o estatuto da matemática em portugal nos séculos xvi e xvii
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UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS
DEPARTAMENTO DE ESTUDOS CLSSICOS
O ESTATUTO DA MATEMTICA EM PORTUGAL NOS SCULOS XVI E XVII
Bernardo Machado Mota
DOUTORAMENTO EM ESTUDOS CLSSICOS (Especialidade: CULTURA CLSSICA)
2008
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UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS
DEPARTAMENTO DE ESTUDOS CLSSICOS
O ESTATUTO DA MATEMTICA EM PORTUGAL NOS SCULOS XVI E XVII
Bernardo Machado Mota
DOUTORAMENTO EM ESTUDOS CLSSICOS (Especialidade: CULTURA CLSSICA)
Tese orientada por: Prof. Doutor Arnaldo do Esprito Santo
Prof. Doutor Henrique Jos Sampaio Soares de Sousa Leito
2008
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Vxori Filiabusque.
Omnia uincit amor
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AGRADECIMENTOS
Nasceu comigo profundo deslumbramento pelas humanidades e pela cincia, de
tal modo que, ao contrrio do que vejo acontecer geralmente com o resto das pessoas,
nunca para mim estas duas grandes reas do conhecimento foram distintas. Sempre me
surpreendeu a diviso entre letras e cincias na escola e sempre pensei que esta
distino bsica de poltica educativa impedisse a criao de especialistas que pudessem
ensinar-me o que eu queria aprender. Enganei-me. Encontrei no Prof. Arnaldo do
Esprito Santo especial sensibilidade para uma filologia clssica centrada no estudo de
textos cientficos e uma slida orientao inicial para determinar reas de estudo e
fronteiras cronolgicas. Foi ele quem me apresentou ao Prof. Henrique Leito,
especialista em Histria da Cincia, mas numa histria da cincia cada vez mais rara
hoje em dia: aquela centrada ao mesmo tempo na recepo da cincia antiga e na
construo da cincia moderna; firmemente alicerada no estudo filolgico das fontes
(suporte, transmisso, edio, traduo, interpretao, difuso textual, s para apontar
algumas das suas caractersticas). Acabou por ser o Prof. Henrique Leito o responsvel
pela direco que a investigao veio a tomar e pelo completamento da minha
formao, falha na rea da histria da cincia e da matemtica. Ao Prof. Arnaldo do
Esprito Santo coube a tarefa de acompanhar o trabalho de traduo e edio dos textos
em Latim. Esta complementaridade trouxe ao trabalho de investigao uma mais valia
enorme e produziu um impacte extraordinariamente positivo no seu produto final.
Devo realar o papel do Centro de Histria das Cincias (CHCUL) e da
Faculdade de Cincias da Universidade de Lisboa na minha formao cientfica. Foi-me
permitido o acesso s aulas do Mestrado em Histria e Filosofia das Cincias e
disciplina de Histria da Matemtica Antiga, do curso de licenciatura em matemtica,
ento leccionada pelo Prof. Lus Saraiva, a quem deixo expresso o meu agradecimento.
Foi-me dada oportunidade de integrar igualmente o grupo de estudo de Textos
Cientficos Antigos, coordenado por Henrique Leito, e onde participam Samuel
Gessner, Carlos S e Armando Senra Martins. S assim pude comear a estudar com
seriedade os textos da cincia antiga. A todos eles agradeo o inestimvel contributo,
que saiu das fronteiras da formao em cincia antiga: todos, sem excepo, se
empenharam na minha tese e sugeriram ttulos bibliogrficos; no poucas vezes
trataram de entregar em mos fotocpias de impressos e manuscritos, livros, artigos. Ao
Bruno Almeida, doutorando, como eu, ao longo destes anos, agradeo o apoio e as
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discusses que tivemos. Tanto o Bruno como o Samuel me convidaram a assistir e
participar nas sesses que organizam mensalmente do Journal Club. Aqui foram
discutidos artigos programticos sobre histria da cincia que permitiram um melhor
enquadramento terico e fundamentao metodolgica para a minha tese.
A construo da tese beneficiou tambm com a minha participao no projecto
Patrimnio cientfico e cultura manuscrita: A coleco de manuscritos cientficos da
Biblioteca Nacional, Lisboa, coordenado tambm por Henrique Leito, financiado pela
Fundao para a Cincia e Tecnologia (Projecto POCTI/HCT/58543/2004) e levado a
cabo pelo CHCUL e pela Biblioteca Nacional de Portugal (BNP). S assim pude ter
acesso em condies de luxo impressionante coleco de manuscritos e impressos
desta biblioteca. s Dras. Lgia de Azevedo Martins, Teresa Duarte Ferreira e Ana
Cristina Ferreira e Silva, que integram a equipa do projecto, deixo aqui expresso um
agradecimento especialmente forte, pela incansvel dedicao que, cumulativamente,
dedicaram ao meu prprio projecto de investigao. O meu agradecimento estende-se a
todas as pessoas da Diviso de Reservados da BNP.
Aos meus colegas de Estudos Clssicos agradeo o constante apoio. Este
trabalho nunca teria sido possvel, alis, sem a Licena de Doutoramento que o
Departamento de Estudos Clssicos generosamente me concedeu durante dois anos.
Ao Prof. Aires Nascimento agradeo a constante disponibilidade e apoio. O meu
trabalho de investigao dependeu em larga medida dos recursos do Centro de Estudos
Clssicos da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, de que Director.
Agradeo, finalmente, minha famlia. As minhas filhas Beatriz e Madalena,
que nasceram imediatamente a seguir ao incio da minha investigao, no conhecem
seno a figura de um pai incompreensivelmente obcecado com o trabalho de
Doutoramento; no entanto, aprenderam a viver com essa obsesso e a toler-la. minha
mulher Susana seria quase insolente agradecer. No h agradecimento possvel, fica
apenas uma dvida eterna.
O meu interesse pela cincia antiga comeou a desenvolver-se nas aulas tericas
de Cultura Clssica da Licenciatura em Lnguas e Literaturas Clssicas, ento
leccionadas pelo saudoso Prof. Victor Jabouille. Guardo ainda hoje a bibliografia sobre
cincia antiga que me facultou numa das primeiras aulas a que assisti. Tenho a certeza
de que ele teria gostado de ver esta tese escrita.
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RESUMO Em Itlia, no ano de 1547, Alessandro Piccolomini relanou uma discusso antiga
sobre o estatuto epistemolgico das cincias matemticas e a sua relao com os outros ramos do conhecimento humano. Estes tpicos, que assentavam numa anlise contrastiva entre a teoria da cincia aristotlica e a geometria euclidiana, j eram discutidos na Antiguidade Clssica, acabando por ser introduzidos nos currculos de filosofia das principais universidades europeias durante a Idade Mdia. Mais tarde, foram retomados no sculo XVI, com novo vigor e sob uma nova perspectiva renascentista. Nasceu assim um debate que ficou conhecido como a Quaestio de certitudine mathematicarum e enquadrou o processo de reviso da filosofia aristotlica e a construo da moderna cultura cientfica ocidental.
Este trabalho pretende alcanar dois objectivos. Em primeiro lugar, procura-se reinterpretar a ideia que se tem do debate histrico sobre o estatuto cientfico da matemtica; para tal, analisa-se o desenvolvimento do debate desde Aristteles at ao sculo XVIII, procedendo-se a uma reorganizao e reinterpretao de ideias que se encontram dispersas em diversos estudos modernos. Em segundo lugar, procura-se determinar o contributo dos autores nacionais para o debate. Ao longo do estudo, mostra-se que foram os Jesutas os responsveis pela divulgao do debate em Portugal, no final do sculo XVI, embora houvesse j uma discusso genrica e no sistemtica sobre o estatuto cientfico da matemtica no meio universitrio e letrado portugus. Mostra-se, alm disso, que o debate teve grande difuso no nosso pas e estava presente nas mais reputadas estruturas de ensino jesutas locais, como o Colgio das Artes (Coimbra), a Universidade de vora ou ainda a Aula de Esfera (Lisboa). Esta ltima tem uma importncia particular na construo do debate portugus, porque criou o nico ncleo de matemticos que pde sustentar socialmente a oposio argumentao antimatemtica vinda de alguns filsofos. Finalmente, faz-se notar a significativa contribuio para a discusso a nvel nacional e a nvel internacional por parte dos Jesutas portugueses.
ABSTRACT In Italy, in the year 1547, Alessandro Piccolomini rekindled an old debate on the
epistemological status of mathematics and its relationship with other areas of human knowledge. This discussion consisted mainly of comparing the Aristotelian model of science and Euclidian geometry. Such a comparative approach had already been made in ancient times and had been incorporated into the universitys syllabi during the Middle Ages. Later, in the 16th century, it was resuscitated although within a whole new perspective. Thus arose the debate known as the Quaestio de certitudine mathematicarum. It provided the framework within which Aristotelian philosophy underwent renewed assessment, and ended up by forming the foundations of modern science.
Two goals are pursued in this study. In first place, I intend to provide a reinterpretation of the modern idea about the debate. In order to do so, I will be trying to reconstruct its historical development until the 18th century. I shall also be attempting to reorganize ideas spread throughout many modern papers and articles. In second place, I will be trying to determine the role of Portuguese authors in the debate. I shall demonstrate that the Jesuits were responsible for diffusing the debate in Portugal as from the end of the 16th century, though there is evidence of earlier, random discussion along more general lines in the Portuguese university millieu. I will also argue that the debate was widespread in important local Jesuit institutions, such as the College of Arts (Coimbra), the University of vora or even the Aula de Esfera
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(Lisboa). This Aula was particularly important in launching and consolidating the Portuguese debate, since it gave rise to the only group of mathematicians who were able to oppose the somehow anti-mathematical position of some philosophers. The relevant contribution by Portuguese Jesuits will be stressed owing to its impact on the debate at home and abroad.
PALAVRAS CHAVE Portugal, Jesutas, Quaestio, Matemtica, Lgica, Sculo XVI. KEY WORDS Portugal, Jesuits, Quaestio, Mathematics, Logic, Sixteenth-Century
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ABREVIATURAS
Bibliotecas: BA: Biblioteca da Ajuda
BACL: Biblioteca da Academia de Cincias de Lisboa
BB: Biblioteca da Braga
BCM: Biblioteca Central da Marinha
BGUC: Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra
BPMP: BiBlioteca Pblica Municipal do Porto
BPUM: Biblioteca Pblica da Universidade do Minho
BNP: Biblioteca Nacional de Portugal
BPE: Biblioteca Pblica de vora
IANTT: Instituto Arquivo Nacional Torre do Tombo
Instrumenta:
DSB: Dictionary of Scientific Biography, New York, 1970 ss.
DBI: Dizionario Biografico degli Italiani, Roma, 1960 ss.
MPSI: Monumenta Paedagogica Societatis Iesu (veja-se Lukacs 1965 e ss.)
MHSI: Monumenta Historica Societatis Iesu, Madrid, 1894 e ss.; Roma, 1925 e ss.
NOTA BIBLIOGRFICA Os AUTORES DA ANTIGUIDADE Clssica so citados a partir de edies de referncia indicadas no incio da bibliografia final. Citaes de OBRAS IMPRESSAS (antigas ou modernas) indicam o(s) apelido(s) do autor seguido(s) da data, volume e tomo (quando aplicvel) e pgina(s), de acordo com os seguintes exemplos: Baldini 2000a, 54; Barozzi 1560, 45; Pereira Gomes 1960, 98; Rodrigues 1931-1950, I.1., 98. Citaes de MANUSCRITOS identificam sempre a biblioteca e a respectiva cota. As REMISSES para o apndice so feitas tendo em conta a seguinte correspondncia: Documento 1: Alessandro Piccolomini Documento 2: Francesco Barozzi Documento 3: Pedro da Fonseca Documento 4: Benito Pereira Documento 5: Cristvo Clvio Documento 6: Sebastio do Couto
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Documento 7: Giuseppe Biancani Documento 8: Hugo Semplio Documento 9: Incio de Carvalho Documento 10: Teses presididas por Francisco Valente, Diogo Seco Francisco V. de
Vasconcelos/Diogo Pereira Documento 11: Teses presididas por Jorge Cabral Documento 12: Textos da Ratio Studiorum (MPSI V) Documento 13: Manuscritos de Lgica da BNP Documento 14: Manuscritos de Matemtica da BNP (Cristoforo Borri, BNP COD.
2260) Documento 15: Giovanni Paolo Lembo Documento 16: Manuscritos de Lgica da BGUC Documento 17: Manuscritos de Lgica da BBE Documento 18: Teses da BCM
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NDICE GERAL INTRODUO GERAL ................................................................................................. 1
1. rea cientfica. Mtodo. ........................................................................................... 1 2. Objecto. .................................................................................................................... 3 3. Ponto da situao. ..................................................................................................... 4 4. Objectivos e estrutura. .............................................................................................. 9 5. O apndice documental .......................................................................................... 13
PRIMEIRA PARTE (de Aristteles Revoluo Cientfica) ........................................ 19 1. Correntes de pensamento da Antiguidade Clssica. ................................................... 21
1.1. Aristteles............................................................................................................ 24 1.1.1. O modelo de cincia descrito nos Segundos Analticos ............................... 24 1.1.2. Problemas inerentes ao modelo aristotlico ................................................. 31
1.2. Euclides ............................................................................................................... 42 1.3. Proclo................................................................................................................... 52
1.3.1. Matemtica e causalidade em Anfnomo...................................................... 54 1.3.2. Demonstrao matemtica e explicao em Proclo ..................................... 59 1.3.3. Outras correntes de pensamento contextualizantes ...................................... 64
1.4. Ptolomeu.............................................................................................................. 68 Sumrio....................................................................................................................... 70
2. A Quaestio no sculo XIV-XV .................................................................................. 73 2.1. A escola de Paris ................................................................................................. 73
2.1.1. Buridan ......................................................................................................... 73 2.1.2. Alberto de Saxnia ....................................................................................... 81 2.1.3. As quaestiones mathematicales .................................................................... 84 2.1.4. Nicolau de Oresme ....................................................................................... 91
2.2. Bradwardine e os calculadores ............................................................................ 93 2.3. O contexto italiano .............................................................................................. 98
2.3.1. Opinies sobre o estatuto da matemtica em Itlia (scs. XIV-XVI) .......... 99 2.3.2. Constituio de uma classe de especialistas em matemtica...................... 104 2.3.3. O renascimento matemtico ....................................................................... 111 Sumrio................................................................................................................. 114
3. A questo sobre o estatuto da matemtica nos sculos XVI e XVII ........................ 115 3.1. A escola de Pdua.............................................................................................. 115
3.1.1. Alessandro Piccolomini.............................................................................. 116 3.1.2. Francesco Barozzi ...................................................................................... 128
3.2. Os Jesutas ......................................................................................................... 134 3.2.1. Lugar da reflexo sobre a matemtica no currculo jesuta ........................ 137 3.2.2. Clvio e a defesa da matemtica................................................................. 139 3.2.2. Benito Pereira e os filsofos jesutas.......................................................... 144 Sumrio................................................................................................................. 147
4. Excurso: trs problemas aristotlicos em perspectiva .............................................. 149 5. Breve sumrio e nota sobre o alcance cronolgico e geogrfico do debate ............. 153 SEGUNDA PARTE (o contexto portugus nos scs. XVI e XVII)............................. 155 1. O debate na Corte e na Universidade (sc. XVI) ..................................................... 157
1.1. A defesa da matemtica na Corte: Pedro Nunes e Domingos Peres ................. 159 1.2. Reaces ao programa noniano: Diogo de S e Fernando Oliveira .................. 165
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1.3. Leituras contrastantes de Clvio em ambiente Universitrio: Andr de Avelar e Francisco Sanches .................................................................................................... 180
2. Os Jesutas ................................................................................................................ 185 2.1. Desde a fundao dos primeiros colgios at 1590........................................... 186
2.1.1. Prtica da matemtica em colgios jesutas portugueses............................ 187 2.1.2. Reflexo sobre o estatuto da matemtica: Pedro da Fonseca ..................... 195 2.1.3. Influncia de Benito Pereira ....................................................................... 200
2.2. O perodo de 1590 a 1606. Presena da Academia de Clvio em Portugal. ..... 202 2.2.1. A prtica da matemtica ............................................................................. 203 2.2.1.1. A Aula de Esfera ........................................................................... 203 2.2.1.2. Contraste com as restantes escolas jesutas ................................... 205 2.2.2. Reflexo sobre a matemtica...................................................................... 209 2.2.2.1. Joo Delgado ................................................................................. 209 2.2.2.2. Repercusses no Colgio das Artes............................................... 221 2.2.2.3. Respeito institucional pela Aula de Esfera na Universidade de
vora: Bento Fernandes ............................................................................. 228 2.2.2.4. Cursos de filsofos pr-matemtica estrangeiros em Portugal ..... 232 2.2.2.5. Incompatibilidade entre a teologia e o modelo de cincia aristotlico
.................................................................................................................... 238 Sumrio: ............................................................................................................... 243
2.3. O perodo de 1606-1693.................................................................................... 244 2.3.1. Sebastio do Couto ..................................................................................... 244 2.3.2. Influncia entre Jesutas filsofos............................................................... 257 2.3.2.1. Fontes manuscritas ........................................................................ 258 2.3.2.2. Fontes impressas............................................................................ 261 2.3.2.3. Influncia em outras ordens religiosas .......................................... 266 2.3.2.4. Variaes ao texto de Sebastio do Couto..................................... 267 2.3.2.5. Sinopse .......................................................................................... 269 2.3.3. Jesutas matemticos .................................................................................. 271 2.3.3.1. Influncia de Clvio: o caso de Giovanni Paolo Lembo ............... 272 2.3.3.2. Influncia de Giuseppe Biancani: o caso de Cristoforo Borri ....... 275 2.3.3.3. Influncia de Hugh Semple: o caso do ms. BNP cd. 2260.......... 290
2.4. A reforma de Tirso Gonzlez ............................................................................ 296 2.5. Concluso da segunda parte .............................................................................. 300
CONCLUSO GERAL ............................................................................................... 303 APNDICE DOCUMENTAL ..................................................................................... 309 A. Impressos ................................................................................................................. 311
Documento 1. Alessandro Piccolomini .................................................................... 311 Documento 2. Francesco Barozzi............................................................................. 318 Documento 3. Pedro da Fonseca .............................................................................. 333 Documento 4. Benito Pereira.................................................................................... 336 Documento 5. Cristvo Clvio ............................................................................... 350 Documento 6. Sebastio do Couto ........................................................................... 351 Documento 7. Giuseppe Biancani ............................................................................ 356 Documento 8. Hugo Semplio .................................................................................. 381 Documento 9. Incio de Carvalho ............................................................................ 394 Documento 10. Concluses (BNP 6512 REL). ........................................................ 396 Documento 11. Concluses (BNP Res. 1071 A)...................................................... 397
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Documento 12. Ratio Studiorum. ............................................................................. 400 B. Manuscritos.............................................................................................................. 405
Documento 13. Manuscritos de Lgica da BNP. ..................................................... 405 COD. 1899............................................................................................................ 405 COD. 2007............................................................................................................ 407 COD. 2008............................................................................................................ 409 COD. 2033............................................................................................................ 412 COD. 2035............................................................................................................ 413 COD. 2075............................................................................................................ 415 COD. 2079............................................................................................................ 416 COD. 2207............................................................................................................ 417 COD. 2433............................................................................................................ 418 COD. 2434............................................................................................................ 421 COD. 2438............................................................................................................ 426 COD. 2442............................................................................................................ 429 COD. 2443............................................................................................................ 431 COD. 2444............................................................................................................ 433 COD. 2445............................................................................................................ 434 COD. 2449............................................................................................................ 436 COD. 2451 (e 2034) ............................................................................................. 437 COD. 2452............................................................................................................ 438 COD. 2457............................................................................................................ 440 COD. 2459............................................................................................................ 441 COD.: 4010........................................................................................................... 442 COD. 4017............................................................................................................ 444 COD. 4018............................................................................................................ 446 COD. 4019............................................................................................................ 448 COD. 4024............................................................................................................ 448 COD. 4025............................................................................................................ 450 COD. 4030............................................................................................................ 451 COD. 4031............................................................................................................ 454 COD. 4770............................................................................................................ 457 COD. 4943............................................................................................................ 458 COD. 5043............................................................................................................ 459 COD. 5068............................................................................................................ 460 COD. 5084............................................................................................................ 461 COD. 5137............................................................................................................ 462 COD. 5477............................................................................................................ 464 COD. 6045............................................................................................................ 464 COD. 7682............................................................................................................ 465
Documento 14. Manuscritos de Matemtica da BNP. ............................................. 467 COD. 2378. Cristoforo Borri................................................................................ 467 COD. 2260............................................................................................................ 473
Documento 15. Giovanni Paolo Lembo. .................................................................. 490 Documento 16. Manuscritos de Lgica da BGUC................................................... 497 Documento 17. Manuscritos de Lgica da BPE....................................................... 499
C. Documento 18. Teses da BCM (primeira metade do sculo XVIII) ....................... 501 D. Tradues................................................................................................................. 505
Documento 19. Alessandro Piccolomini .................................................................. 505 Documento 20. Sebastio do Couto ......................................................................... 514
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BIBLIOGRAFIA.......................................................................................................... 521
A. Edies de referncia de autores da Antiguidade ................................................ 521 B. Manuscritos.......................................................................................................... 521 C. Teses e Concluses: ............................................................................................. 523 D. Impressos dos sculos XV-XVII ......................................................................... 524
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NDICE DE FIGURAS Figura 1........................................................................................................................... 48 Figura 2........................................................................................................................... 50 Figura 3........................................................................................................................... 92 Figura 4......................................................................................................................... 170 Figura 5......................................................................................................................... 171 Figura 6......................................................................................................................... 172 Figura 7......................................................................................................................... 174 Figura 8......................................................................................................................... 215
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INTRODUO GERAL
1. rea cientfica. Mtodo.
A tese que se apresenta situa-se na rea de interseco de duas reas cientficas
com objectos e mtodos usualmente considerados autnomos. Uma aquela a que
genericamente chamamos estudos clssicos e que se construiu a partir da filologia,
disciplina com longa histria e bem implantada nas universidades de todo o mundo. A
outra aquela a que hoje chamamos histria da cincia. Esta ltima bem mais recente,
mas a envergadura intelectual dos seus fundadores atribuiu-lhe lugar prprio no
conjunto dos saberes praticados na universidade. As duas fundem-se nesta tese, porque
para mim nunca constituram universos separados.
De ambas importei os mtodos e as sensibilidades, excluindo as caractersticas
to especficas de cada uma que s podiam causar estranheza na outra. Por outras
palavras, procurei na histria da cincia aquilo que ela tinha de estudos clssicos e
filologia e nos estudos clssicos busquei aquilo que podia conceder cincia o sentido
mximo numa busca cultural. Este sincretismo no de todo difcil de conseguir desde
que se considere que o conceito de cincia vigente durante tantos sculos no o actual,
experimental, emprico e fsico, mas um outro, discursivo, demonstrativo e metafsico;
numa palavra, o modelo clssico de cincia, de que falarei logo no primeiro captulo
deste trabalho. Por um lado, deve reconhecer-se que uma larga parte da histria da
cincia pertence aos estudos clssicos, seja no que respeita ao objecto de estudo, seja no
que respeita ao mtodo. Reconstruir a histria das ideias em cincia significa reconstruir
o percurso dos textos cientficos, verificar a evoluo da sua forma e contedo, do seu
suporte, dos seus leitores e escritores, etc. Por outro, convm ter presente que os
mtodos filolgicos so actualmente insuficientes para o ataque ao estudo histrico da
cincia.
No trilho caminhos novos, apenas observo uma tendncia recente mas
estruturalmente implantada. Nomes to importantes como E. J. Dijksterhuis, Wilbur
Knorr ou Marshall Clagett reclamam semelhante estatuto nos estudos clssicos e na
histria da cincia e os melhores estudos sobre alguma da melhor cincia da antiguidade
provm de investigadores de reas muito dspares. Sobre Euclides ou Arquimedes, as
contribuies de consulta obrigatria tm vindo de filsofos (Ian Mueller), classicistas
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2
(Reviel Netz), matemticos/fsicos (Dijksterhuis). A lista prosseguiria sem esforo,
quisssemos continu-la.
Tanto na rea dos estudos clssicos como na da histria da cincia, h uma
enorme amplitude na variedade de mtodos e objectivos. Este trabalho procura oferecer
uma histria das ideias ao longo de diversos sculos. A perspectiva, portanto, nunca foi
filosfica, mas histrica e cultural. Da a procura de rigor na indicao e interpretao
das fontes e a pesquisa sobre o contexto social e cultural onde as ideias circulam.
Sachiko Kusukawa especifica como a histria das ideias tem sido enriquecida com
novos e diversos mtodos interpretativos. A propsito da histria da filosofia, refere:
More recently, sociological and cultural approaches to the history of philosophy have emerged. They
associate the succession of philosophical ideas, concepts and systems with their respective cultural,
political, social, religious and institutional contexts. Within this approach, sociological questions can be
raised and sociological methods applied. Thus, the arguments, theories, and reasons can themselves be
viewed as social entities. They correlate with particular communities of philosophers, which have
distinctive social structures, and which exercise personal, political, religious, scientific, and cultural
influences on its members. As for the real or virtual loci of such communities, we must in particular look
at universities, medieval and Renaissance courts, early modern academies, and the novel genre of
scholarly journals invented in the late seventeenth century1.
Com as devidas adaptaes, foi esta a perspectiva que adoptei para o trabalho
que se apresenta.
Como rea recente que , a Histria da Cincia tem debatido intensamente
questes relacionadas com o seu objecto e mtodo. Este estudo oferece um case study
que toma algumas opes no mbito destes debates. Destaco trs. Em primeiro lugar
penso ficar clara uma defesa da perspectiva continuista da evoluo histrica da
cincia, feita de sucessivos pequenos passos e mudanas suaves ao longo das geraes,
que contrasta com a perspectiva descontinuista e revolucionria. Os grandes homens e
os espritos de sntese descem do seu pedestal e so realadas as comunidades
intelectuais que os suportaram aos ombros. Ficar tambm patente a abordagem
internalista, filologicamente centrada no texto. Sem deixar de fora o contexto social e
histrico-cultural, no se dispensa a procura de as respostas fundamentais no
pensamento e nas ideias dos autores e das comunidades intelectuais. Finalmente, por
vezes a evoluo histrica de um pequeno detalhe pode servir para ilustrar uma imensa
1 Kusukawa, 2005.
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transformao mental; ou seja, por vezes, o recurso micro-anlise no representa
distraco do fio condutor mas programtica e visa fortalecer a tese.
2. Objecto.
O ttulo da tese (O estatuto da matemtica em Portugal nos sculos XVI e
XVII) pode enganar o leitor no especialista. A palavra-chave parece ser
matemtica, mas o que o leitor encontra tambm a histria e a evoluo de uma
teoria da cincia construda pelos Gregos e cristalizada nos Segundos Analticos de
Aristteles. A verdade que determinar o estatuto de uma cincia obriga construo
de um modelo de cincia com o qual aquela possa ser contrastada. Por outro lado,
obriga a uma comparao com outras cincias no mbito daquele paradigma.
A matemtica teve sempre uma especial relao com a teoria da cincia
aristotlica, mas a forma como as duas se cruzam no sculo XVI e XVII transformou a
cultura ocidental. Paolo Mancosu sintetiza este cruzamento da seguinte forma:
Among the factors which played a role in the birth of Galilean science is the process of critical
revision of Aristotelian philosophy which took place during the fifteenth and the sixteenth centuries. As
part of this process must be included the sixteenth-century reflection on the epistemology of
mathematics. Within the background of Aristotelian philosophy a number of issues were raised about the
nature of mathematics which led some authors (e.g. Piccolomini, Catena, Pereyra) to the paradoxical
thesis that mathematics is not a science. These positions, understandably, generated the reactions of other
authors (e.g. Barozzi, Biancani, Tomitano) who tried to reinstate mathematics into the framework of
Aristotelian science2.
A reflexo sobre a epistemologia da matemtica uma parte fundamental do
processo de construo da cincia moderna. Foi ela que causou esta alterao cultural de
fundo: a matemtica sobrevive como parte fundamental do currculo escolar, mas a
teoria da cincia aristotlica no. Esta tese pretende clarificar o processo que levou a
este estado de coisas. Este trabalho no apenas sobre o estatuto cientfico da
matemtica, mas sobre o declnio e substituio de um modelo de cincia devido
fundamentalmente ao desenvolvimento daquela disciplina.
A questo epistemolgica sobre o estatuto da matemtica existe desde os
Gregos, mas relanada no sculo XVI por Alessandro Piccolomini, acima referido por 2 Mancosu 1992, 241.
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Mancosu. A partir do ttulo da obra que dedicou ao tema, os historiadores passaram a
designar o debate como a quaestio de certitudine mathematicarum ou, abreviadamente,
no mbito da matemtica, a quaestio. Esta designao ser usualmente utilizada nesta
tese, mas preciso realar que no h nem nunca houve uma questo sobre a certeza da
matemtica. A questo foi sempre a da cientificidade da matemtica, ou seja, a da sua
adequao ao modelo aristotlico de cincia.
3. Ponto da situao.
O tema to vasto e to relevante que, embora j tenham passado mais de trs
dcadas desde o incio do seu estudo, continua longe de estar esgotado, sendo admitido
entre os especialistas que o seu significado completo ainda no de todo conhecido. O
avolumar dos estudos dificulta cada vez mais, com o passar dos anos, uma viso
compreensiva do tema. Isto leva a que se torne j habitual a existncia de uma breve
histria da bibliografia nas abordagens mais modernas, que facilitam a delimitao do
tema e da prpria bibliografia e permitem avaliar os avanos entretanto realizados. Estas
anotaes tendem a ser complementares, nunca so exaustivamente completas e contm
alguns lapsos. Menciono as principais: Paolo Mancosu (1992, 242), DellAnna (1992b,
24-25 n. 1-3), Anna de Pace (1993, 17 n. 10), Antonella Romano (1999, 154), Frederick
A. Homann (1999, 13). Vejamos o que a scholarship em torno do tema j descobriu.
Quem primeiro indicou a existncia da quaestio foi Neal W. Gilbert, na sua
monografia de 1960 sobre o mtodo em autores da renascena. Alm de traar a
evoluo do significado do prprio termo mtodo, aponta as fontes antigas e
medievais de onde partiu, depois, a reflexo dos humanistas sobre o tema3. Neste estudo
integrou trs pequenos mas preciosos sub-captulos onde aponta as consequncias da
reflexo metamatemtica dos sculos XV e XVI para a filosofia e para a metodologia4.
Gilbert o primeiro a identificar alguns dos intervenientes da quaestio, indicando os
nomes de Alessandro Piccolomini, Francesco Barozzi, e Benito Pereira (que designa
pelo nome latino Benedictus Pererius e que confunde, alis, com o portugus Bento
Pereira). Alm disso, aponta as principais razes para o desenvolvimento desta
3 Gilbert 1960. 4 Os captulos apresentam os seguintes ttulos: Method in the Quadrivium: the Recovery of Greek Mathematical Works (pp. 81-83); Humanist Promotion of Mathematics in the Schools (pp. 83-86) e The influence of the new interest in mathematics upon the aristotelian theory of scientific demonstration (pp. 86-92).
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controvrsia de teor metamatemtico nos sculos XV e XVI: no sobrevivncia, no
corpus aristotelicum de uma obra de matemtica ou com uma teoria completa e
coerente de filosofia da matemtica, a posterior falta de comentadores dos Segundos
Analticos com suficiente competncia matemtica; crescente profissionalizao da
matemtica e recuperao dos textos de matemtica grega nos sculos XV e XVI.
Gilbert tambm compreendeu o problema fundamental, que identifica com a
discusso da adequao do procedimento dos matemticos, sobretudo dos gemetras,
teoria da cincia aristotlica. Finalmente, sugere o motivo da dissoluo do debate, que
identifica nestas trs causas: a produo de uma interpretao de Aristteles plausvel e
consistente por parte de Isaac Barrow, professor de Isaac Newton, o aparecimento da
anlise cartesiana que serviu de guia psicolgico para a investigao, deixando de ser
importante justificar o enquadramento aristotlico e, finalmente, a mudana da pesquisa
matemtica a partir do sculo XVI, que substituiu o esprito do rigor pelo da livre
imaginao. As suas linhas de pensamento lanaram fundo as sementes de uma busca
que se revelou mais rica e complexa do que ele prprio poderia ter imaginado e que
ainda no deixou de produzir frutos.
Na dcada de setenta o tema abordado de forma autnoma por Giulio Cesare
Giaccobe, que dedica grande parte do seu trabalho de investigao ao estudo deste tema.
Alm de artigos de mbito geral, publica outros sobre indivduos especficos com
interveno no debate. Em cada um destes artigos apresenta uma biografia e uma
bibliografia, oferecendo de seguida aquilo que poderamos designar de parfrase
comentada dos textos que abordam a temtica. Alm dos autores j referidos por Gilbert
(A. Piccolomini, Francesco Barozzi e Benito Pereira), acrescenta o nome de Pietro
Catena e Giuseppe Biancani5. Um programado estudo sobre os conimbricenses,
mencionados por Biancani, fica por fazer.
O seu grande mrito o de ter dado a conhecer pela primeira vez o contedo
destes textos, mas tem vindo a ser criticada a leveza da sua anlise, os seus frequentes
erros e a sua metodologia, assente numa micro anlise textual que evita o tratamento das
influncias sociais e institucionais, ou seja, dos aspectos externos da questo6. Uma
outra falha deve ser acrescentada; consiste ela no seu pouco aprofundamento filolgico, 5 Os artigos sobre personagens especficos correspondem a Giacobbe 1972a, 1972b, 1973a, 1976, 1977. Artigos sobre o tema em geral: Giacobbe 1973b, 1974. Pietro Catena mereceu estudo particular, com edio das obras relevantes para o assunto em Giacobbe 1981, e a respectiva biografia no DBI corresponde a Giacobbe 1995. Alguns destes autores haviam sido j referidos noutro estudo seminal, mas muito ultrapassado: Crapulli 1969. 6 De Pace 1993, 22 n. 2 e Romano 1999, 154 n. 59.
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6
que no analisa fontes, no busca as citaes em contexto para verificar intenes de
autor e significado global da sua apropriao num perodo de redescoberta de textos,
sem compreender que a discusso resulta tambm de uma releitura de autores do
passado. O prprio Giaccobbe assume a ausncia da vertente filolgica e justifica-a
considerando que o problema epistemolgico no tratado explcita e sistematicamente
antes do sculo XVI; no seu pensamento s a continuidade justificaria a anlise
filolgica:
Ci che si preme invece mettere in luce che la questione filologica non presenta in questa sede
unimportanza tale da giustificare uno studio sistematico di verifica. Ci che a noi qui interessa, infatti,
non tanto il fondamento delle citazioni riportate dal Piccolomini, e quindi leventuale attegiamento degli
antichi commentatori ne riguardi di un problema epistemologico che, come sappiamo, probabilmente non
venne affrontato esplicitamente e sistematicamente prima del Cinquecento, bens proprio ci che nel
Cinquecento si pens a proposito della capacit epistemologica della matematica, nella convizione, gi
espressa, che tale ordine di riflessioni fosse destinato, tra gli altri, a fare da supporto alla rivoluzione
scientifica Galileiana.7
O argumento de Giacobbe no tem fundamento, porque sabemos hoje que o
problema epistemolgico tratado muito antes do sculo XVI. De qualquer forma,
estudos posteriores vieram a colmatar esta lacuna, mas de forma incompleta.
Na mesma dcada outros autores conceituados abordaram o tema inscrevendo-o
em anlises de fronteiras mais abrangentes, mostrando que o debate foi elemento chave
no desenrolar de um processo mais amplo de renovao efectuada a todos os nveis
sobre o pensamento matemtico. Paolo Galluzzi discute-o a propsito da corrente
platonista do sculo XVI; Giuseppe Cosentino, a propsito da situao do ensino da
matemtica nos colgios jesutas; Paul Lawrence Rose, no seu importante estudo sobre
a renascena matemtica; Alisdair A. Crombie, ao estudar o lugar dado matemtica e
ao platonismo nas universidades italianas e na poltica de educao jesuta8. Alguns
destes estudos seminais mantiveram a sua importncia e acabaram por ser novamente
editados nos ltimos anos9. Os intervenientes principais e as instituies envolvidas
ficaram conhecidos, algumas fontes parcialmente traduzidas e analisadas e tornou-se
claro que o debate no se circunscrevia s pessoas envolvidas, mas participou num
7 Giaccobbe 1972, 168 n. 19. 8 Galluzzi 1973, Cosentino 1999 (pela primeira vez publicado em 1970), Rose 1975 (sobretudo no captulo 12, pp. 280-294), Crombie 1996b (primeiro publicado em 1977). 9 o caso do estudo de Cosentino e do de Crombie.
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processo histrico autnomo e com vitalidade prpria, afectando instituies e polticas
educativas.
Na dcada de oitenta alarga-se o nmero de indivduos conhecidos participantes
na questo. Giuseppe Moleto e Bernardino Tomitano so objecto de estudo de
comunicaes apresentadas no importante colquio Aristotelismo veneto e scienza
moderna, outros, como Francesco Buonamici, professor de Galileu em Pisa, so
tratados em estudos autnomos10. Surgem tambm os primeiros estudos sobre os
percursores e antecedentes do debate11.
O papel dos docentes da Universidade de Pdua foi mais bem escrutinado; pela
primeira vez, analisaram-se os prefcios de alguns textos matemticos luz da
controvrsia. Frederick A. Homann quem destaca o valor destas fontes, publicando
um estudo conjunto dos prefcios das edies de Euclides de H. Billingsley, F.
Commandino e C. Clvio, editadas entre 1570 e 157412. Em conjunto estas obras
marcam o culminar de um processo de restaurao dos Elementos de Euclides e vo
muito alm da geometria ao balizar o contedo na reflexo metodolgica e
epistemolgica. Em 1988 surge o conhecido captulo de sntese sobre o assunto na
Cambridge History of Renaissance Philosophy, que pode ser usado como introduo ao
tema, pela forma simples e compreensiva com que o aborda13.
O trabalho j realizado, a acumulao de material investigado e os resultados
entretanto alcanados alavancaram, na dcada de noventa, outras perspectivas e
abordagens, que permitiram compreender de forma diferente o significado do debate. A
hermenutica filosfica de Anna De Pace oferece uma melhor compreenso do
pensamento de alguns intervenientes do cinquecento italiano (Piccolomini, Barozzi,
Catena, Tartaglia e Jacopo Mazzoni)14; Antonella Romano produziu o primeiro estudo
10 As actas do colquio so editadas por Carugo 1983a. Os autores referidos so tratados nas actas em Carugo 1983b (Giuseppe Moleto) e Daniele 1983 (Bernardino Tomitano). Em Helbing, Mario Otto, La filosofia di Francesco Buonamici, professore di Galileo a Pisa, Pisa, Nistri-Lishi, 1989 (col. Cultura e storia pisana 8) discute-se o papel de Francesco Buonamici no debate nas pp. 90-93. No pude consultar este ttulo de forma satisfatria, mas fica aqui a indicao bibliogrfica. 11 Vescovini 1983, Olivieri 1983b. 12 Homann 1983. Estas edies de Euclides so muito dissemelhantes entre si: Billingsley publica uma traduo inglesa, Commandino uma edio latina, Clvio uma edio latina comentada enciclopedicamente. Todas, no entanto, se preocupam profundamente com os alicerces metodolgicos da cincia geomtrica. De notar, como , de resto, conhecido, que o prefcio edio inglesa, da autoria de John Dee, se tornou mais famoso que a restante parte da obra, sendo hoje continuamente republicado autonomamente. 13 Jardine 1988b. 14 De Pace 1993.
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sobre o ensino da matemtica nos colgios jesutas franceses entre 1540 e 164015; Mario
Biagioli ensaiou a investigao do significado social do debate16; finalmente, Paolo
Mancosu pretendeu mostrar a) o alargamento do horizonte temporal e geogrfico do
debate at ao final do sculo XVII e at pases como a Polnia, b) o efeito do debate na
prtica matemtica17.
Da resenha apresentada sobre o trabalho desenvolvido at ao presente podemos
tirar algumas ilaes. Em primeiro lugar, claro que possumos hoje um quadro
alargado dos indivduos envolvidos, das instituies afectadas, do horizonte temporal
abrangido e um incompleto esboo de hiptese sobre causas, antecedentes e efeitos. Em
segundo lugar, dispomos de uma amostra das abordagens possveis, desde anlises
internalistas a externalistas, desde interpretaes textuais, a estudos epistemolgicos,
sociais, institucionais, etc. Em terceiro lugar, possvel observar as limitaes do que
est feito e determinar o que est por fazer: falta estudar sistematicamente cada uma das
regies do espao europeu e verificar o papel do debate na criao de uma cultura
cientfica europeia unificada. Mais importante ainda: a grande fatia das fontes estudadas
at agora constituda por impressos18. Ora, sabemos que as questes debatidas eram
objecto de ensino e por isso a fase seguinte passar necessariamente por uma
inventariao do material manuscrito que aborda o tema nos mais diversos pases. A
investigao est, portanto, muito longe de terminar.
Infelizmente, a produo dos estudiosos nacionais no acompanhou o esforo
internacional de interpretao deste fenmeno e desvalorizou a contribuio dos autores
portugueses para este debate. Os grandes historiadores da cultura portuguesa dos
sculos XVI-XVII no abordam seno casualmente o tpico, quando tropeam em
alguma vaga aluso de algum autor ao tema, mas mesmo quando o fazem, dispensam
uma explicao do contexto, que mostram desconhecer. Basta lembrar, como exemplo,
que, num estudo to importante como Os Descobrimentos e a problemtica cultural do
sculo XVI de J. S. Silva Dias, o tpico nunca mencionado19. Os historiadores da
Companhia de Jesus tambm tm falhado o estudo de um tpico que obriga a analisar
contedos de manuscritos em pormenor. Ele no referido em parte alguma por
Domingos Maurcio Gomes dos Santos, Francisco Rodrigues, ou Antnio Alberto
15 Romano 1999. 16 Biagioli 1989, 2003. 17 Mancosu 1991, 1992 e 1996. 18 Romano 1999, 154. 19 Silva Dias 1988.
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Banha de Andrade, autores que estudaram o ensino da matemtica nos colgios jesutas
portugueses20. Apenas muito recentemente surgiram os primeiros artigos, da autoria de
Lus Miguel Carolino e Henrique Leito, onde so analisados, no quadro do debate,
alguns autores portugueses ou ligados cultura portuguesa, como Diogo de S,
Sebastio do Couto, Cristoforo Borri ou Joo Delgado. No entanto, o nmero de fontes
investigadas em nmero claramente insuficiente para se ter uma ideia geral do impacte
em Portugal.
O desconhecimento do assunto no meio acadmico tem tido efeitos negativos na
investigao da cultura portuguesa a dois nveis. Por um lado, o significado da obra de
alguns autores tem sido erradamente interpretado e a sua importncia subavaliada; por
outro, a compreenso do que foi a participao de Portugal no processo da Revoluo
Cientfica tem sido incompleta e enviesada.
esta lacuna que esta tese pretende colmatar. Em primeiro lugar, ela pretende
revelar materiais que permanecem desconhecidos do pblico e mal estudados pelos
investigadores. Em segundo lugar, pretende interpret-los, de forma a perceber o que
eles importam e exportam do meio cultural europeu a que pertencem e qual o seu papel
no processo de desenvolvimento da moderna cultura cientfica.
4. Objectivos e estrutura.
Neste trabalho, pretende-se a) reinterpretar a ideia histrica que se tem do debate
sobre o estatuto cientfico da matemtica; b) determinar o contributo dos autores
nacionais para o debate e para a construo da moderna cultura cientfica portuguesa e
europeia. Para isso, so defendidos cinco pontos fundamentais:
1. Ao contrrio do que usualmente se pensa, o debate sobre o estatuto cientfico
da matemtica no surge no sculo XVI. Antes nasce espontaneamente da leitura e
interpretao do sistema filosfico aristotlico. Este sistema prope implicitamente a
discusso, mas nunca a esclarece. Como o corpus aristotelicum se torna o principal
instrumento pedaggico utilizado nas sucessivas instituies de ensino na Europa, o
tpico assegura um meio de transmisso duradouro, abrangente e firmemente enraizado.
Isto no invalida a ideia de que no sculo XVI o debate se dramatiza e se destaca entre
20 Veja-se, p.e., Rodrigues 1931-1950; Gomes dos Santos 1935 e 1936; Banha de Andrade 1945.
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os demais debates que estiveram na origem do processo que produziu a moderna cultura
cientfica. As causas desta dramatizao so apresentadas e discutidas.
2. O debate histrico fica resolvido na primeira metade do sculo XVIII e o seu
desenlace eficaz e convincentemente compreendido por aplicao do modelo de Kuhn.
bem sabido que a revoluo cientfica foi no s uma revoluo na cincia, mas
tambm uma revoluo na epistemologia da cincia. O modelo de cincia aristotlico
actuou como um paradigma (num sentido genericamente Kuhniano), que unificou as
cincias; contudo, o acumular de excepes ao modelo exigiu e provocou a sua
substituio. Veremos ao longo da tese que no apenas a inadequao da matemtica ao
modelo, mas tambm a da teologia e de outros saberes, como o direito, inclusivamente,
forou a substituio do modelo e eliminou a razo de ser do debate.
3. H uma discusso genrica, vaga e no sistemtica sobre o estatuto cientfico
da matemtica no meio universitrio e letrado portugus ao longo do sculo XVI, mas
foram os Jesutas os verdadeiros responsveis pela introduo e divulgao do debate
em Portugal, a partir do terceiro quartel do sculo XVI. Em todos os seus colgios, o
tema era discutido nas aulas de lgica do primeiro ano do curso de filosofia e na
introduo dos cursos de matemtica. As bibliotecas jesutas portuguesas mostram a
importncia que o debate tinha na altura porque possuam as obras de todos os autores
nele intervenientes (Piccolomini, Giuseppe Biancani, Benito Pereira, Clvio, etc.). Os
Jesutas portugueses em particular tiveram uma contribuio significativa para a
discusso a nvel nacional e a nvel internacional. Por um lado, a Aula de Esfera possui
uma ligao institucional muito forte com a Academia de Clvio e, por conseguinte, ao
Colgio Romano; por outro, os Conimbricenses produziram um textbook com uma
proposta de interpretao da teoria da cincia aristotlica que teve ampla utilizao em
todos os colgios da Companhia. preciso realar a dimenso do debate no nosso pas;
apenas possvel devido envergadura intelectual dos seus protagonistas e ao generoso
suporte institucional que lhes foi concedido pelas mais reputadas estruturas de ensino
jesutas locais, nomeadamente, pelo Colgio das Artes (Coimbra), pela Universidade de
vora e pela Aula de Esfera (Lisboa). Esta ltima tem uma importncia particular na
construo do debate portugus, porque criou o nico ncleo de matemticos que pde
sustentar socialmente a oposio argumentao antimatemtica.
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11
4. Em Portugal, ao longo do sculo XVII, predominam as teses antimatemtica
dos filsofos Conimbricenses. A leitura usual, com poucas excepes, pretende que o
resultado do debate epistemolgico sobre o estatuto da matemtica afectou
negativamente o ensino e a prtica da disciplina em Portugal. No entanto, embora haja
uma evidente correlao entre o debate epistemolgico e a prtica da disciplina, nenhum
dado objectivo parece provar taxativamente a existncia deste nexo de causalidade.
Prefiro, por isso, destacar duas ideias diversas. Em primeiro lugar, que se pode dizer
que a defesa da matemtica empreendida pelos matemticos da Aula de Esfera nunca
vingou devido difcil implantao do estudo da disciplina nos colgios jesutas do
territrio nacional; em segundo lugar, que a Aula de Esfera nunca conseguiu criar
matemticos de qualidade em nmero suficiente que pudesse competir em estatuto e
influncia com os Conimbricenses. Veremos que os docentes da Aula de Esfera
conseguiram influenciar o discurso dos filsofos entre 1590 e 1606, que deixaram de o
conseguir fazer na primeira metade do sculo XVII, embora tenham mantido sempre o
discurso pr-matemtica activo e que, depois dessa altura, a Aula de Esfera perdeu fora
institucional. A quebra de influncia da Aula tem dois momentos. A partir de 1606, a
publicao do ltimo dos comentrios conimbricenses obra aristotlica evidencia que
a posio epistemolgica dos Conimbricenses vencedora: possui um estatuto superior,
uma argumentao mais slida e uma interpretao aparentemente mais aproximada do
contedo fundamental do texto aristotlico. Por outras palavras, a tese antimatemtica
predomina no mbito epistemolgico porque o texto de Couto prope uma soluo
superior. A partir de meados do sculo XVI no h mais traos de influncia dos
matemticos porque a fragilidade no ensino da matemtica em Portugal nunca permitiu
uma divulgao das teses a favor da disciplina que pudesse competir com a dos
conimbricenses.
5. No final do sculo XVII, deu-se uma reviravolta na situao: os filsofos
deixam de se pronunciar contra a matemtica e os matemticos impem as suas teses.
No entanto, a dissoluo final do debate em Portugal no de ordem epistemolgica e
foi abrupta, ao contrrio do que parece ter-se verificado nos restantes pases, onde a
teoria da cincia e a matemtica evoluram convergentemente. No nosso pas, a
dissoluo do debate radica numa alterao de poltica educativa com origem no
exterior do nosso pas e nas mais altas esferas da hierarquia da Companhia.
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A tese tem duas partes fundamentais. Na primeira, analisa-se o desenvolvimento
do debate desde Aristteles at ao sculo XVIII, procedendo-se a uma reorganizao e
reinterpretao de ideias que se encontram dispersas em diversos estudos modernos. Ao
longo destes vinte e dois sculos, ainda no totalmente clara a linha evolutiva da
discusso. No entanto, a partir dos estudos j feitos, possvel identificar trs momentos
chave. O primeiro corresponde ao perodo da antiguidade que se estende de Aristteles
e Euclides (sculo IV-III a.C.) a Proclo (sculo V). O segundo corresponde ao perodo
que decorre desde a redescoberta dos Segundos Analticos, por volta do sculo XII, at
ao final do sculo XV. nesta altura que o tema recuperado e introduzido num recm-
criado quadro institucional: o das universidades. O terceiro momento corresponde aos
sculos XVI e XVII, que quando uma diversidade de factores, como o
desenvolvimento da matemtica em ambiente universitrio ou o movimento mais
genrico de renascena introduz novos desenvolvimentos na discusso e lhe coloca um
fim.
Por esta razo, a estrutura desta parte da tese tripartida. O primeiro captulo
debrua-se sobre as correntes de pensamento da Antiguidade Clssica que contriburam
para a estruturao do debate. Comea-se por descrever o modelo de cincia exposto
nos Segundos Analticos de Aristteles e realar a inexistncia de uma filosofia da
matemtica unificada no Estagirita. Segue-se uma breve exposio sobre os Elementos
de Euclides, que procura realar como esta obra complementa a de Aristteles.
Analisam-se depois os textos de Proclo, Ptolomeu e outros autores, que contribuem para
o debate no sculo XVI de forma particularmente vincada. Neste captulo, mostrarei que
os textos de todos estes autores propem uma formulao epistemolgica nica e que
no mbito desta que foram interpretados ao longo dos sculos. Mostra-se tambm que
desta formulao epistemolgica brota naturalmente a discusso em torno do estatuto
cientfico da matemtica e procede-se explicao dos principais argumentos
esgrimidos no quadro do debate.
O segundo captulo mostra como, depois de um perodo inicial em que a
Universidade assimila o contedo dos textos de Aristteles e Euclides, o debate sobre o
estatuto da matemtica ressurge vigorosamente no sculo XIV, nos principais centros de
investigao europeus: Oxford, Paris e Pdua.
O sculo XVI oferece ao debate uma nova dinmica, fruto de desenvolvimentos
histricos to importantes como o humanismo, o renascimento matemtico, a
descoberta dos textos antigos e de Proclo ou o desenvolvimento da fsica matemtica. O
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13
principal centro onde o tpico estudado Pdua. A revoluo no ensino mdio
operada pelos Jesutas divulga-o pela Europa fora. O terceiro captulo debruar-se-
sobre estas vicissitudes.
A segunda parte da tese concentra-se no estudo do caso portugus e est
dividida, por sua vez, em mais duas partes. A primeira diz abarca o perodo de vida de
Pedro Nunes (1502-1578), altura em que no debate intervm intelectuais cultos, com
ligaes Corte ou Universidade. A segunda parte abarca o perodo seguinte, at ao
final do sculo XVII, quando a maior parte dos intervenientes so Jesutas. Nesta, o
primeiro captulo debrua-se sobre o perodo que se estende desde a fundao dos
primeiros colgios at fundao da cadeira de matemtica em Santo Anto, a segunda
estende-se, depois, at publicao do ltimo comentrio dos conimbricenses e a ltima
abarca o perodo que decorre at 1692. No final, uma excurso por teses matemticas da
primeira metade do sculo XVIII mostrar o resultado da reforma matemtica iniciada
em 1692 na resoluo do debate.
5. O apndice documental
O estudo completado com um apndice documental. Nele esto includos os
documentos fundamentais consultados para a produo do estudo acima apresentado.
Para no alargar excessivamente o mbito deste apndice, observaram-se alguns
parmetros limitadores, que foraram a excluso de textos que:
a. so anteriores ao sculo XVI (p.e. Plato, Aristteles, Proclo, Jean Buridan,
Alberto da Saxnia)
b. possuem edies modernas, considerando-se como modernas aquelas
posteriores a 1900 (p.e. Pietro Catena, Joo Delgado);
b. so alheios tradio portuguesa;
c. possuem importncia local e influncia circunscrita a um pequeno crculo de
conhecedores do autor, fora de Portugal;
d. no tratam o tema de forma sistemtica (Pedro Nunes, Fernando Oliveira);
e. so objecto de edio/traduo em curso (Diogo de S).
Depois dos critrios que excluem e limitam, uma breve referncia aos critrios
que incluem e inscrevem.
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14
Ao longo do estudo h um esforo constante em precisar o lugar filolgico
prprio do debate, ou seja, o lugar dos impressos e manuscritos dos sculos XVI e XVII
especificamente dedicado ao tpico. A bibliografia consultada indicava pistas, mas a
verdade que este ponto essencial nunca havia sido determinado com preciso. Ao
longo da investigao no foi sempre claro, por isso, onde se poderiam encontrar os
trechos mais importantes sobre o assunto. Em boa verdade, no havia sequer a certeza
de que houvesse este especfico locus filolgico. Complicava a soluo deste problema
especfico o facto de ser muito fcil encontrar aluses breves ao tpico em muitssimas
obras de teor muitssimo diverso e de, no sculo XVI, ele ser abordado em muitas obras
autnomas. S depois de muitas fontes consultadas foi possvel chegar concluso de
que aquele lugar existia de facto, com algumas variaes em cada poca. A existncia
deste locus refora a unidade constituda em torno da teoria da cincia aristotlica e a
matemtica euclidiana. O que se verifica que o tpico da cientificidade da matemtica
se encontra discutido quando se aborda a complicada definio de cincia nos
comentrios e aulas sobre os Segundos Analticos, no seguimento da discusso sobre o
conhecimento de base que se deve possuir em cada disciplina, vulgarmente tratado em
captulo com o ttulo De Praecognitis. Isto no faz que o tema seja excludo dos
comentrios fsica ou metafsica aristotlica, mas aqui a sua presena acidental, ali
estrutural. A matemtica , com efeito, a primeira disciplina especfica referida na dita
obra do Estagirita. Um segundo lugar onde o tpico abordado o das introdues dos
cursos e obras matemticas, que se desenvolvem, a partir do sculo XVI, de acordo com
o modelo existente no comentrio de Proclo a Euclides.
So estas as fontes fundamentais utilizadas ao longo deste trabalho: os
manuscritos com lies sobre os Segundos Analticos e de matemtica. Os catlogos
existentes apresentam uma boa base de trabalho para conhecer os manuscritos de lgica
existentes nas principais bibliotecas e arquivos de Portugal, incluindo a Biblioteca
Pblica de vora, a Biblioteca Municipal Pblica do Porto, a Biblioteca de Braga, a
Biblioteca da Ajuda, o Instituto Arquivo Nacional Torre do Tombo, a Biblioteca Geral
da Universidade de Coimbra. Entre os catlogos que maior relevncia tiveram para a
construo deste trabalho, destaco os de M. Gonalves da Costa, Inditos...(cobre de
forma no exaustiva os manuscritos de filosofia da Biblioteca de Braga, BPE e BPMP);
Abel Gomes De Almeida e Sousa, Catlogo de Manuscritos..., Friedrich Stegmller,
Filosofia e Teologia, Maria Amlia Machado Santos, Manuscritos de Filosofia do
sculo XVI (cobre a biblioteca da Ajuda e parcialmente a BNP), Joo Pereira Gomes,
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15
Os professores de Filosofia da Universidade de vora ( um catlogo de professores
e no de manuscritos; contm uma pilha de informaes sobre um elevadssimo nmero
de manuscritos de diversas bibliotecas nacionais e estrangeiras e sobre os seus autores);
finalmente, destaco ainda o Catalogo dos Manuscritos da Bibliotheca Publica Eborense
ordenado com as descripes e notas do bibliothecario Joaquim Heliodoro da Cunha
Rivara e com outras proprias por Joaquim Antonio de Sousa Telles de Mattos21.
Deve notar-se que no existe at ao momento um catlogo exaustivo dos
manuscritos de lgica existentes na BNP. No facto despiciendo, porque esta
biblioteca possui o maior acervo nacional destes objectos e , por si s, suficientemente
representativa da cultura lgica portuguesa do sculo XVI. O trabalho de inventariao
destes materiais na BNP est em progresso e tive o privilgio de trabalhar com as mais
recentes listas dos mesmos22.
Para os manuscritos de matemtica, o trabalho mais importante o de Henrique
Leito: Appendix C: Scientific manuscripts from the S. Anto college...23
a partir destas listas que se identificaram os materiais a incluir no apndice
documental. Em primeiro lugar apresentam-se as transcries dos impressos
consultados, por ordem cronolgica da sua publicao. Seguem-se as transcries dos
manuscritos da Biblioteca Nacional, por ordem de cota. Apresentam-se depois as listas
dos manuscritos relevantes consultados na Biblioteca Geral da Universidade de
Coimbra e na Biblioteca Pblica de vora, instituies fundamentais por se localizarem
nas cidades onde se situavam tambm as escolas maiores jesutas. Termina este
apndice com uma lista de teses de matemtica j da primeira metade do sculo XVIII,
relevantes para a compreenso da soluo do debate sobre o estatuto da matemtica em
Portugal.
Apenas os manuscritos da Biblioteca Nacional mereceram transcrio. Eles so
suficientemente representativos e esta soluo concentrou o trabalho de edio de texto
numa instituio apenas. Os manuscritos consultados de vora e Coimbra surgem em
21 Veja-se Gonalves da Costa 1978; Almeida e Sousa 1942, Stegmller1959, Pereira Gomes 1960, Rivara-Mattos 1871, 253-256. 22 O inventrio dos manuscritos de lgica est a ser feito no mbito do projecto Patrimnio cientfico e cultura manuscrita. A coleco de manuscritos cientficos da Biblioteca Nacional, Lisboa. Este projecto de investigao resulta de uma parceria entre o Centro de Histria das Cincias da Universidade de Lisboa e a Biblioteca Nacional de Portugal, sendo financiado pela Fundao para a Cincia e Tecnologia (POCTI/HCT/58543/2004). Nele se pretende identificar, catalogar e estudar os manuscritos cientficos da Biblioteca Nacional, em Lisboa, desde a Idade Mdia at final do sculo XVIII. Como a teoria da cincia exposta nos manuscritos de lgica achou-se oportuno preceder tambm a um levantamento destes materiais. Para uma descrio geral, veja-se o URL: . 23 Leito 2004a.
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tabelas mas no foram transcritos. Os manuscritos consultados pertencentes a outras
bibliotecas (Biblioteca da Ajuda ou Biblioteca Pblica Municipal do Porto, por
exemplo) no esto includos em entrada autnoma neste apndice.
As transcries procuram aproximar-se o mais possvel do original. As pequenas
alteraes introduzidas visaram a) facilitar a leitura (para o que se desdobraram algumas
abreviaturas, sem preocupao de as assinalar); b) facilitar o trabalho de transcrio,
(para o que se optou por grafar, p.e, as nasais sobrescritas - aparecer sempre on
ou om- e eliminar as informaes esquemticas normalmente anotadas nas margens,
remetendo para nota de rodap apenas as que parecessem especialmente relevantes).
Ainda para simplificao da leitura e aligeiramento das notas de rodap,
corrigimos, sem indicao, erros nos impressos, decorrentes de evidentes gralhas
tipogrficas, como a troca de n por u (seutentiam, por sententiam), a duplicao
eventual de tipos, como em mathematiciis, por mathematicis, ou troca de letras,
como camparari, por comparari. De resto, permanecemos fiis grafia dos
impressos e manuscritos, distinguindo v e u, transcrevendo & por et e
mantendo inalterada a pontuao original e as abreviaturas, salvo casos pontuais.
Entre parntesis rectos ([]) anotmos a numerao das folhas e pginas,
observaes, correces; dificuldades de leitura so marcadas com ponto de
interrogao entre parntesis rectos ([?]); finalmente, so indicadas entre letras
ou slabas que se podem reconstruir mas que no esto no texto por lacuna ou gralha
evidente de edio.
O objectivo deste conjunto de transcries apenas o de disponibilizar textos de
difcil acesso e incluir informaes biogrficas, prosopogrficas ou descritivas, no
detalhadas no estudo, para no o alongar em excesso e, sobretudo, para no o
desencaminhar da sua linha fundamental.
Depois das transcries apresentam-se algumas tradues, que pretendem aliviar
o hermetismo e o carcter demasiado tcnico do latim em que a maior parte dos
documentos esto escritos; assim espera-se proporcionar um mais rpido acesso ao
ncleo da discusso sobre a matemtica levada a cabo num contexto epistemolgico to
diferente do nosso. Apresentam-se tradues de apenas dois autores: Alessandro
Piccolomini e Sebastio do Couto (dialctica conimbricense). Quatro razes
fundamentais concorrem para este efeito. Em primeiro lugar, destacamos o carcter
repetitivo dos textos tratados. A maior parte dos cursos de lgica, por exemplo,
reproduz de forma parafraseada o contedo do comentrio ao organon de Sebastio do
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Couto, esse sim, traduzido. Outro exemplo o do curso de matemtica de Borri,
decalcado do de Biancani. Em segundo lugar, o facto de se leccionar na Aula de Esfera
em Portugus, torna pleonstica a traduo de alguns textos. Esto nesta situao o
prlogo esfera de Clvio (traduzido por Lembo) e o texto de Semplio (traduzido ou
parafraseado no manuscrito BNP cd. 2260). Em terceiro lugar, a existncia de
tradues modernas de alguns dos autores tratados, e a sua (excelente) qualidade,
tornam redundante a sua traduo para Portugus. Este o caso, por exemplo, de
Biancani. A ltima razo reside no facto de os principais textos merecerem anlise,
discusso, parfrase e interpretao ao longo do estudo.
No se produz um discurso continuado, nem se faculta a informao necessria
para possibilitar uma leitura autnoma deste apndice. Ele deve ser considerado ancilar,
subsidirio e complementar ao estudo apresentado, pressupondo, por isso, a leitura
deste.
Estranhar-se-, porventura, a ausncia de um ndice de nomes no final. A
verdade que a tese no se presta a isso, porque a maior parte deles mereceria
inevitavelmente a indicao passim, que pouco ajudaria o leitor. Proponho duas
alternativas que sero at mais eficazes: a) os principais autores merecem anlise em
captulo autnomo e, por isso, podem ser facilmente localizados atravs do ndice geral;
b) acompanha a tese um pequeno CD-ROM com o texto em formato PDF, onde ser
muito fcil fazer pesquisas com total ausncia de erros.
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PRIMEIRA PARTE (de Aristteles Revoluo Cientfica)
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1. Correntes de pensamento da Antiguidade Clssica.
Na Grcia antiga, a matemtica desenvolveu-se como sistema axiomtico e
dedutivo ao mesmo tempo que se imps como disciplina cientfica de pleno direito. A
sua incluso no sistema do saber cientfico no foi, contudo, unnime, e desde cedo a
prtica da matemtica como cincia foi alvo de crticas e objeces. No se pode, por
isso, compreender o sucesso histrico desta disciplina, sem compreender que ele
dependeu, em larga medida, da capacidade de os matemticos se defenderem das
objeces que lhes foram endereadas ao longo da histria. A influncia da crtica da
matemtica no progresso da disciplina de enorme relevncia por trs razes. Em
primeiro lugar, porquanto nunca foi de carcter individual, mas empreendida por
escolas de pensamento e comunidades filosficas, incluindo tendncias to diversas
como a cptica ou a epicurista. Em segundo lugar porque a crtica se construiu de forma
sistemtica e pormenorizada, colocando objeces a todas as partes e aspectos do
discurso matemtico (princpios, construes, demonstraes, formulaes frsicas,
relao com outras disciplinas, relao com o mundo). Finalmente, pormenor no
despiciendo, porque se preservou uma memria histrica destas crticas que chegaram
at hoje, sendo particularmente relevantes nos sculos XVI e XVII, poca em que a
matemtica se imps de forma imparvel na cultura ocidental.
A argumentao em desfavor da matemtica constante desde que a disciplina
se formou, mas tem diferente alcance, motivao e efeito, conforme efectuada em
perodo pr-euclidiano ou ps-euclidiano. O primeiro perodo observa o esforo de
sistematizao do saber matemtico na Grcia antiga, que ocorreu em diversas fases e
em diferentes velocidades nos seus diversos ramos. Este esforo brota de uma
necessidade interna de consolidao da disciplina, mas tambm surge como resposta a
estmulos externos, fornecidos pelo contexto cultural em que se insere. Acontecimentos
como a descoberta dos nmeros irracionais podero ter infludo na tentativa de
sistematizao na matemtica, mas preciso compreender que esta tentativa anda a par
com a mesma necessidade de sistematizao em outros ramos do saber, como a
filosofia24. O discurso legitimador ou contra-legitimador da matemtica est presente
24 Seguimos a opinio que contraria a tese de que a descoberta dos incomensurveis conduziu a uma crise na matemtica. A incomensurabilidade pode ter levantado problemas em ontologia, mas dificilmente se pode compreender que possa ter causado problemas na matemtica, porque, pelo, contrrio, uma demonstrao extraordinria e encorajadora para futuro trabalho (veja-se a perspectiva geral em Lloyd 2003, 98).
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em discusses de filsofos, seja nos paradoxos de autores da escola eletica, seja em
Plato, seja em muitos outros, e est enquadrado num contexto socio-poltico que
fornece estmulos para uma reflexo sobre as tcnicas de validao do pensamento25. O
segundo momento abarca o perodo seguinte, de Euclides at aos nossos dias. A
matemtica considera-se organizada, os grandes nomes da matemtica grega
disponibilizaram para o mundo ocidental um corpus de textos que propem um
paradigma homogneo e parecem obedecer a um conjunto de requisitos epistemolgicos
unanimemente aceites, o que obriga ao estudo da teoria da cincia em que parecem
alicerar-se.
Ao mesmo tempo que as mais diversas disciplinas cientficas se organizaram na
Grcia antiga, desenvolveu-se a reflexo metacientfica, que teve o seu culminar na
teoria na cincia exposta nos Segundos Analticos de Aristteles. Ao longo dos sculos
e de forma mais visvel a partir da sua redescoberta no sculo XII, a prtica das
diferentes disciplinas cientficas e o modelo proposto por Aristteles criaram uma
dinmica prpria, intervindo uma na outra to profundamente, que no possvel
compreender os problemas colocados aos homens de cincia, sem atender a esta
complementaridade. Esta simbiose no passou despercebida aos estudiosos26. Em 1940,
J. H. Randall defendeu, em afirmao que ficou famosa, que the whole great literature
on method that fill the scientific writing of the 17th century is at bottom a series of
footnotes to the Organon of Aristotle27. Anos depois, E. J. Dijksterhuis defendeu a tese
de que a cincia demonstrativa, em sentido aristotlico, serviu de guia principal para a
fundao da mecnica no sculo XVII28. Finalmente, em estudo mais recente, Paolo
Mancosu mostrou que a teoria aristotlica da cincia marcou a filosofia da matemtica
nos sculos XVII e XVIII, alterando igualmente a prtica da disciplina no mesmo
perodo29. Entre os grandes nomes que trabalharam no seu contexto e balizados pelos
seus pressupostos, podemos contar Galileu, Newton, Pascal, Descartes, Leibniz, Kant,
Bolzano, Husserl, Frege ou Lesniewski. A sua vitalidade est patente no facto de auto-
proclamados anti-aristotlicos, como Hobbes ou Descartes, terem aderido sem hesitao
alguma a uma qualquer verso do modelo. Historicamente, os Segundos Analticos
25 Knorr 2003, 243-244. 26 Tomo por base, para a descrio geral do modelo de cincia aristotlico do pargrafo seguinte, o excelente artigo Jong-Betti (forthcoming). 27 Randall 1961. Esta afirmao de Randall adapta ao caso especfico da cincia a ainda mais famosa afirmao de A. N. Whitehead de que toda a filosofia ocidental uma srie de notas de rodap a Plato. 28 Dijksterhuis 1986. 29 Mancosu 1996.
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fornecem o ponto de partida e o contexto epistemolgico para a reflexo sobre a
cientificidade de qualquer saber, incluindo a matemtica, ou seja, no h espao para
uma reflexo sobre a teoria da cincia fora do modelo e a teoria da cincia no tem
autonomia em relao ao texto aristotlico. No por isso de admirar se, desde muito
cedo, a crtica da matemtica passou a ser feita no contexto do modelo de cincia
aristotlico.
A verdade que a vitalidade e dinamismo do modelo reside numa sua
propriedade estrutural e estruturante: ele absorvente e inclusivo. Qualquer cincia (ou
pelo menos uma cincia em sentido prprio) devia ser conforme ao modelo;
observaes sobre metodologia cientfica e obras de cincia produzidas por antigas
autoridades como Euclides, Ptolomeu ou Galeno deviam ser reconciliadas com aquele,
novas metodologias seriam consideradas, avaliadas e autorizadas no interior do modelo.
O nvel de estandartizao e globalizao do modelo torna desnecessrias citaes,
aluses e referncias e dispensa os autores que trabalharam no seu contexto de uma
formulao explicita, programtica e sistemtica, da sua concepo de cincia.
Estudar o estatuto da matemtica em abordagem histrica significa observar a
confrontao da disciplina com o modelo aristotlico. Por esta razo, o presente captulo
apresenta uma breve descrio do contedo dos Segundos Analticos e dos Elementos de
Euclides, ao que se acrescenta uma referncia a Proclo, primeiro autor a explicitamente
tratar ambas as obras numa perspectiva epistemolgica nica. Para alm da necessidade
de construo de contexto e proviso do que necessrio para compreender as ideias
tratadas ao longo deste estudo, ficar claro, penso, que estes autores delegam
competncias uns nos outros e se complementam de forma a oferecer uma teoria do
conhecimento e uma filosofia da matemtica comum.
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1.1. Aristteles30
1.1.1. O modelo de cincia descrito nos Segundos Analticos
O assunto principal dos Segundos Analticos a teoria do saber demonstrativo
(episteme). Embora no seja equivalente quilo que hoje designamos por saber
cientfico, usual considerar que o tratado aristotlico oferece uma teoria da cincia.
, alis, matria muito controversa saber se o que actualmente se entende por cincia
compatvel, de alguma maneira, com o que est descrito naquela obra de Aristteles.
Os detalhes e pormenores da teoria so difceis de compreender e muitas vezes tornam-
se obscuros, mas o esquema geral bastante claro.
O tratado comea com a assero de que qualquer aprendizagem ou ensino parte
de conhecimento prvio (ou pr-existente) e indica os tipos de conhecimento prvio que
existem. O captulo segundo identifica as duas condies para se ter conhecimento
cientfico: pensamos ter cincia sobre algo quando pensamos conhecer a sua causa e que
no pode ser de outro modo (I.2 71b9-12). A cincia em sentido aristotlico , por isso,
conhecida pela popular expresso latina scientia per causas. O postulado da
causalidade mais forte que o da simples dedutibilidade porque no s obriga a que
todas as proposies31 no fundamentais devam ser deduzidas a partir dos princpios de
uma cincia, mas determina tambm que estes princpios devem estar ligados s
concluses por um nexo mais forte que o de simples implicao lgica; tem de haver
uma direco unidireccional no encadeado dedutivo e uma fundamentao explicativa.
A palavra grega aitia tem sido traduzida de diferentes formas: fundamento32,
30 A bibliografia sobre o assunto , como se pode calcular, imensa. Em Mesquita 2005, 661-663 pode consultar-se a mais recente recente contribuio para uma bibliografia sobre a teoria da cincia aristotlica. Dentre as obras que utilizmos abundantemente neste captulo, encontram-se Ferejohn 1991 e McKirahan 1992. Importante e mais recente o estudo de Orna Harari (Harari 2004). Alguns artigos e captulos oferecem excelentes sistematizaes do modelo; a escola holandesa acumulou vasta experincia de estudo sobre o tema no sculo XX: veja-se Beth 1950 e 1966, Dijksterhuis 1986, 41-42, Jong-Betti (forthcoming). O ltimo artigo, j citado anteriormente, uma excelente resenha, com enfoque histrico e grande capacidade interpretativa, aproveitando materiais anteriores de W. R. de Jong (veja-se lista de artigos na p. 6, n. 12 do artigo). Fundamentais as edies dos Segundos Analticos: Tredennick 1966, Ross 2001, Barnes 1975. 31 matria de discusso se Aristteles considera que os objectos do conhecimento cientfico so coisas, factos ou proposies, assunto de que nos no ocuparemos, remetendo o leitor para a bibliografia especializada citada na nota anterior. 32 Ground como traduz McKirahan (1992, passim, p.e., a pgina 209).
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explicao33, causa34, compreenso35. Neste trabalho ser traduzida pelo termo
tradicional causa, que remete imediatamente para as quatro causas aristotlicas.
O saber cientfico obtido por demonstrao e a demonstrao definida como
um silogismo que produz saber cientfico. O paradigma de uma demonstrao um
argumento que tem a forma correspondente a um silogismo de primeira figura em
Barbara (I.14, 79a18-21). Existem, portanto, muitos tipos de demonstraes e, entre
eles, Aristteles mostra preferncia por demonstraes de proposies positivas e
universais s de proposies negativas e particulares e a demonstrao directa de
reduo ao absurdo36. O modelo prope uma distino clara entre um silogismo sem
valor cientfico, e o silogismo cientfico propriamente dito (I.2 71b16-22 e I.13 78a23-
b3). O primeiro prova apenas que as coisas so de determinada forma, o segundo
explica por que razo as coisas so de determinada forma. O primeiro usualmente
conhecido como demonstrao formal, demonstratio quia, a posteriori ou ab effectibus;
o segundo designado por demonstrao causal, demonstratio propter quid, a priori, ou
a causis. Da autoria de Averris parece ser a introduo de um terceiro gnero de
demonstrao, designado de demonstratio potissima, simpliciter ou absoluta, a qual
oferece, ao mesmo tempo, o efeito e a sua causa37.
Por outro lado, a cadeia demonstrativa pode representar a ordem por que os
factos ocorrem no mundo e na natureza, partindo das causas para os efeitos, ou pode
representar a ordem dos acontecimentos tal como os conhecemos, primeiro dando-nos
conta dos efeitos e progredindo depois at compreendermos as causas. Esta distino
entre a ordem do ser (ordo essendi, ou ordo in essendo), ou seja, a representao da
ordem de prioridade dos factos da realidade, e a ordem do conhecimento (ordo
cognoscendi, ou ordo in cognoscendo, ou ordo in inferendo), ou seja, a representao da
ordem de prioridade daquilo que anterior em relao a ns, central no modelo. Estes
dois conceitos fundamentais no dizem apenas respeito macro-estrutura do discurso
33 Barn