrentes dela so transversais
ao ensino do Jornalismo, aos seus contedos curriculares e sua didtica. O universo da
pesquisa so docentes de Jornalismo de universidades brasileiras e portuguesas. O mtodo
de abordagem do trabalho est alicerado na fenomenologia e utiliza a entrevista e a
anlise de contedo como tcnicas de pesquisa.
Palavras-chave:
Formao superior, Formao de jornalistas, Docentes, Brasil, Portugal.
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ABSTRACT
This thesis THE TEACHING OF PUBLIC INTEREST IN THE FORMATION OF
JOURNALISTS: ELEMENTS FOR THE CONSTRUCTION OF A PEDAGOGY
proposes as its object of study the formation of a journalist, particularly the aspects of
citizens. The aim of this dissertation is to reflect and propose the basis for a pedagogical
model for teaching the public interest and citizenship in the academic education of
journalists. As a central hypothesis, the research states that the principle of citizenship and
values arising from it are relevant and transverse to the teaching of journalism, its curricula
contents and its didactic teaching. The research is related to professors of journalism at the
Brazilian and Portuguese Universities. The method applied to this work is grounded in
phenomenology and uses interviews and content analysis of the speech of professors as
techniques. From the methodological point of view this research is grounded in
phenomenology and uses the interview and the content analysis as techniques.
Keywords:
Higher education, Formation of Journalists, Professors, Brazil, Portugal.
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A convivncia democrtica com a diferena,
com pontos de vista dspares (seja de autores, professores,
colegas), complementares e inquietantes e, ao mesmo
tempo, o exerccio dirio de lidar responsavelmente para si
e para o outro (seja a fonte de informao, seja o pblico)
com a diversidade talvez sejam grandes elementos
propiciadores de uma formao cidad.
E isso s pode ser conseguido
se a cidadania for discutida e praticada na escola.
Este autor (2005: 154), nas Consideraes Finais da sua dissertao de mestrado,
defendida nesta instituio em 2006.
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INTRODUO
asci em uma cidade que foi construda nas margens do Rio So Francisco.
Penedo, no interior de Alagoas, Nordeste brasileiro. E quando se tem um rio
por perto, no se consegue ficar indiferente a ele. Quando era criana, sempre
que podia, ficava olhando o rio. Gostava de v-lo passar. Vez ou outra, brincava
de atirar-lhe pedras para ver chapinhar a gua.
Crescido, descobri os filsofos gregos. Herclito era o filsofo triste. Olhava a gua
do rio e entristecia-se porque sabia que aquela gua que, diante de seus olhos passava, ele
jamais voltaria a ver. Demcrito era o filsofo alegre. Ria. A sua dor tornara-se to grande
que o seu riso tinha a mesma razo do choro de Herclito: a certeza de que a gua no
voltaria.
Quando se tem o rio por perto, no d para ficar-lhe indiferente. Com a educao e
a formao, entendi que observar o rio e atirar-lhe pedras tem o mesmo sentido de observar
a vida social e de participar dela. E participar votar, escrever, ensinar. A comeam o
jornalismo, a cidadania e o interesse pblico. E, de tanto observar e nadar neste rio, chego
a esta tese.
Ao longo da sua histria, e at hoje, o interesse pblico e a cidadania definiram a
atividade jornalstica. Partindo dessa prerrogativa, a tese O ENSINO DO INTERESSE
PBLICO NA FORMAO DE JORNALISTAS: ELEMENTOS PARA A
CONSTRUO DE UMA PEDAGOGIA elabora, a partir das falas de professores de
Jornalismo, uma proposta para a formao de jornalistas.
Objeto, problema e hiptese
Esta tese prope, como objeto de estudo, a formao do jornalista brasileiro,
nomeadamente nos aspectos relativos ao interesse pblico e cidadania. Considera-se que,
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ao jornalismo, cabe potencializar a crtica e a ao do cidado em relao sociedade, ao
contrrio do consenso que, muitas vezes, parece impingir, mercadologicamente, as regras
econmicas mundiais e, tecnicamente, os progressos dos sistemas de informao e
comunicao.
O jornalista um profissional de desenvolvimento humano, ambientado entre as
profisses que trabalham com pessoas em contacto interpessoal directo, sendo essa
interaco o prprio processo e parte significativa do contedo e da interveno
profissional (FORMOSINHO, 2009A: 07).
A partir desse ponto, coloca-se o seguinte problema de pesquisa: quais, de acordo
com a perspectiva docente, os parmetros mais coerentes para formar jornalistas para o
sculo XXI, enfatizando o compromisso desse profissional com o interesse pblico e com
a cidadania?
Como hiptese central, esta pesquisa estabelece que, nos conceitos de jornalismo
trabalhados pelos docentes que formam jornalistas, o princpio do jornalismo como
interesse pblico a servio da cidadania ou os valores pertinentes e decorrentes desses
elementos esto presentes na sua pedagogia.
Assim, a formao do jornalista como indivduo autnomo que vai nortear a
discusso sobre formao do jornalista neste trabalho, reconhecendo, nesse indivduo,
cidado, o jornalista comprometido com o interesse pblico.
Justificativa e objetivos
A dissertao A Formao do Jornalista no Brasil: um estudo de caso da formao do
jornalista na USP, um estudo de caso realizado nessa instituio por este autor (2005)
como pesquisa de mestrado, constatou que, no obstante a formao curricular do
jornalista seja extremamente importante para a apreenso do conceito de cidadania, por
fundament-lo teoricamente, so cidados e espaos cidados que formam, de fato,
cidados. E, nesse aspecto, o professor e suas prticas pedaggicas merecem especial
meno:
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Um currculo, um professor e uma prtica laboratorial que no abrem o aluno para o dilogo com as diferenas e a realizao das suas potencialidades dificilmente conseguem formar um jornalista comprometido com os direitos humanos, como a democracia, com tica e com a responsabilidade social da profisso.
Pensando comparativamente em qual dos momentos da formao dos discentes do curso de Jornalismo (noturno) da ECA / USP a cidadania aparece com maior destaque, conclumos que o momento em que ela fica bastante clara no currculo. Mas ao ultrapassar as fronteiras curriculares, numa perspectiva rogeriana (...), encontra no conjunto das experincias vividas e adquiridas na escola um caminho para matur-la (MORAES JNIOR: 2005, 152).
Tomando como justificativa para o desenvolvimento deste estudo os resultados da
dissertao, defendida em 2006, esta tese estabelece, como princpio, que os professores de
jornalismo e suas prticas docentes orientam possveis caminhos para a formao cidad
do jornalista.
Este trabalho tem como objetivo geral refletir e propor um caminho de formao
para os jornalistas brasileiros com o irrefutvel compromisso com a cidadania e com o
interesse pblico.
A partir desse ponto, delimita tambm como objetivo reforar a formao
acadmica do jornalista, especialmente no que tange ao seu carter cidado, como
importante no exerccio da profisso. Alm disso, pretende-se discutir o conceito de
Jornalismo e sua associao com a cidadania, com o interesse pblico e com a formao
do jornalista, estimular as escolas de Comunicao Social a discutirem suas propostas
curriculares repensando, especialmente, a formao em Jornalismo.
Percurso
Este trabalho vale-se de pesquisa qualitativa (tomada em sentido amplo)1 e prope, a
partir da fala de uma amostra de docentes2, atores diretamente envolvidos no processo de
1 Lcia Santaella (2006: 143) observa que esse tipo de pesquisa pode ser tomado em dois sentidos. Em sentido estreito, ela recurso auxiliar de pesquisas quantitativas; j no seu sentido amplo, a pesquisa qualitativa privilegia a interpretao dos dados em detrimento de sua mensurao. Ela considera que h uma relao dinmica, uma interdependncia entre o mundo real, o objeto da pesquisa e a subjetividade do sujeito. Enquanto o objeto deixa de ser tomado como um dado inerte e neutro, o sujeito tomado como parte integrante do processo de conhecimento, atribuindo significado quilo que pesquisa.
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formao de jornalistas, uma pedagogia para a formao do jornalista brasileiro centrada
no interesse pblico. Ao todo, o processo envolve duas diferentes fases, que implicam duas
diferentes partes em que se subdivide este trabalho.
Em uma primeira parte, realizou-se pesquisa terica3 para formular um conceito
de interesse pblico, articulando-o a conceitos de cidadania tomados da Filosofia e da
Cincia Poltica. Esta pesquisa permitiu caracterizar o jornalismo como instrumento do
interesse pblico, alicerce da construo e defesa da cidadania. Com esses pressupostos,
foi possvel discutir-se a formao do jornalista, articulada corrente terica de formao
de profissionais de desenvolvimento humano, que tem como principal autor o professor e
educador portugus Joo Formosinho.
Na segunda parte do trabalho, que utiliza como mtodo de abordagem a
fenomenologia, foi feita uma pesquisa de campo para descrever como professores de
Jornalismo formam seus alunos para trabalhar com um jornalismo voltado para o interesse
pblico.
O estudo tomou como amostra docentes dos cursos de Jornalismo da Faculdade
Csper Lbero e da Universidade Federal de Sergipe, no Brasil, e das Universidades do
Minho e Nova de Lisboa, em Portugal. No conjunto das quatro instituies, 25 professores,
efetivamente, participaram da pesquisa.
Captulos
Esta tese est dividida em duas partes. A primeira, terica, contm quatro captulos, e a
segunda, com dois captulos, contm os dados e resultados da pesquisa de campo. O
primeiro captulo Cidadania e Interesse Pblico parte de abordagem histrica da
cidadania, articulando-a aos direitos humanos e a discusses polticas mais
contemporneas.
2 A ideia que este trabalho sirva de base para pesquisas em que sejam ouvidos outros atores fundamentais do processo: o aluno de jornalismo e o pblico; a sociedade civil em suas plurais esferas social, poltica, econmica e cultural. 3 De acordo com Santaella (2006: 140), a pesquisa terica (ou fundamental) tem por funo criar quadros tericos de referncia e mant-los, tanto quanto possvel, livres dos malentendidos e das anemias que a impacincia e a negligncia terica costumam produzir.
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Do ponto de vista da Histria, este trabalho recorre, sobretudo, discusso recente
de Jaime Pinsky e Carla Bassanezi (2003) e Jaime Pinsky (2004). No mbito dos direitos,
as principais referncias vieram de T. H. Marshall (1967), autor de estudos clssicos sobre
o tema, e do pensamento da filsofa Hannah Arendt (1987), cujo conceito de ao
fundamental para entender a cidadania.
Nesse ponto, so construdas algumas aproximaes tericas e histricas entre a
cidadania e o interesse pblico, permitindo entender que um e outro so relacionados e que
falar em cidadania pressupe falar em interesse pblico.
A referncia para essa construo o texto O Interesse Pblico, organizado por
Carl J. Friedrich. A publicao, de 1960, foi organizada pela Associao Americana de
Cincia Poltica (APSA4), dos Estados Unidos, e conta com a colaborao de autores como
Gerhart Niemeyer e Wayne Leys, que recebem especial ateno nessa parte do trabalho.
Os debates mais recentes, que pensam a cidadania no mbito da individualidade e
do empoderamento, foram referenciados em Chantal Mouffe (1992), Larry Dimond e
Leonardo Morlino (2005) e Guilhermo ODonell (2004), autores que discutem a cidadania
sob a tica da Cincia Poltica.
Por fim, os trabalhos de Jos Murilo de Carvalho (2003), Pinsky e Bassanezi
(2003) e Pinsky (2004) serviram de base para discutir, do ponto de vista histrico e atual, a
cidadania brasileira.
O segundo captulo Jornalismo de Interesse Pblico sustenta-se nas reflexes
do jornalismo como intencionalidade e agendamento. A Pragmtica do Jornalismo, de
Manuel Carlos Chaparro (1994), constitui a base do captulo. Outros autores importantes
foram Bill Kovach e Tom Rosenstiel (2004) e Michael Kunczik (1997).
Aqui retomada a obra da APSA, permitindo entender as articulaes entre o
jornalismo cidado e o interesse pblico. Entre os autores que colaboram em O Interesse
Pblico, o pensamento de Harold Lasswell merece especial ateno nesse captulo.
Em seguida, so discutidos o jornalismo e a cidadania no Brasil e realizadas
consideraes iniciais sobre a formao do jornalista. Apesar de uma perspectiva histrica,
as discusses no escapam do tom poltico ao articular cidadania, jornalismo e formao.
4 A sigla corresponde Associao Americana de Cincia Poltica, em ingls, a American Political Science Association. APSA a sigla correta e usual no pas de origem.
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Assim, ao longo do captulo, Arendt (1987), Mouffe (1992), Dimond e Morlino (2005) e
ODonell (2004) so, frequentemente, retomados.
O terceiro captulo Ensino do Jornalismo procura, em primeiro lugar, traar um
breve painel histrico da formao do jornalista brasileiro e portugus. Em seguida,
apresenta-se uma comparao entre os dois modelos.
Nancy Nuyen Ali Ramadan (2000), por c, e Joaquim Fidalgo (2008), por l, so
duas fontes importantes nesse processo. Tambm so elaboradas consideraes sobre a
questo da Pedagogia na formao do jornalista brasileiro, enfatizando os contedos
curriculares e a didtica.
O quarto captulo Formao do Profissional de Desenvolvimento Humano
procura estabelecer, a partir da teoria do educador portugus Joo Formosinho, uma
perspectiva terica para a formao do jornalista contemporneo, focada no interesse
pblico e na cidadania.
Os estudos de Joo Formosinho (2009A; 2009B), Carl Rogers (1973; 1987) e
Paulo Freire (1987; 1999) so partes importantes dessa etapa.
O quinto captulo Mtodo e apresentao dos dados abre a segunda parte da
tese, esmia a metodologia adotada na pesquisa e apresenta os dados relacionados
amostra. Nesse ponto, so listadas as escolas e os currculos que serviram de ponto de
partida para as entrevistas com os docentes.
Neste captulo tambm so apresentadas as tabelas de enunciados e inferncias das
anlises de contedo.
Finalmente, no sexto captulo Elementos para o ensino do interesse pblico na
formao de jornalistas so listados os elementos para o ensino do interesse pblico na
formao de jornalistas resultantes da pesquisa, subdivididos em contedos curriculares e
didtica.
Quando se tem o rio por perto... E todos ns temos um por perto. Especialmente
nesses tempos de aguamento de crise ambiental estimulada por sua vez pela convulso
de valores humanos temos de zelar por algum rio por perto para que ele chegue
caudaloso a uma foz inundada de tanta gua. No d para ficar indiferente a um rio por
perto. Eis o meu rio.
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PARTE 1
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CAPTULO I
Cidadania e Interesse Pblico
ssim como a gua fundamental para o rio, a cidadania visceral para a vida
social. A cidadania assegura o respeito a cada indivduo no grupo a que
pertence e, ao mesmo tempo, torna cada um desses indivduos responsvel pela
vida em sociedade, ganhando, gradativamente, maior sentido equalizador entre
os membros, norteados cada vez mais pelo interesse pblico.
Na esfera da Cincia Poltica e da Histria, os autores que tm procurado entender
a cidadania assinalam tratar-se de um conjunto de princpios dinmicos, variando no tempo
e no espao. A evoluo do significado conduz para um percurso cada vez mais humanista,
procurando entender a ao de cada indivduo o cidado no gozo de seus direitos e no
cumprimento de suas responsabilidades.
, pois, a luta permanente pela consolidao dos direitos da cidadania nas vrias
partes do mundo ou os embates e reivindicaes diante da ausncia desses direitos, que
determinar a sua essncia. Nessa dinmica, a atuao da imprensa e o protagonismo do
jornalismo voltado ao interesse pblico despontam como instrumentos que, de um lado,
tornaram possvel a construo e o desenvolvimento da cidadania e, de outro, foram, e so,
produtos dessa construo.
A cidadania contempornea tem, historicamente, aspectos bem especficos
determinados pelos Estados-nacionais. T. H. Marshall (1967: 76), que nos anos 60
publicou um estudo at hoje frequentemente retomado para se discutir o tema, observa:
A cidadania um status concedido queles que so membros integrais de uma comunidade. Todos aqueles que possuem o status so iguais com respeito aos direitos e obrigaes. No h nenhum princpio universal que determine o que estes direitos e obrigaes sero, mas as sociedades nas
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quais a cidadania uma instituio em desenvolvimento criam uma imagem de uma cidadania ideal em relao qual o sucesso pode ser medido e em relao qual a aspirao pode ser dirigida.
Mas, ainda que o princpio da nacionalidade norteie, como assegura a tradio
marshallina, a noo de cidadania, na cultura e no indivduo que alguns pensadores
polticos e historiadores contemporneos tm focado o seu conceito.
Embora a cidadania e o estatuto do cidado permaneam os mesmos desde a sua
origem, o indivduo, o cidado que atua nas conquistas da cidadania, passa a ser visto com
maior ateno. Menos que leis ou declaraes, a condio de cada um para a luta por seus
direitos passa a ser fundamental. Em outras palavras, a questo poltica antecedida pelo
indivduo, agente construtor e ratificador da cidadania.
Nesse sentido, a educao e a informao passam a protagonizar os espaos da
construo da cultura poltica e da qualidade da cidadania de cada comunidade. nesse
sentido que, para Jaime Pinsky (PINSKY; BASSANEZI, 2003), a cidadania mantm
aspectos muito peculiares em cada Estado-nacional. Se, em alguns pases, ela, cidadania,
plena, em outros, a cidadania implica direitos especficos alargados ou retrados de acordo
com os limites da atuao de seus cidados.
Ao tentar entender o jornalismo pelo mbito da cidadania, parece possvel traar
alguns elementos iniciais para pens-lo tambm no mbito do interesse pblico.
Um trabalho paradigmtico para conceituar o interesse pblico editado nos
Estados Unidos dos anos 60, pela Associao Americana de Cincia Poltica (APSA), sob
organizao de Carl Friedrich (1966). No trabalho, destacam-se os estudos do cientista
Wayne Leys. Para ele, o interesse pblico no pode ser entendido em abstrato. Assim
como a cidadania, ele assume as caractersticas do tempo e do espao em que se coloca.
Em todo caso, o que os tericos da APSA permitem-nos entrever que o interesse
pblico aproxima-se mais de uma ao direta, de um alvo mais concreto, de algo que se
procura atender com maior preciso. A cidadania, por sua vez, o que nos mostram os
estudos que vm desde os pensadores clssicos da Antiguidade, como Scrates, Plato e
Aristteles at cientistas polticos da Contemporaneidade consequncia das aes de
interesse pblico.
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No fluxo do rio que a vida de cada comunidade poltica, a cidadania um porto
onde se anseia chegar. O caminho at esse porto mediado pelo interesse pblico. Esse
interesse , portanto, o leme e o guia norteador da cidadania.
Um conceito histrico
As bases dos direitos e obrigaes que originaram o que hoje se concebe como cidadania
tm seus primeiros sinais na civilizao com forte conotao religiosa (ainda que tambm
poltica) na Idade Antiga (ano 4000 a.C. ao sculo I d.C.).
Para Pinsky (PINSKY; BASSANEZI, 2003), elas aparecem junto ao povo hebreu,
antecessores dos atuais judeus, por volta do sculo VIII a.C.. No estabelecimento de um
monotesmo tico5, inaugura-se uma forma de f em que o olhar divino volta-se no
apenas para cada membro da comunidade, mas para todo o grupo a que ele pertence.
Nessa fase, profetas como Ams (783 a 743 a.C.) e Isaas (740 a 701 a.C.) exercem
forte influncia sobre o povo hebreu na condio de pensadores de uma nova concepo de
religio. Os rudimentos da cidadania surgem, assim, na defesa de padres de vida mais
justos nos relacionamentos humanos. Ela comea a desenvolver-se na concepo de um
deus comprometido menos com vitrias blicas e dominao de povos, e mais envolvido
com questes como a solidariedade entre os indivduos.
No entanto, na civilizao dos gregos e dos romanos que a cidadania ganha a
decisiva significao que constitui, at hoje, a sua tnica: a dimenso poltica. Nessa
poca, o pensador grego Aristteles (384-322 a.C.) define a cidadania como o poder de
governar e o direito de ser governado.
Entretanto, na ideia aristotlica de cidadania, nem todos podem exercer o governo.
Governar cabe apenas queles capazes de uma virtude esclarecida. Assim, Aristteles
exclui do seu conceito os escravos, os artesos e os comerciantes. Para ele, suas ocupaes
no lhes permitiam tempo para participar das decises do governo. Alm disso, os
trabalhos braais embruteceriam a alma.
5 O monotesmo tico, nas palavras de Pinsky (PINSKY; BASSANEZI, 2003: 16), pressupe um deus pouco preocupado em ser objeto da idolatria das pessoas e com o sacrifcio de animais imolados em seu holocausto, mas muito comprometido com problemas vinculados excluso social, pobreza, fome, solidariedade.
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Tanto para Marshall (1967) como para Pinsky (2003), as cidades-estados so
conceito importante para entender a cidadania no contexto clssico antigo. Elas surgiram e
se desenvolveram a partir de mudanas econmicas e sociais entre os sculos IX e VIII
a.C., fruto de um quadro de intercmbio de bens e ideias por toda regio do Mediterrneo.
Eram ncleos agrcolas de extenses variveis, pertencentes a proprietrios que formavam
associaes.
Inaugurando, remotamente, a poltica e a democracia, as decises coletivas
tomadas nessas cidades estavam subordinadas a determinados grupos. Fundamentadas na
experincia dos antepassados e com decises amparadas na experincia dos mais velhos,
havia tambm forte distino entre jovens e velhos (os mais velhos compunham os
Conselhos de Ancios). Estes ltimos gozavam de muito mais direitos que os primeiros.
Alm disso, apesar de, na civilizao romana, as mulheres desfrutarem de mais
prestgio do que na grega, em ambas as sociedades, extremamente blicas, elas ficavam
igualmente margem da vida pblica e das decises polticas.
No entanto, o maior conflito ocorria na hierarquia social. Entre os gregos, cidado
era o proprietrio de terras, e apenas este. Como deixava claro o pensamento de
Aristteles, ficavam excludos da cidadania estrangeiros, dominados e escravos.
Entre os romanos, no entanto, a cidadania foi, progressivamente, avanando no
sentido da universalizao, funcionando como instrumento de conteno e controle dos
povos dominados.
Se a civilizao grega deixou humanidade o princpio de uma cidadania como
expresso de vida civil (ainda que nunca tenha sido absolutamente includente), o povo
romano estimulou no s a participao na vida poltica, mas trouxe tambm avanos
sociais. Especialmente no fim da Repblica (31 a.C.), consolidam-se as contribuies da
cidadania com a afirmao do Direito Romano, com a criao das cortes e do voto secreto
em assembleia. Consolidou-se tambm o poder da Oratria, elemento importante desse
Direito, j que era da eficincia dos discursos que dependiam as decises tomadas nas
reunies populares.
No perodo final da Idade Antiga (350 a.C. a 476 d.C.), a cidadania acompanha de
perto a propagao do Cristianismo. Segundo Eduardo Hoonaert (PINSKY; BASSANEZI,
2003: 81-82), a inteno de levar esperana e justia aos pobres e excludos faz com que se
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desenvolva, revelia do Imprio Romano, uma corrente que vai difundir, em boa parte da
Europa e alm dela, a f crist.
Nos primeiros sculos da Idade Mdia (sculos III a XIII d.C.), as sociedades
feudais significaram uma estagnao no apenas da cidadania como tambm de outros
aspectos da vida urbana e social. Se, na Antiguidade, a cidadania garantia aos cidados,
inicialmente apenas proprietrios e depois membros do povo, o direito expresso poltica,
nas sociedades medievais, os servos e os camponeses no tinham arbtrio sobre sua vida
nem sobre seu destino.
Os estudos de Santo Toms de Aquino (1225-1274) merecem meno no final
desse perodo, quando se d o crescimento das cidades, a intensificao do comrcio e,
consequentemente, maior debate nas universidades.
Preocupado com a questo da natureza e da legitimidade do poder da monarquia e
dos seus governantes, Toms considera que o homem s encontra realizao na cidade, e
o plano poltico a instncia possvel em que o governo no-tirnico pode aliar ordem e
justia na busca do bem comum (ARANHA; MARTINS, 1995: 201).
Giovanni Reale e Dario Antiseri (2003: 28) ilustram a questo ao falar sobre o
entendimento de Toms de Aquino a respeito da lei humana (a lei jurdica; feita pelo
homem):
A coero exercida pela lei humana (...) tem a funo de tornar possvel a convivncia pacfica entre os homens, embora para santo Toms ela tenha tambm funo pedaggica. A lei humana, portanto, pressupe homens imperfeitos. E como ela no reprime todos os vcios, mas somente os que prejudicam os outros e que, como os homicdios, os furtos etc., ameaam a conservao da sociedade humana, da mesma forma no se precisa ordenar todos os atos virtuosos, mas somente aqueles que so necessrios ao bem comum.
Essa ideia de bem comum de Toms de Aquino antecipa, sutilmente, a questo dos
direitos humanos. Esse um tema discutido, a rigor, apenas no sculo XVII
especialmente a partir do Iluminismo e que determina, tanto em sentido pragmtico
como legal, as feies atuais da cidadania.
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1.1 Cidadania e direitos humanos
na Idade Moderna (sculos XIII a XVIII), com o fortalecimento dos Estados-nacionais,
que a cidadania vincula-se, definitivamente, aos direitos humanos. A partir da, o espectro
da cidadania avana do cidado aristotlico clssico, o homem de posses e conhecimento,
e comea a ganhar carter universalista e democrtico.
Nesse perodo, a cidadania passa a significar a expresso concreta do exerccio da
democracia. O Renascimento, entre os sculos XIV e XVI, momento especialmente frtil
para o desenvolvimento da cidadania em sua dimenso cultural. So recuperadas e
reelaboradas as referncias de pensadores e filsofos da Antiguidade como Scrates,
Plato e Aristteles, e novas concepes de sociedade e de valores ganham corpo. Ao
mesmo tempo, o dogmatismo teocntrico da cultura medieval comea a ser,
definitivamente, substitudo pela razo.
O indivduo no mais objeto de vontades que lhe so exteriores (transcendentais),
mas sujeito da histria. A obra A Utopia, de Thomas Morus (1478-1535), representa bem a
imagem de um homem menos servil a uma divindade e, ao mesmo tempo, mais
preocupado com o bem estar social.
Com o Iluminismo (sculo XVII), o racionalismo6 burgus definitivamente
implantado. Todo o processo vai culminar com as revolues que sacodem a Europa e a
Amrica a partir do sculo XVII, que configuram os primeiros Estados-nacionais. Como
princpio deflagrador dessa atitude, est o desenvolvimento de uma conscincia histrica
da desigualdade e a emergente necessidade de enfrent-la.
Essa conscincia marcada pelo processo revolucionrio que tem como palco a
Europa e a Amrica, e cujas expresses mais fortes so as revolues Inglesa, Americana e
Francesa. O fim desse processo corresponde ao incio do vigor de novo conceito de
cidadania que tem como base o indivduo e o status de igualdade.
A Revoluo Inglesa7 (1640-1688), considerada a primeira revoluo burguesa da
histria, resulta na formao do primeiro pas capitalista do mundo, a Inglaterra. Seu
6 O racionalismo uma doutrina filosfica do sculo XVII que admite a razo como a nica forma vlida de conhecimento. Nesse sentido, funda as bases do conhecimento cientfico. 7 A Revoluo Inglesa, na verdade, compreende duas fases. Numa primeira, ocorre a Revoluo Puritana (1642-1660), quando o confronto entre foras monrquicas absolutistas e o Parlamento ingls provocam uma guerra civil no pas, culminando com a decapitao do rei Charles I e a implantao da
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mrito romper com os padres de um Estado que governa apenas para uma aristocracia e
coloc-lo em funo da classe burguesa (ainda que esse novo semblante venha a ser
reforado apenas pela Revoluo Francesa).
Dessa forma, a burguesia inglesa fortalece seus laos tanto com as outras classes
sociais como o proletariado como tambm com outras naes, condio essencial
para o avano capitalista. A partir da, tem incio um processo de valorizao do trabalho e
do trabalhador.
nesse contexto que o filsofo ingls Thomas Hobbes (1588-1679) publica, em
1651, Leviat. Para Hobbes, o poder do Estado absoluto, ao contrrio do que considera o
filsofo John Locke (1632-1704), arauto do liberalismo, para quem esse poder limitado.
no embate dessas formas de pensar o poder estatal sobre o indivduo que se abre o
espao necessrio para discutir-se e legislar, claramente, em documentos, os direitos
humanos.
Surge a Carta de Direitos, o Bill of Rights, e a cidadania liberal, ainda que
excludente (por ter como uma de suas prerrogativas a posse de bens materiais), avana
consideravelmente ao assinalar que todos so iguais perante a lei. Para Marco Mondaine
(PINSKY; BASSANEZI, 2003: 130), a Revoluo Inglesa inaugura a Era dos Direitos:
O contratualismo liberal de Locke foi, sem dvida, um dos maiores responsveis pela edificao dessa nova era. Com ele, rompe-se com o pacto de submisso hobbesiano em nome de um pacto de consentimento. No seu estado de natureza, h uma situao de relativa paz, concrdia e harmonia, no qual os indivduos dotados de racionalidade possuem um certo nmero de direitos naturais: vida, liberdade e bens.
A Revoluo Americana8 (1776) bastante influenciada por pilares ideolgicos e
polticos dos pensadores europeus, especialmente Locke, e d incio cidadania
estadunidense. Seus princpios esto expressos tanto na Declarao de Independncia
como na Constituio dos Estados Unidos, esta com forte inspirao no Bill of Rights
Repblica Puritana. Mas a experincia dura menos de 20 anos. a Revoluo Gloriosa (1688) que derruba definitivamente o regime absolutista e d incio a uma monarquia constitucional. 8 A Revoluo Americana resulta na independncia dos Estados Unidos do domnio da Gr-Bretanha. O estopim da rebelio a aprovao da Lei do Ch, que dava o monoplio do comrcio do produto Companhia Britnica das ndias Orientais, prejudicando os comerciantes norte-americanos. Em 1775, organizados militarmente, os colonos declaram guerra metrpole. A Declarao da Independncia, cuja redao tem frente Thomas Jefferson, promulgada em 1776. Em 1783, por meio do Tratado de Versalhes, a Inglaterra reconhece a independncia dos Estados Unidos.
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ingls. Para Leandro Karnal (PINSKY; BASSANEZI, 2003: 150), a caracterstica central
da cidadania estadunidense a sua relao direta com a liberdade do indivduo diante do
Estado.
A Revoluo Francesa9 (1789), assim como os dois outros processos anteriores,
abre caminho para valores e formas de pensar que sero estendidas pelos sculos XIX, XX
e XXI. Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) foi um dos inspiradores dos ideais
revolucionrios na Frana. Para ele, a dominao, ou melhor, a representatividade, no se
faz pela fora, mas por uma opo vinculada a um pacto, a um contrato social.
Rousseau (s.d.: 34) associa a cidadania a um acordo social fundamentado em uma
democracia direta. Para ele, a cidadania instrumento de igualdade entre os homens:
(...) em lugar de destruir a igualdade social, o pacto fundamental substitui, ao contrrio, uma igualdade moral e legtima naquilo que a natureza poderia trazer de desigualdade fsica entre os homens e que, podendo ser desiguais na fora ou capacidade, tornam-se todos iguais por conveno e direito.
nesse aspecto que a cidadania russoniana guarda ntima relao com a
democracia moderna que, a rigor, pressupe um governo que emana do povo e a ele
permanece atrelado. Fora disso, entendem os seus simpatizantes, no se constri uma
democracia legtima.
Para Nilo Odalia (PINSKY; BASSANEZI, 2003: 161), associada aos direitos do
cidado, surge, no sculo XVIII, a ideia de felicidade no mais como conquista individual,
mas como meta a ser alcanada pela coletividade. Segundo o autor, nesse momento da
histria que o acesso a bens materiais ligados s necessidades bsicas, como o alimento e
as vestimentas, e educao deixou de ser privilgio de poucos para tornar-se
possibilidade para todos:
A idia de felicidade assim concebida representou como ainda representa uma grande conquista humana, pois ainda hoje orienta todo o esforo do homem no sentido de uma sociedade mais justa e igualitria.
9 A Revoluo Francesa tem como ponto de partida a revolta da burguesia, com o apoio popular, contra os privilgios da nobreza e do clero no reinado de Lus XVI. O ponto alto da revoluo a proclamao de uma Assemblia Nacional Constituinte e a Tomada da Bastilha, em 1789, por comerciantes, artesos e assalariados parisienses.
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Mas as desigualdades sociais continuaram a existir. A prerrogativa nova foi apenas
a possibilidade do acesso a melhores condies de vida para um maior nmero de pessoas.
Ainda assim, essa concepo de felicidade vai nortear no s a prpria Revoluo Francesa
como tambm o pensamento socialista de alguns anos depois.
O grande legado da Revoluo Francesa a conquista de direitos humanos e sua
expresso em uma Declarao dos Direitos do Homem e do Cidado. O documento
assinala os direitos civis dos homens, independentemente do pas em que vivam, da etnia
ou povo a que pertenam.
Na Declarao, permanecem os ideais de igualdade, fraternidade e liberdade
repetidos como palavras de ordem do movimento e que constituem um marco e um
instrumento de inspirao para a civilizao.
importante destacar que os direitos humanos referendados com as revolues dos
sculos XVII e XVIII so universais e naturais, ao passo que os direitos de cidadania so,
historicamente, considerados conceito poltico e de expresso estatal. Maria Victoria de
Mesquita Benevides Soares (1998: 41) observa:
(...) direitos de cidadania no so direitos universais, so direitos especficos dos membros de um determinado Estado, de uma determinada ordem jurdico-poltica. No entanto, em muitos casos, os direitos do cidado coincidem com os direitos humanos, que so mais amplos e abrangentes.
A afirmao dos direitos humanos a grande conquista deixada pela Idade
Moderna, por seus pensadores e por suas revolues. Esses princpios estiveram presentes
e inspiraram a atual Declarao Universal dos Direitos Humanos, promulgada em 1948, e
que, at hoje, serve de referncia para a cidadania mundial10.
O primeiro artigo da Declarao enftico na defesa do ser humano e da
comunidade humana: Todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos.
10 A esse respeito, Fbio Konder Comparato (2005) observa: a Declarao abre-se com a proclamao dos trs princpios axiolgicos fundamentais em matria de direitos humanos: a liberdade, a igualdade e a fraternidade. (...) A formao histrica dessa trade sagrada remonta a Revoluo Francesa. Mas a sua consagrao oficial em textos jurdicos s se fez tardiamente. A Declarao dos Direitos do Homem e do Cidado de 1789, tal como o Bill of Rights de Virgnia de 1776, s se referem liberdade e igualdade. A fraternidade veio a ser mencionada, pela primeira vez e, ainda assim, no como princpio jurdico, mas como virtude cvica -, na constituio francesa de 1791. Foi somente no texto constitucional da Segunda repblica francesa, em 1848, que o trptico veio a ser oficialmente declarado.
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So dotados de razo e conscincia e devem agir em relao uns aos outros com esprito de
fraternidade.
Os direitos humanos, que so universais, naturais e servem de princpio para a
cidadania, so inspiradores de outro conjunto de direitos os direitos fundamentais que
recebem tratamentos diferentes nas constituies nacionais surgidas a partir do conjunto
das revolues.
Para Glauco Barreira Magalhes Filho (2003: 52), os direitos fundamentais so no
s direitos subjetivos (de todos) pblicos, mas, acima de tudo, contemplados em sua
dimenso objetiva e institucional, como valores que norteiam o sistema normativo,
condensaes materiais do prprio sistema.
Ao atestarem o direito vida, liberdade e igualdade11, os direitos fundamentais
constituem-se, tambm, universais e naturais. Em outras palavras, ao serem universais so
de todos; e ao serem naturais, j se os tem, prerrogativamente, desde o nascimento, mesmo
que no estejam inscritos em leis.
O pensamento contemporneo: cidadania e globalizao
Entre os sculos XVIII e XIX, o pensamento social vai encontrar novo paradigma para
compreender a cidadania e os direitos humanos no contexto da organizao poltico-
econmica.
Nesse perodo, os pensadores socialistas incorporam, definitivamente, a poltica na
vida das classes trabalhadoras e proletrias. Criam-se partidos e sindicatos e so
deflagradas revolues em nome de um modo de produo menos desigual entre patres e
trabalhadores. Outro avano importante a crescente abertura para a participao feminina
no cenrio das decises polticas, tendo sido a pensadora Mary Wollstonecraft (1759-
1797), autora da Reivindicao dos Direitos da Mulher, a desencadeadora das lutas por
essas conquistas.
Entretanto, foi o pensamento de Karl Marx (1818-1883) e Frederich Engels (1820-
1895) que melhor expressou as ideias dos pensadores polticos socialistas. Para esses 11 Seria impreciso elencar, claramente, quais so os direitos fundamentais, j que eles alteram-se de acordo com a cultura, a forma de governo e a Constituio de cada pas. No entanto, em linhas gerais, os trs direitos citados acima so representativos nessa categoria.
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autores, somente com a superao do capitalismo seria possvel o pleno exerccio da
cidadania e a sua extenso a todos. Desde a sua origem, o Materialismo Histrico, ou
Marxismo, denunciou a explorao do trabalhador capitalista e defendeu a construo de
uma sociedade comunista.
Servindo para fundamentar essa conquista, os marxistas colocaram em xeque a
concepo da cidadania como direito natural. Na sua acepo, ela uma conquista social
baseada no s em direitos, mas, principalmente, em deveres. Nas palavras de Marx
(IANNI (Org.), 1992: 198):
S quando o homem individual real readquire em si o cidado abstrato e se converte, como homem individual, em ser genrico, em seu trabalho individual e em suas relaes individuais; s quando o homem reconhece e organiza suas forces propres como foras sociais, e quando, portanto, j no separa de si a fora social sob a forma de fora poltica, s ento se realiza a emancipao humana.
Durante o sculo XX, cientistas sociais e historiadores avanaram na compreenso
do conceito de cidadania. Para Marshall (1967), ela est dividida em trs instncias: os
direitos civis, os direitos polticos e os direitos sociais. Tomando como referncia
principalmente a sociedade inglesa, o autor observa que a conquista desses direitos, que
pressupem tambm deveres e obrigaes, d-se na Europa, de forma sequencial e nessa
ordem, a partir do sculo XVIII.
Os direitos civis, segundo Marshall, so fundamentados na liberdade individual.
Dizem respeito posse do indivduo sobre seu corpo; sua possibilidade de locomoo, de
ir e vir; de expressar publicamente suas ideias e de organizar-se. Eles pressupem, ainda,
formas organizadas de existncia e relaes sociais calcadas em uma justia independente,
eficiente e acessvel.
Os direitos polticos, uma conquista europeia do sculo XIX, fundamentam-se no
autogoverno e referem-se participao do indivduo na vida, no gerenciamento do
presente e do futuro poltico de sua nao. Eles so, em parte, legados da civilizao greco-
romana. Pressupem o direito de votar e ser votado. A condio para a sua existncia so
os direitos civis. No h como votar e ser votado, conscientemente, sem um indivduo
reconhecidamente livre e uma organizao partidria bem estruturada e atuante.
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Finalmente, os direitos sociais, segundo Marshall, fundamentam-se na justia
social. Marcadamente conquistados na Europa do sculo XX, grande parte de sua vigncia
cabe ao Poder Executivo. Dizem respeito s necessidades do ser humano como comida,
educao, trabalho e condies gerais de subsistncia. Enfim, implicam a participao de
todos na riqueza coletiva.
Nesse ponto, o autor faz uma observao importante e assinala que a educao
popular constitui exceo na sequncia dos direitos. Apesar de ser direito social, ela pr-
requisito para a conquista dos outros direitos na medida em que permite que as pessoas
possam conhec-los, organizarem-se e lutarem por eles.
Para Marshall, portanto, cidado o homem livre que, por meio da educao,
capaz de organizar-se e administrar seu espao na sociedade, assegurando suas condies
bsicas de vida. O cidado agente e produto da democracia.
Boaventura de Souza Santos (2002: 45) entende a democracia como elemento
relevante da cidadania e atribui-lhe um carter claramente poltico. Para ele, a democracia
constituda por um conjunto de regras para a formao de maiorias, entre as quais
valeria a pena destacar o peso igual dos votos e a ausncia de distines econmicas,
sociais, religiosas e tnicas na constituio do eleitorado. No entanto, o autor observa que
o aumento do controle da burocracia capitalista sobre o indivduo no sculo XX foi um
golpe sobre o cidado e para a democracia.
A partir dos anos 80, os direitos humanos, a democracia e a cidadania foram
reforados como instrumentos em defesa dos direitos do trabalhador e passaram a merecer
ateno especial como modeladores das tenses sociais. Em uma releitura do Materialismo
Histrico, Ellen M. Wood (2003) reinterpreta a cidadania no alvorecer do sculo XXI. Para
ela, na verdade, a concepo atual encobre as desigualdades cada vez mais acirradas na
luta de classes.
Nesse contexto, ela afirma que a igualdade poltica na democracia capitalista no
somente coexiste com a desigualdade socioeconmica, mas a deixa fundamentalmente
intacta (ibidem: 184). Essa , alis, a principal crtica ao pensamento neoliberal
contemporneo.
Seguindo essa mesma linha, Richard Sennett (2006) constri uma crtica ao vigente
modelo de capitalismo. Segundo o autor, na virada do sculo XX para o sculo XXI, o
estgio do capitalismo passa a implicar uma nova cultura em que se interceptam as
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fronteiras entre o consumo e a poltica. Para ele, a cultura do consumo sobrepe-se aos
laos polticos que foram atados, historicamente, entre os indivduos.
Nesse cenrio, a cidadania compromete sua essncia articuladora e amalgamadora
da vida e da harmonia poltica entre os indivduos, os cidados. Na medida em que a
cultura do consumo coloca em risco laos essenciais da democracia, enaltece o
individualismo: Em vez de fechamento, a cultura recomenda a entrega cortar laos para
sentir-se livre, especialmente os laos gerados pelo tempo (ibidem: 179).
A cultura a que se refere Sennet no foi criada pela globalizao, mas, certamente,
foi por ela redimensionada. Segundo Renato Ortiz (1994: 16), para quem a globalizao
corresponde a um processo relativamente recente e em construo, , sobretudo, na esfera
econmica, que ela pode ser entendida: O conceito (de globalizao) se aplica, portanto, produo, distribuio e consumo de bens e servios, organizados a partir de uma estratgia mundial, e voltada para um mercado mundial. Ele corresponde a um nvel e a uma complexidade da histria econmica, no qual as partes, antes inter-nacionais se fundem agora numa mesma sntese: o mercado mundial.
Essa globalizao que promove alteraes estruturais na economia reflete-se,
tambm, nos campos poltico, social e cultural. Se, por um lado, ela tece o
desenvolvimento de multinacionais e de mercados financeiros, por outro, a pobreza e a
misria atingem parte considervel das populaes, mesmo nos pases desenvolvidos.
Crtico dos atuais rumos das desigualdades da economia mundial e de suas
mazelas, Eric Hobsbawn (2008: 21) afirma que at a dcada de 1980 a maioria das
pessoas vivia melhor do que seus pais e, nas economias avanadas, melhor do que algum
dia tinha esperado viver, ou mesmo imaginado possvel viver.
Para o autor, a maneira como a civilizao encerrou o sculo XX diferente da
maneira como o iniciou em pelo menos trs aspectos. Em primeiro lugar, perdeu seu
paradigma eurocntrico para o triunfo norte-americano. Em segundo, as atividades
transnacionais alijaram as economias e os Estados-nacionais. E, por fim, em sintonia com
Sennet, Hobsbawn (ibidem: 25) considera o predomnio do individualismo a caracterstica
mais perturbadora dos novos tempos: Essa sociedade, formada por um conjunto de indivduos egocentrados sem outra conexo entre si, em busca apenas da prpria satisfao (o
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lucro, o prazer ou seja l o que for), estava sempre implcita na teoria capitalista. Desde a Era da Revoluo12, observadores de todos os matizes ideolgicos previam a conseqente desintegrao dos laos sociais na prtica e acompanharam seu desenvolvimento.
No entendimento de Hobsbawn, o triunfo da ideologia do livre mercado, no final
do sculo XX, articula-se tambm tecnologia que continuou a forar a mo-de-obra na
produo de bens e servios, sem proporcionar trabalho suficiente do mesmo tipo para os
que expulsava nem assegurar uma taxa de crescimento econmico suficiente para absorv-
los (ibidem: 549).
Assim, as tecnologias so expresses polticas importantes da globalizao e da sua
complexidade, representando o alicerce da ideia de progresso e desenvolvimento. Nesse
sentido, as tecnologias parecem reviver a ideia de promessa de felicidade constatada por
Odalia (PINSKY; BASSANEZI, 2003) no sculo XVIII.
Mas, entre a tecnofobia de alguns crticos e cticos das tecnologias, e a tecnofilia
dos seus entusiastas, sobretudo economistas de multinacionais, parece impor-se a
necessidade de respeito dimenso humana sobre os interesses econmicos.
Nesse sentido, Gilberto Dupas (2001: 18) adverte que, entre ficar estagnada diante
de pensamentos reacionrios e atender, despudoradamente, s necessidades imediatas do
capital econmico, a tecnologia pode e deve se submeter a uma tica que seja libertadora
a fim de contemplar o bem estar de toda a sociedade, presente e futura.
Na atual geopoltica, nesse emaranhado que articula cidadania e consumo, algumas
correntes comearam a posicionar-se por meio de questes que dizem respeito ao
indivduo como base para o envolvimento e a responsabilidade do cidado. Essas
articulaes aparecem como condies para a garantia da qualidade da democracia nas
comunidades, elemento tambm determinante na cidadania do sculo XXI.
1.2. Individualidade e empoderamento: a cidadania reajustada
As cartas e declaraes de direitos produzidas entre os sculos XIV e XVII consolidaram
os princpios da cidadania atual e esto presentes nas constituies nacionais. Na sociedade
12 Aqui o autor faz referncia teoria marxista e revoluo do proletariado; dos trabalhadores.
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global, um legado histrico da cidadania permanece intacto: a irrefutvel defesa do ser
humano, da sua vida, da sua dignidade e da sua liberdade.
Hoje, a cidadania no muda seu curso nem seu compromisso humano, mas
reajusta-se. Ela parece focar-se menos na abordagem liberal clssica, fundamentada no
estatuto legal, que tende a formalizar a condio cidad (direitos), e mais em uma
concepo comunitria republicana em que o cidado, o indivduo que permanentemente a
constri (deveres), precede a dimenso poltica.
Nessa linha, Chantal Mouffe (1992: 03) entende que a afirmao da cidadania no
pode atropelar ou negligenciar a liberdade de cada membro da comunidade. Pensando no
respeito a cada indivduo, sua individualidade e pluralidade, a autora prope um projeto
de democracia radical. O ponto de partida para a construo da cidadania e para a garantia
da qualidade da vida democrtica est no respeito a essas dimenses:
The notions of citizenship and community have been stripped of much of their content by liberal individualism, and we need to recover the dimension of active participation that they hold in the classical republican tradition. Now this tradition needs to be made compatible with the pluralism that is central to modern democracy13.
A concepo de cidadania de Mouffe implica compromisso e respeito, entre si, por
parte dos indivduos que compem a comunidade poltica. Na democracia radical, a
cidadania um processo dinmico, inacabado e em permanente perspectiva baseada no
respeito ao indivduo e s suas liberdades. O conceito tem em vista que somente colocando
esse indivduo acima de uma noo de bem comum ele far parte da comunidade poltica e
ser, portanto, cidado.
Larry Diamond e Leonardo Morlino (2005) trazem colaborao democracia
radical pensada por Mouffe. Para os autores, um elemento incondicional da democracia e
da cidadania a responsabilizao. Nessa acepo, o compromisso pressuposto pela
qualidade democrtica no pode ser estabelecido por obrigao, mas pelo sentimento de
estar envolvido no processo.
13 As noes de cidadania e comunidade tm sido despojadas de muito do seu contedo pelo individualismo liberal, e precisamos recuperar a dimenso da participao ativa da clssica tradio republicana. Agora esta tradio tem de ser compatvel com o pluralismo que fundamental para a democracia moderna. (TRADUO NOSSA)
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Essa questo articula-se necessidade do respeito individualidade defendida por
Mouffe na medida em que somente o indivduo respeitado pode ir alm da
responsabilidade obrigada e assumir uma responsablizao, ou seja, a responsabilidade
trazida pelo envolvimento.
Para Dimond e Morlino (ibidem: XI), esse indivduo responsabilizado que vai
garantir o bom funcionamento das instituies democrticas. Eles avaliam que a quality
democracy to be one that provides its citizens a high degree of freedom, political equality
and popular control over public policies and policy makers through the legitimate and
lawful functioning of stable institutions14.
Para esses dois autores, a cidadania ganha contornos de compromisso e
responsabilizao, articulando o que eles denominam dimenses procedimentais e
dimenses conteudsticas da democracia.
No mbito das dimenses procedimentais, Dimond e Morlino incluem o primado
da lei, que assegura igualdade para os indivduos; a participao dos indivduos, estando
esses devidamente habilitados, nos processos polticos; a competio democrtica entre
partidos e ideias; a vertical accountability, ou seja, a obrigao dos polticos atenderem aos
anseios e demandas dos seus eleitores; e a horizontal accountability, que diz respeito
existncia de instituies democrticas capazes de acompanhar e punir, quando necessrio,
os polticos ou outras instituies de servio pblico que fujam aos seus compromissos.
As trs dimenses conteudsticas assinaladas por Diamond e Morlino so a
liberdade, a igualdade e a responsabilizao. A liberdade diz respeito a que sejam
assegurados aos cidados os trs direitos pensados por Marshall (1967): civis, polticos e
sociais; j a igualdade pressupe que haja equidade poltica entre os cidados.
Finalmente, a responsabilizao parece amalgamar todas as dimenses acima. Ela
diz respeito ao compromisso efetivo que os governos devem ter com sua populao em
relao s suas expectativas, interesses, necessidades e demandas.
Um derradeiro autor merece ateno nessa discusso. Ao propor uma dialtica do
empoderamento, Guilhermo ODonnell (2004: 09) afirma que a democratic regime (...) is
a fundamental component of democracy, but it is insuficient for adequately
14 A qualidade da democracia concede aos seus cidados um alto grau de liberdade, igualdade poltica e controle popular sobre as polticas pblicas e os polticos atravs do legtimo e legal funcionamento de instituies estveis. (TRADUO NOSSA)
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conceptualizing what democracy is15. Para ele, a democracia determinada,
fundamentalmente, pelos cidados.
Na concepo de ODonnell, os indivduos que compem a comunidade poltica
so agentes dotados de razo prtica que os habilita a avaliar o quadro em que esto
inseridos. A democracia, portanto, no pode ser vista por esses agentes como um fim a ser
alcanado, mas como algo real e, ao mesmo tempo e aqui seu pensamento corrobora
tambm a concepo de perspectiva de Mouffe , em permanente processo de construo.
Para ODonnell (ibidem: 70), no existe, portanto, um contrato de aceitao para se
fazer parte da democracia, mas j se parte dela e do seu processo de construo. Esse
processo implica constante atualizao dos valores humanos e sociais a serem
reconhecidos e afirmados pelo primado da lei, uma das dimenses procedimentais da
democracia defendida por Diamond e Morlino:
Since classical Athens, albeit restricted to a segment of the population, up to contemporany times, when it has become inclusive, political citizenship has been based on the view that the respective individuals are actual or at least prospective agents. It is this view that lends to democracy its great normative import: Even if at times obfuscated or neglected, or dampened by appalling inequalities in the society in which it exists, the normative component of democracy always may be resurrected by appeal to the dignity and respect that the agent / citizen inherently deserves16.
ODonnell reala em seu pensamento que o fator de garantia da democracia no
em si o regime democrtico, mas o cidado, o agente que constitui a dialtica do
empoderamento.
Assim, o desenvolvimento humano e a garantia dos direitos humanos so
condies essenciais para a qualidade democrtica e, portanto, para a cidadania. Em outras
palavras, pensar a cidadania mais que assegurar legalmente direitos ou normas. Estes so
15 Um regime democrtico (...) um componente fundamental da democracia, mas insuficiente para conceituar adequadamente o que uma democracia. (TRADUO NOSSA) 16 Desde a Atenas clssica, embora restrito a um segmento da populao, at contemporaneamente, quando se tornou, inclusiva, a cidadania poltica foi baseada na opinio de que os respectivos indivduos so agentes reais ou, pelo menos, prospectivos. esta viso que empresta para a democracia sua grande importncia normativa: mesmo que, por vezes, pouco clara ou negligenciada na tradio, ou atenuada por terrveis desigualdades na sociedade em que ela existe, a componente normativa da democracia sempre pode ser ressuscitada pelo apelo dignidade e ao respeito que o agente / cidado inerentemente merece. (TRADUO NOSSA)
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consequncias do protagonismo dos indivduos empoderados os cidados que
compem a comunidade.
Para Mouffe (1992; 2006; 2007), Diamond e Morlino (2005) e ODonnell (2004), a
noo de cidadania ligada qualidade da democracia parece ampliar-se em relao sua
concepo mais ancestral. Os autores sublinham que a igualdade poltica de direitos dos
indivduos no pressupe uma igualdade entre os indivduos. , na verdade, o respeito
pluralidade que est no bojo do empoderamento de cada cidado.
Na recente transio do sculo XX para o sculo XXI, esses autores reajustam a
cidadania, dando-lhe forma menos linear como, at ento, a histria e a tradio
marshaliana, baseada no conjunto dos direitos civis, polticos e sociais, haviam feito.
Enquanto, para Marshall, o cidado o homem livre que, por meio da educao,
assegura suas condies bsicas de vida, na concepo de Mouffe, ele , antes de tudo,
reconhecido em sua individualidade e pluralidade, tornando-se, para ODonnell, um agente
empoderado, que legitima as dimenses democrticas, proposta por Diamond e Morlino,
no primado da lei.
O conjunto das colaboraes desses quatro autores parece faz-los convergir no
entendimento da cidadania contempornea como emergente do respeito entre os e aos
indivduos cidados tornados agentes das permanentes transformaes e avanos
democrticos e econmicos.
1.3. Da cidadania ao interesse pblico
Embora datados na primeira metade do sculo XX, os estudos de Hannah Arendt (1987),
quando articulados s concepes defendidas por Mouffe (1992, 2006, 2007), Dimond e
Morlino (2005) e ODonell (2004), tm especial importncia para a definio da cidadania
contempornea.
O pressuposto fundamental de Arendt para compreender a cidadania a ao.
Segundo ela, na vita activa, o ser humano executa trs atividades fundamentais: o labor,
segundo ela, relacionado com as atividades vitais da vida biolgica, como comer; o
trabalho, associado condio da interveno humana sobre a natureza, dando ao homem
um grau de artificialidade e mundanidade e, finalmente, a ao, correspondente
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condio humana da pluralidade, ao fato de que homens, e no o Homem, vivem na Terra
e habitam o mundo (1987: 15).
Partindo da concepo como ato poltico (Aristteles) at a luta pela construo de
uma sociedade sem classes (Marx), Arendt entende a cidadania como uma construo
coletiva e um direito, produto de um dever. Trs aspectos podem ser destacados em seu
pensamento.
Em primeiro lugar, enquanto, para Aristteles, a cidadania implicava a
possibilidade concreta do exerccio da poltica o poder de governar ou ser governado
Arendt mais ambiciosa. Para ela, a cidadania corresponde ao direito a ter direitos. Ela
entende que esse o primeiro direito humano fundamental do qual se derivam os demais.
Em segundo, a cidadania arendtiana universal, independendo da nacionalidade.
Mas, embora figure entre os direitos fundamentais do ser humano, a cidadania no uma
qualidade natural nem apenas do indivduo. Ela social.
Por fim, a cidadania uma qualidade do ser humano, embora no nasa com ele.
Ela precisa ser conquistada e resulta de um agir conjunto, como pressupunha Marx. Sendo
uma construo coletiva, portanto, ope-se concesso e ao privilgio, por isso no pode
ser revogada.
Arendt (1987: 16) mostra que a cidadania realiza-se por meio da ao que leva a
sua conquista e ratificao. , portanto, o exerccio dessa ao social, dialgica e poltica
de cada indivduo que caracteriza a construo da cidadania:
A ao seria um luxo desnecessrio, uma caprichosa interferncia com as leis gerais do comportamento, se os homens no passassem de repeties interminavelmente reproduzveis do mesmo modelo, todas dotadas da mesma natureza e essncia, to previsveis quanto a natureza e a essncia de qualquer outra coisa. A pluralidade a essncia de qualquer condio humana pelo fato de sermos todos os mesmos, isto , sem que ningum seja exatamente igual a qualquer pessoa que tenha existido, exista ou venha a existir.
Ao focar sua ateno na ao, Arendt retira do estatuto da lei a premissa da
cidadania e a desloca para o conjunto dos atos que passam a inspirar a lei. Dessa forma, ela
nada mais faz do que imputar a cidadania aos indivduos reconhecidos em sua pluralidade
(a essncia de qualquer condio humana). Nessa perspectiva, sua anlise relaciona-se s
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concepes de individualidade e de perspectiva de Mouffe (1992), que, por sua vez,
articula os conceitos de Dimond e Morlino (2005) e ODonell (2004).
A partir do conjunto dos autores supracitados, possvel entender a cidadania
como direito humano fundamental, universal e coletivamente construdo, produto da ao
social, dialgica e poltica dos indivduos que constituem uma comunidade plural. a luta
em perspectiva dos agentes empoderados pelo direito vida, liberdade, dignidade e,
sobretudo, compreenso do seu direito cidadania, a partir dos deveres que ela prpria
pressupe. Cidadania mais que estar no mundo: participar dele e, por isso, assumir
compromissos e responsabilizaes com ele.
Logo, reside na cidadania, o conceito de interesse pblico. Mais precisamente, no
conceito de cidadania acima, o interesse pblico o objetivo, o alvo principal da ao
social de cada indivduo empoderado. Ela a responsabilizao que tambm uma ao
desse indivduo.
No clssico texto da APSA, o cientista poltico Gerhart Niemeyer (FRIEDRICH:
1966, 14) observa que, tanto por meio da obra de Plato (428-348 a.C) como no seu
discpulo mais clebre, Aristteles, j era possvel perceber o esboo do conceito de
interesse pblico na cidadania grega.
Para os gregos, era o logos, a razo, que orientava a vida pblica. A esse elemento,
opunham-se a concupiscncia e a paixo que, por sua vez, orientavam a vida privada. No
entanto, o interesse em estabelecer melhorias para se viver essa vida privada levou
produo de bens materiais. A partir da, a vida social passou a necessitar de novas formas
de organizao. Isso conduziu necessidade de vida pblica, segundo Niemeyer, orientada
pelo interesse pblico.
por isso que, para Arendt, os limites da participao dos indivduos na cidadania
grega e romana (que exclua escravos, os artesos e os comerciantes) no podem ser
entendidos como uma forma nefasta de privilgios, mas como uma dimenso atribuda
vida pblica. Dessa ltima, entendida como uma extenso da vida privada, participavam
apenas os que possussem poder (propriedades, escravos, lar etc.). Segundo a autora (1987:
38-39): (...) a antiga santidade do lar, mais pronunciada na Grcia clssica que em Roma antiga, jamais foi inteiramente esquecida. O que impediu que a polis violasse as vidas privadas dos seus cidados e fez ver como sagrados os limites que cercavam cada propriedade no foi o respeito
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pela propriedade privada tal como a concebemos, mas o fato de que, sem ser dono de sua casa, o homem no podia participar dos negcios do mundo porque no tinha nele algum lugar que lhe pertencesse.
De acordo com Niemeyer, portanto, na necessidade de organizao da vida
pblica motivada por razes econmicas que esto as bases do interesse pblico no
pensamento platnico e aristotlico. O autor observa que o interesse pblico, articulado
razo, orienta-se pela conscincia (noesis) e pela ordem racional da justia (dik). Da o
interesse pblico, em Plato e Aristteles, corresponder a um dikaio-nesis.
Mas o interesse pblico tambm aparece na Idade Mdia. Para Niemeyer
(FRIEDRICH, 1966: 16), a noo desse interesse aparece no pensamento de Santo Toms
de Aquino e de outro filsofo cristo da poca, Santo Agostinho. Mas pouco tem a ver
com a vida pblica concebida pelos antigos gregos e romanos.
Nos valores cristos, o interesse pblico, tingido por um interesse particular de
salvao, ganhou contornos transcendentais. Todo sentido de ordem, de participao e de
justia orbitava em funo da salvao da alma. Por isso, Niemeyer avalia que a paz,
orientada para uma pax participans, passa a ser o interesse pblico caracterstico do
perodo medieval.
No cenrio da Modernidade, Niemeyer avalia o pensamento de alguns importantes
tericos liberais da poca, entre eles, Locke, arauto do liberalismo ingls e importante
inspirador da cidadania estadunidense.
Segundo o autor, Locke nega os pensadores cristos, mas, assim como Plato e
Aristteles, entende que o interesse pblico tem como objetivo atender s necessidades
oriundas da vida e dos interesses privados. Entretanto, como liberal, ele nega a necessidade
colocada pelos pensadores gregos de uma ordem racional da justia (dik). Tendo em vista
os limites do poder do Estado sobre o indivduo, a regulao da vida social e do interesse
pblico reside numa legalidade calculvel, manobrvel, ou regra do jogo (ibidem,
18).
Niemeyer avalia tambm o pensamento de atores socialistas sobre o interesse
pblico, entre eles, Marx. Aqui o interesse pblico abandona o vnculo com a vida privada
to ao gosto dos gregos e dos liberais. To pouco se vincula dimenso transcendental, ao
gosto dos pensadores cristos.
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Para Marx, o interesse pblico passa pela dimenso do trabalho. Segundo
Niemeyer (ibidem, 22), a ordem social assim essencialmente a ordem do trabalho
coletivo e da sua administrao. , pois, o trabalho de finalidade coletiva e o usufruto
coletivo do produto desse trabalho que caracterizam o interesse pblico.
Em linhas gerais, o que o breve artigo de Niemeyer permite entrever que,
historicamente, a cidadania articula-se ao interesse pblico, porque ambos funcionam na
direo de normatizar e qualificar a vida em sociedade. No entanto, a cidadania tem carter
mais mediato. Ela praticamente uma decorrncia da ao (Arendt) dos cidados no
cumprimento dos seus deveres ou no usufruto dos seus direitos. J o interesse pblico
mais concreto e pragmtico, sendo, em si, os objetivos claros dessa ao.
Para Niemeyer, o interesse pblico tem, em cada poca, seja na Antiguidade, na
Idade Mdia, Moderna ou Contempornea, um sentido muito claro, seja ele a organizao
econmica, a paz transcendental, a economia liberal ou social, respectivamente. Mas,
nesses quatro momentos como deixam perceber os autores apresentados at aqui, de
Plato e Aristteles a Moufee e ODonell, passando por Marshall e Pinsky , apenas um
ponto de chegada fundamenta esse interesse: a cidadania.
Harold Lasswell (FRIEDRICH, 1966: 64), tambm colaborador da obra da APSA,
prope um mtodo para assegurar o interesse pblico, distinguindo-o de outros interesses.
E aqui merece especial ateno a distino entre o interesse pblico e privado17.
Para ele, o interesse pblico diferencia-se do interesse privado na medida em que
este ltimo possui magnitude insuficiente para garantir o uso de processos mais inclusivos
do que exclusivos de escolha ou deciso. Por sua vez, o interesse pblico
suficientemente grande para garantir o uso de processos inclusivos de escolha ou de
deciso (ibidem, 74).
Enfim, para Lasswell, o interesse pblico, assim como o interesse privado, est
amparado por uma deciso (logos). No entanto, o que define um do outro que, no
interesse privado, essa deciso tomada por uma magnitude da incluso. Nesse sentido, ao
17 No seu texto, Lasswell (FRIEDRICH, 1966: 64-88 pp.) apresenta outros conceitos de interesse, geralmente em duplas de oposio. Assim como ope o interesse pbico ao privado, estuda a relao entre o interesse comum e o especial e entre o interesse cvico pblico e o de ordem pblica. Mas, por se entender que a classificao est demasiado datada, optou-se por trabalhar apenas a relao entre o interesse pblico e o privado. Na mesma obra, o jurista W. Friedmann faz uma anlise desse texto de Lasswell. No entanto, tambm bastante datada e centrada no contexto estadunidense da poca.
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contrrio do agente do interesse privado, o agente do interesse pblico, o cidado, norteia
sua ao pela magnitude da dimenso social e coletiva.
Assim, o interesse pblico a razo imediata da ao de que fala Arendt. No
entanto, a consequncia dessa ao tem um alcance maior e realiza-se na cidadania. Ao se
preservar o ecossistema de um rio, o que se mira e o que se acerta uma determinada
regio do planeta. Entretanto, naquele mesmo momento, todo o meio ambiente ser
afetado. A preservao de um determinado rio uma ao de interesse pblico. As
consequncias disso para o meio ambiente em escala planetria, a cidadania.
No entanto, vale lembrar, esse rio estar sempre a assumir novos significados,
porque muitas pedras lhe so miradas e atiradas. Por isso, ele sempre estar em
perspectiva, como em perspectiva estar sempre a cidadania (Mouffe), que se reajusta. Por
sua vez, os indivduos so mais capacitados a mirar e acertar os pontos desse rio, podem
com maior competncia fazer isso a partir do seu empoderamento (ODonell).
O interesse pblico a razo imediata da ao poltica de cada cidado por meio
da qual se constri ou se reajusta a cidadania. Retomando o conceito de cidadania
apresentado acima, possvel considerar o interesse pblico como propriamente a ao
social, dialgica e poltica dos indivduos que constituem uma comunidade plural.
propriamente a participao do individuo no mundo, assumindo compromissos e
responsabilizaes com ele.
importante lembrar, tambm, a partir de Mouffe, que a afirmao da cidadania
no negligencia a liberdade de cada membro da comunidade. Portanto, o interesse pblico
nasce de uma empatia individual de cada indivduo com o todo, com a sociedade. Da ele
ser construdo a partir de em uma ao individual que se converte em uma dimenso social
e democrtica.
Fundamentada de perto por esse interesse, a cidadania contempornea, reajustada,
representa um avano a partir das bases em que surgiu com os hebreus, com uma dimenso
religiosa, e, em seguida, poltica, herdada dos gregos e romanos antigos. Se, ao longo dos
anos, ela ganhou, com as revolues modernas, o status de igualdade de direitos, a partir
de agora, ela foca sua ateno no seu protagonista.
Seu olhar dirige-se para o indivduo que, historicamente, a fez e a faz: o cidado.
Embora ser cidado ainda signifique possibilidades diferentes em cada nao do mundo,
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como afirma Pinsky (2003), as referncias e conquistas histricas da cidadania so cada
vez menos locais ou nacionais.
Pases do Oriente Mdio ainda chocam os ocidentais no que diz respeito ao
tratamento dado mulher, muitas vezes punida por adultrio com morte por
apedrejamento, por exemplo. Embora essa seja uma referncia cultural, no se pode dizer
que se trate de um sentimento universal e que, inclusive, parcelas da populao desses
pases no repudiem tais fatos.
Ao mesmo tempo, a possibilidade de unio civil entre pessoas do mesmo sexo foi
uma conquista afirmada em naes europeias que serviu como referncia para outras
naes.
Esse tipo de avaliao remete a questes levantadas por Mouffe (1992), Dimond e
Morlino (2005) e ODonell (2004) para refletir sobre a cidadania em pases como o Brasil.
Afinal, a cidadania nacional, embora no tenha seguido o caminho europeu pensado por
Marshall (1967), hoje se depara com duas facetas que parecem aproxim-la de um
conceito mundial. Uma delas vem sendo gestada desde as revolues burguesas: a
universalidade dos direitos humanos. A outra, acentuada com a constituio de uma
sociedade global a partir de finais do sculo XX, entende o indivduo e seu protagonismo
como bases da cidadania.
1.4. A cidadania brasileira
Para Jos Murilo de Carvalho (2003), somente a partir de 1822, quando se d a
Independncia do Brasil da Coroa Portuguesa e comea a firmar-se um sentimento de
nao, que se pode falar em uma cidadania brasileira. Ainda assim, naquele momento,
esse sentimento era nfimo.
Isso porque, segundo o autor, a Independncia do Brasil resultou muito pouco de
uma construo popular e significou bem mais um acordo envolvendo a elite nacional e a
Coroa Portuguesa. Alm disso, se, por um lado, a colonizao havia criado uma unidade
cultural e lingustica na provncia brasileira, por outro, havia deixado marcas escravocratas
e latifundirias. Para Carvalho (2003: 23), no havia repblica no Brasil, isto , no havia
sociedade poltica; no havia repblicos, isto , no havia cidados.
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De todo modo, por luta pela democracia e pelos direitos humanos, merecem ser
consideradas durante o Brasil Colnia (1500-1822) algumas manifestaes cvicas, como
as revoltas escravas. Embora severamente esmagadas pelo governo, pelas elites e pelos
militares, elas serviram para marcar focos de insatisfao popular durante a fase colonial.
Flvio dos Santos Gomes (PINSKY; BASSANEZI, 2003: 462) entende a formao
dos quilombos no Brasil no apenas como luta pela liberdade, mas, tambm, como luta
agrria fortemente vinculada ao acesso, direito, manuteno e posse do uso da terra: Aquilombavam-se para que no fossem vendidos ou transferidos, para que no se aumentasse o ritmo de trabalho, para que pudessem continuar cultivando suas roas, para que no recebessem castigos rigorosos e arbitrrios ou ento para que fossem considerados livres e possuidores das terras aps a morte de seus senhores.
Alm dessas, revoltas polticas como a Inconfidncia Mineira (1789), inspirada nos
ideais iluministas do sculo XVIII; a Revolta dos Alfaiates (1798), na Bahia, influenciada
pela Revoluo Francesa; e a Revoluo Pernambucana de 1817, de inspirao iluminista,
assinalaram insatisfaes polticas e um sentimento de povo e de nao. Mas, ainda que
alguns tenham sido mais populares do que outros18, esses conflitos constituram
insurreies da elite contra o controle colonial, no chegando a representar uma luta
popular. Alm disso, nem sempre traziam reivindicaes baseadas em um sentimento
efetivamente nacional19.
De 1822 a 1930, o Brasil experimentou uma primeira fase de cidadania, que ele
considera uma cidadania em negativo, ou seja, uma cidadania que no foi produto da
conscincia nem da participao popular nem era estendida, democraticamente, a todos os
cidados. Para Carvalho (2003: 83), at 1930, o povo brasileiro ainda no se via como tal e
muito menos havia se organizado em instituies capazes de consolidar uma democracia
nacional. Quando o povo agia politicamente, em geral, o fazia como reao ao que
considerava arbtrio das autoridades. Era uma cidadania em negativo, se se pode dizer
assim.
18 A Revolta dos Alfaiates foi a mais popular, contando com a participao de militares de baixa patente, artesos e escravos. 19 A Revolta Pernambucana correspondia mais a um sentimento de parte da elite pernambucana do que, de fato, brasileira. Ela desembocou na Confederao do Equador, uma tentativa de algumas provncias do Nordeste brasileiro - Pernambuco, Cear, Paraba, Rio Grande do Norte de criar um pas independente em 1824, logo em seguida ao surgimento do Imprio, em 1822.
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Carvalho (ibidem) entende que o primeiro entrave para uma efetiva cidadania
nacional foi de carter poltico. As dificuldades para o exerccio do voto foram sua
caracterstica mais marcante. At 1930, as mulheres no tinham direito de expressarem-se
nas urnas e os homens votantes o que inclua, inicialmente, todos os maiores de 25 anos
ou 21, se casados ou economicamente independentes, mas, depois, apenas os alfabetizados
decidiam o destino do Pas.
Alm disso, at o incio do sculo XX, o processo eleitoral transcorria em clima de
aberta corrupo poltica, o que inclua compra de votos, ameaas a eleitores e desrespeito
ao prprio processo eleitoral.
Alguns aspectos dificultaram tambm a cidadania civil no Brasil at os primeiros
anos da Repblica. O primeiro deles diz respeito maneira como vivia o negro,
inicialmente escravizado e, depois da Lei urea, submetido a difceis condies de vida e
trabalho. As grandes propriedades e um consequente coronelismo eram outro obstculo
cidadania.
At o final do sculo XIX, no se pode esperar muito em relao cidadania social
de um pas que pouco havia construdo nos aspectos poltico e civil. S nas primeiras
dcadas do sculo XX, avanaram os direitos sociais.
A presena do imigrante europeu trouxe nova mentalidade sobre os direitos do
trabalhador. A maneira como eram tratados no Brasil era acompanhada em seus pases e
seus direitos foram, por isso, em alguma medida, reivindicados e preservados.
Alm disso, ideais anarquistas e socialistas, de forte conotao poltica,
encontraram terreno para proliferar, especialmente no Sul e Sudeste brasileiros. Seus
defensores ajudaram na construo da cidadania nacional, ainda que, em alguns casos,
tenham sido penalizados em suas conquistas civis e polticas.
Segundo Tnia Regina de Luca (PINSKY; BASSANEZI, 2003), entre os anos de
1917 e 1921, So Paulo e Rio de Janeiro sediaram as maiores manifestaes das classes
trabalhadoras da Primeira Repblica. Por um lado, confrontadas com os sucessivos
aumentos do custo de vida do perodo ps-Primeira Guerra; por outro, pelo respaldo
poltico e ideolgico sinalizado s classes proletrias pela fora da Unio Sovitica.
Essas manifestaes contavam com a simpatia da crescente populao urbana da
poca. Com isso, o Estado brasileiro disps-se a instituir uma legislao que assegurasse os
direitos dos trabalhadores, consagrando-os na reforma constitucional de 1926. Mas Luca
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(ibidem: 473) chama ateno para o fato de que a disposio de legislar sobre o tema foi
concomitante perseguio sistemtica ao movimento organizado, facilitada pelo estado
de stio (1922-27) e pela aprovao, em 1921, da lei de represso ao anarquismo.
Mas s com o desenvolvimento de uma identidade nacional20, a partir de meados
dos anos 30, possvel falar, de fato, em cidadania brasileira. Para Carvalho, a Primeira
Guerra Mundial, que serviu para despertar preocupaes com a defesa do Pas entre civis e
militares; a Semana de Arte Moderna de 22, buscando discutir e referendar uma cultura
brasileira; e as crises econmicas, como a do caf, em So Paulo, favorecendo a ecloso de
greves operrias, contriburam decisivamente nesse sentido.
Ainda que de forma precria, houve participao popular na chamada Revoluo
de 30 e nas agitaes e nos movimentos polticos que se seguiram. O povo passou de
observador dos processos e das lutas sociais para ocupar espao, ainda que inicialmente
tenha sido como coadjuvante.
Entre 1937 e 1945, um relevante ganho para a sociedade brasileira ocorreu no
mbito dos direitos sociais, especialmente do trabalhador. Situ