o estado de alma É uma paisagem paùlismo

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1 UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ TODO O ESTADO DE ALMA É UMA PAISAGEM Paùlismo, Interseccionismo e Lúcio Cardoso CURITIBA 2013

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Page 1: O ESTADO DE ALMA É UMA PAISAGEM Paùlismo

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ

TODO O ESTADO DE ALMA É UMA PAISAGEM

Paùlismo, Interseccionismo e Lúcio Cardoso

CURITIBA

2013

Page 2: O ESTADO DE ALMA É UMA PAISAGEM Paùlismo

2

REGINA SOUZA

TODO O ESTADO DE ALMA É UMA PAISAGEM

Paùlismo, Interseccionismo e Lúcio Cardoso

Monografia apresentada à disciplina de

Orientação Monográfica em Estudos

Literários II, do Curso de Letras da

Universidade Federal do Paraná, como

requisito parcial para a obtenção do título de

Bacharel em Letras com habilitação em

Português e ênfase em Estudos Literários.

Orientador: Profa. Dra. Patrícia da Silva

Cardoso

CURITIBA

2012

Page 3: O ESTADO DE ALMA É UMA PAISAGEM Paùlismo

3

AGRADECIMENTOS

Aos pais, Izoleide e Osvaldo, que sempre incentivaram meus estudos.

Em especial à minha mãe, responsável pela minha primeira declamação de

poesia (Armas, de Fagundes Varela, aos seis anos de idade), que de tanto me

ouvir falar em ―Lúcio Pessoa‖ acabou incorporando a leitura da poesia em seus

dias e que me deu acalento e amor em todos os momentos de dificuldade. Ao

meu irmão, Anderson, e à prima Franciele, por sempre acreditarem em mim.

À orientadora Patrícia, tão atenciosa e receptiva, fonte de inspiração e

detentora de toda a minha admiração, que mesmo me intimidando com tanto

conhecimento, aguçou meu instinto interpretativo e me fez mergulhar no mundo

pessoano sem medo, além de me receber em sua casa de ares poéticos.

Ao Professor Luis Bueno, meu pai acadêmico, que soube ―puxar minha

orelha‖ quando necessário e me mostrou que a dificuldade só existe nos olhos

de quem a vê (além de ser o grande responsável pela minha paixão por Lúcio

Cardoso).

À Professora Milena Martins, tão doce e tão verdadeira, companheira na

paixão por Carlos Drummond de Andrade, agradeço pelo apoio, pelas

conversas, pelas ótimas aulas, pela inspiração e por me presentear com livros

do Fernando Pessoa.

Aos Professores Antonio Nery (pelo incentivo e pelos conselhos

acadêmicos), Caetano Galindo (por me fazer gostar de Linguística), Sandra

Stroparo (por me mostrar que é preciso ter disciplina e amor pela arte), Paulo

Soethe (tão querido e responsável pelo meu primeiro artigo acadêmico),

Bernardo Brandão (amigão e fã de hard rock) e Waltencir Oliveira (por me fazer

amar ainda mais a poesia e por me acompanhar, depois da aula, até o ponto

de ônibus).

A Ésio Macedo Ribeiro, meu guru acadêmico, por ser tão amável,

atencioso, receptivo e amigo. Agradeço por você ter estudado a poesia do

nosso querido Lúcio e por trabalhar exaustivamente na divulgação de sua obra.

Seu trabalho foi fundamental para a realização dessa pesquisa. Seu incentivo e

amizade fizeram com que eu acreditasse em mim.

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4

A Rafael Cardoso, sangue do Lúcio, amigo e conselheiro, por quem

nutro uma admiração indescritível.

Às amigas/irmãs Elisa Carolina Pescador e Giselle Pupo, meus

heterônimos de carne e osso, extensões da minha alma, intersecções de

minhas paisagens exterior e interior; sem vocês, nada seria possível. À Ingrid

Richter, por ser tudo o que a palavra ―amigo‖ abarca.

À amiga Vanessa Hey, companheira de tantos poemas vividos,

simplesmente por ser quem é. À Ana Carolina Torquato, por iluminar tudo, pelo

sorriso, pelo incentivo, pela música, por se tornar essencial em minha vida. À

Amiga Érica Ignácio, por ir comigo até o Rio de Janeiro comemorar o

centenário do Lúcio, por estar comigo na alegria e na tristeza acadêmica,

sempre parceira, sempre fiel. À Jaqueline Silva e Juliana da Silva, que

acompanharam esse final de graduação e consolaram como apenas bons

amigos seriam capazes de fazer.

A Jeferson Ramos, amigo de toda a vida, por dividir o amor por

Fernando Pessoa e por me inspirar de diversas maneiras. A Renato Rodrigues,

por me mostrar que sou mais capaz do que eu considerava ser.

A todos os amigos que acompanharam minha trajetória acadêmica, em

especial: Luciane Alves, Enaiê Azambuja, Eduardo Soczeki, Ana Elisa

Germano, Daniel Silva, Angélica Nery, Adriano Hoffman, Sany Omura, Raphael

Gorny, as meninas do Lady Be, os meninos do Pallets, Neto, Willian Marques e

Rafael Albanski.

E, claro, a Fernando Pessoa e Lúcio Cardoso, simplesmente por

dividirem sua paisagem interior com o mundo.

Page 5: O ESTADO DE ALMA É UMA PAISAGEM Paùlismo

5

RESUMO

A presente pesquisa tem por objetivo estabelecer um diálogo entre a poesia

interseccionista e paùlica de Fernando Pessoa e a poesia de Lúcio Cardoso.

Será analisada a maneira como cada poeta trabalha temas e formalidades

estéticas em comum, colocando a poesia cardosiana em debate, bem como

aspectos da obra de Fernando Pessoa que foram ofuscados pela construção

heteronímica. A partir da premissa de que ―todo estado de alma é uma

paisagem‖, será discutida a ocorrência da paisagem como representação de

um estado de alma nas obras poéticas de Lúcio e Pessoa.

PALAVRAS-CHAVE: Fernando Pessoa; Lúcio Cardoso; Interseccionismo;

Poesia portuguesa; Poesia brasileira; Literatura comparada.

ABSTRACT

This research aims to establish a dialogue between the ―interseccionist‖ and

―paùlica‖ poetry of Fernando Pessoa and the poetry of Lúcio Cardoso. It will be

analyzed how both authors work on themes and aesthetic procedures in

common. Cardoso‘s poetry will also be debated, as well as aspects of Fernando

Pessoas‘s work that were overshadowed by the heteronymic construction. It will

be discussed the occurrence of landscape as a state of mind representation in

the poetic works of Lúcio and Pessoa on the premise that ―all state of mind is a

landscape‖.

KEY WORDS: Fernando Pessoa; Lúcio Cardoso; Interseccionism; Portuguese

poetry; Brazilian poetry; Comparative literature.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.....................................................................................................7

CAPÍTULO I: Paùlismo, Interseccionismo e o Modernismo português......11

CAPÍTULO II: Todo estado de alma é uma paisagem...................................34

CAPÍTULO III: Paùlismo, Interseccionismo e Lúcio Cardoso......................44

CONCLUSÃO....................................................................................................61

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.................................................................63

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INTRODUÇÃO

Fernando Pessoa (1888-1935) dispensa apresentações. Sua obra

mudou para sempre a literatura do século XX, sobretudo com a construção

heteronímica que, ainda hoje, é tema das mais diversas discussões literárias e

existenciais. Contudo, a ênfase direcionada a essa parte de sua obra, muitas

vezes, acaba por reduzir outros aspectos de sua literatura, como seus projetos

paùlista e interseccionista, que em geral são considerados infrutíferos pela

crítica. Um dos objetivos desta pesquisa é mostrar que tanto o Paùlismo quanto

o Interseccionismo deixaram marcas relevantes na obra pessoana, sendo

possível encontrar ressonâncias dessas manifestações poéticas, não apenas

em outros poemas de Fernando Pessoa, mas, inclusive, em poetas de outras

tradições literárias, como Lúcio Cardoso. Ainda que seja indiscutível a posição

do poema ―Impressões do Crepúsculo‖ como genuinamente paùlista, e ―Chuva

Oblíqua‖ como legitimamente interseccionista, não se pode negar que a

proposta de uma poesia que exprima a relação entre subjetivo/objetivo e

interior/exterior esteja presente em grande parte da obra pessoana.

Lúcio Cardoso (1912-1968), nascido em Curvelo, Minas Gerais, produziu

uma obra relevante não apenas na literatura, mas no teatro, no cinema e nas

artes plásticas. Reconhecido, sobretudo, por sua ficção (sendo Crônica da casa

assassinada seu romance de maior repercussão crítica), seus poemas

publicados nos anos 1940 não passaram despercebidos por críticos e poetas

da época. Embora não tenha despertado grande aclamação crítica, sua poesia

foi apreciada por poetas como Carlos Drummond de Andrade, Vinícius de

Morais e Augusto Frederico Schmidt. Lúcio publicou em vida dois livros de

poesia: Poesias (1941) e Novas Poesias (1944). Em 1982, foi publicado

Poemas Inéditos, com edição organizada por Octávio de Faria. Contudo, a obra

cardosiana (mesmo a obra ficcional) passou por um período de limbo, e sua

poesia permaneceu por muito tempo de difícil acesso, já que não recebeu

reedições. No entanto, em 2011, Ésio Macedo Ribeiro organizou a edição

crítica da Poesia Completa de Lúcio, recuperando, além das poesias

publicadas, outros poemas que permaneciam inéditos.

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8

A ideia de trabalhar com esses dois poetas surgiu com a leitura da nota

preliminar de Cancioneiro, na qual Fernando Pessoa afirma que ―todo estado

de alma é uma paisagem‖. Uma vez que a poesia cardosiana trata,

essencialmente, da manifestação de um estado de alma através da paisagem,

considerei relevante verificar como essa temática é trabalhada por cada um

dos poetas, estabelecendo um diálogo entre suas obras poéticas

(considerando, para tanto, apenas a poesia ortónima de Fernando Pessoa). É

fato que Lúcio Cardoso era um grande admirador de Fernando Pessoa, tendo

contribuído com o texto ―A voz de um profeta‖, a respeito do poeta português,

na publicação de Três poetas brasileiros apaixonados por Fernando Pessoa:

Cecília Meireles, Murilo Mendes e Lúcio Cardoso, como informa Ésio Macedo

Ribeiro.

De todo modo, o objetivo dessa pesquisa não é o de encontrar

semelhanças entre os dois poetas, mas verificar como cada um aborda temas

e formalidades estéticas em comum, colocando a poesia cardosiana em

debate, assim como aspectos da obra de Fernando Pessoa que foram

ofuscados pela construção heteronímica.

No primeiro capítulo, a preocupação é situar o Paùlismo e o

Interseccionismo no contexto do Modernismo português, analisando a proposta

poética de Fernando Pessoa para a elaboração de cada ―ismo‖ em questão,

valendo-se, primordialmente, dos textos extraliterários do próprio poeta. Serão

explorados os elementos formais para a construção dos poemas ―Impressões

do Crepúsculo‖ e ―Chuva Oblíqua‖, baseando-se, sobretudo, nos estudos de

Caio Gagliardi. Ademais, será discutida a recepção crítica dessas duas

manifestações literárias, revendo definições a elas aplicadas, na tentativa de

afastar a ideia de evolução na obra pessoana. Tratarei, ainda, da possível

―recusa‖ de Fernando Pessoa ao Interseccionismo. Para tanto, priorizo os

textos do próprio Pessoa, dialogando com textos críticos de Maria Aliete

Galhoz, Caio Gagliardi, George Rudolf Lind, Óscar Lopes, José Augusto

Seabra, Paula Cristina Lopes, entre outros.

O segundo capítulo tem como foco principal a discussão da nota

preliminar atribuída ao projeto poético Cancioneiro, na qual Fernando Pessoa

defende a ideia de percepção simultânea de uma paisagem interior e exterior.

Page 9: O ESTADO DE ALMA É UMA PAISAGEM Paùlismo

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Para essa discussão, recorro aos artigos de Michel Collot e Carmem Lúcia

Negreiros de Figueiredo, os quais tratam da importância da paisagem na

poesia. A partir da concepção da representação de um estado de alma através

da paisagem, se estabelecerá um diálogo com a poética de Lúcio Cardoso,

analisando como o poeta mineiro desenvolve essa temática.

No terceiro e último capítulo, será abordada a presença da poesia

pessoana em Lúcio Cardoso, já percebida pelos críticos Mario Carelli e Ésio

Macedo Ribeiro. Contudo, serão apontadas as distinções no que diz respeito

ao fazer poético dos dois poetas, para então se estabelecer uma interação

entre suas poéticas. Será recuperada a teorização poética sugerida por

Fernando Pessoa no artigo ―A nova poesia portuguesa‖, bem como os

elementos formais abordados por Caio Gagliardi a respeito do Paùlismo e do

Interseccionismo, com intuito de apontar as ressonâncias desses textos na

poética cardosiana. Além disso, procuro verificar as ocorrências paùlicas no

poema ―Hora Absurda‖, de Fernando Pessoa, e nos poemas ―[Para esta Água

Concorro, com Este Branco]‖, ―Chuva‖, ―Caminho Inútil‖ e ―A Casa do Solteiro‖,

de Lúcio Cardoso, sempre atentando para a solução que cada poeta oferece

para os elementos em comum.

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É um dia frio e com intermitências de bruma e de sol: passeio,

e não encontro mais o encanto que sempre encontrei aqui,

tudo me parece vazio e sem significado. Mas a paisagem não é

a mesma, e a estação e os trilhos da estrada de ferro que eu

tanto amo? Bato inutilmente o carvão que cobre a estrada –

não, realmente essas coisas já não têm mais o mesmo gosto.

E sou eu que mudei, não há nenhuma dúvida, e não tenho

mais calor, nem paciência, nem mocidade para inventar dos

lugares o luxo que sempre inventei para poder amá-los. Eles se

esgotam ante os meus olhos impotentes: queira ou não queira,

deles sou estrangeiro para sempre.

Lúcio Cardoso, 1961,

Diário completo

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1. PAÙLISMO, INTERSECCIONISMO E O MODERNISMO PORTUGUÊS

[...] não evoluo, VIAJO. [...] Por isso dei essa

marcha em mim como comparável, não a uma

evolução, mas a uma viagem: não subi de um

andar para outro; segui, em planície, de um para

outro lugar.

Fernando Pessoa,

Carta a Adolfo Casais Monteiro, 20 de

janeiro de 1935

I

De acordo com Osvaldo Silvestre, ―no plano social e ideológico, o

Modernismo é um movimento reactivo face ao devir massificado da sociedade

burguesa e do seu fundamento capitalista‖ (2010, p. 473). Enquanto a

Vanguarda exalta a novidade, partindo de um ponto de vista futurista, o

Modernismo se manifesta contra o comportamento capitalista, em especial no

que se refere à produção artística. Na literatura, especificamente, há a proposta

de uma nova linguagem, sobretudo poética, que abre as possibilidades de

experimentação em busca de uma nova sensação e percepção. Pretende-se

Page 12: O ESTADO DE ALMA É UMA PAISAGEM Paùlismo

12

elevar a poesia a um plano sensorial extremo, despreocupando-se com a

coerência superficial do texto e, dessa maneira, afastando-se de formas pré-

estabelecidas por tradições literárias anteriores.

A proposta modernista, considerando-se aqui a terceira fase do

processo de modernização classificado por Marshall Berman1, surge em um

período histórico conturbado: Primeira Grande Guerra, crise econômica,

ruptura consensual entre política, ética, moral e ciência, secularização e

desestruturação social. Com a fartura de conflito, o indivíduo moderno sofre as

intempéries de seu tempo, perdendo-se e encontrando-se, em ―permanente

desintegração e mudança, de luta e de contradição, de ambiguidade e

angústia‖ (BERMAN, 1982, p. 15), como aponta Berman. A busca pela

identidade (ou não identidade) do ser reflete na arte, resultando, nas palavras

de Silvestre, em ―uma literatura da interrogação, do ensaio e da dúvida, que

recorre preferencialmente a formas de composição aberta ou suspende o

sentido em favor de uma epifania do fragmento e do inconcluso‖ (2010, p. 474).

Nesse sentido, a produção literária em Portugal entre 1912 e 1930, embora não

homogênea nem estritamente moderna, estabelece uma interferência estética

relevante na literatura do século XX.

A publicação da revista Orpheu, em 1915, tornou-se um marco mítico

para o Modernismo português, uma vez que foi convertida em símbolo da

geração modernista portuguesa. Com apenas dois números publicados, o

objetivo primordial do periódico era o de criar e promover uma arte cosmopolita

e desnacionalizada por meio de experiências estéticas. Contudo, a revista

causou furor entre críticos e leitores, despertando o escárnio e a

incompreensão. Mesmo com as tiragens esgotadas nos dois volumes, a falta

de recursos financeiros impediu a realização de outras edições2.

Maria Aliete Dores Galhoz afirma que ―o aparente desarrumo e pressa

das feições do modernismo, em Orpheu, é suficientemente estruturado para

permitir uma aproximada compreensão dos seus valores e uma, também

1 BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar. São Paulo: Schwarcz, 1982.

2 Orpheu 3 chegou a ser elaborado e a ter provas tipográficas, contudo, não circulou por falta

de recursos financeiros. Em 1984 foi publicado pela editora Ática e fac-similado pela Nova

Renascença.

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aproximada, destrinça das sugestões donde parte e donde se modifica‖

(GALHOZ, 1989, p. 35-36). Dessa maneira, embora não admita nenhuma

Vanguarda, ou mesmo o Modernismo, como forma de arte absoluta, Orpheu

apresenta uma variedade estética que ultrapassa o mero rompimento com a

literatura da Renascença portuguesa3; a proposta é a de ―uma arte-todas-as-

artes‖, uma intersecção das artes de todas as partes do mundo, como aponta

Fernando Pessoa em texto que data, aproximadamente, 1915. Assim, a

variação do esteticismo órfico, segundo Galhoz, pode ser encontrada nos

diversos ―ismos‖ literários explorados pelos poetas de Orpheu: Paùlismo,

Interseccionismo, Simultaneísmo, Futurismo, Simbolismo, Decadentismo e

Sensacionismo.

A respeito das diversas manifestações artísticas e literárias contidas em

Orpheu, Fernando Pessoa esclarece:

Os Directores do ORPHEU julgam conveniente, para que se evitem

erros futuros e más interpretações, esclarecer, com respeito à arte e

formas de arte que nessa revista foram praticadas, o seguinte:

(1) O termo «futurista», que designa uma escola literária e artística

possivelmente legítima, mas, em todo o caso, com normas estreitas e

perfeitamente definidas, não é aplicável ao conjunto dos artistas de

ORPHEU, nem, até, a qualquer d'eles individualmente, ressalvado o

caso do pintor Guilherme de Santa Rita, e lamentáveis episódios de

José de Almada-Negreiros.

(2) Os termos «sensacionista» e «interseccionista», que, com maior

razão, se aplicaram aos artistas de ORPHEU, também não têm

cabimento. Sensacionista é só Álvaro de Campos; interseccionista foi

só Fernando Pessoa, e em uma só colaboração — a «Chuva

Oblíqua» em ORPHEU 2.

(3) O termo «modernista», que por vezes também se aplicou aos

artistas de ORPHEU, não lhes pode também ser aplicado, por isso

que não tem significação nenhuma, a não ser para designar —

porque assim se designou — a nova escola pragmatista e exegética

3 A Renascença portuguesa foi um movimento nacionalista, firmado principalmente pela

publicação da revista A Águia, a qual teve contribuições de Fernando Pessoa e Mário de Sá

Carneiro. Insatisfeitos com o movimento, os dois poetas abandonaram-no para fundar Orpheu.

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dos Evangelhos, nascida a dentro da Igreja Católica, e condenada

pelo Papa, por excessivamente tendente a procurar a verdade.

(4) Os artistas de ORPHEU pertencem cada um à escola da sua

individualidade própria, não lhes cabendo portanto, em resumo do

que acima se disse, designação alguma colectiva. As designações

colectivas só pertencem aos sindicatos, aos agrupamentos com uma

ideia só (que é sempre nenhuma) e a outras modalidades do instinto

gregário, vulgar e natural nos cavalos e nos carneiros. (PESSOA,

1993, p. 138)

A preocupação de Pessoa, nesse fragmento, é esclarecer a não

configuração de grupo dos colaboradores de Orpheu, uma vez que a revista se

propõe apenas à exposição de uma multiplicidade de artistas e obras,

afastando de si a intenção de ser o retrato de uma geração. Todavia, Orpheu

tornou-se a representação da nova poesia portuguesa, categorizada

superficialmente como moderna, embora carregue influências de diversas

manifestações literárias.

Uma das influências não modernas que percorre a proposta órfica é o

Simbolismo, que originou os ―ismos‖, inaugurados por Fernando Pessoa,

Paùlismo e Interseccionismo. Esses dois ―ismos‖ interessam, particularmente,

ao estudo desenvolvido na presente pesquisa, pois serão o ponto de encontro

com a poesia de Lúcio Cardoso.

II

O Paùlismo surge dois anos antes da publicação de Orpheu, com o

poema ―Paúis‖ (mais tarde intitulado ―Impressões do Crepúsculo‖), escrito em

1913 e publicado em 1914, na revista A Renascença. Primeiro poema

publicado de Fernando Pessoa, ―Paùis‖ traz uma poética previamente

estruturada, já indicada no artigo ―A nova poesia portuguesa‖, publicado em A

Águia, em 1912, no qual Pessoa propõe uma poética composta por três

elementos: o vago, o subtil e o complexo. Para o ensaísta,

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15

[...] Ideação vaga é coisa que é escusado definir de exaustivamente

explicante que é de per si o mero adjectivo; urge, ainda assim, que se

observe que ideação vaga não implica necessariamente ideação

confusa, ou confusamente expressa [...]. Implica simplesmente uma

ideação que tem o que é vago ou indefinido por constante objecto e

assunto, ainda que nitidamente o exprima ou definidamente o trate;

sendo contudo evidente que quanto menos nitidamente o trate ou

exprima mais classificável de vaga se tornará. [...] (PESSOA, 1980, p.

45)

Assim, o objeto de discussão do eu lírico passa a ser indefinido e vago,

mesmo que expresso de forma nítida e compreensível. Contudo, quanto menos

inteligível for a expressão desse objeto, mais vaga será a ideação do poema.

Pessoa afirma, ainda, que a poesia simbolista francesa é vaga e obscura,

diferentemente da nova poesia portuguesa, que se vê vaga sem ser obscura; o

vago, aqui, é o ponto de encontro com o Simbolismo.

Com relação ao subtil, o poeta explica:

[...] Por ideação subtil entendemos aquela que traduz uma sensação

simples por uma expressão que a torna vivida, minuciosa, detalhada

— mas detalhada não em elementos exteriores, de contornos ou

outros, mas em elementos interiores, sensações — sem contudo lhe

acrescentar elemento que se não encontre na directa sensação

inicial.[...] (PESSOA, 1980, p. 45)

Essa expressão, a qual se refere Pessoa, deve intensificar uma

sensação, mas não prolongá-la, tornando a poesia, paradoxalmente, subjetiva

e objetiva, na qual a ideia é intelectualizada e o sentimento interior detalhado

objetivamente.

Por fim, a ideação complexa é

[...] a que traduz uma impressão ou sensação simples por uma

expressão que a complica acrescentando-lhe um elemento

explicativo, que, extraído dela, lhe dá um novo sentido. A expressão

subtil intensifica, torna mais nítido; a expressão complexa dilata, torna

maior. A ideação subtil envolve ou uma directa intelectualização de

uma ideia ou uma directa emocionalização de uma emoção: daí o

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16

ficarem mais nítidas, a ideia por mais ideia, a emoção por mais

emoção. A ideação complexa supõe sempre ou uma intelectualização

de uma emoção, ou uma emocionalização de uma ideia: é desta

heterogeneidade que a complexidade lhe vem. [...] (PESSOA, 1980,

p. 45)

Diferentemente da ideação subtil, que intensifica uma sensação, a

ideação complexa acrescenta um elemento que complementa e expande essa

sensação. Em vez de intelectualizar uma ideia, o complexo emocionaliza essa

ideia, podendo, ainda, intelectualizar uma emoção.

Com essa teorização poética, Pessoa estabelece as bases da poesia

paúlica, aplicada no já referido poema, transcrito a seguir:

IMPRESSÕES DO CREPÚSCULO (PAÚIS)

Paúis que roçarem ânsias pela minh’alma em ouro...

Dobre longínquo de Outros Sinos... Empalidece o louro

Trigo na cinza do poente... Corre um frio carnal por minh’alma...

Tão sempre a mesma, a Hora!... Balouçar de cimos de palma!...

Silêncio da parte inferior das folhas, Outono delgado

D'um canto de vaga ave... Azul esquecidos em estagnado...

Ó que mudo grito de ânsia põe garras na Hora!...

Que pasmo de mim anseia por outra coisa que o que chora!...

Estendo as mãos para Além, mas no estender delas já vejo

Que não é aquilo que quero aquilo que desejo...

Címbalos de Imperfeição... Ó tão antiguidade

A hora expulsa de si-Tempo!... Onda de recuo que invade

O meu abandonar-me a mim-próprio até desfalecer

E recordar tanto o Eu presente que me sinto esquecer...

Fluido de auréola transparente de Foi, oco de ter-se...

O Mistério sabe-me a eu ser outro... Luar sobre o não conter-se...

A sentinela é hirta, a lança que finca no chão

É mais alta que ela... P'ra que é tudo isto... Dia chão...

Trepadeiras de despropósito lambendo de Hora os Aléns!

Horizontes fechando os olhos ao espaço em que são elos de erro!

Fanfarras de ópios de silêncios futuros!... Longes trens!...

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Portões vistos longe, através das árvores, tão de ferro!...

(PESSOA, 1942)

O poema apresenta versos livres com rimas emparelhadas até o 18º

verso; os últimos quatro versos, com rimas alternadas, abandonam a forma

fixa. A partir dos três elementos pontuados por Pessoa (o vago, o subtil e o

complexo), Caio Gagliardi reconhece, em ―Paúis‖, as seguintes manifestações:

1) termos e expressões sofisticados ou pouco usados, como ―pauis‖

(plural de paul, pântano); ―Balouçar de cimos de palma!‖ (balançar do

cume da palmeira); 2) paradoxos e oxímoros, tais como ―mudo grito‖;

―Que não é aquilo que quero aquilo que desejo...‖; ―Onda de recuo

que invade‖; ―E recordar tanto o Eu presente que me sinto

esquecer!...‖; 3) uso de maiúsculas alegorizantes, que essencializam

os termos (―Outros Sinos‖; ―Azul‖; ―Hora‖; ―Imperfeição‖; ―Tempo‖;

―Eu‖; ―Mistério‖; ―Aléns‖); 4) associação entre termos concretos e

abstratos (―Corre um frio carnal por minh‘alma‖; ―Outono delgado‖; ―...

põe garras na Hora‖; ―Címbalos de Imperfeição‖; ―Trepadeiras de

despropósito‖; ―Fanfarra de ópios de silêncios futuros!...‖); 5) excesso

de reticências e exclamações nos fins e meios dos versos, entre

outros. (2010, p. 609)

Pode-se acrescentar, aos apontamentos de Gagliardi, a recorrência de

alguns termos durante o poema (―ânsias‖/‖ânsia‖; ―Hora‖; ―Silêncio‖/‖silêncios‖;

―Além‖/‖Aléns‖; ―chão‖; ―Longes‖/‖longe‖), bem como a referência a elementos

da natureza ou de uma paisagem externa (―Paúis‖; ―trigo‖; ―poente‖; ―cimos da

palma‖; ―folhas‖; ―ave‖; ―luar‖, entre outros). Para Paula Cristina Costa, Pessoa

tenta ―conciliar a ‗materialização do espírito‘ com a ‗espiritualização da

natureza‘, numa harmonia de contrários procurada entre uma poesia

simultaneamente objectiva e subjectiva, uma poesia da alma e da natureza‖

(2010, p. 610).

Caio Gagliardi verifica que ―nesse momento da poesia de Pessoa, esse

é o sentido com que a arte confunde-se com o sonho – em que não há

exactidões, causalidades, valores morais ou clareza de propósito. Numa

expressão, o mundo exterior é fragmentado e metamorfoseado em onírico‖

(2010, p. 609). Em um ambiente irreal e abstrato, o eu lírico se revela taciturno

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e enigmático, em conflito consigo mesmo, com seus desejos, com seu presente

e com seu futuro. Conquanto anseie por uma mudança, não é capaz de defini-

la, afastando-se de si mesmo (‖O meu abandonar-me a mim-próprio até

desfalecer‖) e encontrando apenas o tédio existencial. Além de a temática

apresentar ligeira aproximação com o Simbolismo, é possível ainda observar

que a atitude do eu lírico é muito próxima à descrição do indivíduo moderno,

citada por Marshall Berman. Em texto atribuído a Álvaro de Campos, o

heterônimo afirma que ―o paùlismo pertence à corrente cuja primeira

manifestação nítida foi o simbolismo. [...] é um enorme progresso sobre todo o

simbolismo e neo-simbolismo de lá fora.‖ (PESSOA, 1966, p.125). Não é à toa

que George Rudolf Lind considera o Paùlismo e o Interseccionismo como

tentativas de aperfeiçoamento do Simbolismo:

O Simbolismo já não lhe parece o canto de cisne duma época

literária, mas sim um possível começo para qualquer coisa de

diferente, de novo. Com isto fica o caminho livre para as teorias tanto

paulista como interseccionista. Esta atitude também explica a razão

de ambas as doutrinas, apesar da polémica de Pessoa contra uma

arte subjectiva, serem afinal prolongamentos da escola simbolista.

(LIND, 1970, p. 39)

José Gaspar Simões considera a poesia paúlica ―cerebral‖: ―são

princípios filosóficos postos em verso com uma aplicação diligente, com muito

maior aplicação, pelo menos, que espontaneidade ou intuição‖ (1950, p. 190).

Nesse sentido, Richard Zenith afirma que Pessoa

Chegou a definir o paulismo como ‗o culto da artificialidade‘, e

preteriu-o em favor do ‗interseccionismo‘, que pretendia ser mais

construtivista, [...] À semelhança do movimento precursor, o

interseccionismo [...] caracterizava-se por uma ‗subjetividade

excessiva‘ e um ‗exagero da atitude estática’, mas procurava ser mais

incisivo, justapondo, de forma bem nítida, diversos planos ou

dimensões em simultâneo. (2011, p. 105)

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19

Zenith se refere ao Paùlismo como ―precursor‖ do Interseccionismo,

afirmando que Pessoa ―preteriu-o em favor do interseccionismo‖. Óscar Lopes

alega que ―[...] o seu Paulismo evolui em geral para o Interseccionismo ou para

a poesia do Oculto.‖ (LOPES, 1987, p. 492). Paula Cristina Costa escreve, a

respeito do Interseccionismo: ―É ‗um novo género de paulismo‘ – afirmou

Pessoa a Côrtes-Rodrigues, em carta datada de 4-10-1914.‖ (2010, p. 363).

Nessa carta a Armando Cortês-Rodrigues, o que Fernando Pessoa afirma, logo

no início, é o seguinte: ―Verdade seja que descobri um novo género de

paùlismo. Mas preciso completar o feito. Então lho mandarei. Para a mala

seguinte, provavelmente.‖ (PESSOA, 1985, p. 36). Porém, mais adiante e na

mesma carta, planeja publicar ―uma Antologia do Interseccionismo‖, na qual já

consta o poema interseccionista ―Chuva Oblíqua‖ e, no último tópico, ―O

Interseccionismo explicado aos inferiores. (É aquela explicação do

interseccionismo por meio de gráficos que, uma vez, na Brasileira, lhe delineei.

Recorda-se?)‖ (PESSOA, 1985, p. 36). O poeta solicita, inclusive, que o amigo

envie ―o que de mais caracteristicamente interseccionista tem‖, comprovando,

com essas passagens, que tanto o Interseccionismo quanto o Paùlismo já eram

conhecidos e assimilados pelo grupo de poetas citado na carta.

A partir da análise da referida carta, constata-se que esses dois ―ismos‖

existiam simultaneamente e, pelo menos a essa altura, o Interseccionismo não

seria o ―novo género de paùlismo‖, citado no início da correspondência. Dessa

maneira, seria equivocado considerar a proposta interseccionista como uma

evolução do Paùlismo; é mais adequado considerar, aqui, uma fusão de

―ismos‖, não só entre Paùlismo-Interseccionismo, mas entre os diversos

―ismos‖ presentes, por exemplo, em Orpheu. Assim, por mais que ―Paùis‖

apresente uma artificialidade ou, como sugere Simões, seja mais cerebral que

intuitivo, essa não parece ser a razão pela qual Pessoa tenha desenvolvido o

Interseccionismo, isto é, uma manifestação não ocorre em detrimento da outra.

Nas palavras de Rudolf Lind, ―O novo estilo de Pessoa está mais próximo do

Paùlismo do que o que querem admitir críticos como J. G. Simões.‖ (LIND,

1970, p. 61).

Page 20: O ESTADO DE ALMA É UMA PAISAGEM Paùlismo

20

III

Embora já citado por Fernando Pessoa em diversas correspondências

trocadas com Mário de Sá-Carneiro e Côrtes-Rodrigues, o Interseccionismo

estreia com a publicação do poema ―Chuva Oblíqua‖, em 1915, no Orpheu 2.

Maria Aliete Galhoz define a manifestação interseccionista como o

―ajustamento a uma diferente exploração psíquica‖, em que memórias,

experiências ou vivências são chamadas pelo inconsciente, interpenetrando-se

a paisagens exteriores, compondo a intersecção do plano imaginário e do real.

Nas palavras de Pessoa,

Assim nós temos:

a) intersecção duma paisagem com um estado de alma, concebido

como tal.

b) intersecção duma paisagem com um estado de alma que consiste

num sonho.

c) intersecção duma paisagem com outra paisagem (simbólica esta

dum estado de alma — como, por exemplo, «dia de sol» de alegria).

d) intersecção duma paisagem consigo própria, operando nela divisão

o estado de alma de quem a contempla. (PESSOA, 1993, p. 135)

Paula Cristina Lopes aproxima o Interseccionismo pessoano à pintura

futurista italiana, apoiando-se no Manifesto de Gino Severini, publicado em

1913, no qual o autor, segundo a interpretação de Cristina Lopes, sugere uma

―sensação dinâmica‖ por meio de uma ―analogia real‖ e uma ―analogia

aparente‖. Para Óscar Lopes, o ―ismo‖ em questão ―é uma original assimilação

literária da estética plástica cubista‖ (LOPES, 1987, p. 458). Outros críticos,

como Teresa Rita Lopes4, Antonio Tabucchi5 e José Augusto Seabra, também

defendem a vertente cubista em ―Chuva oblíqua‖, sendo que, para Seabra, a

―intersecção das sensações é comparável à interpenetração e sobreposição de

4 Pessoa, Fernando. Melhores poemas. Sel. e apresentação de Teresa Rita Lopes, 10. ed. São

Paulo: Global Editora, 1986.

5 Tabucchi, Antonio. Pessoana Mínima. S/l.: Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1984.

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21

planos na visão dos objetos que o Cubismo tentou realizar em pintura.‖

(SEABRA, 1991, p. 143).

De fato, em manuscrito não datado, Pessoa estabelece graus de

interseccionismo, que incluem a intersecção nas artes plásticas:

Interseccionismo no 1º grau — ou interseccionismo material. —

Intersecção das realizações artísticas. O dos futuristas e dos

cubistas, que interseccionam pintura e literatura, escultura e literatura.

Interseccionismo de 2º grau: o dos processos artísticos.

Interseccionismo de 3º grau: o dos géneros de inspiração.

Interseccionismo de 4º grau: o dos objectos de inspiração.

Os românticos tentaram juntar. Os interseccionistas procuram fundir.

Wagner queria música + pintura + poesia. Nós queremos música x

pintura x poesia. (PESSOA, 1993, p. 134)

Não obstante, considerar o Interseccionismo pessoano apenas como a

aplicação do cubismo e do futurismo na literatura, seria reduzi-lo a mera

transferência conceitual e artística. A esse respeito, George Rudolf Lind

esclarece:

Se nos lembramos de que o que os pintores cubistas pretendiam era

representar simultaneamente as várias superfícies dum objeto, as

visíveis e as encobertas, é-nos fácil descobrir que o Interseccionismo

nada tem a ver com a técnica dos cubistas. O processo da

intersecção de superfícies diversas não pode ter derivado do cubismo

nem pode, legitimamente, ser relacionado com ele. (LIND, 1970, p.

61)

Caio Gagliardi, em sua tese Fernando Pessoa ou Do Interseccionismo,

analisa minuciosamente a possível aplicação do cubismo em ―Chuva Oblíqua‖,

concluindo que, mesmo a poesia dita cubista, classificada pelo poeta

americano Kenneth Rexroth, difere da manifestação interseccionista. Ainda que

explore a concepção de objeto, o Interseccionismo pessoano prioriza a

sensação que se tem desse objeto.

Page 22: O ESTADO DE ALMA É UMA PAISAGEM Paùlismo

22

Em texto não datado, intitulado ―Manifesto‖, Pessoa defende a ideia de

que a sensação é composta por um objeto (que pode ser externo ou interior) e

pela sensação propriamente dita (ou a sensação desse objeto). Assim,

estabelece:

Intersecção do Objecto consigo próprio: cubismo. (Isto é, intersecção

dos vários aspectos do mesmo Objecto uns com os outros).

Intersecção do Objecto com as ideias objectivas que sugere:

Futurismo.

Intersecção do Objecto com a nossa sensação d'ele:

Interseccionismo, propriamente dito; o nosso. (PESSOA, 1993, p.

140)

Com base no ―Interseccionismo, propriamente dito‖ (―o nosso‖), Pessoa

apresenta o poema ―Chuva Oblíqua‖ que, para Galhoz, é sinônimo de

Interseccionismo:

CHUVA OBLÍQUA

I

ATRAVESSA esta paisagem o meu sonho dum porto infinito

E a cor das flores é transparente de as velas de grandes navios

Que largam do cais arrastando nas águas por sombra

Os vultos ao sol daquelas árvores antigas...

O porto que sonho é sombrio e pálido

E esta paisagem é cheia de sol deste lado...

Mas no meu espírito o sol deste dia é porto sombrio

E os navios que saem do porto são estas árvores ao sol...

Liberto em duplo, abandonei-me da paisagem abaixo...

O vulto do cais é a estrada nítida e calma

Que se levanta e se ergue como um muro,

E os navios passam por dentro dos troncos das árvores

Com uma horizontalidade vertical,

Page 23: O ESTADO DE ALMA É UMA PAISAGEM Paùlismo

23

E deixam cair amarras na água pelas folhas uma a uma dentro...

Não sei quem me sonho...

Súbito toda a água do mar do porto é transparente

E vejo no fundo, como uma estampa enorme que lá estivesse desdobrada,

Esta paisagem toda, renque de árvore, estrada a arder em aquele porto,

E a sombra duma nau mais antiga que o porto que passa

Entre o meu sonho do porto e o meu ver esta paisagem

E chega ao pé de mim, e entra por mim dentro,

E passa para o outro lado da minha alma...

II

Ilumina-se a igreja por dentro da chuva deste dia,

E cada vela que se acende é mais chuva a bater na vidraça...

Alegra-me ouvir a chuva porque ela é o templo estar aceso,

E as vidraças da igreja vistas de fora são o som da chuva ouvido por dentro...

O esplendor do altar-mor é o eu não poder quase ver os montes

Através da chuva que é ouro tão solene na toalha do altar...

Soa o canto do coro, latino e vento a sacudir-me a vidraça

E sente-se chiar a água no fato de haver coro...

A missa é um automóvel que passa

Através dos fiéis que se ajoelham em hoje ser um dia triste...

Súbito vento sacode em esplendor maior

A festa da catedral e o ruído da chuva absorve tudo

Até só se ouvir a voz do padre água perder-se ao longe

Com o som de rodas de automóvel...

E apagam-se as luzes da igreja

Na chuva que cessa...

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24

III

A Grande Esfinge do Egito sonha por este papel dentro...

Escrevo – e ela aparece-me através da minha mão transparente

E ao canto do papel erguem-se as pirâmides...

Escrevo – perturbo-me de ver o bico da minha pena

Ser o perfil do rei Quéops...

De repente páro...

Escureceu tudo... Caio por um abismo feito de tempo...

Estou soterrado sob as pirâmides a escrever versos à luz clara deste candeeiro

E todo o Egito me esmaga de alto através dos traços que faço com a pena...

Ouço a Esfinge rir por dentro

O som da minha pena a correr no papel...

Atravessa o eu não poder vê-la uma mão enorme,

Varre tudo para o canto do teto que fica por detrás de mim,

E sobre o papel onde escrevo, entre ele e a pena que escreve

Jaz o cadáver do rei Quéops, olhando-me com olhos muito abertos

E entre os nossos olhares que se cruzam corre o Nilo

E uma alegria de barcos embandeirados erra

Numa diagonal difusa

Entre mim e o que eu penso...

Funerais do rei Quéops em ouro velho e Mim!...

IV

Que pandeiretas o silêncio deste quarto!...

As paredes estão na Andaluzia...

Há danças sensuais no brilho fixo da luz...

De repente todo o espaço pára...,

Pára, escorrega, desembrulha-se...,

E num canto do teto, muito mais longe do que ele está,

Abrem mãos brancas janelas secretas

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25

E há ramos de violetas caindo

De haver uma noite de Primavera lá fora

Sobre o eu estar de olhos fechados...

V

Lá fora vai um redemoinho de sol os cavalos do carroussel...

Árvores, pedras, montes, bailam parados dentro de mim...

Noite absoluta na feira iluminada, luar no dia de sol lá fora,

E as luzes todas da feira fazem ruídos dos muros do quintal...

Ranchos de raparigas de bilha à cabeça

Que passam lá fora, cheias de estar sob o sol,

Cruzam-se com grandes grupos peganhentos de gente que anda na feira,

Gente toda misturada com as luzes das barracas, com a noite e com o luar,

E os dois grupos encontram-se e penetram-se

Até formarem só um que é os dois...

A feira e as luzes das feiras e a gente que anda na feira,

E a noite que pega na feira e a levanta no ar,

Andam por cima das copas das árvores cheias de sol,

Andam visivelmente por baixo dos penedos que luzem ao sol,

Aparecem do outro lado das bilhas que as raparigas levam à cabeça,

E toda esta paisagem de primavera é a lua sobre a feira,

E toda a feira com ruídos e luzes é o chão deste dia de sol...

De repente alguém sacode esta hora dupla como numa peneira

E, misturado, o pó das duas realidades cai

Sobre as minhas mãos cheias de desenhos de portos

Com grandes naus que se vão e não pensam em voltar...

Pó de oiro branco e negro sobre os meus dedos...

As minhas mãos são os passos daquela rapariga que abandona a feira,

Sozinha e contente como o dia de hoje...

VI

O maestro sacode a batuta,

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26

E lânguida e triste a música rompe...

Lembra-me a minha infância, aquele dia

Em que eu brincava ao pé de um muro de quintal

Atirando-lhe com uma bola que tinha dum lado

O deslizar dum cão verde, e do outro lado

Um cavalo azul a correr com um jockey amarelo...

Prossegue a música, e eis na minha infância

De repente entre mim e o maestro, muro branco,

Vai e vem a bola, ora um cão verde,

Ora um cavalo azul com um jockey amarelo...

Todo o teatro é o meu quintal, a minha infância

Está em todos os lugares, e a bola vem a tocar música,

Uma música triste e vaga que passeia no meu quintal

Vestida de cão tomando-se jockey amarelo...

(Tão rápida gira a bola entre mim e os músicos...)

Atiro-a de encontro à minha infância e ela

Atravessa o teatro todo que está aos meus pés

A brincar com um jockey amarelo e um cão verde

E um cavalo azul que aparece por cima do muro

Do meu quintal... E a música atira com bolas

À minha infância... E o muro do quintal é feito de gestos

De batuta e rotações confusas de cães verdes

E cavalos azuis e jockeys amarelos...

Todo o teatro é um muro branco de música

Por onde um cão verde corre atrás de minha saudade

Da minha infância, cavalo azul com um jockey amarelo...

E dum lado para o outro, da direita para a esquerda,

Donde há arvores e entre os ramos ao pé da copa

Com orquestras a tocar música,

Para onde há filas de bolas na loja onde a comprei

Page 27: O ESTADO DE ALMA É UMA PAISAGEM Paùlismo

27

E o homem da loja sorri entre as memórias da minha infância...

E a música cessa como um muro que desaba,

A bola rola pelo despenhadeiro dos meus sonhos interrompidos,

E do alto dum cavalo azul, o maestro, jockey amarelo tomando-se preto,

Agradece, pousando a batuta em cima da fuga dum muro,

E curva-se, sorrindo, com uma bola branca em cima da cabeça,

Bola branca que lhe desaparece pelas costas abaixo...

(PESSOA, 1965, p. 113-117)

Poema escrito em versos brancos e livres, composto por seis partes que

não mantêm relação direta, mas que conduzem o eu lírico por uma espécie de

transe que perpassa imagens (paisagens exteriores e interiores) e sensações.

A ideia de intersecção de um objeto com a sensação que se tem dele,

defendida por Pessoa, assim como a intersecção de diferentes paisagens da

alma e do mundo exterior, são a principal característica do poema.

Caio Gagliardi atenta para o fato de o termo ―Interseccio-nismo‖ indicar

apenas o procedimento de intersecção de planos sensoriais, supondo ser esse

seu único recurso estilístico. No entanto, ―Chuva Oblíqua‖ apresenta uma

diversidade de técnicas de escrita, das quais Gagliardi ressalta:

1) Séries de Oposições Categoriais (―luz/sombra‖; ―dia/noite‖;

―branco/negro‖; ―chuva/sol‖; ―silêncio/som‖; ―em cima/embaixo‖;

―vertical/horizontal‖), estabelecidas não apenas entre termos comuns,

mas entre as seguintes categorias que germinarão nessa poesia:

―eu/outro‖; ―presente/passado‖; ―sonho/pensamento‖;

―consciência/sensação‖; ―dentro/fora‖; ―ser/não-ser‖ e ―vida/morte‖.

(GAGLIARDI, 2010, p. 158)

O conjunto de opostos apresentados no poema, além de ser construído

por meio de adjetivos e substantivos que formam antíteses, também se dá por

oposições de caráter existencial (―eu/‖outro‖; ―ser‖/‖não ser‖; ―vida‖/‖morte‖)

lembrando, novamente, o conflito existencial moderno apontando por Marshall

Berman. Essa ideia de oposição se estenderá ao fenómeno heteronímico, fato

Page 28: O ESTADO DE ALMA É UMA PAISAGEM Paùlismo

28

já evidenciado em estudos de José Augusto Seabra 6e José Gil7. Para

Gagliardi, a antítese sugere a ―coexistência de opostos‖, uma constante da

poesia pessoana.

2) Concretização de substantivos abstratos, que funde paisagens

distintas, apagando as diferenças entre suas naturezas objetiva e

subjetiva. Assim, num mesmo período, o dado subjetivo executa uma

ação no, sobre, por meio de ou para o objetivo, ou vice-versa. É uma

sintaxe da indiferenciação, portanto. Assim temos, no poema I, o

sonho do eu lírico atravessando uma paisagem percebida: ―Atravessa

esta paisagem o meu sonho dum porto infinito.‖; no poema II, os fiéis

se ajoelhando na tristeza no dia: ―Através dos fiéis que se ajoelham

em hoje ser um dia triste‖; no poema III, uma alegria que erra, como

um barco no Nilo, através do eu lírico e seu pensamento

espacializado: ―E uma alegria de barcos embandeirados erra / (...)

Entre mim e o que eu penso...‖; no poema IV, ramos de violetas

caindo, não sobre os olhos fechados do eu lírico, mas sobre a atitude

em si, espacializada pelo artigo definido: ―E há ramos de violetas

caindo / (...) Sobre o eu estar de olhos fechados‖; no poema V, a

noite que, como uma pessoa, pega na feira e a levanta, como se a

feira fosse uma coisa: ―E a noite que pega na feira e a levanta no ar‖;

e no poema VI, a bola sendo atirada contra a infância: ―Atiro-a de

encontro à minha infância (...)‖. (GAGLIARDI, 2010, p. 158-159)

Dessa maneira, o subjetivo e o objetivo fundem-se, engendrando um

terceiro plano que pode ser estabelecido entre os planos do real e do

imaginário. Nesse plano interseccional, o abstrato realiza ações, ou seja,

concretiza-se, evidenciando a plasticidade do poema, uma vez que o poeta

abre a possibilidade de visualização de um objeto subjetivo ou de uma

sensação. A associação de uma paisagem concreta a uma sensação ou objeto

interior pode resultar em uma metáfora ou comparação. Gagliardi verifica que,

em ―Chuva Oblíqua‖, a aproximação do subjetivo e do objetivo acontece por

6 Seabra, José Augusto. Fernando Pessoa ou o Poetodrama. 2. ed. São Paulo: Perspectiva,

1991.

7 GIL, José. Diferença e Negação na Poesia de Fernando Pessoa. Rio de Janeiro: Relume

Dumará, 2000.

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29

meio de uma identificação estabelecida entre ambos (o tema marítimo, por

exemplo), mesmo que, sintaticamente, esses dados permaneçam distintos. A

intenção, por meio da intersecção, é dissipar as diferenças entre o interior e o

exterior.

3) Simultaneísmo, que implica a contigüidade de fenômenos

pertencentes tanto a espaços quanto tempos diferentes. Temos, no

poema I, uma paisagem de árvores ao sol cortada por uma estrada,

enquanto navios partem de um porto; no poema II, um automóvel que

passa enquanto a missa é rezada; no poema III, a Esfinge rindo

enquanto a pena corre pelo papel; no poema IV, um quarto fechado e

em silêncio enquanto é primavera do lado de fora; no poema V, a

feira iluminada de noite enquanto penedos luzem num dia de sol; e no

poema VI, a música que é tocada no teatro enquanto uma bola

colorida é arremessada contra um muro de quintal. Em todos os seis

trechos do poema, o eu lírico estará em ambos os espaços/tempos,

simultaneamente. (GAGLIARDI, 2010, p. 159)

Com a simultaneidade de tempo e espaço, a diferença temporal é

dissipada, uma vez que as paisagens externas e internas são rememoradas e

percebidas ao mesmo tempo pelo eu lírico. Esse apagamento temporal

possibilita a aproximação e intersecção do subjetivo e do objetivo,

suspendendo, assim, o tempo cronológico e o espaço no poema.

4) Dinamização de substantivos estáticos. No poema I, os vultos das

árvores são arrastados pelos navios; no poema II, a missa passa

como um automóvel que circula do lado de fora da igreja; no poema

III, o perfil do rei Quéops oscila com os traços da pena; no poema IV,

há danças sensuais no brilho ―fixo‖ da luz; no poema V, o sol faz

redemoinhos como um carrossel que gira na feira; no poema VI, o

muro do quintal é feito dos gestos da batuta e das rotações da bola.

(GAGLIARDI, 2010, p. 159)

Embora a plasticidade seja evidente no poema, as imagens não

permanecem imóveis; elas movimentam-se por meio do contraste entre

elementos de um par (―árvore‖/‖navio‖; ―automóvel‖/‖igreja‖; ―rei

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Quéops‖/‖traços da pena‖; ―danças sensuais‖/‖brilho fixo‖; ―sol‖/‖feira‖; ―muro do

quintal‖/‖bola‖). Os movimentos de imagens/paisagens permitem a intersecção

de planos.

5) Transparência. Sendo possível entrever por substantivos

concretos, ao mesmo tempo em que se redefine a natureza material

dos objetos do poema, que de coloridos ou turvos tornam-se

transparentes, redireciona-se a ênfase das coisas para o olhar. É o

olhar do eu lírico que, como uma diagonal, uma reta oblíqua, pode

atravessar as coisas. [...] Esse atravessar é o movimento fundamental

do poema; movimento que, por ser praticado pelo olhar, só pode ser

alcançado por uma ponte que é a transparência. Assim, no poema I,

lemos ―E a cor das flores é transparente de as velas de grandes

navios‖, ou ―Súbito toda a água do mar do porto é transparente‖; no

poema II, ―E cada vela que se acende é mais chuva a bater na

vidraça... // (...) E as vidraças da igreja vistas de fora são o som da

chuva ouvido por dentro...‖; no poema III, ―A Grande Esfinge do Egito

sonha por este papel dentro... / Escrevo – e ela aparece-me através

da minha mão transparente‖; no poema IV, ―E num canto do teto (...) /

Abrem mãos brancas janelas secretas‖; no poema V, ―E os dois

grupos (...) / Aparecem do outro lado das bilhas que as raparigas

levam à cabeça,‖; no poema VI, ―Todo o teatro é um muro branco de

música / Por onde um cão verde corre atrás da minha saudade‖.

(GAGLIARDI, 2010, p. 159)

Segundo Gagliardi, Pessoa se baseia na premissa de que duas retas,

para se cruzarem, implicam em um não paralelismo. Dessa maneira, a chuva

oblíqua passa a ser uma metáfora do olhar que cruza, que atravessa os planos

sensoriais por meio da transparência dos objetos. Em vez de apenas contornar

os objetos (o que, para o teórico, seria o mesmo que ignorá-los), o olhar do eu

lírico os transpassa. Esse atravessar os objetos, que se tornam transparentes,

acaba por conservá-los na memória do eu lírico, permitindo que ele os sinta e

os perceba de forma intensa: ―Entre o meu sonho do porto e o meu ver esta

paisagem / E chega ao pé de mim, e entra por mim dentro, / E passa para o

outro lado da minha alma...‖. Essa percepção intensa remete, também, à

sensação que se tem dos objetos, à qual se refere Pessoa.

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31

Pode-se acrescentar, aos apontamentos de Gagliardi, a percepção não

apenas por meio do olhar, mas por meio do ouvir (―Alegra-me ouvir a chuva

porque ela é o templo estar aceso, / E as vidraças da igreja vistas de fora são o

som da chuva ouvido por dentro...‖; ―A festa da catedral e o ruído da chuva

absorve tudo / Até só se ouvir a voz do padre água perder-se ao longe / Com o

som de rodas de automóvel...‖), sugerindo, como reconhece Seabra, ―a

decomposição espectral das impressões crepusculares numa gama complexa

de imagens, metáforas e símbolos, correspondentes à sinestesia das

sensações‖. (SEABRA, 1991, p. 143).

Em ―Chuva Oblíqua‖, ocorre a fragmentação do ―eu‖ (―Liberto em duplo,

abandonei-me da paisagem abaixo‖) em um tempo também fragmentado; entre

o passado e o presente se estabelece uma experiência atemporal, guiada pela

sobreposição de paisagens e sensações, em uma espécie de sonho real.

Diferentemente da ambientação paúlica, aqui não há apenas a manifestação

do abstrato e do concreto, mas a sua fusão; o terceiro plano, o da intersecção,

apresenta uma realidade transcendental que ultrapassa os limites do real e do

imaginário, remetendo ao sonho. Para Pessoa, ―O sonho é da vista geralmente.

Pouco sabe auditivamente, tactilmente. E o ―quadro‖, a ―paisagem‖ é de sonho,

na sua essência, porque é estática, negadora do continuamente dinâmico que

é o mundo exterior.‖ (PESSOA, 1966, p. 156).

A teoria interseccionista já foi amplamente discutida pela crítica literária,

sendo constantemente considerada como uma mera experimentação que não

vingou. Óscar Lopes afirma: ―[...] as experiências paùlista e interseccionista [...]

visto que, por muito interesse que tenham, obedecem também a um movimento

exploratório que leva a respectiva hipótese básica a um beco sem saída.‖

(LOPES, 1987). Para Adolfo Casais Monteiro (1991), o Interseccionismo trata-

se de uma ―fase inicial‖ de Pessoa, a qual abarca um comprometimento com a

cultura nacional e a necessidade de renovação literária em Portugal. Contudo,

a heteronímia, nesse caso, também pode ser enquadrada nesse objetivo,

assim como grande parte da obra de Pessoa. O conceito de ―evolução‖ na obra

pessoana, como demonstra Caio Gagliardi em sua já referida tese, acaba por

reduzir o Interseccionismo a um plano esteticista que não prosperou. Essa

conclusão, acrescida de outros fatores, é resultado de uma suposta rejeição de

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Pessoa ao Interseccionismo, expressa em texto de 1914 e em uma carta a

Armando Côrtes-Rodrigues, em 19 de janeiro de 1915:

Passou de mim a ambição grosseira de brilhar por brilhar, e essa

outra, grosseiríssima, e de um plebeísmo artístico insuportável, de

querer épater. Não me agarro já à ideia do lançamento do

Interseccionismo com ardor ou entusiasmo algum. É um ponto que

neste momento analiso e reanaliso a sós comigo. Mas, se decidir

lançar essa quase-blague, será já, não a quase-blague que seria,

mas outra coisa. Não publicarei o Manifesto «escandaloso». O outro

— aquele dos gráficos — talvez. A blague só um momento,

passageiramente, a um mórbido período transitório, de grosseria

(felizmente incaracterístico), me pôde agradar ou atrair. Será talvez

útil — penso — lançar essa corrente como corrente, mas não com

fins meramente artísticos, mas, pensando esse acto a fundo, como

uma série de ideias que urge atirar para a publicidade para que

possam agir sobre o psiquismo nacional, que precisa trabalhado e

percorrido em todas as direcções por novas correntes de ideias e

emoções que nos arranquem à nossa estagnação. (1985, p. 43)

Analisando a manifestação a essa recusa, percebe-se que o que o poeta

fundamentalmente rejeita é a exposição do estilo interseccionista, sua

sociabilidade, sua apresentação ao público, o ―desafio à plebe‖. Não há a

recusa às técnicas interseccionistas, mas a sua intenção inicial, que seria a

―mera ambição grosseira de brilhar por brilhar‖. De acordo com Gagliardi, a

renúncia é um ato de superioridade do poeta, que prevê a incompreensão do

público (ou da plebe), mas que também se autocensura por almejar, a

princípio, escandalizar o círculo literário português (atitude geralmente atribuída

ao poeta Almada Negreiros). Entretanto, nesse mesmo desabafo, Pessoa

demonstra a maturidade da intenção quanto à publicidade do Interseccionismo,

interessando-se por ―agir sobre o psiquismo nacional‖ com a finalidade de

libertar-se de uma estagnação nacional e literária. A priori, não há recusa à

estética do Interseccionismo, mas, antes, a dúvida quanto ao seu lançamento.

De todo modo, as duas manifestações contra a divulgação do Interseccionismo

foram escritas por Pessoa em datas anteriores à publicação do primeiro volume

de Orpheu (março de 1915), comprovando que, por mais que o poeta tenha se

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33

questionado quanto à exposição desse estilo, acabou optando por realizá-la,

fato que, por si só, já afasta a ideia de rejeição.

Conquanto outros poetas, como Mário de Sá Carneiro e Almada

Negreiros, tenham flertado com o Paùlismo e o Interseccionismo, Galhoz

lembra que

Em esta face da sua poesia Fernando Pessoa é sòzinho, e intocado

permanece o oculto ascetismo em crise da sua interrogação. As

muitas relações que lhe julgamos descobrir são quase jogo de fáceis

e falsas analogias. Porque, de um aparente não novo tema, e com

aparentes não novas palavras gramaticais, ele tece depurado e grave

mundo visionário onde a carga semântica da linguagem é

necessàriamente alheia ao seu sentido comum. (GALHOZ, 1989, p.

39-40)

Assim, atentando para o alerta de Galhoz quanto às possíveis falsas e

fáceis analogias relacionadas aos dois ―ismos‖ em questão, se estabelecerá

um diálogo dessa poética pessoana com a poesia de Lúcio Cardoso.

Page 34: O ESTADO DE ALMA É UMA PAISAGEM Paùlismo

34

2. TODO ESTADO DE ALMA É UMA PAISAGEM

A base de toda a arte é a sensação.

Fernando Pessoa

Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação

I

Na análise das manifestações paùlista e interseccionista, percebe-se

que toda a teorização poética e a elaboração de elementos formais,

desenvolvidas por Fernando Pessoa, conduzem à proposta de uma poesia que

exprime a relação/fusão entre uma sensação e uma paisagem exterior. O poeta

pretende racionalizar o que se experiencia por meio dos sentidos, uma vez que

―a única realidade em arte é a consciência da sensação‖ (PESSOA, 1966, p.

137). Em uma nota preliminar, atribuída ao projeto poético Cancioneiro, Pessoa

explicita sua percepção da paisagem, relacionando-a ao estado de alma:

1. Em todo o momento de atividade mental acontece em nós um

duplo fenômeno de percepção: ao mesmo tempo que temos

consciência dum estado de alma, temos diante de nós,

impressionando-nos os sentidos que estão virados para o exterior,

Page 35: O ESTADO DE ALMA É UMA PAISAGEM Paùlismo

35

uma paisagem qualquer, entendendo por paisagem, para

conveniência de frases, tudo o que forma o mundo exterior num

determinado momento da nossa percepção.

2. Todo o estado de alma é uma paisagem. Isto é, todo o estado de

alma é não só representável por uma paisagem, mas

verdadeiramente uma paisagem. Há em nós um espaço interior onde

a matéria da nossa vida física se agita. Assim uma tristeza é um lago

morto dentro de nós, uma alegria um dia de sol no nosso espírito. E

— mesmo que se não queira admitir que todo o estado de alma é

uma paisagem — pode ao menos admitir-se que todo o estado de

alma se pode representar por uma paisagem. Se eu disser ―Há sol

nos meus pensamentos‖, ninguém compreenderá que os meus

pensamentos são tristes.

3. Assim, tendo nós, ao mesmo tempo, consciência do exterior e do

nosso espírito, e sendo o nosso espírito uma paisagem, temos ao

mesmo tempo consciência de duas paisagens. Ora, essas paisagens

fundem-se, interpenetram-se, de modo que o nosso estado de alma,

seja ele qual for, sofre um pouco da paisagem que estamos vendo —

num dia de sol uma alma triste não pode estar tão triste como num

dia de chuva — e, também, a paisagem exterior sofre do nosso

estado de alma — é de todos os tempos dizer-se, sobretudo em

verso, coisas como que ―na ausência da amada o sol não brilha‖, e

outras coisas assim. De maneira que a arte que queira representar

bem a realidade terá de a dar através duma representação

simultânea da paisagem interior e da paisagem exterior. Resulta que

terá de tentar dar uma intersecção de duas paisagens. Tem de ser

duas paisagens, mas pode ser — não se querendo admitir que um

estado de alma é uma paisagem — que se queira simplesmente

interseccionar um estado de alma (puro e simples sentimento) com a

paisagem exterior. (PESSOA, 1972, p. 101)

Amiel já teria afirmado no Journal Intime, de 31 de outubro de 1852:

―Qualquer paisagem é um estado de alma, e quem ler uma e outra, ficará

maravilhado ao encontrar semelhança em todos os pormenores.‖ (AMIEL,

1957, p. 78). Embora o heterônimo Bernardo Soares tenha rebaixado a frase

de Amiel a ―uma felicidade frouxa de sonhador débil‖ (PESSOA, 1982, p. 36), é

baseado nesse conceito que Pessoa identifica que ―todo estado de alma é uma

paisagem‖.

Page 36: O ESTADO DE ALMA É UMA PAISAGEM Paùlismo

36

Na teoria interseccionista, a fusão das paisagens externa e interna

engendra em um terceiro plano, que pode ser atribuído ao ―espaço interior

onde a matéria da nossa vida física se agita‖, citado por Pessoa. É nesse

plano, o da intersecção, que o eu lírico de ―Chuva Oblíqua‖ é conduzido para

um estado de sonho material, em que já não há distinção entre os elementos

subjetivo e objetivo. O estado de alma é representado por uma paisagem, ou

mesmo, é uma paisagem propriamente dita, a qual interfere e sofre

interferência da paisagem exterior. Dessa forma, Pessoa conclui que a

representação da realidade por meio da arte deve tratar justamente desse

plano de intersecção, no qual o estado de alma e a paisagem exterior são

percebidos simultaneamente.

Michel Collot, em seu artigo Do horizonte da paisagem ao horizonte dos

poetas, observa:

Uma vez que a paisagem está ligada a um ponto de vista

essencialmente subjetivo, ela serve de espelho à afetividade,

refletindo os ‗estados de alma‘. A paisagem não está apenas

habitada, ela é vivida. A busca ou a eleição de um horizonte

privilegiado pode tornar-se, assim, uma forma de busca de si mesmo.

Então, o fora testemunha para dentro. (2010, p. 207)

Posto que a paisagem é estabelecida a partir do ponto de vista de quem

a observa, ela deixa de ser apenas um elemento exterior e associa-se ao

universo particular do seu contemplador. A concepção de paisagem como um

espelho em que se reflete o estado de alma, oferecida por Collot, dialoga com

a teoria pessoana de intersecção entre paisagem interior e exterior, de maneira

que, ao associar uma determinada imagem exterior a uma sensação, inicia-se

―uma forma de busca por si mesmo‖, convocando imagens e sensações do

passado que acabam se incorporando à paisagem do presente. Assim, além da

sensação, a imaginação (que compõe o sonho), a lembrança e a memória

constituem a paisagem interna. No artigo Paisagem em três lições, Carmem

Lúcia Negreiros de Figueiredo afirma que

Page 37: O ESTADO DE ALMA É UMA PAISAGEM Paùlismo

37

a paisagem só passa a ser, a existir, a partir da reunião de imagens

da superfície das coisas captadas pelo olhar que, a princípio, recolhe

sensações e impressões. Caberá à memória fixar as impressões,

conferindo-lhes um significado e existência. (2010, p. 44)

As impressões e sensações, apreendidas a partir de uma paisagem

externa e fixadas pela memória, uma vez assimiladas e atribuídas de

significado, passarão a interagir com os elementos da paisagem interna. Esse

fenómeno pode ser identificado em ―Chuva Oblíqua‖, pois, a todo o momento, o

eu lírico associa sensações, sonhos e memórias à paisagem que contempla,

de modo que, interseccionados, esses elementos (subjetivos e exteriores)

convertem-se em uma nova realidade paradoxal de sonho.

A paisagem como representação do estado de alma é fundamental na

obra de Lúcio Cardoso, estando presente em todas as linguagens artísticas

praticadas pelo autor. Por conseguinte, será analisada e discutida a maneira

como Lúcio explora essa temática em sua obra poética, estabelecendo-se uma

conferência com a percepção pessoana da paisagem.

II

A poesia está presente em toda a obra artística de Lúcio Cardoso,

transfigurada de acordo com cada linguagem por ele praticada. Em

consequência dessa versatilidade de representação do ambiente poético, sua

obra poética, propriamente dita, não segue uma única vertente estilística; há

uma multiplicidade de estilos que perpassa os versos cardosianos, tornando-se

dificultoso vincular o poeta a uma determinada escola ou tradição literária.

Ainda que não proponha uma teoria, como o faz Fernando Pessoa, Lúcio

eventualmente discorre sobre seu procedimento poético em seus Diários8,

afirmando que o dom da poesia não se encontra apenas em ―criar poesia‖, mas

8 Diário I foi publicado por Lúcio Cardoso em 1960. Diário completo foi publicado

postumamente, em 1970. Em 2012, Ésio Macedo Ribeiro organizou a edição dos Diários, que

além dos textos publicados anteriormente, vem acrescida de anotações que permaneciam

desconhecidas entre os originais do autor, depositados na Fundação Casa de Rui Barbosa.

Page 38: O ESTADO DE ALMA É UMA PAISAGEM Paùlismo

38

em ―surpreendê-la simplesmente nas coisas, isolando-a e respirando seu hálito

de vida.‖ (CARDOSO, 1970, p. 23).

Na introdução da edição crítica da Poesia Completa de Lúcio Cardoso,

Ésio Macedo Ribeiro esclarece:

[...] Note-se que, de propósito, não me referi à ―obra poética‖ – e sim,

e apenas à ―obra‖ pelo simples motivo de estar convencido de que o

mundo onde se trava a ―guerra dentro do beco‖ de Lúcio não é em

nada diferente se expressa nessa (verso) ou naquela (prosa)

linguagem. (CARDOSO, 2011, p. 45).

Dessa maneira, tanto a prosa quanto a poesia (e demais linguagens

artísticas) de Lúcio Cardoso apresentam elementos em comum, destacando-se

a manifestação do sombrio, da angústia e da culpa.

A construção da paisagem é um elemento marcante na obra cardosiana.

Em sua obra ficcional (para citar a ocorrência da paisagem em uma de suas

atividades artísticas) observa-se uma plasticidade imagética na descrição da

paisagem, que se relaciona diretamente com o conflito vivido por seus

personagens: ―Olhando então as imagens que pareciam submersas numa

pálida névoa de ouro, Aurélia sentiu-se bruscamente desamparada, atônita,

sem saber ao certo o que tinha vindo fazer ali.‖ (CARDOSO, 2000, p. 76). A

esse respeito, Mario Carelli observa:

A paisagem é sempre percebida em relação íntima com o estado de

alma do personagem. A paisagem, mais do que para induzir

sentimentos ou fixar um cenário, serve para exprimir momentos

privilegiados, sublinhar cenas dramáticas, dar uma dimensão cósmica

a acontecimentos eminentemente subjetivos. Lúcio já tentara explicar

a "incorporação" da paisagem impregnada de angústia: "É que talvez

não vejo nunca as paisagens como quadros inertes, antes participo

delas com violência, sentido que sobe de toda aquela solidão uma

voz sufocada e estranha, que corresponde em mim a outra voz

também confusa e cheia de gemidos." (CARELLI, 1988, p. 82).

Para Carelli, Lúcio propõe um projeto que, por meio de estéticas

distintas, pretende exprimir o mundo interior em uma ―constante fome de

Page 39: O ESTADO DE ALMA É UMA PAISAGEM Paùlismo

39

paisagens‖. Dessa forma, a poesia cardosiana embarca nessa plasticidade

imagética contida em sua prosa, tendo a imagem como elemento

preponderante na manifestação de um estado de alma. Longe de ser apenas

uma unidade complementar no poema, a paisagem relaciona-se com o

sentimento do eu lírico, reflete seu estado de alma e inicia a ―forma de busca

por si mesmo‖, não apenas habitando a paisagem, mas vivendo-a, como

aponta Michel Collot.

Embora, na poética de Lúcio, a paisagem exterior não seja propriamente

interseccionada a uma sensação, a relação que estabelece com o ―mundo

interior‖ apresenta ressonâncias da percepção pessoana da paisagem. A

consciência simultânea de uma paisagem interior e exterior, sugerida por

Pessoa, está presente na poética cardosiana, ainda que essas paisagens se

relacionem de forma distinta ao que propõe o poeta português: ―Sentir o mundo

exterior sufocado / ao jugo poderoso desta música interior‖ (CARDOSO, 2011,

p. 221). A todo o momento Lúcio transforma os sentimentos em paisagens,

relacionando estados de alma e memórias a elementos da natureza, como se

verifica nos seguintes versos de ―Fragmento de um Poema de Natal‖:

[...]

Ó dias passados, dias de minha vida,

sois o jardim adormecido sob a chuva triste de inverno,

sois a cantilena permanente desta alma fascinada

como a mariposa que dança na primavera noturna...

Manhãs de límpido terror, permaneceis como um arco

lançado no vasto e tenebroso oceano que atravesso.

Ilhas na minha angústia solitária,

sois a perpétua revelação. Mesmo que novos dias se levantem,

mesmo que ante mim se desenrolem outras paisagens,

é a face desolada desta infância que estará presente,

como o remorso no pensamento dos agonizantes.

[...]

(CARDOSO, 2011, p. 208)

Page 40: O ESTADO DE ALMA É UMA PAISAGEM Paùlismo

40

Se o passado do eu lírico é ―o jardim adormecido sob a chuva triste de

inverno‖, infere-se que esse passado está inerte em um presente de

melancolia; se o eu lírico atravessa o ―vasto e tenebroso oceano‖, depreende-

se que ele passa por um momento de extrema angústia. A paisagem, além de

servir como representação de uma angústia existencial sofrida pelo eu lírico, é

influenciada por seu estado de alma, uma vez que mesmo que outras

paisagens venham a surgir, o passado (a infância) ainda estará presente em

sua memória, despertando o sentimento de tristeza.

No poema ―A imagem da planície‖, destaca-se a maneira como se

articula o subjetivo e o objetivo. Ainda que não exista, explicitamente, uma

paisagem externa contemplada pelo eu lírico, há a evocação de imagens

suscitadas a partir da sensação experimentada por ele. Todavia, não se pode

descartar completamente a hipótese de que o eu lírico contempla uma

paisagem que está, de fato, diante de seus olhos e na qual se encontram

―Folhas mortas que não voam, / pássaros imóveis que não cantam, / águas

sombrias que não correm.‖. Assim, o estado de alma do eu lírico interfere na

paisagem por ele contemplada. Os elementos da paisagem externa servem, a

priori, como metáfora de uma sensação, em que o subjetivo e o objetivo se

fazem presentes e estabelecem relação comparativa entre si. Segue a

transcrição do poema:

A IMAGEM DA PLANÍCIE

Tudo tão calmo,

a vida dormindo

como água que tombasse sem murmúrio

na planície do meu pensamento.

Folhas mortas que não voam,

pássaros imóveis que não cantam,

águas sombrias que não correm.

...E teu corpo como um lírio sobre a terra,

e a terra muda impregnada de perfume.

Teus olhos grandes como flores noturnas,

Page 41: O ESTADO DE ALMA É UMA PAISAGEM Paùlismo

41

flores que se a abrem na doçura do silêncio,

e minha sombra como uma nuvem perdida

debruçada sobre teus cabelos gelados

que – ai – flutuam eternamente na água da planície.

(CARDOSO, 2011, p. 212)

É possível distinguir dois momentos entre as duas estrofes do poema,

sendo que a primeira estrofe se ocupa em construir uma paisagem ao mesmo

tempo calma e melancólica, na qual o eu lírico se encontra solitário. Nesse

ambiente de aparente calmaria, o eu lírico discorre sobre uma sensação de

extrema quietude e melancolia, construindo, por meio da relação entre

elementos subjetivos e elementos da natureza, uma paisagem onírica e densa.

Como elementos subjetivos, pontuam-se ―a vida dormindo‖ e a ―planície do

pensamento‖. Os elementos objetivos podem ser: ―água‖ / ―águas sombrias‖;

―Folhas mortas‖; ―pássaros imóveis‖.

Na segunda estrofe, embora o ambiente permaneça calmo e

melancólico, há a presença de outro alguém além do eu lírico (―teu corpo‖;

―teus olhos‖; ―teus cabelos‖), concebendo-se, assim, uma paisagem lírica, que

faz alusão amorosa ao objeto contemplado pelo eu lírico, utilizando-se ainda de

elementos da natureza (―lírio‖; ―terra‖; ―flores‖; ―nuvem‖; ―água da planície‖).

No poema ―Ocaso‖, verifica-se que a paisagem interfere no estado de

alma do eu lírico, além de remetê-lo à lembrança da infância:

OCASO

Tarde mansa. A infância que volta.

Recordação dos anjos cor-de-rosa,

com estrelas na testa

e brancos pés descalços.

O sol que morre

na boca das flores das encostas.

A terra, como um corpo de mulher

Page 42: O ESTADO DE ALMA É UMA PAISAGEM Paùlismo

42

amoroso e quente,

os arados dormindo, a faina morta

- poeta, a hora é de repouso,

cerrai os vossos lábios descuidados.

As águas puras nos remorsos

e as rosas cor-de-ouro

entrelaçadas nas cercas dos caminhos.

Borboletas, como pétalas

Pousadas no dorso das folhas desmaiadas.

- Poeta, a hora é de repouso,

o sangue amadurece os frutos nas estradas.

Tudo o convida

na tarde que morre sobre os campos perfumados.

Outras plagas o chamam... vai partir,

rosas amarelas nas estradas,

sulcos fecundando a terra escura,

adeus! Adeus!

(CARDOSO, 2011, p. 217)

A ―tarde mansa‖ evoca imagens da infância, de ―anjos cor-de-rosa‖,

trazendo a memória dos elementos de uma paisagem já vista, remetendo à

ideia, defendida por Carmem Lúcia Negreiros de Figueiredo, de que a memória

fixa impressões e sensações de uma paisagem. A descrição de uma paisagem

calma sob o pôr do sol convida o poeta a repousar. ―As águas puras nos

remorsos‖ relaciona um elemento da paisagem contemplada pelo poeta com

uma sensação (o remorso) por ele vivida. Tanto a paisagem presente quanto

outras paisagens (―Outras plagas‖) convidam o poeta a partir, revelando a

influência da paisagem sobre seus sentimentos interiores.

Conquanto existam ainda outros aspectos a serem verificados nos

poemas apresentados, interessa, por ora, apenas a discussão da relação de

elementos interiores e exteriores. Posto que não se possa afirmar,

categoricamente, que as paisagens interna e externa se fundem na poética

Page 43: O ESTADO DE ALMA É UMA PAISAGEM Paùlismo

43

cardosiana, é possível ao menos constatar que o estado de alma do eu lírico é

representado diretamente por uma paisagem, sofrendo influência e sendo

influenciado por ela. Além disso, percebe-se que a sensação é relacionada a

elementos objetivos.

A seguir, se estabelecerá um diálogo da poesia cardosiana com os

demais procedimentos elaborados por Fernando Pessoa no Paùlismo e no

Interseccionismo.

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44

3. PAÙLISMO, INTERSECCIONISMO E LÚCIO CARDOSO

Sonhos são elementos anárquicos que,

incompletos para se constituírem ações ou

até mesmo sentimentos ou sensações,

vagam no fundo do ser à procura de uma

unidade, que muitas vezes se faz arbitrária ou

errada, a fim de exteriorizar e impor sua

existência ao homem.

Lúcio Cardoso, 1959,

Diário completo

I

Os estudos mais relevantes sobre a poesia de Lúcio Cardoso foram

realizados por Mario Carelli e, principalmente, por Ésio Macedo Ribeiro. Carelli

já atentava para a presença da poesia de Fernando Pessoa na poética

cardosiana, sobretudo nos poemas ―Alcino‖, ―Invocação‖, ―Evocação‖, ―A Vasa‖

e ―O Rio‖. A característica pessoana apontada pelo crítico refere-se,

principalmente, à temática marítima e o remeter à infância, além de uma

―mística às avessas‖, também atribuída a Pessoa. Ésio Macedo Ribeiro

encontrou similitudes entre versos do heterônimo Álvaro de Campos e de

Lúcio, apontando construções ―quase idênticas‖ nos poemas ―Soneto já

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45

Antigo‖, de Campos, e ―[Quando, Jayme, aqui não estiver]‖, de Lúcio

(RIBEIRO, 2006, p. 61).

Mario Carelli afirma, ainda, que embora Lúcio admirasse a construção

heteronímica, ―optou por construir uma exposição mitológica de sua

personalidade múltipla, não apenas transpondo todos os sentidos que o

tiranizavam, mas ainda incorporando seus elementos, assumindo todas as

suas contradições.‖ (CARELLI, 1988, p. 110). Dessa forma, Lúcio se afasta da

concepção pessoana de que ―todo poeta é um fingidor‖, uma vez que se

entrega completamente às obsessões e aos sentimentos intensos em sua

poesia, que nasce da angústia, do desespero e da inquietação. Esse dado é

fornecido não apenas por Carelli, mas pelo próprio poeta em seus Diários, que

expressam o mesmo ambiente de sua poesia:

Dentro de mim, sombra – mas fria e calma. Fora, sombra onde

cumpro os gestos que todos sabem. O que aprendemos, é como nos

ocultar de um modo banal, como toda gente mais ou menos se

oculta. O que ocultamos, é o que importa, é o que somos. Os loucos,

são os que não ocultam mais nada – e em vez dos gestos

aprendidos, traduzem no mundo exterior os signos do mundo secreto

que os conduz. (CARDOSO, 1970, p. 20).

Fernando Pessoa expressa os sentimentos de uma forma mais contida,

por meio de uma construção formal previamente elaborada para essa

expressão; há uma racionalização poética do sentir, que faz do poeta um

fingidor, o qual sente fundamentalmente por meio da poesia. Ao contrário,

Lúcio Cardoso se entrega completamente à poesia, expressando a sombra que

existe em seu interior. A poesia, para o poeta mineiro, é um meio por onde ele

deixa de se ocultar, onde o subjetivo tem a liberdade de se mostrar

integralmente. Assim, para Lúcio, o poeta é antes um louco, que traduz ―no

mundo exterior os signos do mundo secreto que o[s] conduz‖, mas não um

fingidor. Em oposição a uma poesia nacional, proposta por Pessoa, Lúcio

propõe uma poesia ―para exorcizar a dor, para escapar à dominação da

loucura.‖ (CARELLI, 1988, p.110).

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46

Esclarecidas essas distinções entre os dois poetas a respeito do fazer

poético, se estabelecerá um diálogo entre a poesia cardosiana e a teorização

poética de Fernando Pessoa, indicada no artigo ―A nova poesia portuguesa‖,

tratado no primeiro capítulo dessa pesquisa.

Como já referido, Pessoa propõe uma poesia que abarque o vago, o

subtil e o complexo. Percebe-se, na poesia de Lúcio Cardoso, a presença

constante de uma ideação vaga como objeto de discussão do eu lírico,

expressa de forma hermética, uma vez que o hermetismo é um aspecto

recorrente em sua poesia. De todo modo, esse hermetismo remete ao obscuro,

o que, para Pessoa, diferenciava a poesia simbolista francesa da nova poesia

portuguesa. Outro dado que difere o vago pessoano do vago cardosiano é que

a ideação vaga em Lúcio é ―confusamente expressa‖, justamente o que

Fernando Pessoa não intencionava fazer. Ésio Macedo Ribeiro apontou a

influência simbolista em alguns poemas de Lúcio, em que as emoções são

sugeridas por meio de símbolos não explicados, como se verifica nos últimos

versos de ―Poema‖:

Ah, de que terrível noite nasceste, ó desejo,

de que fonte de amargura, ó luz crepuscular!

Egito! Mistério do céu infinito

desdobrado sobre mim como negro sudário –

que força me revelará o teu verdadeiro nome,

Esmeralda, Safira, constelação de astros efêmeros e malditos!

Desse modo, a ideação vaga está presente nos versos cardosianos,

mas conserva a obscuridade cara aos simbolistas.

No que diz respeito ao subtil, é perceptível, nos versos cardosianos, a

utilização de expressões que intensificam sensações e detalham o sentimento

interior de forma objetiva, revelando, por meio do subjetivo e do objetivo, uma

poesia paradoxal, como nos seguintes versos de ―Paisagem‖: ―gestos

delineados no tímido silêncio‖; ―sorrisos calados – flor da humildade nos teus

olhos nascida...‖; ―Ó profundeza, mistério da noite e do meu desespero...‖

(CARDOSO, 2011, p. 259).

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47

Quanto ao complexo, é possível verificar elementos utilizados por Lúcio

para expandir uma sensação, emocionalizando um ideia por meio da relação

entre o subjetivo e o objetivo, atribuindo plasticidade ao poema, como nos

seguintes versos de ―Espectro‖: ―e das profundezas em que a renúncia me

lançou, sinto que sou como a árvore que nasce da obscura decomposição da

terra / e aos poucos se eleva. O meu espírito se confunde com o sopro que

espalha o fumo e obscurece a paisagem / e o pressentimento me invade de

que nada fui – sementes de revoltas esmagadas‖ (CARDOSO, 2011, p. 244).

Todavia, ainda que seja possível estabelecer essa aproximação da

estética da poesia cardosiana com a teorização poética, esboçada no artigo

referido, de Fernando Pessoa, é preciso atentar para o fato de que Lúcio

apresenta uma solução diferente para a ocorrência desses elementos.

Utilizando-se do vago (ainda que obscuro), do subtil e do complexo, Lúcio

compõe um ambiente denso, impregnado de angústia, de obscuridade e de

melancolia, sendo que a expressão desse ambiente é dada de modo intenso,

com um sentimentalismo ―à flor da pele‖, extremamente carregado de

sofrimento e desespero.

II

Seabra observou no Paùlismo a ―exacerbação dos processos

imagísticos que fazem apelo a sensações mórbidas e requintadas, transpostas

metafórica e simbolicamente.‖ (SEABRA, 1991, p. 142). No poema ―[Para esta

Água Concorro, com Este Branco]‖, de Lúcio Cardoso, há uma plasticidade

imagética permeada por símbolos, em uma construção hermética, com a

presença do vago:

[PARA ESTA ÁGUA CONCORRO, COM ESTE BRANCO]

Para esta água concorro, com este branco

e o agudo emblema de pedra

como um segredo;

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48

com este escorrer de jasmim,

e esta calma, e este modo de olhar

quando à janela sondo a alvorada,

e este estremecer de rio,

esta voz sem onda,

este túrgido esplanar

de coisa desfeita em água.

Concorro com este meu silêncio,

e o meu nome, e o pensativo

desejo de ser outro

que me acende

quando, em certas noites, olho a lua

e vejo brilhar o mar,

de outro país.

Concorro com este sangue.

Que outro diamante integrar,

senão o que reluz, aqui, nesta hora,

sonho de amo e de liberto?

(CARDOSO, 2011, p. 813)

Conquanto os dois poemas apresentem distinções na manifestação do

tédio existencial, sendo que o poema de Lúcio não apresenta a ―exacerbação

dos processos imagísticos‖ presente em ―Impressões do Crepúsculo‖, é

possível identificar ressonâncias do poema pessoano em ―[Para Esta Água

Concorro, com Este Branco]‖, como o uso de termo sofisticado (―túrgido‖) e a

associação entre termos concretos e abstratos (―agudo emblema de pedra‖;

―escorrer de jasmim‖; ―estremecer de rio‖; ―voz sem onda‖; ―túrgido esplanar de

coisa desfeita em água‖).

Há em ambos os poemas a consciência de ―ser outro‖,

coincidentemente, diante do luar: ―O Mistério sabe-me a eu ser outro... Luar

sobre o não conter-se...‖ em Pessoa e ―o pensativo / desejo de ser outro / que

me acende / quando, em certas noites, olho a lua‖, em Lúcio. No verso ―e vejo

brilhar o mar, / de outro país‖, o eu lírico remete outra paisagem, que nele

acende o desejo de ser outro. Encontra-se nos dois poemas a ocorrência do

―silêncio‖ e da ―hora‖, em que o eu lírico evoca paisagens que refletem seu

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49

estado de melancolia, desejando libertar-se desse estado (―Que pasmo de mim

anseia por outra coisa que o que chora!...‖ e ―sonho de amo e de liberto‖).

Seabra reconhece no Paùlismo a criação de ―uma atmosfera de

irrealidade estranha‖, apontando esse aspecto não apenas em ―Impressões do

Crepúsculo‖, mas também no poema ―Hora Absurda‖, escrito em 1913 e

publicado na revista Exílio, em 1916:

HORA ABSURDA

O teu silêncio é uma nau com todas as velas pandas...

Brandas, as brisas brincam nas flâmulas, teu sorriso...

E o teu sorriso no teu silêncio é as escadas e as andas

Com que me finjo mais alto e ao pé de qualquer paraíso...

Meu coração é uma ânfora que cai e que se parte...

O teu silêncio recolhe-o e guarda-o, partido, a um canto...

Minha ideia de ti é um cadáver que o mar traz à praia..., e entanto

Tu és a tela irreal em que erro em cor a minha arte...

Abre todas as portas e que o vento varra a ideia

Que temos de que um fumo perfuma de ócio os salões...

Minha alma é uma caverna enchida pela maré cheia,

E a minha ideia de te sonhar uma caravana de histriões...

Chove ouro baço, mas não no lá-fora... É em mim... Sou a Hora,

E a Hora é de assombros e toda ela escombros dela...

Na minha atenção há uma viúva pobre que nunca chora...

No meu céu interior nunca houve uma única estrela...

Hoje o céu é pesado como a ideia de nunca chegar a um porto...

A chuva miúda é vazia... a Hora sabe a ter sido...

Não haver qualquer coisa como leitos para as naus!... Absorto

Em se alhear de si, teu olhar é uma praga sem sentido...

Todas as minhas horas são feitas de jaspe negro,

Minhas ânsias todas talhadas num mármore que não há,

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Não é alegria nem dor esta dor com que me alegro,

E a minha bondade inversa não é nem boa nem má...

Os feixes dos lictores abriram-se à beira dos caminhos...

Os pendões das vitórias medievais nem chegaram às cruzadas...

Puseram in-fólios úteis entre as pedras das barricadas...

E a erva cresceu nas vias férreas com viços daninhos...

Ah, como esta hora é velha!... E todas as naus partiram!

Na praia só um cabo morto e uns restos de vela falam

De Longe, das horas do Sul, de onde os nossos sonhos tiram

Aquela angústia de sonhar mais que até para si calam...

O palácio está em ruínas... Dói ver no parque o abandono

Da fonte sem repuxo... Ninguém ergue o olhar da estrada

E sente saudades de si ante aquele lugar-Outono...

Esta paisagem é um manuscrito com a frase mais bela cortada...

A doida partiu todos os candelabros glabros,

Sujou de humano o lago com cartas rasgadas, muitas...

E a minha alma é aquela luz que não mais haverá nos candelabros...

E que querem ao lado aziago minhas ânsias, brisas fortuitas?...

Porque me aflijo e me enfermo?... Deitam-se nuas ao luar

Todas as ninfas... Veio o sol e já tinham partido...

O teu silêncio que me embala é a ideia de naufragar,

E a ideia de a tua voz soar a lira dum Apolo fingido...

Já não há caudas de pavões todas olhos nos jardins de outrora...

As próprias sombras estão mais tristes... Ainda

Há rastos de vestes de aias (parece) no chão, e ainda chora

Um como que eco de passos pela alameda que eis finda...

Todos os ocasos fundiram-se na minha alma...

As relvas de todos os prados foram frescas sob meus pés frios...

Secou em teu olhar a ideia de te julgares calma,

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E eu ver isso em ti é um porto sem navios...

Ergueram-se a um tempo todos os remos... Pelo ouro das searas

Passou uma saudade de não serem o mar.. Em frente

Ao meu trono de alheamento há gestos com pedras raras...

Minha alma é uma lâmpada que se apagou e ainda está quente...

Ah, e o teu silêncio é um perfil de píncaro ao sol!

Todas as princesas sentiram o seio oprimido...

Da última janela do castelo só um girassol

Se vê, e o sonhar que há outros põe brumas no nosso sentido...

Sermos, e não sermos mais!... Ó leões nascidos na jaula!...

Repique de sinos para além, no Outro Vale... Perto?...

Arde o colégio e uma criança ficou fechada na aula...

Porque não há-de ser o Norte o Sul?... O que está descoberto?...

E eu deliro... De repente pauso no que penso... Fito-te

E o teu silêncio é uma cegueira minha... Fito-te e sonho...

Há coisas rubras e cobras no modo como medito-te,

E a tua ideia sabe à lembrança de um sabor de medonho...

Para que não ter por ti desprezo? Porque não perdê-lo?...

Ah, deixa que eu te ignore... O teu silêncio é um leque —

Um leque fechado, um leque que aberto seria tão belo, tão belo,

Mas mais belo é não o abrir, para que a Hora não peque...

Gelaram todas as mãos cruzadas sobre todos os peitos...

Murcharam mais flores do que as que havia no jardim...

O meu amar-te é uma catedral de silêncios eleitos,

E os meus sonhos uma escada sem princípio mas com fim...

Alguém vai entrar pela porta... Sente-se o ar sorrir...

Tecedeiras viúvas gozam as mortalhas de virgens que tecem...

Ah, o teu tédio é uma estátua de uma mulher que há-de vir,

O perfume que os crisântemos teriam, se o tivessem...

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É preciso destruir o propósito de todas as pontes,

Vestir de alheamento as paisagens de todas as terras,

Endireitar à força a curva dos horizontes,

E gemer por ter de viver, como um ruído brusco de serras...

Há tão pouca gente que ame as paisagens que não existem!...

Saber que continuará a haver o mesmo mundo amanhã — como nos desalegra!...

Que o meu ouvir o teu silêncio não seja nuvens que atristem

O teu sorriso, anjo exilado, e o teu tédio, auréola negra...

Suave. como ter mãe e irmãs, a tarde rica desce...

Não chove já, e o vasto céu é um grande sorriso imperfeito...

A minha consciência de ter consciência de ti é uma prece,

E o meu saber-te a sorrir uma flor murcha a meu peito...

Ah, se fôssemos duas figuras num longínquo vitral!...

Ah, se fôssemos as duas cores de uma bandeira de glória!...

Estátua acéfala posta a um canto, poeirenta pia baptismal,

Pendão de vencidos tendo escrito ao centro este lema — Vitória!

O que é que me tortura?... Se até a tua face calma

Só me enche de tédios e de ópios de ócios medonhos...

Não sei... Eu sou um doido que estranha a sua própria alma...

Eu fui amado em efígie num país para além dos sonhos...

(PESSOA, 1942, p. 21)

Poema composto por 25 quadras de versos longos e com rimas

alternadas, traz aspectos simbolistas, uma vez que apresenta um subjetivismo

que sugere, mas não identifica emoções. Cada estrofe carrega impressões e

emoções que não apresentam uma relação direta nem uma ordem cronológica,

assim como acontece em ―Chuva Oblíqua‖. Caio Gagliardi afirma que ―essa

supressão da decorrência entre as partes fornece um indício do que seja essa

―hora absurda‖, isto é, uma hora estacionada, um momento eternizado e

verticalmente explorado.‖ (2010, p. 335), o que não ocorre no poema

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interseccionista. As sensações evocam paisagens exteriores que não estão

exatamente diante dos olhos do eu lírico, mas que são suscitadas e associadas

a um sentimento intenso e denso, aproximando-se de um ambiente de sonho.

De todo modo, as sensações não são vinculadas a paisagens contidas na

memória do eu lírico, mas a imagens despertadas justamente em

consequência dessas sensações, como acontece no poema ―A Imagem da

Planície‖, de Lúcio Cardoso.

Assim como em ―Impressões do Crepúsculo‖, há em ―Hora Absurda‖ a

ocorrência do vago, do subtil e do complexo, em que o abstrato é concretizado,

estabelecendo imagens plásticas por meio de construções metafóricas. A

respeito das metáforas, Caio Gagliardi defende que esse recurso não ―objectiva

o subjectivo‖, já que é composto por impressões ―penumbristas‖.

Seabra identifica no poema ―uma grande densidade interna‖ e ―uma

metafísica do mistério transcendental, emergido do absurdo, do tédio e da

angústia existencial sempre latente‖ (SEABRA, 1991, p. 143). Esses aspectos

atribuídos por Seabra ao poema ―Hora Absurda‖ conversam com a temática da

poesia cardosiana.

No poema ―Chuva‖, de Lúcio Cardoso, a paisagem está diretamente

relacionada ao estado de alma do eu lírico que, invadido por uma calma

melancólica, estima o passado e demonstra a angústia existencial:

CHUVA

Esta chuva que cai

é especialmente para mim.

Coisas idas acordam

e se transformam no meu ser.

Uma figura de palma ascende

no silêncio que sou – mistério vegetal.

Ah, sem orgulho, sem vaidade

– este simples eu de todo dia –

diante do veneno suposto e renegado

– suposto sempre –

porque o mal é amar aquilo

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que os outros nos proíbem

– e que é o amor –

sabemos.

Esta chuva é minha.

Sem desejos nem glória.

Que vale a forma do poema?

A palavra nasce do instante exato

e sobrevive à própria alma que transgride.

Além da chuva, ouço o mar

– um pequeno, um mar fechado e certo

De verde calma da infância.

Outras coisas adivinho, decerto,

e adivinhadas outras também o são em mim.

Que importa? Tudo cresce, anoitecendo.

Serei eu? Ainda que não o quisesse,

sou. Através da água as plantas crescem

e através das ruas a chuva sobe,

dos esgotos, dos ínfimos bueiros,

do que somos – incessante melodia –

e tudo é o instante que passa

sem nada para dizer depois.

(CARDOSO, 2011, p. 488)

A relação do eu lírico com a chuva, nos dois poemas, estabelece o

reflexo do estado de alma. Embora a chuva em ―Hora Absurda‖ seja

metaforizada, ela acontece dentro do eu lírico (―Chove ouro baço, mas não lá-

fora... É em mim‖), expondo a melancolia por ele sentida; em ―Chuva‖, a chuva

ocorre lá fora, mas é especialmente para o eu lírico, já que representa seu

estado de alma, também melancólico (―Esta chuva que cai é especialmente

para mim.‖; ―Esta chuva é minha.‖). Se as paisagens em ―Hora Absurda‖ não

estão nem diante do eu lírico, nem em sua memória, mas suscitadas por suas

sensações, em ―Chuva‖ as paisagens se dão de ambas as formas; aqui, a

paisagem está diante do eu lírico, sofre interferência de seu estado de espírito

e desperta paisagens que estão em sua memória, transformando seu estado

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de alma. O passado evocado pela paisagem (―ouço o mar, [...] / de verde calma

da infância‖) transforma a paisagem interior do eu lírico (―Coisas idas acordam /

e se transformam no meu ser‖), suscitando também outras paisagens que não

estão nem no mundo exterior, nem em sua memória (―Uma figura de palma

ascende / no silêncio que sou‖).

No poema pessoano a hora é estacionada, eternizada por um tédio

existencial. Já em ―Chuva‖, ―tudo é o instante que passa / sem nada para dizer

depois‖. Mesmo que o instante se movimente, isto é, não se apresente de

forma estática, é também carregado de tédio. Há ainda, em ambos os poemas,

o questionamento existencial (―Sermos, e não sermos mais!...‖, em Pessoa, e

―Serei eu? Ainda que não o quisesse, / sou.‖, em Lúcio), trazendo a angústia de

uma vida vazia: ―No meu céu interior nunca houve uma única estrela...‖, ―[..] de

onde nossos sonhos tiram / Aquela angústia de sonhar mais que até para si

calam‖, nos versos pessoanos, e ―Ah, sem orgulho, sem vaidade [...] / diante do

veneno suposto e renegado‖, ―Sem desejos nem glória.‖, em ―Chuva‖.

Assim, os poemas dialogam, sobretudo, no hermetismo e obscuridade

que carregam da tradição simbolista.

No poema ―Caminho Inútil‖, de Lúcio, é possível identificar ecos paùlicos

e interseccionistas:

CAMINHO INÚTIL

A terra inteira ardeu,

as flores se tornaram negras,

meu corpo inteiro ardeu,

meus cabelos queimados,

meus olhos sangrentos,

meus lábios pecadores.

Desceram os ventos do horizonte

e da profundeza dos mares

surgiu a fúria branca dos cataclismos.

A vida desapareceu,

os mortos vieram novamente

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à flor da terra.

Cinzas tornaram a tarde sinistra

e se estenderam ao longo da noite.

Então do alto céu desceu o silêncio

e pousou sobre os desertados,

sobre as rosas mortas nas hastes de cristais,

sobre o mar imóvel na fímbria dos rochedos,

sobre o leito vazio dos rios,

sobre mim.

E entretanto

por muito que eu desejasse,

não estou tranquilo ainda.

Pois desde agora estou sentindo

a saudade muda das coisas que se foram,

estou sentindo os homens gritarem abafado

pelo amor.

(CARDOSO, 2011, p. 211)

Lá estão os oxímoros (―fúria branca‖; ―mar imóvel‖; ―saudade muda‖;

―gritarem abafado‖) e o uso de termo sofisticado (―fímbria‖) presentes na

construção paúlica. O eco interseccionista está nas oposições categoriais

(―negra‖ / ―branca‖; ―vida‖ / ―morte‖; ―céu‖ / ―terra‖; ―terra‖ / ―mar‖) e na

concretização de substantivos abstratos (os ventos do horizonte que desceram;

a fúria branca dos cataclismos que surgiu da profundeza dos mares; os mortos

que vieram à terra; o silêncio que desceu do céu).

Todavia, é importante destacar que, embora essas ocorrências

pessoanas sejam perceptíveis no poema cardosiano, a intenção e a solução

que cada poeta apresenta para o uso desses aspectos formais é extremamente

diferente, especialmente no que se refere ao Interseccionismo. Lúcio de utiliza

dessas técnicas de escrita para compor um ambiente sinistro, expondo o

sentimento de intranquilidade, enquanto Pessoa pretende fragmentar o mundo

exterior, compondo um universo onírico, e interseccionar estados de alma com

paisagens exteriores.

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Pode-se verificar em ―Caminho Inútil‖, ainda, que a paisagem se

transforma de acordo com o estado de alma do eu lírico: na primeira estrofe, a

terra arde e as flores se tornam negras, enquanto o corpo do eu lírico arde, os

olhos sangram e os lábios se mostram pecadores. Na segunda estrofe, a

paisagem traz à tona os cataclismos e a presença dos mortos, em cinzas que

tornam a tarde e a noite sinistras, evidenciando o estado de desespero em que

o eu lírico se encontra. Então, na terceira estrofe, o silêncio desce sobre a

paisagem mórbida e sobre o eu lírico, aquietando a fúria por ele sentida. De

todo modo, esse silêncio não basta para tranquilizar o eu lírico, que tem

saudade do passado e sente a angústia dos homens diante do amor.

Outro poema de Lúcio que apresenta ressonâncias paùlicas e

interseccionistas é ―A Casa do Solteiro‖, profundamente analisado por Ésio

Macedo Ribeiro na apresentação da edição crítica da Poesia Completa de

Lúcio Cardoso. Pode-se afirmar, sobre esse poema, que a paisagem (no caso,

a própria ―casa do solteiro‖) é o próprio estado de alma de um eu lírico

entregue completamente ao abandono e à extrema angústia de existir. O

ambiente é onírico e denso, permeado por símbolos que remetem a uma

paisagem infernal, de sofrimento latente, trazendo a sobreposição de imagens

e a livre associação de ideias, nas quais cada imagem produz uma reação

intensa de agonia e angústia. Conquanto não se possa afirmar a existência de

uma intersecção entre a paisagem e o estado de alma, pode-se identificar uma

forte relação entre ambos, em que se refletem mutuamente os sentimentos

sombrios:

A CASA DO SOLTEIRO

A Pedro Gallotti

(Por oferecimento de Jayme Bastian Pinto)

A casa do solteiro é alta e de paredes de angústia,

muros escorrem como verdes contornos

e colunas de mármore frio guardam seus limites.

Há quatro anjos sentados no teto solene e casto

e com luzes vermelhas, entre ciprestes,

sondam os anjos — guardiões — os fundamentos

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que se apóiam com gemidos nos porões e adegas,

no rio escuro e na água morta

de correntes que foram vencidas — despedaçadas.

A casa do solteiro é cor de chama,

de silêncio aflito e aurora sem contemplação.

São pedras de crime e de agonia,

são negras pedras de delírio e de remorso.

São duras estacas de alumínio e febre,

são traves de cristais e de luxúria.

Há um descampado em torno: nostálgicos,

cemitérios se evaporam no crepúsculo

e ruínas de azul e ópio cintilam,

entre guitarras e navalhas abandonadas.

Há flores quentes e de carne, flores mesmas,

cor de whisky, de pêssegos feridos, e raízes

quentes de sofrimento e decomposição.

A casa do solteiro é o sol posto

quando perdemos a fé e o amor se foi,

o começo da noite quando não há horizonte,

a quilha partida e a lança sem gume.

A casa do solteiro se abre como a música,

é triste e macia, fechada como a do príncipe,

fechada, entre janelas longas de ferro,

enquanto lá fora o vento ruge e há relâmpagos.

Não há vertigem, e nem espaço, e nem sossego,

tudo sucede como se morrêssemos aos poucos,

os móveis andam, e nos olhares estranhos,

como róseos desmaios e garras de ultraje.

Se não fossem tão lúcidos, morreriam de cólera,

abraçando manequins de aço, corpos de rampas

em madrugadas de rompimento e viagens.

Esqueceriam as malas — e iriam muito altos,

olhando as hortas onde cresce o mato que assassina.

E estão quietas: jogam as cartas verdes

e suspiram impossíveis paisagens de mar.

Quatro anjos grandes velam no alto do telhado,

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com quatro rosas voltadas para o mar,

a mais escura é que os guia. Rosas frias,

de pétalas aguçadas e de mortal traição.

A casa do solteiro é que eles elegeram,

ilha, jangada no silêncio do céu,

vasto navio abandonado e cheio de tormenta,

escândalo e aflição — a casa do solteiro flutua

e é como uma vasta cortina de sangue e maldição,

chorando as tardes, os corpos, o coração perdido,

tudo — neste silêncio único onde existe

como uma grande alma sozinha batendo

na infindável noite que não se acaba

e nem se acabará NUNCA,

A CASA DO SOLTEIRO.

(CARDOSO, 2011, p. 46-47)

Identifica-se no poema cardosiano a associação entre termos concretos

e abstratos (―paredes de angústia‖; ―pedras de crime e de agonia‖; ―pedras de

delírio e de remorso‖; ―estacas de alumínio e febre‖; ―traves de cristais e de

luxúria‖; cemitérios nostálgicos; ―ruínas de azul e ópio‖; ―flores quentes e de

carne‖; ―raízes quente de sofrimento e decomposição‖; ―casa [...] triste e

macia‖; ―róseos desmaios e garras de ultraje‖; ―rosas frias‖; ―pétalas aguçadas

e de mortal traição‖; ―cortina de sangue e maldição‖), oposições categoriais

(―frio‖ / ―quente‖; ―a casa se abre‖ / ―fechada‖) e a concretização de

substantivos abstratos (―fundamentos que se apóiam com gemidos nos porões

e adegas‖; ―cemitérios se evaporam‖; ―ruinas de azul e ópio cintilam‖; ―A casa

[...] se abre como a música‖; ―móveis andam‖; ―mato que assassina‖; ―a casa

[...] flutua‖; ―alma [...] batendo na infindável noite‖). Novamente, verifica-se que

o uso de alguns recursos formais utilizados por Pessoa nas construções

paùlica e interseccionista diferem do poema de Lúcio, sobretudo, na intenção e

na solução propostas por cada poeta. Embora construa um ambiente onírico e

estabeleça uma forte relação entre o estado de alma e a paisagem exterior, de

forma alguma Lúcio propõe a intersecção dessas paisagens.

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A ―exacerbação dos processos imagísticos‖, presente em ―Impressões

do Crepúsculo‖ e ―Hora Absurda‖, está também presente em ―A Casa do

Solteiro‖. A descrição da casa é feita por meio de metáforas, símbolos e

elementos alegóricos do inferno, evidenciando a plasticidade do poema. Ésio

Macedo Ribeiro percebe a utilização de ―jogos semânticos que causam um

estranhamento, que dificulta a compreensão‖ (CARDOSO, 2011, p. 50), assim

como Seabra identificava em ―Impressões do Crepúsculo‖ e em ―Hora Absurda‖

―uma atmosfera de irrealidade estranha‖, como já referido. Dessa forma, esse

elemento é comum aos dois poetas, ainda que seja por eles desenvolvido de

maneira desigual. O ambiente onírico que Pessoa constrói, tanto no Paùlismo

quanto no Interseccionismo, embora também impregnado de tédio e melancolia

sendo, por vezes, escabroso, é formalmente elaborado para assim o ser. A

racionalidade está por trás do sonho e do sentir. Lúcio compõe um ambiente

onírico atormentado, confuso e agonizante, sem se preocupar, aparentemente,

com aspectos formais, conquanto não deixe de utilizá-los. Destarte, essas

distinções se tornam plausíveis quando se relaciona a poética de um poeta

―fingidor‖ a de um poeta ―louco‖.

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CONCLUSÃO

O estudo da poesia pessoana implica a pré-disposição para questionar

tudo o que se afirma a seu respeito. A crítica ainda diverge em diversas

questões, uma vez que a poesia de Fernando Pessoa é tão misteriosa e

indecifrável quanto o próprio poeta. Para qualquer um que decida ingressar no

universo pessoano, é preciso ter a consciência de que as dubiedades serão

inevitáveis. Os textos extraliterários podem aturdir pela quantidade de

asserções, declarações, opiniões e estudos que trazem, não apenas sobre a

obra do próprio poeta, mas sobre as mais diversas questões sociais, filosóficas

e literárias. Assim, não é surpreendente encontrar uma afirmação aqui e, logo

adiante, se deparar com a desconstrução dessa mesma ideia, na voz de um

heterônimo qualquer. Ademais, a vastíssima produção pessoana, tão complexa

por si mesma, leva à indelicadeza de se querer simplificar seus métodos, para

facilitar seu entendimento. Esse recurso foi aplicado ao Paùlismo e ao

Interseccionismo, que por muito tempo permaneceram reduzidos a ―tentativas

frustradas‖ de projetos poéticos, salvo as considerações de alguns críticos

como Caio Gagliardi e George Rudolf Lind.

Com essa pesquisa, pude assimilar como se dá a tematização e a

funcionalidade de aspectos formais nas propostas paùlista e interseccionista,

ao ponto de verificar suas marcas em outro poeta. Foi possível entender qual

era a intenção de Pessoa ao promover essas manifestações e o que pretendia

com elas demonstrar. Assim, verifiquei que, muito além de intentar uma

revolução estilística da poesia, o poeta português pretendia desestagnar o

cenário literário e social portugueses, preocupando-se em elevar a literatura

portuguesa ao ―seu lugar ao sol‖ no contexto literário europeu.

Independente de qual seja o ―ismo‖ desenvolvido por Pessoa, o que

ressoa é a concepção de uma poesia que exprime o interior e o subjetivo em

constante interação com o universo exterior. O mundo exterior e interior se

relacionam por meio do ser; e a poesia pretende demonstrar essa relação.

A poesia de Lúcio Cardoso, ainda tão pouco estudada, não se distancia

do romancista; seus versos livres, despreocupados com a métrica, carregam

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uma poeticidade que não dá falta de aspectos formais. A beleza dos versos

cardosianos está nas paisagens por eles estabelecidas, de forma que, assim

como acontece em seus romances, é impossível não visualizar o que se lê.

Essa plasticidade, tão presente em poemas pessoanos como ―Impressões do

Crepúsculo‖ e ―Chuva Oblíqua‖, é carregada de sentimentalismo e inquietação,

agonia e angústia.

Estabelecer um diálogo entre os dois poetas, visivelmente distantes no

método do fazer poético, pareceria mais plausível se pensássemos no

heterônimo Álvaro de Campos que, assim como o Lúcio, carrega um

sentimentalismo ―à flor da pele‖. De todo modo, pude comprovar que Pessoa

ortónimo-paùlico-interseccionista e Lúcio apresentam, de fato, elementos

comuns em seu tratamento poético, mas que desenvolvem de maneiras

distintas, resultando em soluções também distintas. O vago, o subtil e o

complexo, propostos por Pessoa, acontecem também na poesia de Lúcio, mas

o vago se mantém obscuro, como nos versos simbolistas, e a complexidade

resulta em um hermetismo caracteristicamente cardosiano.

Fernando Pessoa tece procedimentos formais na intenção de exprimir

uma sensação, representada por uma paisagem e por ela interseccionada.

Lúcio Cardoso se utiliza da poesia para exorcizar suas angústias e

inquietações, encontrando na paisagem a representação para seu estado de

alma. Portanto, a consciência de uma paisagem interna e uma paisagem

externa, que acontecem simultaneamente e interferem-se mutuamente, está

presente em ambos os poetas, mas exploradas por caminhos diferentes, que

levam a resultados diferentes: a intersecção, em Pessoa, e a simples

representação da paisagem como um reflexo do estado de alma, em Lúcio.

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